um novo conceito de revoluÇÃo
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UUMM NNOOVVOO CCOONNCCEEIITTOO DDEE RREEVVOOLLUUÇÇÃÃOO
Sobre os resultados das grandes manifestações sociais interativas que vêm ocorrendo no século 21
AAUUGGUUSSTTOO DDEE FFRRAANNCCOO
Três textos publicados no Facebook (18/03 e 8-10/04/2014)
Conversávamos semana passada no LABE=R (Laboratório da Escola-de-
Redes) sobre a situação do Egito. Hoje um amigo fez um comentário a um
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post sobre a nova política emergente dizendo em suma o seguinte (vou
editar o comentário para colocá-lo no presente contexto):
"Ainda não existe, em parte alguma do globo, estrutura que substitua o
Estado-nação, ou os meios políticos tradicionais de tomada deste mesmo
Estado-nação com fito ao controle social. Ainda estamos todos
impregnados de hierarquia. Lembremo-nos que no Egito houve a mesma
coisa, e lá temos hoje uma ditadura militar... como transformar o
sentimento de liberdade em ação concreta no mundo? Este é o desafio".
Segue a minha resposta e mais algumas considerações adicionais:
"O desafio colocado desta forma reduz a transformação social à
substituição dos ocupantes do poder de Estado. No Egito aconteceu muita
coisa, molecularmente, profundamente, como se pode ver no filme THE
SQUARE. É claro que continua ditadura (que continuaria igualmente com o
governo Morsi), desde os faraós. Mas é totalmente diferente. O que
aconteceu entre 11 de fevereiro de 2011 (deposição de Mubarak) e 30 de
junho de 2013 (deposição de Morsi, na maior manifestação popular já
vista em toda a história humana), pode voltar a acontecer a qualquer
momento: mudou a topologia da sociedade (o índice de distribuição da
rede), mudou a conectividade da sociedade e mudaram drasticamente os
seus graus de interatividade. Ou seja, houve uma transformação social no
Egito - que continua em curso - que não poderia desaguar numa mudança
de ocupantes do poder nas velhas estruturas. Atenção: isso é um sinal de
que mudou e não um sinal de que não mudou! A sociedade não cabe mais
no Estado.
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Sei que entender isso não é fácil, mas é necessário. As novas formas de
democracia que estão emergindo não podem se materializar em formas
de administração política compatíveis com o Estado-nação. Não importa
se não apareceu nada no lugar do Estado-nação. Não vai mesmo aparecer
nada que substitua o (ou que possa ocupar o lugar do) Estado-nação. O
Estado-nação (um fruto da guerra, da paz de Westfália) continuará por
muito tempo ainda. Mas a dinâmica das sociosferas glocais emergentes
vão torná-lo cada vez menos relevante, cada vez mais obsoleto. É o que
tende a acontecer, por exemplo, com as cidades inovadoras que vão se
tornando independentes dos poderes centrais e vão assumindo a
governança do seu próprio desenvolvimento. É o que vai acontecendo
com as múltiplas comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem
e de projeto que estão pipocando em todo lugar e se regulando
politicamente por modos mais interativos do que participativos ou
adesivos. Enfim... há uma transformação em curso e ela é social de facto,
não estatal. A conversa é longa."
Agora acrescento.
Ou acreditamos que as transformações sociais são sociais ou não
acreditamos. Se elas são sociais, elas devem ocorrer na intimidade da
sociedade. Transformações são mudanças de comportamento e não
mudanças de ocupantes de instituições. Se são mudanças sociais (atenção
para a palavra) então são mudanças no fluxo interativo da convivência
social. Woodstock não se traduziu em mudanças de ocupantes da Casa
Branca (nem pretendia isso), mas mudou comportamentos. As grandes
mudanças são moleculares e não se traduzem imediatamente em
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mudanças na composição das velhas instituições: elas, em geral, geram
novas instituições. E o velho nunca é substituído pelo novo, mas sempre
remanesce por tempo indeterminado tornando-se porém
progressivamente obsoleto. Ainda há reis e rainhas no século 21, ainda há
e haverá por longo tempo, teocracias no mundo. Gengis Khan superviverá
em algum lugar, nem que seja como inspiração para algum filho de Putin.
Então? Qual foi a consequência do 17-18 de junho de 2013 no Brasil, qual
foi o resultado (além da queda abrupta da aprovação do governo federal,
coisa que nem na pauta estava das manifestações)? Ora, provavelmente
foi a mesma consequência do 30J egípcio ou dos protestos de 2013 na
Turquia: Dilma continuou, os militares continuaram (no Egito) e Erdogan
continuou. Mas - atenção - não nas mesmas condições em que estavam
antes. Maduro e Cabello também continuam na Venezuela (por enquanto,
pelo menos), mas não na mesma condição em que estavam. Swarmings e
rebeliões civis podem agora acontecer a qualquer momento e isso pode
ser cada vez mais frequente em sociedades altamente conectadas ou em
mundos mais interativos. Ou seja, a sociedade mudou. Estávamos falando
do quê mesmo? Estávamos falando de mudança social ou não estávamos?
