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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ALUNO: GLAUCIO VINICIUS DE SOUZA ALVES
PROFESSOR: SÉRGIO
UMA LEITURA DE MAQUIAVEL PEDAGOGO, de Pascal Bernardin
Uma questão fundamental das origens do pensamento político ocidental diz respeito à
República, de Platão. Para rastreá-la, devemos situar a condição dos homens no plano geral da
existência segundo a concepção do filósofo.
Para Platão, o homem se encontra num estrato existencial particular do cosmos, entre os
animais e os deuses. Nem se habitua inteiramente à materialidade terrestre, nem pode independer
dela em sua vivência. Questionando-se acerca de quais seriam as mais razoáveis condições
sociopolíticas para a adaptação do homem em face desta natureza, Platão teria escrito a República
como uma investigação de hipóteses acerca de um problema caro à mentalidade dos pensadores
gregos: a função da sociedade e sua relação com o cosmos.
Platão analisa (como o faz no século IV Santo Agostinho, na Cidade de Deus) a ideia de
uma sociedade ideal. No entanto, como aludimos acima, a questão fundamental a que nos referimos,
e que podemos depreender da possível motivação para a proposição da República, é a de se Platão
intentou deliberadamente mostrar a impraticabilidade da sociedade ideal ou se, por outro lado, quis
de verdade erigir um modelo de Estado a ser seguido pelos cidadãos gregos1.
Aristóteles, no primeiro capítulo da Política, assevera que é um equívoco julgar um governo
segundo o seu número de associados, mas que aquele deve ser analisado segundo sua espécie. Na
Ética a Nicômaco, o Estagirita aplica o vocábulo “política” à “ciência da felicidade humana”,
bifurcando-a na ética e na política tal como a conhecemos. Esta última seria “política” em sentido
estrito, enquanto que a ciência da felicidade humana seria a política em sentido lato. Ambas as
realidades dão conta da atividade humana: buscar a felicidade num certo modo de viver (ética), bem
como de sua relação com o meio em que vive (política)2.
Em ambas as dimensões, seja a da felicidade individual (a moral), seja a da felicidade
compartilhada, intersubjetiva, alcançada pelo conjunto de indivíduos que se associam (a política,
em Aristóteles), o papel da educação é fundamental. A formação dos gregos (paidéia) fornecia a
razão de ser para uma perspectiva integral da educação, ou seja, o cidadão a ser educado na cultura
helênica deveria ter suas potencialidades exploradas tanto para alcançar a virtude (aretê) dos
guerreiros, quanto para desenvolver suas capacidades intelectivas.
A constituição da cidade-Estado, que nos interessa mais propriamente aqui, configura-se na
obra Política – que trata do assunto em sentido estrito. Para Aristóteles, seguido por pensadores
como Sto. Tomás de Aquino, a política deve se pautar pela ideia da prática do bem comum. Para os
cidadãos associados na pólis, é a virtude o fim moral a que necessariamente se vincula a política,
sob pena de esta degringolar em tiranias e outras patologias do poder.
Nesse sentido, uma especial tensão entre a educação e os limites do Estado vem à tona: a
quem é dado o papel de educar o cidadão e, neste caso, quais os limites que o Estado tem de
1 http://www.olavodecarvalho.org/semana/040808zh.htm2 ARISTÓTELES. Política. Trad. Mario da Gama Kury. Editora UNB: Brasília, 1985 (Biblioteca Clássica UNB).
respeitar para que o ideal emancipatório (ou meramente formativo) advindo da busca por via
educacional não seja maculado por tentações totalitárias?
Isso porque, pelo menos desde Maquiavel, o ideal da política já não resguarda mais o
sentido aristotélico-tomista de valorização da felicidade comum. Embora saibamos que, na prática,
a ambição do poder sempre se expressou politicamente na história da humanidade, até o florentino,
a teoria política de matriz aristotélica era preponderante, perfazendo um importante esforço ao
menos para rememorar aos homens o elemento norteador que deveria conduzir suas intenções ao
eventualmente se aventurarem pelos liames do governo das cidades. Não considero demais ressaltar
que, quando Maquiavel expressa conselhos de manutenção do poder político relegando o aspecto
moral às favas ou o problematizando (como na conhecida frase “os fins justificam os meios”), está
ao mesmo tempo nos beneficiando e nos prejudicando: ao passo que descreve as táticas de
aproveitamento político, situa-nos também na condição de vítimas desses oportunistas, uma vez
que, em muitos aspectos, assim se traduziram historicamente as lições legadas pelo autor florentino.
