teoria da progressividade do bem jurídico constitucional e a relação entre as instâncias...
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ANTONIO EDUARDO RAMIRES SANTORO
TEORIA DA PROGRESSIVIDADE DO BEM JURÍDICO CONSTITUCIONAL E A RELAÇÃO ENTRE AS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL NOS CRIMES PREVIDENCIÁRIOS
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
ii
ANTONIO EDUARDO RAMIRES SANTORO
Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Mestrando em Direito Penal Internacional pela Universidade
de Granada – Espanha. Especialista em Direito Penal Econômico pela
Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito da
Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas-RJ. Advogado
Criminalista. Professor da Universidade Gama Filho.
TEORIA DA PROGRESSIVIDADE DO BEM
JURÍDICO CONSTITUCIONAL E A RELAÇÃO
ENTRE AS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E
PENAL NOS CRIMES PREVIDENCIÁRIOS
Rio de Janeiro
2008
Antonio Eduardo Ramires Santoro
iii
Santoro, Antonio Eduardo Ramires
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico
Constitucional e a Relação entre as instâncias
Administrativa e Penal nos Crimes Previdenciários /
Antonio Eduardo Ramires Santoro – Rio de Janeiro,
2008.
1. Direito Penal. 2. Direito Processual Penal. 3.
Filosofia do Direito.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
iv
Dedico este livro ao meu amigo Renato Paula de
Almeida.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
v
ÍNDICE:
1. Breves linhas a respeito da principiologia
fundante do bem jurídico..................................................7
1.1. O direito estatal de proibir (princípio da
proporcionalidade)............................................................7
1.2. Variação da ordenação de valores (do direito penal
máximo ao princípio da intervenção mínimo)..................9
1.3. Os bens jurídicos como projeção dos valores
(princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos).......10
1.4. A elevação valorativa do bem jurídico a bem
jurídico-penal (princípios da fragmentariedade e da
subsidiariedade)..............................................................14
1.5. A vulneração concreta do bem jurídico-penal em
sentido valorativo e normativo (princípio da
ofensividade)..................................................................18
2. Teorias de fundamentação constitucional do bem
jurídico............................................................................20
2.1. Concepções de caráter geral....................................22
2.2. Concepções de caráter estrito..................................27
2.3. Legitimação e deslegitimação axiológica da proteção
aos bens jurídicos (critérios de limitação do exercício do
poder político).................................................................28
3. A progressividade do bem jurídico penal...................31
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
vi
4. Os novos bens jurídicos do Estado Social..................35
5. O bem jurídico tutelado nos tipos penais de proteção
da ordem previdenciária (em especial o de apropriação
indébita das contribuições previdenciárias)....................36
5.1. O Instituto do Direito subjacente protegido pela
norma penal....................................................................42
5.2. O momento da constituição definitiva do crédito
tributário.........................................................................54
5.3. Os efeitos da proteção penal do Instituto do Direito
subjacente, inexistência de crime sem lançamento
definitivo do crédito tributário........................................61
5.4. A prejudicialidade da discussão sobre a existência do
crédito tributário.............................................................63
5.5. A posição da jurisprudência brasileira.....................65
1. Breves linhas a respeito da principiologia fundante
do bem jurídico
1.1. O Direito estatal de proibir (princípio da
proporcionalidade)
Há legitimações do ius puniendi que
implicam na necessidade de busca da justificação do
direito de proibir do Estado e que será abordado neste
ponto.
Não é difícil verificar que o direito penal
simboliza, no plano axiológico, o embate entre o valor da
liberdade humana e o direito do Estado tolher esta
liberdade em nome de algum outro valor1.
As correntes que legitimam o direito do
Estado punir verificam que nos casos em que se
1 Neste contexto está se tomando como linha de estudo o
direito penal do ius libertatis, que, na visão de Silva Sánchez
apud GOMES, Luiz Flávio (Norma e Bem Jurídico no Direito
Penal, série as ciências criminais no século XXI, volume 5,
Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002v, pág. 51), deve ser
entendido como o conjunto de normas jurídico-penais (na
nossa visão o campo dogmático da ciência do Direito) que têm
como conseqüência a imposição (direta ou indireta) de pena
privativa de liberdade. Não deve ser olvidado que na doutrina
penal já se fala em outro tipo de Direito Penal, que teria como
conseqüência outros tipos de sanção distintas da privação de
liberdade. Este direito penal de penas diferentes das privativas
de liberdade não invalidam o que se afirmará neste estudo.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
8
possibilita a aplicação de pena, o valor da liberdade
sucumbe.
Como não estamos tratando de um Estado
totalitário em que o direito do cidadão não tem
importância sobre o interesse de ordem do Estado, ou
seja, como não podemos dizer que o Brasil não atribui
qualquer relevância à liberdade do cidadão e como o
direito de punir do Estado se funda no direito estatal de
proibir comportamentos que violem um valor maior que a
liberdade, a cada caso deverá ser definido o valor que se
repute maior que a liberdade para, com sua violação,
legitimar o direito estatal de punir.
Certo é que nesta ordem de idéias, a
proporcionalidade (entre o valor de vulneração proibida e
a liberdade do cidadão2) é a base do fundamento da
proibição de condutas, servindo, destarte, de paradigma o
valor de justiça como o primeiro a ser perseguido pelo
2 Ao se falar em liberdade do cidadão, estamos tratando da
privação da liberdade como a pena. No entanto, como dito na
nota de rodapé anterior, não significa dizer que não podemos
ter outras penas como ponto comparativo ao valor da
vulneração proibida. Se, por exemplo, a pena for multa,
deveremos utilizar o valor do econômico como ponto
comparativo à legitimar a imposição de pena.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
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exercente do poder político configurador do sistema
penal sob o prisma proibitivo.
