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Textos:
PEDRO MALASARTES E O COURO MISTERIOSO” abre a Terceira Edição do Festival ZÉ BOLO
FLOR de Teatro de Rua de Cuiabá – MT ..................................................................................... 2
Na cartografia de afetos do In-Próprio Coletivo, “Não cabe mais, gente!” ................................. 5
Queijo com goiabada, eis o “ROMEU e JULIETA” do Teatro Faces Jovem, para os
“DESAVISADOS” ........................................................................................................................ 8
No Bairro Pedra 90, “Flor de Liz” tem virgindade ..................................................................... 12
C O N T E S T A D A! ................................................................................................................. 12
Ilson de Oliveira transforma a Praça Alencastro numa “Fábrica de Risos” ................................ 14
A VIRGINDADE CONTESTADA - Um divertido encontro com a história, com o compadre e as
comadres. ............................................................................................................................... 17
MAIÊUTICA. Todos parimos juntos com a mulher|boneca ....................................................... 19
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PEDRO MALASARTES E O COURO MISTERIOSO” abre a Terceira
Edição do Festival ZÉ BOLO FLOR de Teatro de Rua de Cuiabá – MT
Por Carlos Ferreira*
Da promissora cidade de Primavera do Leste – MT chega à capital
mato-grossense a trupe do Teatro Faces, trazendo no seu recheado baú de
experiências, o personagem Pedro Malasartes, muito conhecido no universo da
cultura popular, para encenar, no Teatro de Arena da Casa Cuiabana: “Pedro
Malasartes e o Couro Misterioso”.
Ele vem guiado por um reinado erigido no coração do cerrado mato-
grossense, onde um rei anuncia dar toda a sua fortuna àquele que descobrir ou
adivinhar de que animal provém o couro que sua esposa, a rainha, carrega nas
mãos, cotidianamente. Em contrapartida e como pena, promete cortar a cabeça
daquele que não acertar a origem do couro. Pedro Malasartes, mesmo
desprovido da credibilidade dos parceiros, aceita o desafio, na tentativa de
libertar financeiramente o seu bando, conquistando toda a herança prometida.
Com esse desafio, Pedro Malasartes, acompanhado do seu bando
escudeiro, começa então o imbróglio dramatúrgico, onde músicas e textos dão
ao conjunto de cenas, um jocoso ar de comédia ingênua, caipira, popular, mas
também capciosa.
A história que tem um trabalho musical elaborado ao curso saboroso
do adágio/andante coloca a platéia de frente de um dos personagens e figura
tradicional, mais explorado e revisitado nos contos populares em alguns países
como: Portugal, França e Espanha. Mas esse burlão invencível, cínico, astuto,
inesgotável de expedientes corajosos, de enganos sutis, sem escrúpulos e sem
remorsos, também chega ao Brasil.
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Na literatura brasileira, diversos autores exploraram o personagem que,
freqüentou e freqüenta os pátios e salas de aulas de escolas na tentativa de
popularizar o gosto pela leitura, tendo Pedro Malasartes como um herói social
popular. No cinema, tomou corpo com o filme: “As aventuras de Pedro
Malasartes”, em 1960 com Mazzaropi, no papel principal. Em Mato Grosso
temos na dupla “Nico & Lau” esse mesmo espírito, onde os dois personagens
ao gosto da esperteza, da inteligência e da criatividade, tiram proveito do seu
“Humor do Mato”, com tamanha sabedoria e agrado popular, por mais de 20
anos.
Esse é também o espírito da peça teatral que o Teatro Faces leva aos
palcos e ruas, colorindo de ingenuidade, sabedoria e alegria o imaginário
coletivo de crianças, jovens e adultos das mais diversas classes, ao exemplo
da “Casa Cheia” na sua estréia no Festival Zé Bolo Flor de Teatro de Rua, na
cidade de Cuiabá, no dia 29/11 passado.