Para entender tudo isso é preciso partir da constatação de que não existe
mais um mundo (único) em termos sociais. São muitos mundos
coexistindo. Não nascerá uma nova forma de democracia que substitua
universalmente a democracia dos modernos e as ditaduras
remanescentes. As democracias realmente existentes tendem a continuar,
mais ou menos flaweds, capencando, em vários lugares, por tempo
indeterminado. Ditaduras (restaram ainda umas 50) tendem a continuar (e
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podem até aumentar: em 2013, pelo menos duas novas entraram na lista).
Qual a diferença portanto? A diferença é que os padrões de organização e
os modos de regulação antigos não podem mais proibir que surjam outros
padrões e outros modos mais interativos nos mundos de alta
interatividade que estão surgindo.
É a mesma coisa que acontece com a escola e com a universidade. Sempre
alguém pergunta: o que vamos colocar no lugar da escola ou da
universidade que estão em crise? Ora, a resposta é simples. Não vamos
colocar nada no lugar dessas instituições. Elas continuarão ainda por longo
tempo. Mas - eis a diferença, eis o ponto - não vão poder mais proibir que
novos arranjos mais ágeis de aprendizagem e novos modos e ambientes
de fazer ciência surjam paralelamente, obliquamente que seja, e que as
pessoas, crescentemente, a eles adiram.
Assim também ocorrerá com a forma Estado-nação. Como essas vetustas
menos de 200 estruturas centralizadoras existentes hoje conseguirão
controlar, em um mundo de 7 bilhões de pessoas e 7 mil culturas
linguísticas, o movimento crescente de suas cidades (e redes de
comunidades) mais dinâmicas, que não suportam mais (por razões fiscais,
políticas e de desenvolvimento ou inovação) permanecer na condição de
unidades sub-nacionais? Até quando a região de Shutoken (Tóquio,
Kanagawa, Chiba e Saitama), que há dez anos já tinha um PIB de 1,5
trilhões de dólares, permanecerá submissa ao velho Estado-nação
japonês? Não é que o Estado-nação japonês vai acabar. Não, ele vai
continuar. Mas não poderá mais impedir que Shutoken seja um ator
relativamente autônomo no cenário global. A mesma coisa acontecerá
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com Osaka, e com as cidades transnacionais, como Barcelona, Milão,
Roterdã, Lyon e com as cidades-pólo tecnológicas, como Omaha, Tulsa e
até Bangalore e Hiderabad. E com outras cidades-regiões, como Dalian ou
a ilha de Hainan. Esses são apenas alguns exemplos de possibilidades
visíveis agora, mas existem muitos outros.
Quando isso vai acontecer não é a pergunta certa. A pergunta é: onde já
pode acontecer? Não vai acontecer no mundo como um todo. Não existe
mais um mundo. Os redemoinhos frenéticos dos novos fluxos interativos
estilhaçaram o mundo único.
Então a preocupação dos que estão interessados na transformação social
deve ser com as mudanças sociais mesmo, quer dizer com as mudanças
nos fluxos interativos da convivência em cada mundo social que se
configura bottom up na interação e não com mudanças nas velhas
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instituições não-interativas para realizar, top down e pela força, mudanças
nas sociedades.
OO CCAASSOO DDAA VVEENNEEZZUUEELLAA
Vamos pegar o caso atual da Venezuela. Parece óbvio que as grandes
manifestações populares que eclodiram em todas as cidades da Venezuela
a partir de 12 de fevereiro não vão poder se manter com a mesma
intensidade, completados já quase dois meses de febril agitação.
Torçamos para que não, mas é difícil.
Até que estão durando muito (mais do que em qualquer outro lugar que
eu tenha visto, com essa continuidade, esse ritmo: todo dia, um dia após o
outro, sem falta).
A nova dinâmica social que se manifesta na Venezuela e em várias partes
do mundo neste século obedece ao ritmo imprevisível do fluxo interativo
da convivência social em sociedades altamente conectadas e não à nossa
vontade ou à vontade de qualquer líder. É a nova fenomenologia da
interação se manifestando, da qual sabemos ainda muito pouco:
praticamente tudo que sabemos foi descoberto neste século (swarming,
clustering, cloning, crunching, loops, reverberações, feed-back positivo
recorrente e encadeado ou múltiplos laços de retroalimentação de reforço
sequenciais, dinâmicas de contaminação viral e contração da refiação P2P
etc.).