1.2. Variação da ordenação de valores (do direito
penal máximo ao princípio da intervenção mínima)
A premissa do direito de proibir estatal na
observância da proporcionalidade entre o valor de
vulneração proibida e a liberdade do cidadão encerrará
uma configuração do sistema penal maximizado ou
reduzido, o que dependerá da tábua de valores definida
para determinada sociedade e por ela própria.
Isso porque, para cada sociedade existe uma
determinada ordenação de valores que variará conforme
seu traço cultural.
Assim, para sociedades em que a liberdade
não está em primeiro plano, os diversos valores que a
antecedem na escala de prioridades merecerão tutela do
poder político que delineará o direito penal, criando
modelos de direito penal máximo, qual seja, com número
exacerbado de proibições de conduta, próprio dos
Estados totalitários.
De outro lado, nas sociedades liberais, nas
quais o valor da liberdade do cidadão é tomado como
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
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prioridade, os demais valores sucumbirão e não serão
merecedores de tutela estatal no âmbito penal, de sorte
que veremos assim configurado um modelo de direito
penal calcado no princípio da intervenção mínima do
Estado na esfera de conduta do cidadão, com reduzido
número de comportamentos proibidos.
1.3. Os bens jurídicos como projeção dos valores
(princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos)
Os valores podem ser ordenados e
classificados, sendo certo que sua ordenação e
classificação derivam da objetivação do espírito humano
projetado sobre a História.
Assim, para cada civilização, determinada
tábua de valores é escolhida para dar lugar à realização
dos valores mais importantes.
É neste passo que a sociedade cria e
desenvolve seus bens culturais, que nada mais são do que
expressões, ou tentativas de expressões, dos valores
escolhidos pelo exercente do poder político.
Para Miguel Reale, os bens culturais têm
dois elementos: o “suporte” e o “significado”. É o caso,
por exemplo, de uma escultura que tem o suporte no
Antonio Eduardo Ramires Santoro
11
mármore em que se esculpe, mas revela o significado do
belo. O suporte pode, por seu turno, ser físico, psíquico
ou ideal, como é o caso dos bens jurídicos, que têm
suporte nas proposições lógicas da própria norma, ao
passo que enunciam um juízo de valor3. Conclui que
entre o suporte e o significado dos bens jurídicos há uma
correlação essencial.
Os bens jurídicos são, destarte, espécies de
bens culturais, na medida em que resultam da tentativa do
legislador, no exercício do seu poder político, de
realização de determinados valores eleitos, através das
normas jurídicas por ele elaboradas.
Os bens jurídico-penais, por sua vez,
ganham maior relevo na medida em que o arcabouço do
ordenamento punitivo pode (deve no caso de Estados
Democráticos de Direito como o nosso) vir a orbitar em
torno deste conceito para os casos em que o direito de
punir pressupõe a existência de uma violação de fato de
um valor maior que a liberdade, como visto acima. Com
efeito, todo tatbestand tem por finalidade a proteção de
um determinado bem jurídico.
3 Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São
Paulo, pág 226/227.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
12
Porquanto, ao elaborar a norma jurídica
penal punitiva, tratada tecnicamente como “tipo penal”, o
legislador legitima o direito de punir e, conforme sua
justificativa axiológica para a punição, protegerá
determinado bem jurídico que somente será por ele
tutelado na medida em que o valor nele contido, qual
seja, o seu “significado”, esteja na ordem dos valores a
serem protegidos em detrimento da liberdade.
Desta forma, não resta dúvida que a escolha
dos bens jurídicos eleitos pelo legislador penal traduz a
objetivação do espírito humano sobre aquele momento
histórico, sendo com isto possível captar a essência
cultural de uma determinada civilização.
De todo evidente que isto só é possível na
medida em que a elaboração das normas jurídicas penais
punitivas, nas quais restam eleitos os bens jurídicos
penalmente relevantes, que nada mais são do que
espécies de bens culturais que revelam os seus
significados valorativos, é a própria realização da cultura
de determinada civilização.
Portanto, a proibição é mais que um traço
cultural de uma sociedade historicamente situada, pois
Antonio Eduardo Ramires Santoro
13
revela os valores daquela sociedade e, desta forma, sua
própria cultura.
De toda sorte, somente um direito penal
configurado por um sistema legislativo penal protetivo de
bens jurídicos (princípio da exclusiva proteção de bens
jurídicos) se realiza axiologicamente sobre a cultura da
sociedade em que se insere, posto que os bens jurídicos,
enquanto bens culturais que traduzem a objetivação do
espírito humano sobre a História, são capazes de
salvaguardar os valores de uma civilização.
Caso contrário, ou seja, um direito penal que
negue a legitimação das proibições de comportamentos
na proteção de bens jurídicos será inócuo, vazio, carente
de fundamento axiológico e, assim, puramente
impositivo, pois não emana das relações sociais que
encetam e encerram os valores daquela civilização.
1.4. A elevação valorativa do bem jurídico a bem
jurídico-penal (princípios da fragmentariedade e da
subsidiariedade)
Cediço que os bens jurídico-penais são
espécies de bens jurídicos, que por sua vez são bens
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
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culturais, cumpre alcançar o(s) traço(s) distintivo(s) que
caracteriza(m) os bens jurídico-penais.