Mas, como podemos verificar esta última hipótese?
Maquiavel Pedagogo, do francês Pascal Bernardin analisa em que medida as lições do
político italiano – mesmo que inconscientemente – têm sido aplicadas no bojo de um projeto de
reeducação global – frisando suas consequências psicopedagógicas nocivas. Infiltrados em
organizações como UNESCO, Comissão de Bruxelas e Comissão da Europa, pedagogos
revolucionários levam a cabo uma reconstrução educacional sob a bandeira de uma “ética voltada
para a criação de uma nova sociedade”, estabelecendo uma sociedade “intercultural”. Para
Bernardin, esta tentativa nada mais é do que uma reapresentação das utopias históricas – e
sangrentas – encenadas pelo comunismo (embora o autor não despreze a hipótese da conjunção
entre o comunismo e o capitalismo globalista). A diferença é que, como o mundo rejeita em geral os
regimes não-democráticos, e a triste herança histórica do comunismo no século XX é ainda recente
na memória dos países, esta revolução se traveste de “democrática” e põe em cena as estratégias de
manipulação psicológica (veremos adiante) que devem transformar o cenário cultural do Ocidente,
sendo tanto mais eficaz quanto mais silenciosa.
Desde a crítica dos frankfurtianos acerca da situação social do proletariado absorvido pelas
vantagens do estado de bem-estar social que emergiram da queda do comunismo no Leste Europeu,
a estratégia revolucionária se pautaria por outros determinantes: já não por via das armas, da batalha
explícita e cruenta, mas pela onipresença da cultura socialista através da tomada gradual das
instituições (e aqui Antonio Gramsci, o fundador do partido comunista italiano, tem papel
essencial). Não adentrando na consideração a respeito de outras instituições, Bernardin se detém no
aspecto do ensino, identificando a ingerência cada vez mais acentuada dessa ideologia nos
organismos de direção e promoção pedagógicas (e seus consequentes efeitos políticos). Diz o autor
que esses pedagogos se valem de pesquisas obtidas pelos soviéticos e criptocomunistas norte-
americanos e europeus3.
Mediante organismos como os Institutos Universitários de Formação de Mestres (IUFMS),
as instâncias de propugnação dessa vertente ideológica atuam, primariamente e logicamente, na
formação dos professores. “Redefinido o papel da escola”, diz Bernardin, “a prioridade é já não a
formação intelectual, mas o ensino ‘não cognitivo’' e a ' aprendizagem da vida social’”, por onde se
segue também à formações continuadas dos demais profissionais da educação – administradores,
diretores – para se adequarem à missão redefinida da atividade escolar. Através de projetos
escolares, o valor que os professores conferem à docência e aos seus alunos vai sendo solapado por
técnicas de descentralização, oriundas de abordagens administrativas e de “recursos humanos”. O
mérito inconteste de Bernardin neste texto é lançar luz sobre o novo objetivo central a ser atingido
nos sistemas de ensino: o resultado do enfoque na educação não mais como formação cognitiva,
mas como formação social, incutindo nas crianças valores e comportamentos a serviço dos
estrategistas, sob a máscara de autonomia intelectual.
As técnicas de manipulação psicológica
Dispondo de um arsenal de fontes bibliográficas bem referenciadas, Bernardin expõe as
técnicas psicológicas ensinadas nos IUFMS, que se apoiam especialmente no behaviorismo e na
chamada “psicologia do engajamento”: a experiência de “pé na porta”, composta por Freedman e
Fraser consistiu em que um grupo de mulheres às quais se solicitou a resposta a um questionário
extenso sobre os hábitos de consumo. Com esta abordagem direta, a aceitação em responder o
questionário foi de apenas 22%. Quando, de outro modo, requereu-se de outro grupo o mesmo
questionário, embora antes tenham preparado a abordagem com um procedimento simples: três dias
antes, ligaram para as participantes da enquete, pedindo para que respondessem algumas perguntas
relacionadas ao tema, o resultado foi surpreendente: o número subiu para 56%, pois as pessoas se
sentiram “engajadas”.
