tim ingold - ‘gente como a gente’_ o conceito de homem anatomicamente moderno
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7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno
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Gente como a gente O conceito de homem
anatomicamente modernoIngold, Tim. The perception of the environment. Essays on livelihood, dwelling and skill.
London and New York: Routledge, 2000.
Traduo: Cima Barbato Bevilaqua
Nota da tradutora:
H quase meio sculo, em ensaio que se tornaria justamente clssico (O impacto do
conceito de cultura sobre o conceito de homem, de 1966), Clifford Geertz criticava a
noo ento corrente de que a capacidade humana de produzir e transmitir cultura s
emergiu depois que a evoluo biolgica da espcie virtualmente se completou. Com o
apoio dos conhecimentos paleontolgicos disponveis poca, Geertz sustentava que a
cultura, ao invs de se acrescentar a um organismo biologicamente pronto, foi um
ingrediente essencial no prprio processo de produo do Homo sapiens.
Embora apresentasse uma perspectiva renovada sobre a natureza humana, o
argumento reintroduzia implicitamente a prpria premissa que pretendia afastar: a
universalidade biolgica dos seres humanos passava a ser concebida como
incompletude, tendo como corolrio a inelutvel dependncia de padres culturais
para dirigir sua existncia e realizar, de formas sempre particulares, as capacidades
inerentes espcie. Em sntese, todos os seres humanos comeam (biologicamente)
iguais e terminam (culturalmente) muito diferentes.
precisamente essa ideia, mais ou menos consensual entre os antroplogos nas
dcadas posteriores, que Tim Ingold coloca em questo ao argumentar que as prprias
diferenas culturais so, num sentido muito preciso, biolgicas. No se trata
obviamente de reviver velhos dogmas racistas, mas de reconectar biologia e cultura de
forma produtiva, a partir de uma sofisticada crtica teoria evolutiva neo-darwiniana
(e, no mesmo movimento, concepo da cultura como um sistema de planos,
receitas, regras, instrues).
Como mostra Ingold, a reduo contempornea do biolgico ao gentico que tornanecessrio, para escapar ao racismo, insistir na separao entre evoluo e histria,
http://www.pontourbe.net/edicao9-traducoes/213-gente-como-a-gente-o-conceito-de-homem-anatomicamente-modernohttp://www.pontourbe.net/edicao9-traducoes/213-gente-como-a-gente-o-conceito-de-homem-anatomicamente-modernohttp://www.pontourbe.net/edicao9-traducoes/213-gente-como-a-gente-o-conceito-de-homem-anatomicamente-modernohttp://www.pontourbe.net/edicao9-traducoes/213-gente-como-a-gente-o-conceito-de-homem-anatomicamente-moderno -
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conferindo aos seres humanos um estatuto fundamentalmente ambguo: de um lado,
organismos da natureza como todos os demais seres vivos; de outro, as nicas criaturas
que transcenderam de tal modo o mundo da natureza a ponto de fazer dela um objeto
de sua conscincia.
Gente como a gente: O conceito de homem anatomicamente
moderno[1]
Introduo:
A viso ortodoxa
Permitam-me comear com uma pergunta um tanto cmica. Por que o homem de Cro-
Magnon no andava de bicicleta? Apresento em primeiro lugar a resposta que sem
dvida parece bvia: no que lhe faltassem os pr-requisitos anatmicos para tal
proeza, simplesmente ele viveu numa era muito anterior a que algo to engenhoso e
complexo como uma bicicleta tivesse sido desenvolvido. E mesmo que tivesse,
considerando-se a natureza do terreno e o modo de subsistncia predominante, uma
bicicleta provavelmente teria sido muito pouco til para ele. Em outras palavras,
embora ele estivesse biologicamente preparado para subir no selim, as condies
culturais para que andar de bicicleta fosse uma opo vivel ainda estavam ausentes.
Eu pretendo mostrar, entretanto, que esta resposta est seriamente equivocada, e que
a busca por uma alternativa mais satisfatria obriga a uma reviso fundamental das
nossas noes mais bsicas de evoluo, de histria e mesmo da prpria humanidade.
Em especial, quero argumentar que a ideia de homem anatomicamente moderno, o
piv em torno do qual giram todas essas outras noes, uma fico analtica cuja
principal funo encobrir uma contradio situada no cerne da biologia evolutiva
moderna.
O homem de Cro-Magnon, descoberto por Louis Lartet na vila de Les Eyzies, Frana, em
1868, adquiriu a aura de moderno prototpico, embora no seja de modo algum o
mais antigo representante de seu tipo no registro fssil. Comparado a seuspredecessores os Neandertais arcaicos e, ainda antes, o Homo erectus esse tipo
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era reconhecivelmente diferente: uma espcie de homem, como escreveu William
Howells, inteiramente como ns (1967: 240). Na paleoantropologia contempornea,
os Cro-Magnons so includos, juntamente com todas as populaes humanas
subsequentes e atuais, no txon subespecfico nico Homo sapiens sapiens. E a
implicao dessa categorizao que, ao menos no que diz respeito a seus dotesbiolgicos, estes indivduos do Paleoltico Superior estavam dentro do espectro de
variao da subespcie. Se tivessem nascido em nosso tempo, e crescido em uma
sociedade como a nossa, eles seriam sem dvida capazes de fazer todas as coisas que
ns fazemos: ler e escrever, tocar piano, dirigir, andar de bicicleta e assim por diante.
Ou seja, eles tinham o potencial para fazer todas essas coisas, um potencial que,
contudo, permaneceu irrealizado no decurso de sua existncia.
Eu gostaria de retornar agora caracterizao de Howells dos Cro-Magnons como gente
inteiramente como ns, com o propsito, nesta etapa do argumento, de apresentar o
que acredito ser a posio ortodoxa na antropologia atual. Poder-se-ia objetar que eles
no eram de modo algum como ns. Afinal de contas, no viviam em cidades, liam
livros, escreviam monografias cientficas, tocavam piano ou dirigiam carros. A este tipo
de objeo, duas rplicas surgem imediatamente. Uma delas salientar que a objeo
se baseia numa viso estreita e etnocntrica de quem somos ns, uma viso que
excluiria uma grande proporo da prpria humanidade contempornea. Ao se comparar
populaes do Paleoltico Superior conosco, a referncia deveria ser a humanidade em
sua distribuio global, independentemente de variaes culturais. A outra resposta
qualificar o sentido em que se diz que essas populaes foram modernas. Este no
deveria ser confundido com o uso convencional na antropologia social e cultural, em
que a modernidade geralmente associada a alguma noo de sociedade Ocidental
urbano-industrial. Eles eram como ns biologicamente, mas no culturalmente.
O que separa os humanos anatomicamente modernos de trinta mil anos atrs (e
anteriores) de seus descendentes contemporneos, de acordo com a teoria ortodoxa,
um processo no de evoluo, mas de histria ou, como diriam alguns, de evoluo
cultural em lugar de biolgica. Isto no sugerir que com o advento dos modernos a
evoluo de nossa espcie tenha literalmente estancado. Mudanas ocorrem
continuamente, mas so relativamente pequenas, nada que se compare s
transformaes verdadeiramente colossais das formas de vida que aconteceram aparentemente em ritmo crescente no curso da histria humana. Se, e em que
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sentido, essas transformaes podem ser consideradas progressivas uma questo
debatida com vigor: no obstante, parece haver uma concordncia geral de que a
histria da cultura tem sido marcada por um incremento cumulativo na escala e
complexidade de seu componente tecnolgico. Contudo, o processo histrico de
complexificao da esfera tecnolgica da cultura no foi apenas possibilitado por umaconstituio biolgica estabelecida no Paeloltico Superior; ele tambm no afetou essa
constituio. O veculo a motor uma inveno moderna, mas o homem atrs do
volante permanece uma criatura biologicamente equipada para a vida na Idade da
Pedra!
Desse modo, no que se refere a sua biologia bsica, ciclistas no so diferentes de
pedestres, e os pedestres de hoje no so diferentes de seus predecessores do
Paleoltico Superior. em geral aceito que a locomoo bipedal uma caracterstica
humana universal, cuja evoluo implicou um conjunto especfico de adaptaes
anatmicas (Lovejoy 1988). Andar de bicicleta, em contraste, uma habilidade
adquirida, cujo aparecimento foi relativamente tardio em algumas, mas no em todas,
as populaes humanas. Embora seu advento tenha sido condicionado por uma longa
cadeia de circunstncias de inveno e difuso (da descoberta da roda manufatura de
tubos de ao), bem como de modificao ambiental (a construo de estradas e trilhas),
ele no suscitou nenhuma reconfigurao da anatomia humana. Em sua estrutura e
propores, afinal, a bicicleta foi concebida para se ajustar a um corpo humano que
j havia evoludo para andar, e sua funo mecnica essencial converter a
movimentao bipedal em rotativa.
Isto nos reconduz resposta convencional para a pergunta do incio. A razo pela qual o
homem de Cro-Magnon no andava de bicicleta no tem absolutamente nada a ver com
biologia. Ou seja, a razo histrica, no evolutiva. A mesma distino[2] em geralinvocada para explicar por que os produtores de ferramentas do Paleoltico Superior
trabalhavam com pedra lascada em vez de complexos equipamentos mecnicos ou
eletrnicos. E se absurdo postular uma linha direta de continuidade desde as
primeiras ferramentas de pedra at o maquinrio moderno, ento igualmente absurdo
postular uma progresso anloga da locomoo quadrpede para a locomoo em duas
rodas. E isto porque a transio entre andar sobre quatro ou sobre dois ps pertence
evoluo, enquanto a transio se quiserem de dois ps a duas rodas pertence histria.
