trabalhadoras em movimento: bolivianas nas oficinas de ... · imigrantes bolivianas inseridas nas...
Post on 07-Feb-2019
221 Views
Preview:
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
NÚCLEO DE ESTUDOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM DIREITOS HUMANOS
MAÍRA COSTA ETZEL
TRABALHADORAS EM MOVIMENTO:
BOLIVIANAS NAS OFICINAS DE COSTURA EM SÃO PAULO
RIO DE JANEIRO
2017
MAÍRA COSTA ETZEL
Trabalhadoras em movimento:
bolivianas nas oficinas de costura em São Paulo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Políticas Públicas em Direitos
Humanos da Universidade Federal do Rio de
Janeiro para obtenção do título de Mestre em
Políticas Públicas em Direitos Humanos.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Rezende Figueira
Rio de Janeiro
2017
E83 Etzel, Maíra Costa.
Trabalhadoras em movimento: bolivianas nas oficinas de costura em
São Paulo / Maíra Costa Etzel. 2017.
123f. : il.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Rezende Figueira.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos,
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos
Humanos, 2017.
1. Trabalhadoras estrangeiras bolivianas – São Paulo (SP). 2.
Trabalhadoras imigrantes – São Paulo (SP). 3. Trabalhadoras têxteis –
Condições sociais – São Paulo (SP). I. Figueira, Ricardo Rezende. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Núcleo de Estudos e Políticas
Públicas em Direitos Humanos.
CDD: 331.4877
MAÍRA COSTA ETZEL
Trabalhadoras em movimento: bolivianas nas oficinas de costura em São Paulo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Políticas Públicas em Direitos
Humanos da Universidade Federal do Rio de
Janeiro para obtenção do título de Mestre em
Políticas Públicas em Direitos Humanos.
Banca Examinadora:
__________________________________
Prof. Dr. Ricardo Rezende Figueira – NEPP-DH/UFRJ
_________________________________
Profa. Dra. Adonia Antunes Prado – NEPP-DH/UFRJ
_________________________________
Prof. Dr. José Ricardo Ramalho – IFCS/UFRJ
Nas pessoas de Carmen, Lourdes, Luz, Sara e
Zelaide: a todas as mulheres bolivianas que
residem e resistem em São Paulo.
Às minhas avós, Hilda e Amelinha.
AGRADECIMENTOS
Sou igualmente agradecida a todas as pessoas citadas abaixo e muitas outras que não cabem
neste espaço: familiares, amigas e amigos que são parte essencial da minha caminhada.
À Carmen, Lourdes, Luz, Sara e Zelaide, que de forma tão sincera e singela abriram
suas casas e me contaram suas histórias.
À Quilla, pela disponibilidade e disposição de me apresentar a suas conterrâneas.
Ao meu orientador, Ricardo Rezende Figueira pela referência, inspiração e incontáveis
histórias, leituras e sugestões.
Ao Grupo de Pesquisa de Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC), pelo espaço de
encontros, de reflexões e de aprendizados e pelo apoio financeiro para a realização desta
pesquisa.
Às integrantes e amigas do GPTEC com quem tive o prazer de conviver diariamente:
Sonia, por me fazer caminhar mais devagar; Adonia, pelo cuidado, pelas palavras e sugestões;
Edna e Suli, que me acolheram de forma tão carinhosa.
À Jhene e Marinalva, pela companhia durante as pausas para o café.
À Luiza, funcionária do NEPP-DH, pela doçura cotidiana.
Ao Grupo Nzinga de Capoeira Angola do Rio de Janeiro, que renovou minha energia
quando a cabeça e o corpo sentados pediam descanso. Por fazerem me sentir em casa.
Ao Javi, meu companheiro sorridente desse período e dos períodos que estão por vir.
À Bruna, pela amizade que já ultrapassa 15 anos. Por compartilhar um lar, um gato e
todos os pensamentos.
Às minhas tias, Rô e Vanja, exemplos de mulheres fortes.
Mãe, Pai e irmã. Pelo amor e força que a presença de vocês me causa.
“Vengo en busca de respuestas
Con el manojo lleno y las venas abiertas
Vengo como un libro abierto
Anciosa de aprender la historia no contada de
nuestros ansestros
Con el viento que dejaron los abuelos y que vive
en cada pensamiento
De esta amada tierra, tierra
Quien sabe cuidarlo es quien de verdad la quiere
Vengo para mirar de nuevo para deducirlo y
despertar el ojo ciego
Sin miedo, tu y yo
Descolonizemos lo que nos enseñaron
Con nuestro pelo negro, con pómulos marcados
Con el orgullo huido en el alma tatuado
Vengo con la mirada, vengo con la palabra
Esa palabra hablada, vengo sin temor a no
perder nada
Vengo como el niño que busca de su morada
La entrada al origen la vuelta de su cruzada
Vengo a buscar la historia silenciada
La historia de una tierra sequiada
Vengo con el mundo y vengo con los pájaros
Vengo con las flores y los árboles sus cantos
Vengo con el cielo y sus constelaciones
Vengo con el mundo y todas sus estaciones
(...)”
(Ana Tijoux)
RESUMO
Esta pesquisa está ancorada na oralidade como fonte de interpretação de processos histórico-
sociais. Mais especificamente, o estudo se apoia na técnica da história de vida. São registrados
elementos da trajetória de cinco mulheres pertencentes ao segundo fluxo migratório de
bolivianos para a Região Metropolitana de São Paulo: Carmen, Lourdes, Luz, Sara e Zelaide.1
Não obstante a singularidade de cada narrativa, caminhos similares são percorridos pelas
imigrantes bolivianas inseridas nas oficinas de costura, base da cadeia têxtil. O estudo tem
dois objetivos centrais. O primeiro é compreender as dinâmicas de gênero nas oficinas. Para
tal, são abordadas as experiências laborais das mulheres com atenção à particularidade do
trabalho exercido por elas. O segundo objetivo repousa na discussão acerca do trabalho
análogo ao de escravo na costura, com ênfase à “agência individual” que as trabalhadoras
possuem para reverter ou minimizar as condições precárias que lhes são oferecidas. Através
da percepção apresentada pelas mulheres em suas falas, pode-se dimensionar a complexidade
das relações sociais estabelecidas com o trabalho, a família e o entorno.
Palavras-chave: Trabalho análogo ao de escravo; Imigração boliviana; Oficinas de
costura; Mulher; Gênero.
1Nomes fictícios.
ABSTRACT
This research is supported by orality as a source of interpretation of historical and social
processes. More specifically, this investigation is based on life history approach. Elements
from the paths of five women who belong to the second migration flow of Bolivians to
Metropolitan Area of São Paulo were registered. They were named as: Carmen, Lourdes,
Luz, Sara and Zelaide2. In spite of the uniqueness of each narrative, similar routes were taken
by bolivian immigrants settled in garment workshops, bedrock of textile industry. This study
has two main goals. The first of them is throw light on gender dynamics on garment
workshops. For such, the women’s labor experiences are approached with emphasis on the
particularities of their work. The second rests on slave labor on garment industry debate,
highlighting individual agency that workers have to revert or minimize their precarious
conditions. Through their impressions is possible to capture the social relations’ complexity
established with their jobs, families and environment.
Keywords: Slave Labor, Bolivian immigration, Garment workshop;Woman; Gender.
2 Fictional names
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Fluxograma 1 - Empresa Zara...................................................................................................47
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABIT Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção
ABVTEX Associação Brasileira do Varejo Têxtil
CAMI Centro de Apoio e Pastoral do Migrante
CDHIC Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante
CLT Consolidação das Leis do Trabalho
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNIg Conselho Nacional de Imigração
CNPJ Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica
COETRAE Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo
COMTRAE Comissão Municipal para a Erradicação do Trabalho Escravo
CONATRAE Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo
CRAS Centro de Referência de Assistência Social
CPB Código Penal Brasileiro
CPI Comissão Parlamentar de Inquérito
CPT Comissão Pastoral da Terra
CTPS Carteira de Trabalho e Previdência Social
DETRAE Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo
DPU Defensoria Pública da União
GEFM Grupo Especial de Fiscalização Móvel
GERTRAF Grupo Executivo de Combate ao Trabalho Forçado
GEVID Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica
GPTEC Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMS Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
INE Instituto Nacional de Estadísticas de Bolivia
MIRAD Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário
MP-SP Ministério Público do Estado de São Paulo
MPT Ministério Público do Trabalho
MTE Ministério do Trabalho e Emprego
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
OIT Organização Internacional do Trabalho
ONG Organização Não Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PEC Proposta de Emenda Constitucional
PNUD Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento
RGP Rede Global de Produção
RGPs Redes Globais de Produção
RMSP Região Metropolitana de São Paulo
SIT Secretaria de Inspeção do Trabalho
SRTE Superintendência Regional do Trabalho e Emprego
TAC Termo de Ajuste de Conduta
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................................11
Capítulo 1. Trabalho análogo ao de escravo.........................................................................26
1.1 Que modalidade de trabalho é essa?...................................................................................26
1.2 O trabalho no século XXI e a indústria têxtil......................................................................34
1.3 Artigo 149 nas oficinas de costura......................................................................................42
1.4 Mulher e trabalho análogo ao de escravo: um percurso acadêmico....................................49
Capítulo 2. Bolivianas e o trabalho nas oficinas de costura................................................57
2.1 Emigração de mulheres para o trabalho: por que sair?.......................................................57
2.1.1 A saída: Me agarré a mis hijos y mi he ido......................................................................62
2.2 Primeira parada: Argentina. Segunda parada: Brasil..........................................................65
2.3 Trabalho nas oficinas: Me canso, me duele, me aguanto, tengo que trabajar ¿Qué voy
hacer?........................................................................................................................................69
2.3.1 Trabalho de mulher na oficina: ¡Mujer que cose, mujer que cocina, mujer que
compra!.....................................................................................................................................76
Capítulo 3. Narrativas de resistência....................................................................................80
3.1 Eu, escravizada?..................................................................................................................80
3.2 Agência individual: ¡De esa forma no puede tratarme!.....................................................85
3.2.1 Donas da própria máquina...............................................................................................87
3.3 Notas sobre o silêncio e a violência: Con miedo estaba cerrada.......................................90
3.4 A fé e os filhos como forma de resistência..........................................................................96
Considerações Finais.............................................................................................................100
Referências.............................................................................................................................103
Apêndice.................................................................................................................................115
Anexo......................................................................................................................................117
11
INTRODUÇÃO
Considerando o Estado como um ator capaz de incentivar ou inibir práticas de
exploração vigentes na relação capital/trabalho, o momento político da realização desta
pesquisa está envolto de retrocessos. Basta mencionar a Reforma Trabalhista aprovada no
Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Michel Temer no dia 13 de julho de 2017
que reduz em diversos pontos a proteção e os direitos previstos aos trabalhadores pela
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) 3.
No que se refere ao combate ao trabalho análogo ao de escravo, não é diferente.
Conforme afirmou a pesquisadora Flavia Moura, “os sucessivos instrumentos que ora são
criados por pressão social e ora são retirados por pressão dos empresários fiscalizados
denotam o contexto atual de constituição do conceito de trabalho escravo contemporâneo no
Brasil” (2016, p.89). Além dos impactos negativos da Reforma supracitada, existem projetos
em tramitação tanto na Câmara quanto no Senado que visam restringir o conceito4 presente no
artigo 149 do Código Penal Brasileiro (CPB): “Reduzir alguém à condição análoga à de
escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a
condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em
razão de dívida contraída com o empregador ou preposto” (BRASIL, 2003).
Tais projetos têm em vista a retirada dos elementos “jornadas exaustivas” e “condições
degradantes” de trabalho da tipificação do crime, sendo estas as formas de escravidão mais
comumente encontradas. Outro retrocesso ocorreu com a suspensão da chamada “lista suja”,
cadastro de empregadores flagrados utilizando mão de obra análoga à de escravo. Desde
2003, a publicação da lista no site do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) tornou-se um
instrumento de constrangimento àqueles que praticam o crime, com grande impacto na
imagem da empresa ou do empresário – imagem esta tão necessária para o sucesso nos
negócios. A referida lista serve também de referência aos bancos públicos para a concessão de
créditos e para que as empresas estabeleçam restrições comerciais aos nomes incluídos da
lista. No final de 2014, esse instrumento foi suspenso e só voltou a ser publicado em março de
2017, por meio de liminar da Justiça do Trabalho e depois de um vaivém de decisões judiciais
conflitantes e de mobilizações por parte da sociedade civil para seu retorno.
Porém, no cenário atual de instabilidade política, o futuro ainda é incerto.
3 Para mais informações sobre a reforma sugerimos:< http://reporterbrasil.org.br/2017/07/por-que-a-reforma-
trabalhista-e-inconstitucional/>. Acesso em 19 de jul. 2017. 4De acordo com o jornalista Leonardo Sakamoto, existem pelo menos três propostas tramitando do Congresso
Nacional. Ver em FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia, GALVÃO, Edna (Org.). Discussões Contemporâneas
sobre trabalho escravo: teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016, p.16.
12
Nesse sentido, abordar esta temática no âmbito acadêmico contribui para chamar
atenção para um fenômeno que, em tempos de crises institucionais e perdas de direitos, tende
a ser invisibilizado e a ter seu enfrentamento em termos de políticas públicas, enfraquecido.
Conforme veremos, o trabalho análogo ao de escravo não está restrito a locais distantes dos
centros econômicos e políticos do país. Tratamos aqui da Região Metropolitana de São Paulo
(RMSP), composta por 39 municípios e com 21,2 milhões de habitantes. A megacidade de
São Paulo é a mais populosa do Brasil, sede de empresas transnacionais e da segunda maior
bolsa de valores do mundo. Ao mesmo tempo, palco de resgates de trabalhadores em
condições análogas à de escravo na construção civil e na indústria têxtil. Este último setor
será objeto de nosso estudo, em que tem sido constatada a presença majoritária de imigrantes
latino-americanos. Pela irregularidade de sua situação no país, pela ausência de organização
sindical e pela falta de informação, homens e mulheres imigrantes se tornaram mais
vulneráveis às condições de trabalho análogo ao de escravo. Analisaremos questões referentes
às mulheres imigrantes, nomeadamente, as bolivianas.
Apesar de fazermos uso do conceito de “imigrante” referindo-nos àquele que sai de
um país e se estabelece em outro, não adotamos o enfoque de integração e de assimilação
cultural na sociedade de destino. Estamos cientes de que os fluxos migratórios
contemporâneos obedecem a uma lógica de mobilidade distinta daquela a qual o sociólogo
argelino Abdelmalek Sayad fazia alusão, visto que os avanços tecnológicos facilitaram a
manutenção de vínculo social no país de origem, bem como a própria circulação entre os
territórios.
De acordo com este autor, no livro Imigração ou os paradoxos da alteridade (1998),
há uma diferença entre ser “estrangeiro” e ser “imigrante”, a distinção entre os termos é
arbitrária. O primeiro refere-se ao sentido jurídico, à nacionalidade, enquanto o segundo a
uma condição social. Ser percebido enquanto imigrante refere-se a critérios de diferenciação e
discriminação. Aquelas e aqueles oriundos “dos países dominados, que são quase todos os
países de emigração, seja ele naturalizado ou não, sempre é remetido a sua condição de
origem” (1998, p. 267). É o caso dos filhos das bolivianas que, embora tenham nascido no
Brasil e falem português nativo, são vistos enquanto imigrantes, afinal, “todos os imigrantes
não são necessariamente estrangeiros, nacionalmente falando” (1998, p. 267). Desse modo, se
o termo “imigrante” carrega um viés pejorativo, podemos afirmar que as bolivianas em São
Paulo – provenientes de uma região pobre, consideradas não brancas e com ascendência
indígena – se encaixam nos “critérios de discriminação”, o que contribui para racializar esse
grupo dentro da sociedade receptora.
13
A analogia estabelecida por Sayad entre o fenômeno das migrações e o paradoxo do
monte de areia é ilustrada da seguinte maneira:
Grãos de areia, minúsculas individualidades, destacam-se uns após os outros
da rocha erodida sem que ninguém os veja, e são levados pelo vento até que
de um acidente terreno, um obstáculo, sirva de pretexto para retê-los e fazê-
los se aglutinarem uns aos outros; só quando os rombos tiverem sido
escavados na rocha matriz e, mais do que isso, quando a duna se tiver
formado e começar a ser vista como enorme, incômoda, sem graça, é que se
construirá o problema da imigração (SAYAD, 1998, p. 280).
Quando a imigração se torna uma realidade coletiva e o “monte de areia” passa a
ganhar forma, o “problema social” está constituído. A população provinda da Bolívia está
espalhada pelos bairros da capital paulista, na Zona Central, Leste e Norte da cidade. Nos
últimos anos, tem se verificado sua presença também em cidades da Região Metropolitana e
no interior de São Paulo (SILVA, 2006). Esse grupo social ganhou evidência – na mídia e nas
pesquisas acadêmicas – em função, principalmente, do trabalho de fiscalização em oficinas de
costuras realizado pelas autoridades públicas de São Paulo.
O motivo da escolha da nacionalidade boliviana deve-se ao significativo contingente
de pessoas deste país residente na cidade de São Paulo: 340 mil, segundo estimativas (CAMI,
2013 apud VEIGA; GALHERA, 2016, p. 124). Disso decorre que a presença das bolivianas
nos espaços públicos e nas oficinas de costura ganhe destaque. Desde já, é importante frisar
que a nacionalidade não é um elemento explicativo dos fluxos migratórios para as oficinas de
costura. Além disso, não há uma “aptidão natural” dos bolivianos com a costura e, tampouco
uma relação direta desta nacionalidade às condições de trabalho análogas à de escravo. O
enfoque nas bolivianas não exclui as trabalhadoras de outros países, inclusive do Brasil, das
condições de trabalho que serão apresentadas no decorrer da dissertação.
Tratamos das mulheres pertencentes ao segundo fluxo migratório de bolivianos na
cidade. Conforme explicou o sociólogo Carlos Freira da Silva em sua pesquisa de mestrado
(2008), o primeiro fluxo data dos anos 1950, quando o perfil da imigração era de estudantes
de classe média, incentivados pelo estabelecimento de um convênio cultural entre Brasil e o
governo boliviano. Na época, a ausência de empregos qualificados na Bolívia fazia com que,
ao finalizarem os estudos, os estudantes permanecessem no território brasileiro atuando como
profissionais liberais. Já o segundo fluxo migratório, mais expressivo em termos
quantitativos, começou nos anos 1990 e ainda persiste.
A população que chega, em geral, tem pouca qualificação profissional e recurso
financeiro, sendo a maioria proveniente da parte ocidental do país, dos departamentos de La
Paz e Cochabamba. Em relação ao sexo desses imigrantes, o juiz federal Márcio Rached
14
Milani escreveu que, de acordo com o Centro de Estudos Migratórios (CEM), havia, em 2008,
um equilíbrio entre o número de mulheres (44%) e de homens (55%). Segundo ele, “a
disparidade entre os sexos já foi maior. A população masculina chegou a responder por quase
64% do total há 15 anos” (MILANI, 2008, p. 134).
O pioneiro dos estudos acerca da recente migração boliviana na cidade de São Paulo
foi Sidney Antônio da Silva, com o livro Costurando sonhos. Trajetória de um grupo de
imigrantes bolivianos em São Paulo (1997). Desde então, pesquisadores de diversas áreas se
debruçam sobre o tema, tais como o já mencionado Freire da Silva (2008), Patrícia Tavares de
Freitas (2008), Siobhán McGrath (2010), Sylvain Souchaud (2012), Tiago Côrtes (2013),
Bruno Miranda (2016). Vale ressaltar ainda os estudos de Danielle Rezera (2012), Táli
Almeida (2013), Clara Ribeiro (2015) e João Veiga e Katiuscia Galhera (2016) que tratam
especificamente das mulheres bolivianas em São Paulo.
Apesar da grande quantidade de material já publicado sobre o tema, são poucas as
pesquisas que abordam o trabalho análogo ao de escravo na costura sob o ponto de vista das
mulheres imigrantes. E, partindo do fato de que violações de direitos humanos são
vivenciadas de forma distintas entre homens e mulheres, buscaremos compreender a
particularidade do trabalho exercido pelas mulheres e como elas vivenciam as desigualdades
de gênero nas oficinas de costura. Além disso, o “monte de areia” boliviano continua presente
na RMSP e, no que se refere ao mercado de trabalho, existem poucos espaços de atuação fora
das oficinas de costuras.
Não obstante a singularidade de cada uma, suas trajetórias fazem parte de processos
sociais mais amplos, em que caminhos similares são percorridos por diversas imigrantes
bolivianas inseridas na base da cadeia têxtil. Nesta dissertação, registramos elementos da
trajetória de Luz, Carmen, Lourdes, Zelaide e Sara,5 imigrantes bolivianas que, apesar de não
terem sido flagradas na condição de trabalho análogo ao de escravo, em determinados
momentos de suas experiências em São Paulo, poderiam estar entre as 50.701 pessoas
“resgatadas” pelas autoridades brasileiras desde 1995.
De acordo com suas descrições, todas passaram por situações em que suas atividades
poderiam ter sido enquadradas no artigo 149 do CPB. Sob o ponto de vista jurídico, estamos
diante da existência de instrumentos de identificação do trabalho análogo ao de escravo em
que o suposto consentimento dos trabalhadores não descaracteriza o crime. Contudo – e não
menos importante –, veremos que a percepção delas em relação ao tema é distinta daquela que
5Nomes fictícios.
15
as autoridades e organizações sociais têm por referência. Segundo a socióloga Patrícia Tavares
de Freitas (2008), que pesquisa migração boliviana vinculada à indústria têxtil, trata-se de
uma questão complexa que envolve relação de exploração e gratidão, jogos ambíguos entre
subordinação e agência, uma vez que, na maioria das vezes, donos ou donas das oficinas são
compatriotas, quando não parentes, das trabalhadoras.
Utilizaremos a oralidade como fonte de interpretação de processos histórico-sociais.
Optamos pela reprodução das falas tal como foram registradas nos momentos de conversa,
que se estabeleceram a partir de uma mistura entre português e espanhol, como um meio de
aproximar os leitores das narradoras-entrevistadas. Iremos nos apoiar metodologicamente na
história de vida6 que, de acordo com a socióloga Maria Isaura de Queiroz, possibilita a
pesquisadores o alcance da coletividade em que seu informante está inserido, sem considerá-
lo como indivíduo isolado (1988, p. 24), objetivando as articulações entre a história individual
e a história coletiva.
A história de vida pode ser compreendida como uma técnica de entrevistas. É por meio
dela que se dá o momento de produção da narrativa, que não deixa de ser um momento de
encontro. Nesta forma de coleta de dados, a aplicação demanda tempo, pois os encontros não
possuem limites para acabar, visto que os narradores sempre terão novos elementos a
acrescentar em suas histórias. Segundo o norte-americano Howard Becker, “o sociólogo que
coleta a historia de vida tenta fazer com que a história contada acompanhe os assuntos dos
registros oficiais e os materiais fornecidos por outras pessoas familiarizadas com os
indivíduos, acontecimentos ou lugares descritos” (1993, p. 102). Além disso, importa dar
significado à “voz do entrevistado, suas entonações, suas pausas, seu vaivém no que contava”
(QUEIROZ, 1988, p.15). De acordo com Queiroz, que escreveu em meados dos anos 1980, o
advento do gravador possibilitou o uso desses “tantos dados preciosos para estudo” (1988, p.
15).
Nesta pesquisa nenhuma das entrevistadas demonstrou incômodo ou oposição ao uso
do gravador. As narrativas aqui apresentadas fizeram parte de um verdadeiro exercício de
escuta, em que mulheres colocaram para fora suas memórias e vivências. Outra técnica
utilizada foi o depoimento oral que, ainda segundo Queiroz, se diferencia da história de vida
6Haike Kleber da Silva afirma no artigo intitulado “Considerações e confusões em torno de história oral, história
de vida e biografia” que os três termos são interpretados diferentemente por sociólogos e historiadores
(KLEBER DA SILVA, 2012). Para a socióloga Maria Isaura de Queiroz, “a história oral é uma metodologia de
quadro amplo, na qual recolhem-se relatos de experiência de um indivíduo ou grupo. A história de vida estaria
inserida dentro desse quadro como uma variante da metodologia voltada à existência daquele que narra”
(QUEIROZ, 1988).
16
em função das perguntas específicas dirigidas às entrevistadas. O uso de entrevistas
individuais com roteiro semiestruturado se deu por que, surpreendentemente, a temática do
trabalho – central nesta dissertação – não foi o assunto privilegiado pelas bolivianas. Apesar
de elas dedicarem seu dia à atividade de costura quase que integralmente, esta pouco aparecia
nos relatos espontâneos. Para além dos encontros agendados, foi possível conversar com elas
em momentos informais, sem gravador.
Como afirmou a socióloga Márcia Lima, “o uso da entrevista em histórias de vida
deve ser visto como parte do processo e não como seu único instrumento de construção de
dados” (LIMA, 2016, p.32). Desse modo, em complementaridade às fontes orais, foi realizada
consulta documental dos relatórios de fiscalização de trabalho análogo ao de escravo do
Ministério do Trabalho e Emprego e das matérias investigativas disponíveis no site da
Organização Não Governamental (ONG) Repórter Brasil7. Por fim, durante o período da
pesquisa, observamos os espaços públicos da cidade de São Paulo onde constam a presença
desses imigrantes, a saber: a Praça da Kantuta, localizada no Canindé, Zona Norte de São
Paulo e na Rua Coimbra, no bairro do Brás, no centro. Vale mencionar que a execução desta
pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CFCH-UFRJ).
Conhecemos Luz, Lourdes e Carmen através de Quilla – nossa mediadora no campo –,
uma boliviana militante e voluntária de diversas iniciativas que envolvem os imigrantes em
São Paulo. Ela mora há seis anos na cidade, faz doutorado em Psicologia e, para se manter,
trabalha como babá. Apesar de suas falas aparecerem nesta dissertação, tanto a trajetória
quanto a inserção desta boliviana no Brasil não foram analisadas. Isto porque Quilla faz parte
de outro contexto econômico-social que a separa das outras cinco narradoras-entrevistadas:
ainda na Bolívia cursou o Ensino Superior, em São Paulo reside em bairro nobre da cidade e
não trabalha com costura.
A maioria das conversas com Luz foi em sua casa, que se resume a um quarto úmido,
com paredes de concreto, sem janelas. Nele, há um sofá de dois lugares, um colchão de casal
no chão, uma televisão, um armário, uma geladeira. A maior parte dos pertences foi dada à
Luz pela proprietária do imóvel, uma brasileira. Os filhos de Luz, uma menina de 13 anos e
um menino de 15, fazem tratamento para asma, por causa da umidade da casa-quarto. No
primeiro encontro com ela, Quilla nos acompanhou. A conversa durou duas horas e dez
minutos e Luz quase não olhava para mim. Seu rosto e olhar apontavam constantemente para
7 Fundada em 2001, a ONG tornou-se uma das mais importantes fontes de informação sobre trabalho análogo ao
de escravo no Brasil.
17
baixo. Seu filho passou a entrevista toda dormindo, enquanto sua filha assistia à televisão. A
boliviana emocionava-se quando falava de seus primos, únicos parentes em São Paulo para os
quais havia trabalhado três anos sem receber salário. O segundo encontro teve duração de
duas horas e quarenta minutos, o terceiro, uma hora e cinquenta minutos, ambos aconteceram
em sua casa. A quarta conversa, de quarenta minutos, foi em uma lanchonete na Vila Maria
Alta, bairro onde ela mora, na Zona Norte de São Paulo.
O ponto de encontro com Lourdes foi no terreno de uma Igreja Católica em
Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, localizada a 30 km de distância da capital.
Caminho realizado por ela de trem e metrô, todos os finais de semana, durante três meses. O
objetivo da jornada era participar do Programa Tecendo Sonhos8, que oferece curso gratuito
de empreendedorismo e gestão de negócios para oficinas de costura. Em um domingo, com
temperatura de 10ºC, Lourdes, que tinha um olhar úmido e distante, me contou sua história
durante uma hora e trinta minutos. Enquanto ela narrava, um grupo de aproximadamente dez
mulheres bolivianas rezava o terço na sala ao lado.
Com Carmen foram três encontros. O primeiro, em sua casa, contou com a presença
de Quilla e outra boliviana. Começou a contar sua história antes de nos apresentarmos e de
pedirmos permissão para gravar. Ela chorou diversas vezes ao relembrar as dificuldades que
passou. A conversa teve duração de duas horas e cinquenta e sete minutos. No segundo
encontro, para a nossa surpresa, seu marido esteve presente. No início, ele apenas ouviu como
quem supervisionava a conversa. A certa altura, passou a participar e contar a própria
experiência. “Homem é duro por fora, mas por dentro é só sofrimento”, confessou,
emocionado. A conversa teve duas horas de duração. O terceiro encontro foi realizado
enquanto caminhávamos durante vinte e cinco minutos nos arredores de Vila Maria Alta.
Carmen nos levou até a casa de Zelaide, no mesmo bairro. Conversamos por duas
horas e quinze minutos, com a participação de Carmen e ao som de música chicha9 e de três
máquinas de costura, pois seu marido e dois primos estavam trabalhando. Ficamos sentadas
no corredor, na parte de fora da casa. Em nossa frente, três pilhas de tecido esperavam que o
casal a costurasse. Zelaide, que caminha com muita dificuldade e dor devido a um problema
8De acordo com o site da instituição Aliança Empreendedora, o programa Tecendo Sonhos é uma iniciativa
“desenvolvida desde 2014 e tem o objetivo de por meio do empreendedorismo promover relações dignas de
trabalho na base da cadeia de moda em São Paulo-SP com imigrante latinos, em sua maioria bolivianos, que
trabalham em condições precárias em oficinas de costura”. Disponível em:
http://aliancaempreendedora.org.br/projeto-tecendo-sonhos-inicia-parceria-com-instituto-ca-e-brazilfoundation-
para-acoes-de-2017/. Acesso em: 27 jul. 2017. 9De acordo com dois interlocutores da Bolívia, a chicha é um gênero musical apreciado por uma classe social
mais baixa, moradora dos bairros periféricos. As letras das músicas tratam principalmente de mulheres e bebidas.
As duas pessoas ao descreverem a chicha a compararam com o funk no Brasil.
18
no quadril, se emocionou diversas vezes durante a conversa. Ela falou somente em espanhol e
mencionou que seria bom aprender a língua portuguesa para ser compreendida pelas pessoas,
pois “por este motivo no nos dan mucha importancia10
”.
Por fim, o encontro com Sara se deu por meio de um pesquisador da área11
. O
agendamento da conversa foi realizado pelo telefone. Ela quis saber o que iríamos colocar na
pesquisa, pois “brasileiro pensa assim: que todo mundo que vem pra cá é costureiro. Não é
assim. Na Bolívia, tem médico, tem profissional bom. O que tem pra você trabalhar é só
costura, porque você chega sem falar português”. O registro de sua fala foi feito em uma
lanchonete ao lado da Praça da Kantuta12
, antes de uma reunião da Associação Gastronômica
Cultural e Folclórica Boliviana Padre Bento, responsável pela administração da praça. Há 13
anos no Brasil, ela falou em português durante uma hora e cinquenta minutos. Era a única que
estava maquiada e que tinha os cabelos e as unhas pintadas.
A qualidade da relação estabelecida com cada uma destas mulheres foi distinta e
variou de acordo com alguns fatores, como o número de encontros, o estado civil, a mediação
ou não de Quilla, entre outros. Apesar de a apresentação ter se dado enquanto “pesquisadora
interessada na trajetória de bolivianas que costuram”, ao longo das conversas, as narradoras-
entrevistadas lidaram com esta interação de várias formas. Algumas vezes como terapia,
outras como assistência social. O resultado da mistura destes papeis somado à tentativa de
controle das impressões tanto por parte da pesquisadora, quanto da entrevistada, estará nas
linhas que compõem este texto.
Com o objetivo de adentramos às categorias que nos ajudarão a pensar as
particularidades das bolivianas nas oficinas de costura, partiremos das seguintes premissas
compartilhadas por diversas perspectivas feministas. A primeira é que não existe "mulher"
enquanto uma categoria natural. Trata-se de uma construção histórico-social profundamente
arraigada em nosso modo de ser, pensar e agir que separa de forma binária e desigual homens
e mulheres. Como afirmou Pierre Bourdieu (2002) meninos e meninas são colocados em
oposição através de formas de socialização – realizadas por meio de instituições como
família, escola, Estado e igreja – que moldam predisposições, interesses e aptidões
diferenciadas.
Carmen nos contou que sempre gostou de estudar, mas sua mãe a incentivava a se
ocupar das tarefas domésticas. Isso provocou três anos de atraso na escola. Com seus irmãos,
10
“Por este motivo não nos dão muita importância” (Tradução da autora). 11
Para mais detalhes, ver o perfil das narradoras-entrevistadas no anexo A. 12
Na Praça da Kantuta, ocorre semanalmente aos domingos uma feira com diversas barracas que vendem
produtos e comidas tradicionais da Bolívia.
19
o tratamento foi bem diferente, nunca lhes fora negada a possibilidade de frequentar a escola.
Ela tampouco queria ser como sua irmã que, aos 17 anos, já estava casada. Sara, ao relembrar
a época da escola, retomou as divisões feitas entre meninos e meninas. Eles aprendiam a fazer
conserto e manutenção de objetos, enquanto elas se dedicavam ao bordado e à cozinha. A
socióloga francesa Danièle Kergoat apontou que faz parte desta socialização, por exemplo,
que as mulheres acreditem que “suas qualificações e suas competências (destreza, habilidade,
competência em matéria de cuidar...) são fatos da natureza, e não da cultura” (KERGOAT,
2014, p. 15).
Trata-se de um constante processo de naturalização dos papéis sociais nem sempre
perceptível a olho nu, agindo também sobre as estruturas do inconsciente. As amarras do
gênero, entranhadas desde a primeira infância, são difíceis de quebrar, até mesmo para a mais
fervorosa das feministas. No caso das bolivianas entrevistadas, foi possível verificar relações
de gênero internalizadas por elas em falas sobre o marido, como: “você, como homem, tem
que manter a casa”; ou sobre os filhos: “ele parece ser mais mulher que homem, ele é mais
carinhoso, me abraça me beija. Minha filha é mais dura, não faz isso não”; ou sobre si
própria: “solo tengo dos tenis que uso, pero la mujer se ve más bonita con zapato13
”.
Além disso, ao debater a construção social da mulher não basta falarmos delas como
um ente universal. "A" mulher também não existe. Tratar das bolivianas não significa tratar da
mulher em abstrato. É importante localizá-las em seu contexto específico: cultural, econômico
e político, responsável por moldar a posição e o papel social nas relações de produção e
reprodução. Ser mulher no Brasil não é igual a ser mulher na Bolívia e as bolivianas
tampouco constituem um grupo homogêneo na medida em que são atravessadas por um
conjunto de relações sociais tais como classe e raça/etnia14
. Somos “separadas umas das
outras por diferenças econômicas, e culturais que afetam a maneira objetiva e subjetiva de
sentir e vivenciar a dominação masculina” (BOURDIEU, 2002 p.112).
A segunda premissa é a de que as mulheres ocupam lugares sociais subordinados em
relação aos mundos masculinos nas diversas esferas da vida social. Esta subordinação é
histórica. Segundo o levantamento da assistente social Claudia Nogueira, na Antiguidade
ocidental, a mulher não era cidadã, e tanto a mulher livre quanto a escrava executavam tarefas
relacionadas à esfera doméstica. Na Idade Média havia divisões de tarefas entre as próprias
13
“Tenho apenas dois tênis, mas a mulher se vê mais bonita com sapato” (Tradução da autora). 14
A título de exemplo, entre mulheres de origem urbana e rural, por exemplo, verificam-se diferenças
representativas. As últimas falam pouco ou nada de espanhol, apenas quéchua ou aymara, o que gera uma
dificuldade maior com a língua portuguesa, e acabam transitando menos pela cidade, ficando mais fechadas nas
casas ou nas oficinas de costura, aumentando o grau de vulnerabilidade (RIBEIRO, 2015, p. 9).
20
mulheres, de acordo com idade e status civil, sendo que as mulheres dos camponeses e servos
realizavam também atividades relacionadas à agricultura. Entre os séculos 15 e 18, já na Idade
Moderna, as mulheres das classes menos abastadas atuavam como vendedoras, amas de leite,
lavadeiras, deixando seus filhos aos cuidados de outras. No início da Revolução Industrial,
surgia o proletariado feminino. Nesse período havia fábricas que recusavam sua mão de obra
e, muitas acabavam trabalhando para famílias burguesas. Já no século 19 se consolidava a
mão de obra assalariada feminina e, devido às condições de trabalho naquele momento, não
havia possibilidades de conciliação de tarefas (NOGUEIRA, 2011, p.19-23). É possível
observar que o capitalismo não criou a inferioridade social da mulher, mas, conforme
veremos, aprofunda as desigualdades entre os sexos.
Segundo Nogueira, ainda hoje, o trabalho doméstico é responsabilidade da mulher,
independente de esta estar inserida na esfera produtiva. Conforme relembrou a socióloga
brasileira Heleieth Saffioti: “Nenhuma sociedade capitalista (e até socialista) conseguiu
satisfazer à demanda por creches, conditio sine qua non para uma eventual equalização de
todas as forças de trabalho” (1997, p.62). De acordo com os dados da Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em todo o continente latinoamericano, o tempo de
trabalho não remunerado das mulheres é superior ao dos homens, o que implica na sobrecarga
de trabalho e em uma dificuldade maior para as mulheres se dedicarem à esfera profissional se
assim desejaram. As mulheres estão em maior proporção nas jornadas curtas ou parciais,
assim como na economia informal15
. Ou seja, em trabalhos que implicam muitas vezes em
salários menores e em poucos direitos trabalhistas. Elas são maioria entre as desempregadas –
e é o desemprego outra variável que denota a precarização social (NOGUEIRA, 2010, p.219).
Dentre as categorias utilizadas para pensar as particularidades do lugar ocupado pelas
mulheres e homens na estrutura social, estão “gênero” e “relação social de sexo”. De acordo
com a socióloga francesa Christine Delphy, em comum, os termos carregam “o fato de
pretenderem descrever não atitudes individuais ou de setores precisos da vida social, mas um
sistema total que impregna e comanda o conjunto das atividades humanas” (DELPHY, 2009,
p. 178). Em nenhum dos dois há definição estrita ou uma forma de apropriação unívoca.
“Gênero” e “relações sociais de sexo” podem ser tomados como opostos, sinônimos e
complementares, a depender do uso que se faz de cada um deles. Nesta pesquisa, apesar de
utilizarmos o termo “gênero” em alguns momentos, julgamos ser mais pertinente a utilização
15
Na Bolívia em 2010, 66% das mulheres realizam trabalhos informais, contra 52,8% dos homens (CEPAL apud
RIBEIRO, 2017).
21
de “relação social de sexo” por assegurar a centralidade do trabalho. Tomaremos os dois,
portanto, como sinônimos.
O conceito de gênero surgiu nos Estados Unidos e passou a ser usado diante da
necessidade de enfrentar aqueles que justificavam as diferenças entre homens e mulheres com
base na biologia. Tal argumento, que presumia a rigidez da diferença, impossibilitava
reivindicações de direitos iguais. O propósito das estudiosas feministas (ou seriam feministas
estudiosas?) não passava pela criação de um termo substituto ao “sexo”, mas sim, pela
premissa de que muitos comportamentos atribuídos à mulher não estavam relacionados ao
sexo. Tratava-se de restringir a abrangência do sexo, e não negá-la (NILCHONSON, 2000).