Ali, estudantes e público em geral se realizam pela satisfação de
também participar da cena teatral, contagiados pelos personagens que se
parecem já conhecidos, tamanha a graciosidade e simpatia com que lidam com
elementos da nossa cultura popular, em meio ao cerrado mato-grossense.
A essa trupe de experiências na construção de uma dramaturgia
popular ao tom da criatividade sempre inventiva, ainda presencia-se o
desdobrar dos atores e atrizes que, reafirmam o seu trato cênico na força e
garra do domínio do grupo: tocam instrumentos sabiamente, cantam afinados e
constroem e desconstroem cenas numa horizontalidade coletiva, onde todos se
revezam com a mesma cumplicidade, valor e poder interpretativo, deixando o
protagonismo individual, numa dimensão de menor acento.
Ao acaso de cada cena, cada integrante se coloca inteiro; tanto na
construção dos seus personagens, quanto na socialização do espaço cênico,
cujos corpos ali envolvidos, expressão elementos de uma composição física e
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orgânica, dialogando com a platéia, sem mediadores fictícios,
colocando esta, como um prolongamento e parte integrante da sua encenação
e dramaturgia.
Num curso de pouco mais de trinta minutos, o Teatro Faces se
apresenta logo de princípio com o seu destino teatral aventureiro e disposto a
correr risco, como é também o destino da arte teatral. A nós, platéia, fica o
sabor da reprise, do da capo, do bis e da constante satisfação de presenciar
um teatro feito com a nossa cara, dentro de um FESTIVAL que já tem marca
garantida na cena mato-grossense, tão bem coordenado pelo Grupo Tibanaré
de Teatro.
* Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT, ator e diretor teatral e Professor de arte da rede pública.
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Na cartografia de afetos do In-Próprio Coletivo, “Não cabe mais,
gente!”
Por Carlos Ferreira*
Era por volta das 19 horas do último dia do mês de novembro, quando
um prenúncio de uma noite bastante escura rondava a Praça principal do
Bairro Pedra 90 - um aglomerado de bairros com população de
aproximadamente 50 mil habitantes, ao sul da Capital, ao “aviso Sãopedriano”
que: vai chover! Portanto, “Não cabe mais, gente!”
Mas para o “In-Próprio Coletivo” – Coletivo de Teatro da cidade de
Cuiabá - MT, imergidos na programação da Terceira Edição do Festival ZÉ
BOLO FLOR de Teatro de Rua, parecia existir esperanças, cumplicidade,
conflito, curiosidades e interrogações, principalmente por parte do público que
já começava a construir, incomodados, corpo de arena para a cena do “In-
Próprio”.
O solo e arquitetura de um ponto de ônibus cercado por uma
concentração comercial, à margem do trânsito de veículos, pedestres,
bicicletas, vendedores ambulantes e transeuntes curiosos, foi o suficiente para
a construção de uma arquitetura outra. A arquitetura que buscava “operar
cartografias de afetos”, mesmo com a incógnita de que: “Não cabe mais,
gente!”
Minuto a minuto uma película-pele se encarrega de operar afeições
físicas entre dois pilares galvanizados do ponto de ônibus, cujo resultado dessa
arquitetura cênica do “In-Próprio”, coloca um único ser inserido em um corredor
também impróprio: “Falta ar. Apertado, enrugado, borrado, retorcido: corpos -
outros. Plástico-gente. Escolha. Limite”.
Eis que São Pedro, preocupado com esse limite e conflito social, deu
trégua para a chuva e resolveu assistir ao tratado do improviso arquitetado com
o mais peculiar elemento do teatro: o correr risco.
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Outros corpos invadem a cena e na construção da cartografia do afeto,
tudo deixa de ser impróprio. O volume de corpos presentes no interior desse
conflito cartográfico se avoluma a medida que o espaço impróprio foge aos
olhos e desaparece.