É que diversos são os valores de uma
sociedade e, portanto, diversos são os bens culturais da
mesma. Bem assim, diversas são as normas jurídicas que
pretendem realizar valores, destarte, diversos são os bens
jurídicos.
A questão está exatamente no conflito entre
a liberdade do cidadão e o valor protegido que se
pretende seja realizado pela norma jurídica.
Neste ponto cumpre traçar uma distinção
entre a norma penal primária e a norma penal secundária.
A primeira realiza um valor pela proteção de um bem
jurídico, por meio da proibição de determinado
comportamento que o viole. A segunda impõe a sanção
para a realização do comportamento proibido pela norma
primária.
Assim, a proporção entre a norma
secundária e a norma primária deve existir, promovendo
a proporcionalidade dos valores em embate.
Como a intervenção do Estado na esfera
privada é a máxima possível no direito penal, isto é,
nenhum outro ramo do direito intervém de forma mais
Antonio Eduardo Ramires Santoro
15
grave na esfera de liberdade do cidadão, somente os
valores mais importantes na ordem de valores daquela
sociedade politicamente organizada podem ser objeto de
tutela penal.
Senão vejamos a lição de Luiz Flávio
Gomes:
“A construção de um Direito penal regido
pelo paradigma da ofensividade, de cunho constitucional,
material e garantista, de qualquer modo, parte da
premissa básica de que a norma penal (primária) possui
um caráter (acentuada e prioritariamente) valorativo, isto
é, ela existe para a tutela de alguns bens ou interesses (de
especial relevância) consubstanciados em relações sociais
valoradas positivamente pelo legislador para constituir o
objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a
penal.”4
Os bens jurídicos objetos de escolha pelo
legislador penal, portanto, devem passar por um critério
de ordenação axiológica dos valores que realiza, para que
sejam tutelados apenas os bens jurídicos de maior
relevância. Esta seleção de bens jurídicos de suma
4 GOMES, Luiz Flávio. op. cit., pág. 17/18.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
16
relevância deve ser realizada pelo exercente do poder
político.
Portanto, é correto afirmar que somente
estará legitimado o direito estatal de proibir condutas que
lesem os bens jurídicos que realizam os valores mais
importantes de determinada sociedade. É o princípio da
fragmentariedade do direito penal.
De outro lado, pela mesma ordem de idéias,
caso as proteções promovidas pelas normas de outros
ramos do Direito (civil, trabalhista, tributário,
administrativo, etc., inclusive previdenciário) sirvam para
realizar a proteção de determinados bens jurídicos, por
mais importantes que sejam os valores por eles
realizados, é porque estes não têm relevância penal. É o
princípio da subsidiariedade.
Portanto, são bens jurídico-penais, aqueles
cujo valor somente a norma jurídica penal pode realizar,
pela sua relevância (fragmentariedade) e impossibilidade
de ser tutelado por norma de outra natureza
(subsidiariedade ou ultima ratio).
Nesta ordem de idéias, o direito penal que
proteja bens jurídicos de todo tipo de relevância, ou que
repita a proteção (já efetiva) de outro ramo do Direito,
Antonio Eduardo Ramires Santoro
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expande seu universo de aplicação para limites que
ultrapassam o da necessidade de proteção das relações
sociais, e passam a determinar as relações sociais, sendo
impensável para Estados liberais e democráticos.
A escolha dos valores mais relevantes e, via
de conseqüência, dos bens jurídicos de natureza penal,
cabe ao legislador. Em última análise, é este quem vai
definir quais são os valores penalmente relevantes e que
merecerão tutela do sistema penal, configurando, de
forma política, o direito penal pelo seu objeto axiológico
de proibição.
1.5. A vulneração concreta do bem jurídico-penal em
sentido valorativo e normativo (princípio da
ofensividade)
É impensável, sob o prisma axiológico,
conferir direito de punir ao Estado pelo simples fato de
ter sido transgredida uma norma jurídica.
Malgrado se possa afirmar que formalmente
o princípio da legalidade encerra uma garantia ao cidadão
consistente no fato de que ninguém poderá ser
considerado criminoso sem que a proibição esteja
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
18
expressa em norma jurídica, este princípio não se
subsume ao seu aspecto formal.
Isto significa dizer que o crime não é uma
mera desobediência da imperatividade contida na norma.
Esta avaloração é própria do positivismo em sua vertente
normativista pura ou da atual concepção de Günther
Jakobs5 baseada na sociologia sistêmica de Niklas
Luhmann.
Isto significa dizer que uma norma jurídica
proibitiva não pode prescindir de um conceito anterior
material de bem jurídico-penal, dirigido ao legislador que
criará o sistema penal.
Daí porque o bem jurídico-penal deve se
restringir à proteção dos valores mais importantes de
determinada sociedade. A esta tábua de valores deve se
ater o legislador ao criar o sistema penal.
Bem assim, é impensável que o bem
jurídico-penal goze de proteção sem que se perquira
sobre sua afetação lesiva, qual seja, o simples fato de se
escolher politicamente os bens jurídico-penais (os valores
5 JAKOBS, Günther. Derecho Penal – Parte General,
Fundamentos y Teoria de La imputación, 2ª edição, Tradução
Joaquim Cuello Contreras e Jose Luis Serrano Gonzales de
Murillo, Marcial Pons, Madrid, 1997, pág. 169.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
19
neles representados) aos quais será conferida proteção
estatal, não basta para legitimar a intervenção punitiva. É
preciso que os bens jurídico-penais sejam efetivamente
afetados, ofendidos, senão com sua violação, pelo menos
com a exposição a perigo concreto.