De acordo com antropóloga Adriana Piscitelli, atribui-se a difusão do conceito ao
ensaio da também antropóloga Gayle Rubin O tráfico das mulheres: notas sobre a economia
política dos sexos (1975), que inaugurou o chamado sistema sexo/gênero, segundo o qual o
primeiro partiria da natureza e o segundo, da cultura. Sexo seria, assim, o provedor do lugar
do gênero, a base sobre a qual ele apareceria (PISCITELLI, 2002, p. 10). Se a distinção entre
sexo e gênero era necessária para denunciar a naturalização do social, essa distinção acabou
por promover uma forte separação entre as duas categorias e, por isso, passou a ser
questionada.
A historiadora norte-americana Joan Scott defendeu que a construção do gênero, a
distinção entre o masculino e o feminino, não estava restrita apenas à personalidade e ao
comportamento das pessoas, mas operava nos corpos e os e envolvia. O sexo também estaria
inserido na esfera da cultura, não podendo ser dissociado dela. Essa autora norte-americana
foi a responsável pela popularização do conceito no Brasil nos anos 1990. Sua definição
estava baseada em duas ideias centrais: 1) gênero é construído sobre a base da percepção da
diferença sexual – percepção, porque a própria natureza da diferença sexual é dotada de
sentido social; 2) gênero é uma forma primária de dar sentido às relações de poder (SCOTT,
1995), logo, trata-se de uma categoria política que posiciona homens e mulheres dentro de
relações hierárquicas. Embora a autora não negue a existência de diferenças entre os corpos
sexuados, sua definição suscita uma reflexão profunda acerca dos significados atribuídos aos
corpos.
Saffioti (2005), apesar de dialogar criticamente com as ideias de Scott, teceu também
méritos à autora ao chamar atenção para o gênero enquanto um termo que trata da relação
homem-mulher. Por sua vez, reforçou a necessidade de “considerar sexo e gênero uma
unidade, uma vez que não existe uma sexualidade biológica independente do contexto social
em que é exercida” (SAFFIOTI, 2005, p. 44).
22
As práticas sociais de mulheres podem ser diferentes das de homens da
mesma maneira que, biologicamente, elas são diferentes deles. Isso não
significa que os dois tipos de diferenças pertençam à mesma instância. As
categorias de sexo não são apenas diferentes, mas desiguais (SAFFIOTI,
2005, p.49).
Assim como Safiotti, Kergoat apontou a importância dos estudos de gênero ao
reforçarem a crítica à ideologia naturalista, mas ressaltou que algumas correntes acabam por
ocultar a questão do trabalho e da exploração (KERGOAT, 2014, p. 17). É neste momento que
passamos para a segunda categoria que nos servirá de apoio para compreender a experiência
das bolivianas na costura: “relações sociais de sexo”.
Nos anos 1970, as feministas francesas cuja referência teórica era o marxismo
passaram a utilizar a categoria da divisão sexual do trabalho. Tal escolha se deu diante da
percepção da enorme quantidade de tarefas invisíveis realizadas pelas mulheres como parte de
uma atribuição natural em nome do amor ou de qualquer outra questão afetiva. O conceito
visava "abordar o trabalho doméstico como uma atividade de trabalho tanto quanto o trabalho
profissional" (HIRATA; KERGOAT, 2007, p.597). A adoção desta perspectiva abriu novos
campos de estudo na sociologia do trabalho: qualificação, cargos executivos, trabalhos de
cuidados pessoais, produtividade, entre outros. De acordo com Kergoat, a divisão sexual do
trabalho opera a partir de dois princípios organizadores: o da separação – existem trabalhos
de homens e trabalho de mulheres, – e o da hierarquização – trabalho de homem tem maior
valor social e relevância do que trabalho de mulher.
Apesar das modalidades de trabalho variarem conforme o tempo e a sociedade em
questão, a divisão é compreendida como um fenômeno histórico, permanecendo uma
distância insuperável entre homens e mulheres (KERGOAT, 2009, p. 67). Kergoat, no entanto,
constatou a necessidade de ir além da descrição das desigualdades e caminhar em direção às
razões, ao modus operandi desta divisão. As pesquisadoras deveriam ir para "segundo nível
de análise" a partir da relação social de sexo: “é, sobretudo a análise em termos de divisão
sexual do trabalho que permite demonstrar que existe uma relação social específica entre os
grupos de sexo” (1996, p.20).
O termo “relação” vem da tradução do francês rapport, palavra que carrega um
sentido de reciprocidade e antagonismo entre grupos sociais. Kergoat afirmou que a “relação
social de sexo” é uma categoria que envolve poder, é passível de ser apreendida
historicamente, tem caráter dinâmico e possui base ideológica e material (1986, p. 82). Do
ponto de vista dos empregadores, a presença de mulheres na esfera produtiva representa um
contingente maior da força de trabalho passível de exploração. E, na esfera reprodutiva, o
23
trabalho realizado por elas também contribui para a valorização do capital, visto que a
inserção feminina no mercado de trabalho não foi acompanhada pela participação masculina
no trabalho doméstico e de cuidado. A assistente social Mirla Cisne, explicou que a ausência
deste trabalho não remunerado acarretaria em gasto para os empregadores ou para o próprio
Estado, devido à necessidade de investimento em lavanderias, restaurantes, escolas em tempo
integral ou no aumento do salário mínimo para que trabalhadores pudessem pagar por tais
serviços (CISNE, 2014).
Nesse sentido, é fundamental para as pensadoras francesas que a divisão entre os sexos
na esfera assalariada e doméstica seja analisada de forma conjunta, posto que há uma
indissociabilidade entre produção e reprodução da vida social. Como colocou Nogueira: “a
divisão sexual do trabalho está no âmago das relações de poder presentes tanto na opressão
que o sexo masculino exerce sobre o feminino, quanto na exploração que o capital exerce
sobre a força de trabalho” (NOGUEIRA, 2011b, p. 188). Por fim, mas não menos importante
para nossa análise, Kergoat ressaltou que não basta pensarmos apenas em termos de relações
sociais de sexo. Uma vez que homens e mulheres fazem parte de diversas redes de relações
sociais, “é o conjunto dessas relações que vai constituir a identidade individual e dar o
nascimento as práticas sociais” (1996, p. 22).
Sendo assim, “toda relação social é sexuada, enquanto que as relações sociais de sexo
são perpassadas por outras relações sociais” (KERGOAT, 1996, p.23). A exemplo desta
dissertação, não podemos esquecer que as bolivianas não são apenas mulheres, são
trabalhadoras, imigrantes e possuem ascendência indígena. Apesar de o recorte da pesquisa
ser a imigrante que trabalha nas oficinas de costura, outra possibilidade de inserção das
bolivianas em São Paulo seria por meio do trabalho reprodutivo pago. Isto é, o trabalho
doméstico assalariado – cuidado com a casa, alimentação, filhos etc. A entrada da imigrante
possibilita a “liberação” da mulher com maior poder aquisitivo para o trabalho fora de casa.
Ao mesmo tempo, sair do país deixando os filhos só é possível graças ao suporte de outras
mulheres no local de origem, como avós, irmãs, ou tias.
Há nisto uma diferença na delegação das tarefas domésticas entre a mulher imigrante e
a mulher que paga para uma imigrante trabalhar. A primeira se afasta de seus familiares por
tempo indeterminado e mantém a função de enviar dinheiro ao país de origem, enquanto a
segunda, apesar de se abster do cuidado dos filhos, por exemplo, continua vivendo sob o
mesmo teto que eles. De acordo com a filósofa Helena Hirata e a já citada Kergoat, essa
situação refere-se a novas configurações da divisão sexual do trabalho a partir de uma
conjuntura que provocou o aumento tanto do número de mulheres em profissões executivas
24
quanto de mulheres em situações precárias de trabalho. Mulheres "do norte global" trabalham
cada vez mais e externalizam as tarefas domésticas para mulheres em situação precária, entre
elas as imigrantes (2007, p. 601). Para Hirata, esse fenômeno, diretamente ligado às
migrações internacionais, tem levado a uma reconfiguração das relações sociais de sexo nos
países receptores. Os efeitos dessa nova configuração é um apaziguamento entre casais
burgueses e acentuação das clivagens de classe e raça entre as mulheres (HIRATA, 2016,
p.11).
Feitas as observações acima, o trecho da filósofa e feminista norte-americana Angela
Davis nos servirá de inspiração para pensar o lugar da mulher no universo do trabalho na
costura:
Assim como as mulheres negras dificilmente eram 'mulheres' no sentido
corrente do termo, o sistema escravista desencorajava a supremacia
masculina dos homens negros (...). Além disso, uma vez que as mulheres
negras, enquanto trabalhadoras, não podiam ser tratadas como o 'sexo
frágil' ou 'donas de casa', os homens negros não podiam aspirar à função de
'chefes de família', muito menos a de provedores da família. Afinal, homens,
mulheres e crianças eram igualmente 'provedores' para classe proprietária de
mão de obra escrava (DAVIS, 2016, p. 20, grifo da autora).
Davis discorreu acerca do período da escravidão legalizada nos Estados Unidos. Com
as devidas ressalvas em relação aos diferentes contextos históricos, o excerto suscita um
paralelo: assim como a autora escreveu sobre os povos negros escravizados, as mulheres
bolivianas, enquanto trabalhadoras, não podem ser tratadas como o sexo frágil ou donas de
casa, tampouco os homens bolivianos podem aspirar à função de chefes de família, muito
menos a de provedores da família. Ambos estão submetidos a condições “duras” (usamos aqui
as palavras de Sara) de trabalho para sobreviver na economia de livre mercado capitalista.
Contudo, diferentemente desta situação relatada por Davis, no cotidiano das oficinas de
costura, as relações sociais de sexo permanecem desiguais.
A presente dissertação tem como eixo orientador o processo de trabalho de mulheres
imigrantes. Para escrevê-la apoiei-me em diversos pesquisadores e pesquisadoras que, no
presente momento, refletem sobre a presença boliviana na cidade de São Paulo. O caminho a
ser percorrido será o seguinte:
No capítulo 1, discutiremos a categoria “trabalho análogo ao de escravo” a partir de
uma perspectiva histórica. Dentre os autores que refletem sobre categoria, dialogaremos com
os antropólogos Neide Esterci e Ricardo Rezende Figueira. Para tratar do trabalho análogo ao
de escravo na indústria têxtil, relacionando-o com as relações de trabalho vigentes no modo
de produção capitalista, o sociólogo Ricardo Antunes será nosso interlocutor, além de outros
25
autores que possuem como referência teórica o pensamento de Karl Marx. Também
utilizaremos a abordagem das Redes Globais de Produção (RGPs), uma ferramenta para
discutir a inserção das bolivianas nas oficinas de costura em São Paulo a partir de uma
economia globalizada.
No capítulo 2, o objetivo será trazer as questões teóricas discutidas no capítulo anterior
para o cotidiano das trabalhadoras, a partir dos elementos encontrados na pesquisa empírica.
Para tal, analisaremos as condições de saída e a desigualdade de gênero presente na trajetória
das narradoras-entrevistadas, além da divisão sexual do trabalho existente nas oficinas.
Dialogaremos com diversas autoras atentas aos efeitos da “condição de mulher” na migração
e no trabalho. Destacamos Danièle Kergoat e Helena Hirata, que nos instigarão a questionar o
lugar da mulher no mundo do trabalho, e o sociólogo Abdelmalek Sayad, que nos ajudará a
refletir, de maneira mais geral, sobre a questão migratória.
No capítulo 3, ainda debruçados sobre a pesquisa de campo, apresentaremos o que as
bolivianas pensam sobre a categoria de trabalho análogo ao de escravo aplicada à sua
atividade laboral diária e verificaremos as possibilidades de “agência individual”.
Apresentaremos também questões que perpassaram as narrativas das cinco mulheres, como a
violência, dedicação aos filhos e as perspectivas do futuro, com ênfase na dimensão da
resistência. Para tal, recorreremos, principalmente, à filósofa Siobhán McGrath e ao sociólogo
Bruno Miranda16
.
Finalmente, antes de iniciarmos nossa análise, cabe problematizar o que Sayad
chamou de posição de intérprete da realidade do “ser migrante”. Segundo o autor, a
associação do imigrante a um problema social é, em si, um discurso imposto. Trata-se de uma
percepção social, ligada à sociedade receptora, específica do objeto de pesquisa. Qual o
estatuto do estudo do imigrante para a ciência? Estando a imigração inscrita na relação entre
dominante-dominado, não se pode escrever inocentemente sobre este assunto visto que quem
escreve possui também uma visão de mundo social e nacional (1998, p. 21). Essa indagação
nos acompanhou desde o primeiro dia de pesquisa de campo, na interpelação da facilitadora –
também imigrante – em uma roda de conversa de mulheres bolivianas17
: “Você precisa saber
por que são elas o grupo a ser interpretado. O que essa interpretação vai significar?”. Ao final
da dissertação retornaremos a essas questões.
16
O sociólogo realizou um profundo trabalho de campo em razão de sua tese de doutoramento. Miranda
empreendeu uma etnografia em duas oficinas de costura e fez o trajeto de ônibus percorrido pelos migrantes
bolivianos até São Paulo diversas vezes. Suas reflexões serão importantes para esta pesquisa. 17 O projeto “Gênero e Migração em Rodas de Conversa” conduzido pelo Centro de Apoio e Pastoral ao
Migrante (CAMI) foi o ponto de partida para estabelecer contato com as trabalhadoras bolivianas. Agradecemos
ao CAMI pela abertura.
26
Capítulo 1. Trabalho análogo ao de escravo
Neste capítulo, a fim de contextualizar nosso campo de estudo, apresentaremos as
relações de trabalho vigentes na sociedade capitalista, que não excluem a utilização de mão de
obra considerada análoga à de escravo. No primeiro item, explicitaremos o significado da
categoria a partir de sua construção e do desenvolvimento das políticas públicas brasileiras,
referenciadas internacionalmente. No tópico seguinte, traremos um panorama da indústria
têxtil e posteriormente apontaremos os casos de trabalho análogo ao de escravo que envolveu
migrantes na costura, base da cadeia deste setor. Por fim, realizaremos um percurso por
pesquisas que tenham abordado a questão da presença da mulher entre os trabalhadores
resgatados.
1.1 Que modalidade de trabalho é essa?
O trabalho é considerado uma atividade exclusiva da espécie humana, coletiva e
social. Sua finalidade é transformar a matéria bruta em coisas úteis tendo como premissa uma
intenção prévia para que se concretize. Por exemplo, nos primórdios o homem produzia
ferramentas, como facas e lanças (intenção prévia) com objetivo de obter a caça (coisa útil).
Com a complexificação da sociedade, amplia-se a inter-relação com a natureza e com os
outros seres sociais, por meio da cooperação (LUKÁCS, s/d apud NOGUEIRA, 2011, p. 123).
Neste processo, além do alargamento do horizonte de possibilidades transformação da
natureza, do uso de tecnologias e da criação de novas necessidades, “os seres humanos (...)
produzem suas próprias relações sociais” (IASI, 2010, p. 65).
Trata-se de um fenômeno central para a organização das relações sociais, que têm sua
natureza marcada pela contradição residida na dicotomia exploração-libertação. Como
afirmou o sociólogo Ricardo Antunes, “há uma dialética profunda do trabalho: o trabalho é
criação e perda; é emancipação, é ato poético, mas trabalho também é tripalium, é sofrimento,
e estas duas dimensões caminham com o trabalho ao longo da história da humanidade”
(ANTUNES, 2015 apud NOGUEIRA, 2015, p. 781). A qualidade assumida por esta atividade
em cada sociedade dependerá do modo de produção vigente.
O modo de produção fundado no continente latino americano, depois da chegada dos
europeus, foi escravista. Fomos colonizados sob a “égide do trabalho”, servindo de colônia de
exploração. No Brasil, o trabalho escravo indígena e o trabalho escravo africano precederam o
surgimento da mão de obra assalariada. Até aquele momento, a escravidão fora necessária na
27
divisão internacional do trabalho para a acumulação primitiva18
dos países centrais e para o
enriquecimento das oligarquias locais (ANTUNES, 2009).
A exploração do trabalho assalariado, fundante do modo de produção capitalista,
tornou-se hegemônica e, embora tenha seu surgimento localizado no Ocidente, passou a
operar em escala global. Na metade do século 19, a classe trabalhadora latinoamericana
desenvolve-se, em grande parte para atender a demanda europeia por mercado consumidor.
De modo geral, a atividade laboral tornou-se meio de acumulação de capital, no qual os seres
humanos não passam de um elemento da produção, cuja finalidade é o “valor de troca”, e não
o “valor de uso” 19
. No século 21, sob a vigência do sistema capitalista, o chamado trabalho
análogo ao de escravo tem como objetivo geral a redução dos custos da produção, por meio da
superexploração dos trabalhadores e trabalhadoras.
Na relação capital/trabalho, os trabalhadores sempre desejarão aumentos salariais,
enquanto seus empregadores tentarão ao máximo a redução do montante pago a eles. Trata-se,
em última instância, de interesses antagônicos. Entretanto, conforme afirmou o sociólogo José
Ricardo Ramalho, ao mencionar o britânico Craige Littler, “paralelamente à resistência à
subordinação e à exploração, os trabalhadores têm interesse na manutenção das relações
econômicas existentes e na viabilidade das unidades de capital que os emprega” (LITTLER,
1990 apud RAMALHO,1991, p. 32). Veremos no capítulo 3, que a relação capital/trabalho é
complexa e que nem sempre se dá por meio de conflito. Muitas vezes, envolve ajustes de
interesses.
O atributo mais antigo da escravidão, que permanece até hoje, se refere ao tratamento
do ser humano como coisa, à instrumentalização do outro. Aqueles que fazem uso da
categoria para explicar um fenômeno do presente defendem não ser necessário suprimir a
liberdade do sujeito, visto que a retirada da dignidade também “coisifica” o ser humano. De
acordo com Sakamoto, a condição análoga à de escravo faz referência a “determinados
direitos que quando tolhidos (...) transformam essas pessoas em meros objetos descartáveis de
18
Processo histórico que se deu no final do século 15 até meados do 18, conhecido como “pré-história do modo
de produção capitalista e do surgimento da relação capital/ trabalho”. Tal processo separa o trabalhador da
propriedade dos meios de produção e possibilita o acúmulo de capital mercantil paralelamente à investida nas
Américas, Índia Orientais e África (NETTO; BRAZ, 2012, p. 98-101). De acordo com a socióloga Maria
Aparecida de Moraes Silva, a intelectual marxista Rosa Luxemburgo acreditava que esse processo de
acumulação primitiva não estava restrito ao início do capitalismo, mas se estende a outras fases de acumulação
do capital (2005, p.57). 19
Conceitos elaborados por Karl Marx. Ambos fazem parte da dupla dimensão do trabalho: o “trabalho
concreto”, responsável produção do valor de uso: de coisas socialmente úteis, condição necessária para a
existência de qualquer sociedade; e o “trabalho abstrato”, responsável produção do valor de troca. Consiste na
homogeneização de todas as formas de trabalho que possibilita a troca mercantil em larga escala. É determinado
pelo dispêndio de energia física e mental (NETTO; BRAZ, 2012, p. 124).
28
trabalho” (SÃO PAULO, 2014, p. 13).
As nomenclaturas utilizadas para tratar desta modalidade de trabalho são diversas:
“trabalho análogo ao de escravo”, “trabalho escravo contemporâneo”, “semiescravidão”,
“trabalho escravo”, “nova escravidão”, entre outras. Para a historiadora Ângela de Castro
Gomes, apesar da inevitável conexão com o período em que a escravização dos povos
africanos era institucionalizada, quando os trabalhadores eram mercadorias passíveis de
compra e venda no mercado, ou mesmo com a escravidão do chamado Mundo Antigo, a
reutilização do termo envolve uma “forma de apropriação e releitura do passado, via
vocabulário, preenchido de outros significados e se transformando em um novo conceito”
(GOMES, 2008, p.19).
Apesar da validade deste argumento, nesta dissertação, optamos pelo uso do termo
jurídico “condição de trabalho análogo à de escravo”, conforme previsto no artigo 149 do
CPB. Concordando com o economista Vitor Filgueiras (2015), essa nomenclatura nos parece
mais adequada a fim de: 1) evitar que o fenômeno atual seja tratado como sinônimo do
passado, sem consideração às particularidades de cada período histórico; 2) não alimentar o
imaginário colonial de pessoas escravizadas acorrentadas e chicoteadas – que de fato ocorreu
– e 3) não fornecer argumentos para aqueles que afirmam que trabalho degradante não é
escravo.
À primeira vista, a existência de relações contratuais escravagistas no sistema
capitalista pode parecer um contrassenso, seja para a economia ortodoxa do livre mercado ou
para a teoria marxista. Contudo, a empiria nos mostra que a pretensa liberdade dos indivíduos
que vendem sua força de trabalho aos proprietários dos meios de produção não impede a
existência de tais práticas. Na ausência de regulação da relação capital/trabalho, a busca pelo
lucro traz a potencialidade de existência do trabalho análogo ao de escravo,
independentemente de sua proibição legal (FILGUEIRAS, 2015, p. 135).
Conforme afirmou o sociólogo José de Souza Martins:
O modelo econômico que resulta da chamada globalização tem levado, em
muitos países à intensificação da exploração do trabalho e à anulação de
conquistas trabalhistas da maior importância (...) nessa nova realidade
econômica que a superexploração tende, em circunstâncias específicas, a se
tornar trabalho escravo (MARTINS, 1999, p.131, grifo do autor).
Este autor escreveu sobre o tema quando o debate teórico era ainda incipiente. A
prática se dava no contexto da ocupação da região Norte do país, iniciada na Era Vargas
(1930-1945) e ampliada durante a Ditadura Militar (1964-1985). Entre os anos 1960 e 1970,
a iniciativa privada foi estimulada, por meio de incentivos fiscais, a instalar seus negócios
29
agropecuários nas fronteiras amazônicas. Isso provocou um fluxo migratório de trabalhadores
para a região, principalmente para abertura das fazendas, o que exigia grande quantidade de
mão de obra para derrubada da mata e plantio do capim (FIGUEIRA, 2011, p. 6). De acordo
com Martins, o uso dessa mão de obra – majoritariamente composta por homens – para a
produção de fazendas se deu a partir da “variação extrema do trabalho assalariado”. Nesse
contexto, esta modalidade de trabalho representaria uma forma de acumulação primitiva
necessária para a acumulação capitalista (1994, p. 12).
Segundo a antropóloga Neide Esterci, a maior dificuldade de acesso ao local e a
censura vigentes no período da ditadura contribuíram para que as condições de trabalho
impostas – caracterizadas por intensa violência no campo, dívidas ilegais e alto índice de
assassinato – ficassem invisíveis aos olhos de grande parte da sociedade. Naquele período, a
Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras organizações sociais atuantes ao lado dos
trabalhadores, concluíram que a mão de obra empregada na região era escrava. O uso do
termo passou a ser
Reivindicado inicialmente por organizações de direitos humanos e, aos
poucos, foi ganhando espaço nas convenções internacionais, legislações e
imprensa. Por abarcar formas diversas de exploração e desigualdade entre as
pessoas, a categoria tornou-se detentora de um poder simbólico e de
denúncia (ESTERCI, 1994, p.44).
A autora também colocou que “a escravidão passou a denunciar a desigualdade no limite da
desumanização, espécie de metáfora do inaceitável, expressão de sentimento de indignação”
(ESTERCI, 1994, p. 31). Fazer uso desta nomenclatura representava estender o debate, antes
restrito ao campo do direito trabalhista, para o direito penal e para a questão dos direitos
humanos. Além disso, estabelecia um apelo moral, afinal, ninguém gostaria de ser apontado
como escravocrata.
A partir dos anos 1970, notícias sobre escravidão por dívida na Amazônia começaram
a circular na imprensa nacional e internacional (MOURA, 2016). Dentre as denúncias de
existência de trabalho escravo, está a carta pastoral Uma Igreja da Amazônia em conflito com
o latifúndio e a marginalização social escrita pelo bispo Pedro Casaldáliga em 1971, ainda no
período da Ditadura Militar. A carta é considerada um dos primeiros documentos oficiais de
ampla repercussão midiática20
. Nela, o líder católico expôs as condições nas quais peões e
índios eram submetidos. A maior parte do “elemento humano” presente na região era
20
Antes desta denúncia, a categoria “trabalho escravo” já havia aparecido na literatura, como em À margem da
história (1908), de Euclides da Cunha. Na obra, o autor descreveu a situação dos trabalhadores que migraram
para Amazônica com o ciclo da borracha (FIGUEIRA, 2011, p. 108).
30
composta por trabalhadores braçais, migrantes, contratados para trabalhar nas fazendas e
recrutados através de falsas promessas de salários, transporte e assistência médica gratuita.
Apesar de os movimentos sociais fazerem uso da categoria, demorou mais tempo para
que o termo passasse a ser incorporado no discurso institucional do país. De acordo com
Figueira (2011, p. 46), através do extinto Ministério da Reforma e do Desenvolvimento
Agrário (MIRAD), em meados dos anos 1980, o Estado brasileiro já teria recorrido em seus
relatórios à categoria “escravidão”, dando legitimidade ao termo. Em 1992, continuou o autor,
Celso Amorim – então embaixador do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU) –,
diante de denúncias de “trabalho forçado” por parte da CPT e da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), confirmou a existência do problema em sessão da ONU na Suíça.
Finalmente, em 1995, o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso
reconheceu formalmente a existência do trabalho escravo no Brasil. Na época, o fato de a
maior autoridade política do país ter se pronunciado a respeito do tema representou o ponto de
partida para a criação de políticas públicas para a prevenção e o combate da prática. A
primeira delas foi o estabelecimento do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado21
(GERTRAF). Neste mesmo ano, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), ligado ao
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) foi criado. Este grupo tornou-se um dos principais
instrumentos de repressão ao trabalho análogo ao de escravo, e ficou responsável pela
fiscalização das denúncias em todo território nacional e pelo resgate dos trabalhadores,
sempre que houvesse flagrante do crime.
“O resgate tem um rito próprio, expresso na presença de autoridades federais e em seu
discurso que confirma ser crime as relações sociais e de trabalho (...) e que o crime tem nome,
enfatizam, trabalho escravo” (FIGUEIRA, apud MOURA, 2016, p. 13). A atuação conjunta de
diferentes profissionais – auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho e policiais
federais – a partir da investigação dos casos centralizados em Brasília, pela Divisão de
Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), aumentou a eficácia da ação
com cada agente público realizando encaminhamentos específicos para a questão.
Em 2003, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE),
foi concebida e elaborou o primeiro Plano Nacional de Combate ao Trabalho Escravo –
atualmente em sua segunda versão, realizada em 2008. Essa é a principal instância que discute
o tema e que é responsável pela articulação de ações em esfera nacional. Neste mesmo ano, o
artigo 149 do CPB foi reformado. Com isso, o enfrentamento do trabalho análogo ao de
21
Conforme afirmou Ricardo Figueira em diálogo informal, é curioso notar que o trabalho tenha sido adjetivado
como “forçado”, nomenclatura utilizada pela OIT, e não como “escravo”.
31
escravo no que se refere à atuação das autoridades, bem como às pesquisas acadêmicas e às
reflexões teóricas sobre o tema, foram alteradas ou, ao menos, repensadas.
Embora presente no CPB desde 1940, a redação do artigo 149 naquele momento
(“Reduzir alguém à condição análoga à de escravo”) pouco servia como instrumento de
reivindicação, por não explicitar o significado da condição análoga à de escravo. Após a
mudança da redação do artigo, este ganhou contornos mais precisos e passou a tipificar o
crime quando da presença de pelo menos um dos elementos a seguir: “trabalho forçado”,
“servidão por dívida”, “jornada exaustiva” e “condições degradantes”.
O trabalho forçado é caracterizado quando a pessoa é mantida obrigatoriamente no
local de trabalho. O cerceamento da liberdade do indivíduo pode acontecer por meio de
coação moral, psicológica ou física. “A coação é moral quando o trabalhador é induzido a
acreditar ser um dever a permanência no trabalho; é psicológica quando a coação decorre de
ameaças; e física, quando é consequência de violência física” (BRASIL, 2011a, p. 11). A
vigilância ostensiva e o isolamento geográfico são também elementos do trabalho forçado. A
servidão por dívida é definida pela situação em que o trabalhador contrai dívidas a partir de
cobranças indevidas e não consegue quitá-las. Este tipo de servidão é comum quando o
empregador “limita a disposição e o uso do salário” através da cobrança pela viagem dos
trabalhadores (que na maioria das vezes é migrante), pelo uso de equipamento de proteção
individual ou quando da limitação do acesso do trabalhador a apenas um local de compras,
cujos produtos são superfaturados. Tal sistema de endividamento é conhecido como barracão
ou truck sistem.
Outro elemento tipificador do crime é a jornada exaustiva. Refere-se à submissão das
pessoas a um ritmo de trabalho intenso, ou a um esforço excessivo, sem pausa ou descanso
semanal. A prática impede a recuperação da energia e coloca em risco a saúde física ou
psíquica dos trabalhadores. Não está restrita apenas ao número de horas trabalhadas, mas
também à sobrecarga de atividades. Exemplos de jornada exaustiva podem ser vistos
principalmente em trabalhos cuja remuneração depende de maior produção diária, como é o
caso do pagamento por peça nas oficinas de costura. Por fim, a condição degradante é
definida quando há violação de um conjunto dos seguintes direitos dos trabalhadores:
precariedade da higiene, segurança, saúde, moradia, alimentação, saneamento, falta de
fornecimento gratuito de equipamento de proteção individual, insalubridade, entre outros.
O trabalho degradante “é a conduta típica mais verificada na configuração da redução
de trabalhadores à condição análoga à de escravo” (BRASIL, 2011b, p. 12). De forma geral,
as duas últimas hipóteses de trabalho análogo ao de escravo constituíram a “novidade” da
32
reforma do artigo, uma vez que a coerção individual deixou de ser necessária para a
configuração do crime. Enquanto nos anos 1970 o núcleo central desta relação de trabalho
estava na coerção física e moral, em 2017 tais elementos podem aparecer, mas não são
predominantes.
Vale ressaltar que o artigo 149, base legal para a realização dos resgates, é mais
abrangente do que o significado de “trabalho forçado” estabelecido pelas convenções nº 29 e
105 da OIT, que possuem ratificação quase universal. De acordo com esta agência,
subordinada à ONU, o trabalho forçado é aquele exigido sob a ameaça de sanção, sem que a
pessoa tenha se oferecido voluntariamente. A exploração pode partir do Estado, de agentes
privados ou de pessoas físicas e compreende um vasto leque de práticas coercitivas22
. Apesar
da diferença conceitual, a OIT reconhece e apoia a categoria utilizada no Brasil, considerada
uma das mais avançadas do mundo.
De acordo com McGraph, a legislação brasileira carrega o mérito de trazer uma
abordagem multidimensional para a definição de trabalho escravo, como forma de sair da
dicotomia entre trabalho livre e não livre. O artigo 149 vai ao encontro da ideia de “espectro
de exploração” 23, que permite a análise das relações trabalhistas a partir de dois polos
opostos: trabalho decente e trabalho forçado, estando a negação sistemática de direitos
localizada no espaço entre ambos. Segundo a autora, a utilização de critérios rígidos para
diferenciar o trabalho livre do não livre pode contribuir para naturalizar situações de “menos”
abuso e exploração (2013b, p.1009). Assim, percebe-se que não se trata de níveis
hierárquicos, mas de tipos diferentes de degradância e de restrição de liberdade
experimentados pelos trabalhadores e trabalhadoras. Desta forma, o trabalho análogo ao de
escravo não é considerado como uma categoria descolada das demais relações de trabalho
vigentes no sistema capitalista. E, apesar do recorte desta pesquisa ser as condições de
trabalho análogas à de escravo, não pretendemos negligenciar as tantas outras formas de
trabalho precarizadas24
, nem sempre enquadradas no artigo 149.
Por ser uma prática ilegal, não há estimativas seguras acerca da quantidade de pessoas
diariamente submetidas a tais condições. A mensuração do número de pessoas escravizadas é
22
Informação disponível em: <http://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/WCMS_393058/lang--
pt/index.htm>. Acesso em 20 jul. 2017. 23
Destacamos alguns autores da Geografia do Trabalho tais como Ben Rogaly, professor da Universidade de
Sussex, na Inglaterra, Krenda Strauss, professora da Simon Fraser University, no Canadá e Siobhán McGrath,
professora da Durham University, na Inglaterra. 24
Um exemplo disso é o trabalho das teleoperadoras nas empresas de call center, um segmento composto
majoritariamente pela força de trabalho feminina em que a rotina de trabalho afeta a saúde física e mental das
trabalhadoras. Entre os fatores de adoecimento estão a ausência de pausa, insalubridade do ambiente de trabalho,
metas excessivas de produtividade, movimentos repetitivos, entre outros (NOGUEIRA, 2011, p. 40).
33
complexa e varia em função da metodologia utilizada. O que se sabe é o número de
trabalhadores resgatados: 50.701 entre 1995 e março de 2017, segundo dados divulgados pela
Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), órgão subordinado ao MTE. Em 2013, pela
primeira vez o número de trabalhadores liberados pela fiscalização foi maior no meio urbano
do que no meio rural. Os setores da construção civil e, em menor quantidade, o da confecção,
foram os que mais contribuíram para esse aumento. Filgueiras chamou atenção para o fato de
que naquele ano tramitavam ações penais decorrentes de trabalhos análogos aos de escravo
em 25 Estados da federação brasileira nos mais diversos setores da economia (2015, p. 140).
Em 2016, de acordo com dados da CPT, as seguintes atividades contaram com a
presença de trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo: pecuária; avicultura;
produção de cacau, café, cana-de-açúcar, soja, mandioca; benfeitorias; extração de madeira,
juquira (vegetação que cresce espontaneamente no campo), eucalipto; desmatamento;
extrativismo; montaria e roçagem. Juntas, resultaram no resgate de 544 pessoas. Somam-se a
estes os resgates realizados na área urbana, onde foram registrados 205 trabalhadores (CPT,
2016, p.141).
Não obstante, passados 14 anos desde a reforma do artigo 149, a disputa em torno do
que deve ou não ser considerado trabalho análogo ao de escravo permanece viva. Para além
da discussão histórico-filosófica ou jurídica que impulsiona o debate classificatório e que
resulta na “dança dos nomes”,25
existem motivações políticas e econômicas em jogo. O
conflito de interesses em torno dessa classificação reflete na formulação de políticas públicas,
frequentemente questionada por lideranças ruralistas e empresariais – que pretendem evitar
que seus métodos sejam enquadrados nessa categoria –, e, por outro lado, reforçada pelos
agentes políticos e organizações sociais preocupados em combater essa prática, tendo em vista
questões de direitos humanos.
Não temos intenção de reduzir o debate a maniqueísmos, uma vez que não há
consenso nem mesmo entre aqueles que “ocupam posições estruturais semelhantes”
(ESTERCI, 1994, p. 11) ou moralizar a questão. Como pontuaram os assistentes sociais José
Paulo Netto e Marcelo Braz, não se trata de julgar aquele que visa incessantemente ao lucro,
uma vez que não buscamos qualificar características pessoais de indivíduos, como egoísmo ou
maldade. Trata-se de explicitar funções sociais desempenhadas pelos sujeitos sociais (2012, p.
110). Afirmamos aqui que reduzir trabalhadores a condições análogas às de escravo,
suprimindo direitos básicos para cortar gastos, é um negócio lucrativo.
25
Expressão utilizada por Neide Esterci (1994) ao referir-se às variações de termos utilizados para classificar o
fenômeno.
34
De acordo com relatório divulgado pela OIT (2014), o trabalho forçado na economia
privada gera lucros anuais ilegais de 150 bilhões de dólares. Deste valor, 34 bilhões referem-
se à exploração com fins econômicos na construção civil, indústria, mineração e serviços.
Importante destacar também que o relatório apontou como fatores de risco e vulnerabilidade o
gênero e as migrações. Desse modo, tratar do trabalho análogo ao de escravo, bem como de
seu enfrentamento, significa resistir frente ao “vale tudo” das leis do mercado. O conceito se
refere à “imposição de limite ao assalariamento, especificamente, à relação de emprego”
(FILGUEIRAS, 2015, p.134). Limite que será cada vez mais necessário em um período de
desmonte de direitos dos trabalhadores em voga na política interna do Brasil.
1.2 Trabalho no século XXI e a indústria têxtil
Desde 2012, a boliviana Carmen, 32 anos, reside em São Paulo com seu marido e seus
dois filhos. Ela relatou que apesar de passar o dia costurando peças de vestuário, tem
vergonha de sair na rua por não ter dinheiro para comprar suas próprias roupas e se arrumar.
Este exemplo é ilustrativo de uma sociedade produtora de mercadorias cuja centralidade está
no trabalho abstrato, produtor do valor de troca. Carmen não possui o que produz e,
tampouco, pode utilizar seu tempo para costurar para si.
Contudo, apenas o acesso ao trabalho permite a satisfação de suas necessidades. Aí
está criado o paradoxo segundo o qual algum trabalho é “melhor” do que nenhum trabalho.
No caso estudado nesta dissertação, a atividade disponível para as migrantes no Brasil é
“preferível” à ausência desta na Bolívia. “No pasa nada, trabajo es trabajo” 26
foi a forma
com a qual a boliviana Luz encontrou para consolar seu primo quando este foi à falência e
passou ao posto de “encarregado”, responsável por recrutar trabalhadores para a oficina.
Assim como Carmen, Luz, 35 anos, chegou em São Paulo em 2012 com seus dois filhos, e,
desde então, trabalha em oficinas. Em sua fala, o sentido atribuído ao trabalho, restrito a um
mero meio de vida, dialoga com o seguinte excerto de Marx:
A vida para ele [trabalhador], começa quando termina essa atividade, à mesa,
no bar, na cama. Às 12 horas de trabalho não têm, de modo algum, para ele o
sentido de tecer, de fiar, de perfurar etc., mas representam unicamente o
meio de ganhar o dinheiro que lhe permitirá sentar-se à mesa, ir ao bar,
deitar-se na cama (MARX, 2010, p. 36).
Desde seu advento, o capitalismo passa por episódios de crise, “interrupção do
processo de acumulação” (NETTO; BRAZ, 2012, p. 171). Para manter-se enquanto
26
“Não tem problema, trabalho é trabalho” (Tradução da autora).
35
organização econômica vigente, ao fim de cada crise, novos formatos produtivos ou padrões
de acumulação devem ser instaurados. Foi este o caso da crise do taylorismo/fordismo27
nos
países centrais, nos anos 1970, que causou uma conjuntura de recessão econômica ao capital,
e, como consequência, tornou imperativa (sob o ponto de vista do capital) a reestruturação
produtiva. Nos países do sul, este fenômeno foi desencadeado em meados dos anos 1980.
De acordo com o termo cunhado pelo geógrafo britânico David Harvey, vivemos sob a
era da acumulação flexível, que pode ser compreendida pela “flexibilidade dos processos de
trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo (...) caracterizada
com taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”
(HARVEY, 1993 apud NETTO; BRAZ, 2012, p. 227).