Ali, no interior da bolha-útero, na residência do acaso orgânico, a saliva
umedece os lábios deformados ao encontro da pele limite; o suor lubrifica os
corpos na fuga de uma anciã vã; o físico que se retorce na des-conformidade
espacial, sonoriza a tonalidade do afeto numa explosão de espectros de
emoções. Agora, todos se tornaram um. Um único útero corpóreo a construir
uma cartografia que afeta o afeto daqueles que estavam até então, do lado de
fora.
Na arena-bolha-útero externa, o comportamento da platéia é outro: os
olhares já se cruzam no acordo da apreciação; os transeuntes se acomodam
silenciosamente com respirações quase ocultas; as bicicletas escoram os
corpos já relaxados ao repouso da cena; vozes emudecem, quando a trilha
sonora orgânica se torna evidente, numa explosão cardíaca visceral. Um
orgasmo atmosférico toma conta do entorno onde quase não se percebe quem
está do lado de dentro ou do lado de fora da cena e do útero.
“Habitar o espaço é fazer dele um lugar” e o “In-Próprio Coletivo”
cumpriu com a sua proposição, tanto em construir um lugar físico, quanto um
lugar no não lugar, cuja regência do silêncio consegue desprezar a batuta, para
que esta não aponte destinos outros e a transfere para as mãos da platéia, que
se encarregam de apontar e reger com a batuta das interrogações: “Não cabe
mais, gente!????”
Se “somos processo e produto do que saturou. Como ainda cabe o que
já rompeu o limite? Como experimentar o desvio em meio às dinâmicas do
estar junto?”
Ao final dessa relação, é claro imprimir que, no universo social, seja em
que parte do mundo for, em qualquer cultura, tribo ou comunidade, todos tem
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capital cultural para compreender e des-compreender qualquer
proposição em arte. Sobretudo no teatro que, por ser vivo, presente e, acima
de tudo, político por si só, desnuda no homem e na mulher a sua alfabetização
na língua, para construir uma alfabetização artístico-estética, colocando a arte
teatral a serviço da transformação social. Portanto, se é “In-Próprio Coletivo”,
AINDA CABE MUITO MAIS, GENTE!
* Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT, ator e diretor teatral e Professor de arte da rede pública.
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Queijo com goiabada, eis o “ROMEU e JULIETA” do Teatro Faces
Jovem, para os “DESAVISADOS”
Por Carlos Ferreira*
Nem doce, nem salgado - agridoce! É o que podemos saborear, a
princípio, da instigante e conturbada encenação, do Teatro Faces Jovem, da
cidade de Primavera do Leste – MT, em sua aparição no Festival ZÉ BOLO
FLOR de Teatro de Rua, no dia 30/11, último, na Praça principal do Bairro
Pedra 90, em Cuiabá – MT.
Seria um trabalho ao sabor do “Teatro da Experiência”, como tão bem
deflagrou o polêmico Flávio de Carvalho em São Paulo, em 1931? Dúvidas e
diferenças a parte, o que podemos perceber e valorizar nesse grupo de jovens
atores é a pujança e o vigor com que se colocam à disposição da arte de
representar. Algo muito comum e inerente a essa faixa etária, nesse princípio
teatral, o desejo de romper com o óbvio, com o tradicional, pelo gosto de
“inovar”, ou fazer diferenças, acabam por colocar no seu trabalho, certo volume
de controvérsias, indignações, curiosidades e até mesmo incômodo social, tudo
muito comum e pertinente a qualquer linguagem artística.
“Romeu e Julieta”, originalmente escrita entre 1951 e 1955, por
William Shakespeare, pertence a uma tradição de romances trágicos, remonta
à antiguidade e têm sido infinitamente encenada no mundo inteiro. Abordada
nas linguagens do teatro, cinema, música e literatura, acercada de releituras e
performances para atender ao chamado do circo, no teatro de picadeiro, no
teatro de rua, de bonecos, enfim, muito popular, acaba por ser também um
exercício de experiência teatral, em todas as épocas e linguagens e para todas
as idades.