A esta necessidade de afetação material se
dá o nome de princípio da ofensividade.
Não for assim, ou seja, merecendo punição
mesmo quem não atinja um bem jurídico-penal, estar-se-
á legitimando a intervenção punitiva do Estado mesmo
sem observância do princípio da proporcionalidade
(portanto, inobservando o valor justiça), pois que o valor
atingido pela pena sucumbirá ao capricho do detentor do
poder político, sem que um valor (maior que a liberdade)
tenha sido lesado para legitimar a imposição da punição
pelo Estado.
Estaremos falando de um Estado totalitário,
em que aquele que exerce o poder político pode intervir
na liberdade do cidadão pelo seu ato arbitrário de
vontade, mas sem legitimação axiológica.
Um Estado de natureza liberal deve proteger
seus valores sem olvidar da liberdade de seus cidadãos,
portanto, a proteção axiológica encerrada pelos bens
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
20
jurídico-penais somente será legitimadora da intervenção
punitiva estatal em caso de violação efetivamente
afetadora do bem jurídico-penal, seja por lesão ou
exposição a perigo concreto (este restritamente nos casos
necessários).
2. Teorias de fundamentação constitucional do bem
jurídico
A necessidade de um conceito material de
bem jurídico-penal que oriente e limite a atividade
legiferante do Estado é uma necessidade de um Direito
penal que, sob o prisma axiológico, busque legitimar o
direito de proibir estatal.
Fato é que nem mesmo as demais regras
jurídicas prescindem da justificação axiológica pré-
jurídica. Em um Estado Democrático de Direito orientado
por uma norma magna programática e principiológica
que é a Constituição, estes valores a serem protegidos
devem ser realizados pelas normas jurídicas
constitucionais, que funcionariam, destarte, como oráculo
orientador de todas as normas, de todas as naturezas:
“As regras jurídicas, incluindo
evidentemente as penais, somente podem existir enquanto
Antonio Eduardo Ramires Santoro
21
realização dos valores básicos (liberdade, justiça,
igualdade, pluralismo, dignidade) contemplados em cada
Constituição, que consubstanciam um conjunto
normativo de respeito à liberdade alheia.”6
No que concerne aos bens jurídico-penais,
de todo evidente, e com muito mais razão, a norma
constitucional deve ser entendida como limite ao
legislador para conhecimento e adequação da norma
penal, na medida em que a Constituição realiza os bens
mais valiosos.
Este entendimento de que a Constituição é a
norma orientadora dos valores a serem tutelados pelo
Estado ao elaborar o Sistema Penal é amplamente
majoritário no pensamento penalístico hodierno. Porém,
diversas são as vertentes sobre este paradigma
constitucional do bem jurídico-penal, senão vejamos:
2.1. Concepções de caráter geral.
Esta é concepção que enxerga materialmente
o bem jurídico-penal como a realização de valores
adequados à ordem constitucional.
6 GOMES, Luiz Flávio. op. cit., pág. 24.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
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Heloisa Estellita Salomão7 apresenta os
seguintes juristas expoentes desta concepção: Walter von
Sax, Claus Roxin, Jorge Figueiredo Dias, Hans Joachim
Rudolphi, Michael MarxMir Puig, Polaino Navarrete,
Emilio Dolcini, Giorgio Marinucci e Giovanni Fiandaca.
De todo evidente que nem todas as
concepções coincidem, mas se aproximam na medida em
que verificam ser a Constituição um ponto de orientação
axiológica do legislador ao exercer o poder político-
criminal e elaborar o sistema penal, delineando o direito
penal.
A referida jurista, citando Maria da
Conceição Ferreira da Cunha, aduz que “esta é a posição
assumida pela maioria da doutrina alemã”8.
Vale trazer à colação a lição de Figueiredo
Dias, citado por Heloisa Estellita Salomão, sobre o papel
orientador dos valores constitucionais, dirigidos ao
legislador:
7 Heloisa Estellita Salomão, A Tutela Penal e as Obrigações
Tributárias na Constituição Federal, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, pág. 38 usque 59. 8 Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 38.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
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“os bens do sistema social preexistem à
tutela penal, porém, „os bens do sistema social se
transformam e se concretizam em bens jurídicos dignos
de tutela penal (em bens jurídico-penais) através da
ordenação axiológica jurídico-constitucional‟.”9
Este mesmo jurista lusitano deixa claro o
papel da Constituição não impondo uma identidade entre
os valores constitucionais e os valores político-penais,
mas uma relação de essência:
“Logo, por aqui se deve concluir que um
bem jurídico político-criminalmente vinculante existe ali
– e só ali – onde se encontre refletido num valor jurídico-
constitucionalmente reconhecido em nome do sistema
social total e que, deste modo, se pode afirmar que
„preexiste‟ ao ordenamento jurídico-penal. O que por sua
vez significa que entre a ordem axiológica jurídico-
constitucional e a ordem legal – jurídico-penal – dos bens
jurídicos tem por força de se verificar uma qualquer
relação de mútua referência. Relação que não será de
„identidade‟, ou mesmo de „recíproca cobertura‟, mas de
analogia material, fundada numa essencial
9 Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 43
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
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correspondência de sentido e – do ponto de vista de sua
tutela – de fins. Correspondência que deriva , ainda ela,
de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro
obrigatório de referência e, ao mesmo tempo, o critério
regulativo da atividade punitiva do Estado. É nesta
acepção, e só nela, que os bens jurídicos protegidos pelo
direito penal se dêem considerar concretizações dos
valores constitucionais expressa ou implicitamente
ligados aos direitos e deveres fundamentais. É por esta
via – e só por ela em definitivo – que os bens jurídicos se
„transformam‟ em bens jurídicos dignos de tutela penal
ou com dignidade jurídico-penal.”10
Desta lição decorrem três corolários: 1) não
há identificação absoluta dos valores constitucionais e
aqueles protegidos pelo sistema penal; 2) podem ser
contemplados outros valores que não aqueles
contemplados literalmente na Constituição; 3) a
Constituição não impõe ao legislador penal a tutela de
determinado valor.