Esse modo de acumulação assumiu expressão política e ideológica no neoliberalismo,
conjunto de ideias e práticas que estruturam a sociedade e ditam seu funcionamento por meio
de políticas circunscritas a regras institucionais opostas a um Estado intervencionista e de
bem-estar social. Este modelo trouxe consigo elementos como a valorização do indivíduo,
desorganização de ações coletivas, desregulamentação de acordos laborais, concentração de
recursos no topo da pirâmide, fluxo livre de capitais, além da intrínseca tendência à
privatização.
No plano econômico social, a acumulação flexível operou através da reestruturação
produtiva. De acordo com o sociólogo Marco Aurélio Santana e Ramalho, esta reestruturação
aumentou os índices de produtividades, alterou o relacionamento entre empresas e as formas
de organização da produção, “interferindo nas relações de trabalho e no processo de
negociação com as instituições de defesa dos trabalhadores” (2004, p. 8). Segundo Antunes,
tal fenômeno suscitou:
1) desproletarização28 do trabalho fabril: com a redução do número de trabalhadores;
2) subproletarização: com jornada de trabalho parcial, precarização, terceirização,
subcontratação e consequente aumento da economia informal como alternativa ao
desemprego;
3) flexibilização: que afeta não apenas a organização da produção, mas diversas outras
instâncias como o estabelecimento de acordos coletivos, alargando a assimetria entre
capital/trabalho e enfraquecendo os órgãos de representação dos trabalhadores (ANTUNES,
27
Modelo que tem como característica geral a produção em massa, controle dos tempos e movimentos dos
trabalhadores, fragmentação das tarefas, separação entre elaboração e execução, mecanização e concentração da
produção (ANTUNES, 2011). 28
No caso da indústria têxtil brasileira, Antunes (2011) apontou que de 1980 a 2000, 100 mil postos de trabalhos
foram extintos.
36
2009, p. 248, grifo do autor).
O custo aos trabalhadores – do norte e sul global – foi o aumento do desemprego e da
desregulamentação do trabalho. Cabe notar também que tais processos tiveram efeitos
contraditórios e distintos em relação ao emprego masculino e feminino. Houve uma
estagnação do emprego da mão de obra masculina ao mesmo tempo em que se verificou um
aumento do emprego feminino remunerado (NOGUEIRA, 2010, p.59).
Na década de 1990, no contexto de consolidação do neoliberalismo e de reestruturação
produtiva do capital, o Brasil adotou a abertura comercial como um dos eixos de sua política
externa. Em decorrência da redução gradual das tarifas de importação e da entrada de
produtos externos, principalmente vindos da Ásia, a concorrência internacional se
intensificou. Tal política teve impacto direto no setor têxtil, que externalizou seus processos
de trabalho (CABREIRA; WOLFF, 2013). A ideia da grande fábrica com trabalhadores que
costuram para marcas de prestígio, típica do padrão produtivo taylorista/fordista, deu lugar a
um cenário com inúmeras oficinas de pequeno porte espalhadas pela cidade. De acordo com
Miranda, a flexibilização no ramo têxtil respondeu a três necessidades de acumulação do
capital: sobreviver ao fim do processo de substituição das importações, adequar-se à
sazonalidade da moda e competir com a importação de roupas da China (2016, p. 157).
Desse modo, a reorganização produtiva foi necessária para as empresas manterem a
taxa de lucro e permanecerem no mercado. Estas enxugaram suas unidades produtivas (a
chamada lean production) e passaram a se concentrar na gestão da marca e na
comercialização. Vale ressaltar que as sociólogas Isabella Jinkings e Elaine Amorim
argumentaram que, apesar da terceirização no setor ser anterior à crise advinda da abertura
comercial, o uso desta estratégia de gestão de mão de obra foi levado ao extremo. Segundo
elas, a terceirização radicalizou-se com o repasse quase completo da produção, antes realizado
no âmbito interno e, consequentemente, a redução do tamanho das plantas fabris (2006, p.
364). Ao analisar a reestruturação produtiva “à brasileira”, Santana e Ramalho afirmaram que
as “grandes empresas transformaram as casas de seus funcionários em minifábricas, em uma
cruel reapropriação do trabalho doméstico, corroendo, entre outras, a legislação trabalhista e a
representatividade sindical” (2004, p.39).
Segundo a procuradora do trabalho Carolina Mercante, ocorreu a “pulverização da
produção do ponto de vista espacial, mas não empresarial (...). A transferência que de fato
ocorre é da responsabilidade e dos riscos” (2015, p. 11). Nesse processo, o chamado dumping
social, em que os direitos trabalhistas são suprimidos e os custos da produção são reduzidos
para obtenção de vantagem sobre os concorrentes, tornou-se uma prática no setor.
37
Passaremos a explicar, de forma simplificada29
, o processo produtivo têxtil. A primeira
etapa consiste na obtenção da fibra, matéria-prima básica desta indústria30
. Da fibra, produz-
se o fio, fase conhecida como beneficiamento ou fiação. Esta etapa requer um alto volume de
capital devido à complexidade do maquinário envolvido, e é, portanto, composta por
empresas de médio e grande porte. O passo seguinte é o da tecelagem, produção de tecidos
planos ou de malharia. Trata-se de um segmento heterogêneo composto por grandes indústrias
e outras menores que prestam serviços para as primeiras e demandam equipamentos
especializados e tecnologias de automação e softwares. Após a atividade de “acabamento” do
tecido, este é encaminhado ao setor de corte e, finalmente, para o setor de confecção, em que
são feitos os desenhos, moldes, e costura. Por não necessitar de grandes investimentos, visto
que o instrumento básico de trabalho é a máquina de costura, a etapa produtiva da confecção
conta majoritariamente com empresas de pequeno porte. Consiste na etapa menos
automatizada desta indústria e requer mão de obra intensiva (JINKINGS e AMORIM, 2006;
EMERY, 2007; CÔRTES, 2013).
Uma forma útil de analisar a dinâmica têxtil é por meio da abordagem das Redes
Globais de Produção (RGPs)31
que surgiu como meio de “proporcionar um enquadramento
teórico-metodológico apropriado à investigação de atividades econômicas organizadas em
escala global” (MILANEZ; SANTOS, 2013, p. 2). De acordo com o sociólogo Rodrigo
Santos (2011), o artigo Global production networks and the analysis of economic development
de Henderson et al.32
(2002), pode ser considerado o fundador dessa abordagem. Ela é
responsável por quebrar com a lógica de dualidade entre análise centrada no território
nacional e internacional, a partir de uma visão multiescalar da produção, distribuição e
circulação de bens e serviços. Por meio de interações complexas e difusas, “as redes
29
Ver anexo B – Fluxograma da estrutura da cadeia têxtil e de confecção. 30
“O setor têxtil tem sua base na pecuária (produção de lã) e na agricultura (produção de fibras naturais, como
algodão, linho, juta). Está interligado também à fabricação de fibras e produtos químicos (...) e metalúrgicos (...)
e, finalmente, com a indústria de bens de capital” (JINKINGS; AMORIM, 2006, p.338). 31
O modelo da RGP leva em conta três conceitos-chaves: valor, poder e enraizamento. O primeiro refere-se à
geração de valor que se dá por meio do processo de trabalho, aborda a questão da criação, da captura e da
ampliação do mesmo. O poder é pensado a partir de três formas distintas: corporativo, que consiste na
capacidade de influência de decisão e alocação de recurso da firma líder; institucional, representado pela
influência dos governos nacional e local; e coletivo, que são as ações exercidas por grupos para influenciar as
firmas em locais específicos. Por fim, o terceiro conceito-chave do modelo é o de enraizamento, categoria que
leva em consideração o contexto sócio cultural em que a produção está inserida, subdividida em duas dimensões:
enraizamento territorial e de rede, que trata resumida e respectivamente da forma de “ancoragem” da firma no
local e da estabilidade das relações entre agentes. 32
Jeffrey Henderson, professor de Desenvolvimento Internacional, University of Bristol, Reino Unido; Peter
Dicken, professor Emérito de Geografia University of Manchester, Reino Unido; Neil Coe, professor de
Geografia Econômica, University of Manchester; Martin Hess, professor de Geografia Humana, University of
Manchester e Henry Wai-Chung Yeung professor de Geografia Econômica da National University of Singapore.
38
atravessam as fronteiras estatais de formas altamente diferenciadas, influenciadas, em parte,
por barreiras regulatórias e não regulatórias e por condições socioculturais locais”
(HENDERSON et al., 2002, apud SANTOS, 2011, p. 130).
As RGPs consistem em uma maneira de "reorientar a atenção para as circunstâncias
sociais sob as quais as mercadorias são produzidas e consumidas e, assim, evitar o perigo
constante de deslizar para uma percepção das mercadorias como blocos de construção
desumanizados" (HENDERSON et al., 2011, p. 152), evidenciando as relações que permeiam
a produção. Diferente das abordagens anteriores, como a Cadeia de Valor e a Cadeia Global
de Commodity, que davam ênfase às firmas, esse enfoque metodológico incorpora, além dos
agentes econômicos e políticos, atores sociais como sindicatos, organizações da sociedade
civil, igrejas e movimentos sociais. Neste modelo, não há monopólio de poder nas redes, este
estaria assimetricamente distribuído entres os agentes, cada qual com recursos e autonomias
variadas e desiguais que só podem ser apreendidas por meio de pesquisa empírica.
No caso da indústria têxtil brasileira, McGraph explicou que o “global” presente nesta
rede de produção não se comporta de acordo com as características da literatura, ou como
ocorre com a produção no Sudeste Asiático, voltada para a exportação. Aqui, grande parte das
empresas tem seu processo produtivo fixado no território brasileiro e vende sua produção para
o mercado interno. Dados apontados pela Associação Brasileira da Indústria Têxtil (ABIT)
mostram que “o mercado nacional é responsável por 97,5% do consumo da produção e 2,5% é
destinado às exportações” (ABIT, 2013, p. 17). Segundo a autora, o “global” pode ser
compreendido pela replicação das estratégias utilizadas pelas empresas internacionais
(MCGRAPH, 2010, p. 181). Ou ainda pelo fato de a mão de obra nas oficinas brasileiras ser
composta por distintas populações migrantes.
Diante da complexidade das redes produtivas atuais, McGraph apontou que a
abordagem das RGPs aliada à perspectiva marxista contribui para a análise do modo em que o
valor é criado e capturado no capitalismo (2010, p. 181). Como tratamos de uma rede de
produção dirigida por compradores – ou seja, são as grandes distribuidoras de roupas que
definem o design, o preço e os prazos; pressionam os produtores e ditam o ritmo da produção
–, o poder corporativo da firma líder, apesar de não ser absoluto, tem papel central no que se
refere às atitudes e ao controle das condições de trabalho existentes em todas as etapas do
processo produtivo.
Nesse sentido, os fornecedores têm fraco poder de negociação com estas empresas,
apesar de terem forte poder de barganha com os costureiros. Isso implica no fato de o valor
excedente produzido pelos trabalhadores não ser completamente retido pelos empregadores
39
diretos. Com isso, as grandes marcas, apesar de distantes dos trabalhadores em condições
análogas a de escravo, são capazes de capturar os valores criados por seus fornecedores que
por ventura utilizarem este tipo de mão de obra.
Além disso, as pequenas oficinas abrem e fecham suas portas com facilidade e sem
grandes impactos para o restante do processo produtivo, prova de um enraizamento de rede
frágil. A relação desses agentes – costureiros e costureiras de pequenas oficinas – com o
restante da rede é de baixa conectividade, sem durabilidade ou estabilidade. Sem vínculo
formal33
com a empresa, os costureiros ficam mais vulneráveis aos abusos dos donos das
oficinas que, por sua vez, estão a mercê do prazo de entrega e do preço estabelecido
indiretamente pelas tomadoras finais do serviço. E devem também arcar sozinhos com os
custos trabalhistas, o que na maioria das vezes não ocorre, pois “os trabalhadores informais
não gozam de direitos básicos que são garantidos por lei aos trabalhadores regulares – como
férias remuneradas, uma jornada de trabalho máxima de 44 horas semanais, seguro-
desemprego e acesso a benefícios da previdência social” (REPÓRTER BRASIL e SOMO,
2015, p. 10)
É importante destacar que o formato produtivo descrito acima não é de exclusividade
brasileira. Em artigo publicado pelos sociólogos Cibele Rizek, Isabel Georges e Carlos Freire
da Silva, estes afirmaram que “a proliferação de novos sweatshops34 ao redor do mundo (...)
segue a dinâmica global do capitalismo” (RIZEK et al., 2010, p. 119). Como explicou a
geógrafa Clara Ribeiro:
Existe uma relação entre precarização e concorrência, em que a tentativa é
pagar cada vez menos pela força de trabalho. Se não é possível fazer isso por
meio da mecanização, faz-se pela precarização do trabalho: extensão das
jornadas, uso de trabalho imigrante, informalidade. (...) Em um setor que não
consegue substituir o trabalhador pela máquina, a exigência é reduzir o custo
de mão de obra para alcançar os níveis globais da concorrência (RIBEIRO,
2015, p. 49).
Apesar de cada empresa diferir em relação a suas prioridades estratégicas nos negócios,
aquelas que estão inseridas no mesmo setor tendem a criar RGP com arquiteturas similares,
33
O processo produtivo do setor têxtil combina e conjuga formas de trabalho formal e informal. Uma das
modalidades de trabalho informal presente no setor é o trabalho realizado em casa, executado majoritariamente
por mulheres brasileiras que, no passado, estavam empregadas nas fábricas de costura (MCGRAPH, 2010, p.
190). Este tipo de trabalho, porém, não será objeto de nosso estudo. 34
De acordo com o auditor fiscal do trabalho Renato Bignami não há uma palavra em português que expresse o
significado de sweatshop, que representa situação de precariedade e violência no ambientes de trabalho. A
palavra, de origem inglesa, retoma a Revolução Industrial. Era utilizada como símbolo de uma “situação
específica de precariedade no ambiente de trabalho, frequentemente relacionada com as pseudo oficinas de
costura inseridas dentro da cadeia produtiva têxtil”. O termo sweating system [sistema do suor] é utilizado “para
designar o sistema de trabalho e produção relacionado com essa precariedade” (BIGNAMI, 2011, p. 2).
40
devido à semelhança na tecnologia utilizada e à restrição ou abrangência do mercado em
relação aos produtos comercializados (HENDERSON et al., 2002, p. 161).
Miranda explicou que existem dois tipos de unidades produtivas na base da cadeia
têxtil. O primeiro refere-se àquelas que possuem estrutura de fábricas com regularização
laboral mínima e com emprego de centenas de trabalhadores nacionais, e estão normalmente
localizadas em regiões de facilidade tributária. O segundo tipo abarca as pequenas oficinas
sem registro jurídico, que ficam perto de grandes centros como ocorre em São Paulo, Buenos
Aires, na Argentina; Los Angeles e Nova York, nos Estados Unidos, normalmente ocupadas
por migrantes internacionais a partir do estabelecimento de contratos de trabalhos verbais
(2016, p. 222). De um jeito ou de outro, a arquitetura desta rede não se mostrou benéfica aos
trabalhadores.
De tempos em tempos, tragédias com costureiros ligados a empresas internacionais
que instalam seus negócios em países subdesenvolvidos, vêm à tona nos diversos cantos do
globo. Não se trata de um problema específico dos países onde elas ocorrem, mas está
conectada à economia global. A título de exemplo, em entrevista concedida ao Blog do
Sakamoto35
, o auditor fiscal do trabalho Renato Bignami relembrou que:
Em 2006, uma oficina de costura localizada em Buenos Aires queimou
completamente e matou seis integrantes de uma mesma família de
costureiros bolivianos. Destino semelhante tiveram duas crianças, filhas de
uma família boliviana que vivia e trabalhava no mesmo local – uma oficina
de costura no bairro do Brás, em São Paulo, incendiada no ano de 2010. A
mesma sina tiveram os 314 trabalhadores de uma fábrica têxtil do Paquistão,
ou os 124 trabalhadores de um complexo fabril do mesmo Bangladesh,
ambos os desastres ocorridos em 2012. Somados, já se vão alguns milhares
de trabalhadores mortos em virtude de péssimas condições de trabalho na
indústria do vestuário (Blog do Sakamoto, 7 de maio de 2013).
Em 2013, o caso noticiado na imprensa foi o do prédio Rana Plaza, em Bangladesh, onde
funcionavam fábricas de costura prestadoras de serviço para diversas marcar internacionais. O
edifício desabou e matou 1.158 pessoas, das quais 80% eram mulheres (HIRATA, 2016), e
deixou 2.500 feridos.
Conforme afirmamos anteriormente, as pequenas oficinas de costura podem ou não
fazer parte de redes globais. Isso por que nem toda produção é voltada para grandes marcas
internacionais, diversas peças são produzidas para os comércios populares das cidades. No
caso de São Paulo, Miranda (2016) apontou que existe uma segmentação do mercado de
roupas, em termos de desenho e qualidade. O autor descreveu a tipificação dos circuitos de
35
Disponível em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/05/07/tragedia-de-bangladesh-tambem-
poderia-acontecer-no-brasil/. Acesso em: 01/05/2017.
41
produção de vestuário na capital paulista elaborada pela geógrafa Silvana da Silva em sua tese
de doutoramento36
.
O primeiro é o circuito superior, correspondente às grandes marcas que ditam a moda,
confeccionam de oficinas subcontratadas (de brasileiros, bolivianos, paraguaios, peruanos) ou
importam da China e do Sudeste Asiático, e vendem para as classes média e alta. O segundo,
identificado como circuito marginal superior, é composto por comerciantes dos bairros do
Bom Retiro e Brás, no Centro de São Paulo. Em geral, os proprietários coreanos ou brasileiros
de lojas contratam diretamente oficinas de bolivianos, paraguaios, peruanos e brasileiros, em
menor escala. A venda das peças nas lojas destina-se normalmente ao atacado. Por fim, o
circuito inferior, em que as peças são confeccionadas por pequenos gestores de oficinas de
costureiros bolivianos, paraguaios, peruanos, que vendem na Feirinha da Madrugada37
,
localizada no bairro do Brás. Estes produtos são destinados a comerciantes ambulantes de
todo o Brasil (DA SILVA, 2012 apud MIRANDA, 2016, p. 158-164).
No caso das cinco narradoras-entrevistadas, ao indagarmos sobre o destino das roupas
que produziam, poucas informações foram fornecidas. Quando trabalhavam nas oficinas de
outras pessoas, o destino das peças não pareceu relevante para as costureiras. O que elas
sabiam é que alguns brasileiros ou coreanos eram os responsáveis por entregar o tecido e
buscar as encomendas. Carmen, que no momento da escrita desta dissertação já tinha a sua
própria oficina, contou que costurava roupas vendidas no bairro do Bom Retiro, mas pretendia
passar a confeccionar para a Feirinha da Madrugada:
Es barato pero es facilito para hacer. Ahora de las más chiques son difíciles:
detalles, medida y más costura fina. Para Feirinha de Madrugada, no. Es
“zum, zum” [fazendo gesto de tecido sendo costurado na máquina]. Por eso
que saca por semana 800, 500 peças. De los chiques te mandan 150 peças y
demora dos o tres semanas 38
(Carmen, entrevista realizada em 26/07/2017).
Independentemente do local em que serão vendidas, determinadas condições de
trabalho são passíveis de ser caracterizadas como análoga à de escravo. Certos de que nem
todas as oficinas empregam esse tipo de mão de obra, importa saber o que as diferenciam.
36
DA SILVA, Silvana. Circuito espacial produtivo das confecções e exploração do trabalho na metrópole de
São Paulo. Os dois circuitos da economia urbana nos bairros do Brás e Bom Retiro (SP). 2012. 362f. Tese
(doutorado em Geografia na área de análise ambiental e dinâmica territorial) – Instituto de Geociências,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. 37
A feira funciona de segunda a sábado das 3h00 às 10h00. O local atrai todos os dias aproximadamente 25 mil
pessoas. Além do espaço cedido pela prefeitura há o comércio informal de rua. 38
É barato, mas é fácil de fazer. Agora, das mais chiques é difícil: detalhes, medidas e mais costura fina. Para a
feirinha de madrugada, não. É “zum, zum” [fazendo gesto de tecido sendo costurado na máquina]. Por isso que
se faz por semana 800, 500 peças. Das chiques te mandam 150 peças e demora duas ou três semanas (tradução,
nossa).
42
Para isso, faremos uma discussão acerca das condições concretas que permitem o
enquadramento no artigo 149.
1.3 Artigo 149 nas oficinas de costura39
Desde 1990, autoridades públicas e organizações da sociedade civil recebem
denúncias de trabalho análogo ao de escravo em oficinas de costura na RMSP. Ao longo
desses anos, diversas organizações40
desenvolveram estratégias e propostas de trabalho
conjunto para responder a essa prática ilegal que se faz presente no cotidiano da cidade.
Os agentes da rede global de produção da indústria têxtil têm demonstrado fortes
poderes institucional e coletivo. O primeiro é representado pela influencia dos governos
nacional e local, com destaque para a atuação do MTE e MPT. O segundo é exercido por
organizações de direitos humanos, ONGs que fazem oposição às decisões do Estado, quando
estas beneficiam a firma líder e prejudicam os costureiros, por exemplo.
Dentre as ações podemos destacar o Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e
Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções, firmado em 200941
. O
documento foi fruto de um processo de diálogo social liderado pela inspeção do trabalho de
São Paulo, no qual 11 entidades se comprometeram a “dentro de suas respectivas áreas de
atuação, intensificar as ações no sentido de aumentar a proteção ao trabalhador migrante, com
respeito ao princípio da igualdade consubstanciado na Constituição Federal de 1988”
(BRASIL, 2011b, p.12).
Outra iniciativa é a entrada em vigor da Lei Estadual nº 14.946, de 28 de Janeiro de
2013, que dispõe sobre a cassação da inscrição no cadastro de contribuintes do Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de qualquer empresa que faça uso direto ou
indireto de trabalho escravo ou em condições análogas. Sem o cadastro no ICMS, a empresa
fica impossibilitada de exercer qualquer atividade econômica no Estado. Além disso, duas
39
Os casos apresentados foram retirados da seção de notícias do aplicativo Moda Livre, elaborado pela ONG
Repórter Brasil. 40
Dentre as instituições que atuam neste enfrentamento, destacam-se Missão Paz, Centro de Apoio e Pastoral do
Migrante (CAMI), Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), Instituto Nacional pela
Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO) e Repórter Brasil. Além destes, diversos órgãos estatais como a
Defensoria Pública da União (DPU), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE), além da Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAE-SP) e da
Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Escravo (COMTRAE). As associações que representam o setor
empresarial e participam deste diálogo interinstitucional são a Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX)
e a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT). 41
Para mais informações acerca do Pacto, acessar: http://reporterbrasil.org.br/2010/03/pacto-contra-a-
precarizacao-e-pelo-emprego-e-trabalho-decentes-em-sao-paulo-cadeia-produtiva-das-confeccoes/.
43
Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) foram instaladas para Apurar a Exploração de
Trabalho Análogo ao de Escravo, uma na Câmara Municipal e outra na Assembleia
Legislativa do Estado de São Paulo, em 2004 e 2016, respectivamente.
De acordo com o relatório produzido pela primeira CPI:
Diversos fatores podem caracterizar todo esse processo como trabalho
análogo à escravidão. São eles: a forma como são recrutados na Bolívia, com
falsas promessas de salário e bem-estar; confinamento para que paguem as
dívidas com seu trabalho; impossibilidade de comunicação; retenção de
documentos e de dinheiro; ameaças de denúncia ao poder público sobre sua
situação de indocumentado; jornada de trabalho excessiva; alta rotatividade
do local de instalação das oficinas de costura; condições totalmente
insalubres de trabalho, sendo que o local de trabalho é também o de moradia.
(SÃO PAULO, 2006, p. 28).
Das diversas características encontradas nestes ambientes de trabalho e moradia,
Bruno Miranda identificou três componentes de trabalho não livre:
1) o vínculo laboral por dívida, saldada pelo trabalho gratuito do migrante. De acordo
com Zelaide, por exemplo, o dono da oficina “nos ha traído por 550 reales por persona y
hemos tenido que trabajar sin sueldo”42
;
2) o período de aprendizagem em que o trabalho não é pago. Luz, apesar de já saber
costurar, foi contratada como ajudante de costura, recebendo um valor menor do que se fosse
costureira. Depois de três meses, subiu para o posto de costureira, não sem antes passar outros
três meses em fase de teste, mesmo já sabendo costurar.
3) os “vales” fornecidos pelos donos das oficinas aos costureiros para estes saírem, ou
comprarem comidas e bebidas. Segundo o autor, trata-se de uma forma de atar o trabalhador
por meio de pagamentos parciais antecipados (MIRANDA, 2017, p. 201). Luz trabalhou três
anos com seu primo, dono de oficina, sem receber. Vivia com “vales de 20 e 50 reais” que ele
dava a ela para ir à feira. Quando pedia um valor mais alto para fazer documentos, por
exemplo, “ele achava ruim”.
Outros elementos que constam nos Relatórios de Fiscalização, acessados por meio da
DETRAE, envolviam, principalmente, condições degradantes de trabalho: habitação
multifamiliar; alojamentos precários, sem cama, com colchões improvisados, mofados, com
cortinas para a divisão dos cômodos; armazenamento de alimentos em locais impróprios e
sem refrigeração; chuveiros elétricos desligados; instalação sanitária precária e insuficiente
para a quantidade de trabalhadores; cadeiras improvisadas; máquinas de costura sem
aterramento elétrico; ausência de extintor de incêndio; espaços mal iluminados e pouco
42
“Nos trouxe por 550 reais por pessoa. Tivemos que trabalhar sem salário” (Tradução da autora).
44
ventilados; ausência de refeitório. Tais fatores ilustram uma situação em que inexistem
condições mínimas de saúde43
e de segurança.
Importa observar que, após a assinatura do Pacto Contra a Precarização e pelo
Emprego e Trabalho Decentes e a ratificação do Protocolo de Palermo44
, passou a haver uma
seletividade das ações de fiscalização. De acordo com Côrtes, as operações deixaram de lado
as cadeias curtas e passaram a se pautar pelas cadeias médias e longas, em que eram
encontradas empresas capazes de se responsabilizarem pelas condições de trabalho
encontradas (CÔRTES, 2013, p. 243). Quando os trabalhadores resgatados estão ligados ao
circuito superior, isto é, à rede global a qual pertencem grandes empresas, há maior
repercussão midiática e apelo público. Isso contribui para chamar atenção da sociedade civil
para um problema estrutural e internacional e provoca pressão pública e comercial sobre a
empresa que se vê coagida a alterar sua conduta.
Nesses casos, o percurso para a utilização de mão de obra análoga à de escravo é
semelhante: as tomadoras finais do serviço contratam confecções para produzir suas peças.
Estes fornecedores diretos repassam as encomendas para oficinas menores, a fim de reduzir
seus custos. Ocorre que tais oficinas adotam a mesma artimanha e transferem a encomenda
para outras oficinas, muitas vezes irregulares ou clandestinas. Carmen descreveu esse
processo da seguinte forma:
Yo ahorita estoy haciendo eso, con servicio de un tercerizado de una marca.
Pero no me mandan con etiqueta, solo hago. Yo dije: ‘¡No!Voy a parar
porque si ellos siguen y me pezcan, a mí me sacan multa’. Mi sobrina no
tiene documento. Los brasileros tienen aquí oficinas grandes, llevan a Bom
Retiro, tienen una loja y de ahí tercerizan para los bolivianos. Porque los
brasileros no hacen como nosotros de 3 reales, 4 reales. A ellos les pagan 18
reales un vestido y para nosotros nos dan 5 reales y nosotros pensamos: “5
reales, está bueno, vamos hacer”. Pero no coloca etiqueta, nada45
(Carmen,
entrevista realizada em 29/06/2017).
Ao fim e ao cabo, as peças produzidas pelas diversas oficinas chegam às lojas como se
tivessem sido feitas exclusivamente pelos fornecedores diretos. Logo, os casos de trabalho em
condições análogas à de escravo ocorrem mais frequentemente nas oficinas distantes da
43
Tais condições contribuem para a alta incidência de doenças pulmonares entre os costureiros, especialmente a
tuberculose (MARTINEZ, 2010). 44
Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, ratificado pelo Brasil
em 2004. 45
“Eu, agora, estou fazendo isso com serviço de um terceirizado de uma marca. Mas não me mandam com
etiqueta, só faço. Eu disse: ‘Não! Vou parar porque se eles seguem e me pegam, me dão multa’. Minha sobrinha
não tem documento. Os brasileiros têm aqui oficinas grandes, levam [as peças prontas] ao Bom Retiro. Eles têm
loja e de lá terceirizam para os bolivianos. Porque os brasileiros não fazem como nós, de 3 reais, 4 reais. A eles
pagam 18 reais um vestido e para nós, dão cinco reais. E nós pensamos: ‘5 reais está bom, vamos fazer’. Mas
não colocamos etiqueta , nada” (tradução da autora).
45
tomadora final do serviço (REPÓRTER BRASIL, 2016b, p.4).
A ONG Repórter Brasil46
contribui para a divulgação dos casos que envolvem grandes
marcas de roupas. Conforme observamos no item 1.2, empresas do mesmo setor geralmente
possuem arquiteturas similares, de tal modo que diversas marcas já foram denunciadas por
terem utilizado, em algum momento, mão de obra análoga à de escravo. Acreditamos ser
importante nomeá-las (em ordem alfabética): 755, Billabong, Bo.Bô, Brooksfielfd Donna,
C&A, Cobra D’Água, Collins, Cori, Emme, GAP, Gangster Surf, Gregory, Handbook,
Hippychick, John John, Le Lis Blanc, Lojas Americanas, Lojas Pernambucanas, Lojas
Renner, Luigi Bertolli, Marisa, M.Officer, Riachuelo, Seiki, Skate Wear, Talita Kume, Tyrol,
Zara,47
. Para nos aproximarmos desta realidade, exemplificamos com números:
Em 2010, a rede Marisa foi autuada pelas condições de trabalho de 16 bolivianos e um
peruano (FILGUEIRAS, 2015, p. 141). Neste mesmo ano, 15 costureiros bolivianos foram
resgatados em uma oficina “quarteirizada” que confeccionava coletes para os recenseadores
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em dois flagrantes ocorridos em
2010 e 2011, a Pernambucanas foi condenada por submeter 31 pessoas – provenientes da
Bolívia, do Paraguai e do Peru – a condições análogas a de escravo. A Zara (do Grupo
Inditex), em 2011, foi responsabilizada por três oficinas de costura de fornecedores onde
foram resgatados 67 bolivianos e peruanos (REPÓRTER BRASIL, 2016a). Em 2013, o grupo
varejista Restoque, da marca John John, foi condenado por 28 bolivianos em condições de
trabalho análogas a de escravo. Em ações fiscais realizadas entre 2013 e 2014, a M5 Indústria
e Comércio, proprietária da marca M.Officer, foi condenada após oito trabalhadores
bolivianos serem encontrados em condições análogas a de escravo. Em 2014, foi a vez da
Renner. A varejista foi responsabilizada por 37 costureiros bolivianos. Entre os resgatados,
havia 21 homens, 15 mulheres e uma adolescente. No mesmo ano, a Seiki foi condenada pelo
trabalho de 17 bolivianos resgatados. Dentre os trabalhadores, havia uma adolescente de 15
anos grávida de sete meses. Em 2016, a Brooksfield Donna, marca do grupo Via Veneto, foi
culpabilizada pela condição de trabalho de cinco bolivianos, sendo um deles uma adolescente
de 14 anos, filha do dono da oficina. Também tinha 14 anos a filha que Lourdes, 40, trouxera
de La Paz, na Bolívia, para o Brasil, em 2013. O objetivo da mãe, que havia chegado a São
Paulo poucos meses antes, era estar mais perto da única mulher entre seus quatro filhos. A
46
Diversos pesquisadores utilizam as matérias investigativas da organização para analisar dados e coletar
informações sobre os casos. 47
Vale dizer que em alguns casos a decisão foi proferida em primeira instância, cabendo recurso por parte das
empresas.
46
intenção era que, na capital paulista, a adolescente desse prosseguimento aos seus estudos.
Não foi o que aconteceu. Hoje, aos 18 anos, sua filha acumula quatro anos de trabalho diante
da máquina de costura.
Os casos de trabalho análogo ao de escravo na costura não se esgotam nestes expostos
acima. De 2003 a 2014, foram realizadas 34 operações de fiscalização, das quais “foram
libertados 452 costureiros de oficinas fornecedoras de marcas populares e de ‘grife’, cuja
maioria se encontrava no Estado de São Paulo” (MTE apud REPÓRTER BRASIL, 2016b).
Tais ações podem ser realizadas de forma independente e regionalizada pelos diversos órgãos
responsáveis ou podem ser efetivadas de forma conjunta, possibilitando aos trabalhadores
atendimento oferecido por múltiplas frentes. As medidas cabíveis aos auditores fiscais do
trabalho são: a emissão e assinatura da carteira de trabalho, cálculo da rescisão contratual por
justa causa, emissão das guias do Seguro Desemprego para Trabalhador Resgatado. Se
desejarem, podem ser reencaminhados aos seus locais de origem (BIGNAMI, 2011).
O Ministério Público do Trabalho (MPT) atua na responsabilização do empregador e
possui mecanismos como o Termo de Ajuste de Conduta (TAC), acordo assinado pelo
empregador que prevê o pagamento de multas e o estabelecimento de metas para que o crime
não volte a ocorrer. Quando os procuradores do trabalho e a empresa não conseguem firmar
um acordo via TAC, os primeiros ajuízam uma Ação Civil Pública pedindo indenização
relativa a danos morais coletivos causados e direitos trabalhistas não respeitados na Justiça do
Trabalho. A acusação que visa responsabilizar o tomador final de serviços (as grifes) –
beneficiada pelo trabalho desvalorizado do trabalhador – pode ser fundamentada sob diversas
teorias jurídicas do ponto de vista civil, trabalhista e criminal48
. Tais medidas são estratégicas
para induzir mudanças de postura por parte da classe empresarial, que, a fim de evitar
represálias, passa a cumprir com obrigações antes negligenciadas e a criar novos mecanismos
de controle.
A argumentação a respeito da responsabilização gira em torno das evidências de que
tais empresas podem controlar a capacidade produtiva de seus fornecedores e possuem
capacidade e responsabilidade de verificar se estes vão transferir suas encomendas. Afinal,
são elas as detentoras do poder econômico que dirige a cadeia, e as responsáveis por fornecer
a peça piloto, impor correções, prazos, valores e procedimentos de pagamento (MERCANTE,
2015, p. 6). Apesar de apresentarem sofisticados códigos de conduta aos seus fornecedores, os
48
Para mais informações ver: SEGATTI, Ana Eliza et al.. Trabalho escravo: reflexões sobre a responsabilidade
na cadeia produtiva. In: FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia; GALVÃO,Edna (Org.). Discussões
Contemporâneas sobre Trabalho Escravo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016, p. 99-116.
47
mecanismos de controle das condições de trabalho em todos os elos da cadeia produtiva
mostram-se frágeis. Ironicamente a mesma fragilidade não ocorre no que se refere ao controle
da qualidade das peças.
O “problema de fundo é sempre o mesmo: terceirizações e quarteirizações que ajudam
a reduzir custos trabalhistas e tributários, porém elevam os riscos laborais” (REPÓRTER
BRASIL, 2016a, p. 5). Segue abaixo o fluxograma da empresa Zara realizado pela SRTE/SP:
Fluxograma 1 – Empresa-rede Zara
Fonte:<http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/arquivos-de-
audio-e-video/luis-alexandre-de-faria>.
Estimativas apontam que a empresa que faz uso da mão de obra análoga à de escravo
deixa de gastar por trabalhador 2,3 mil reais por mês (SÃO PAULO, 2014). Filgueiras, ao
realizar um levantamento das operações de fiscalização, constatou que, entre 2010 e 2014, o
MTE apurou 4.183 casos de trabalhos submetidos à exploração. Deste total, “3.382 eram
terceirizados, o que equivale a 81% do total de trabalhadores vitimados” 49
.
Em relação ao posicionamento das empresas, a primeira reação frente às denúncias de
49
Informação disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/542001-terceirizacao-e-trabalho-escravo-
niveis-pandemicos-de-precarizacao-entrevista-especial-com-vitor-filgueiras>. Acesso em: 20 jul. 2016.
48
irregularidades trabalhistas e violações de direitos humanos obedece a um padrão: passar a
responsabilidade adiante, tal qual fazem com as roupas a serem confeccionadas, e afirmar o
desconhecimento de tais condições, sob a argumentação de que não são culpadas. As notas de
esclarecimento público das empresas acusadas chegam a ser repetitivas: não são responsáveis
pelos trabalhadores. Outras são mais criativas. Em reportagem da ONG Repórter Brasil, um
diretor de marca acusada de trabalho escravo alegou traição de seu fornecedor: “A empresa
que contratamos nos traiu e não cumpriu aquilo que exigimos. Tenho certeza que jamais
compactuamos com qualquer violação dos direitos humanos ou exploração indevida”
(ZOCCHIO, 2013).
Passar a responsabilidade adiante ou negar o conhecimento da situação não é
exclusividade dos empregadores na cidade. Em Pisando Fora da Própria Sombra, Figueira
apresentou a postura dos fazendeiros acusados do crime: alegam desinformação. A presença
de intermediários, recrutadores de mão de obra, era também um álibi para o desconhecimento
das violações ocorridas na própria fazenda, uma forma de se afastarem das questões legais e
morais (2004, p. 312). Outra forma mencionada de reagir às acusações é pela justificativa de
geração de emprego, de produtividade. Querem dizer que, sem eles (os fazendeiros), os
trabalhadores estariam em situação pior.
De acordo com o frei Xavier Plassat50
, a argumentação utilizada pelos empregadores
consiste em uma armadilha, uma explicação para a manutenção da miséria pela miséria
preexistente, contribuindo com a perpetuação da pobreza. A mesma lógica se aplica ao caso
boliviano. Segundo o coordenador do CAMI ao ser entrevistado por Miranda: “o fato da
situação do país ser pior não justifica as jornadas de trabalho realizadas pelos jovens no
Brasil” (2016, p. 217, tradução da autora).
Neste sentido, Phillips et al.51
argumentaram que a inclusão na economia global não
representa necessariamente a possibilidade de redução da pobreza ou acesso a melhores
oportunidades de trabalho. Em determinadas situações, pelo contrário, reforça a inserção em
condições de trabalho precárias, com alto nível de exploração e, em alguns casos, até de
trabalho não livre (2014, p. 429). A incorporação adversa de determinados grupos sociais
segue uma dinâmica circular que contribui para a perpetuação da pobreza em vez de sua
redução. Ficam vulneráveis a aceitar propostas de trabalhos nas quais serão explorados e
50
Coordenador da Comissão Pastoral da Terra. 51
Nicola Phillips, professora de Economia Política, University of Sheffield, Reino Unido; Resmi Bhaskaran
professor do Centro de Estudos Históricos, Jawaharlal Nehru University , Índia; Dev Nathan, professor do
Instituto de Desenvolvimento Humano, Índia e Upendranadh Choragudi, coordenador da organização ActionAid,
Myanmar.