Outro experimento é o “porta na cara”, que é o inverso. Pede-se algo custoso, e depois se
pede o que se pretende conseguir; a experiência de Festinger indica que os nossos atos podem
influenciar nossas opiniões, mostrando que um indivíduo, ao ser levado a agir em contraste com
suas convicções, especialmente em público, é provável que racionalize esta nova opção, assumindo-
a; esta experiência tem variantes bem distintas: imagine que, num primeiro momento, as pessoas
têm de fazer um trabalho manual extremamente chato. Depois, o pesquisador pede às pessoas que
3 BERNARDIN, P. Maquiavel Pedagogo – ou o ministério da reforma psicológica. São Paulo: Ecclesiae/ Vide Editorial. p. 5.
mostrem essa tarefa a outros examinados como sendo um serviço prazeroso. A uns, o homem que
faz as pesquisas dá vinte dólares; a outros, dá um dólar. Alarmante: os que receberam mais dólares
(os de vinte) acham, ao final do experimento, a tarefa ainda tediosa, pretextando que a fizeram com
interesse no dinheiro. Os que ganharam apenas um dólar, para diminuírem o conflito causado pela
dissonância entre sua opinião inicial acerca da tarefa (a de que ela era bastante tediosa) e o ato de
mentira que acabaram de cometer, dão novo significado à experiência, frequentemente modificando
sua opinião acerca daquela mesma tarefa; outra modificação de comportamento pode ser incutida
em decisões e discussões de grupos. Fica clara a eficácia de expedientes de dissonância cognitiva
como esses, canalizados para orquestração política e ideológica.
A Psicologia Social na Educação
Segundo Bernardin, na esteira das modificações comportamentais, a Psicologia Social tem
papel fundamental. A inserção de suas técnicas, entre as quais figuram as acima referidas, produzem
não somente mudanças de atitudes, mas engajamento: um aprofundamento na perspectiva
introduzida solidifica a nova posição. “Maior será a mudança de atitudes caso o comportamento
divirja das convicções anteriores do sujeito, e tanto maior será a resistência às propagandas caso
esse comportamento” se solidifique na concordância com as opiniões anteriores, o que mostra a
necessidade de cooptar as crianças desde tenra idade. Há fatores que produzem o engajamento: a
explicitude do ato e sua importância, o grau de irrevogabilidade, o número de vezes de sua
aplicação e, sobretudo, a sensação de liberdade para a efetivação não só do engajamento, mas de
todas as técnicas supracitadas.4
Em 1964, a UNESCO publicou um trabalho relevante, A modificação das atitudes, uma obra
na qual estão descritas as técnicas acima, mas que aprioristicamente trata de relações entre grupos
humanos. Bernardin afirma que tais técnicas podem, contudo – e o são – ser implementadas
individualmente, e que esses arranjos de manipulação do comportamento estão sendo desenvolvidos
pelo menos nas escolas francesas. Já no prefácio do documento, a UNESCO ressalta o seu
compromisso com a modificação de atitudes para pretensamente superar a discriminação e o
preconceito. Estas são típicas palavras “talismã”: basta que sejam dispostas num texto, para que
deem a impressão de probidade à proposta contida nele. Já no prefácio, o documento explicita com
clareza uma ideia fundamental: a modificação de atitudes em escala internacional, cujo esteio se dá
nas áreas da Pedagogia, Psicologia Social etc.
A modificação de comportamento dos pais, não apenas das crianças, também é uma atitude
julgada necessária para o documento. Além de meros comportamentos, são os valores que devem
4 BERNARDIN, p. 20.
ser modificados, para superar o chamado “atraso cultural”, considerando insuficiente a educação
como processo de pura e simples transmissão do conhecimento. Para a UNESCO, nesse sentido, é a
totalidade da personalidade que tem de ser integrada nos grupos sociais, isto é, situando a educação
fundamentalmente como uma inserção do indivíduo numa dinâmica de grupo. Trata-se, enfim, de
não apenas estabelecer uma revolução social, mas de promover uma transmutação psicológica, uma
revolução psicopedagógica silenciosa. O intento dessas pessoas se expressa numa mudança assaz
importante: a redefinição do papel da escola.