Quanto ao primeiro corolário, Luiz Flávio
Gomes o explica ao esclarecer que “o conceito material
10
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 43/44.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
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de bem jurídico vincula-se aos valores superiores
assumidos pelo Estado Constitucional e Democrático de
Direito, mas não segundo a perspectiva de uma relação
de “identificação absoluta”, senão de mera referência
axiológica ou de analogia substancial.”11
Quanto à segunda conseqüência, duas
questões são levantadas: em primeiro lugar as
Constituições podem não contemplar um determinado
valor em determinado momento histórico que,
posteriormente, pode vir a ser considerado penalmente
relevante; em segundo lugar as Constituições podem não
contemplar todos os valores relevantes, em sua
integralidade, de uma determinada sociedade. Nestes
casos, o valor a que se pretende conferir proteção penal e
que não está expressamente previsto na Constituição, dês
que não seja incompatível com os demais valores
constitucionais essenciais, não terá sua proteção defesa
ao legislador penal.
Quanto à terceira decorrência, argumenta
Luiz Flávio Gomes que “não existe, portanto, uma
obrigação de criminalização ou penalização automática,
11
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 92.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
26
senão só uma indicação do valor do bem jurídico
referido. Elevado „merecimento de pena‟ não significa
automaticamente „necessidade‟ de pena”, daí porque “...o
não cumprimento pelo legislador das obrigações de
criminalização não está sancionado com nenhuma
conseqüência jurídica.” 12
2.2. Concepções de caráter estrito
Esta é concepção que enxerga materialmente
o bem jurídico-penal como a realização dos valores da
ordem constitucional.
Heloisa Estellita Salomão13
apresenta os
seguintes juristas expoentes desta concepção: Franco
Bricola, Francesco Angioni, Luigi Ferrajoli e Maria da
Conceição Ferreira da Cunha. Para Luiz Flavio Gomes14
,
Franco Bricola é o principal expoente.
Mais uma vez, é evidente que nem todas as
concepções coincidem, mas verificam a necessidade de
12
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 106/107. 13
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 38 usque 59. 14
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 89.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
27
harmonização dos valores penais com os valores
constitucionais, proibindo a penalização de valores que
não lesem ou coloquem em perigo concreto os valores
constitucionais.
Esta doutrina tenta deduzir diretamente da
Constituição os valores objetos de proteção penal. Nas
palavras de Heloisa Estellita Salomão, “...somente
poderia haver criminalização na hipótese de tutela de
valores constitucionalmente reconhecidos, ainda que de
forma implícita.”15
A referida jurista, citando Maria da
Conceição Ferreira da Cunha, aduz que esta é a posição
assumida “por parte da doutrina italiana e portuguesa”16
.
No entanto, cabe ressaltar que, segundo Luiz Flávio
Gomes “...esta formulação mereceu uma especial
consideração das doutrinas alemã e italiana”17
.
De toda sorte, esclarece o jurista brasileiro
que “...a verdade é que a doutrina constitucionalista
inflexível não assegurou grande ressonância na praxis”18
.
15
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 59/60. 16
Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 60. 17
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 89. 18
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 91.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
28
2.3. Legitimação e Deslegitimação axiológica da
proteção aos bens jurídicos (critérios de limitação do
legislador)
Desde o nascimento do bem jurídico, não
com este nomen juris, na época Iluminista, o objetivo dos
pensadores era impor um conceito material que orientasse
e limitasse o poder legislativo de proibição de condutas.
Historicamente este conceito se desvirtuou a
ponto de, no extremo normativismo positivista, carecer
por completo de conteúdo axiológico pré-jurídico,
inferindo-se o bem protegido da própria norma.
Todavia, o caminho da garantia do cidadão
em relação ao poder punitivo e proibitivo do Estado,
rumou para a busca de uma justificação que, malgrado
não se pudesse ignorar a diversidade cultural de uma
civilização, pudesse impor uma orientação e limitação ao
poder legiferante de caráter geral e axiológico.
Daí porque a limitação do poder político
delineador do direito penal pelo sistema legislativo pelos
valores insertos na Constituição, ou não incompatíveis
com ela, foi, na esteira da melhor doutrina atual, o
conceito encontrado como limite e orientação material do
legislador.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
29
Desrespeitada a orientação e vulnerados os
limites axiológico-constitucionais, estaremos diante do
que a doutrina chama de função crítica do bem jurídico,
que podemos chamar de deslegitimação do direito de
proibir do Estado:
“Quando utilizamos o conceito político-
criminal para constatar em cada norma penal concreta se
há ou não correspondência entre o conceito ideal e o real,
então se fala da função crítica do bem jurídico, que
questiona a legitimação do bem protegido, é dizer, do
próprio Direito penal.”19
Respeitados estes limites de conformação ao
quadro de valores constitucional, teremos uma realização
do direito de proibição estatal legítimo, sob o prisma
axiológico.