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Andar e pedalar
Creio que esta pode ser considerada uma representao justa da viso ortodoxa. Quero
mostrar agora por que eu penso que ela est errada. Comeo lanando um novo olharsobre o contraste entre andar e pedalar. Supe-se comumente que andar algo com
que nascemos, enquanto andar de bicicleta um produto da enculturao; em outras
palavras, presume-se que a primeira uma habilidade inata, enquanto esta adquirida.
Mas o fato que crianas recm-nascidas no andam. Elas tm que aprendera andar, e
a ajuda de pessoas mais velhas, j competentes nessa arte, invariavelmente
mobilizada nesse empreendimento. Em resumo, andar uma habilidade que emerge
para cada indivduo no curso de um processo de desenvolvimento, por meio doenvolvimento ativo de um agente a criana em um ambiente que inclui educadores
qualificados, alm de uma variedade de objetos de apoio e um certo tipo de terreno
(Ingold 1991: 370). Como podemos continuar sustentando que a habilidade de andar
vem, por assim dizer, pr-embalada no biograma humano? certo que a ampla
maioria das crianas humanas aprende a andar, e mais, que elas o fazem num perodo
definido bastante curto. Assim, embora o beb no exatamente aterrisse no mundo
sobre dois ps, ele dotado de uma agenda interna de desenvolvimento que garante
que ele ir andar ereto no devido tempo, desde que certas condies estejam presentes
em seu ambiente.
Esta ltima ressalva absolutamente fundamental. Crianas privadas do contato com
cuidadores mais velhos no aprendem a andar alis, sequer sobreviveriam, e esta a
razo pela qual todas a crianas que sobrevivem efetivamente andam, a menos que
incapacitadas por acidente ou doena. Pode-se projetar um cenrio futuro no qual as
necessidades humanas de locomoo seriam inteiramente supridas por veculos sobre
rodas, ou imaginar a vida sob condies de ausncia de gravidade no espao csmico,
em que o andar desapareceria. Tais cenrios so reconhecidamente fantsticos, mas
imagin-los serve para reforar meu ponto de que a capacidade para a locomoo
bipedal s pode ser dita inata quando se pressupe a presena das condies ambientais
necessrias para o seu desenvolvimento. Falando estritamente, portanto, o bipedalismo
no pode ser atribudo ao organismo humano a menos que o contexto ambiental entre
na especificao do que o organismo .
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Com este ponto em mente, passo agora de andar a pedalar. As crianas s se tornam
proficientes em andar de bicicleta, assim como em caminhar, por meio de um processo
de aprendizagem em que a assistncia de adultos em geral necessria. Em
comparao com caminhar, porm, as condies para o desenvolvimento da capacidade
de andar de bicicleta so bem mais restritivas. Obviamente, ningum pode aprender apedalar sem ter uma bicicleta, e o ambiente tambm deve incluir ruas ou trilhas em
que se possa transitar em duas rodas. Em sociedades industriais contemporneas essas
condies esto to ubiquamente presentes que nossa tendncia pensar que natural
que crianas a partir de certa idade sejam capazes de andar de bicicleta, assim como
so capazes de caminhar. Em outras sociedades, em contraste, as bicicletas podem ser
raras ou estar completamente ausentes, ou o terreno pode ser bastante imprprio para
seu uso. E assim a habilidade de pedalar tem uma distibuio muito mais limitada que ade andar.
Contudo, esta uma diferena de extenso, no de princpio. Se andar inato no
sentido e apenas no sentido em que, dadas certas condies, deve emergir no curso
do desenvolvimento, ento o mesmo se aplica a andar de bicicleta. E se pedalar
adquirido, no sentido em que sua emergncia depende de um processo de aprendizado
inscrito em contextos de interao social, ento o mesmo se aplica a caminhar. Em
outras palavras, to errado supor que pedalar dado de modo exgeno
(independentemente do organismo humano) quanto supor que andar dado de modo
endgeno (independentemente do ambiente). Tanto andar quanto pedalar so
competncias que emergem nos contextos relacionais do envolvimento da criana em
seu ambiente e, portanto, so propriedades do sistema de desenvolvimento constitudo
por essas relaes.
Ademais, essas competncias so literalmente incorporadas, no sentido em que seudesenvolvimento implica modificaes especficas, neurolgicas e musculares, e at
mesmo em caractersticas anatmicas bsicas. Embora as crianas geralmente
aprendam a andar antes de pedalar, as modificaes suscitadas por andar de bicicleta
no so simplesmente acrescentadas a uma anatomia, por assim dizer, pr-fabricada
para caminhar. O corpo humano no pr-fabricado para coisa alguma, ao contrrio,
sofre contnuas mudanas ao longo do ciclo de vida medida em que impelido ao
desempenho de tarefas diversas. Com efeito, as presses e esforos recorrentes da vidacotidiana no afetam apenas o desenvolvimento relativo de diferentes msculos;
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deixam tambm suas marcas no prprio esqueleto. Transportar cargas na cabea afeta
os ossos da parte superior da coluna; agachar-se fora os joelhos, o que resulta em
marcas na patela; tambm andar de bicicleta, sem dvida, deixa vestgios.[3] claro
que a bicicleta foi projetada para uma criatura j acostumada locomoo bipedal, de
modo que andar de bicicleta no requer nenhum grande reajustamento da anatomiahumana. Os ciclistas continuam podendo andar a p, e duvidoso que mesmo o
observador mais perspicaz possa distinguir um ciclista de um no-ciclista, a menos que
os ponha prova. Mas se nenhum nefito consegue manter o equilbrio e a coordenao
numa primeira tentativa, ningum jamais desaprende a andar de bicicleta. Esses fatos
indicam que o exerccio das habilidades sensoriais e motoras necessrias para andar de
bicicleta deixa uma impresso anatmica indelvel, pelo menos na normalmente
invisvel arquitetura do crebro. De fato, esta concluso sustentada por pesquisasneurolgicas recentes que mostram, como relatam Kandel e Hawkins, que nossos
crebros esto constantemente mudando em termos anatmicos, inclusive quando
aprendemos (1992: 60).
luz dessas consideraes talvez no seja absurdo, afinal, situar a emergncia,
respectivamente, de andar e pedalar no interior do mesmo processo geral de evoluo
isto , de uma evoluo dos sistemas de desenvolvimento que sustentam essas
capacidades. E uma vez que introduzimos o contexto ambiental de desenvolvimento em
nossa especificao do que um organismo , segue-se que um ser-humano-no-ambiente-
A no pode ser a mesma espcie de criatura que um ser-humano-no-ambiente-B. Assim,
o homem de Cro-Magnon era de fato uma criatura muito diferente do ciclista ou
motorista urbano de hoje. Ele no era como ns nem mesmo biologicamente. Ele
pode ter se parecido conoscogeneticamente, mas isso outra questo. De que maneira
a biologia veio a ser identificada com a gentica um problema na histria das ideias
ao qual voltarei mais adiante; por ora suficiente dizer que tal identificao j est
implcita na noo de que cada indivduo dotado de sua constituio biolgica no
momento da concepo. Antes de discutir essa noo de modo mais detalhado, eu
gostaria de examinar uma rea na qual surgem questes muito prximas s suscitadas
em minha comparao entre andar e pedalar, mas que tem sido palco de controvrsias
muito mais srias: a evoluo da linguagem.
Fala e escrita
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Reconhece-se em geral que o homem de Cro-Magnon, como um paradigma da
modernidade anatmica, possua uma capacidade plenamente desenvolvida para a
linguagem. Ele podia falar to bem quanto voc ou eu. Mas no podia ler nem escrever.
Comeo com a comparao entre a fala e a escrita porque ela oferece o paralelo mais
bvio com a comparao entre andar e pedalar. De acordo com a viso ortodoxa, acapacidade para a linguagem um universal humano, algo que todos ns recebemos
como parte de uma constituio biolgica comum estabelecida no Paleoltico Superior,
se no antes (No me preocupo aqui com os debates relativos a datao). A escrita, em
contraste, uma tecnologia da linguagem que surgiu de modo independente em vrias
partes do mundo como resultado de eventos especficos de inveno e difuso, e que
mesmo hoje de modo algum compartilhada universalmente. A capacidade para a
linguagem, ento, um produto da evoluo; a capacidade de ler e escrever, umproduto da histria. A primeira considerada inata, a segunda adquirida. A
incapacidade do Cro-Magnon de ler e escrever, assim como sua incapacidade de andar
de bicicleta, no tem nada a ver com sua biologia. O que ocorre que, na poca em
que ele viveu, os desenvolvimentos culturais que culminaram na inveno dos sistemas
de escrita ainda no haviam seguido seu curso.