49
servirão como meio de acumulação de mais-valia52
de outrem. Com as possibilidades de bem
estar e de acumulação a longo prazo reduzidas e sem oportunidades de empregos dignos, os
trabalhadores tendem a perder o poder de barganha e de negociação relativo às suas condições
laborais (PHILLIPS; SAKAMOTO, 2012, p.297).
Dado este cenário macro sobre o setor têxtil, antes de passarmos às histórias das
mulheres bolivianas em São Paulo, realizaremos um percurso panorâmico das pesquisas
acadêmicas que abordaram a presença das mulheres na temática do trabalho análogo ao de
escravo.
1.4 Mulher e trabalho análogo ao de escravo: um percurso acadêmico
As pesquisas acadêmicas sobre o trabalho análogo ao de escravo no Brasil, na maioria
das vezes, se referiram ao homem trabalhador rural. Tal representação pode ser justificada, em
parte, pelo fato de as primeiras denúncias e fiscalizações estarem concentradas na área rural,
onde o trabalho braçal era realizado majoritariamente por pessoas do sexo masculino.
Em diversos empreendimentos, a presença de mulheres era proibida, assim como a da
cachaça. De acordo com Ricardo Figueira, Gelba Cerqueira e Maria Amália de Oliveira53
, “a
mulher e a bebida, em locais onde há muitos homens reunidos são compreendidos como
sinais de ‘confusão’, ‘perigo’ e ‘bagunça’. Mudam a ordem desejada” (FIGUEIRA;
CERQUEIRA; OLIVEIRA, 2008, p. 295). Colocá-las no mesmo patamar da cachaça significa
associá-las a “sinais negativos”, e considerá-las enquanto objetos. Elas não poderiam estar na
mesma posição dos trabalhadores escravizados por dois motivos: 1) pelas condições do
trabalho que exigiam extremo esforço físico, atributo negado às mulheres (conforme
mencionamos na Introdução, o social contribui também para moldar os corpos); 2) mesmo
que fizessem parte do grupo de trabalhadores, essas mulheres provavelmente seriam
disputadas por eles. Estupradas? Talvez.
O que poderia evitar tal situação é se fossem casadas com algum trabalhador. Nesse
caso, o fato de estarem acompanhadas, as tornaria dignas de uma espécie de respeito
destinado ao marido e não a elas. Segundo os autores, havia exceções em relação à proibição
das mulheres nas fazendas:
52
Conceito empregado por Karl Marx para designar o valor excedente apropriado pelo capitalista, a parte do
trabalho executado que não é remunerada. De acordo com este autor, existem duas formas de extrair a mais-valia
dos trabalhadores: 1) pela extensão da jornada de trabalho sem alteração no salário, mais-valia absoluta; 2) pela
intensificação do ritmo de trabalho, mais-valia relativa. 53
Gelba Cerqueira foi coordenadora do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) e Maria
Amália de Oliveira foi pesquisadora do mesmo grupo.
50
A esposa pode acompanhar o marido se não houver impedimentos, tais como
a proibição do empreiteiro, a existência de filhos pequenos, alguém doente
na família e a distancia entre o local de origem e a fazenda. Mulheres que
possuem relação de parentesco com o peão, em alguns casos, acompanham-
no para fazerem a comida dos trabalhadores e lavarem suas roupas
(FIGUEIRA; CERQUEIRA; OLIVEIRA, 2008, p. 295).
Vale notar que quando as mulheres iam para as fazendas, apesar de estarem na mesma
situação que seus maridos, elas não eram identificadas pelo Estado enquanto trabalhadoras,
mas sim enquanto acompanhantes dos trabalhadores. O que contribui para a baixa presença do
sexo feminino entre os “resgatados”.
Desse modo, nos anos iniciais de pesquisa sobre o tema, o espaço da mulher nos
estudos foi relegado, em geral, ao papel de mãe à procura do filho, esposa à espera do marido
e donas de bordéis ou profissionais do sexo. Esterci, por exemplo, discutiu o papel da mãe na
saída dos trabalhadores para a fazenda, como aquela que preparava a marmita para o filho e
estabelecia a conciliação entre este e o pai dentro da casa (1994, p. 107). A autora também
analisou a relação entre trabalhadores rurais escravizados e mulheres – também exploradas –
nas zonas de prostituições. Chamou atenção para a realidade de meninas que tinham a
virgindade como mercadoria, que passavam por situações de ruptura e estavam envolvidas em
relações ambíguas de redes de parentesco, de exploração e de proteção, assim como os peões
54.
Ainda no contexto do trabalho escravo rural, marcado pela pobreza e pela ausência de
emprego que faziam com que os homens viajassem ao Pará com o objetivo de trabalhar na
derrubada das matas, Figueira e a socióloga Adonia Prado analisaram depoimentos de
mulheres que tinham em comum “além do gênero, e da mesma cidade de residência, os filhos,
a origem camponesa e o parente aliciado” (FIGUEIRA; PRADO, 2011, p.182). Enquanto os
homens eram aliciados para o trabalho nas fazendas, elas ficavam sozinhas e, sobre elas,
recaía a responsabilidade do trabalho para o sustento da família. Quebravam coco, cuidavam
da roça e das tarefas domésticas, enquanto seus maridos, às vezes, mandavam dinheiro ou
notícias e nem sempre retornavam.
Outra hipótese para o número reduzido de mulheres nos resgates é a dificuldade de
investigação e de verificação da existência de trabalho análogo ao de escravo na esfera
54
Cabe aqui uma observação sobre o tratamento dos trabalhadores às mulheres que se prostituem. Moraes Silva
mencionou uma pesquisa que tratava de trabalhadores migrantes da Paraíba no corte de cana na região da Zona
da Mata, em Pernambuco. Devido à presença de migrantes dedicadas à prostituição, constatava-se uma
representação generalizada dessas mulheres como prostitutas, e, enquanto tais, não cumpriam os padrões
patriarcais que exigiam a fidelidade feminina, a obediência, e o respeito ao marido, requisitos básicos para o
casamento, além da virgindade. Essas mulheres eram vistas pelos migrantes como objetos sexuais (MENEZES,
2002 apud MORAES SILVA, 2005, p. 74).
51
doméstica, uma vez que a inviolabilidade do domicílio está assegurada pela Constituição
Federal55
. O costume de trazer meninas do interior para serem “criadas” nas cidades e para
realizarem trabalho doméstico dentro da casa de famílias sem direitos trabalhistas é uma
prática que não acabou no país. Não podemos deixar de mencionar que este trabalho é
ocupado majoritariamente pelas mulheres negras.
Para termos uma ideia quantitativa, de acordo com dados da CPT divulgados em 2012
e reunidos a partir do registro do seguro desemprego dos trabalhadores resgatados, de 2003 a
2012, 95,1% dos resgatados eram homens e 4,9% mulheres. De acordo com pesquisadora
Flávia Moura, “o gênero masculino lidera todos os levantamentos consultados” (MOURA,
2016, p. 123). Este dado tem impacto sobre as pesquisas produzidas em relação ao tema.
Uma forma de identificar a presença das mulheres foi através do conjunto de textos
publicados pelo Seminário Internacional sobre Trabalho Escravo por Dívida e Direitos
Humanos, realizado em 2005 e embrião do que depois iriam se tornar os encontros da
Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas56
. Esta reunião é
realizada anualmente desde 2007 e promovida pelo Grupo de Pesquisa de Trabalho Escravo
Contemporâneo (GPTEC). Conta com a participação de pesquisadores provenientes de
diversas instituições e áreas de conhecimento.
O livro Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: contribuições críticas para sua
análise e denúncia (2008) é resultado do Seminário supracitado. Dele, destacamos alguns
artigos. Em Mapeamento das redes de resistência e conivência em polos irradiadores de
trabalho escravo contemporâneo no estado do Mato Grosso, o historiador Vitale Joanoni
Neto traz depoimentos de mulheres migrantes que, para sair da miséria, se prostituem, “vivem
do prazer, sem tê-lo” (2008, p. 246).
Em Representações sociais de mulheres de ambiente, donas de pensão e parentes dos
trabalhadores submetidos à escravidão, Figueira et al., escolheram três grupos de mulheres
para investigar suas percepções acerca dos peões, trabalhadores escravizados: 1) o das que
possuem parentesco com trabalhadores escravizados, sendo suas esposas, mães ou avós; 2) o
das que participam, ainda que indiretamente, do processo de aliciamento de trabalhadores: as
donas de pensão e 3) o grupo composto por prostitutas (FIGUEIRA; CERQUEIRA;
55
Apesar das ações de resgate GEFM, nesta esfera serem limitadas, elas já alcançaram o espaço doméstico,
como ocorreu em 2017 na região Vale do Jequitinhonha. Ver notícia em: < http://prt1.mpt.mp.br/informe-
se/noticias-do-mpt-rj/669-mpt-rj-domestica-e-resgata-em-situacao-de-trabalho-escravo >. Acesso em: 25 jul.
2017. 56
É importante ressaltar que tais textos não esgotam as publicações sobre o assunto.
52
OLIVEIRA, 2008, p. 292). As mulheres parentes dos trabalhadores não viam com bons olhos
a ida dos homens para as fazendas, cientes dos riscos que eles corriam. Ao mesmo tempo,
sabiam que a situação econômica os empurrava para lá. O segundo grupo analisado foi o das
proprietárias dos hotéis de beira de estrada, frequentados pelos peões à espera de aliciamento.
Tais hospedarias voltadas para trabalhadores eram gerenciadas, em grande parte, por mulheres
que viviam da rede do trabalho escravo. Os “gatos” (aliciadores) acertavam as contas com
elas e o peão, por sua vez, antes de chegar à fazenda, já estava endividado. O último grupo de
entrevistadas foi o das “mulheres de ambiente”. De acordo com os autores, são “meninas” que
possuem a mesma origem social dos peões, oriundas de famílias pobres e numerosas (2008, p.
304).
No artigo Entre lembranças e perdas: a memória que não se cala, Adonia Prado teve
como objetivo “conhecer as versões femininas do fenômeno do trabalho escravo
contemporâneo, como ele se apresenta no cotidiano de mulheres – mães, filhas, irmãs,
cunhadas” (2008, p. 311). A autora se utiliza da expressão “diáspora masculina” para referir-
se à migração temporária de homens que, sem expectativa de serviço em seus municípios de
origem, vão para as fazendas no Pará. As entrevistadas de Prado relataram que, na região, as
mulheres se dedicam às atividades ligadas ao babaçu57
– cuja remuneração é irrisória –,
enquanto os homens ganham um pouco mais, devido ao potencial de força física que podem
dedicar ao trabalho (2008, p. 319). Apesar da ausência do homem:
É preciso levar a vida adiante prover a subsistência dos que ficam e
administrar o mundo material e o mundo afetivo, à espera de que ao fim do
contrato de trabalho, o homem volte com algum dinheiro e, o que é mais
importante, vivo e com saúde. É preciso resistir e elas resistem (PRADO,
2008, p. 312).
Por fim, destacamos nesse livro, o depoimento de Antônia Maria da C.S., viúva de
Francisco Clemente da S.. Após ter lutado para receber o atestado de óbito de seu marido
morto em uma fazenda no Pará, afirmou que vive “no trem da vida com esses três filhos para
criar, mas tenho fé que um dia hei de vencer! Vivo trabalhando, lutando, mas quem sabe um
dia eu não seja feliz, né?” (2008, p. 116).
De forma geral, a mulher não foi analisada enquanto “trabalhadora escravizada”.
Foram investigadas suas opiniões em relação ao trabalho do homem, à ausência do homem. E,
quando as mulheres analisadas aparecem no papel de trabalhadoras do sexo, fala-se em
exploração, mas não em escravização.
57
A autora mencionou o Encontro de Quebradeiras de Coco de Babaçu realizado no município Miguel Alves/PI,
como processo de resistência das mulheres (2008, p.329).
53
Olhares sobre a escravidão contemporânea: novas contribuições críticas (2011) é
fruto do debate realizado na primeira e segunda Reunião Científica. Neste livro, o trabalho
análogo ao de escravo urbano, apesar de mencionado na construção civil e na tecelagem, não
foi analisado em nenhum artigo, sendo o meio rural a temática predominante. Os sujeitos
submetidos ao trabalho análogo ao de escravo estavam sempre no masculino, enquanto a
mulher permanecia no posto de “esposa de trabalhador da usina”.
No segundo livro publicado a partir da Reunião Científica, Trabalho escravo
contemporâneo: um debate transdisciplinar (2011), meninas e mulheres aparecem enquanto
vítimas do trabalho forçado para exploração sexual. A pesquisadora internacionalista
Waldimeiry Corrêa da Silva fez uma análise das condições de trabalho que as brasileiras,
vítimas do tráfico para exploração sexual, eram submetidas na Espanha. Seguindo adiante,
chegamos ao terceiro livro: Privação de liberdade ou atentado à dignidade: escravidão
contemporânea (2013). Elas apareceram novamente ligadas à temática do tráfico, mais
especificamente, ao trabalho forçado para fins de exploração sexual.
A cientista política Sophia Lakhdar escreveu sobre o tráfico humano na França e as
denúncias recebidas pelo Comitê Contra a Escravidão Moderna58
, relativas a meninas
menores de idade recrutadas em países da África com a falsa promessa de escolarização. Ao
chegarem à Europa, as meninas descobriam que a verdadeira motivação de terem sido levadas
era a realização do trabalho doméstico. De acordo com Lakhdar, “o fato de que tal serviço
faça parte – da mesma maneira que o trabalho sexual – das atividades reservadas
‘tradicionalmente’ a mulheres e que supostamente não precise de profissionalização, ainda
não produzindo riqueza econômica, é certamente importante na sua persistência” (2013, p.
446).
Na mesma publicação, foram transcritos depoimentos de duas mulheres que atuavam
no enfrentamento da prática. Aparecida Barbosa da Silva – presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Confresa, município do Estado do Mato Grosso – contou sobre a
realidade de sua região, onde os trabalhadores fugiam das fazendas e iam ao sindicato pedir o
resgate daqueles que permaneceram. A segunda, Maria José Moraes, advogada da Prelazia
(equipe de agentes pastorais) de São Félix do Araguaia, também município de Mato Grosso.
Ela relatou como o trabalho escravo passou a ser difundido e conhecido, deixando de ser uma
realidade restrita ao norte do país.
58
Criado em 1994, este Comitê surgiu para apoiar as vitimas de escravidão doméstica e tráfico de pessoas no
país. Mais informações em: < http://www.esclavagemoderne.org/ >. Acesso em: 10 ago. 2016.
54
Em 2015, foi lançado o quarto livro: A universidade discute a escravidão
contemporânea: práticas e reflexões. Destacamos o artigo dos pesquisadores David Rubio, da
Universidade de Sevilla, e Pilar Zúñiga, da Universidade Pablo de Olavide, ambas na
Espanha. Os autores abordaram o tráfico de pessoas, o trabalho escravo e a exploração sexual
como violações de direitos humanos. A questão de gênero foi apresentada enquanto expressão
de um contexto de sociabilidade desigual e assimétrico que faz parte da lógica de
discriminação intrínseca do capitalismo.
Discussões contemporâneas sobre trabalho escravo: teoria e pesquisa (2016) é o título
da quinta publicação. Novamente, Rubio e Zúñiga agregaram a temática de gênero ao debate.
Desta vez, a partir da análise do trabalho doméstico, iminentemente feminino com baixa
presença de homens. Trata-se de uma ocupação com maior déficit de trabalho decente
(CEPAL et al. 2013, apud ZÚÑIGA e RÚBIO, 2016, p. 405) que, em algumas circunstâncias,
pode ser caracterizado como forçado ou análogo ao de escravo.
Neste livro, destacamos também o artigo dos cientistas políticos João Veiga e
Katiuscia Galhera que se aproxima da temática desta dissertação: o trabalho análogo ao de
escravo no setor têxtil a partir da desigualdade de gênero nas oficinas de costura. Segundo os
autores, “a Bolívia é culturalmente arraigada em costumes e tradições que fomentam a
inequidade de gênero. No Brasil tal inequidade não é rompida. Ao contrário, é reforçada pela
forma como as mulheres bolivianas estão vinculadas à cadeia da costura” (2016, p. 121). Os
dados encontrados por Veiga e Galhera na pesquisa de campo com mulheres bolivianas serão
discutidos ao longo desta dissertação. Finalmente, na publicação mais recente da série,
Trabalho Escravo Contemporâneo: estudos sobre ações e atores (2017), não encontramos
textos que dão ênfase à questão de gênero. Apesar de o tema central do artigo de Rubio e
Zúñiga ser o trabalho doméstico, os autores realizaram um debate teórico mais abrangente.
Esse breve panorama é um meio de vislumbrarmos como e quando a mulher tem sido
retratada nos estudos sobre trabalho análogo ao de escravo. No total, foram analisados sete
livros referentes a um Seminário e oito Reuniões Científicas (em alguns livros foram
compiladas duas Reuniões Científicas). Dos 142 artigos publicados, 10 inseriram a mulher na
análise. Somado a isso, dos sete depoimentos trazidos pela coletânea, três eram de mulheres59
.
Ao longo desta dissertação, desejamos olhar para as bolivianas enquanto agentes cuja
posição na estrutura organizativa do setor têxtil reflete o modo em que diferentes grupos
sociais se inserem na economia global. Conforme Hirata e Kergoat ressaltaram, não basta
59
Ver Apêndice B
55
descrever as diferenças na distribuição de trabalho entre homens e mulheres e a desigualdade
no exercício do trabalho doméstico. É necessário pensar em termos de divisão sexual do
trabalho para mostrar que tais desigualdades são sistemáticas. Além disso, refletir acerca do
uso que a sociedade faz da hierarquização das atividades entre homens e mulheres (HIRATA;
KERGOAT, 2007, 596). Para além da constatação de que as mulheres aparecem como
cozinheiras ou como trabalhadoras do sexo, por exemplo, é importante compreender como
esses papéis são fixados e desqualificados.
Vale sublinhar também a pesquisa de Siobhán McGraph que abordou a questão de
gênero e refletiu sobre os processos de diferenciação e hierarquização entre os sexos ao
analisar as condições de trabalho análogo ao de escravo na cana-de-açúcar e na costura. De
acordo com ela, as noções construídas em torno do gênero podem ter papel importante na
dinâmica desta modalidade de trabalho. No corte da cana-de-açúcar, por exemplo, a autora
chamou atenção para o fato de a “questão de gênero” ter excluído a mulher desta atividade, ao
mesmo tempo em que intensificou o trabalho do homem, partindo da ideia de que a mulher
não teria habilidade para exercê-lo. Consolidou-se, assim, uma representação coletiva, tanto
para empregados quanto para empregadores, de que o corte da cana é um trabalho de homem.
Seguindo a autora, o esforço físico exigido na produção de cana passou a ser
relacionado com a coragem, qualidade que, ao representar força e bravura, torna-se
profundamente ideológica. O sentido atribuído a este trabalho serve à exploração do homem,
uma vez que sua intensificação poderia ser elemento central para a construção da
masculinidade dos lavradores (MCGRATH, 2010, p. 164). Nesse caso, a questão do gênero
operaria de forma negativa para os dois lados: excluindo progressivamente as mulheres de
certos empregos, e aumentando a pressão sobre os homens migrantes para um incremento
produtivo (MCGRATH, 2010, p. 177).
Para McGrath, o poder de barganha sobre a própria condição de trabalho varia de
acordo com a raça, o gênero, entre outras construções de identidades: “tipos particulares de
trabalhadores terão menor sucesso em negociar o valor do seu trabalho” (MCGRATH, 2013a,
p. 38, tradução da autora). No caso do trabalho análogo ao de escravo não poderia ser
diferente, pois este também se apoia no processo de desvalorização do trabalho enraizado pela
ideologia de raça e gênero. Neste sentido, a autora questionou a visão do ativista e professor
de Escravidão Contemporânea Kevin Bales60
.
60
Autor do livro Gente Descartável A nova escravatura na economia global (2001), cofundador da ONG Free the
slaves e professor da University of Nottingham, Reino Unido.
56
Ao estabelecer uma matriz comparativa entre escravidão antiga e nova, Bales apontou
a raça/etnia enquanto um dos elementos diferenciadores entre os períodos históricos. O
argumento do autor é de que em oposição à antiga escravidão, no fenômeno contemporâneo, a
raça é consequência e não a causa da vulnerabilidade: “O denominador comum é a pobreza,
não a cor. Por trás de cada afirmação de diferença étnica, está a disparidade econômica”
(2001, p. 22). Em contraposição, McGrath afirmou que apesar da submissão de pessoas à
condição análoga à de escravo não estar restrita a um grupo, é preciso reconhecer que a sobre-
representação de grupos específicos nos resgates não está associada apenas à pobreza no país
de origem. Para a autora, não se pode ignorar a construção social da raça/etnia e tratá-la como
reflexo da vulnerabilidade, mas sim como atributo que contribui para o seu aumento (2010, p.
173).
Com isso, e retornando ao nosso recorte empírico, não estamos dizendo que a indústria
tem preferência por bolivianos. A subcontratação impacta os trabalhadores
independentemente da nacionalidade, conforme afirmou o geógrafo Sylvain Souchaud.
Segundo o autor, não há especificidade étnica baseada em particularidades bolivianas ou
andinas (SOUCHAUD, 2012, p. 90). Mas, de acordo com Miranda, quando a dimensão da
análise passa da indústria para as oficinas, não se pode negar o caráter étnico, “dada às
dinâmicas que implicam viver e trabalhar junto, os donos de oficinas priorizam pessoas de sua
nacionalidade que tendem a compartilhar dos mesmos hábitos alimentares e códigos de
conduta. Tal preferência opera como uma forma de recurso organizativo” (2016, p.169-170,
tradução da autora). Segundo o autor, as redes sociais dos migrantes da costura acabam por
reservar posições determinadas aos grupos étnico-nacionais no circuito da indústria da moda
(2016, p. 168, tradução da autora).
Realizado esse percurso, passamos às histórias das mulheres, a partir da saída do país
de origem e da inserção nas oficinas em São Paulo. Para isso, nos debruçamos sobre o
cotidiano e a rotina de trabalho, sem esquecermos que suas vidas estão interligadas a
processos mais amplos de desigualdade.
57
Capítulo 2. Bolivianas e o trabalho nas oficinas de costura
Neste capítulo, dividido em três seções, apresentamos as trajetórias de vida e de
trabalho das narradoras-entrevistadas. No primeiro item, descreveremos as motivações de
saída das bolivianas. No seguinte, apresentaremos os caminhos percorridos até a chegada ao
Brasil. Para fechar o capítulo, abordaremos a experiência laboral dentro das oficinas, bem
como a especificidade do trabalho da mulher nestes ambientes.
2.1 Emigração de mulheres para o trabalho: por que sair?
O fenômeno migratório é um fato social completo referente a duas ordens nacionais –
distintas e desiguais – relacionadas entre si. Engloba aspectos políticos, econômicos, sociais e
culturais dos locais de origem e destino. Além de ser, ao mesmo tempo mesmo, fato coletivo e
trajetória individual (SAYAD, 1998).
Iniciamos com a contextualização do local de origem de quem emigrou, neste caso, a
Bolívia. Situada na zona central da América do Sul, o país conquistou sua independência em
1825. Segundo a historiadora Maria José Magliano, a libertação do jugo espanhol, vigente no
Período Colonial, não alterou as bases do padrão de dominação responsável por marginalizar
os povos indígenas. No período pós-independência, apesar das mudanças advindas dos
diversos ciclos políticos do país: liberal (século 19-1952), popular (1952-1985) e neoliberal
(1985-2005), a contemporaneidade boliviana não superou completamente a exclusão dos
indígenas (CUSICANQUI61, 1993 apud MAGLIANO, 2008, p. 83).
Ao longo de sua história, este país perdeu mais da metade de seu território em guerras
contra os vizinhos: Brasil, Peru, Chile e Paraguai. E, a despeito de ter realizado a primeira
revolução operária da América Latina, conhecida como Revolução Nacional de 195262
, esta
mostrou “ser apenas uma versão mais radical da política favorável à redistribuição do poder
político e, até certo ponto, do bem-estar no interior de uma estrutura que fundamentalmente
permanecia a mesma” (DONGHI, 1989 apud PERICÁS, 1997, p. 120).
Mais recentemente, o país passou conflitos internos conhecidos como “ciclo rebelde
Boliviano”, como “guerra da água”, “guerra da coca” e “guerra do gás”. Em São Paulo desde
2004, a boliviana Sara, 35 anos, veio ao Brasil acompanhada de seu marido, deixando sua
61
Silvia Rivera Cusicanqui é uma intelectual e ativista boliviana. Fundadora do Taller de Historia Oral Andina
(THOA). Em sua obra desenvolve a ideia de colonialismo interno. 62
Entre as medidas estabelecidas por esta revolução estão a adoção do sufrágio universal, nacionalização das
minas de estanho e a reforma agrária.
58
filha na Bolívia, aos cuidados dos avós. Em nossa conversa, ela fez menção à crise que viveu
em seu país:
A empresa [onde ela trabalhava] faliu por causa do Evo Morales. Na época,
ele era só sindicalista, aí teve uma greve geral, parou tudo. Tiraram o
presidente da Bolívia, ele fugiu para os Estados Unidos, os sindicatos tiraram
ele. Na época não tinha para comer, não tinha gás, não tinha carne, não tinha
pão, não tinha nada pra você comprar (Sara, entrevista realizada em
05/07/2017).
No extrato acima, a boliviana refere-se ao presidente Gonzalo Sánchez de Lozada que
já havia governado o país entre 1993-1997 e foi eleito novamente em 2002. Após uma onda
protestos articulada em torno da exportação do gás – que deixou 64 mortos em um mês –, o
então presidente renunciou e escapou de sua residência de helicóptero rumo aos Estados
Unidos. Em 2005, a eleição de Evo Morales marcou a entrada da primeira pessoa de origem
indígena na presidência63
.
Apesar da melhora nos indicadores macroeconômicos e sociais, como a ampliação da
rede de serviços básicos para a população e a redução do analfabetismo64
, a Bolívia continua
sendo um dos mais pobres do continente, segundo dados do Programa das Nações Unidas
Para o Desenvolvimento (PNUD) 65
. Isso explica por que as migrações ligadas ao aspecto
econômico ainda façam parte de estratégias individuais e familiares dos bolivianos. Para ter
uma dimensão, em 2009, a estimativa girava em torno de “20% da população boliviana
vivendo fora de seu país” (VEIGA; GALHERA, 2016, p.124).
De acordo com último censo de 2012, a Bolívia, país dividido em nove departamentos,
possui 10.027.254 habitantes (INE, 2012), distribuídos em duas grandes regiões: o Altiplano,
– com maioria de descendentes indígenas – que abriga Potosí, La Paz e Oruro; e a Media
Luna, que compreende a planície oriental onde se encontram as reservas de gás e petróleo e
onde ficam os departamentos de Pando, Beni, Santa Cruz; e o departamento de Tarija, que faz
parte da região subandina. Entre as duas grandes regiões, há uma polarização ideológica
responsável por separar e reforçar a identidade da população proveniente das terras altas, com
tradição comunitária, conhecidos informalmente como kollas, daqueles provindos das terras
planas, os cambas, tidos como progressistas e pró-globalização (ZUCCO JR., 2008, p.3). Tais
denominações carregam um tom pejorativo quando usados por um dos lados para referir-se ao
outro (MIRANDA, 2016, p.153).
63
Com a entrada do presidente deflagrou-se um movimento separatista/autonomista, o Movimiento Nación
Camba de Liberación, na região da Media Luna, especialmente no Departamento de Santa Cruz. 64
O último censo mostrou que 94,98% da população sabe ler e escrever, entre as mulheres a taxa de alfabetismo é
de 92,54%, e 97,49% entre os homens. 65
Informações retiradas do site: < www.bo.undp.org>. Acesso em: 10 jul. 2017.
59
Tais divisões refletem também as desigualdades de acesso a serviços básicos entre as
áreas rurais e urbanas, entre a população indígena e não-indígena, entre homens e mulheres.
Não por coincidência, as cinco imigrantes que acompanhamos nesta pesquisa são da região do
Altiplano, especificamente do Departamento de La Paz.
Nas trajetórias analisadas, o trabalho esteve presente desde muito cedo. De acordo
com os relatos das narradoras-entrevistadas, foi possível observar que as atividades realizadas
por elas são “tipicamente femininas”, ligadas ao cuidado de crianças e idosos, à limpeza, à
cozinha e ao comércio. Luz nasceu em Caranavi, pueblo66
rural situado a 150 km ao nordeste
da cidade de La Paz. Segundo ela, fez de tudo para conseguir finalizar os estudos. Com nove
anos de idade, já cuidava de uma idosa. Foi morar na casa de uma “vovó” com a condição de
frequentar a escola. Contudo, o combinado não foi cumprido. Tornou-se a empregada
doméstica da família da “vovó” e ficou dois anos sem estudar e sem ver sua própria família.
Passado esse período, foi garçonete e trabalhou em lojas de sapato. Aos 14, como ajudante de
cozinheira, trabalhava de “lunes a lunes” 67
sem descanso. Dormia na cozinha com um
colchão improvisado em cima de caixas de cerveja. “Talvez por eso que sin trabajo no
consigo ficar bem. Siempre he trabajado. Cuando estoy sin trabalho fico incómoda” 68
.
Sara nasceu na cidade de La Paz, sede do governo e terceira cidade mais populosa do
país. Por ser a mais velha de dez irmãos, aos 12 anos, trabalhava como ajudante de cozinha.
“Sempre faltava dinheiro em casa... Então fazia de tudo: vendi xampú, cosméticos, coisas de
escola, montava carpete de chão, fiz envelope de papel decorado, o que eu conseguia de
trabalho, eu entrava”. A pacenha69
Lourdes foi ajudante de pedreiro, função que, de acordo
com ela, não é incomum entre as mulheres na Bolívia. Além disso, antes de vir ao Brasil,
“vendía las tripitas na rua, cozinhava, fritava com batata e com picante de maní” 70
. Carmen
nasceu em Santiago de Huata, área rural próxima da cidade de Copacabana. Cansada das
desavenças com sua mãe, e movida pelo desejo de terminar seus estudos, foi viver com sua tia
em Santa Cruz de la Sierra – cidade mais populosa do país, de maioria descendente de
espanhóis e mestiços. Viu-se obrigada a comer terra durante o trajeto, porque sua mãe se
66
Povoado (Tradução da autora). 67
“Segunda a segunda” (Tradução da autora). 68
“Talvez por isso que sem trabalho não consigo ficar bem. Sempre trabalhei. Quando estou sem trabalho fico
incomodada” (Tradução da autora). 69
Aquela que é natural de La Paz. 70
“Vendia intestino de vaca na rua. Cozinhava, fritava com batata e com molho de amendoim” (tradução da
autora). De acordo com a explicação de Quilla trata-se de um molho de amendoim. Para fazer o molho, o
amendoim cru e sem casca é moído e levado à frigideira para cozinhar. Depois, mistura com uma pimenta
também moída. Para moer é mais comum o uso de uma pedra chamada bacán, no lugar do liquidificador.
60
recusara a dar chuño71 para ela levar na viagem. Em Santa Cruz, trabalhava pela manhã,
limpando casas até o meio-dia. Às 13h, entrava na escola.
Moradora de São Paulo desde 2012, Zelaide, 30 anos, é casada e mãe de dois filhos.
Das cinco narradoras-entrevistadas, é a única que não trabalhou durante a infância.
Proveniente de Nor Yungas, na área rural do Departamento de La Paz, migrou com os pais aos
sete anos, quando foi picada por formigas que espalharam veneno pelo seu corpo. Ficou
semanas no hospital de La Paz e, como o veneno provocou sequelas em seu coração,
permaneceu na capital até terminar os estudos. Depois, regressou a seu pueblo.
Outro elemento presente na trajetória das cinco bolivianas, também desde muito cedo,
é a convivência com situações de violência de gênero. Este não é um fenômeno particular da
Bolívia, mas sim, um problema estrutural que atinge as mulheres independentemente da
nacionalidade. Segundo a pesquisadora Suely Souza de Almeida, “a violência de gênero é
fruto da assimetria de poder que só se sustenta em um quadro de desigualdades de gênero”
(2007, p. 27), ou seja, em um contexto de concepções hegemônicas de masculinidades e
feminilidades, de naturalização das hierarquias, de acessos desiguais a fontes de poder, à
escolarização, ao mercado de trabalhos, entre outros. Nos casos de violência física, esta vem
conjugada à violência simbólica, conceito utilizado por Bourdieu (2002), que trata do efeito
duradouro que o poder masculino exerce sobre os corpos, assume uma forma imperceptível,
por meio das “sutilezas da cultura” e da forma que ela opera para perpetuar as crenças
vigentes. Consiste também na sistemática desvalorização da mulher, através de humilhações,
de agressões verbais e de chantagens emocionais.
Ainda crianças, as narradoras-entrevistadas viram suas mães e tias apanharem de
“punho fechado” de alguma figura masculina, sejam pais, padrastos ou tios...
Na minha família o que eu veía era meu pai trabalhando, minha mãe
chorando de olho vermelho. Minha mãe descontava na gente (...) Quando
tinha 11 anos meu pai chegava bêbado batia na minha mãe(...) com uns 15
anos soube que meu pai gostava de ter relação com minha mãe, ela não
queria. Mas ele se imponía, ela só chorava, por isso que meu pai teve tantos
filhos (Sara, entrevista realizada em 05/07/2017).
Cuando eu dormia eles brigavam, minha mãe e meu padrasto (...). Ele
golpeaba e ela ficava quietinha, a veces cuando estaba bêbado, peor, todavía
(...). Una vez, tenía 13 años...Meu padrasto em cima dela, batendo, eu não
sabia o que fazer. Minha mãe já não resistia, a cada golpe que le daba,
sangre salía. No sé si de la boca o de la nariz. Iba a matar (...) Agarré seu
pescoço. Ele me empurrou e eu bati na mesa y rebento para mí, tengo esa
71
Tipo de batata desidratada consumida pelos povos aymara e quéchua. É conhecida como uma batata milenar
consumida pelas comunidades indígenas dos Andes cuja origem remonta à Era Pré-Colombiana.
61
marca [mostrando a cicatriz] 72
(Luz, entrevista realizada em 12/02/2017).
Neste episódio, Luz explicou que sua mãe não quis se separar porque temia ser alvo de
críticas. “Ficou calada por medo que llegue mais problema” 73
. Ao questionar Quilla acerca da
sua percepção sobre a violência contra a mulher em seu país, a boliviana de Cochabamba
afirmou que:
A sociedade culpabiliza as mulheres quando elas deixam o marido ou
denunciam, porque aí as crianças ficam sem o pai, né? Dizem: ‘você poderia
ter aguentado, agora seus filhos vão ficar sem seu pai’, isso principalmente
vem da família do homem, a sogra, cunhada... Quando elas assumem alguma
atitude para romper o silêncio (Quilla, entrevista realizada em 05/09/2017).
Para ela, se as mulheres denunciam correm o risco de apanharem mais:
Agora as ONGs trabalham com isso lá, levando as leis que existem para
proteger, incentivando as mulheres a falar. (...) Vemos casais que saem das
festas bêbados e já começam brigar nas ruas e ninguém faz nada e muitas
vezes as crianças presenciam essa conduta dos pais se batendo na rua
(Quilla, entrevista realizada em 05/09/2017).
De acordo com os relatos, na maioria dos casos, a agressão vinha junto do consumo de
bebidas alcoólicas. Além disso, Quilla afirmou que: “alguns homens que querem participar
das tarefas domésticas e do cuidado com a casa, às vezes, eles também sofrem preconceito.
São chamados de ‘mandarinas’, ‘pocholos’ que são algumas denominações, apelidos a
homens que se prestam a fazer serviços domésticos”.
Os dados estatísticos corroboram os depoimentos das narradoras-entrevistadas. Apesar
da aprovação da Lei Integral para Garantir às Mulheres uma Vida Livre de Violência (Lei nº
348/2013) 74
– que envolve diversos aspectos de prevenção, proteção e sanção de qualquer
forma de violência contra as mulheres: seja ela física, psicológica, sexual e patrimonial e
econômica –, ao considerar todos os tipos de violência contra mulher, de cada dez bolivianas,
sete são violentadas (VARA-HORNA, 2015). De acordo com os dados publicados pelo
Instituto Nacional de Estatística (INE, 2017), 44,4% das mulheres casadas viveram situações
de violência com seu cônjuge nos últimos 12 meses. Esta situação é ainda mais grave na área
rural e o departamento com índice de violência mais alto, com 66%, foi La Paz, local de saída
das cinco narradoras-entrevistadas.
72
“Quando eu dormia, eles brigavam. Minha mãe e meu padrasto. Ele batia nela e ela ficava quietinha. Às vezes,
quando estava bêbado, pior ainda. Uma vez, tinha 13 anos... Meu padrasto em cima dela, batendo, eu não sabia o
que fazer. Minha mãe já não resistia, a cada soco que lhe dava, sangue saía. Não sei se da boca ou do nariz. Ia
matar... Agarrei sei pescoço, ele me empurrou e eu bati na mesa. E me arrebentou. Tenho essa marca” (Tradução
da autora). 73
“Ficou calada por medo que cheguem mais problemas” (Tradução da autora). 74
Nesta lei, o delito de feminicídio foi sancionado com pena de 30 anos de prisão.
62
2.1.1 A saída: Me agarré a mis hijos y mi he ido
A migração é o meio encontrado para melhorar a condição de vida, juntar dinheiro
para comprar casa, ter o que oferecer aos filhos, entre outras razões. Mas é também “um álibi
para o movimento inicial que encobre uma série de outras motivações subjetivas para o desejo
de ampliação de fronteiras” (ZANFORLIN, 2014, p.87). “Os fatores socioeconômicos
definem em primeira instância o caráter de uma migração, mas estes não definem
completamente sua lógica interna, (...) configurado em boa parte pelas mediações culturais e
escolhas individuais” (SOUZA, 2006 apud OLIVEIRA, 2014, p. 173).
O movimento migratório tem como motivação principal a possibilidade de encontrar
trabalho, mas o entendimento do que move os indivíduos vai além disso. A migração é
também como alternativa para escapar de conflitos familiares e situações de opressão e
violência doméstica no país de origem (ALMEIDA, 2013). Apesar de os homens migrarem
por motivos não econômicos, como os citados acima, as mulheres tendem a ter mais
experiências neste aspecto, em parte devido à sua posição subordinada (NAWYN, 2010, p.
754).
Vejamos a saída de Luz: em um curto período de tempo, o marido, a sogra e a mãe
morreram. “Después ya no quis ficar allá, tinha que sair, porque no tinha más ali a nadie” 75
.
Pegou um empréstimo com sua tia e foi para La Paz. Lá, como garçonete, ganhava 700
bolivianos por mês, enquanto em seu pueblo o valor mensal recebido era de 60 bolivianos76
.
Apesar de pouco, era o suficiente para seu sustento, uma vez que a empregadora fornecia
cama e comida. “Na ciudad vi que no tenía casa” 77
. Depois de um ano como garçonete,
chegou à conclusão sua jornada prejudicava seus dois filhos, de dois e quatro anos. Ela
entrava às 6h no serviço e saía às 17h, enquanto eles passavam dia todo trancados no quarto.