Assim, uma vez construído o sistema de
proibições estatal legitimado do ponto de vista
axiológico-constitucional, respeitado o embate entre o
valor liberdade e o valor cuja vulneração se pretende
proibir, ter-se-á realizado o valor da justiça:
19
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 137.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
30
“Com o novo método de ponderação, o
Direito penal torna-se mais complexo, perde a
simplicidade e a linearidade do método da subsunção (do
positivismo legalista e formalista), mas ganha em
razoabilidade, equilíbrio e proporcionalidade, em suma,
eleva-se (a patamares notáveis) o valor justiça, que é o
valor-meta do Estado Constitucional e Democrático de
Direito.”20
3. A progressividade do bem jurídico penal
A origem constitucional-axiológica do bem
jurídico como critério orientador da tutela a ser
implementada pelo legislador não pode ser concebida
sem a interligação dos diversos princípios que regem não
apenas o Direito Penal, mas, sobretudo, a teoria do bem
jurídico.
É que, adotada que se tenha a teoria
constitucionalista do bem jurídico de caráter geral, não
difícil verificar que quantidade de valores inferidos pela
Constituição como relevantes, ou que pelo menos não se
choquem com os valores constitucionais é muito grande.
20
Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 146.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
31
Todavia, o princípio da subsidiariedade é,
outrossim, um norte a ser seguido, porquanto não apenas
os valores a serem penalmente tutelados devem estar em
consonância com os valores constitucionais, como ainda
devem estar assentados nas bases do ramo do Direito
subjacente à norma penal que o protege.
Assim, como corolário dos princípios da
proteção de bens jurídicos constitucionais e da
subsidiariedade temos a característica da progressividade
do bem jurídico, ou seja, podemos verificar que dos
valores constitucionais iremos progredir por inferência
até o direito decorrente do valor, concebido juridicamente
por outro ramo do Direito, mas protegido via subsidiária
pelo Direito Penal.
Tome-se como exemplo o patrimônio. Não
há dúvida que este bem jurídico encontra guarida na
Constituição da República Federativa do Brasil, quando
reconhece os valores da liberdade e da privacidade,
dando origem ao direito da propriedade privada.
Ora, não é difícil estabelecer a relação
progressiva do bem jurídico, pois de valores
constitucionais como a liberdade e a privacidade, nasce o
instituto propriedade privada. O conjunto de propriedades
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
32
privadas de um indivíduo compõe o seu patrimônio, que,
por sua vez, encerram uma série de direitos reconhecidos
pelo direito civil, tais como propriedade, posse, hipoteca,
penhor, etc.
Desta forma temos que o furto, por exemplo,
protege o bem jurídico patrimônio. Mas não é esta a
proteção pura e simples. O furto protege, na realidade, os
valores constitucionais progressivamente até chegarmos
ao direito juridicamente concebido pelo ramo do Direito
subjacente ao penal (no caso o civil, especificamente os
direitos reais). Portanto, o furto protege os valores
constitucionais da liberdade e da privacidade, o direito à
propriedade privada, bem como os direitos de
propriedade e posse tais como concebido pelo Direito
Civil (Heleno Fragoso chega até a ver o direito de
detenção tutelado pelo tipo penal de furto). Há, destarte,
uma progressão de proteções que devem ser levadas em
consideração em cada caso.
Tomemos outro exemplo, o crime do artigo
1º da Lei nº 8.137/90. É lugar comum afirmar que este
tipo penal tutela a ordem tributária. De fato não é falsa
esta afirmação, mas é incompleta na medida em que ela
não considera a progressividade do bem jurídico tutelado.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
33
Este dispositivo tem origem na necessidade do Estado
brasileiro de socializar serviços à população. Esta é a
primeira proteção conferida pelo dispositivo, uma vez
que a socialização de serviços só é possível por meio de
uma arrecadação que permita ao Estado prover as
necessidades de seus cidadãos. Todavia, a arrecadação se
dá por meio das regras tributárias, daí porque de fato o
tipo protege a ordem tributária. No entanto, esta ordem é
regulada pelo Direito Tributário que, por sua vez, tem
uma regulamentação própria e concebe direitos e deveres
a cada um. No caso do artigo 1º da Lei nº 8.137/90 não é
qualquer obrigação atribuída ao contribuinte que está
sendo tutelada, mas especificamente a que diz respeito à
fraude que leva à diminuição da arrecadação. Desta
forma, a mera violação da obrigação de prestar
informações verdadeiras não é suficiente para configurar
o crime descrito pelo tipo penal do artigo 1º da Lei nº
8.137/90, mas somente aquelas que excluam ou
suprimam valores a serem arrecadados. Daí porque
afirmar que a ordem tributária é o bem jurídico protegido
é verdadeiro, mas incompleto, porquanto prestar
informações falsas também viola a ordem tributária, mas
se não suprimir ou reduzir tributo não viola o bem
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
34
jurídico protegido pelo artigo 1º da Lei nº 8.137/90, não é
uma conduta que se adeque a este tipo penal. Prestar
informações falsas sem que esta conduta suprima ou
reduza tributo atinge apenas a fé pública depositada nos
documentos, porquanto configura o tipo penal de
falsidade ideológica, mas não atinge a ordem tributária.
Somente se o contribuinte prestar informações falsas e
com isto suprimir ou reduzir tributo é que o bem jurídico
restará violado, razão pela qual o que se protege, em
última análise é a exigibilidade do crédito tributário.