Eu penso que esta viso errada, pelas razes que j expus. Bebs humanos no
nascem falando, assim como no nascem andando. Sua aptido para a linguagem se
desenvolve, atravs de uma srie de estgios razoavelmente bem definidos. O apoio de
cuidadores capazes de falar, e a presena no ambiente de um conjunto rico e altamente
estruturado de caractersticas significativas so essenciais para o desenvolvimento
normal da linguagem. Como essas condies esto quase invariavelmente presentes, a
imensa maioria das crianas aprende a falar sem dificuldade, e as excees so aquelas
cujo desenvolvimento obstado por alguma outra limitao. As condies que devem
ser preenchidas para que uma criana aprenda com sucesso a ler e escrever so,
naturalmente, muito mais restritivas. Com efeito, quais so essas condies um tema
de intensos debates, especialmente em crculos pedaggicos. Uma vez que as
habilidades e prticas de escrita so de fato extremamente diversas, nada tendo em
comum alm da representao grfica de palavras, as condies necessrias para sua
aquisio so, com toda a probabilidade, igualmente variveis (Street 1984). Mas isto
no afeta meu argumento principal, a saber, que a escrita no acrescentada, pela
enculturao, a uma constituio humana biologicamente preparada para a fala. Em vez
disso, tanto a habilidade de falar quanto a de escrever emergem num processo contnuo
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de modificao corporal, envolvendo tanto uma sintonia fina de habilidades vocais-
auditivas e manuais-visuais como as mudanas anatmicas correspondentes no crebro,
um processo que ocorre nos contextos de engajamento do aprendiz com outras pessoas
e objetos diversos em seu ambiente. Ambas as capacidades, em suma, so propriedades
de sistemas de desenvolvimento.
Sem tomar partido na controvrsia sobre se os assim chamados humanos arcaicos,
tipificados pelo homem de Neanderthal, podiam falar, h considervel acordo entre os
paleoantroplogos modernos de que esta capacidade ao menos em sua forma
plenamente desenvolvida no era compartilhada por homindeos pr-humanos mais
antigos como o Homo erectus e o Homo habilis. A questo a que precisamos responder,
porm, a seguinte: de que maneira, e se, a incapacidade de falar desses primeiros
homindeos difere da incapacidade de ler e escrever dos caadores-coletores do
Paleoltico Superior? Para recordar uma distino que introduzi anteriormente[4], no
contexto de uma comparao entre as capacidades tcnicas de chimpanzs e as de
humanos caadores-coletores, como podemos justificar a atribuio das primeiras a
uma incapacidade inata, enquanto estas so atribudas ausncia de condies
histricas? Se o homem de Cro-Magnon, caso vivesse no sculo XX, seria capaz de
dominar as habilidades da escrita, por que o Homo erectus, se tivesse vivido no
Paleoltico Superior, no poderia ter tido o domnio da linguagem?
Uma questo de certo modo comparvel surge no contexto da pesquisa sobre as
capacidades lingusticas dos grandes smios, especialmente dos chimpanzs. Criados em
condies naturais isto , sem contato significativo com humanos , os chimpanzs
no aprendem a falar. Pesquisas recentes, contudo, indicam de modo convincente que
chimpanzs criados em um ambiente humano, no convvio com cuidadores que falam,
so capazes de adquirir espontaneamente uma competncia lingustica sinttica esemntica equivalente de crianas pequenas (Savage-Rumbaugh e Rumbaugh 1993).
Isto prova que, ao contrrio das expectativas, os chimpanzs e, por analogia, os
primeiros homindeos tm ou tiveram uma capacidade para a linguagem, ainda que
limitada? Devemos acreditar que, graas ao legado de sua ancestralidade comum com os
humanos, tal capacidade pr-instalada, como um dote hereditrio, na mente de cada
chimpanz individual, aguardando simplesmente circunstncias ambientais propcias
para vir tona?
Penso que no, porque a prpria questo se baseia numa falsa premissa, a saber, que a
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capacidade para a linguagem algo cuja presena ou ausncia pode ser atribuda a
indivduos de uma espcie, a despeito dos contextos ambientais de seu
desenvolvimento. Com efeito, no faz nenhum sentido perguntar se chimpanzs ou
homindeos tm ou tiveram linguagem, como se ela estivesse programada de
antemo dentro deles. A definio biolgica de espcie depende da possibilidade deuma especificao independente de contexto: um chimpanz um chimpanz, Pan
troglodytes, seja ele criado entre outros chimpanzs ou entre humanos, na floresta ou
no laboratrio. Mas o chimpanz-em-um-ambiente-de-outros-chimpanzs no de
forma alguma o mesmo tipo de animal que o chimpanz-em-um-ambiente-de-humanos:
a este ltimo pode ser atribuda uma capacidade rudimentar para a linguagem que falta
ao primeiro. Esta capacidade, como assinalou Dominique Lestel, o resultado de um
processo de desenvolvimento situado no contexto peculiar da comunidade hbridahumano-animal estabelecida para os fins da pesquisa sobre a linguagem de grandes
smios (Lestel 1998: 13). E embora este contexto possa parecer deveras excepcional,
no obstante verdade que qualquer processo de desenvolvimento deve envolver um
organismo em relaes que atravessam as fronteiras dos agrupamentos taxonmicos
convencionais. Segue-se que se possvel mostrar que uma capacidade como a
linguagem surge como uma propriedade emergente de um sistema de desenvolvimento
composto por essas relaes, ento ela no pode ser atribuda a uma espcie.(Inversamente, atribuir linguagem a espcies automaticamente ter que recorrer a uma
viso inatista que envolve alguma forma de pr-instalao neural que viria
miraculosamente pronta.)
A noo de capacidade para a linguagem em si mesma profundamente
problemtica. A explicao ortodoxa, que atribui esta capacidade aos humanos
anatomicamente modernos, requer que ela seja claramente distinguida, como um
universal humano, da capacidade de falar esta lngua e no aquela. A competncia de
algum em sua lngua materna tida como um produto da enculturao, no algo dado
como parte de sua constituio biolgica como membro da espcie humana. Mas as
crianas humanas no nascem com um programa inato (um dispositivo de aquisio da
linguagem) para assimilar um programa adquirido (na forma de regras de sintaxe de
uma lngua particular). E isto porque, quaisquer que sejam os dispositivos utilizados no
processo de aquisio da linguagem, eles mesmos precisam ser formados num contexto
de desenvolvimento que o mesmo que aquele no qual a criana aprende a lngua da
sua comunidade. No existem, em outras palavras, dois processos distintos e sucessivos
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o primeiro envolvendo a pr-instalao do crebro para a linguagem, o segundo
provendo um contedo sinttico e semntico especfico , porque ao aprender a falar
da maneira como as pesoas em seu entorno falam, e com a assistncia e o apoio ativo
delas, que as conexes neurolgicas que garantem a competncia lingustica da criana
so forjadas. Consequentemente, falantes de lnguas diferentes, expostos em estgioscrticos de desenvolvimento a padres distintos de estimulao acstica, em ambientes
diversos, tambm iro diferir nos aspectos de sua organizao neural envolvidos na
produo e interpretao de enunciados verbais.[5]
Em suma, somente pela separao artificial dos aspectos mais gerais e mais
particulares de um sistema total de desenvolvimento, no interior do qual emergem as
habilidades da fala, que a linguagem pode ser identificada como uma capacidade
universal, em contraposio capacidade de falar uma lngua e no outra. E, nesse
sentido, falar muito parecido com andar. No entanto, como Esther Thelen e seus
colaboradores mostraram numa srie de estudos sobre o desenvolvimento motor
infantil, no existe uma essncia do andar que possa ser isolada do desempenho da
prpria ao em tempo real (Thelen 1995: 83). Logo, falar de locomoo bipedal ou
de linguagem como atributos universais, distintos das mltiplas habilidades de andar
e falar tal como efetivamente utilizadas na vida cotidiana de comunidades humanas,
reificar o que , na melhor das hipteses, uma abstrao analtica conveniente. Alm
disso, falar, assim como andar, uma realizao do organismo humano como um todo,
no simplesmente a expresso comportamental de um mecanismo cognitivo instalado no
organismo, para o qual serviria de veculo. Andar e falar so, na expresso de Mauss,
tcnicas do corpo (1979 [1934]: 97-123). Ns trazemos estas tcnicas conosco,
conforme o modo como nossos corpos foram formados em e atravs de um processo de
desenvolvimento.
O corolrio desta concluso, porm, muito radical. invalidar, de uma vez por todas,
a presuno profundamente arraigada de que as diferenas de lngua, postura corporal
e assim por diante, que somos inclinados a chamar de culturais, sejam sobrepostas a um
substrato pr-constitudo de universais biolgicos humanos. No podemos mais nos
contentar com a noo superficial de que todos os seres humanos comeam
(biologicamente) iguais e terminam (culturalmente) muito diferentes. Consideremos,
por exemplo, esta formulao de Geertz: Um dos fatos mais significativos a nossorespeito pode ser, finalmente, que todos ns comeamos com o equipamento natural
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para viver milhares de espcies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma
espcie (1973: 45)[6]. Meu argumento, contra Geertz, que os seres humanos no so
naturalmente pr-equipados para nenhum tipo de vida; em vez disso, o equipamento
que possuem se constitui, por meio de um processo de desenvolvimento, medida em
que eles vivem suas vidas. Este processo no seno aquele pelo qual eles adquirem ascompetncias apropriadas para o tipo de vida particular que levam. Aquilo com que
cada um de ns comea , pois, um sistema de desenvolvimento. Segue-se que as
prprias diferenas culturais uma vez que elas emergem no processo de
desenvolvimento do organismo humano em seu ambiente so biolgicas. Antes de
examinar as consequncias dessa concluso, preciso recuar um passo para mostrar
como biologia e cultura foram separadas. Com isso, voltarei reconsiderao da noo
de dotes biolgicos.