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A montagem de que tratamos: “Romeu e Julieta para os
desavisados” tem direção assinada por Wanderson Lana, que integra o
Teatro Faces, mas atua da construção de dramaturgia para o Teatro Faces
Jovem, de onde, com certeza, deve tirar grande parte das suas experiências
cênicas e ainda, o prazer de sempre receber um feedback dessa juventude que
tem fôlego o suficiente para comover, questionar e encantar platéias. Em
tempo: só não entendo a necessidade da diferença, separação ou
subestimação na colocação: Teatro Faces, para Teatro Faces Jovem.
O diretor, Wanderson Lana diz que a sua encenação, “recebe
influência popular da periferia numa construção colaborativa onde são
discutidas políticas sociais e imposições midiáticas.” Já os atores, em
contradição, diz que: “o diretor pediu para continuarmos essa sinopse para
dizer que o trabalho foi colaborativo, mas foi ele que escolheu o texto, obrigou
a gente a ler o livro e a improvisar umas cenas aí.”
Conflitos internos à parte, o que também é muito natural e comum num
grupo teatral, sobretudo num grupo jovem, o que mais interessa é que a
encenação aqui pontuada carrega o tom do teatro de rua, do improviso, das
surpresas e riscos que toda e qualquer montagem, mesmo tradicional, pode
correr, ainda mais, quando se trata de uma encenação pontuada ao sabor de
inúmeros beijos entre pessoas do mesmo sexo, numa comunidade periférica,
assim como os atores, “desavisada”.
Se o século XXI nos traz uma arte contemporânea que tem sua
revelação social, política, cultural e econômica há mais de 50 anos, nenhuma
surpresa, aberração, incômodo ou agressão poderia ser conotada quando se
diz respeito à arte hoje. Contudo, a diversidade cultural ainda não deu conta de
tornar diverso também, a presença da contemporaneidade cultural nas
mentalidades humanas no que se refere a entender, aceitar e conviver com a
natureza cultural e social do tempo presente.
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Se a encenação de Romeu e Julieta de outrora, tinha como objetivo e
valor social, conotar a tragédia e conflito entre as famílias Montecchios e os
Capuletos, a montagem do Teatro Faces Jovem, traz para o tempo presente,
uma encenação de “Romeu e Julieta para os desavisados”. Esta,
temperada ao sabor do queijo e da goiabada – petisco homônimo ao nome da
peça, servido em um dos quadros da encenação - onde o que menos interessa
é a rivalidade entre as duas famílias conotadas na peça teatral de William
Shakespeare, mas sim, as tragédias sociais, políticas, culturais e econômicas
que presenciamos na atualidade, para o que o jovem elenco, chama a nossa
atenção.
Num tempo de aproximadamente 60 minutos, o Teatro Faces Jovem
consegue peregrinar com o público pela praça, rua e salas de uma escola,
convidando a platéia a uma eminente reflexão sociocultural e política. O
“susto”, a “vergonha”, a “incomodação” por parte da platéia, sobretudo da
platéia feminina, à cena do beijo entre atores de mesmo sexo, denota a
distância sociocultural de uma comunidade diante da sua própria realidade.
Bem como denota a nossa distância e poder de embate, conflito e luta, diante
de todas as mazelas políticas e sociais que presenciamos hoje no cenário
brasileiro.
Diante do exposto, nos resta ainda refletirmos sobre o destino do teatro
e da arte em geral que praticamos. Refletir sobre as mazelas políticas e sociais
que nos acercam e se amontoam as nossas frentes, nos tirando da arena que
tentamos deixar sempre aberta no intuito de que a próxima cena seja dividida
com a sociedade. A nossa arena, dia-a-dia tem seu espaço físico, social,
cultural, político e econômico, cada vez mais reduzido e estamos sendo
encurralados, de olhos vendados e oprimidos em todas as esferas, nacional,
estadual e municipal.