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Alguns atores, na ignorância de tudo isso, têm a impressão de que estão
no comando ou de que seu papel militante é essencial, imprescindível
para fazer acontecer o que está acontecendo, mas até o papel que
desempenham (não o imaginário, mas o efetivo) não depende deles e sim
dos emaranhados que se conformam e se dispersam.
De todo modo, as manifestações não podem continuar a vida inteira com
a mesma intensidade e na falta de rebatimento nas instituições que ainda
controlam, direcionam e disciplinam boa parte dos fluxos em campos
hierárquicos (sobretudo em uma ditadura), a tendência é a alternância de
momentos de alta interatividade com momentos de baixa interatividade
(embora nunca mais descendo abaixo do patamar anterior, caso não
degenerem em guerra).
As mudanças sociais já estão ocorrendo na Venezuela mas elas,
provavelmente, não vão conseguir derrubar de uma vez o aparato
político-militar da ditadura chavista com suas múltiplas raízes no
submundo do crime e com forte apoio externo (inclusive do Brasil, que
contribui para barrar iniciativas de organismos internacionais e
multilaterais, como a OEA). Como foi explicado anteriormente, se o que
está em curso é uma transformação social, o resultado que está sendo
produzido só pode ser social mesmo (e não imediatamente político).
É possível que tudo isso tenha um desfecho eleitoral (até com eleições
antecipadas), mas o resultado das eleições, sejam quais forem os eleitos,
não será de modo algum o resultado mais profundo e radical do que está
acontecendo na sociedade venezuelana. Será apenas uma consequência
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político-institucional. E os eleitos, mesmo se forem representantes da
oposição (o que é difícil, dado o controle que a ditadura chavista
estabeleceu sobre o processo eleitoral, sobre a justiça e sobre todas as
instituições legislativas e executivas do Estado), não vão conseguir
expressar os anseios de liberdade que foram às ruas e ainda estão nas
ruas neste momento mas não poderão nelas permanecer no longo prazo.
De novo, torçamos para que não, mas é difícil.
No afã de resolver de uma vez por todas o problema, a pior alternativa é a
instalação de uma dinâmica de guerra. A guerra só fortalecerá o regime
(que tem mais armas e munições, contingente maior de combatentes
treinados, mais apoio internacional, mais recursos de toda ordem). É claro
que nada disso se compara ao poder das redes quando grandes multidões
se constelam e persistem. Mas o problema é que elas não podem persistir
por muito tempo e o Estado pode. Mais uma vez: torçamos para que não,
mas é difícil.
Então, dizia, se na pressa de derrubar o tirano os manifestantes começam
a se organizar para a guerra e se se instalar, de fato, uma dinâmica de
guerra, o conflito tende a ser longuíssimo e improdutivo sob todos os
aspectos. Na guerra não prevalece mais a dinâmica interativa das grandes
constelações sociais e sim o comando-e-controle, a hierarquia e a
autocracia (de ambos os lados). Olhem o caso da Síria, que começou com
uma grande manifestação social em 26 de janeiro de 2011 e já em 15 de
março acabou degenerando em guerra civil. É uma situação que não vai se
resolver no curto prazo (foto). Ademais, os sublevados da Venezuela não
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têm por perto nenhuma Arábia Saudita para financiar seus esforços
militares.
Guarimbas (barricadas), coquetéis molotov, máscaras de gás, escudos e
estilingues gigantes não têm poder algum sem a rede social. Muito menos
poder terão as armas leves conseguidas por algum grupo guerrilheiro
maluco. Além do quê, a dinâmica da guerra desconstituirá as mudanças
moleculares democratizantes que estão ocorrendo subterraneamente na
sociedade venezuelana. Eis o ponto!
Tudo isso é para dizer que a resistência popular na Venezuela deve
continuar como revolução social (que não é a troca dos ocupantes da
direção do Estado). Quem faz esta confusão e usa a sociedade como
massa de manobra para a tomada dos palácios de inverno - ou, agora,
para usar as eleições como tática democrática para chegar ao poder para
não governar democraticamente, pervertendo a política como arte da
guerra - é a esquerda autocrática, não os democratas. A democracia é um
movimento de desconstituição de autocracia, é fato, mas ela nunca
nasceu - nem nascerá - da guerra.
SSÓÓ AA PPAAZZ ÉÉ RREEVVOOLLUUCCIIOONNÁÁRRIIAA
Quando as pessoas vão entender o óbvio? Que democracia só pode existir
na paz (nunca na guerra que é constituinte de autocracia)? E quando vão
entender que paz não é não-violência e sim não-guerra? Você pode reagir
violentamente diante de ameaça patente à vida (sua e de terceiros),
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diante da privação injustificada da liberdade e diante da imposição
voluntária de sofrimentos aos semelhantes (e aos seres sencientes) e,
mesmo assim, não fazer guerra.