Além disso, não sobrava nenhum dinheiro no fim do mês. Decidiu partir. “Me voy a ir de
aqui. Sin conocer me he ido a Argentina, me agarré a mis hijos y me he ido” 78
. Nas palavras
de Luz, foi puro desespero, ela não pensava em ir para o exterior. “Sentí raiva porque meus
filhos estava haciendo sofrer, yo me voy” 79
.
Conforme Luz ficava mais à vontade com as nossas conversas ao longo da pesquisa,
outras motivações foram reveladas. Resumiu uma série de histórias de traição e violência
75
“Depois já não quis ficar lá. Tinha que sair, porque não tinha mais ninguém ali” (Tradução da autora). 76
Em 2017, um real corresponde a 2,2 bolivianos. De acordo com o website preciosmundi.com, o preço do
transporte na Bolívia é de 2 bolivianos e uma refeição em um restaurante barato sairia no valor de 24 bolivianos. 77
“Na cidade vi que não teria casa” (Tradução da autora). 78
“Vou ir embora daqui. Sem conhecer, fui à Argentina, peguei meus filhos e me fui” (Tradução da autora). 79
“Senti raiva, porque estava fazendo meus filhos sofrerem. Eu me vou” (Tradução da autora).
63
envolvendo parentes próximos em Caranavi da seguinte forma: Pueblo pequeno, infierno
grande (...). No quiero que mismo ambiente mis filhos crezcan, por eso prefiero ir longe. Me
dicem mis hermanos: vos es la única que está lejos. ¿Por que?’. Yo les digo: ‘voy a volver...’.
Pero no tengo volundad. Talvez a outro pais, pero cerca de ellos, no” 80
.
Quando vivia em La Paz, dividiu a moradia com sua irmã, com quem teve desavenças
em razão do mal tratamento dirigido por ela a seus filhos. Assim como Luz, Carmen também
migrou internamente antes de sair do país. Queria terminar os estudos e entrar na universidade
e, por isso, foi morar com a tia em Santa Cruz. Depois de um ano, sua tia expulsou-a da casa,
deixando sua mala e seus materiais escolares do lado de fora. Neste dia, chorou e, sem
possibilidades de ganhar dinheiro em seu país, decidiu migrar.
Por que me he salido....He pensado que en Argentina ganavan bien, porque
llegavan de allá y se compravan casa. Voy a trabajar un año y me voy a
comprar una casa. No importa donde sea, pero me voy a comprar. Pero
hasta hoy no. (...)Por eso también he venido, me dijeran: ‘en Brasil vas estar
mejor’ 81
(Carmen, entrevista realizada em 12/02/2017).
Da Argentina ao Brasil, além da expectativa de ganhar mais dinheiro, outra motivação
apareceu em sua fala:
Mis hermanos también ha comenzado a rechaçar mi hijo diciendo que era
mudo, zonzo, todo eso. (...) Yo me vine por mi volundad, ya no quería que
rechazaran a mi hijo en Argentina. Y en Bolivia también, le he llevado y él
no hablaba, todos decían que yo tenía un hijo zonzo. Yo me sentía mal,
quiero irme lejos de aqui 82
(Carmen, entrevista realizada em 29/06/2017).
Durante muito tempo, as mulheres foram excluídas dos estudos migratórios que
envolvem questões como mobilidade humana, trabalho e autonomia. Segundo a socióloga
Ana Inés Barral, as mulheres dificilmente eram reportadas enquanto "verdadeiras imigrantes",
uma vez que ao "ser migrante" sempre foi vinculada a ideia de vontade e de inserção no
mundo produtivo, características historicamente desvinculadas das mulheres (2011, p. 756). A
explicação para a mobilidade da mulher esteve relacionada à reunificação familiar e restrita à
esfera privada, ao passo que o homem era visto como aquele que migra com o objetivo de
trabalhar. A elas, caberia o papel de "família do imigrante", esposa, mãe e responsável pela
80
“Povoado pequeno, inferno grande. (...) Não quero que meus filhos cresçam no mesmo ambiente, por isso
prefiro ir logo. Dizem-me meus irmãos: ‘você é a única que está longe. Por que?’Eu lhes digo: ‘vou voltar’...
Mas não tenho vontade. Talvez em outro país, mas perto deles não” (Tradução da autora). 81
“Por que sai... Pensei que na Argentina ganhava bem, porque chegavam de lá e compravam casa. Vou trabalhar
um ano e vou comprar uma casa. Não importa onde seja, mas vou comprar. Mas, até agora não... Por isso
também vim, me disseram: ‘no Brasil vai estar melhor’” (Tradução da autora). 82“Meus irmãos também começaram a rechaçar meu filho, dizendo que era mudo, sonso, tudo isso. (...) Eu vim
por minha vontade, já não queria que rechaçassem meu filho na Argentina. E na Bolívia também, o levei e ele
não falava, todos diziam que eu tinha um filho sonso. Eu me sentia mal, queria ir longe daqui” (Tradução da
autora).
64
“manutenção das práticas culturais do país de origem dentro do espaço doméstico, por meio
do uso da língua nativa, da culinária, do uso das vestimentas” (PIZARRO, 2003 apud
ALMEIDA, 2014, p. 125).
De acordo com Stephanie Nawyn (2010), a incorporação e o amadurecimento do
gênero nas análises migratórias ocorreram de forma gradual. Inicialmente, foi pensado
enquanto uma estratégia individual: tratava-se de uma variável binária que marcava a
diferença entre homens e mulheres, “mais um elemento”, como a idade e o status civil. Essa
fase das pesquisas foi apelidada de add and stir, “adicionar e mexer” a variável mulher. No
segundo momento, em meados dos anos 1980, ao invés da comparação entre os sexos, as
teorias passaram a pensar a diferença entre homens e mulheres nas migrações relacionadas ao
status subordinado da mulher nas diversas instâncias da vida social. Desse modo, as
experiências das migrantes foram inseridas dentro de um sistema mais amplo de relações
sociais de sexo que perpassava a casa, o trabalho, e as culturas de forma geral. Destaque para
o artigo Birds of Passage are also Women83
(1984), de Mirjana Morokvasic.
Mais recentemente, os estudos passaram a pensar o gênero enquanto um elemento
constitutivo da migração, focando não apenas na mulher, mas na experiência das pessoas
enquanto portadores de gênero. Essa reflexão leva em conta a maneira pela qual o gênero
permeia as práticas, identidades e instituições relacionadas ao fenômeno migratório
(NAWYN, 2010, p.750). Esta dimensão passou a constituir um “conjunto de relações sociais
que organizam os padrões migratórios” (HONDAGNEU-SOTELO, 1994 apud MAGLIANO,
2008, p. 9, tradução da autora) e trouxe novos ângulos de observação para as motivações, o
planejamento migratório, a condição de saída, a inserção laboral, entre outros aspectos.
No que se refere à propensão à saída do país de origem, as sociólogas Monica Boyd e
Elizabeth Grieco (2003) demonstraram que as relações, papéis e hierarquias de gênero
influenciam mulheres e homens produzindo diferentes resultados nas migrações. Segundo
elas, informação e dinheiro para realização da empreitada são elementos que contribuem para
uma tomada de decisão autônoma. Mas, conforme veremos no item a seguir, apesar da
ausência de renda ser maior entre as mulheres84
, o fato de ter ou não recursos financeiros
próprios não pareceu ser um elemento primordial para as trabalhadoras, visto que muitas
obtêm empréstimos com o próprio dono da oficina para realizar a viagem.
83
Pássaros migratórios também são mulheres (Tradução da autora). 84
Os dados do Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e do Caribe apontam que, em 2013, 30%
das mulheres bolivianas na área urbana não possuíam renda própria e entre os homens esse percentual caia para
8,1%. No mesmo ano, na área rural a porcentagem aumenta para 46,8% entre as mulheres e 11,6% entre os
homens. Disponível em: < http://oig.cepal.org/pt/paises/6/profile>. Acesso em: 12/09/2017.
65
A economista Irene Moltó (2011) apontou que, ao viajarem sozinhas, é provável que
as mulheres sejam estigmatizadas por abandono materno ou culpabilizadas por
desestruturação familiar, por exemplo85
. Barral (2011) percebeu também uma diferença
intransferível entre os sexos quando homens e mulheres se deslocavam: enquanto eles
elaboravam sua trajetória como uma viagem, sinônimo de liberdade e aventura, "nenhuma
mulher, independentemente de seu estado civil ou idade, ao migrar se permite enunciar sua
migração de modo aventureiro” (2011, p. 768, tradução da autora).
Na pesquisa em questão, não entrevistamos homens86
e nenhuma das cinco mulheres
demonstrou sentimentos positivos ou elementos de aventura ao migrar. Conforme
observamos, Luz e Carmen migraram sozinhas, por sua conta e risco, contrariando a antiga
perspectiva migratória da mulher dependente. Zelaide e Sara migraram com seus maridos.
Para Sara, “aquela época foi muito ruim, como mãe, como mulher. Deixei minha filha, meus
pais (...). Aquela transição foi muito ruim. Pensei: ‘o que tenho que fazer para cuidar da minha
filha e dos meus pais? ’. Aí deixei lá tudo”. Levou apenas uma mala com roupa e cobertor e
deixou a filha de um ano e meio com seus pais.
Lourdes foi a única que migrou com o objetivo de reunificação familiar e a decisão de
ir partiu dela. Seu marido foi antes, suas idas à Argentina dependiam da demanda por serviços
neste país. A boliviana, no entanto, ouviu histórias de pessoas que migravam e formavam
outra família. Desconfiada, ela resolveu ir ao encontro de seu marido. Apesar disso, “no
estaba tan animada porque tinha medo de meus filhos, porque estavam sendo jovens, né? E
cuando uno está jovem às vezes va al lado errado” 87
.
Nos próximos itens, veremos como foi o processo migratório vivido pelas cinco
narradoras-entrevistadas e como o gênero condicionou suas experiências de trabalho.
2.2 Primeira parada: Argentina. Segunda parada: Brasil
De acordo com o último censo do país, os principais destinos migratórios dos
bolivianos são Argentina, Brasil, Chile, Espanha e Estados Unidos. A Argentina é a líder entre
85
Outra diferença reside no retorno das mulheres. Na pesquisa de camponesas do Vale do Jequitinhonha que
migram para São Paulo, Moraes Silva afirmou que seu retorno é marcado por discriminação “Ao questionarem a
submissão vivenciada pelas demais mulheres do vale do Jequitinhonha, colocam em xeque a organização social
de gênero existente” (MORAES SILVA, 2005, p.68). E, em oposição, o retorno dos homens é marcado por festa
e reencontro. 86
O único homem ouvido pela pesquisa foi o marido de Carmen. No entanto, ele não foi o foco de uma entrevista
específica. 87
“Não estava tão animada porque tinha medo de meus filhos, porque estavam jovens, né? E quando se está
jovem, às vezes vai ao caminho errado” (Tradução da autora).
66
os destinos, concentrando quase a metade dos bolivianos, seguida da Espanha e do Brasil
(INE, 2012, apud MIRANDA, 2016, p.132-142).
No que se refere às recentes migrações bolivianas aos países do Cone Sul da América
Latina, é possível observar um padrão em que a mobilidade tem início ainda na Bolívia, da
área rural para a urbana, e, posteriormente, a migração vai em direção às metrópoles e grandes
centros urbanos como Buenos Aires e São Paulo (RIZEK et al., 2010, p.114). O perfil da
população imigrante que chega nestas cidades é parecido: origem andina, jovem, com pouca
qualificação profissional. O padrão migratório foi confirmado durante as entrevistas. Luz,
Carmen e Zelaide vieram de áreas rurais da Bolívia – Caranavi, Santiago de Huata e Nor
Yungas, respectivamente – e migraram para a área urbana antes de sair do país. Além de
migrarem internamente, três delas – Luz, Carmen e Lourdes – foram para Argentina antes de
se “fixarem” no Brasil.
A migração dos bolivianos para a Argentina é mais antiga se comparada àquela para o
Brasil. Naquele país, Rizek et al. observaram a existência de uma dimensão organizativa e de
uma presença nos espaços públicos maior. Além disso, existem outras possibilidades de
inserção no mercado de trabalho para além da costura, como no trabalho doméstico, na
produção de hortifrutigranjeiros e na construção civil (2010, p. 124). Segundo Sayad (1998,
p.54), sob o ponto de vista da sociedade de destino, a justificativa para o estabelecimento dos
migrantes encontra-se no trabalho, como se a necessidade de migrar tenha unicamente esta
razão de ser. E mais: não se trata de qualquer trabalho. Há um ‘mercado de trabalho’ para essa
população, que, no caso de São Paulo, é a costura.
Lourdes contou que aprendeu a costurar na Argentina, porém, no país, trabalhava não
com roupas, mas na produção de pelúcia. Sua jornada tinha início às 7h e durava até às 22h,
“igual à costura”, acrescentou. Quando o peso argentino desvalorizou, pensaram em ir ao
Chile ou ao Brasil, migrações limítrofes, cujo custo de deslocamento é menor. A iniciativa foi
do marido: “Primeiro ele foi para o Brasil olhar. Depois ele voltou e falou: ‘ali é melhor,
vamos lá?’”.
Carmen chegou a Buenos Aires com a promessa de ganhar cem dólares por mês, para
trabalhar com um boliviano em uma barraca de frutas. Dormia duas horas por noite, ia buscar
as frutas de madrugada, carregava sacos, entregava frutas para os clientes e fechava a barraca
à noite. Ficou sem receber por dois meses para arcar com os custos da viagem. Depois de ser
humilhada pelo seu patrão, decidiu sair. Foi trabalhar em oficinas de costura, onde conheceu
seu marido, também boliviano, e teve o primeiro filho. Depois de quatros anos “sem juntar
capital forte para comprar um imóvel”, decidiram migrar para o Brasil.
67
Cem dólares foi também o valor prometido à Luz. Ainda na Bolívia, ela foi à procura
de alguém para levá-la à Argentina. Conheceu um dono de oficina que prometeu pagar sua
passagem e de seus filhos e empregá-la. “Bonito me han hablado” 88
. Mesmo sem saber
costurar, receberia salário, casa e comida e, inicialmente, ficaria na função de cozinheira e de
ajudante de costura. Ao chegar lá, não foi como esperava. Passou seis meses sem receber
salário e o patrão a fazia trabalhar até de madrugada. Depois de um ano, conheceu bolivianos
que indicaram outras formas de ganhar dinheiro, prestando serviço como garçonete em festas,
matrimônios e batizados. Só dessa forma, juntou recursos para retornar à Bolívia, onde
recebeu uma proposta de emprego do seu primo para trabalhar na oficina dele no Brasil. Mais
uma vez, a promessa era a de ganhar um salário maior.
A migração para a costura esteve ligada a redes familiares nos anos 1990 e, na década
seguinte, adquiriria uma dinâmica migratória distinta a partir das chamadas redes de
contratação. Com o agravamento da crise social na Bolívia e com a maior demanda de mão de
obra no setor têxtil, tais redes “se profissionalizaram”. Passaram, por exemplo, a anunciar as
vagas de emprego em áreas rurais da Bolívia em estações de rádio. Foi desse modo que as
narradoras-entrevistadas ficaram sabendo da possibilidade de migrar. Quatro das cinco
bolivianas que acompanhamos chegaram a Buenos Aires e São Paulo através das redes de
contratação.
As redes são uma forma específica de sociabilidade em que o migrante recebe auxílio
financeiro para realizar a viagem e para trabalhar. Em troca, oferecem o “derecho de piso”,
que de acordo com a socióloga Patrícia Freitas pode ser compreendido como:
Uma espécie de relação de reciprocidade diferida, em que: o dono da oficina
de costura, de mesma nacionalidade, auxilia primeiro (com o oferecimento
do trabalho, migração, alimentação e moradia), o costureiro ou aprendiz
retribui depois, ao chegar à cidade de destino, com sua fidelidade e com seu
trabalho na oficina de costura daquele que o auxiliou (FREITAS, 2014, p.
240).
De acordo com relatório da CPI do trabalho escravo:
Por terem laços familiares ou pela própria condição de conterrâneos de seus
empregadores, os novatos sentem-se constrangidos em protestar quanto à sua
condição. Mais do que isso, sentem-se gratos àquele que lhes ofereceu
trabalho e moradia, e têm a ideia de que lhes devem, mais do que dinheiro,
fidelidade (SÃO PAULO, 2006, p.25).
Segundo Miranda (2016), esta é uma prática boliviana surgida antes da
industrialização, quando as pessoas, normalmente jovens, saíam do campo para a cidade com
o objetivo de aprender um ofício com algum parente. Tratava-se de um rito de passagem 88
“Me falaram bonito” (Tradução da autora).
68
próprio da dinâmica mestre-aprendiz, um período de aprendizagem caracterizado, entre outros
fatores, pela falta remuneração. Para a socióloga boliviana Cusicanqui esta prática, mesmo
quando aplicada às migrações internacionais, é uma instituição de dominação legítima, que
exige um nível de sacrifício, mesmo quando transposta ao universo da costura.
O Colectivo Situaciones, grupo de bolivianos costureiros na Argentina questionou esta
posição. De acordo com eles, corre-se o risco de construir uma “justificativa culturalista” à
exploração vigente nas oficinas (COLECTIVO SINBIOSIS CULTURAL; COLECTIVO
SITUACIONES, 2010, p.12). Miranda apontou ainda que o “derecho de piso” neste contexto
pode ser ativado independente da experiência prévia, sempre que o migrante desejar retornar
ao trabalho na costura e necessitar de apoio financeiro para o traslado (2016, p.263-264).
Em relação ao trajeto para chegar a São Paulo, a viagem de ônibus de La Paz a Santa
Cruz de La Sierra é geralmente realizada em transportes irregulares com o preço menor e dura
aproximadamente 15 horas. De lá, o percurso mais adotado pelos bolivianos é via Corumbá,
no Mato Grosso do Sul. Assim o fizeram, Lourdes, Sara e Luz. A última levou sete dias para
realizar o trajeto devido a imprevistos. Parte do grupo trazido por seu primo teve problemas
ao passar pela Polícia Federal em Corumbá e foram obrigados a esperar na cidade-fronteira
até que um advogado resolvesse o caso. Além de Corumbá, outras portas de entradas em
terras brasileiras são as cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim, ambas em Rondônia. Outra
opção é, a partir de Santa Cruz, atravessar o Paraguai e ingressar por Foz do Iguaçu, onde o
controle migratório é menos rígido (MIRANDA, 2016, p.144). Assim o fez Zelaide: “Él
dueño nos ha mandando pasaje hasta la frontera. En La Paz había una flota, transcadena,
por Paraguay hemos entrado” 89
.
Ao chegarem a São Paulo, os imigrantes circulam pouco pela cidade, seja por medo de
se perder na metrópole, da violência, ou de serem detidos pela polícia, principalmente quando
se encontram em situação irregular. Na maioria dos casos, esse medo é reforçado pelo dono da
oficina, figura que não tem condições muito distintas das de seus funcionários. Na primeira
oficina em que trabalhou, Zelaide lavava, cozinhava e “poco a poco iba aprendiendo a
costurar. Al salário nos daba 300 reales y tampoco nos dejaba salir a la calle” 90
. No caso de
Carmen, “llegando de Argentina, un año sin salir. Ni siquiera he subido en ônibus. No
sabíamos hablar tampoco queríamos aprender. Era solo por un año venir y irmos a Bolivia”
89
“O dono nos mandou passagem até a fronteira. Em La Paz havia uma frota [da empresa] Transcadena.Entramos
pelo Paraguai” (Tradução da autora). 90
“Pouco a pouco fui aprendendo a costurar. De salário, nos dava 300 reais e tampouco deixava a gente sair à
rua” (Tradução da autora).
69
91. Luz, após cinco anos na cidade, afirmou: “no consigo andar de metrô. La línea yo no sé
donde tem que descer, puedo perderme...” 92
. No item seguinte, entraremos nas oficinas.
2.3 Trabalho nas oficinas: Me canso, me duele, me aguanto, tengo que trabajar ¿Qué voy
hacer?
Em São Paulo, a presença de imigrantes na costura não é um fenômeno atual.
Libaneses, sírios, judeus e coreanos antecederam os bolivianos no ramo têxtil. Inicialmente, o
desenvolvimento desta indústria na RMSP se deu por meio das migrantes brasileiras vindas da
região Nordeste. De acordo com o geógrafo Sylvain Souchaud, o “aumento e consolidação da
presença dos migrantes internacionais na confecção (...) é consequência de uma chamada de
mão de obra e da reestruturação produtiva” (SOUCHAUD, 2012, p. 82). As brasileiras
passaram a procurar melhores salários no setor de serviços e, paralelamente, ampliou-se o
número de oficinas de pequeno porte com a fragmentação e externalização da produção,
apresentadas no Capítulo 1 desta dissertação.
Segundo o sociólogo Tiago Côrtes, nos anos 1970 e 1980, os coreanos eram os
principais responsáveis pela confecção de roupas em empreendimentos familiares. Com
jornadas intensas, em locais que combinavam moradia e trabalho, tiveram uma ascensão
coletiva em pouco tempo. Passaram a contratar coreanos recém-chegados e compraram as
lojas de judeus, seus antigos patrões, dedicando-se à comercialização e ao design de roupas
(CÔRTES, 2013, p. 108). Miranda afirmou que a mobilidade social do ramo têxtil segue uma
dinâmica em que grupos étnicos passam o bastão a outros (2016, p. 63). O grupo de
bolivianos chegou posteriormente e reproduziu a lógica vigente entre os coreanos. No início,
eram contratados pelos coreanos. Hoje, são donos de diversas oficinas da cidade. Isso se deu
não somente com bolivianos, mas também com outros imigrantes latino-americanos, como
peruanos e paraguaios.
Diferentemente do perfil associativo dos coreanos, “a sociabilidade intragrupo entre
bolivianos-andinos não conformou cooperativas capazes de fortalecer o negócio” (2016, p.
64). O risco de uma oficina oferecer o mesmo trabalho a preços menores aumenta a
competição entre as oficinas bolivianas. Lourdes afirmou que os bolivianos no Brasil não são
unidos: “Eu perguntava como faz para formalizar a oficina, e não explicam bem (...) tentam
91
“Chegando da Argentina, um ano sem sair. Nem sequer subi no ônibus. Não sabíamos falar e tampouco
queríamos aprender. Era parar vir só por um ano e irmos a Bolívia” (Tradução da autora). 92
“Não consigo andar de metrô. A linha, eu não sei onde tem que descer, posso me perder” (Tradução da autora).
70
que você tenha medo”.
É interessante notar que a entrada e a ascensão de coreanos e bolivianos no setor têxtil
não ocorreram apenas no Brasil. Na Argentina, as oficinas também eram dirigidas por
coreanos passaram de donos de oficina a fabricantes e, em alguns casos, ajudaram os
bolivianos a montar suas próprias oficinas (COLECTIVO SIMBIOSIS CULTURAL;
COLECTIVO SITUACIONES, 2010, p. 27). As narradoras-entrevistadas afirmaram que as
oficinas dos bolivianos seguem o mesmo “modelo” nos dois países: “El trabajo en Argentina
y el trabajo en Brasil es la misma cosa. Pagamento sí é diferente. Aqui no Brasil ganha mais.
Pero trabajo todo misma cosa. Cuando trabajas con boliviano te dan comida, te dan casa y tu
solo costuras” 93
.
Nestas oficinas a vigência do sistema de “cama adentro” (ou “cama caliente” como é
conhecido na Argentina), em que local de moradia e trabalho se misturam, é a regra. Para os
empregadores é uma forma de baratear o custo e controlar a força de trabalho. “Todos os
aspectos de suas vidas privadas eram controlados”, conforme foi constatado em relatório de
operação de fiscalização94
. De acordo com Luz:
Necesitamos trabajar. Pero algunos bolivianos donos de oficinas exageram.
Sua oficina no está bien apta para trabajar, así mismo enchem de gente.
Traem aquellos de Bolivia. Aquel que vem de Bolivia no reclaman de nada,
solo quieren trabajar. A veces, incluso, le fazem dormir en el suelo
(Entrevista realizada em 25/06/2017).
Apesar disso, o sistema é bem vindo aos trabalhadores recém-chegados, pois nem sempre
estão regularizados e não é simples formalizar um contrato de aluguel. E o valor cobrado para
morar na oficina é menor do que o de um espaço alugado de forma independente. Outra
característica do sistema “cama adentro” é o fornecimento de comida pelo dono da oficina,
com exceção do jantar do sábado e das refeições do domingo, responsabilidade dos
trabalhadores. Isso representa um gasto considerável, especialmente àqueles que têm filhos.
Luz, ao referir-se à sua amiga que mora e trabalha no mesmo local, diz que convém para
quem está sozinho e não tem filhos, pois não é necessário pagar aluguel nem cozinhar.
Se uma prenda de la loja cobra, digamos, sete reais. Ai ele paga la mitad.
Porque la mitad saca para el aluguel, otro tanto saca para água, luz y otro
tanto para la comida. Entonces al funcionário que ha costurado la prenda
toda completa, ele dá três reales (...). Se você trabajas desde 7h hasta 1h
saca mais. Todo para vos, porque no saca para comida, nada... Eu que estoy
ganando del brasilero 1.300 reales tiene que salir para comida, aluguel...yá
93
“O trabalho na Argentina e o trabalho no Brasil é a mesma coisa. Pagamento, sim, é diferente. Aqui no Brasil
ganha mais. Mas, trabalho tudo a mesma coisa. Quando trabalha para boliviano, te dão comida, te dão casa e
você só costura” (Tradução da autora). 94
Informação disponível na reportagem: < http://reporterbrasil.org.br/2014/08/fiscalizacao-resgata-haitianos-
escravizados-em-oficina-de-costura-em-sao-paulo/ >. Acesso em 21 ago. 2017.
71
no quedo con nada 95
(Luz, entrevista realizada em 05/09/2017).
Antes de adentrarmos à experiência das narradoras-entrevistadas, passamos a uma
breve explicação da organização interna das oficinas de costura: em termos hierárquicos, o
posto mais baixo é o de cozinheira96
, seguido do de ajudante de costura – recém-chegados que
estão na condição de aprendiz. São responsáveis por cortar fios, colocar linhas nas máquinas,
arrumar defeitos e dobrar roupas – de costureiros – nas diferentes máquinas de costura –, de
encarregado97
– que se ocupa de trazer costureiros para oficina e de repartir o serviço e valor
entre eles – e, por último, o de dono da oficina – que também costura, é o proprietário das
máquinas, cuida para que não faltem alimentos para a preparação da comida de seus
“funcionários” e da compra dos fios e equipamentos necessários para a costura. Além disso, é
quem cuida da contabilidade da oficina.
Em relação às máquinas98
, destacamos os quatro tipos comumente presentes nas
oficinas: reta, overloque, interloque e galoneira, sendo que as duas primeiras são mais baratas.
Cada qual possui uma funcionalidade distinta. A máquina reta industrial é usada para a
produção de grande quantidade de peças de tecido plano99
. É resistente à costura de materiais
pesados como jeans, couro e lona e a ela são acoplados diversos assessórios, como colocador
de elástico, zíperes etc. A reta junta tecidos, faz a união, golas, barras, mangas. Como só faz o
ponto reto, necessita de outras máquinas para o acabamento, como overloque e galoneira. A
galoneira só faz barras. “São como duas costuras”, explicou Quilla. A overloque industrial
serve para acabamentos em tecidos planos e fechamentos de tecido de malha. Quando os
costureiros trabalham nesta máquina, “precisam agilizar e por isso sentem dor nas costas”,
relatou Luz. A máquina interloque faz um tipo costura de overloque e de reta. Como diminui a
necessidade do uso da overloque, acelera o processo de produção100
.
Segundo Quilla, geralmente, as roupas de malha costuradas com uma interloque
precisariam passar por outra máquina, mas como os bolivianos vendem as peças a um preço
baixo, não compensa fazer outra costura. A malha é um tecido barato e bastante vendido na
95
“Se uma peça da loja cobra, digamos, sete reais. Ai ele paga a metade. Porque metade tira para o aluguel, outro
tanto tira para água, luz e outro tanto para a comida. Então ao funcionário que costurou toda a peça completa, ele
dá três reais (...). Se você trabalha das 7h até 1h, tira mais. Tudo para você, porque não tira para comida, nada...
Eu que estou ganhando do brasileiro 1.300 reais tenho que tirar para comida, aluguel...Já não fico com nada”
(Tradução da autora). 96
Existente somente nas oficinas maiores. 97
Existente somente nas oficinas maiores. 98
Ver anexo C. 99
De acordo com o blog Audaces: “Tecidos Planos são resultantes do entrelaçamento de dois conjuntos de fios
que se cruzam em ângulo reto”. Disponível em:< http://www.audaces.com/tipos-de-tecido-plano-x-tecido-malha/
>. Acesso em: 12 mar. 2016. Ver anexo C. 100
Parágrafo produzido de acordo com a informação das entrevistadas e do blog
<https://blogsigbolfashion.com/2014/05/28/tipos-de-maquinas-e-suas-funcoes/>. Acesso em: 05 set. 2017.
72
Feirinha da Madrugada. O valor pago por peça depende da máquina a ser “pilotada”. Na
máquina reta, o valor é mais alto do que o da overloque, pois aquela é mais difícil que esta
para fazer a montagem da roupa.
A rotina de trabalho das costureiras obedece a um padrão: há três intervalos na jornada
diária: café, na parte da manhã; almoço e chá na parte da tarde. O intervalo para o café e o chá
varia de oito a 15 minutos e, para o almoço, uma hora. No restante do tempo, todos
permanecem sentados. As narradoras-entrevistadas relataram que há pouca conversa no
ambiente de trabalho. Esse fato dialoga com o que Miranda apontou em sua etnografia nas
oficinas de costura: “a quantidade de tempo compartilhando o mesmo espaço não refletia na
criação de laços pessoais entre os costureiros” (2016, p.94, tradução da autora). Outro
elemento da jornada de trabalho é a presença do rádio101
sintonizado, pelo qual se escuta
música boliviana em alto volume.
O pagamento por peça é mais comum nas oficinas. Seja quando a produção é em
cadeia – geralmente com casais responsáveis por costurar toda a peça –, ou quando uma
mesma peça é feita por diversos costureiros – mais comum entre os solteiros (MIRANDA,
2017, p. 209, tradução da autora). Como o valor recebido por peça é irrisório, há uma
motivação para o trabalho vinculada à oportunidade de juntar o máximo de recursos possível.
Por isso, além de intensivas as jornadas são extensivas. Apenas Luz afirmou receber salário
fixo mensal. Segundo ela, que é viúva e mãe de dois filhos, isso lhe garante mais segurança.
Se o pagamento é por peça, há sempre o risco de se receber menos quando a confecção de
determinada roupa é mais complexa. Vive-se na esfera da incerteza, pois há dias que rendem
mais, e outros, menos.
Até o presente momento, Luz passou por três oficinas de costura em São Paulo. Na
primeira, o dono da oficina onde trabalhava e morava era seu primo, relação de parentesco
que lhe causou prejuízo. Segundo seu relato, nesta oficina havia, além dela e dos filhos, dois
casais e três solteiros. Apesar da experiência prévia adquirida na Argentina, seu primo
ofereceu-lhe trabalho na limpeza e na cozinha. A princípio, não achou ruim, pois poderia
atender melhor aos seus filhos, ganhava um salário fixo e só trabalhava aos sábados até meio
dia. Ela nos contou que, além de preparar a comida e deixar tudo limpo, era a responsável
pelas compras. O excesso de atividades fazia com que se sentisse sobrecarregada. Somado a
isso, quando seu primo estava com prazo apertado para a entrega das encomendas, ela ficava
com ele até amanhecer, ajudando a costurar, dobrar, cortar fios e contar peças. Apesar do
101
Existem diversas rádios-web produzidas por bolivianos.
73
trabalho extra, no dia seguinte, era obrigada a acordar no mesmo horário. Nunca foi tratada
como parte da família, confessou. Tampouco recebeu o salário prometido. Trabalhou por três
anos com ele sem receber, vivia com “vales de 20 e 50 reais” que ele dava para ela ir à feira.
“Yo le decía tengo mis hijos y tengo derecho porque estoy trabajando también (...) mi
pensamiento era salirme siempre, pero salirme con el dinero que él me debe a mí” 102
.
Quando seu primo faliu103
, foram para a oficina de uma coreana, onde Luz cozinhava
sozinha para 30 pessoas. Passados alguns meses, subiu para o posto de costureira. No início,
era registrada, mas depois, a coreana manteve somente os funcionários que trabalhavam por
peça. Certa vez, indagou à dona sobre o aumento do piso salarial104 das costureiras. Recebeu
como resposta que, caso não estivesse satisfeita, poderia procurar outro trabalho. Por fim, foi
para a terceira oficina, onde está neste momento. A mudança foi motivada pela promessa de
ter carteira de trabalho assinada, de receber por hora extra trabalhada e de ganhar cesta básica
com a condição de que chegasse pontualmente. Já se passaram dois meses e a única promessa
cumprida foi a da hora extra. Os donos são um casal, um brasileiro e uma paraguaia, que,
segundo Luz, trabalham tanto quanto os outros seis costureiros. Junto a ela, seis bolivianos
costuram das 7h às 19h, em uma garagem com porta trancada. O sistema é mais rígido que o
da oficina anterior. Não podem usar o celular nem demorar no banheiro, “não oferecem
comida e não tem comedor” 105
. Os costureiros precisam levar marmita, que o dono esquenta
em sua casa, localizada no andar de cima. Eles afastam as máquinas e comem. “É diferente da
coreana, mas não falta trabalho”.
Cabe notar que, das cinco narradoras-entrevistadas, apenas Luz já teve carteira de
trabalho assinada. Mesmo quando os migrantes já estão regularizados, há pouco interesse em
inserirem-se em empregos regulares com benefícios previstos em lei (CÔRTES, apud
MIRANDA, 2016, p. 210). Nas palavras da boliviana Sara: “Se eu quiser trabalhar registrada,
não é igual, tiro 1.500 reais. Com costura ganho 4 mil. Qual compensa? Trabalhar mais ou
ganhar férias e benefícios?” (Sara, entrevista realizada em 05/07/2017).
Enquanto a maioria dos imigrantes que chegam ao Brasil ou à Argentina não sabe
costurar, Sara fez curso técnico de modelagem e já trabalhava com costura na Bolívia. Ela foi
102
“Eu dizia a ele: ‘tenho meus filhos e tenho direito, porque estou trabalhando também’. Meu pensamento era
sair sempre, mas sair com o dinheiro que ele me devia” (Tradução da autora). 103
A falência é comum nestas pequenas oficinas, que abrem e fecham com facilidade sem impactos para as
grandes lojas, ou os agentes que dirigem a Rede Global de Produção (RGP). Ver mais detalhes no Capítulo 1
desta dissertação. 104
O piso salarial informado pelo Sindicato das Costureiras em maio de 2017 era de 1.085,20 reais por mês para
trabalhadores não qualificados. 105
Refeitório (Tradução da autora).
74
a única que financiou a própria viagem. Segundo ela, no seu primeiro local de trabalho no
Brasil, passou os piores quatro meses de sua vida. Ao chegar à oficina, localizada na Vila
Maria, bairro da Zona Norte de São Paulo, “a dona disse: aqui eu pago por peça, 25 centavos
por calça... Eu pensei, nossa, quanto que eu ganho no mês? Preciso fazer muito”. Trabalhava
das 7h até meia-noite, de segunda a sábado. Domingo era opcional, mas como “eu vim pra
trabalhar, não vim pra descansar nem de férias, trabalhava de domingo a domingo”. Dormia
em um quartinho ao lado da cozinha e suas saídas eram controladas.
Sara ficou um mês inteiro sem sair da oficina e sem conseguir dar notícias aos
parentes na Bolívia. Dividia o espaço com outros quatro bolivianos, todos parentes da
proprietária e nascidos no interior do Departamento de La Paz. Contou-nos que a filha da
dona perdera o dedo na oficina, mas não chegou a ser levada ao hospital na ocasião. Em outro
momento, Sara costurou seu dedo: “Passei mal [ao costurar o dedo] e ela não me levou para o
médico, nada (...) a sua oficina é mais valiosa que minha vida...”, relembrou Sara, para
acrescentar em seguida:
Eu soube que os primos da dona também não recebiam. Ela tinha trazido os
primos de lá para trabalhar com a condição de que eles trabalhassem por um
ano e depois ela acertava um ano com os pais. Durante esse tempo, ela só
correria gasto de higiene pessoal, e a outra menina estava grávida (...). Lá eu
fui explorada, né? A comida era muito ruim... O primeiro mês que trabalhei
com meu marido a gente tirou 120 reais só, por um mês de trabalho, quantas
horas por dia, pensa! (...) Ela intimidava a gente, falava que a gente não
podia sair, ela não me deixava, fechava a porta com cadeado, dizia que a
polícia me pega e me leva para fronteira (Sara, entrevista realizada em
05/07/2017).
No segundo local de trabalho, na favela Parque Novo Mundo, também na Zona Norte,
ficou por oito meses. “Era a mesma coisa o trabalho, só que não era até meia-noite, era até
22h e o valor da peça era um real, já melhorou”. Neste local, trabalhavam quatro pessoas em
cadeia, ou seja, cada um ficava responsável por uma parte de uma mesma peça. Mas o casal
dono das máquinas brigava e, a cada nova discussão, a mulher parava de cozinhar e trabalhar.
“Se querem brigar, tudo bem, mas eu vim aqui para trabalhar, tenho uma filha para manter,
tenho que mandar dinheiro para Bolívia”. Depois de um tempo, recebeu proposta de uma
amiga da Bolívia e foi para o Bom Retiro, centro da cidade. Não havia um quarto só para Sara
e o marido, então, eles dividiam o espaço com outras oito pessoas, dois casais e quatro
solteiros. Lá pegou rinite, mas ganhou bem, cada peça lhe rendia dois reais e 20 centavos.
Produzia as peças em cadeia com seu marido. “Ele fazia bolsos, gola e eu as costas, forro...”.
Na Kantuta, conheceu um brasileiro que ofereceu dois reais e 50 centavos por peça, em Santo
André, na região do ABC paulista. “Alguém falou para ele [o brasileiro] que ia ganhar bem,
75
ele colocou as máquinas, não sabia nada de costura, falou para mãe cozinhar e disse: ‘aqui é o
serviço, se vira’”.
A experiência de Lourdes foi diferente quando comparada à das outras mulheres, pois
ao chegar ao Brasil, não ficou na cidade de São Paulo. Ela veio em 2013, com dois de seus
quatro filhos, e foi direto para Cajamar, município da RMSP, localizado a 40 km da capital.
Na primeira oficina em que trabalhou, tinham 12 pessoas, todas bolivianas. A dona cedeu um
quarto para ela, o marido e os dois filhos. O mais velho, de 18 anos, também costurava. Todo
o primeiro mês de trabalho da família foi somente para arcar com os custos da viagem. “Eu
acho que não era certo, né! (...) De três pessoas que estávamos trabalhando lá, era muita
coisa”. Conheceram os donos da segunda oficina em uma feira de frutas. Ali, contaram que
não estavam recebendo e que procuravam outro lugar para trabalhar.