Tanto no exemplo do furto, como no do tipo
do artigo 1º da Lei nº 8.137/90, só poderíamos
compreender a proibição da norma penal e a completa
desvaloração da conduta humana se analisarmos
progressivamente o bem jurídico, desde o valor
constitucionalmente protegido, até o direito concreto
protegido pelo tipo penal específico.
4. Os novos bens jurídicos do Estado Social
Como se viu, uma nova ordem de valores
constitucionais foram inseridos ao Estado de Direito
hodierno, são aqueles de caráter social.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
35
Se o Estado se propõe a prover ao cidadão
suas necessidades básicas e para isso precisa fazer
receita, em última análise a proteção da arrecadação de
receita é, de forma mediata, a proteção penal dos direitos
sociais do Estado provedor.
O Estado brasileiro, embora muito mal faça
sua parte, se insere entre os Estados Democráticos de
Direito e Sociais que precisam, destarte, proteger sua
arrecadação por meio do Direito Penal.
Entre outras formas de proteção de direitos
desta categoria, estão os crimes previstos na Lei
8.137/90, bem como os delitos inseridos no Código Penal
pela Lei 9.983/2000, que tutelam a ordem previdenciária.
5. O bem jurídico tutelado nos tipos penais de
proteção da ordem previdenciária (em especial o de
apropriação indébita das contribuições
previdenciárias)
Assim dispõe o Código Penal em seu artigo
168-A:
“Art. 168-A. Deixar de repassar à
previdência social as contribuições recolhidas dos
contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
36
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos,
e multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar
de:
I - recolher, no prazo legal, contribuição ou
outra importância destinada à previdência social que
tenha sido descontada de pagamento efetuado a
segurados, a terceiros ou arrecadada do público;
II - recolher contribuições devidas à
previdência social que tenham integrado despesas
contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à
prestação de serviços;
III - pagar benefício devido a segurado,
quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido
reembolsados à empresa pela previdência social.
Omissis”
A questão aqui é determinar qual o bem
jurídico protegido por este dispositivo.
Não é difícil responder que o bem jurídico
protegido, a despeito da péssima técnica utilizada pelo
legislador ao inserir o tipo entre os crimes contra o
patrimônio, é a ordem previdenciária.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
37
Não é demais lembrar, outrossim, que esta
afirmação é deveras insuficiente, porquanto não
considera os princípios da subsidiariedade e a
característica da progressividade do bem jurídico.
De fato, a ordem previdenciária é tutelada
pelo dispositivo, mas fazendo incidir a progressividade
do bem jurídico, temos que o patrimônio da Previdência
Social é o que se pretende tutelar, com a garantia da
arrecadação.
Não se pode olvidar, no sentido inverso da
progressividade, que, por ser um valor constitucional
social, há proteção indireta às prestações que o Estado
dará à população com esta arrecadação.
Assim, fazendo incidir por completo a
característica da progressividade do bem jurídico, este
dispositivo protege a prestação de serviços sociais do
Estado, a ordem previdenciária, o patrimônio da
Previdência Social e a arrecadação.
Mesmo não falando expressamente em
progressividade, mas sim em bem jurídico mediato e
imediato, Luiz Regis Prado aborda todos os bens
jurídicos aqui relatados:
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
38
“No entanto, com o surgimento do Estado
social, que tutela não só a liberdade mas também os
direitos sociais, culturais e econômicos, com objetivo de
corrigir distorções, afloram, assim, os direitos de segunda
geração, sucedidos modernamente pelos de terceira
geração, que visam à proteção de bens sociais de
relevância para todos os seres humanos.
Acrescente-se que a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da
pobreza e da marginalização, a redução das
desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem
de todos constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil (art. 3º, I, III e IV, CF).
A Previdência Social e a assistência aos
desamparados são direitos sociais assegurados no artigo
6º da Carta Constitucional.
É inegável, portanto, que a contribuição
destinada à Previdência Social constitui viga mestra de
parte do programa social desenvolvido pelo Estado para
cumprir as prestações públicas de natureza social.
Não é por outra razão que, além da tutela de
bens jurídicos individuais, o Direito Penal passou, na
atualidade, a proteger também bens jurídicos
Antonio Eduardo Ramires Santoro
39
metaindividuais, próprios do Estado de Direito
democrático e social, como o ambiente, a saúde pública,
a ordem econômica e tributária, objetivando garantir as
prestações públicas e sociais com a finalidade de
possibilitar melhor qualidade de vida às pessoas.
Assim, ao tipificar as condutas descritas no
artigo 168-A, o legislador busca tutelar não apenas o
patrimônio da Previdência Social, mas também protege
de forma reflexa as prestações públicas no âmbito social.
Tendo em vista os mandamentos
constitucionais supramencionados, verifica-se que a
Constituição, no que tange ao sistema penal, não cumpre
apenas um papel limitativo do jus puniendi estatal, visto
que num Estado de Direito Democrático e social,
desempenha a função de relacionar o rol de bens jurídicos
considerados dignos de proteção.21
21
Nesse sentido, saliente-se que, de acordo com uma teoria
constitucional eclética, o conceito de bem jurídico deve ser
inferido do texto constitucional, operando-se uma espécie de
normativização de diretivas político-criminais que limitam o
legislador ordinário no momento de criar o ilícito penal. Assim,
o legislador deve sempre ter em conta as diretrizes contidas na
Constituição e os valores nela consagrados, em razão do caráter
limitativo da tutela penal. É na norma constitucional que
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
40
Daí por que se afigura necessária a
intervenção penal para tutelar o patrimônio da
Previdência Social e seu correto funcionamento. Deve,
contudo ser uma intervenção seletiva e cuidadosa, sob
pena de se transformar em instrumento simbólico
negativo.