O ensino deverá ser multidimensional, explorando, diz Bernardin, não simplesmente o
ensino cognitivo, intelectual, mas sobretudo o ético, político, cultural, social e espiritual. Busca-se
uma modificação do comportamento, não um enriquecimento intelectual.
O passo seguinte é centrado na ética, e numa revolução cultural. A “nova ética” que se
pretende consolidar se traduz nesses temas: os direitos humanos e sociais; a bioética; os direitos das
crianças (enfatizamos); a “educação para a paz, a concórdia entre as nações, o desarmamento, o
civismo pacífico, a fraternidade humana etc.” (típicas palavras “talismã”); educação para o meio
ambiente; sociedade multicultural; passagem da competição à cooperação. O relatório da UNESCO
assevera taxativamente a necessidade de uma “nova ética universal” em contraposição à “ética
grupal”5. Toda adoção de valores morais e crenças deverá ser concretizada somente a partir da
pesquisa científica. O ataque à família também fica evidente6.
Diz Bernardin que o Conselho da Europa, na via de uma inculcação de novos valores,
advoga o laicismo como forma de “coesão do corpo social”. Bernardin atina com o fato de que tais
organizações defendem textualmente que à família não deve ser respaldada a missão de educar –
como seria de bom tom –, mas que, para eles, a escola não tem de se limitar ao ensino, mas, sim,
transmitir valores7. Num trecho espantoso8, o texto da UNESCO expressa seu objetivo: com a
contribuição da degradação moral vigente no mundo hodierno, que, antes de estar assim por um
eclipse de valores ou indiferença moral proveniente dos “tempos modernos”, foi forjado por um
projeto de desestruturação, de subversão da ordem social e psicológica dos indivíduos, almeja-se o
“perfeito controle da modificação dos valores” por parte de uma ação política consciente.
Outro ponto fulcral é a reescrita da Historiografia como ferramenta de aglutinação cultural
– ferramenta que, aliás, é inescapavelmente totalitária. Para o projeto coletivista dessas entidades,
alardeado em palavras como educação para a paz, o ensino de História deverá eliminar a menção
aos conflitos passados entre nações, etnias etc. A consequência, mostra o autor francês, será a
amputação das heranças culturais, impondo obstáculo, desse modo, a toda compreensão política por
5 Conference intergouvernementale de 1983 pour la coóperation internationale, la compréhension et la paix. 6 BERNARDIN, p. 40.7 48o Seminaire du Conseil de I'Europe pour enseignants, Donaueschingen, 25-30 juin 1990, Sciences, Éthique, Droits de I'homme et éducation, Strasbourg, Conseil de I'Europe, 1991, p. 10.8 BERNARDIN, p. 42.
parte das novas gerações. Apesar disso não ser tão evidente no texto da 4a Conferência dos
Ministros de Educação da UNESCO, citado por Bernardin, ele está certo em considerar a pouca
importância que a Conferência dá à História como sendo a apresentação objetiva dos fatos.
As ponderações de Bernardin são surpreendentes e parecem descabidas a um público leitor
que está isolado de outras perspectivas intelectuais por efeito da pouquíssima bibliografia
disponível no Brasil. A experiência dos totalitarismos do século XX mostraram que o descuido com
a prevenção acerca de estratégias políticas levadas a cabo por indivíduos e grupos ambiciosos,
podem nos fazer pagar um preço altíssimo. Como o mundo ocidental parece ter aprendido com tais
manifestações de tirania e brutalidade empreendidas por Lênin, Stálin, Mao Tsé-Tung, Pol-Pot etc.,
nenhuma proposta de subversão se pode pretender eficaz caso seja evidente, escancarada, mas deve
ter sua eficácia maximamente assegurada por estratégias silenciosas, discretas. E, as estratégias
pedagógicas descritas pelo autor de Maquiavel Pedagogo para serem efetivadas nas diversas
instâncias de ensino infantil, são um diagnóstico relevantíssimo para a compreensão da sociedade
contemporânea. A obra é repleta de referências, o que confere a devida legitimidade às teses
oferecidas por Bernardin.
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