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O que nos interessa nesse momento, não é a tragédia entre os
Montecchios e os Capuletos, mas sim, o beijo; sobretudo o beijo de vitória, por
temos construído cidadania e transformação social para a nossa gente, para a
nossa sociedade, por meio da ARTE TEATRAL, mesmo que sejam necessários
os vários “BIS”, à encenação de “Romeu e Julieta para os desavisados”, a
acontecer em outras freguesias.
* Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT, ator e diretor teatral e Professor de arte da rede pública.
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No Bairro Pedra 90, “Flor de Liz” tem virgindade
C O N T E S T A D A!
Por Carlos Ferreira*
Como pode: uma porca emprenhada por um porco, ser alvo de tantos
mexericos, fofocas e falatórios entre a população do Bairro Pedra 90, na capital
mato-grossense? Um absurdo!
Pois sim! Trata-se de “Flor de Liz”, uma porquinha danada, esperta e
trapaceira que, há muito, anda aos namoros com o vizinho porco de raça e
famoso reprodutor na região, com o nome de “Pau de Sebo”. É dessa relação
que se dá o conflito, entre uma senhora, recatada e do lar, “Creonice”, com o
seu vizinho, exímio criador de porcos de raça, “Totó Bodega”, na comédia:
“VIRGINDADE CONTESTADA”.
Não era pra menos! Em tempos de tantas mazelas políticas municipais,
estaduais e nacionais, ainda há gente que se presta a se preocupar com a
virgindade de uma simples porquinha e, o pior, a exemplo das mazelas
políticas, tudo por um bom dinheiro.
É com essa deliciosa estória do universo da cultura popular, com
dramaturgia inspirada e adaptada por Luiz Carlos Ribeiro, do livro de Tereza
Albues que, Ivan Belém, Romeu Benedicto e Vital Siqueira, se unem para
construir um trabalho de comédia teatral, dos mais peculiares da atualidade.
Embora, os personagens originais da trama suína, são outros; mas, em se
tratando de uma direção coletiva, os atores assumem na comédia, os nomes
dos mesmos personagens com os quais há muito fazem sucesso e são
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conhecidos da população e da mídia local, dando à comédia, tão bem
colocada no picadeiro e no teatro de rua, criatividade.
Trata-se de três atores com vasta experiência no teatro de rua, na
comédia, na televisão, no cinema e também em performances que, ao
emprestar à comédia aqui tratada, os nomes dos personagens com os quais
lidam no cotidiano da cena mato-grossense, acabam por emprestar também,
experiência e naturalidade com que lidam na trama desse romance suíno.
O tal imbróglio entre “Flor e Liz” e “Pau de Sebo” só é resolvido,
quando a experiente parteira, “Comadre Pitu”, vivida pelo ator Vital Siqueira, de
confiança de “Creonice” (Ivan Belém), desvenda o fato, revelando a “Totó
Bodega” (Romeu Benedicto), a virgindade de “Flor de Liz”, mas anunciando
também, que a tal porquinha, está redondamente, prenha.
Não havendo mais dúvidas sobre o agora compromisso, entre os seus
proprietários, estes preparam então, o casamento de “Flor de Liz” com “Pau de
Sebo”, revelando a cumplicidade da comédia com as sutilezas da cultura
popular, que tem conteúdo e elementos de sobra, para continuar povoando o
imaginário coletivo, de qualquer sociedade.
Na praça principal do Bairro Pedra 90, crianças, jovens e adultos se
deliciaram com a sutileza da trama da comédia aqui tratada, bem como com os
atores que emprestam sabedoria cênica, naturalidade na interpretação da
comédia e ainda revelam um conjunto imagético ao sabor do teatro de rua,
gênero que arremata de beleza e de força o Festival ZÉ BOLO FLOR de Teatro
de Rua, na sua terceira edição em Cuiabá – MT.
* Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT, ator e diretor teatral e Professor de arte da rede pública.