O genoma e o gentipo
Como j indiquei, supe-se que os humanos anatomicamente modernos sejam
biologicamente dotados no apenas do bipedalismo, mas tambm de inmeros outros
atributos, da linguagem a capacidades cognitivas e motoras sofisticadas,
frequentemente agrupados na rubrica geral de capacidade para a cultura. Permitam-me
lembrar-lhes do comentrio de Lieberman[7] segundo o qual, a despeito de todos os
monumentos ao avano tecnolgico humano que grassam a paisagem, os indivduos de
hoje so essencialmente dotados da mesma constituio biolgica de seus
predecessores de trinta mil anos atrs. Esse dote, ento, deve ser legado aos indivduos
a cada gerao sucessiva, independentemente dos contextos ambientais diversos nos
quais eles crescem como pedestres ou ciclistas, como fabricantes de ferramentas de
pedra ou operadores de mquinas, como caadores-coletores ou citadinos, e assim por
diante. Em outras palavras, trata-se de uma especificao do organismo humano
independente do contexto, conferida a todo e qualquer membro da espcie no
momento da concepo.
Na biologia moderna, o termo tcnico para tal especificao independente do contexto
gentipo. Em contraste, para caracterizar a forma que o organismo efetivamente
assume em termos de sua morfologia exterior e de seu comportamento, tal como serevela em um contexto ambiental concreto especificar seu fentipo. Uma premissa
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fundamental da teoria evolutiva, em sua atual roupagem neo-darwiniana, que
somente as caractersticas do gentipo, e no as do fentipo, so transmitidas atravs
das geraes. Nesse princpio se baseia a diviso convencional entre ontogenia e
filogenia, ou entre desenvolvimento e evoluo. Enquanto desenvolvimento se refere ao
processo pelo qual, na histria de vida do indivduo, o gentipo inicial realizado naforma concreta de um fentipo ambientalmente especfico, evoluo diz respeito
mudana gradual, ao longo de um grande nmero de geraes sucessivas, do prprio
gentipo.
Figura 1 Representao esquemtica da distino ortodoxa entre evoluo e
desenvolvimento. G1 G4 so gentipos sucessivos ligados em uma sequncia ancestral-
descendente. P1 P4 so os respectivos fentipos gerados sob condies ambientais E1
E4. As setas verticais representam um percurso filogentico intergeracional, as setas
horizontais representam processos ontogenticos circunscritos a cada gerao.
Mais exatamente, a frequncia dos elementos constitutivos do gentipo em
populaes de indivduos que sofreria mudana evolutiva, atravs de um processo devariao pela seleo natural.
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Para fazer essa teoria funcionar, preciso haver um veculo que sirva para transportar
os elementos da especificao formal do organismo a saber, os traos genticos de
um local de desenvolvimento a outro, anunciando o incio de um novo ciclo de vida.
Com a descoberta do DNA, acreditou-se que tal veculo, h muito tempo previsto, tinha
sido afinal encontrado. A molcula de DNA formada por uma cadeia muito longa debases nucleotdicas (em torno de trs bilhes nos seres humanos, dentro dos vinte e trs
cromossomos de cada clula do corpo), cada uma das quais de um tipo entre apenas
quatro possveis. Essa molcula tem duas propriedades crticas. Primeiro, ela est
associada a uma cadeia complementar que, tal como um negativo fotogrfico, fornece o
modelo para um processo de replicao qumica que resulta na sntese de novas cadeias
de DNA com exatamente a mesma sequncia de bases do original. Em segundo lugar,
segmentos da molcula, de comprimento da ordem de dez mil bases, orientam a sntesede protenas especficas cuja composio determinada pela sequncia linear de
bases no segmento correspondente. Essas protenas, por sua vez, so os componentes
fundamentais do organismo vivo. Assim, o complemento total de DNA na clula, tambm
conhecido como genoma, codificaria em sua sequncia de bases uma especificao
completa do organismo ao qual a clula pertence.
Para explicar essa codificao, os geneticistas frequentemente recorrem linguagem da
teoria da informao (Medawar 1967: 56-7). O genoma, dizem, carrega uma mensagem
que, traduzida aproximadamente, significa construa um organismo de tal-e-tal tipo
isto , conforme as especificaes formais do gentipo. Mas, de fato, a teoria da
informao, tal como desenvolvida nos anos de 1940 por Norbert Wiener, John von
Neumann e Claude Shannon, empregava a noo de informao num sentido
especializado que tem pouco a ver com o modo como o termo comumente entendido
isto , para se referir ao contedo semntico de mensagens trocadas entre emissores e
receptores. A informao, para esses tericos, no tinha qualquer valor semntico; ela
no significava nada. Nos termos deles, uma sequncia aleatria de letras poderia ter o
mesmo contedo informacional que um soneto de Shakespeare (Kay 1998: 507). Este
ponto, entretanto, perdeu-se inteiramente para os bilogos moleculares que, tendo
compreendido que a molcula de DNA poderia ser considerada como uma forma de
informao digital no sentido tcnico da teoria da informao, saltaram imediatamente
para a concluso de que ela se constitui como um cdigo com um contedo semntico
especfico. Entretanto, o ponto no se perdeu para os prprios tericos da
comunicao, que repetidamente alertaram para a confuso entre o sentido tcnico de
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informao e seu correlato genrico, e assistiram consternados consagrao das
metforas de mensagem, linguagem, texto e assim por diante numa biologia
aparentemente intoxicada com a ideia do DNA como um livro da vida.[8]
O resultado dessa confuso foi que o modelo terico da informao, tal comoreencarnado no contexto da cincia biolgica, passou a girar em torno de mensagens e
sua transmisso. uma exigncia do modelo, assim concebido, que a mensagem a ser
transmitida seja primeiramente fragmentada em seus elementos constitutivos mnimos
de significado, cada um dos quais ento representado, de forma codificada, num meio
fsico apropriado. Na comunicao verbal, por exemplo, diz-se que os conceitos so
representados por combinaes distintas de sons (no caso da fala) ou de traos grficos
(no caso da escrita). Nesta forma fsica, eles so apreendidos por um receptor que, por
meio de um processo inverso de decodificao, recupera os significados originais e os
combina para reconstituir a mensagem. No caso da transmisso gentica, os elementos
mnimos de significado corresponderiam a caracteres ou traos, cada um deles
representado por um segmento de DNA com uma sequncia de bases distinta. Assim
como o signo lingustico compreendido como a unio entre um conceito particular e
um padro sonoro particular, o gene veio a ser concebido como a unio entre um trao
particular e o seu segmento correspondente da molcula de DNA.
Trao Gentipo
Gene
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Segmento de DNA Genoma
Conceito Representaes mentais
Palavra
Padro sonoro Mundo fsico
Figura 2 Uma representao esquemtica da analogia entre genes e palavras comosignos.
Deixo para mais tarde a questo de at que ponto este modelo de transmisso de
informao descreve de forma adequada o que ocorre mesmo no discurso verbal
ordinrio. Por ora basta dizer que o modelo est fundado em uma separao ontolgica
entre mente e mundo. Com efeito, esta separao intrnseca prpria noo de
informao em seu sentido original ideia de que a forma introduzida nos contextos
de interao do mundo real. Supe-se que a mensagem ou instruo a ser transmitida
preexista na mente do emissor e seja traduzida em um meio fsico a partir de um
conjunto de regras de codificao inteiramente independentes dos contextos nos quais
ela emitida ou recebida. claro que o modo como uma mensagem, uma vez recebida,
ser interpretada, pode depender da situao, mas a prpria mensagem deve ser
especificada de forma no ambgua. Da mesma maneira, se devemos supor que o
genoma transporta informao codificada de um contexto de desenvolvimento a outro,
ento a mensagem isto , a especificao genotpica deve preexistir a sua
representao no DNA e conectar-se a ele por meio de regras de codificao
independentes do contexto. Em outras palavras, deve ser possvel ler cada elemento
do gentipo cada trao contido em determinado segmento de DNA,
independentemente das condies locais de desenvolvimento. Contudo, assim comouma mensagem recebida pode ser interpretada de modo diferente em circunstncias
diferentes, tambm o gentipo ser materializado de diferentes maneiras conforme o
contexto ambiental, conduzindo s variaes observadas na forma fenotpica.
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MENSAGEM
Codificao independente do contexto
MENTE
---------------------------------------------------------------------------------------
Contexto MUNDO
VECULO
INTERPRETAO
(dependente do contexto)
GENTIPO
MENTE
-----------------------------------------------------------------------------
Contexto MUNDO
GENOMA
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FENTIPO
Figura 3A relao entre mensagem, veculo e interpretao (acima) e seu anlogo no
domnio biolgico (abaixo).
O problema inerente a esse tipo de explicao pode ser colocado sob a forma de uma
questo simples: onde est o gentipo? Onde, em outras palavras, est a especificao
formal que de acordo com o modelo seria importada com o genoma para o contexto
de inaugurao de um novo ciclo de vida, como um dote biolgico? Podemos admitir
que o organismo recm-concebido vem a existir com seu complemento de DNA; tomado
em si mesmo, porm, o DNA no especifica nada. Afinal, ele apenas uma molcula,e uma molcula consideravelmente inerte. Na realidade, o DNA nunca existe em si
mesmo, exceto quando isolado artificialmente no laboratrio. Ele existe dentro de
clulas, que so partes de organismos, eles prprios situados em ambientes mais
amplos. E somente em virtude de sua incorporao na maquinaria viva da clula que
as molculas de DNA tm os efeitos que tm. Sozinhas, elas no produzem cpias de si
mesmas nem constroem protenas, muito menos organismos inteiros (ver Lewontin 1992:
33, para uma exposio excepcionalmente lcida deste ponto). Logo, o DNA no umagente, mas um reagente, e as reaes particulares que ele pe em movimento
dependem do contexto total do organismo no qual ele est situado. somente
pressupondo tal contexto que podemos dizer para que qualquer gene particular
(Ingold 1991: 368). Dito de outro modo, a maquinaria celular que l o DNA, e essa
leitura parte integrante do prprio desenvolvimento do organismo em seu ambiente.