A guerra não é a violência eventual, incidental, que ocorre sempre que
diferentes derivas biológicas ou sociais interagem desarmonicamente. Por
exemplo, dois animais disputando um mesmo pedaço de alimento. Outro
exemplo: duas tribos disputando o acesso à um recurso vital (como a
água).
A guerra não é o conflito mas um modo de resolver o conflito que se
estabelece e se reproduz culturalmente organizando cosmos sociais
vincados pela contraposição amigo x inimigo. É um engendramento
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baseado na construção de inimigos como pretexto para erigir estruturas
hierárquicas e modos de regulação autocráticos. A guerra é violência
coagulada e só subsiste quando a violência se institucionaliza ou se
prorroga como modo de vida social.
Nada disso tem a ver com ataque ou defesa, que já são categorias da
guerra. Aliás, é sempre em nome da defesa que se erigem estruturas e
dinâmicas guerreiras. Não da defesa à ameaça patente, concreta e sim à
ameaça imaginária, abstrata, que poderia sobrevir no futuro caso... os
inimigos resolvessem nos atacar. O lema inscrito nos muros dos quartéis
revela tudo: "Se queres a paz, prepara-te para a guerra". Na verdade,
quem se prepara para a guerra, quer a guerra, produz a guerra, inventa a
guerra (que não existe como realidade transcendente ou imanente, mas
apenas se nós a fazemos).
Ora, a guerra é, justamente, a preparação para a guerra e o estado de
guerra instalado contra um eventual inimigo interno ou externo. O se
preparar para a guerra implica então a verticalização do tecido social, a
centralização da rede e a adoção de modos de regulação autocráticos (em
nome da eficácia e da eficiência exigidas pela dinâmica do confronto
guerreiro).
Por isso, quem não entende a guerra não pode entender a democracia
(que é, fundamentalmente, desconstituição de autocracia). E é também
por isso que só se pode aprender democracia desaprendendo autocracia.
Quer dizer desaprendendo guerra ou aprendendo paz!
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OO QQUUEE ÉÉ SSEERR UUMM RREEVVOOLLUUCCIIOONNÁÁRRIIOO HHOOJJEE
O problema é que a dinâmica da luta é contagiante. E que, ao lutar com
um urso, você necessariamente adquire garras de urso. Então a única
escapatória é não lutar. Não se consegue isso facilmente sem se alienar
um pouco do presente. Podemos sempre nos refugiar em outros mundos,
nas nossas Zions. Mas embarcados na Nabucodonozor é difícil. Este é o
drama que vivemos diariamente. Tentando resumir em quatro pontos:
1 - Como ser um interativista de processos de construção de novos
padrões de convivência social sem ser um militante adversarial?
2 - Como romper com o ativismo instrumental de grupos que traçam
estratégias e aplicam táticas (ainda que sejam táticas de não-violência)
para alcançar objetivos concebidos antes da interação?
3 - Como radicalizar ou democratizar a democracia, defendendo a
democracia que temos (contra as tentativas de autocratização) mas não se
deixando aprisionar dentro dos seus limites?
4 - Como praticar a paz como caminho revolucionário (e não como
objetivo a ser alcançado no futuro) de desobediência civil e política na
invenção de novas formas de democracia?
As resposta para essas quatro perguntas ainda estão sendo construídas.
Mas penso que elas devem levar em conta os três pontos seguintes:
1) A LIBERDADE NUNCA PODE SER NEGOCIADA, trocada por melhores
condições de vida providas por algum regime autocrático ou ofertadas por
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um déspota "do bem". Mesmo que toda a população comesse caviar,
bebesse Romanée-Conti e tivesse penicos de ouro (para lembrar uma
frase de Krushev), tudo isso nada valeria sem liberdade.
2) NÃO HÁ PREPARAÇÃO PARA A DEMOCRACIA. Um país (ou um coletivo
qualquer de seres humanos) só pode se preparar para a democracia
através da democracia. A democracia não é um regime determinado e sim
um movimento constante ou intermitente de desconstituição de
autocracia. E a democracia não é a utopia da política e sim exatamente o
contrário.
2) SÓ A PAZ É REVOLUCIONÁRIA, entendendo a paz como o caminho (ou
modo não-guerreiro de caminhar) e não como um objetivo a ser
alcançado. A única maneira de realizar a paz (como caminho) em campos
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hierárquicos e regulados por dinâmicas autocráticas é pelo exercício da
desobediência civil e política, mas nunca pela guerra (que significa não o
conflito violento, como se acredita, mas um engendramento que se baseia
na construção de inimigos como pretexto para erigir sistemas de poder
vertical).
(13/04/2014)
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