A segunda oficina, também em Cajamar, era maior, com 30 costureiros (maioria
casais) provenientes de vários lugares da Bolívia. A casa “era muito longe, donde 106
ninguém
podia olhar que estavam trabalhando aí pessoas”. As condições eram “do mesmo jeito
também, primeiro momento eles te convencem com tudo... Hay que fazer así 107
... disse que ia
me ajudar com documentos”. Enquanto estava lá, buscou os outros dois filhos que tinham
permanecido na Bolívia. No mês “nós três fizemos 700 reais e no final de semana você tem
que gastar do seu dinero 108
, como eu tinha meus filhos, não alcançava109
”. A terceira tentativa
da família foi em Carapicuíba, a 30 km da capital. O contato para este trabalho foi feito no
primeiro dia em que pisaram em São Paulo, quando chegaram ao Terminal Rodoviário da
Barra Funda, Zona Oeste da cidade. “Um boliviano se acercou a meu marido e falou: ‘se você
não se der bem na oficina que vai trabalhar, me liga’”. Mudaram-se, até que viram a dona da
oficina brigar com os filhos pequenos do casal. Foram para a quarta oficina, que não pagou à
família pelo trabalho realizado. Além disso, “no podía salir 110
, só domingo”.
Assim como as outras, Carmen também foi surpreendida no primeiro local de
trabalho: “La oficinista sabía que nosostros no conocíamos Brasil y que ha hecho: ella nos ha
dado el precio más barato que habíamos ganado, menos que Argentina”111
. Ela e o marido
foram para um segundo local de trabalho e moradia, onde podiam descansar aos domingos.
106
“Onde” (Tradução da autora). 107
“Tem que fazer assim” (Tradução da autora). 108
“Dinheiro” (Tradução da autora). 109
“Não era suficiente” (Tradução da autora). 110
“Não podia sair” (Tradução da autora). 111
“A oficinista [dona de oficina] sabia que a gente não conhecia o Brasil. O que fez: Ela nos deu o preço mais
barato que já havíamos ganhado, menor do que na Argentina (Tradução da autora)”.
76
Nenhuma das narradoras-entrevistadas recebeu o valor combinado oralmente no início
de suas empreitadas, nem foram cumpridas as promessas de ajuda com a regularização no
Brasil. Mas todas elas ao mudarem de oficina conseguiram aumentar seus rendimentos apesar
do mesmo não ocorrer com as condições e o ambiente de trabalho. Do que pudemos
apreender do relato delas, as condições de trabalho ou moradia não eram priorizadas. O que é
mais levado em consideração são a quantidade de serviço e o valor recebido por peça
costurada.
2.3.1 Trabalho de mulher nas oficinas: ¡Mujer que cose, mujer que cocina, mujer
que compra!
Ribeiro (2015) verificou em sua pesquisa de campo dois tipos de oficinas: as de
grupos familiares, em que o trabalho doméstico não é remunerado e é realizado pelas
mulheres que interrompem o trabalho na costura para limpar e cozinhar; e as oficinas maiores
e mais estruturadas, onde esta função, apesar de ser a mais baixa na hierarquia da oficina, é
remunerada. Nos dois casos, tratam-se de “espaços privilegiados” para a análise da relação
entre trabalho produtivo e reprodutivo que, conforme ressaltaram as feministas francesas, são
esferas inseparáveis. Nas palavras de Nogueira: “Os dois aspectos da vida feminina,
reprodutiva e produtiva, se imbricam constantemente. Sempre que existir uma ação qualquer
em um desses polos, haverá repercussão de um sobre o outro, dada a articulação viva
existente entre as esferas do trabalho e da reprodução” (2011a, p. 50).
Inicialmente, ao indagar sobre a diferença entre o trabalho de homem e de mulher na
oficina ouvimos que era “tudo igual”. Mas, ao longo da conversa, algumas diferenças
tornaram-se visíveis. Zelaide, ao afirmar que o trabalho é o mesmo independente do sexo,
demorou alguns segundos para acrescentar:
Pero trabajo yo más que mi esposo. Tengo que cocinar, trabajar, lavar las
ropas, a veces tengo que salir al super a comprar, te llamam de la escuela,
reunión... No sé a veces que hacer, tengo que ir al hospital también (...) hago
inter [interloque], ayudo en recta. No hay descanso. Mi marido espera que
yo haga todo, es lo que no me gusta 112
(Entrevista realizada em 29/06/2017).
Carmen, que também participava da mesma conversa, acrescentou: “Todos os dias
diferenciamos a comida, ficamos pensando o que cozinhar... mulher faz tudo (...) El trabajo
112
“Mas eu trabalho mais que meu esposo. Tenho que cozinhar, trabalhar, lavar as roupas, às vezes tenho que sair
ao supermercado, te chamam da escola, reunião... Não sei às vezes o que fazer. Tenho que ir ao hospital também
(...) faço inter [interloque], ajudo na reta. Não tem descanso. Meu marido espera que eu faça tudo, isso é o que eu
não gosto” (Tradução da autora).
77
del hombre es solo costurar, buscar firma y comprar las líneas. Mas, mayoria va comprar [as
linhas] las mujeres. ¡Mujer que cose, mujer que cocina, mujer que compra!”113
.
A obrigatoriedade do trabalho doméstico se torna um elemento de desigualdade
quando os migrantes chegam sem experiência e ocupam a função de ajudantes até adquirirem
as habilidades necessárias para assumir a máquina de costura. Como as mulheres acabam por
dividir seu tempo de aprendizagem com as tarefas domésticas, demoram mais que os homens
para dominar o ofício e aumentar suas possibilidades de ganho (RIBEIRO, 2015, p. 60).
Como indicou Ribeiro, referindo-se aos princípios organizadores da divisão sexual do
trabalho de Kergoat:
A inserção inferiorizada que as mulheres têm nas oficinas de costura pode
ser lida através dos princípios de separação e hierarquia; o primeiro indica a
obrigatoriedade com relação ao trabalho doméstico e, o segundo, a limitação
que elas têm em comparação com os homens no acesso ao salário e ao
dinheiro (RIBEIRO, 2015, p. 5).
Independentemente de estarem inseridas no espaço produtivo, são elas que mantêm a
responsabilidade do trabalho reprodutivo, como pressuposto do papel da mulher, mãe e
esposa. Além disso, em levantamento realizado com bolivianas que trabalham nas oficinas,
Veiga e Galhera verificaram que as “mulheres casadas ou em união estável se dedicam
substancialmente mais às atividades da esfera reprodutiva, com trabalho não remunerado”
quando comparadas às solteiras ou divorciadas (VEIGA; GALHERA, 2016, p. 133).
Conforme discorremos na introdução,
É ilusório (...) imaginar que a mera emancipação econômica da mulher fosse
suficiente para libertá-la de todos os preconceitos que a discrimina
socialmente (...). A projeção de que a igualdade na exploração da força de
trabalho é o primeiro dos direitos do capital não se realizou em nenhuma
sociedade. A força de trabalho é diferenciada em termos de sexo e raça/etnia.
(SAFFIOTI apud GONÇALVES, 2011, p. 126).
A divisão sexual do trabalho se faz presente não apenas na inter-relação entre espaço
produtivo e reprodutivo. Também a encontramos nas atividades que giram em torno da
costura (espaço produtivo). Veiga e Galhera verificaram a separação entre atividades
consideradas “masculinas”, tais como transporte e pagamento, não realizadas por mulheres; e
outras tipicamente femininas, como o posto de trabalho doméstico remunerado (2016, p. 136).
Além do gênero, os autores apontaram que família e idade são variáveis parecem impactar na
remuneração das mulheres bolivianas. Apesar das solteiras terem mais tempo para a dedicação
113
“O trabalho do homem é só costurar, buscar empresa [para pegar serviço] e comprar as linhas. Mas a maioria,
quem vai comprar são as mulheres. Mulher que costura, mulher que cozinha, mulher que compra!” (Tradução da
autora).
78
no espaço produtivo, as casadas estão nos postos mais bem pagos e, por serem mais velhas
possuem mais experiência (VEIGA;GALHERA, 2016, p. 135). No que se refere à costura
propriamente dita, é comum encontrarmos na literatura sobre o tema informações de que os
homens são, geralmente, operadores da máquina reta, enquanto as mulheres “pilotam” a
overloque (COLECTIVO SINBIOSIS CULTURAL e COLECTIVO SITUACIONES, 2010,
MIRANDA, 2016; VEIGA E GALHERA, 2016).
Curiosamente, essa divisão em relação às diferentes máquinas não apareceu na
pesquisa de campo. As mulheres entrevistadas disseram não haver distinção do tipo de
máquina por sexo. Lourdes, por exemplo, só costura na reta. Luz, Carmen, Sara e Zelaide
utilizam as duas. Esta última afirmou que quando ela e o marido estão na mesma máquina, é
ela quem ganha mais e mesmo quando está na overloque 114
e seu marido na reta, ela recebe
mais, pois ele é lento e tem pouca agilidade:
Entre varios ‘rectistas’ yo era la única ‘interloquista’ donde armaba solita
para ellos. Hay siempre parejas que son más ágiles. Mi esposo era ‘rectista’
y yo ‘interloquista’, siempre sacaba 200 reales más que él. De mí siempre
había un poquito más que de él. Decía: ¿quién gana más? Tú tendrás fuerza
y yo también puedo 115
(Zelaide, entrevista realizada em 29/06/2017).
No local em que Miranda trabalhou durante sua etnografia, ele foi aconselhado pelo
dono da oficina de que “os homens devem moldar suas mulheres, dizer como devem se portar
em público e se vestir”. O pesquisador já havia notado que a esposa do dono não contestava
as ordens de seu marido e esperava sua aprovação para agir (2016, p. 96). De acordo com ele,
independente de sua habilidade, as mulheres são desvalorizadas e vistas como auxiliares dos
maridos, com participação secundarizada na produção (2016, p.275). O exemplo de Carmen é
ilustrativo. Ela não tinha dimensão de sua capacidade produtiva, pois sempre recebera junto
ao marido. Certa vez, cansada dos insultos e gritos que ouvia dele, de que era frouxa, não
sabia costurar, resolveu separar o serviço: “¡Basta, yo quiero ver mi sueldo! Vamos a partir
igual” 116
.
Outra distinção importante entre homens e mulheres refere-se ao tempo dedicado ao
lazer. A população boliviana possui espaços de sociabilidade já consolidados em São Paulo,
frequentam feiras culturais, jogam futebol aos finais de semana117
, fazem parte da composição
114
Ela recebia em média 30 centavos por peça na overloque e um real e 50 centavos na reta. 115
“Entre vários ‘retistas’ eu era a única ‘interloquista’, que armava sozinha para eles. Sempre tem casais que são
mais rápidos. Meu esposo era ‘retista’ e eu ‘interloquista’, sempre tirava 200 reais a mais que ele. De mim,
sempre havia um pouco mais do que ele. Eu dizia: ‘quem ganha mais? Você tem força, mas eu também posso’”
(Tradução da autora). 116
“Basta, eu quero ver meu salário! Vamos dividir igual” (Tradução da autora). 117
Segundo a Pastoral do Migrante, há mais de 800 times de futebol de bolivianos em São Paulo.
79
dos conselhos municipais, entre outros. No entanto, é comum ouvirmos que os homens
deixam suas mulheres em casa com os filhos e saem com seus conterrâneos. Enquanto a
maioria dos homens descansa aos sábados depois do almoço, vão a “la kancha” 118
e jogam
futebol, a mulher lava roupa, limpa a casa e cuida das crianças.
De acordo com depoimento da boliviana Veronica Yujra, no livro Histórias que se
Cruzam na Kantuta, o aguayo é uma manta utilizada pelas mulheres para carregar compras e
crianças, “como se fosse uma bolsa das mulheres andinas (...) o aguayo remete a mulher (...)
elas estão sempre com um aguayo bem grandão atrás e o homem sem nada” (2016, p. 58).
Possivelmente, este é um dos motivos que as narradoras-entrevistadas referem-se aos homens
de seu país como machistas, principalmente àqueles que vêm do interior. Em contrapartida, –
apesar de não saberem o que se passa dentro da casa das brasileiras – veem os homens do
Brasil como “menos machistas”, porque estes fazem compras na feira e passeiam com seus
filhos. Atividades que, segundo elas, não são comuns entre os homens na Bolívia119
.
Zelaide: Veo las brasileiras, tienen tiempo para arreglarse. No sé como
sacarán sus tiempos, como será su modo de vivir...120
Carmen: Trabajan por cartera, das ocho hasta las cinco, limpian su casa y
tienen tiempo para arreglarse. Nosotras nunca paramos Por eso pienso, yo
voy a fazer roda de conversa de hombres, para cambiaren las ideas 121
[risos].
Passaremos, no capítulo seguinte, a tratar das formas de resistência frente às condições de
trabalho impostas, além de outros elementos como: violência, fé, filhos e desejos.
Demonstraremos que tais aspectos perpassam a vida das mulheres e não estão descolados da
temática transversal desta dissertação, o trabalho.
118
Como se referem à Praça da Kantuta. 119
Ver foto 3, anexo C. 120
“Vejo as brasileiras, têm tempo para se arrumar. Não sei como tiram tempo, como será seu modo de viver”
(Tradução da autora). 121
“Trabalham com carteira assinada, das 8h até as17h, limpam suas casas e têm tempo para se arrumar. Nós
nunca paramos. Por isso penso, vou fazer uma roda de conversa de homens, para eles mudarem as ideias”
(Tradução da autora).
80
Capítulo 3 Narrativas de resistência
No primeiro item deste capítulo, examinaremos o que as narradoras-entrevistadas
pensam sobre sua atividade estar vinculada ao trabalho análogo ao de escravo.
Posteriormente, discutiremos sobre a margem de poder que elas possuem para reverter ou
minimizar as condições precárias de trabalho que lhe são oferecidas. No tópico seguinte,
abordaremos as diferentes formas de violência nas quais as mulheres migrantes estão expostas
em São Paulo. Para fechar o capítulo, discorreremos sobre a fé e os filhos, dois elementos que
se mostraram cruciais na vida delas.
3.1 Eu, escravizada?
Como foi dito anteriormente, as cinco narradoras-entrevistadas não estão entre as
bolivianas resgatadas da condição análoga à de escravo. Apesar disso, as descrições feitas por
elas, em alguns momentos, poderiam ser caracterizadas como tal, de acordo com o artigo 149
do CPB. Contudo, nos interessa saber o ponto de vista das trabalhadoras: o que seria trabalho
escravo para elas? O que elas pensam sobre a sua experiência laboral no Brasil ser
considerada análoga à de escravo?
Ao fazer tais perguntas aos trabalhadores rurais do Maranhão, Moura afirmou que a
primeira reação era a negação da categoria, em função do imaginário colonial dos povos
negros escravizados em solo brasileiro. Porém, ao longo da conversa com eles, palavras como
“escravo moderno” e “escravo atual” foram associadas a suas próprias experiências. De modo
geral, a autora mencionou que os trabalhadores “apontam a precisão, termo regional que
identifica períodos de maior necessidade econômica no contexto da economia familiar como a
principal causa de ocorrência de regime de trabalho escravo” (2016, p. 142). E concluiu que,
por serem autônomos, os trabalhadores rurais se reconheceram em momentos de escravidão,
quando precisavam trabalhar nas terras de outrem. Eles sabiam as condições de trabalho que
iriam encontrar, mas, por falta de opções reincidiam nestas atividades (MOURA, 2016, p.
141-143).
No caso das bolivianas, é interessante notar que nenhuma delas relacionou o trabalho
escravo com a escravidão vigente no período colonial nas Américas. Possivelmente, essa
identificação está mais arraigada entre os brasileiros, pela dimensão e duração – de mais de
três séculos – que o sistema escravista teve na formação do país. Para Luz, “trabalho escravo
seria a condição dos soldados, que precisam comer em pé, não tomam banho e não têm água
81
para beber”. Em relação à atividade dos costureiros bolivianos, afirmou:
Escravo, no. Aquellos que são inocentes, que não falam e não sabem se
expressar, sobretudo os que vêm do campo, los dueños se aprovechan más
que todo, pues no les importa nada, solo que tengan comida y trabajo. En
cambio aquel que ha vivido na cidade, ya sabe un poco de comodidad y vai
reclamar 122
(Luz, entrevista realizada em 25/06/2017).
Como o objetivo inicial é juntar o máximo de dinheiro em tempo recorde para retornar ao
país, o trabalho é encarado como uma atividade transitória, “por un tiempito, no más”. O
“tiempito”, contudo, vai se alargando conforme se deparam com a necessidade de pagar a
viagem, custear a sobrevivência e enviar remessas à Bolívia.
Na opinião de Sara:
Trabalho escravo são aquelas crianças que estão quebrando castanha ou
estão nas minas de carvão. São crianças! A gente já é adulta, a gente sabe o
que quer. O que a gente faz é ganhar a vida, o que a gente faz é conseguir as
nossas metas, os nossos objetivos, comprar as nossas coisas, sabe? O nosso é
trabalho duro... (Entrevista realizada em 05/07/2017).
A despeito de afirmar que viveu a escravidão na primeira oficina, ela reforçou que o
trabalho na costura realizado pelos bolivianos não é escravo. E acrescentou: “as coisas que
agora têm na mídia falando de trabalho escravo, falando de oito horas de trabalho, tanta coisa
você ouve que agora está mais nutrido, antigamente não tinha tanto. Agora a pessoa que vem
da Bolívia já sabe, né?”. De acordo com a definição elaborada por Lourdes, “trabalho escravo
seria aquele que não está pago, porque não está recebendo o que está trabalhando”.
Curiosamente, apesar de pouco antes ter contado que ficara sem receber em duas oficinas, não
relacionou o trabalho escravo com a própria experiência.
Ribeiro (2015) mencionou que, em geral, os bolivianos fazem uma distinção entre os
que foram enganados a respeito do pagamento e da jornada de trabalho e os que “escolheram”
o referido posto e que “desejam” se manter na informalidade, visto que, nesta situação, há a
oportunidade de ganhar mais. Tais discursos, porém, se deparam com um beco sem saída. Se,
por um lado, há a afirmação da vontade individual, por outro, reconhecem seu baixo poder de
negociação frente às condições impostas. Segundo McGrath (2013b), o debate entre escolha
voluntária versus oportunidade restrita por constrangimentos estruturais mais obscurece do
que contribui com a discussão. Afinal, trata-se de um paradoxo do nosso moderno sistema
econômico, que, como apontou Filgueiras, “a cruel impessoalidade do mercado sugere que o
122
“Escravo, não. Aqueles que são inocentes, que não falam e não sabem se expressar, sobretudo os que vêm do
campo, os donos se aproveitam mais que tudo, pois não importa nada para eles, só que tenham comida e
trabalho. Por outro lado, aquele que viveu na cidade já sabe um pouco de comodidade e vai reclamar” (Tradução
da autora).
82
trabalhador aceita a degradância por opção, por ser pretensamente livre” (2015, p.147).
Diversas razões podem sugerir a negação ou a discordância da própria condição de
trabalho enquanto análoga à de escravo. Uma delas, bastante mencionada nas pesquisas
acadêmicas, é o fato de o termo carregar um tom pejorativo. Cria-se, assim, um estigma em
relação à comunidade boliviana de São Paulo, como se houvesse uma relação direta entre ser
boliviano e estar escravizado. A resposta que Freire da Silva recebeu de seu entrevistado é
ilustrativa: “você quer fazer um trabalho sobre a Bolívia, sobre a cultura boliviana ou sobre
nossa comunidade? Se você quer falar sobre escravidão não tenho nada a dizer. Nós não
temos bolas de ferro amarradas em nossos pés” (2008, p.103).
Outro fator que contribui para a rejeição da categoria é a constatação de que no país de
origem a situação é mais difícil. Ouvimos das cinco narradoras-entrevistadas que é
complicado encontrar trabalho para quem não estudou na Bolívia. Segundo elas, quando isso
ocorre, as mulheres, usualmente, lavam roupas, são comerciantes ou limpam casas. Ainda
assim, o dinheiro é pouco. Em contraposição ao Brasil: “aqui, si trabajas, hay dinero, pero
allá no”123
, disse Sara, acrescentando:
Lá é muito complicado! Não é fácil ter férias e se impor como trabalhador
(...). Lá, trabalhar 12, 15 horas por dia não é escravidão, é necessário, senão
você é demitida (...). Lá é assim, por isso, quando a gente vem pra cá, esse
trabalho que falam “escravo de indústria” para nós não é nada. A gente tá
acostumado a trabalhar assim (Sara, entrevista realizada em 05/07/2017).
Veiga e Galhera chamaram atenção para o fato de que apenas 19,44% das mulheres
entrevistadas por eles reclamaram das condições físicas do ambiente de trabalho das oficinas,
como ventilação e iluminação. Enquanto que, nos relatórios das operações de fiscalização, as
condições degradantes de trabalho são apresentadas de forma categórica (2016, p.138).
Referindo-se à área rural, Figueira afirmou que “se as condições de habitação e
alimentação do trabalhador na escravidão por dívida não são muito inferiores à vivida antes
do aliciamento, as atuais podem não ser razão suficiente de ira” (2004, p.343). Esterci (1994)
escreveu sobre trabalhadores que se recusaram a sair da fazenda na qual eram explorados e
alegou que tal postura demonstrava uma forma de coerção extra econômica, um padrão
paternalista presente na relação de emprego (1994, p. 56). De acordo com ela, a suposta
legitimidade dos trabalhadores pode estar relacionada a motivos visíveis e urgentes, como
falta de recursos ou de alternativas de vida. Mas também é preciso levar em consideração
aspectos morais e culturais particulares dos grupos sociais aos quais os trabalhadores
pertencem.
123
“Aqui se trabalha tem dinheiro, mas lá não” (Tradução da autora).
83
Nas operações de resgate no meio urbano, também foi constatada a resistência e a
desconfiança dos trabalhadores. Nas conversas, identificamos a ausência de informação
acerca das possíveis consequências da entrada da fiscalização na oficina. A imagem geral das
cinco mulheres é a de que atuação das autoridades públicas não as beneficia nem as protege.
Segundo Carmen, “si pierdes su dinero con la fiscalización, nunca más vuelves a levantar y
quedas en Brasil” 124
. Apesar de nenhuma das bolivianas ter presenciado uma operação de
resgate, todas já “tinham ouvido falar”:
Yo escuché sobre la fiscalización. Ellos siguen a la firma. Si yo trabajo con
una firma que no paga sus impuestos, van hasta su oficina y pegam todo el
servício que está ahí, y colocan multa que la empresa tem que pagar. Con
costureiros nos prejudican también, porque ellos ensucian el documento 125
(Carmen, entrevista realizada em 29/06/2017).
Luz explicou que se o dono não tem Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), os
fiscais confiscam as máquinas, fecham as oficinas e, se tem boliviano sem documento, eles
são deportados. Ela não conheceu ninguém que fora deportado, mas viu isso acontecer pelo
noticiário da televisão. Em seu caso, que está regular no país, “si la fiscalización va cerrar la
oficina, normal! Puedo ir a trabalhar a otra oficina” 126
. O marido de Carmen qualificou a
fiscalização brasileira como “mais suave” quando comparada à argentina. De acordo com ele,
a primeira bate à porta, enquanto a segunda entra com o “pé na porta”, confiscando as
máquinas de costura ou pedindo propina aos donos das oficinas127
.
Para Sara, “a fiscalização deveria bater na porta das lojas. Tanto as lojas grandes
quanto pequenas têm mão de obra nossa. Elas registram seus funcionários, mas não registram
os bolivianos”. Quando entramos neste assunto com Zelaide, ela desconhecia o que ocorria
com os costureiros e, por ter as próprias máquinas, se preocupou: “¿Y cuándo son así
familias? En mi caso... Eu trabajo para sobrevivir, para mis hijos también y ¿Qué tal si me
entra una fiscalización?” 128
.
O receio mencionado acima em relação à atuação dos fiscais pode ser justificado pelo
fato de que, até meados dos anos 2000, a atuação dos agentes de estado visava à
124
“Se perde o dinheiro com a fiscalização nunca mais consegue levantar e fica no Brasil” (Tradução da autora). 125
“Eu escutei sobre a fiscalização. Eles seguem a empresa. Se eu trabalho com uma empresa que não paga seus
impostos, vão até sua oficina e pegam todo o serviço que está lá e colocam multa que a empresa tem que pagar.
Com os costureiros também nos prejudicam, porque eles deixam o documento sujo” (Tradução da autora). 126
“Se a fiscalização vai fechar a oficina, normal. Posso trabalhar em outra oficina” (Tradução da autora). 127
Ele morava em Buenos Aires quando ocorreu o incêndio de uma oficina clandestina (incêndio de Luis Viale)
em 2006 que matou cinco crianças e uma jovem grávida. Este evento despertou a população argentina para a
questão e acarretou no aumento das fiscalizações. Depois do incêndio ele, juntamente com os outros costureiros,
foi levado pelo dono da oficina para o interior do país onde ficaram dois meses sem costurar e fazendo dívidas.
Segundo ele, com o aumento das fiscalizações o dono estava com medo de ser pego pelas autoridades. 128
“E quando são famílias? No meu caso... Eu trabalho para sobreviver, para meus filhos também e se entra uma
fiscalização aqui?” (Tradução da autora).
84
responsabilização dos próprios migrantes (CÔRTES, 2013, p. 243). Logo, a orientação
jurídica para resolver a questão caminhava ao lado da criminalização das migrações, tendo
como consequência a deportação (MIRANDA, 2016, p. 206). O medo de serem obrigados a
sair do país dificultava ou impedia a denúncia de exploração ou tráfico, por parte dos
trabalhadores que desejavam fazê-la. Diante desta situação, o Conselho Nacional de
Imigração (CNIg), criou uma norma129
em 2010 que protege os imigrantes considerados
vulneráveis e determina que estes sejam amparados pelas autoridades nacionais.
Durante a realização desta pesquisa, a coreana, ex-patroa de Luz, foi denunciada por
um casal de bolivianos que recebia por peça e pediu que Luz testemunhasse em seu favor. A
denúncia se deu pela ausência de registro na carteira de trabalho e exigia os benefícios
referentes aos dois anos trabalhados. Apesar de saber que a dona da oficina não seguia a
legislação, “ela sí, ha hecho trampa 130
, havia um sentimento de gratidão, pois quando esteve
desempregada, foi graças ao trabalho oferecido pela coreana que conseguira colocar comida
na sua casa. Em conclusão, o motivo pelo qual Luz decidiu não testemunhar a favor da dona
da oficina foi o receio de uma possível retaliação do casal boliviano, e não pelas condições de
trabalho às quais ela e os responsáveis pela denúncia, eram submetidos.
Nas falas das narradoras-entrevistadas, foi possível verificar uma dubiedade entre o
desejo de produzir mais e a pressão realizada pelo dono da oficina. “Cuando no terminamos el
jefe se enoja. Entonces, para no chamar la atención, seguimos haciendo, trabajamos hasta
tarde. Pero también para nosotros el dinero que él paga es más alto”131
, disse Zelaide. Para
Carmen, “nosotros mismos nos prestamos a esclavizar” 132
. Antes de ter as próprias máquinas,
“me decía mi jefe: ‘vamos a trabajar de 7h hasta las 21h. No podía pasar de eso si no el
vecino se molesta [do barulho das máquinas]” 133
. No entanto, como desejava seguir até mais
tarde, levava a máquina para os fundos da casa e costurava até meia-noite “por ganar dinero
para volvernos rápido a Bolivia” 134
. Zelaide afirmou também que ao chegar as encomendas,
olhava prontamente para a pilha de tecidos para calcular quanto receberia pelo trabalho.
“Levantaba temprano por la consciência de ganar un poquito más” 135
. Quando acabava sua
129
Resolução Normativa 93 - Dispõe sobre a concessão de visto permanente ou permanência no Brasil a
estrangeiro considerado vítima do tráfico de pessoas. Mais informações:
<http://reporterbrasil.org.br/documentos/RN93-2010.pdf>. Acesso em 06 set. 2017. 130
“Ela sim, fez trapaça” (Tradução da autora). 131
“Quando não terminamos, o chefe fica bravo. Então para não chamar atenção, continuamos fazendo,
trabalhamos até tarde. Mas também para nós o dinheiro que ele paga é mais alto” (Tradução da autora). 132
“Nós mesmos nos prestamos a nos escravizar” (Tradução da autora). 133
“Meu chefe me dizia: ‘vamos trabalhar das 7h até às 21h’. Não podia passar disso, senão o vizinho reclama
[do barulho das máquinas]” (Tradução da autora). 134
“Para ganhar dinheiro e voltarmos rápido para Bolívia” (Tradução da autora). 135
“Levantava cedo pela consciência de ganhar um pouco mais” (Tradução da autora).
85
tarefa, oferecia-se para executar outras atividades, como, por exemplo, passar a roupa.
De acordo com as falas reproduzidas acima, o que observamos enquanto dubiedade foi
explicado por Miranda como uma “interação entre dominador e dominado, entre estratégias
dos de cima e papéis assumidos pelos debaixo que consolidam posicionamentos desiguais”
(2017, p.203). Segundo este autor, existem normas e regras, direitos e deveres, que foram
incorporados ao longo do tempo fazendo com que o dono não precise utilizar seu “poder”
sobre os costureiros de forma arbitrária.
Se, por um lado, o empregador exige permanência na oficina, por outro, isso convém
ao costureiro que recebe por peça produzida. “Em geral, não é necessário que o dono da
oficina pressione o costureiro, porque estes já estão disciplinados a sentar em frente à
máquina das 7h às 22h” (MIRANDA, 2016, p.261, tradução da autora). Miranda afirmou que
os costureiros teriam a possibilidade de sair da oficina durante a semana. No entanto, isso não
ocorre por dois motivos: não faz parte da dinâmica laboral e o trabalhador sabe que o patrão
não veria a atitude com bons olhos (MIRANDA, 2016, p. 254, tradução da autora). Luz, por
exemplo, não era impedida de utilizar o banheiro, mas evitava fazê-lo durante sua jornada
para não correr o risco de a coreana descontar de seu pagamento.
Apesar da vigência de elementos de trabalho não livre – consentidos pelos costureiros
– citados no Capítulo 1 desta dissertação, há um “padrão de trabalho” que ao ser quebrado
causa estranhamento e rupturas entre o grupo de trabalhadores. Ou seja, os costureiros podem
definir o que é aceito e o que não é aceito dentro das condições de trabalho não livre e quando
as condições ultrapassam o considerado justo. Podemos concluir que, apesar das barreiras
existentes em relação à atuação da fiscalização, ao autorreconhecimento da escravização isso
não significa que as trabalhadoras não se sintam exploradas. A despeito de estarem em uma
posição estrutural que fornece um fraco poder de negociação sobre suas condições, os
trabalhadores – homens e mulheres – não são passivos, nem meros fatores de produção
(MCGRAPH, 2010, p. 221). Junto à percepção de exploração, vem a resistência – nem
sempre expressa sob forma de conflito – que desenvolveremos no item a seguir.
3.2 Agência individual: ¡De esa forma no puede tratarme!
Qual é a margem de poder que os trabalhadores possuem para reverter ou minimizar
situações precárias de trabalho, superexploração e falta de oportunidade em seus locais de
origem? Para responder tal questão, adotaremos a premissa de que, “os dominados e
explorados têm sempre alguma possibilidade de aumentar sua margem de poder” (ESTERCI,
86
1994, p.8).
Dentre as formas de reação frente às condições de trabalho e de tratamento presentes
no âmbito rural, Figueira apontou a lentidão na execução das tarefas, a má execução dos
serviços, o abandono do imóvel, a procura por um local de trabalho com maior remuneração e
as cautelas ou as denúncias expressadas pela palavra (FIGUEIRA, 2004, p.352). De acordo
com o autor:
(...) migrantes temporários reagem de alguma forma, mesmo limitados pela
precariedade, pela palavra amordaçada, pela ausência do poder econômico e
das armas, pelo abandono em que se veem, pelo desconhecimento do local
em que se encontram, pela surpresa e pelo estranhamento e por tantas outras
razões (2004, p. 351).
Assim como no contexto rural, é possível observar reações por parte dos costureiros
nas oficinas. Tais reações serão analisadas à luz da “agência individual”, conceito proposto
pela geógrafa Cindy Katz, que representa uma maneira alargada de interpretar as diversas
práticas sociais (diárias e informais). Permite-se reconsiderar formas de agência que, apesar
de sutis, produzem impactos. Atos que elaboram significados para os trabalhadores do ponto
de vista material e subjetivo de suas relações e experiências de emprego. Ao valorizar e abrir
espaço para a “potência dos passos cotidianos”, não se pretende superestimar a agência
individual, mas sim, dar visibilidade às ações que, apesar de desorganizadas e
individualizadas, podem cumprir um papel relevante no mundo dominado pelo capital
(ROGALY, 2009, p. 1984) e pelos homens.
De acordo com Katz (2004), existem três formas de agência humana frente ao
trabalho: resiliência, retrabalho e resistência. Cada uma das formas estaria relacionada a
diferentes níveis de consciência dos trabalhadores. A primeira seria o simples ato de “ir
levando” e adaptando-se às condições impostas, como um modo de sobrevivência que não
muda a estrutura das relações sociais. A segunda forma é uma categoria intermediária, em que
os trabalhadores se esforçam para melhorar suas condições materiais, sem necessariamente
alterar as relações de poder. Ou seja, desafiam o sistema com as ferramentas do próprio
sistema. Por fim, a última categoria de agência é a da resistência. Refere-se às ações diretas de
enfrentamento contra as relações sociais estabelecidas no sistema capitalista.
De acordo com Miranda, o espaço de ação dos imigrantes é anterior ao espaço
produtivo. O ato de migrar, sair de alguma obrigação ou relação no país de origem já é, em si,
um exercício de agência, que tem início na escolha dos riscos que estes querem assumir na
entrada do Brasil, através da rota via Paraguai ou via Corumbá, ou ainda pela adesão ou não
da oferta de emprego (MIRANDA, 2017, p. 202). Uma vez inseridos no espaço produtivo, em
87
condições de trabalho análogas às de escravo, os trabalhadores tem possibilidades de ação:
saem da oficina e retornam para cobrar o antigo patrão, demandam formas específicas de
pagamento, se movimentam no território pelas diferentes oficinas de costura, procuram a
opção mais vantajosa – ainda que escapar de um tipo de trabalho degradante implique em
correr o risco de cair em um novo trabalho degradante (MCGRATH, 2013b, p. 1020, tradução
da autora).
Estas são formas de agência frente ao trabalho. Carmen, ao contar de sua experiência
na Argentina afirmou que “una noche decidí que no va dar eso más. Él me comienza a gritar,
pero yo no soy su hija. Sí, soy su empleada, pero de esa forma no puede tratarme así” 136
.
Lourdes mudou quatro vezes de oficina, à procura de um lugar “donde estemos bem tratados”
137. Em uma das ocasiões, antes de mudar, seu marido e filho fizeram uma visita ao que seria
o novo local de trabalho e moradia da família. E recusaram a oferta.
A expressão de agência individual que merece destaque é a decisão de abrir o próprio
negócio. Para Quilla, “quando as pessoas vêm para costurar, elas percebem que são enganadas
e que poderiam ganhar melhor. Então, o sonho delas é comprar las máquinas e se
independizar”. Sobre isso, Lourdes afirmou:
A veces boliviano mismo, a exploração é muito (...). Hoje tenho só uma
pessoa trabalhando comigo, mas eu tento de no fazer a misma coisa que
fizeram comigo, né! Isso que me motivou para fazer nossa oficina, eu falei:
‘eles não me pagam, vou a outro lado e vão fazer a mesma coisa’ (Entrevista
realizada em 02/07/2017).
3.2.1 Donas da própria máquina
Durante a escrita desta dissertação, apenas Luz (que é viúva) trabalhava na oficina de
alguém. As outras possuíam suas próprias máquinas e trabalhavam em casa, em unidades
produtivas constituídas por marido, filho e, às vezes, algum parente que chegava da Bolívia.
De acordo com Quilla:
Eles [os costureiros] veem que quando você trabalha para grandes empresas
você é explorado por essas grandes indústrias. Então, se tem muitos
imigrantes na Feirinha da Madrugada, é por isso. Porque eles estão
começando a costurar sua própria roupa (Quilla, entrevista realizada em
04/09/2017).
Sara não havia pensado em abrir a própria oficina. Já estava há dois anos no Brasil
quando “irmãos” da Igreja Mórmon que frequenta lhe perguntaram: “Se você já foi explorada,
136
“Uma noite decidi que não vai mais dar isso. Ele começa a gritar, mas não sou sua filha. Sim, sou sua
empregada, mas desta forma não pode me tratar” (Tradução da autora). 137
“Onde seremos bem tratados” (Tradução da autora).
88
por que não abre a própria empresa?”. A ideia lhe pareceu distante: “Eu não tinha documento,
isto já me trava. Segunda coisa, onde consigo casa, não é fácil...”. Mas, recebeu ajuda da
própria Igreja:
Eles cederam um espaço nos fundos, emprestaram fogão, panelas, tudo...
Alugaram máquinas industriais e a coreana levava o corte (...). No início a
gente se enchia de energético, virava a noite. O primeiro serviço ralamos
para entregar em duas pessoas. Depois de três meses, trouxe minha irmã
(Sara, entrevista realizada em 05/07/2017).
Aos poucos, ela e o marido se estabilizaram e conseguiram sair do espaço cedido. “Aqui é
uma bola de neve, você vê que está dando certo manda chamar mãe, primo, irmão... Foi o que
eu fiz”.
No caso de Lourdes, esta fora incentivada a abrir sua oficina pela brasileira que levava
encomendas para o local onde trabalhava: “Una brasilera que entrega aos bolivianos que não
têm oficina formalizada disse: ‘vocês são uma família grande, podem fazer a própria oficina,
a dona daqui paga menos para vocês’”. As máquinas foram adquiridas de diferentes maneiras:
doação, aluguel, compra de máquinas usadas. Além da posse do instrumento de trabalho, o
passo necessário à formalização se dá por meio do registro no CNPJ. Mas a ausência deste
não impede a produção e diversas oficinas familiares não possuem tal registro. Carmen nos
contou que tem CNPJ, mas não consegue pagar:
Mi vecino que es contador me dijo que debía parcelar el pagamento y
trabajar con eso. Pero ellos me van a pedir un salón y no puedo alquilar
salón. El me dijo que no es necesario desde que yo tenga una buena
instalación puedo trabajar 138
(Entrevista realizada em 29/06/2017).
Na opinião de Sara: O CNPJ sirve para as lojas te darem trabalho. Mas não garante nada. (...)
Não é porque eu tenho CNPJ que a empresa me paga mais. Ela só se garante
que a oficina está legalmente. Pra mim não compensa ter CNPJ eu só vou
tirar do meu bolso para pagar pro governo. Eu não tenho vantagem nenhuma
(Entrevista realizada em 05/07/2017).
Ao serem indagadas sobre a diferença entre trabalhar na oficina de outrem e ter a
própria oficina, foi possível perceber que a necessidade de produzirem para o mercado não
altera por completo sua condição de trabalho.
O coreano, que traz serviço pra mim, me explora, certeza. Só que assim, ele
não me deixa na mão, eu sempre tenho trabalho. Não posso ficar sem
trabalhar, não tem como, porque eu pago contas, pago aluguel (...). Não
posso me dar ao luxo e falar: ‘não vou fazer’... Não tem opção (Sara,
entrevista realizada em 05/07/2017).