No existe, portanto, decodificao do genoma que no seja em si mesma um
processo de desenvolvimento; no existem atributos de forma que no sejam originadosno interior desse processo; no existe uma especificao do organismo que seja
independente do seu contexto de desenvolvimento.
Assim, retomando a questo proposta acima onde est o gentipo? , s pode haver
uma resposta: na mente do bilogo. O gentipo, eu diria, o produto das tentativas
dos bilogos de escrever um programa ou algoritmo do desenvolvimento do organismo,
na forma de um sistema coerente de regras epigenticas. Essas regras so derivadas por
abstrao das caractersticas observadas no organismo, de maneira anloga ao modo
como um linguista derivaria as regras da sintaxe, por abstrao, a partir de uma
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amostra de enunciados registrados uma analogia explicitamente reconhecida na noo
de biograma. Ademais, o mesmo truque aplicado: como diz Bourdieu (1977: 96), ao
se transferir ao objeto de estudo a exterioridade da relao do observador para com
ele, esse objeto aparece como um simples veculo para um sistema interiorizado de
princpios racionais, uma espcie de inteligncia instalada no corao do organismo,dirigindo sua atividade a partir de dentro. Assim como o linguista considera a fala como
a aplicao de estruturas sintticas localizadas na cabea dos falantes, o bilogo
considera o desenvolvimento e o comportamento do organismo como tendo sua fonte
generativa em um biograma inato. Em ambos os casos aspectos de forma, abstrados dos
contextos em que eles surgem, so convertidos em elementos de um programa que
supostamente precede e governa os processos de sua produo. Como uma explicao
da gnese da forma, a circularidade deste argumento no requer mais nenhumaelaborao.
Nada ilustra melhor a transferncia, para o organismo, dos princpios da relao externa
do observador para com ele, que o destino do prprio conceito de biologia. Referindo-se
inicialmente aos procedimentos envolvidos no estudo cientfico de formas orgnicas, a
biologia veio a ser vista como uma estrutura de princpios racionais literalmente um
bio-logos supostamente situada nos prprios organismos, e orquestrando sua
construo. Para qualquer organismo particular, este bio-logos , naturalmente, o
gentipo. Aqui reside, pois, a explicao para a identificao, assinalada acima, entre
biologia e gentica. Em ltima anlise, esta identificao trai um logocentrismo que a
biologia compartilha com todo o empreendimento da cincia natural Ocidental: o
pressuposto de que os fenmenos manifestos do mundo fsico so obra da razo. Mas a
razo que a cincia v em operao neles a sua prpria, refletida no espelho da
natureza.
Forma e desenvolvimento
Se os organismos no recebem sua forma, com o genoma, como um dote biolgico,
ento como explicar a estabilidade da forma atravs das geraes? A resposta est na
observao de que a vida de qualquer organismo inaugurada com muito mais que seu
complemento de DNA. De um lado, como aponta Lewontin, o DNA est contido em umvulo que, antes mesmo da fertilizao, est equipado por meio do seu prprio
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desenvolvimento com os pr-requisitos essenciais para promover o crescimento futuro.
Ns herdamos no apenas genes feitos de DNA, mas uma intrincada estrutura de
maquinaria celular feita de protenas (Lewontin 1992: 33). De outro, esse vulo no
existe no vazio, mas em um ambiente j estruturado. A vida comea, pois, com o DNA,
em um vulo, em um ambiente. Ou, como Oyama coloca sucintamente, de modo muitoliteral, o que transmitido ou disponibilizado na reproduo um genoma e um
segmento do mundo (1985: 43, nfase minha). Juntos eles constituem um sistema de
desenvolvimento, e no funcionamento dinmico desse sistema nas interaes
complexas entre componentes internos ao organismo (incluindo o genoma) e situados
alm de seus limites que a forma gerada e mantida (Ho 1991: 346-7).
Segue-se que nenhum componente particular como o DNA pode ser privilegiado como
aquele que contm a forma que os outros expressam, uma vez que a prpria forma
uma propriedade emergente do sistema total que consiste nas relaes entre eles.
Uma mudana em qualquer componente do sistema, seja no genoma ou em algum
aspecto do ambiente interior ou exterior ao organismo, na medida em que altera os
parmetros de desenvolvimento, pode produzir uma mudana significativa na forma; as
possibilidades de mudana, porm, no so ilimitadas, restringem-se gama de formas
que podem ser geradas pelas propriedades da organizao dinmica do sistema. Desse
modo, a explicao para a estabilidade intergeracional da forma no se encontra na
fidelidade da replicao do DNA, mas nas potencialidades de auto-organizao de todo
o campo de relaes no qual o desenvolvimento ocorre (Goodwin 1988)[9].
importante precisar em que esta concluso difere daquilo que geralmente aceito na
biologia evolutiva. A questo de saber se os organismos so determinados por sua
natureza [nature] ou por seu desenvolvimento [nurture], pela constituio inata ou pelo
condicionamento ambiental, h muito foi declarada obsoleta, tendo dado lugar a umaperspectiva interacionista segundo a qual cada organismo, em qualquer momento de
seu ciclo de vida, o produto de uma complexa e contnua interao entre fatores
genticos e ambientais. Naturalmente, argumenta-se, os organismos assumem
aparncias diferentes em ambientes diferentes. Pressupe-se, contudo, que essas
diferenas ambientalmente induzidas revelam to somente o potencial de variao
daquilo que essencialmente o mesmo organismo, e que apenas as diferenas
atribuveis modificao gentica atestam a mudana evolutiva do prprio organismo.E precisamente nesta pressuposio, com seu privilgio implcito do genoma como o
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verdadeiro portador da forma orgnica, que se permitiu que repousassem as distines
convencionais entre gentipo e fentipo, e entre evoluo e desenvolvimento.
Para a teoria ortodoxa, estas distines so crticas. Evoluo, como vimos, referir-se-ia
a mudanas intergeracionais no gentipo; desenvolvimento, traduo, em cadagerao, do gentipo no fentipo (ver Figura 1). Isto no dizer que esses processos
sejam concebidos como no estando relacionados. Reconhece-se, por um lado, que as
circunstncias do desenvolvimento na medida em que incidem na replicao gentica
podem exercer uma influncia na evoluo e, por outro, que o gentipo modificado
pela evoluo que estabelece a programao para o desenvolvimento (Hinde 1991: 585).
Mas a teoria exclui qualquer possibilidade de que a prpria histria de vida do
organismo possa constituir uma parte intrnseca do processo evolutivo. Da perspectiva
evolutiva, no o que os organismos fazem, mas as consequncias reprodutivas de sua
atividade que so significativas. Consideraes relativas a agncia e intencionalidade
no tm lugar na explicao evolutiva: so atribudas aos mecanismos imediatamente
envolvidos na efetivao de estratgias cuja lgica ltima j est estabelecida pela
seleo natural. Por essa razo, habitual se falar dos organismos como locais onde a
evoluo ocorre, mas no como agentes da mudana evolutiva. Diz-se assim que as
mudanas acontecem em, mas no so ocasionadasporpopulaes de organismos.
Mas se a forma, como eu argumento aqui, no uma propriedade dos genes, e sim de
sistemas de desenvolvimento, para explicar a evoluo da forma precisamos entender
como estes sistemas so constitudos e reconstitudos ao longo do tempo. Vimos que
aquilo que um organismo inicialmente recebe de seus predecessores inclui, alm de sua
carga de material gentico, o ambiente no qual este material est disposto. Essa
disposio configura relaes especficas inscritas na forma em desenvolvimento.
medida em que se desenvolve, porm, o organismo tambm contribui, por meio de suasaes, para as condies ambientais, no apenas para o seu prprio desenvolvimento
posterior, mas para o desenvolvimento de outros organismos de seu prprio tipo e de
tipos diferentes com os quais ele se relaciona. Ele pode faz-lo diretamente, por sua
presena imediata no ambiente de outro, ou indiretamente, na medida em que suas
aes conservam, modificam ou transformam o ambiente da experincia de outro. Por
exemplo, a criana humana pode crescer cercada por pais e irmos, em uma casa
construda h muito tempo por predecessores que ela nunca conhecer. Contudo, todasessas pessoas, e sem dvida muitas outras mais, desempenham ou desempenharam sua
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parte no estabelecimento das condies para o desenvolvimento da criana.
Inversamente, medida em que ela cresce e seus poderes de agncia se expandem, ela
ir contribuir por seu turno para as condies de desenvolvimento de seus prprios
contemporneos e sucessores.
No que se refere aos seres humanos, usual falar do processo pelo qual as pessoas de
cada gerao conformam, atravs de suas aes, os contextos nos quais seus sucessores
vivero, como histria. Meu ponto, porm, que a histria humana no seno uma
parte de um processo que acontece em todo o mundo orgnico (ver Ingold 1990: 224).