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Ilson de Oliveira transforma a Praça Alencastro numa “Fábrica de
Risos” Por Carlos Ferreira*
Na tradição circense, o palhaço é figura e imagem principal na
construção e manutenção desse gênero de picadeiro que há séculos constrói
divertimento, beleza e alegria a toda gente. No teatro de rua, o palhaço é
também cidadão e dono do asfalto, do paralelepípedo, das calçadas, das
praças, das estradas, dos coretos e até mesmo dos pátios escolares.
Lírico, inocente, ingênuo, angelical e frágil, o palhaço, esse gentil
escudeiro da alegria, mágico das lonas e picadeiros, das verdades e mentiras,
das mágicas e magias e dos malabares, ainda continua povoando o nosso
imaginário coletivo.
É com essa variedade de forças e elementos da tradição da história do
palhaço que Ilson de Oliveira busca agir e reagir às ações do cotidiano, na
busca de ser ele mesmo, um palhaço na eterna construção da sua “Fábrica de
Risos”. É o que podemos presenciar em seu trabalho de “picadeiro” na Praça
Alencastro, no primeiro dia de dezembro, no centro histórico da capital mato-
grossense, por ocasião da Terceira Edição do Festival ZÉ BOLO FLOR de
Teatro de Rua.
Na sua interação com o público, Ilson de Oliveira veste um palhaço
inteiramente disposto aos ditames da platéia e de sua força orgânica. Ali,
expõe a sua experiência de ator e procura encontrar e manter sua energia
própria, sendo ele mesmo, desprovido de interpretações - o que não cabe na
construção do palhaço. Afinal, o palhaço não é um personagem. Ele é o próprio
ator na busca de amenizar os desgastes sociais por meio da energia presente
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na alegria, no riso, nas brincadeiras mais ingênuas, desprovidas de
conflitos, mas recheadas de magias, mistérios e encantamento.
Da sua “tenda-circo” saem objetos transportados e regidos por um
roteiro misterioso que, aos poucos, se revelam numa didática de ensinamentos
por meio de brincadeiras sadias, onde o participante cúmplice se diverte
confiante, presenciando a possibilidade do improviso e de ser também, um
amigo cidadão palhaço. E a platéia aplaude e se diverte com o inusitado, se
vendo também exposto, na participação do colega da platéia que se “veste” de
espontâneo palhaço.
Com peculiar roteiro, as músicas vão sendo desdobradas como um
“matar de saudades” das freqüentações de outrora, em outros picadeiros. Eis
que surge um colorido sonoro, mapeando de ritmo e força física vibrante,
cobrindo toda a praça de estupenda alegria, pelo competente trabalho de
direção musical de Ely Santana.
Com esse universo de saboroso entretenimento, alegria e
descontração, o Palhaço Zabilim Plim Plim vai contando a sua história como
uma colcha de retalhos e, a cada momento, uma nova parte vai sendo
costurada às partes já exploradas, revelando o seu desejo de contribuir com a
manutenção da linguagem do palhaço e com a arte circense.
Com direção e dramaturgia próprias, o ator Ilson de Oliveira vai
também revelando a sua experiência e atuação em outros projetos. Ao se
mostrar brincalhão, fanfarrão, palhaço, bufão, amigo, trapaceiro, que desenrola
as suas ações no mais calmo agir físico e psicológico, nos informa a sua
cumplicidade de estar ali, em plena praça, brincando consigo mesmo e com a
platéia. Tudo revelado, parte por parte, como também revela o seu conjunto
cênico de figurino, materiais de cena e sua “tenda-circo”.
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Que venham outros palhaços a nos trazer brincadeiras ingênuas e as
delícias do riso e da alegria, onde possamos também nos dar ao prazer de
sermos, talvez, um dia, um “ZÉ BOLO FLOR”, dessa nossa vida cotidiana.
* Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT, ator e diretor teatral e Professor de arte da rede pública.