138
“Temos CNPJ só que não pagamos, não dá para pagar. Meu vizinho que é contador me disse que eu devia
parcelar o pagamento e trabalhar com isso. Mas eles vão me pedir um espaço e não posso alugar um espaço. Ele
me disse que não é necessário, desde que eu tenha uma boa instalação posso trabalhar” (Tradução da autora).
89
Lourdes tem consciência de que os intermediários ganham em cima dela: “uma peça de 12
reais ele me pagava 8, ganhava 4 sem fazer nada, quem trabalhava era eu, quem fazia o
esforço era eu. (...) Toda pessoa que te dá o serviço paga menor, quando é bastante prenda
[peça], aí quanto que ficam?” (Lourdes, entrevista realizada em 02/07/2017).
O relato das bolivianas dialoga com a crítica realizada por Côrtes (2013 p.246) a
respeito de um suposto incentivo por parte das organizações de apoio ao migrante ao
“empresariamento dos trabalhadores” e do fomento ao empreendedorismo. Segundo ele,
parte-se do diagnóstico de que as condições de trabalho análogas às de escravo estão
vinculadas à ausência de formalização. Sem, contudo, questionar o modo pelo qual a
produção do setor está estruturada. Ter a própria oficina, não exime as bolivianas de serem
exploradas.
Em relação à rotina de trabalho, “a mesma coisa, a gente começava às 8h e acabava às
22h. Minha mãe ajudava na cozinha, meu pai passava ferro”, afirmou Sara. Segundo Lourdes,
“o trabalho em si também não mudou nada, é o mesmo horário, porque tem que ter ganho
para pagar aluguel, comida, luz água, internet... Para pagar tudo tem que ser assim mesmo...
Se trabalha até às 17h, não consegue”. Na visão de Zelaide:
Aquí el trabajo es bien, solo que te desespera. Te llaman de la firma
[empresa que fornece o tecido para elas costurarem], tienes que entregar
(...). Duele mi espalda, dentro de los pulmones, ya no consigo trabajar
continuo. Cuando tienes fuerza haces, pero al tiempo te vas cansando... 139
Para elas, o tempo dedicado aos filhos permaneceu curto. Carmen afirmou que “este
año he pensado irme a trabajar afuera porque si estoy em la costura, a veces no ayudo a mis
hijos porque tengo que entregar (...) la costura te mantiene a la casa, no da para ir detrás de tu
hija”140
.
Por outro lado, se a solução do problema não está na formalização da oficina, ser dono
de uma (formalizada ou não), também tem suas vantagens. Zelaide relatou que “cuando tienes
criança nadie te dice nada. Es tranquilo, están caminhando, le doy de comer, yo que
cozinho”141
. Sara afirmou que prefere “trabalhar em casa, eu estipulo meu tempo (...) é minha
casa, meu serviço, meu tempo”. Como a conversa também girava em torno das desigualdades
entre os sexos, ela acrescentou: “Eu fico na cozinha, sim. Porque gosto do meu marido, gosto 139
“Aqui o trabalho é bom, mas te desespera. Te chamam da empresa, tem que entregar. Dói minhas costas,
dentro dos pulmões, já não consigo trabalhar contínuo. Quando tem força, faz. Mas ao tempo vai se cansando”
(Tradução da autora). 140
“Este ano pensei em trabalhar fora, porque se estou na costura às vezes não ajudo meus filhos, porque tenho
que entregar (...) a costura te mantém em casa, não da para ir atrás de sua filha” (Tradução da autora). 141
“Quando tem criança ninguém te fala nada. É tranquilo, estão caminhando, dou comida, eu que cozinho”
(Tradução da autora).
90
dos meus filhos, não por isso você vai dizer que eu mereço estar na cozinha”.
Lourdes e Zelaide, que também possuem as próprias máquinas, contaram ter ajuda dos
maridos apenas quando pediam. Caso contrário, eles esperavam que o serviço fosse feito por
elas: “Eu faço as tarefas domésticas. Às vezes brigo com ele [seu marido]. Tem que ajudar,
não é só eu que vou comer... não é sozinha que sujo as roupas. Na Bolívia, eu trabalhava ele
fazia as tarefas, só quando ele bebia não fazia nada”, relatou Lourdes. Miranda também
observou a divisão sexual do trabalho na dinâmica do casal dono de oficina. Além de costurar,
a esposa cozinhava, acompanhava a tarefa dos filhos, cuidava dos trâmites da escola e da
regularização migratória. Enquanto isso, seu marido se encarregava das tarefas mais
valorizadas: das contas da oficina e do pagamento aos outros costureiros. “Ele era o dono da
oficina em primeira instância” (2016, p. 275, tradução da autora).
Em nossa pesquisa de campo, Carmen foi a única que relatou dividir as tarefas
domésticas. Nem sempre foi assim, explicou. Mas um dia resolveu trocar os papéis com o
marido:
Yo voy hacer lo que tú haces (...) y no hemos sacado [não tiraram dinheiro
da costura]. Y ahí yo he me dado cuenta...Tantos gritos que hacía él. No
podía, no tenía derecho. Para mí ha sido un desastre, tantas palabras feas
que me ha dicho... Sola puedo vivir, ya no puedo soportar sus gritos, sus
celos. Yo puedo sola, porque yo trabajo más que él. Y él ha comenzado a
valorar, me deja salir...142
(Carmen, entrevista realizada em 12/02/2017).
Trocar de papéis foi a forma de se perceber autossuficiente no que se referia às tarefas
laborais, o que lhe deu confiança para não aceitar mais as agressões do marido.
3.3 Notas sobre o silêncio e a violência: Con miedo estaba cerrada
Entre os imigrantes, a omissão das dificuldades enfrentadas no país de destino não é
incomum. Seja para evitar preocupação ou pela necessidade de mostrar o êxito da viagem e
dos esforços empreendidos. Tal modo de agir foi descrito pela literatura sobre o tema em
diferentes contextos. No livro de Sayad (1998), um argelino relatou que em seu país havia
uma crença coletiva de que a solução dos problemas era migrar para França. Isso porque
todos retornavam do país europeu para visitar familiares com dinheiro, parecendo felizes e
realizados, sem, contudo, dizer qual era o custo daquela suposta boa vida.
No contexto rural brasileiro, Figueira descreveu casos de trabalhadores que foram
142
“Eu vou fazer o que você faz (...). E não tiramos nada, aí me dei conta... Tantos gritos que ele dava, não podia,
não tinha direito. Para mim foi um desastre, tantas palavras feias que ele me disse. Sozinha posso viver, já não
posso suportar seus gritos, seus ciúmes. Sozinha eu posso, porque eu trabalho mais que ele. E ele começou a me
valorizar, me deixa sair...”(Tradução da autora).
91
levados do Mato Grosso ao Pará com a promessa de trabalho remunerado nas fazendas e, ao
perceberem que haviam sido enganados, alguns optavam por romper o vínculo com a família
a retornar aos seus locais de origem e assumir o fracasso da empreitada (FIGUEIRA, 2004, p.
294). No caso das bolivianas, também foi dito que pouco se comenta sobre as dificuldades
vividas àqueles que permaneceram no país de origem. Sempre estão “bem” e “felizes”... De
acordo com Lourdes, a razão para isso é evitar preocupação, principalmente quando a
receptora das notícias é a mãe já idosa: “Porque se eu falo: ‘mãe estou mal’, ela vai ficar
preocupada, vai chorar, vai pensar: ‘minha filha está sofrendo lá’. Então sempre falo que
estou bem”.
Nas relações estabelecidas no Brasil, as narradoras-entrevistadas tampouco contam
sobre seus problemas. Para Luz, as bolivianas ficam mais fechadas no Brasil do que na
Bolívia: “Não falam com ninguém, nem cumprimentam”. Carmen acredita que a
introspecção, principalmente no ambiente de trabalho, ocorre para evitar desavenças com os
maridos, “las mujeres se calam por medo”. Ela se tornou uma espécie de referência para as
outras mulheres, rompendo com a desconfiança delas. “Yo digo a ellas: ‘no tengas miedo’. Yo
antes con miedo tanto que me he encerrado (...). Con miedo estaba cerrada, no sabía ni
hablar, ni entender lo que decían. Cuando he comenzado a salir, ya he tenido amigas, me he
sentido acompañada” 143
. Segundo Carmen, “cuando una mujer pasa por problemas necesita
de muchas personas que te abracen, escuchen, que te hablen. Pero hay pocas, no sabes con
quien contar” 144
.
A temática da violência doméstica não estava prevista no início desta pesquisa, mas
apareceu espontaneamente em todas as falas. Das cinco narradoras-entrevistadas, apenas uma
nunca apanhou de seu marido e, conforme apresentamos na seção 2.1, a violência fez parte da
infância de todas. Em alguns casos, esta situação foi reproduzida com elas antes mesmo de
migrarem.
Em geral, ninguém interfere nas situações de violência entre os casais dentro das
oficinas, por considerá-las “assunto privado”. Luz escutava sua conterrânea apanhar durante a
noite, mas “ela ficava quieta, a veces estaba verde, machucada, cobria con su cabelo para que
a gente não perceba” 145
. Histórias de maridos que chegam bêbados e batem em suas esposas,
143
“Eu digo a elas: ‘não tenham medo’. Eu antes com tanto medo me fechei (...). Com medo estava fechada, não
sabia nem falar, nem entender o que diziam. Quando comecei a sair, fiz amigas, me senti acompanhada”
(Tradução da autora). 144
“Quando uma mulher passa por problemas necessita de muitas pessoas que te abracem, escutem, falem. Mas
tem poucas pessoas, não sabe com quem contar” (Tradução da autora). 145
“Ela ficava quieta, às vezes estava verde, machucada, ela cobria com seu cabelo para que a gente não perceba”
(Tradução da autora).
92
outras que são proibidas de sair de casa sob a argumentação de que precisam trabalhar e
cozinhar, além de estupro e abuso sexual dentro das oficinas foram alguns dos exemplos que
escutamos durante a pesquisa de campo:
En esta oficina me fue mal. Ahí me abusaran sexualmente. Pasado eso me
fui al alcohol, a las bebidas. Salí decepcionada de mi vida. Ese día se ha
acabado todo para mí. Yo dije: ‘no, yo no sirvo para nada’. ¿Qué va decir
mi mamá?. Siempre ella me orientaba: ‘nunca aceptes de un hombre un
copo de agua, lo que sea’. Pero yo he aceptado ese día. No quise volver a
Bolivia. Sé que mi mamá va decir: ‘tú no vales la pena’ 146
(Carmen,
entrevista realizada em 29/06/2017).
Y sus tías [de seu marido] también decían: ‘y con esta mujer fea está, que es
baja, debía buscar una estatura bonita, alta, flaca...’. Yo estaba
embarazada, talvez por eso mi hijo ha nacido así,[com autismo] porque
lloraba. Él me pegaba. Yo decía: ‘estoy embarazada, no puedes hacer eso’.
‘Qué me importa’, decía él. Cuanto que sufri, talvez mi hijo ha nacido con
algún trauma 147
(Carmen, entrevista realizada em 29/06/2017).
O custo foi esse para nós: de que minha filha foi estuprada [essa palavra saiu
baixo, e com muita dificuldade]. Eu vine aquí [à igreja], minha filha ficou na
la plaza...Seu pai não estava aqui, tava na Bolívia. Aí um conhecido deu para
ela de beber, ai que aconteceu... Quando eu voltei na casa, nem foi nem
muitas horas, em duas horas ela ficou muito bêbada. Ai que aconteceu... Fui
na polícia, médico... Foi estupro mesmo. O homem sumiu. Ela tinha 15 anos
cuando pasó isso. Tengo medo de falar essas coisas, pra que no fique minha
filha olhada com outros olhos, outros pensamentos... Prefiro nem falar
(Lourdes, entrevista realizada em 25/06/2017).
Segundo McGraph não é surpresa de que tais locais ofereçam risco para as mulheres,
uma vez que a violência sexual ocorre, na maioria das vezes, dentro de ambientes privados e o
agressor é próximo à vítima (2010, p. 168). Ao discorrer sobre a violência doméstica, Saffioti
retomou a forma de socialização diferencial entre homens e mulheres:
As mulheres são socializadas para conviver com a impotência; os homens –
sempre vinculados à força – são preparados para o exercício do poder.
Convivem mal com a impotência. Acredita-se ser no momento da vivência
da impotência que os homens praticam atos violentos, estabelecendo
relações deste tipo (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995 apud SAFFIOTI, 2004,
p. 84).
O marido de Carmen conversou conosco e justificou ter batido na esposa pelo estresse
146
“Nesta oficina fui mal. Lá me abusaram sexualmente. Passado isso, me fui ao álcool, às bebidas. Saí
decepcionada da minha vida. Esse dia tudo se acabou para mim. Eu disse: ‘eu não sirvo para nada’. O que minha
mãe vai dizer de mim? Ela sempre me orientava: ‘ nunca aceite de um homem um copo de água, ou o que seja’.
Mas, nesse dia, eu aceitei. Não quis voltar à Bolívia, sei que minha mãe vai dizer: ‘você não vale a pena’”
(Tradução da autora). 147
“E suas tias [de seu marido] também diziam: ‘está com esta mulher feia, que é baixa. Devia procurar uma
estatura boa, alta, magra’. Eu estava grávida talvez por isso meu filho nasceu assim. Porque chorava. Ele me
batia e eu dizia: ‘estou grávida, não pode fazer isso’. ‘Não me importa’, dizia ele. Quanto que sofri, talvez meu
filho tenha nascido com algum trauma (Tradução da autora).
93
(causado pela impotência diante da situação em que se encontrava). Segundo ele, as contas do
aluguel, água e luz estavam atrasadas, ele estava sob pressão da firma que encomendara
serviço, o trabalho estava acumulado... Descontou em sua esposa.
As narrativas das mulheres estavam permeadas por histórias de violência. Para Sara,
que nunca apanhou do marido, a mulher é omissa porque está em outro país, não sabe o que
pode acontecer com ela. “Minha amiga apanhava e dizia: ‘estou sozinha aqui, o que vou fazer
sem ele? ’”. Com outra amiga que também se calava diante da agressão, Sara se intrometeu:
Eu intimidei ele, (...) ‘Quer bater? Não está na Bolívia. Querendo ou não tem
que se reger as leis daqui’ (...) lá tem muito isso, tem lei pra mulher, tem...
Mas mulher apanha. Eu falei para ele: ‘Se acontecer de novo você pode ir
para cadeia, você vai perder seus filhos. Você tem sorte de não ser meu
marido’ (Entrevista realizada em 05/07/2017).
Dentre as atividades realizadas pelo CAMI, está a assessoria jurídica gratuita aos
imigrantes148
. De acordo com seu balanço realizado em 2016, de 560 casos atendidos, 99
foram sobre violência doméstica contra mulheres imigrantes149
. Os episódios de violência
doméstica contra as imigrantes latino-americanas chamaram atenção do Ministério Público do
Estado de São Paulo (MP-SP), que desenvolveu, em parceria com o CAMI, uma cartilha em
espanhol intitulada Mujer da vuelta la Página150
para informar as migrantes a respeito das leis
brasileiras, especialmente a Lei Maria da Penha151
. Segundo Silvia Chakian, coordenadora do
Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) do MP-SP, se a denúncia na
sociedade de origem é complexa, os obstáculos para a realização da acusação no local de
destino aumentam visto que as mulheres precisam lidar “o idioma distinto da terra natal, o
estranhamento de outra cultura e outras relações sociais e até o olhar de indiferença por parte
da própria sociedade” 152
.
Apesar de serem detentoras de parcelas menores de poder, isso não significa que elas
não revidem a agressão. No ambiente privado, encontram formas de se vingar. Uma delas
relatou estragar as roupas do marido antes de pendurá-las. Esgarçava as golas das camisetas e
o elástico das cuecas. Miranda também observou momentos de ruptura entre o casal de sua
etnografia e de resistência expressada pela esposa. Dentre as formas encontradas por ela para
fugir da dominação de seu marido estava sua maior habilidade na costura. Quando precisava
148
Além de cursos de português, informática, serviços de regularização, entre outros. 149
Disponível em: < http://camimigrantes.com.br/site/?p=1434>. Acesso em: 28 jul 2017. 150
“Mulher, vire a página”. 151
Lei número 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e
familiar contra a mulher. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em 05 fev. 2016. 152
Informação disponível em:
<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/noticias/noticia?id_noticia=11257747&id_grupo=118>.
94
costurar algum detalhe nas peças que o marido não conseguia, era ele quem se encarregava de
cozinhar. Outro momento de ruptura, citado pelo autor, ocorria quando o casal fazia a locução
de um programa de rádio em que eles dialogavam entre si e com os ouvintes. Ali, havia uma
espécie de permissão implícita para fazer piadas com o marido (2016, p. 98).
A violência doméstica não é o único tipo de violência ao qual as imigrantes estão
expostas. Além das opressões de gênero vivenciadas por elas, outras formas de violência são
experimentadas pelos casais e pelos filhos de imigrantes. Ao mesmo tempo em que
observamos uma assimetria de poder entre homens e mulheres, no convívio com as
bolivianas, também foi possível observar alguns momentos de companheirismo e de ajuda
mútua, seja na preocupação com os filhos ou no enfrentamento das “dificuldades rotineiras”
marcadas pelo lugar social ocupado pelos imigrantes em São Paulo.
O preconceito existente em relação ao povo boliviano é reflexo também da imagem
construída em torno da própria Bolívia. Nesse sentido, é importante relembrarmos o episódio
ocorrido em 2013, quando uma professora da Universidade de São Paulo, ao comentar um
impasse diplomático entre Brasil e Bolívia no Jornal da Cultura153
, afirmou, em rede nacional,
que a Bolívia “era insignificante em todas as perspectivas para o Brasil (...) os imigrantes
bolivianos em São Paulo não contribuem para o desenvolvimento tecnológico, cultural e
social do país”.
Desse modo, a discriminação, compreendida aqui como um ato de violência, é
recorrente. Esta ocorre nas ruas, no comércio, nas escolas, nas imobiliárias no momento de
alugar um imóvel, entre outros locais. Em torno da comunidade boliviana em São Paulo foi
construída uma imagem de “povo sem cultura, clandestinos, traficantes, indocumentados,
agenciadores de mão de obra escrava”, que persiste décadas após chegada massiva dessa
população (SILVA, 2006 apud MIRANDA, 2016, p. 153). Na conversa entre Zelaide e
Carmen, a primeira contou que, ao levar seu filho no posto de saúde de seu bairro, escutou a
seguinte pergunta da dentista: “¿De qué raza son ustedes? ¿Son indios?” 154
. Ao escutar isso,
seu filho, então com 11 anos, respondeu: “No, no somos indios. Indio es aquel que viene de
India. En mi país de toda raza hay” 155
. Segue abaixo o trecho da conversa delas:
Zelaide: No pueden nos tratar así. Nosotros tendremos nuestra origen, pero
153
Mais informações e link para o vídeo disponível em: < http://diplomatique.org.br/intimidacao-racismo-e-
violencia-contra-imigrantes-e-refugiados-no-brasil/>. Acesso em> 22 jun. 2017. 154
“De que raça são vocês? São índios?” (Tradução da autora). 155
“Não, não somos índios. Índio é aquele que vem da Índia. No meu país tem de todas as raças” (Tradução da
autora).
95
no así... Que nos discriminen156
.
Carmen: Mucha discriminación se escucha en este posto. [Posto Municipal
de Saúde]. La ginecóloga no quiere atender a las mujeres bolivianas. En el
hospital [Hospital Municipal da região] cuando he tenido mi hija, no me
daban comida, morria de hambre. Decían: ‘levantate y va a bañar a tu hija’,
pero me dolía157
.
Zelaide: Yo de ese miedo no he ido a ese hospital. He tenido en casa mi hija.
Muchas personas me decían:“te tratan mal en el hospital” (...) Mi esposo
me ayudó y solo después que ha nacido el bebe, he llamado la
ambulancia158
.
Carmen: Y cuando necesitamos hacer exames, llegamos temprano en el
hospital y las brasileiras dicen: “boliviano no tiene derecho. Ellos son
extranjeros. Pueden ser atendidos atrás, no adelante de nosotras159
.
Esse tipo de discriminação não é expresso somente pelos brasileiros. Ao perguntarmos
se Luz já havia convivido com pessoas de outras nacionalidades, a boliviana contou sua
experiência com peruanos e paraguaios. Quando morou com peruanos, disse que eles
reclamavam da comida boliviana e muitas vezes não comiam. Além disso, de modo geral:
“porque boliviano é mais pequeno, é sempre mais quietinho, sempre temem... Paraguaio é
mais parecido com brasileiro e peruano é mais aberto na forma de falar, falam mais”. Por esse
motivo, ela acha que querem “estar por cima (...). Por exemplo, agora estou trabalhando com
um paraguaio. Ele falou mal de boliviano, falou: ‘indio, es día de vocês hoy160
...’. Eu fiquei
brava”.
Por fim, cabe lembrar que os imigrantes, homens e mulheres, também sofrem os
efeitos da violência urbana. De acordo com Sara, “na época em que cheguei [2004], ouvia
muita rádio boliviana e todos os dias tinha notícia de assalto com arma em oficina. Um dia
ouvi que os assaltantes levaram até as fraldas do bebê e jogaram óleo nos tecidos”. Carmen
relatou um episódio em que escapou por pouco de um assalto:
Tenía el último 50 [reais] para hacer mi Navidad. Tenía que comprar frutitas
y papas... Y este año con mi marido, la calle estaba vacía y tres ladrones
vinieron. Me he recordado que Dios te abriga en este momento y esta calle
estaba tan vacía, no había nadie que respira. Yo dije: ‘Señor abrazame
porque no queiro asustarme nuevamente. Señor en este momento te
156
“Não podem nos tratar assim. Nós temos nossa origem, mas não assim... Que nos discriminem” (Tradução da
autora). 157
“Muita discriminação se escuta neste posto [Posto Municipal de Saúde]. A ginecologista não quer atender as
mulheres bolivianas. No hospital, [Hospital Municipal da região] quando tive minha filha não me davam comida,
morria de fome. Diziam: ‘levanta, vai dar banho na sua filha’. Mas me doía” (Tradução da autora). 158
“Desse medo eu não fui ao hospital. Tive minha filha em casa. Muitas pessoas me diziam: ‘te tratam mal no
hospital’ (...) Meu esposo me ajudou e só depois que nasceu o bebê, chamei a ambulância” (Tradução da autora). 159
“E quando necessitamos fazer exame, chegamos cedo ao hospital e as brasileiras dizem: ‘boliviano não tem
direito. Eles são estrangeiros. Podem ser atendidos depois, não primeiro que nós” (Tradução da autora). 160
“índio, é dia de vocês hoje” (Tradução da autora).
96
necessito, no permitas este momento’. Y ellos nos han mirado y se han dado
la vuelta 161
(Carmen, entrevista realizada em 12/02/2017).
Esta fala nos remete a outro elemento muito presente entre as narradoras-entrevistadas: a
relação com a fé, que discutiremos no item a seguir.
3.4 A fé e os filhos como forma de resistência
Cuantas veces he intentado suicidarme, dije: ‘ya no quiero ver este mundo
tan mal que es’ (...). Si no fuera a la psicóloga ahorita no estaría sentada
aquí, talvez estaría debajo de la tierra (...) Cuando he comenzado a volver a
leer la Biblia, volver a creer en las mujeres psicólogas, me he levantado 162
(Carmen, Entrevista realizada em 12/02/2017).
A leitura da Bíblia, a confiança no Espírito Santo e as orações ajudaram Carmen a sair da
depressão e lhe deu forças para superar a traição do marido. A boliviana afirmou que sempre
se lembrava das palavras que agora reproduz às suas conterrâneas: “Ponha-te forte, são coisas
que se passam aqui na Terra”. A crença em uma espécie de justiça divina também apareceu
nas conversas. Lourdes contou-nos que: “Cuando no me pagaron163
tentei ir ao CAMI pedir
ajuda de um advogado, mas não deu resultado...A vontade de Deus é mais grande que a nossa,
Deus é mais justo que nós”.
Em geral, para além do conforto espiritual, as igrejas são instituições que acolhem os
imigrantes. As cinco narradoras-entrevistadas possuem o hábito de frequentar a igreja,
evangélica ou católica. Algumas, como Zelaide, gostam do espaço, porque ganham cesta
básica, “ellos saben ayudar” 164
. Outras encontraram no local uma forma sociabilidade, visto
que sempre há uma igreja por perto e, às vezes, é difícil pegar ônibus para ir à Praça da
Kantuta, por exemplo. Carmen mencionou também a importância da igreja para melhorar sua
relação com o marido, segundo ela: “o encontro de casais ajudou bastante”. Para além de
Deus, os filhos são constantemente lembrados nas falas das narradoras-entrevistadas. Ambos
são motivadores de uma postura de resistência perante à vida.
É comum que os filhos do mesmo casal de imigrantes bolivianos nasçam em países
distintos, entre a Bolívia, o Brasil e a Argentina devido à dinâmica migratória. Em geral, eles
161
“Tinha os últimos 50 reais para fazer meu Natal. Tinha que comprar frutas e batatas... E esse ano com meu
marido, a rua estava vazia e três ladrões vieram. Me recordei que Deus te abriga neste momento. A casa estava
vazia, não havia ninguém que respirava. Eu disse: ‘Senhor, me abraça, porque não quero me assustar novamente.
Senhor, neste momento te necessito, não permita esse momento’. E eles nos olharam e deram a volta” (Tradução
da autora). 162
“Quantas vezes tentei me suicidar, disse: ‘já não quero ver este mundo tão mal que é’ (...). Se não fosse a
psicóloga, agora não estaria sentada aqui, talvez estaria debaixo da terra. Quando comecei a voltar a ler a Bíblia
e voltei a crer nas mulheres psicólogas, me levantei” (Tradução da autora). 163
“Quando não me pagaram” (Tradução da autora). 164
“Eles sabem ajudar” (Tradução da autora).
97
são parte da motivação para migrar, não apenas pelo desejo dos pais de lhes oferecer melhores
oportunidades, mas também para afastá-los daquilo que suas mães consideram como ruim na
terra natal. Um exemplo disso são as intrigas familiares. As estratégias adotadas em relação
aos filhos variam. Algumas os trazem imediatamente, outras esperam que sua situação se
estabilize para, então, ir buscá-los. Deixá-los ou trazê-los tem seus custos.
A maternidade à distancia é um dilema na vida das mulheres imigrantes. Sara deixou
sua filha na Bolívia com um ano de idade e só a encontrou novamente três anos depois:
“Desconhecia minha filha. A única coisa que perdi foi o crescimento da minha filha, não
acompanhei nada dela. Quando ela chegou, não me enxergava como mãe, eu chorei muito,
perdi muito tempo para trazê-la aqui”. Dez anos depois, ela teve o segundo filho no Brasil e
afirmou que “aquilo que não curti com minha filha, tô curtindo com meu filho”. No presente
momento, afirmou ter conquistado um conforto material com a costura: “Tenho um sofá bom
para deitar, uma TV gigante para assistir e curtir com meu filho”.
Lourdes tem quatro filhos de 21, 18, 10 e 6 anos. Todos nasceram na Bolívia com
exceção do caçula, nascido na Argentina. Quando migrou para Argentina, deixou seus dois
filhos na Bolívia, um com sua mãe e outro com a sogra. Em 2013, na vinda para o Brasil,
trouxe o mais velho e o mais novo. Seu primogênito também costura:
Ele acabou a escola na Bolívia, não gosta da costura, mas tem que fazer,
senão do que vai trabalhar? (...) Eu disse para ele: ‘Eu queria que você
estude para que não acontecesse a mesma coisa que estou passando’. (...)
Aqui tem muitas formas para estudar, mas ele não foi atrás (Entrevista
realizada em 02/07/2017).
Depois de cinco meses, retornou à Bolívia para buscar os outros. Sua única filha mulher que
havia ficado lá passou a desobedecer aos tios. “Achei que melhor que ela esteja com seus
pais”. E, como contamos no Capítulo 1, ela também passou a costurar aos 14 anos de idade.
Se deixar os filhos no país de origem é difícil, migrar junto deles não é diferente. Foi
comum ouvirmos das narradoras-entrevistadas que seus filhos não eram bem tratados nas
oficinas. As mulheres com filhos, independente do estado civil, encontram dificuldade para
arranjar trabalho. Isso porque os donos de oficinas não querem crianças circulando e
atrapalhando a produção. Além de estarem expostas aos mesmos riscos de saúde e segurança
que os demais trabalhadores, elas passam grande parte de seus dias fechadas nos quartos e
dentro do mesmo ambiente insalubre que seus pais. Em casos extremos, foram encontradas
crianças amarradas ao pé das máquinas de costuras (TELES, 2007 apud ILLES; TIMÓTEO;
FIORUCCI, 2008).
Os costureiros, pais e mães das crianças, costumam ouvir reclamações de que seus
98
filhos atrapalham e gastam água. A comida é regulada, às vezes oferecem alimentação
suficiente apenas para um filho. Os que têm mais filhos precisam dividir essa porção com os
demais. E, como não recebem refeições aos domingos, aqueles com mais crianças têm mais
gastos. Outra dificuldade relatada refere-se às brigas entre os filhos dos costureiros.
Cansada de não expor seus filhos, de 12 e 15 anos, às situações descritas acima Luz
decidiu procurar um lugar para morar fora da oficina. No primeiro local, o dono reclamava:
“Yo no soy portero. Aquí tiene horas para llegar, voy a cambiar el candado”. Segundo ela:
“mis hijos se entraban a duchar, le bajaba la palanca y este tiempo estaba frío.(...) No, mis
hijos no pueden estar así, se van a traumar. En el trabajo no estaba tranquila” 165
. Buscou
outro quarto. Uma semana depois da mudança, a dona, também boliviana, disse que precisava
do espaço para colocar máquinas de costura. Antes mesmo de saírem do local, instalaram as
máquinas e costuravam até 2h, “no podía dormir...” 166
.
Apesar das dificuldades enfrentadas, todos os sacrifícios são justificados pelos filhos.
“Já passei muitas coisas, mas penso: ‘não tenho que deprimir, porque quem vai sofrer vai ser
meus filhos’”. Foi por eles que Luz decidiu aumentar a extensão de sua jornada de trabalho e
alugar um quarto fora da oficina. Carmen aprendeu português para conseguir levar seu filho
ao médico. Teve que “se virar” pela cidade até descobrir que ele tinha autismo e para
conseguir tratamento para ele. A apropriação de seus direitos, em termos de políticas públicas
oferecidas na saúde, educação, assistência social, transporte, se deu por causa dele. “Você tem
que ser forte para os seus filhos. Se você é fraca vai passar isso para seus filhos”. De acordo
com Zelaide: “Me canso, me duele, me aguanto, tengo que trabajar Qué voy
hacer?(...)Trabajo para mi hijos me da más ánimo ver a mis hijos crecer” 167
.
Assim como foram uma das razões para a saída, os filhos são também uma das razões
para a permanência no Brasil. As narradoras-entrevistadas sabem que eles já se acostumaram
com o novo país (alguns nasceram aqui) e não querem voltar. Elas nos contaram acerca do
estranhamento de seus filhos ao visitarem a Bolívia, principalmente entre as que são
provenientes de áreas rurais do país. Luiz, filho de Carmen, teve nojo de pisar na terra. Ele
não gostou da comida, “eca, decía él” 168
quando deram chuño. Carla, filha de Zelaide,
abraçou as ovelhas, gritou com as galinhas, queria ir a todo lado. Não estava habituada com
165
“Eu não sou porteiro. Aqui tem hora para chegar, vou trocar o cadeado”. Segunda ela: “meus filhos entravam
para tomar banho e ele puxava a alavanca [chave geral elétrica]. Nessa época estava frio. Não, meus filhos não
podem estar assim, vão se traumatizar. No trabalho não estava tranquila” (Tradução da autora). 166
“Não podia dormir” (Tradução da autora). 167
“Me canso, me dói, me aguento, tenho que trabalhar o que vou fazer (...). Trabalho para meus filhos, me dá
animo ver meus filhos crescerem” (Tradução da autora). 168
“Eca, dizia ele” (Tradução da autora).
99
tanto espaço livre.
A oportunidade de estudo também influencia na decisão de permanecer no Brasil. “Eu
não vou poder chegar no meu objetivo [de ser professora] mas meus filhos têm muito pela
frente (...) quero que sejam melhores do que eu, quero que sejam profissionais, o que eu
sonhava para mim, e não consegui, quero que seja para meus filhos”, afirmou Lourdes. “No
quiero que trabalhem lo mismo jeito que estou trabalhando agora” 169
.
É interessante notar que apesar das falas reproduzidas acima, os desejos pessoais
também apareceram nas conversas. De uma forma ou de outra, estar no Brasil abriu uma
janela de possibilidades ainda não concretizadas, mas já idealizadas:
Tô querendo ir na Bolívia estou pensando...Vou ir lá, fazer minha
documentação pra poder trazer aqui e estudar alguma coisa (Lourdes,
entrevista realizada em 02/07/2017).
No queiro costurar, quiero me dedicar a estudiar, a cuidar de las mujeres 170
(...) Admiro a carreira de psicóloga que elas estudam para saber escutar.
Elas se sentam frente a frente para te escutar, porque marido não senta, nem
amiga que não tem tempo, nem a mãe... Por isso quero ser psicóloga.
Sempre digo a elas [às outras bolivianas]: ‘minha casa esta aberta para
vocês, tenho tempo para vocês!’ (Carmen entrevista realizada em
29/06/2017).
Em fevereiro estou entrando no Instituto Paulista para fazer enfermagem.
Porque acho assim o estudo que vai te dar algo, a costura não vai me dar
nada, só vai manter pagar minhas contas... Eu já não me vejo mais na
costura, mas o que deu início pra mim foi a costura, deu tudo pra mim (Sara,
entrevista realizada em 05/07/2017).
169
“Não quero que trabalhe o mesmo jeito que estou trabalhando agora” (Tradução da autora). 170
“Não quero costurar, quero me dedicar a estudar, a cuidar das mulheres” (Tradução da autora).
100
Considerações Finais
Ao longo desta pesquisa, discorremos acerca da dinâmica das relações sociais de sexo
nas oficinas de costura, identificando aspectos da divisão sexual do trabalho bem como o do
chamado trabalho análogo ao de escravo. Como fio condutor da dissertação, utilizamos a
percepção das narradoras-entrevistadas acerca destes temas, buscamos investigar como elas
reconhecem e vivenciam as desigualdades de gênero no ambiente da oficina e como enxergam
suas próprias condições de trabalho em São Paulo. A técnica principal utilizada foi a da
história de vida e, conforme explicamos na Introdução, esta se define pelo relato livre das
narradoras sobre sua existência através do tempo. No caso das cinco narradoras-entrevistadas,
tais relatos nos levaram a abordar a questão da violência contra a mulher e da dedicação aos
filhos.
Vimos que o papel de gênero afeta de forma diferenciada a experiência de homens e de
mulheres que migram. E, apesar das hierarquias de gênero migrarem juntas às pessoas, o ato
de deixar o país de origem pode representar um rompimento com ordenamentos tradicionais,
uma maneira de construção de autonomia e de possibilidade de reconfiguração das estruturas
familiares. Tais mudanças, no entanto, não possuem regras ou direções lineares. Ao chegarem
em São Paulo, apesar de ocuparem o mesmo posto de trabalho, as condições laborais incidem
de forma desigual sobre homens e mulheres.
Durante a análise, nos esforçamos para olhar as trabalhadoras enquanto grupo social
inserido em uma estrutura e, ao mesmo tempo, percebê-las enquanto sujeit(a)s – cada qual
com sua particularidade e subjetividade – que (re)agem apesar das condições impostas pela
organização social. Neste sentido, tanto a migração quanto o trabalho – processos sociais
centrais na trajetória das cinco narradoras-entrevistadas – foram abordados a partir da escala
macro e micro, da dupla dimensão “do fato coletivo e do itinerário individual” (SAYAD,
1998, p.3).
A fim de pensar o trabalho destas imigrantes na costura tendo em vista as condições
precárias, abordamos a reorganização produtiva do setor têxtil e utilizamos o modelo das
RGPs, que nos ajudou a localizar e inserir as trabalhadoras no contexto de uma economia
globalizada, ao mesmo tempo em que foi uma forma de olhar para o fenômeno do trabalho
análogo ao de escravo como parte do modo de produção capitalista, no qual grupos sociais
estão inseridos de forma adversa. No caso da abordagem micro, nos empenhamos em
compreender os aspectos que permeiam a rotina diária de cada uma delas.
101
Se, por um lado, a categoria “trabalho análogo ao de escravo” é uma construção
política e jurídica, que visa punir quem lucra com a precarização do trabalho e fere os direitos
humanos e que possibilita reparos aos trabalhadores, por outro, resgatar os trabalhadores não
altera o modo de organização e competição da indústria têxtil, mas sim, evita a chamada
concorrência desleal. Como apontou Figueira, “sem tocar profundamente na distribuição de
renda, sem gerar empregos e superar os bolsões de miséria e desemprego, sem oferecer uma
educação pública de boa qualidade para todas as pessoas, a solução continuará distante”
(FIGUEIRA, 2011, p. 11).
Após quase 30 anos do início do fluxo migratório boliviano, a capital paulista continua
atraindo imigrantes que estão em busca de oportunidades de trabalho. E as oficinas de costura
continuam sendo o espaço de inserção econômica reservados a elas e a eles. Em termos da
relação dos imigrantes com a sociedade receptora desta mão de obra, conforme observou
Sayad:
Os imigrantes começaram a tomar hábito de reivindicar, de forma
extremada, poderíamos dizer, seu direito a uma existência plena e não mais
apenas seus direitos parciais de trabalhadores imigrantes. Ao se afastarem
dos limites que lhes haviam sido outorgados, ao ultrapassarem seu papel de
imigrantes, eles deixaram, em certa medida, de se parecer com a definição
que deles se dava (SAYAD, 1998, p. 48).
Através do conceito de agência individual buscamos destacar os “acordos implícitos
entre os membros das oficinas no marco de uma relação desigual” (MIRANDA, 2016) e o
papel ativo das imigrantes que produz movimento apesar de estarem em posições
desprivilegiadas na organização social. No caso dos bolivianos, novos espaços vêm sendo
cavados. Como podemos perceber pela fala de Carmen: “No CRAS [Centro de Referência de
Assistência Social], as brasileiras gritam, elas dizem: ‘tenho direito, tenho duas bocas para
alimentar’. Nós, bolivianos não gritamos, dizemos ‘por favor’... Dá medo como somos
imigrantes... Mas um dia, comecei a gritar, igual as brasileiras” (grifo da autora).
Além disso, sob o ponto de vista dos indivíduos considerados escravizados, a atividade
da costura é complexa em todos seus sentidos: reforça a posição na base da cadeia produtiva
ao mesmo tempo em que permite uma mobilidade; o casal de costureiros depende um do
outro na produção, ao mesmo tempo em que o homem exerce sua dominação masculina; é
degradante, mas ao mesmo tempo, oferece uma compensação econômica; as jornadas são
exaustivas, mas também são passíveis de uma escolha restrita por parte dos próprios
costureiros – quanto mais avançam, mais recebem; reconhecem a exploração, mas querem
estar na posição de donos de oficina; costuram roupas, mas não conseguem comprá-las;
passam por situações análogas a de escravo (definidas pelo artigo 149), mas não se veem
102
enquanto trabalhadores escravizados; ganham mais do que se estivessem na Bolívia, mas não
desejam o mesmo trabalho a seus filhos; vieram por um período provisório, mas vão
permanecer...