Neste processo, os organismos figuram no como os produtos passivos de um mecanismo
a variao sujeita seleo natural situado fora do tempo e da mudana, mas como
agentes ativos e criativos, ao mesmo tempo produtores e produtos de sua prpria
evoluo (Ho 1991: 338). E isto porque cada organismo no apenas se desenvolve num
campo mais amplo de relaes, como tambm contribui atravs de sua atividade para a
perpetuao e a transformao desse campo. Assim, o que ele faz ao longo da sua vida
no consumido na reproduo de seus genes, mas incorporado aos potenciais de
desenvolvimento de seus sucessores. No pode haver, portanto, nenhuma separao
entre ontogenia e filogenia, desenvolvimento e evoluo. A ontognese, longe de ser
acessria mudana evolutiva, a prpria fonte a partir da qual o processo evolutivo se
desdobra.
Para prevenir qualquer possvel mal-entendido, deixem-me ser claro em relao ao que
estou defendendo. Eu no nego a existncia do genoma ou sua importncia como um
regulador do processo de desenvolvimento. Tambm no nego que mudanas podem
ocorrer e ocorrem na composio do genoma, como resultado da mutao,
recombinao e replicao diferencial de seus segmentos constituintes atravs das
geraes. O que eu nego, porm, que o genoma contenha uma especificao da formaessencial do organismo, ou de suas capacidades para a ao e, portanto, que um
registro de mudana gentica seja em qualquer sentido equivalente a uma explicao
de sua evoluo. Boa parte da mudana gentica ocorre sem nenhum corolrio ao nvel
da forma ou do comportamento; inversamente, transformaes morfolgicas e
comportamentais significativas podem ocorrer sem quaisquer mudanas
correspondentes no genoma. Vimos que, uma vez que os organismos, em suas
atividades, podem modificar as condies de desenvolvimento das geraessubsequentes, sistemas de desenvolvimento e as capaciades neles especificadas
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podem continuar a evoluir sem exigir nenhuma mudana gentica. Em nenhum lugar
isto mais evidente que na evoluo da nossa prpria espcie. A fim de explicar como a
mudana pode ocorrer na ausncia de modificao gentica significativa, a teoria
evolutiva ortodoxa teve que conceber uma segunda via, a histria da cultura,
sobreposta base de uma herana gentica resultante da evoluo. Contudo, uma vezque se reconhece que as capacidades se constituem no interior de sistemas de
desenvolvimento, ao invs de serem transportadas com os genes como um dote
biolgico, podemos comear a ver como as dicotomias entre biologia e cultura, e entre
evoluo e histria, podem ser descartadas. Esta a questo da qual passo a me ocupar.
Biologia e culturaComeo retomando a comparao entre andar e pedalar. A locomoo bipedal, de
acordo com a teoria ortodoxa, parte da constituio biolgica humana ou seja,
tida como uma propriedade do gentipo anatomicamente moderno. Vimos, porm,
que o gentipo o produto dos esforos dos bilogos para atribuir as capacidades do
organismo a um programa interno, que consistiria num conjunto de regras ou algoritmos
capazes de gerar respostas apropriadas sob quaisquer circunstncias ambientais. Se a
capacidade de andar compete ao gentipo, ento deve ser possvel compreender o
andar como expresso de um programa desse tipo, desenvolvido pela seleo natural e
introduzido com o genoma em diversos contextos de desenvolvimento. O que fazer com
a capacidade de andar de bicicleta? pouco provvel que se possa aprender alguma
coisa sobre as origens e o desenvolvimento dessa capacidade por meio do exame de
mudanas nas frequncias de genes entre os ciclistas! Admite-se consensualmente que
andar de bicicleta no faz parte do gentipo humano e, por essa razo, no se considera
em geral que tenha evoludo no sentido biolgico. Contudo, andar de bicicleta
claramente uma habilidade que, em algum sentido, transmitida de uma gerao a
outra. No pode, portanto, ser atribuda ao fentipo, uma vez que os caracteres
fenotpicos no so transmitidos atravs das geraes.
Para acomodar o tipo de transmisso no-gentica que parece estar em operao aqui,
prope-se frequentemente que, em populaes humanas, um segundo modo de herana
opera em paralelo com a gentica. Os seres humanos, como afirma Durham, estode posse de dois grandes sistemas de informao, um gentico, o outro cultural (1991:
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9). A capacidade de andar de bicicleta, ento, estaria compreendida em um anlogo
cultural do gentipo um culturtipo [culture-type] (Richerson e Boyd 1978: 128)
cujos elementos ou traos constitutivos se encontrariam igualmente codificados em
meios simblicos. Este modelo de enculturao se baseia exatamente nas mesmas
premissas expostas acima em relao transmisso gentica. Ele pressupe que amensagem cultural que o indivduo recebe de seus coespecficos preexiste a sua
representao simblica, que a mensagem pode ser lida dessa representao por
meio de regras de decodificao independentes do contexto, e que essa leitura precede
a aplicao do conhecimento cultural recebido nos cenrios da prtica. Desse modo,
uma distino clara tem que ser traada entre a transmisso intergeracional da
informao cultural e sua expresso na carreira de cada indivduo, exatamente paralela
distino que a teoria ortodoxa da biologia evolutiva traa entre a transmisso doselementos que constituem o gentipo e a concretizao deste ltimo, na vida de cada
organismo, sob a forma do fentipo. A primeira dessas distines tem sido feita
convencionalmente por meio de um contraste entre aprendizado individual e
social.
Figura 4Aprendizado individual e social. As setas verticais representam a transmisso
intergeracional da informao cultural pelo aprendizado social na sequncia ancestral-
descendente C1 C4. As setas horizontais representam os processos de aprendizado
individual atravs dos quais, em cada gerao, os esquemas culturais recebidos sotraduzidos em comportamento (B1 B4) em condies ambientais dadas (E1 E4).
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Comparar com a Figura 1.
Aprendizado individual, aqui, refere-se ao modo como o comportamento adquirido,
tal como a morfologia, atravs da direo ambiental de um desenvolvimento que
culmina no fentipo maduro. Sob este aspecto, cada organismo aprende por si mesmo,pela experincia, e o processo de aprendizado coextensivo a sua prpria vida. O
aprendizado social, por outro lado, refere-se transmisso, atravs das geraes, de
um corpo de conhecimentos culturais sob a forma de uma tradio. Esta tradio
consiste no no prprio comportamento, mas em um sistema de esquemas planos,
receitas, regras, instrues (Geertz 1973: 44)[10] para ger-lo. No caso de andar de
bicicleta, por exemplo, o que um indivduo adquire de outros mais experientes so os
elementos de um programa, anlogo ao programa codificado geneticamente que
supostamente assegura a competncia em andar, e que concretizado por meio da
prtica e da experincia em um ambiente. Note-se como esta diviso entre os
componentes sociais e individuais do aprendizado efetivamente divorcia a esfera de
envolvimento do aprendiz com outrem dos contextos do seu engajamento prtico no
mundo. Ela pressupe que o que passado adiante, no aprendizado, uma
especificao para o comportamento independente do contexto, e que tal especificao
est disponvel para transmisso, em forma codificada, fora das situaes de sua
aplicao. Em conformidade com isso, acredita-se que a estabilidade intergeracional da
forma cultural reside na fidelidade com que esta informao replicada de uma mente
a outra.
Como uma descrio do que acontece quando se aprende a andar de bicicleta, ou, alis,
na aquisio de qualquer outra habilidade prtica, isto altamente artificial. Primeiro,
porque a arte de pedalar como alis a de andar desafia a codificao em termos de
qualquer sistema formal de regras e representaes. Mesmo que fosse possvel criar umprograma para andar de bicicleta, pouco provvel que uma criatura dotada de tal
programa, e equipada com uma mquina para pedalar, fosse capaz de adquirir a
destreza do praticante competente. Alm disso, a assistncia dos adultos necessria
acima de tudo para fornecer demonstrao e apoio isto , para criar situaes nas
quais o aprendiz tenha oportunidade de pegar o jeito por si. O mesmo verdadeiro no
aprendizado da linguagem, descrito adequadamente como um processo de reinveno
dirigida (Lock 1980) no qual a contribuio dos adultos no ambiente da criana fornecer interpretaes contextualmente especficas de suas emisses vocais, que
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conduzem a criana descoberta de como as palavras podem ser usadas para exprimir
significados. A contribuio de cada gerao para a seguinte, pois, no so regras e
esquemas para a produo do comportamento apropriado, mas as condies especficas
de desenvolvimento nas quais os sucessores, crescendo num mundo social, adquirem
suas prprias habilidades e disposies incorporadas.
Palavras e atos, naturalmente, so cheios de significado, e em qualquer situao de
aprendizado o nefito ir ouvir o que as pessoas dizem e assistir ao que elas fazem. Mas
no existe nenhuma leitura de palavras ou atos que no seja parte da orientao
prtica do prprio nefito ao seu ambiente. Palavras ditas, por exemplo, tomadas em si
mesmas, no servem, assim como os genes, para alguma coisa. Elas no introduzem
significado nos contextos de interao, como requer o modelo de transmisso de
informao. Em vez disso, e novamente tal como os genes, elas retiram seus signficados
dos contextos de atividades e relaes nos quais elas esto em uso[11]. Desse modo, a
cultura, como um corpo de conhecimento tradicionalmente transmitido, independente
do contexto, codificado em palavras ou outros meios simblicos, no pode existir em
parte alguma exceto na mente do observador antropolgico. Ela derivada por
abstrao do comportamento observado, exatamente da mesma forma que o bilogo
deriva o gentipo por abstrao das caractersticas observadas do organismo, e o
linguista deriva uma gramtica do registro de enunciados. E, pelo mesmo artifcio que
j observamos nos campos da lingustica e da biologia, imagina-se que esta abstrao
esteja implantada nas mentes dos prprios atores, como a fonte geradora de suas
condutas.