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A VIRGINDADE CONTESTADA - Um divertido encontro com a
história, com o compadre e as comadres. Jan Moura Era noite já na Praça Cultural do Pedra 90, em Cuiabá. Naquele mesmo dia aquela comunidade já havia presenciado duas experiências muito diferentes uma da outra, dentro da programação do Festival de Teatro de Rua Zé Bolo Flô. O público ainda muito atento e receptivo esperava a entrada dos personagens do espetáculo: A Virgindade Contestada, uma remontagem de um famoso texto escrito Luis Carlos Ribeiro, a partir da obra Pedra Canga, de Tereza Albues Eisenstat. Em cena três importantes nomes da história do teatro cuiabano: Romeu Benedicto, Iván Belém e Vital Siqueira, que vestidos dos seus populares personagens, Totó Bodega, Creonice e Comadre Pitú, tomam para si as peripécias dessa aventura, num divertido conto popular. Virgindade Contestada tem história, história mesmo, dessas que a gente precisa sempre rever, para entender os tempos atuais. Vem lá dos anos 90, com as experiências do nosso querido e saudoso Liu Arruda, com teatro de rua. Encenada primeiramente pelo Grupo Gambiarra, tinha como palco principal a Praça da República, em Cuiabá. O texto foi construído para ser encenado de forma simples, sem muito cenário, luz ou sonoplastia, e ressalta de forma muito cômica e crítica (como eram os trabalhos de Liu Arruda) os absurdos de uma classe dominante, utilizando-se da sátira e da metáfora para contestar as questões sobre virgindade e sobre o casamento, que naquela época ainda eram um forte tabu, numa sociedade cuiabana ainda muito conservadora e elitista. Os artistas, lá nas primeiras montagens, aproveitavam o final do dia, na hora em que a população estava voltando para casa, depois do trabalho, para começarem a encenação. Provocando sempre muito riso e reflexão. Nesta remontagem, Totó Bodega, Creonice e Comadre Pitú atualizam a história e conseguem reconstruí-la de forma divertida e envolvente. Com os desafios que uma encenação na rua provoca, os três artistas se desdobram e vão solucionando as questões que vão surgindo e deixam claro, para quem assiste essa apresentação, que esta história contada lá nos anos 90 pelo Grupo Gambiarra, ainda tem muito o que dizer. Interessante perceber como esses personagens, que já são bem conhecidos pelo público devido a sua carreira na televisão, podem se reinventar, como são versáteis, e podem se conectar com o público de outras formas.
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O público embarcou na divertida história da Porca Flor de Lis e do Porco Pau de Sebo, mesmo com tantas interferências externas que a arte na rua provoca. Como é interessante revisitar a história do teatro cuiabano e perceber que ela ainda permanece presente no imaginário da população. Ao final o público, fã daquelas personagens, não os deixaram em paz, querendo de todas as maneiras registrar uma foto com os tão queridos compadre e comadres. Jan Moura Fazedor de Teatro. Ator e Performer. Mestre e Doutorando em Estudos de
Cultura Contemporânea - UFMT. Graduado em Comunicação Social e Pós-
Graduado em Gestão Cultural.