Antes de finalizar esta dissertação, cabe retomar a pergunta que apresentamos na
Introdução desta pesquisa: “O que essa interpretação vai significar?”.
Na escrita, procuramos esclarecer que poderiam ser as brasileiras, as paraguaias, as
peruanas, as haitianas o grupo social de mulheres a ser estudado, ou que não há uma aptidão
natural das bolivianas em relação à costura. Mas fizemos uma opção pelas bolivianas. Por
serem imigrantes, estão invariavelmente mais suscetíveis aos abusos do sistema e das pessoas
do que as trabalhadoras nascidas no Brasil. E, dentre o grupo de imigrantes presentes em São
Paulo e que tem se ocupado do ofício da costura, optamos pelas bolivianas por ser o grupo
quantitativamente mais relevante e por carregar um estigma na sociedade receptora, pela
necessidade de desnaturalizar a tríade “bolivianos-costura-trabalho escravo”.
Por outro lado, não há como negar que este grupo está ligado, sim, a um problema
social que foi central na discussão desta pesquisa, o trabalho análogo ao de escravo. Contudo,
a utilização da técnica da história de vida foi uma forma de escutá-las, de saber o que pensam
sobre as características que lhes são atribuídas pelos moradores de São Paulo, pelas
autoridades públicas e pelos pesquisadores.
O que essa interpretação vai significar? Fizemos o esforço do registro da fala e da
opinião delas. Como uma forma de não tratá-las como vítimas, mas sim compreender como é
feita a negociação para um melhor viver dentro das oportunidades restritas. Enquanto
escrevemos ou lemos este material, são muitas as mulheres (e homens também) que estão nas
oficinas costurando em São Paulo. Todas com caminhos semelhantes, mas cada uma com
histórias de vidas singulares. Essa interpretação significa também trazer as particularidades de
Carmen, Lourdes, Luz, Sara e Zelaide a partir do estabelecimento do que as aproxima e do
que as diferencia.
103
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Suely Souza de. Essa violência mal-dita. In: ___ (Org.). Violência de gênero e
Políticas Públicas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. p. 23-41.
ALMEIDA, Táli Pires. As imigrantes sul-americanas em São Paulo: o trabalho feminino na
construção de trajetórias transnacionais. 2013. 128 f. Dissertação (Mestrado em Ciência para
análise da Integração da América Latina) – Instituto de Relações Internacionais, Universidade
de São Paulo, São Paulo.
______. Migração internacional de mulheres: uma agenda para o feminismo. In: Moreno,
Renata (Org.). Feminismo, Economia e Política: debates para a construção da igualdade e
autonomia das mulheres. São Paulo: SOF Sempreviva Organização Feminista, 2014. p. 123-
143.
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do
trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2009.
______. O continente do labor. São Paulo: Boitempo, 2011.
BALES, Kevin. Gente Descartável: A nova escravatura na economia global. Lisboa:
Caminho, 2001.
BARRAL, Ana Inés Mallimaci. Migraciones y géneros. Formas de narrar los movimientos
por parte de migrantes bolivianos/as en Argentina. Revista Estudos Feministas. Florianópolis,
v. 19, n. 3, p. 751-776. 2011. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2011000300006/21346>.
Acesso em: 10 abr. 2016.
BARRIENTOS, Stephanie et al. Dynamics of Unfree Labour in the Contemporary Global
Economy. The Journal of Development Studies, [s.l.], v. 49, n. 8, p. 1037–1041. 2013.
Disponível em: < http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/00220388.2013.780043>.
Acesso em: 12 ago. 2016.
BECKER, Howard. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. Tradução Marco Estevão e
Renato Aguiar. São Paulo: Editora Hucitec, 1993.
BIGNAMI, Renato. Trabalho escravo contemporâneo: o sweating system no contexto
brasileiro como expressão do trabalho forçado urbano. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA,
Marcos Neves (Coord). Trabalho Escravo Contemporâneo – o desafio de superar a negação.
2. ed. São Paulo: LTR, 2011.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kunner. 3.ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
BOYD, Monica; GRIECO, Elizabeth. Women and Migration: Incorporating Gender into
International Migration Theory. Migration Institute Police, Washington. 2003. Disponível em:
<http://www.migrationpolicy.org/article/women-and-migration-incorporating-gender-
international-migration-theory>. Acesso em: 02 nov. 2016.
CABREIRA, Lucas Ferreira; WOLFF, Simoni. Precarização e informalidade na indústria de
confecções em Cianorte (PR): crise na tutela trabalhista. In: LOURENÇO, Edvania;
104
NAVARRO, Vera (Org.). O avesso do trabalho: Saúde do trabalhador e questões
contemporâneas. São Paulo: Outras Expressões, 2013. p. 199-218.
CARSWELL, G.; DE NEVE, G. Labouring for global markets: Conceptualising labour
agency in global production networks. Geoforum, [s.l.],v. 44, p. 62-70, 2013. Disponível em:
< http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0016718512001315>. Acesso em: 10 ago.
2016.
CERQUEIRA et al. (Org.). Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: contribuições
críticas para sua análise e denúncia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.
CISNE, Mirla. Relações sociais de sexo, “raça”/etnia e classe: uma análise feminista-
materialista. Temporalis, Brasília, n. 28, p. 133-149, jul./dez. 2014. Disponível em: <
http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/7886/6149>. Acesso em: 10 jan. 2017.
COLECTIVO SINBIOSIS CULTURAL; COLECTIVO SITUACIONES. De chuequistas y
orverlockas. Una discusión en torno a los talleres textiles. Buenos Aires: Tinta Limón
Ediciones, 2010.
CORRÊA DA SILVA, Waldimeiry. Tráfico de mulheres: necessidades, realidades e
expectativas. In: FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia; ANTUNES, Horácio (Org.).
Trabalho Escravo Contemporâneo um debate transdisciplinar. Rio de Janeiro: Mauad X,
2011. p. 195-224.
CÔRTES, Tiago Rangel. Os migrantes da costura em São Paulo: retalhos de trabalho, cidade
e Estado. 2013. 277 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
DA SILVA, Silvana. Circuito espacial produtivo das confecções e exploração do trabalho na
metrópole de São Paulo. Os dois circuitos da economia urbana nos bairros do Brás e Bom
Retiro (SP). 2012. 362f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo:
Boitempo, 2016.
DELPHY, Christine. Patriarcado (teoria dos). In: HIRATA, Helena et al. (Org.). Dicionário
Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 173-178.
DERMATINI, Zelia. Pesquisa histórico-sociologica, relatos orais e imigração. In:
DERMATINI, Zelia; TRUZZI, Oswaldo (Org.). Estudos Migratórios Perspectivas
metodológicas. São Carlos: EdUFSCar, 2005. p. 87-109.
EMERY, Márcio de Moraes. O impacto da abertura ao comércio exterior da década de 1990
no setor têxtil brasileiro. 2007. 191 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de
Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2007.
ESTERCI, Neide. Escravos da Desigualdade: estudo sobre o uso repressivo da força de
trabalho hoje. Rio de Janeiro: Cedi/Koinonia, 1994.
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando Fora da Própria Sombra. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2004.
105
______. A persistência da Escravidão ilegal no Brasil. Lugar Comum, Rio de Janeiro, n. 33-
34, p. 105-121. 2011. Disponível em: <
http://www.gptec.cfch.ufrj.br/pdfs/A_persistencia_da_Escravidao_ilegal_no_Brasil.pdf >.
Acesso em: 08 jul. 2017.
______. Prefácio. In: MOURA, Flávia de Almeida. Trabalho escravo rural e mídia: olhares
de trabalhadores rurais maranhenses. São Luis: EdUFMA, 2016.
FIGUEIRA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes. Ele não chega nunca... Experiências
de mulheres no contexto do trabalho escravo. Revista Interdisciplinar da Mobilidade
Humana. Brasília, Ano XIX, n. 37, p. 175-192. 2011.
FIGUEIRA, Ricardo; CERQUEIRA, Gelba; OLIVEIRA, Maria Amália. Representações
sociais de mulheres de ambiente, donas de pensão e parentes dos trabalhadores submetidos à
escravidão. In: CERQUEIRA et al . (Org.) Trabalho Escravo contemporâneo no Brasil:
contribuições críticas para sua análise e denúncia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. p. 291-310.
FIGUERIA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes (Org.). Olhares sobre a escravidão
contemporânea: novas contribuições críticas. Cuiabá: EdUFMT, 2011.
FIGUEIRA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes; SANT’ANA JUNIOR, Horacio
Antunes (Org.). Trabalho Escravo Contemporâneo: um debate transdisciplinar. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2011.
FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia, GALVÃO, Edna (Org.). Privação de liberdade ou
atentado à dignidade: escravidão contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013.
FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia, GALVÃO, Edna (Org.). A Universidade discute a
escravidão contemporânea: práticas e reflexões. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015.
FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia; GALVÃO, Edna (Org.). Discussões Contemporâneas
sobre Trabalho Escravo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.
FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia, GALVÃO, Edna (Org.). Trabalho Escravo
Contemporâneo: estudos sobre ações e atores. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017.
FILGUEIRAS, Victor de Araújo. Trabalho análogo à de escravo e o limite da relação de
emprego: natureza e disputa na regulação do Estado. In: FIGUERIA, Ricardo; PRADO,
Adonia, GALVÃO, Edna (Org.). A Universidade discute a escravidão contemporânea:
práticas e reflexões. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015. p. 133-156.
FREIRE DA SILVA, Carlos. Trabalho Informal e Redes de Subcontratação: Dinâmicas
Urbanas da Indústria de Confecção em São Paulo. 2008. 147 f. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2008.
FREITAS, Patrícia Tavares de. Migrações Internacionais Imigração e empreendimentos
econômicos – o circuito de confecção e comercialização de roupas em torno de imigrantes
coreanos e bolivianos na cidade de São Paulo. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 32.
2008, Caxambu. Anais Grupo de Trabalho: Migrações Internacionais, Caxambu: ANPOCS,
2008.
106
______. Família e inserção laboral de jovens migrantes na indústria de confecção. Revista
Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, Ano XXII, n. 42, p. 231-246. 2014.
GARCIA, Luana de Freitas (Org.). Histórias que se cruzam na Kantuta. São Paulo: VGL
Publishing, 2016.
GONÇALVES, Renata. O feminismo marxista de Heleieth Saffioti. Lutas Sociais, São Paulo,
v.27, p. 119-131, 2º sem. 2011. Disponível em: <
http://www4.pucsp.br/neils/revista/vol_27.html> Acesso em: 12 jul. 2017.
GOMES, Ângela de Castro. Trabalho Análogo à de escravo: construindo um problema.
História Oral, [s.l.], v. 11, n.41, jan./dez. 2008. Disponível em: <
http://revista.historiaoral.org.br>. Acesso em: 21 fev. 2016.
HENDERSON, J. et al. Redes de produção globais e a análise do desenvolvimento
econômico. Revista Pós Ciências Sociais, São Luis, v. 8, n. 15, p. 143-170. 2011. Disponível
em:<http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/590>. Acesso
em: 08 jul. 2016.
HIRATA, Helena. Trabalho, gênero e dinâmicas internacionais. Revista da ABET, [s.l.], v.15,
n.1. p. 9-21. Jan./jun.2016. Disponível em:
<http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/abet/article/view/31256>. Acesso em: 23 jan. 2017.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Daniéle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho.
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007. Disponível em:<
http://scielo.br/pdf/cp/v37n132/a0537132>. Acesso em: 15 jul. 2016.
______. Paradigmas sociológicos e categoria de gênero. Que renovação aporta a
epistemologia do trabalho? Novos Cadernos NAEA, Belém, v. 11, n. 1, p. 39-50, 2008.
Disponível em:< http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/262>. Acesso em:
13 abr. 2017.
IASI, Mauro. Trabalho: emancipação e estranhamento? In: SANT’ANA, Raquel et al. (Org.).
O avesso do trabalho II: Trabalho, precarização e saúde do trabalhador. São Paulo: Expressão
Popular, 2010. p. 61-83.
ILLES, Paulo; TIMOTEO, Gabrielle Louise Soares; FIORUCCI, Elaine da Silva. Tráfico de
Pessoas para fins de exploração do trabalho na cidade de São Paulo. Cadernos
Pagu, Campinas, n. 31, p.199-217. 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/cpa/n31/n31a10.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2016.
JINKINGS, Isabella; AMORIM, Elaine Regina Aguiar. Produção e Desregulamentação na
indústria têxtil e de confecção. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho
no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. p.337-385.
JOANONI, Vitale. Mapeamento das redes de resistência e conivência em polos irradiadores
de trabalho escravo contemporâneo no estado do Mato Grosso
In: CERQUEIRA et al . (Org.) Trabalho Escravo contemporâneo no Brasil: contribuições
críticas para sua análise e denúncia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. p. 241-252.
KATZ, Cindi. Growing up Global: Economic Restructuring and Children’s Everyday Lives.
Minneapolis : University of Minnesota Press, 2004.
107
KERGOAT, Danièle. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES,
Marta; MEYER, Dagmar; WALDOW, Vera (Org.). Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1996. p. 19-27.
______. Em defesa de uma sociologia das relações sociais. Da análise crítica das categorias
dominantes à elaboração de uma nova conceituação. In: KARTCHEVSKY, Andree et al. O
sexo do trabalho.Tradução Sueli Cassal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 79-94.
______. Divisão Sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena. et al.
Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 64-75.
______. Compreender as lutas das mulheres por sua emancipação pessoal e coletiva. In:
Moreno, Renata (Org.) Feminismo, Economia e Política: debates para a construção da
igualdade e autonomia das mulheres. São Paulo: SOF Sempreviva Organização Feminista, p.
11-21. 2014. Disponível em: < http://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2015/08/Economia-
e-poli%CC%81tica-web.pdf >. Acesso em: 20 jul. 2017.
KLEBER DA SILVA, Haike Roselane. Considerações e confusões em torno de história oral,
história de vida e biografia. MÉTIS: história & cultura, Caxias do Sul, v. 1, n. 1, p. 25-38, jan./jun.
2002. Disponível em:
<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/viewFile/1037/703>. Acesso em: 04
jul 2017.
LAKHDAR, Sophia. O tráfico humano na França. In: FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia,
GALVÃO, Edna (Org.). Privação de liberdade ou atentado à dignidade: escravidão
contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013. p. 445-460.
LIMA, Márcia. O uso da entrevista na pesquisa empírica In: ABDAL, Alexandre et al. (Org.).
Métodos de pesquisa em Ciências Sociais: Bloco Qualitativo. São Paulo: Sesc/CEBRAP,
2016. p. 24-41.
LOPES-CÓRDOVA, Dania. La Esclavitud Contemporánea em La Zona Andina: Un
Acercamiento Bibliográfico. In: FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia, GALVÃO, Edna
(Org.). Privação de liberdade ou atentado à dignidade: escravidão contemporânea. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2013. p. 461-486.
MAGLIANO, María José. El rol de La mujer boliviana en el proceso migratório hacia
Córdoba, 1947-2001. 2008. 423 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e
Humanidades, Universidade Nacional de Córdoba, Córdoba, 2008.
MARTINEZ, Vanessa Nogueira. Equidade em saúde: o caso da tuberculose na comunidade de
bolivianos no município de São Paulo. 2010. Dissertação (Mestrado em Epidemiologia) –
Faculdade de Saúde Publica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
MARTINS, José de Souza. A Escravidão nos dias de hoje e as ciladas da interpretação-
Reflexões sobre riscos da intervenção subinformada. In: Comissão Pastoral da Terra (Org.)
Trabalho Escravo no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 127-163.
______. A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão do
Brasil.Tempo social, São Paulo, n.6, p. 1-25. 1994. Disponível em:<
http://www.scielo.br/pdf/ts/v6n1-2/0103-2070-ts-06-02-0001.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2016.
108
MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital & salário, preço e lucro. São Paulo: Expressão
Popular, 2. ed., 2010.
MCGRATH, Siobhán. The Political Economy of Forced Labour in Brazil: Examining labou
dynamics of production networks in two cases of ‘slave labour’. 2010. 294 f. Tese (Doutorado
em Filosofia) – Faculdade de Humanidades, University of Machester, 2010.
______. Fuelling global production networks with slave labour? Migrant sugar cane workers
in the Brazilian ethanol GPN. Geoforum, [s.l.], v. 44, p. 32-43, 2013a. Disponível em: <
http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0016718512001340 >. Acesso em: 20 dez.
2016.
______. Many chains to break The Multi-dimensional Concept of Slave Labour in Brazil.
Antipode, [s.l.], v. 45, n. 4, p. 1005-1028, 2013b. Disponível em: <
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-8330.2012.01024.x/full>. Acesso em: 20
dez. 2016.
MERCANTE, Carolina Vieira. A terceirização na indústria de confecções e a reincidência do
trabalho análogo à de escravo. In: ENCONTRO NACIONAL DA ABET, 16. 2015, Campinas.
Anais Grupo de Trabalho: Formas de trabalho degradante, Campinas: ABET, 2015.
MILANEZ, B.; SANTOS, R. S. P. A Rede Global de Produção (RGP) do Minério de Ferro:
empresas, Estado e agentes de contestação. Congresso Brasileiro de Sociologia, 16. 2013,
Salvador. Anais Grupo de Trabalho: Sociologia Econômica, Salvador: SBS, 2013.
MILANI, Márcio Rached. Trabalho Escravo como uma das violações dos direitos humanos:
panorama internacional e dos mecanismos de pressão. In: CERQUEIRA et al . (Org.)
Trabalho Escravo contemporâneo no Brasil: contribuições críticas para sua análise e
denúncia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. p.133-140.
MIRANDA, Bruno. Entre coerción y consentimiento: la circulación de trabajo no-libre
boliviano visto desde un taller de costura de Bom Retiro, São Paulo. 2016. 306f. Tese
(Doutorado em ciências políticas e sociais) – Instituto de Investigaciones Sociales,
Universidad Nacional Autónoma de México, México D.F., 2016.
______. “Uno ya sabe a lo que viene”: la movilidad laboral de migrantes andino-bolivianos
entre talleres de costura de São Paulo explicada a la luz de la producción del consentimiento.
Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, v. 25, n. 49, p. 197-213. 2017.
Disponível em: < http://www.csem.org.br/remhu/index.php/remhu>. Acesso em: 02 ago.
2017.
MOLTÓ, Irene Lobo. Sueñoes y realidades de mujeres que migran y retornan de España. La
Paz: Instituto Sindical de Cooperación al Desarrollo, 2011.
MORAES SILVA, Maria Aparecida de. Contribuições Metodológicas para a análise das
migrações. In: DERMATINI, Zelia; TRUZZI, Oswaldo (Org.). Estudos Migratórios
Perspectivas metodológicas. São Carlos: EdUFSCar, 2005. p. 53-86.
MOURA, Flávia de Almeida. Trabalho escravo rural e mídia: olhares de trabalhadores rurais
maranhenses. São Luis: EDUFMA, 2016.
109
NAWYN, Stephanie. Gender and Migration: Integrating Feminist Theory into Migration
Studies. Sociology Compass, [s.l.], v. 4, p.749-765, 2010. Disponível em:
<http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1751-9020.2010.00318.x/abstract> Acesso em:
03 ago. 2016.
NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia Política: uma introdução crítica. São Paulo:
Cortez Editora, 2012.
NILCONSHON, Linda. Interpretando o gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis,
v.8, n.2, p.9-42. 2000. Disponível em:
<http://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/11917>. Acesso em: 08 dez. 2016.
NOGUEIRA, Claudia Mazzei. A feminização do mundo do trabalho: entre a precarização e a
emancipação. In: ANTUNES, Ricardo; SILVA, Maria A. Moraes (Org.). O avesso do trabalho
2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010. p.199-234.
______. O trabalho duplicado A divisão sexual do trabalho e na reprodução: um estudo das
trabalhadoras do telemarketing. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011a.
______. Integrar desintegrando: as metamorfoses no mundo do trabalho feminino, na
agroindústria. Lutas Sociais, São Paulo, v.27, p. 186-199, 2º sem. 2011b. Disponível em: <
http://www4.pucsp.br/neils/revista/vol_27.html> Acesso em: 12 jul. 2017.
______. Adeus ao trabalho? Vinte anos depois... Entrevista com Ricardo Antunes. Serviço
Social & Sociedade, São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n124/0101-6628-sssoc-124-0773.pdf >. Acesso em: 04 jun.
2017.
NOVAES, Marina Martins. Sujeitas de direitos: história de vida de mulheres bolivianas,
peruanas e paraguaias na cidade de São Paulo. 2014. 177f. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2014.
PERICÁS, Luiz Bernardo. Processo e desenvolvimento da revolução boliviana. Lutas Sociais,
São Paulo, n.3, p.109-122, 1997. Disponível em: <
http://www4.pucsp.br/neils/downloads/v3_artigo_pericas.pdf> Acesso em: 07 jul. 2017.
PHILLIPS, Nicola. Mirando nas redes globais de produção e acertando no trabalho forçado.
In: FIGUEIRA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes; SANT’ANA JUNIOR, Horacio
Antunes (Org.). Trabalho Escravo Contemporâneo: um debate transdisciplinar. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2011, p. 157-178.
PHILLIPS, Nicola; SAKAMOTO, Leonardo. Global Production Networks, Chronic Poverty
and ‘Slave Labour’ in Brazil. Studies in Comparative International Development, [s.l.], n. 47,
p. 287–315. 2012.Disponível em:< https://link.springer.com/content/pdf/10.1007/s12116-
012-9101-z.pdf >. Acesso em: 12 abr. 2016.
PHILLIPS, Nicola et al. The social foundations of global production network: towards a
global political economy of child labour. Third World Quarterly, [s.l], v.35, n.3, p. 428-446.
2014. Disponível em:
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/01436597.2014.893486?journalCode=ctwq20>.
Acesso em: 20 jul. 2016.
110
PISCITELLI, Adriana. Recriando a (categoria) Mulher? In: ALGRANTI, Leila (Org.). A
prática Feminista e o Conceito de Gênero. Campinas: IFCH-UNICAMP, 2002, p.7-42.
PRADO, Adonia. Entre lembranças e perdas: a memória que não se cala. In: CERQUEIRA et
al . (Org.) Trabalho Escravo contemporâneo no Brasil: contribuições críticas para sua análise
e denúncia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. p. 311-330.
QUEIROZ, Maria Isaura de. Relatos Orais: do indizível ao dizível. In: VON SIMSON, Olga
(Org.). Experimentos com Histórias de Vida (Itália- Brasil). São Paulo: Vértice, 1988. p. 14-
43.
RAMALHO, José Ricardo. Controle, Conflito e Consentimento na Teoria do Processo de
Trabalho: um Balanço do Debate. BIB, Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em
Ciências Sociais, São Paulo, n. 32, p. 31-48. 1991.
REZERA, Danielle do Nascimento. Gênero e Trabalho: Mulheres bolivianas na cidade de São
Paulo 1980 a 2010. 2012. 209 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
RIBEIRO, Clara Lemme. Migração Feminina e mobilidade do trabalho: mulheres bolivianas
em São Paulo. 2015. 79 f. Trabalho de Graduação Individual (Departamento de Geografia) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2015.
RIZEK, Cibele; GEORGES, Isabel; FREIRE DA SILVA, Carlos. Trabalho e imigração: uma
comparação Brasil-Argentina.Lua Nova, São Paulo, n. 79, p. 111-142. 2010. Disponível em:<
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
64452010000100006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 25 jul. 2016.
ROGALY, Ben. Spaces of work and Everyday Life: Labour Geograohies and the Agency of
Unorganised Temporary Migrant Workers. Geography Compass, [s.l.], v. 3, p. 1975-1987,
2009. Disponível em: < http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1749-
8198.2009.00290.x/full >. Acesso em: 20 dez. 2016.
RUBIO, David Sánchez; ZÚÑIGA, Pilar Cruz. Trata de personas, trabajo esclavo y
prostitución: três expresiones de uma normalización estructural desigual previa.In:
FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia, GALVÃO, Edna (Org.). A Universidade discute a
escravidão contemporânea: práticas e reflexões. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015. p. 109-132.
RUBIO, David Sánchez; ZÚÑIGA, Pilar Cruz. El trabajo doméstico indigno y como forma
análoga a la esclavitud: entre la explotación, la discriminación y la desugualdad. In:
FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia, GALVÃO, Edna (Org.). Trabalho Escravo
Contemporâneo: estudos sobre ações e atores. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. P. 33-52.
SAFFIOTI, Heleieth. Violência de gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade.
Lutas Socais, São Paulo, v.2, p.59-79, 1997. Disponível em:
<http://www4.pucsp.br/neils/downloads/v2_artigo_saffioti.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2017.
111
______. Gênero e Patriarcado: A necessidade da violência. In: Marcadas a ferro. Violência
contra mulher uma visão multidisciplinar. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as
mulheres, 2005. p. 35-76.
______. Gênero, patriarcado,violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
SANTANA, Marco Aurélio; RAMALHO, José Ricardo. Sociologia do trabalho no mundo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
SANTOS, Rodrigo. Redes de produção globais (RPGS): Contribuições conceituais para a
pesquisa em ciências sociais. Revista Pós Ciências Sociais, v. 8, n. 15, p. 127-142, 2011.
Disponível em: < http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/589> Acesso em:12
mar. 2016.
SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução Guacira Lopes
Louro Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 1995. Disponível em:<
http://www.seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721 >. Acesso em: 05
mai.2016.
SEGATTI, Ana Eliza et al. Trabalho escravo: reflexões sobre a responsabilidade na cadeia
produtiva. In: FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia; GALVÃO,Edna (Org.). Discussões
Contemporâneas sobre Trabalho Escravo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016, p. 99-116.
SILVA, Sidney Antonio da. Costurando sonhos trajetória de um grupo boliviano em São
Paulo. São Paulo: Paulinas, 1997.
______. Bolivianos em São Paulo: entre o sonho e a realidade. Estudos Avançados,São
Paulo,v. 20, n. 57,p. 157-170, ago. 2006. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142006000200012>.
Acesso em: 04 jan. 2016.
SKRIVANKOVA, Klara. Between Decent Work and Forced Labour: Examining the
Continuum of Explotation. Joseph Rowntree Foundation, York, 2010. Disponível em: <
https://www.jrf.org.uk/report/between-decent-work-and-forced-labour-examining-continuum-
exploitation>. Acesso em: 20 dez. 2016.
SOUCHAUD, Sylvain. A confecção: nicho étnico ou nicho econômico para a imigração
latino-americana em São Paulo? In: BAENINGER, Rosana (Org.). Imigração Boliviana no
Brasil, Campinas: Núcleo de Estudos de População-Nepo/Unicamp; Fapesp; CNPq; Unfpa,
2012. p.75-92.
STRAUSS, Krenda; MCGRATH, Siobhán. Temporary migration, precarious employment and
unfree labour relations: Exploring the ‘continuum of explotation’ in Canada’s Temporary
Foreign Worker Program. Geoforum, [s.l.], v. 78, p. 199-208, 2017. Disponível em
<http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0016718515301342>. Acesso em: 20 dez.
2016.
112
OLIVEIRA, Eliene de. Migração, identidade cultural e história oral: percurso possível de
pesquisas. Revista Monções, Dourados, v.2, n.2, p. 170 -181. out.2014/mar. 2015. Disponível
em: < http://seer.ufms.br/index.php/moncx/article/view/680>. Acesso em: 08 ago. 2017.
VARA-HORNA, Arítides Alfredo. Los costos empresariales de la violencia contra las mujeres
en Bolivia Una estimación del impacto invisible para la productividad de la violencia contra
las mujeres en relaciones de pareja. La Paz: GIZ. 2015. Disponível em:
<http://info.comvomujer.org.pe/catalogocomvo/productoscatalogos_3_2015/ComVoMujer_Es
tudiodecostos_completo_BO_2015.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2017.
VEIGA, João e GALHERA, Katiuscia. Entre o lar e a ‘fábrica’ – trabalhadoras bolivianas da
costura na cidade de São Paulo. In: FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia; GALVÃO,Edna
(Org.). Discussões Contemporâneas sobre Trabalho Escravo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016,
p. 119-145.
ZANFORLIN, S. Por que se migra? Das motivações para migrar às narrativas sobre
migrações. In: Revista Labor, Ministério Público do Trabalho, nº5, 2014. Disponível em:
<http://portal.mpt.mp.br/>. Acesso em: 10 jan. 2017.
ZUCCO JR, Cesar. Bolívia: Política Doméstica e Inserção Regional. Estudos e Cenários, Rio
de Janeiro, ago. 2008. Disponível em <
http://observatorio.iesp.uerj.br/images/pdf/estudos/5_estudosecenarios_Estudos_e_Cenarios_
Zucco.pdf >. Acesso em: 20 abr. 2017.
ZÚÑIGA, Pilar; RUBIO, David. Cuando el trabajo doméstico deriva en trabajo esclavo en el
contexto de las sociedades ibero-americanas. In: FIGUERIA, Ricardo; PRADO, Adonia;
GALVÃO, Edna (Org.). Discussões Contemporâneas sobre Trabalho Escravo. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2016. p. 399-422.
Documentos
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA IINDÚSTRIA TÊXTIL. Cartilha Indústria Têxtil e de
Confecção Brasileira - Cenários, Desafios, Perspectivas e Demandas. Brasília, 2013.
Disponível em: < http://www.abit.org.br/conteudo/links/publicacoes/cartilha_rtcc.pdf>.
Acesso em: 10 jul. 2016.
BOLIVIA. Defensoría del Pueblo. Ley para garantizar a las mujeres una vida libre de
violencia nº 348 en 43 preguntas y respuestas. La Paz: Defensoría del Pueblo, 2014.
Disponível em: < http://www.defensoria.gob.bo/archivos/cartillaMujer_1_110x165mm.pdf>.
Acesso em: 05 set. 2017.
______. Ministerio de Justicia y Transparencia Institucional; Instituto Nacional de Estadística.
Encuesta de Prevalencia y Características de la Violencia Contra las Mujeres 2016.
Disponível em:<http://inesad.edu.bo/dslm/2017/06/algunas-cifras-actuales-sobre-la-violencia-
contra-las-mujeres-en-bolivia/>. Acesso em: 12 ago. 2017.
BRASIL. Lei n. 10.803 de 11 de dezembro de 2003. Altera o art. 149 do Decreto-Lei no
2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Presidência da Republica, Casa Civil.
Subchefia para assuntos jurídicos. 2003. Disponível em: <
113
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.803.htm#art149>. Acesso em: 19 jul.
2017.
______. Ministério do Trabalho e Emprego. Manual de combate ao trabalho em condições
análogas às de escravo. Brasília: MTE, 2011a.
______. Ministério do Trabalho e Emprego. Relatório de Fiscalização Erradicação do
Trabalho Escravo. Pacto contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São
Paulo – cadeia produtiva das confecções. Zara Brasil ltda. São Paulo, 2011b.
______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 10 anos de
CONATRAE Trabalho Escravo e Escravidão Contemporânea. Brasília: SDH, 2013.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo – Brasil 2016. Goiânia: CPT
Nacional, 2016.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Estatísticas do trabalho escravo no Brasil.2012.
Disponíveis em: < https://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/trabalho-
escravo/1377-campanha-da-cpt-de-combate-ao-trabalho-escravo-divulga-dados-parciais-de-
2012>. Acesso em: 19 jul. 2017.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Perfil dos Principais Atores
envolvidos no Trabalho Escravo Contemporâneo Rural. Brasília: OIT, 2011. 176f.
______. Profits and poverty: The Economics of Forced Labour. 2014. International Labour
Office. Genebra: ILO, 2014.
Disponível em:
<http://www.ilo.org/global/topics/forcedlabour/publications/WCMS_243027/lang--
en/index.htm>. Acesso em 19 jul. 2017.
REPÓRTER BRASIL; SOMO. Da responsabilidade moral à responsabilização jurídica. As
condições de escravidão moderna na cadeia global de suprimentos da indústria do vestuário e
a necessidade de fortalecer os marcos regulatórios: o caso da Inditex-Zara no Brasil.
Amsterdã, 2015. Disponível em: < http://reporterbrasil.org.br/wp-
content/uploads/2015/05/Reporter-Brasil-web-P.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2016.
REPÓRTER BRASIL. Monitor #3 Fast Fashion e os direitos do trabalhador, jul. 2016a.
Disponível em: < http://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2016/08/Fast-
Fashion_VFinal.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2017.
______.Trabalho escravo nas oficinas de costura. 2016b. Disponível em:<
http://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2016/06/Fasc%C3%ADculo-
Confec%C3%A7%C3%A3o-Textil_Final_Web_21.01.16.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2017.
SÃO PAULO (Cidade). Câmara Municipal de São Paulo. Relatório final da comissão
parlamentar de inquérito para apurar a exploração de trabalho análogo ao de escravo. 2006.
Disponível em: <http://www1.camara.sp.gov.br/central_de_arquivos/vereadores/CPI-
TrabalhoEscravo.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.
SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa de São Paulo. Relatório Final da Comissão
Parlamentar de Inquérito do Trabalho Escravo. 2014. Disponível em:
114
<http://www.al.sp.gov.br/repositorio/arquivoWeb/com/com3042.pdf>. Acesso em: 27 abr.
2017.
Notas periódicas
ZOCCHIO, Guilherme. Diretor do grupo GEP alega traição de fornecedores por caso de
trabalho escravo. In: Repórter Brasil. São Paulo, 14 de abril de 2013. Disponível em: <
http://reporterbrasil.org.br/2013/04/diretor-do-grupo-gep-alega-traicao-de-fornecedores-por-
caso-de-trabalho-escravo/ >. Acesso em: 10 ago. 2016.
Sites consultados
Capítulo boliviano de derechos humanos, democracia y desarrollo
www.derechoshumanosbolivia.org
Centro de Apoio e Pastoral do Migrante
http://camimigrantes.com.br
Instituto Humanitas Unhisinos
www.ihu.unisinos.br
Instituto Nacional de Estatística de Bolívia
www.ine.gob.bo/
Ministério Público do Trabalho – São Paulo
www.prt2.mpt.mp.br/
Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e do Caribe
www.oig.cepal.org/pt
ONG Repórter Brasil
www.reporterbrasil.org.br
Organização Internacional do Trabalho
www.ilo.org
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD Bolivia
www.bo.undp.org
115
APÊNDICE A – PERFIL DAS ENTREVISTADAS
Nome Luz Carmen Zelaide Lourdes Sara Quilla
Idade 35 30 30 40 35 36
Escolaridade
Ensino
Médio
Completo
Ensino
Médio
Completo
Ensino
Médio
Completo
Ensino
Médio
Completo
Ensino Médio
Completo
Ensino
Superior
Completo
Cidade de
origem Caranavi
Santiago
de Huata
Nor
Yungas La Paz La Paz Cochabamba
Migração
interna Sim Sim Sim Não Não Não
Migração
para outro
país
Argentina
(1 ano e 4
meses)
Argentina
(4 anos) Não Argentina Não Não
Ano de
chegada ao
Brasil
2010 2012 2012 2013 2004 2011
Porta de
entrada
Corumbá-
MT
Via
Argentina
Via
Paraguai
Corumbá-
MT Corumbá-MT
Corumbá-
MT
Local de
moradia
São Paulo-
Vila Maria
Alta
São
Paulo-
Vila
Maria
Alta
São
Paulo-
Vila
Maria
Alta
Carapicuíba São Caetano
São Paulo-
Vila
Mariana
Estado Civil Viúva Casada Casada Casada Casada Casada
Filhos 2 2 2 4 2 2
Costurava
na Bolívia? Não Não Não Não Sim Não
Nº de
oficinas em
que
trabalhou no
Brasil
3 3 2 4 4 0
Tem própria
máquina Não Sim Sim Sim Sim Não
Atividades
remuneradas
na Bolívia
Ajudante
de
cozinha;
garçonete;
cuidadora
de idosa e
cuidadora
de criança.
Faxina. Vendia
frutas.
Cuidadora
de criança;
Ajudante de
cozinha;vendedora
de cosméticos, de
xampú, de
material escolar;
costureira em
empresa.
Psicóloga.
116
APÊNDICE B– LEVANTAMENTO DE ARTIGOS DAS REUNIÕES CIENTÍFICAS
TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO E QUESTÕES CORRELATAS
Livros - Grupo de Trabalho Escravo Contemporâneo Artigos Depoimentos Total
Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: contribuições críticas
para sua análise e denúncia (2008) 21 3 24
Presença de mulheres na análise 3 1 4
Olhares sobre a escravidão contemporânea: novas contribuições críticas
(2011) 19 1 20
Presença de mulheres na análise 0 0 0
Trabalho escravo contemporâneo: um debate transdisciplinar (2011) 15 0 15
Presença de mulheres na análise 1 0 1
Privação de liberdade ou atentado à dignidade: escravidão
contemporânea (2013) 22 3 25
Presença de mulheres na análise 2 2 4
A universidade discute a escravidão contemporânea: práticas e reflexões
(2015) 21 0 21
Presença de mulheres na análise 1 0 1
Discussões contemporâneas sobre trabalho escravo: teoria e pesquisa
(2016) 22 0 22
Presença de mulheres na análise 2 0 2
Trabalho Escravo Contemporâneo: estudos sobre ações e atores (2017) 22 0 22
Presença de mulheres na análise 1 0 1
117
ANEXO A – MAPAS
Mapa 1. Locais de origem das narradoras-entrevistadas
Fonte: Wikimaps.
Adaptação: Pedro Uchôa.
Mapa ilustrativo, sem escala cartográfica.
118
Mapa 2. Locais de circulação na RMSP das narradoras-entrevistadas
Fonte: https://www.emplasa.sp.gov.br/RMSP
Adaptação: Pedro Uchôa.
A Cajamar - Município de chegada de Lourdes
B Carapicuiba - Município de residência de Lourdes
C Santo André - Município onde Sara trabalhou
D São Caetano - Município de residência de Sara
E São Paulo - Município de residência de Carmen, Luz e Zelaide
119
ANEXO B – ESTRUTURA DA CADEIA TÊXTIL E DE CONFECÇÕES
Fonte: Associação Brasileira da Indústria Têxtil (ABIT).
120
ANEXO C – FOTOS
Foto 1. Tipos de tecido
Exemplo de tecido plano
“São resultantes do entrelaçamento de dois conjuntos de fios que se cruzam em ângulo reto”.
Exemplo de tecido de malha
“A laçada é o elemento fundamental deste tipo de tecido, constitui-se de uma ‘cabeça’, duas ‘pernas’ e dois
‘pés’”.
Fonte: http://www.audaces.com/tipos-de-tecido-plano-x-tecido-malha/
121
Foto 2. Máquinas de costura
Exemplo de máquina galoneira Exemplo de máquina reta
Modelo do ponto – galoneira Modelo do ponto - reta
Fonte: http://www.audaces.com/maquinas-de-costura-conheca-as-funcoes-da-maquina-reta-industrial/
122
Exemplo de máquina overloque Exemplo de máquina interloque
Modelo do ponto – overloque Modelo do ponto – interloque
123
Foto 3. Presença das mulheres na feira, com o aguayo.
Fonte: Enciclopédia LatinoAmericana. Disponível em: <http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/b/bolivia>.
Acesso em: 27 jul. 2017.
top related