Na direo oposta, argumentei que, quer nossa ateno se volte a andar ou pedalar,
falar ou escrever, fabricar ferrramentas ou operar mquinas, o que as pessoas fazem
no pode ser compreendido como expresso comportamental de um programa interno,mas somente como atividade intencional do organismo humano inteiro em seu
ambiente. Assim, para reiterar minha concluso precedente, no h nenhum
fundamento em distinguir capacidades para a ao devidas biologia daquelas
devidas cultura. verdade que h coisas que os seres humanos podem fazer que so
aparentemente impossveis para quaisquer outras criaturas, mesmo que tenham sido
criadas em um ambiente humano. E razovel supor que esses potenciais no teriam
emergido se no fosse por certas mudanas no genoma que poderiam, em princpio, serrastreadas em populaes ancestrais. Mas o genoma, sozinho, no especifica nenhum
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tipo de capacidade. Desse modo, buscaremos em vo uma capacidade para a cultura,
cuja emergncia evolutiva teria marcado o que algumas vezes chamado de revoluo
humana. E isto porque no existe tal coisa, separadamente das capacidades diversas
de seres humanos que crescem em diferentes ambientes. Essas diferenas de
experincias de desenvolvimento, como mostrei, so incorporadas anatomicamente, demodo a fazer de cada um de ns um organismo de um tipo diferente.
Evoluo e histria
Onde ficam os Cro-Magnons nisso tudo? Sua entrada em cena realmente marcou o
surgimento de gente inteiramente como ns? claro que no somos de modo algum
perfeitos; no obstante observa Howells no injusto dizer que o Homo sapiens
parece ter concludo o progresso humano que o Pleistoceno deixara inacabado (1967:
242). Em outro sentido, contudo, o progresso humano mal tinha comeado. Estes dois
sentidos de progresso correspondem, como vimos, ao que costumeiramente
distinguido como evoluo e histria. Esta uma distino que, em geral, no seria
feita para qualquer outra espcie. Em outras palavras, assume-se que no pode haver
mudanas cumulativas ou progressivas nas capacidades comportamentais de espcies
no-humanas que no estejam ligadas a mudanas evolutivas em suas formas essenciais,
especficas da espcie. Por essa razo, ningum acha necessrio falar, por exemplo, dos
chimpanzs anatomicamente modernos ou de elefantes anatomicamente modernos.
O que o conceito de modernidade anatmica faz, com efeito, reconhecer um sentido
alternativo em que as pessoas podem ser modernas, mas to somente para coloc-lo
alm dos limites, como algo que no interessa ao estudioso da evoluo biolgica
humana. Este segundo sentido de modernidade, contudo, fundado como em um
compromisso com a supremacia da razo, est contido no prprio projeto da cincia
contempornea e sustenta sua pretenso de ser capaz de fornecer uma explicao
autorizada das operaes da natureza. Eis a contradio a que me referi no incio. O
processo histrico, que pretensamente eleva a humanidade a um nvel de existncia
superior ao puramente biofsico, tido pela cincia como aquilo que fornece a
plataforma a partir da qual seus praticantes que, claro, so tambm seres humanos
podem lanar suas declaraes de que os humanos so apenas mais uma das espcies da
natureza (Foley 1987).
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As razes da contradio precedem consideravalmente o surgimento da teoria evolutiva
em sua forma moderna darwiniana, remontando a um dualismo bsico no pensamento
do sculo XVIII entre natureza e razo. Em seu Systema Naturae de 1735, Lineu
reconheceu o estatuto do homem como uma espcie no interior do reino animal, sob a
designao Homo. Diferentemente de todas as outras espcies animais, contudo, noera por suas caracteristicas fsicas que ele deveria ser conhecido. Com efeito, Lineu
declarou sua enorme dificuldade em encontrar qualquercritrio definitivo pelo qual os
seres humanos pudessem ser distinguidos anatomicamente dos grandes primatas, e
acabou optando por apresentar a distino humana sob a forma de uma recomendao:
Nosce te ipsum (conhece por ti mesmo). em sua sabedoria, pensava Lineu, no em
sua forma fsica, que o homem difere essencialmente dos macacos. Em virtude de nossa
singular faculdade intelectual da razo, somos os nicos seres que podem buscarconhecer, pelos nossos prprios poderes de observao e anlise, que tipos de seres ns
somos. No h cientistas entre os animais.
Os grandes tericos da evoluo social e cultural do sculo XIX homens como Edward
Tylor e Lewis Henry Morgan situaram suas narrativas do progresso humano num quadro
igualmente dualista. Enquanto todas as espcies animais eram ordenadas, conforme sua
forma fsica, em uma cadeia do ser culminando na humanidade, supunha-se que esta
ltima havia sido singularmente dotada pelo Criador com uma conscincia incorprea
que, atravs da histria, tem avanado progressivamente sob a direo de suas prprias
leis de desenvolvimento, nos limites de um corpo que no sofreu alterao (Ingold 1986:
58-60). Desse modo, todos os seres humanos eram tidos como iguais em sua natureza
essencial e potenciais de desenvolvimento, mas supunha-se que as populaes diferiam
no grau em que esses potenciais haviam sido realizados na passagem da selvageria
civilizao. Com a publicao, em 1871, de The descent of man de Darwin, a doutrina
do potencial humano comum ou, como era ento conhecida, da unidade psquica da
humanidade foi posta em questo, desafiada pela ideia de que diferenas
interpopulacionais na escala de civilizao poderiam ser atribudas a variaes
anatmicas, sobretudo no tamanho e complexidade do crebro. Thomas Huxley chegou
ao ponto de declarar que a superioridade do europeu em relao ao selvagem portador
de um crebro supostamente pequeno no era diferente, em princpio, da superioridade
do selvagem em relao ao macaco portador de um crebro ainda menor. Sucedeu-se
um perodo de racismo desenfreado do qual a antropologia s comeou a se recuperar
na segunda dcada do sculo XX. E ela o fez reafirmando a universalidade da natureza
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humana, e insistindo em que quaisquer que sejam as diferenas entre populaes
quanto a suas caractersticas biolgicas, elas no tm nenhuma consequncia para a
histria e para o desenvolvimento cultural.
Com efeito, quando se assume que a constituio biolgica dos organismos humanos dada como um dote gentico, no possvel escapar do racismo a menos que a variao
cultural seja desconectada da biolgica. Claramente, no h nenhum fundamento
factual para a crena raciolgica de que diferenas culturais tm uma base gentica.
Meu ponto, porm, que, ao virar as costas ao dogma racista, a teorizao subsequente
sobre a evoluo humana reconstituiu a viso do sculo dezoito em todos os seus
aspectos essenciais. Mais uma vez os seres humanos aparecem de forma dual, de um
lado como uma espcie da natureza, de outro como criaturas que de modo nico entre
os animais conquistaram uma tal emancipao do mundo da natureza a ponto de fazer
dela um objeto de sua conscincia. verdade que, diferentemente de Lineu, os
estudiosos contemporneos da evoluo humana so capazes de apontar com alguma
preciso um conjunto de caractersticas anatmicas pelas quais os seres humanos
podem ser distinguidos no apenas de primatas no-humanos atualmente existentes
como tambm de seus antepassados homindeos pr-humanos. Estas so as
caractersticas diagnsticas para o reconhecimento da modernidade anatmica. Mas
humanos deste tipo reconhecivelmente moderno no evoluram como cientistas,
muito menos com uma teoria pr-fabricada da evoluo. A cincia e suas teorias so
tidas amplamente como produtos de um processo cultural ou civilizacional muito
distinto do processo da evoluo biolgica: um crescimento cumulativo do
conhecimento que manteve inalterada nossa natureza bsica.
Temos assim dois continua distintos, um evolutivo, conduzindo de formas pongdeas e
homindeas ancestrais at o Homo sapiens sapiens anatomicamente moderno, o outrohistrico, conduzindo do nosso passado presumido de caadores-coletores at a cincia
e a civilizao modernas (Ingold 1998: 89-93). A interseo desses continua configura
um ponto de origem, sem paralelo na histria da vida, quando nossos ancestrais se
encontravam no limiar da cultura e, pela primeira vez, viram-se face a face com o
significado.
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CULTURA
HISTRIA -- Cientistas ocidentais
EVOLUO BIOLGICA -- Cro-Magnons
Australopitecneos Origem dos humanos modernos
H. Habilis
H. Erectus
Neandertais
Figura 5A origem da verdadeira humanidade, concebida como situada na interseo
entre o continuum da evoluo biolgica, desde as formas ancestrais pongdeas e
homindeas at os humanos anatomicamente modernos, e o continuum da histria dacultura, desde a caa e a coleta do Paleoltico at a cincia e a civilizao modernas.