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MAIÊUTICA. Todos parimos juntos com a mulher|boneca Jan Moura
Uma das ações promovidas pelo Festival de Teatro Zé Bolo Flô é a ressignificação dos espaços urbanos, através da curadoria de trabalhos que carregam esse desejo e promovem uma relação de estranhamento e composição com o espaço urbano. Já de cara ficamos sem entender muito bem o que uma performance ou uma intervenção urbana está na programação de um festival de “teatro de rua”. Cristalizou-se na história do teatro, uma ideia de uma possível linguagem para o teatro de rua, como sendo algo mais popular, de roda, geralmente de humor e mambembe. O Zé Bolo Flô, enquanto território de experimentação, propõe encontrar outras possibilidades e desconstruir essa ideia, alargando o conceito de teatro de rua e propondo um outro olhar sobre o fazer e sobre a cidade. Começo com este parágrafo anterior para apresentar e entrar no comentário sobre Maiêutica, uma proposta de intervenção urbana da artista Raquel Mutzenberg, da cidade de Cuiabá. O seu trabalho provoca um repensar de todos os níveis, seja sobre uma possível ideia de teatro de formas animadas, sobre uma ideia de intervenção, sobre performance, sobre teatro, sobre a mulher, sobre parto, sobre uma porção de dobras e camadas que se justapõe para nos provocar. Raquel borra tudo isso e cria um outro patamar para a arte, ao misturar performer com boneca, cria um corpo híbrido e potente. A atriz e pesquisadora investiga diversos campos, seja do teatro, da performance, do teatro de formas animadas, corpo, música, cidade e se abre sempre a novas possibilidades se reinventando a todo momento. Já havia visto o seu corpo e sua boneca em diversos contextos, sejam eles de uma sarjeta numa praça de Cuiabá, seja uma praça mais limpinha em Primavera do Leste, seja no centro da cidade, em algum feira popular, na faculdade, em territórios e campos dos mais diversos. Sempre com a mesma potência de afeto. Os olhos da boneca nos invade e nos causa um misto de medo, estranhamento e culpa. Sim culpa, ela é capaz de jogar na nossa cara nossa incapacidade de ajudar o próximo, de como passamos todos os dias por pessoas em situação de rua que aos nossos olhos são invisíveis. Ela nos obriga a olhar o corpo do outro, a perceber que sofremos o tempo todo interferência do meio, que pede socorro e que a gente, mergulhados nas nossas pressas cotidianas não somos capazes de ouvir.
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A sinopse do trabalho fala de partejar de ideias. Ideias que compõem um corpo-matéria que se dobra, desdobra e se faz em dobras, atualiza e condensa as fisicalidades e a plasticidade de seres em cena. O corpo é recurso material e plástico, que se deixa dividir ou multiplicar pelas subjetividades femininas: a capacidade de renascer, de se re-parir. Então vou parir minhas ideias, a partir de de como foi esta experiência para mim naquela manhã no Terminal de ônibus do CPA I. Como todo terminal de ônibus, um local de passagem e pouca permanência, haviam pessoas sentadas, outras em pé, gente saindo e entrando nos ônibus que chegavam e saiam a toda velocidade. O chão do espaço sujo, cheio de restos de papel, comida e poeira. Pessoas conversavam, outras em silêncio esperavam por sua vez de irem embora. Foram assaltadas por um ser bem esquisito, uma mulher, uma boneca, um ser estranho, que está grávida e sofre as dores de um parto. Segura sua barriga e nas barras de ferro e postes que vai encontrando pela frente. Olha para gente e clama por ajuda. O que podemos fazer por ela? O que podemos fazer pela gente? Ela se arrasta pelo espaço, ora sentando aqui, ora se agarrando ali. Ela estende a mão, toca alguém, alguns se afastam assustados, outros tentam ajudar. O público fica o tempo todo criando suas próprias explicações e vão narrando tudo o que estão vendo, na tentativa de criar uma compreensão possível. O que é aquele ser que desloca pelo espaço? Interessante percebermos o público e como a reação deles acontece. Vivemos num mundo de instantaneidades, de fluxos rápidos e dispersos. Tudo passa muito rápido. As experiências acontecem de forma acelerada. Na ânsia de capturar e segurar a efemeridade a maioria das pessoas assistem a performance mediadas pela telinha do celular. Seria um desejo de captura, de compartilhamento, uma possibilidade de gerar mais likes nas redes sociais? Como somos subjetivados por este aparelhinho, por que deixamos de lado a experiência do momento e criamos um outro nível de relação com o que nos acontece fisicamente ao redor? Virtualidade e presença se confundem. Não é possível passar imune, seja com ou sem celular na mão. Ali no meio de gente, ônibus, lixo, abandono, ao som de uma música sertaneja universitária, Maiêutica dá luz a si mesma, e a nós. Todos parimos juntos com a mulher|boneca. Todos são tocados pelo incrível trabalho dessa artista. Todos somos reinventados e seguimos nossa vida, não da mesma forma.
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