Acredita-se que este ponto marca a emergncia do que por vezes chamado de
verdadeira humanidade (ver, por exemplo, Botscharow 1990: 64), ou a chegada, nas
palavras de Howell, da nova espcie nossa espcie de homem (1967: 242). Este
tipo de homem, equipado anatomicamente para a vida como caador-coletor, possua
uma mente que o capacitaria, no devido tempo, a raciocinar como um cientista. Ohomem de Cro-Magnon, ao que parece, tinha todo o potencial biolgico necessrio para
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fazer dele um cientista: seu crebro era to grande, e to complexo, como o de
Einstein. Mas o tempo ainda no havia chegado, em sua poca, para que esse potencial
pudesse vir tona. Distendida entre os plos da natureza e da razo, epitomizada,
respectivamente, pelas figuras contrastantes do caador-coletor e do cientista,
encontrar-se-ia toda a histria da cultura humana, uma histria que teria sedesenrolado nos parmetros de uma forma corporal essencialmente estvel. E essa
forma, que todos os homens supostamente recebem como um dote biolgico comum, a
despeito de circunstncias culturais ou histricas, nada mais , naturalmente, que o
gentipo do homem moderno.
Tal como na doutrina da unidade psquica do sculo XVIII, diz-se que o gentipo humano
embora configurado pela seleo natural e no por interveno divina estabelece
uma base universal para o desenvolvimento cultural. Como uma representao ideal da
forma essencial da humanidade, o humano moderno , em si mesmo, uma criatura do
pensamento Ocidental moderno. Ele (ou ela) concebido como uma sntese de tudo o
que um ser humano poderia ser, um compndio de capacidades universais abstradas das
mltiplas formas de vida que efetivamente apareceram na histria, e retroprojetadas
no passado Paleoltico como um conjunto de potenciais de desenvolvimento
geneticamente inscritos, que sustentariam sua realizao.[12] Desse modo, o curso da
histria aparece como o desdobramento progressivo das capacidades latentes de nossos
ancestrais, fixadas biologicamente na evoluo ainda antes do incio da histria. H
certa ironia aqui. Os bilogos, que h muito tempo cooptaram a noo de evoluo para
descrever o processo que Darwin havia originalmente chamado de descendncia com
modificao, tm sido severos em sua crtica aos cientistas sociais que continuaram a
usar a noo, com referncia histria humana, em seu sentido original de
desenvolvimento progressivo. No entanto, esta viso da histria humana como a
atualizao gradativa de potenciais inatos est implcita em sua prpria teoria!
Argumentei que a distino entre evoluo e histria, tal como estabelecida na viso
ortodoxa, no pode ser sustentada. Vista como um processo pelo qual as pessoas, em
suas atividades, modelam os contextos de desenvolvimento para seus sucessores, a
histria reaparece como a continuao, com outro nome, de um processo de evoluo
que est em curso em todo o mundo orgnico. No Dezoito Brumrio, Marx escreveu que
os homens fazem sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sobcircunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente,
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legadas e transmitidas pelo passado[13] (Marx 1963 [1869]: 15). exatamente da
mesma maneira que os organismos em geral fazem sua prpria evoluo. No existe,
portanto, um ponto de origem no qual a histria comeou; nenhum momento de
emergncia da verdadeira humanidade. Logo, no precisamos de uma teoria para
explicar como os macacos se tornaram humanos, e de uma outra para explicar como(alguns) homens se tornaram cientistas. A evoluo humana no terminou com a
chegada dos Cro-Magnons, prosseguiu at o presente embora agora a chamemos de
histria. Procurei mostrar que as diversas formas e capacidades que emergiram neste
processo no so nem dadas de antemo como uma dotao gentica, nem transmitidas
como componentes de um corpo separado de informao cultural; so antes geradas em
e atravs do funcionamento dinmico de sistemas de desenvolvimento constitudos em
virtude do envolvimento dos seres humanos em seus diversos ambientes.
Para os humanos, assim como para quaisquer outros organismos, tal envolvimento uma
condio inescapvel de existncia. Eu acredito que precisamos reformular
inteiramente o modo como pensamos sobre evoluo, tomando esta condio de
envolvimento como nosso ponto de partida. A teoria ortodoxa, que atribui a mudana
evolutiva a modificaes subjacentes no gentipo, requer que os seres humanos sejam
completamente especificveis, independentemente dos contextos relacionais de seu
desenvolvimento. Mas uma tal especificao, como mostrei, existe somente na mente
do observador e, portanto, introduz uma diviso entre mente e mundo, ou entre razo e
natureza, como um a priori ontolgico. Na verdade, no existe nenhuma forma
essencial da humanidade, especfica da espcie, nenhuma maneira de dizer o que um
humano anatomicamente moderno independentemente das mltiplas maneiras que
os humanos efetivamente se tornam (Ingold 1991: 359). Essas variaes de circunstncia
de desenvolvimento, no de herana gentica, fazem de ns organismos de tipos
diferentes. Desse modo, minha concluso de que as diferenas que chamamos culturais
so de fato biolgicas no traz consigo nenhuma conotao racista. Ao reenquadrar o
ser-humano-em-seu-ambiente, podemos prescindir de uma caracterizao da
humanidade em termos da especificao da espcie, assim como da oposio entre
espcie e cultura. As pessoas habitam um mundo, no porque suas diferenas so
sustentadas por universais da natureza humana, mas porque elas esto inseridas
juntamente com outras criaturas em um campo contnuo de relaes, em cujos
desdobramentos toda diferena gerada.
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[1] Ingold, Tim. People like us. The concept of the anatomically modern human. In
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New York: Routledge, 2000. Captulo 22, pp. 373-391.
[2]N.T.: O autor faz referncia neste ponto anlise desenvolvida no captulo anterior,
intitulado The dynamics of technical change (The perception of environment, p. 362-
372).
[3] Com base em seus estudos de restos de esqueletos provenientes da aldeia neoltica
de Abu Hureyra, no atual Norte da Sria, Theya Molleson deduziu que as mulheres
residentes na aldeia passavam longas horas ajoelhadas no cho moendo gros em um
triturador manual. Padres de desgaste nos dedos grandes dos ps e nos joelhos, e
protuberncias nos ossos do brao e antebrao, nos pontos de insero de msculos que
teriam sido muito desenvolvidos, so inteiramente consistentes com essa interpretao.
tentador considerar as marcas produzidas no esqueleto por essa atividade como
deformidades ou anomalias (Molleson 1994: 62-3). Contudo, os ossos do esqueleto s
podem crescer e tomar forma num corpo ativo no mundo; assim, s possvel definir o
esqueleto normal em relao a atividades normais. Por que a patela estriada que
resulta do agachamento prolongado deveria ser considerada anormal quando, para a
grande maioria da populao humana, esta a posio usual de descanso? Ela s
percebida por ns como uma anomalia porque, tendo crescido em uma sociedade em
que usual sentar em cadeiras, consideramos ter que nos agachar, por qualquer lapso
de tempo, terrivelmente cansativo. Logo, no pode existir uma forma padro do
esqueleto humano.
[4] N.T.: Ingold se refere ao captulo anterior (The dynamics of technical change), emparticular s pginas 364-5.
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[5] Desenvolvo este argumento no prximo captulo (pp. 397-98).
N.T.: Ingold se refere ao captulo 22 de The perception of environment, intitulado
Speech, writing and the modern origins of language origins.
[6] N.T.: Cf. a edio brasileira deA Interpretao das Culturas, captulo 2, O impacto
do conceito de cultura sobre o conceito de homem (Rio de Janeiro: Editora Guanabara,
1989), p. 57.
[7] Citado no captulo anterior, The dynamics of technical change, p. 363 da edio
em ingls.
[8] A histria dessa confuso, que na verdade mais preponderante hoje que no
excitante perodo em que a estrutura do DNA foi esclarecida pela primeira vez,
documentada de forma soberba por Lily Kay (1998), em cujo relato me baseio.
[9] N.T.: Ingold tambm remete o leitor neste ponto ao captulo 18 do livro, On
weaving a basket, p. 345-6 da edio em ingls.
[10] N.T.: Cf. a edio brasileira de A Interpretao das Culturas, captulo 2, O
impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem (Rio de Janeiro: EditoraGuanabara, 1989), p. 56.
[11] N.T.: Conforme indicao do autor, este ponto retomado no captulo 23 (The
poetics of tool use: from technology, language and intelligence to craft, song and
imagination), p. 409 da edio em ingls.
[12] Um dos exemplos mais bizarros dessa forma de pensar vem de um livro recente de
Donald E. Brown, saudado amplamente como uma obra-prima nos crculos da psicologiaevolutiva. Intitulado Human universals, o livro oferece uma descrio detalhada do que
Brown chama de Pessoa Universal (PU). A PU caracterizada por um compndio de
traos que todas as pessoas, todas as sociedades, todas as culturas e todas as
linguagens tm em comum (Brown 1991: 130). Esses traos seriam acrescentados ao
que popularmente conhecido como natureza humana, cuja evoluo confiantemente
atribuda seleo natural, e cujo fundamento ltimo estaria nos genes. Uma vez que
jamais existiu nenhuma populao humana remotamente parecida com a PU, difcilver como teriam evoludo. Com efeito, o que Brown apresenta, sob a aparncia de uma
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sntese de caractersticas universais, uma mal disfarada verso do modelo Ocidental
da pessoa.
[13] N.T.: Cf. a edio brasileira de O 18 Brumrio e Cartas a Kugelmann (Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1974), p. 17.
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