O bem jurídico aqui protegido vem a ser o
interesse patrimonial da Previdência Social, bem como o
processo de arrecadação e sua distribuição na despesa
pública. A propósito do tema, assevera-se que o bem
jurídico não é outro que o patrimônio da Seguridade
Social, tanto e enquanto este último resulte afetado em
sua vertente arrecadatória”22
Todavia, concessa venia, há ainda, uma
questão faltante, que diz respeito à subsidiariedade do
Direito Penal Tributário e Previdenciário à teoria
específica destes ramos do Direito protegidos pela norma
penal que pretende garantir a arrecadação, uma vez que a
residem as linhas substanciais prioritárias para a incriminação
ou não de condutas (cf. PRADO, L. R. Bem Jurídico-penal e
Constituição, p. 62 e ss)
22 Luiz Regis Prado, Direito Penal Econômico, Revista dos
Tribunais, 2004, São Paulo, pág. 492 usque 494.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
41
própria Constituição veda a prisão por dívida tributária.
Senão vejamos:
5.1. O Instituto do Direito subjacente protegido pela
norma penal
Cabe verificar que o conhecimento de
Direito Tributário é vital para definição do bem jurídico
protegido pelos tipos penais contra a ordem tributária e
previdenciária, bem assim para determinação da extensão
de seus efeitos na esfera penal.
Isso porque cumpre observar que quatro
conceitos tributários têm direta influência quanto à
tipicidade dos delitos ora em comento.
Verifique que, no caso dos crimes descritos
no artigo 1º da Lei nº 8.137/90 está-se tratando de crime
de dano, o qual exige resultado material, qual seja, a
efetiva supressão ou redução de tributos23
. O mesmo
ocorre, por exemplo, com o crime do artigo 168-A do
Código Penal, que exige não ter sido repassado à
Previdência Social o valor das contribuições descontadas
dos segurados.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
42
Vale, portanto, determinar quando ocorre a
supressão ou redução de tributos, visto que este é,
destarte, o momento consumativo dos delitos descritos no
citado dispositivo. Não é demais afirmar que o momento
consumativo de crimes de dano só ocorre quando o bem
jurídico imediato for diretamente violado, portanto vale
perquirir o Instituto do Direito Tributário e
Previdenciário que se encontra tutelado pela norma penal,
para argüir de sua violação.
Assim, importa verificar o que vem a ser
“obrigação tributária”, “fato gerador”, “crédito tributário”
e “lançamento” segundo o Código Tributário Nacional.
Obrigação Tributária:
“Art. 113. A obrigação tributária é principal
ou acessória.
§ 1º A obrigação principal surge com a
ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento
de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se
juntamente com o crédito dela decorrente.
§ 2º A obrigação acessória decorrente da
legislação tributária e tem por objeto as prestações,
positivas ou negativas, nela previstas no interesse da
arrecadação ou da fiscalização dos tributos.”
Antonio Eduardo Ramires Santoro
43
Fato Gerador:
“Art. 114. Fato gerador da obrigação
principal é a situação definida em lei como necessária e
suficiente à sua ocorrência.”
Crédito Tributário:
Art. 139. O crédito tributário decorre da
obrigação principal e tem a mesma natureza desta.
Lançamento:
“Art. 142. Compete privativamente à
autoridade administrativa constituir o crédito tributário
pelo lançamento, assim entendido o procedimento
administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato
gerador da obrigação correspondente, determinar a
matéria tributável, calcular o montante do tributo devido,
identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a
aplicação da penalidade cabível.”
A leitura esparsada dos trechos de lei, sem
perquirição do sistema tributário pode levar a
interpretações diversas. Por sinal, mesmo a interpretação
doutrinária, altamente qualificada e balizada, como de
resto ocorre em todas as disciplinas do Direito, permitem
uma gama variada de interpretações que se fulcram
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
44
fundamentalmente na natureza jurídica do lançamento
tributário.
Há doutrinas declarativistas24
, em que o ato
de lançamento declararia a obrigação tributária que já
nasceu com o fato natural, e doutrinas constitutivistas25
,
em que a obrigação tributária nasceria com o lançamento.
O Código Tributário Nacional, como visto,
dispõe que a obrigação tributária nasce com a ocorrência
24
“...das diversas formulações da doutrina no sentido de
caracterizar o “efeito declarativo” próprio do lançamento
podem extrair-se, ao menos quatro orientações bem
demarcadas: as que identificam o efeito declarativo com as
idéias de concretização ou especificação; as que o assimilam ao
conceito de liquidação; as que o caracterizam pelo recurso à
noção de certeza jurídica; as que vêem a sua essência em o
lançamento representar uma conditio iuris dos direitos que se
integram na relação jurídica tributária”. (Alberto Xavier, Do
Lançamento – Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do
Processo Tributário, Editora Forense, 1997, Rio de Janeiro,
pág. 534 e 535). 25
“São de duas ordens os fundamentos que assentam as teorias
da eficácia constitutiva do lançamento: fundamentos de ordem
substancial, ligados à paralisação temporária dos direitos
emergentes da obrigação tributária; fundamentos de ordem
processual, ligados aos reflexos exercidos pela estrutura do
processo tributário na própria situação de direito material”.
(Alberto Xavier, Do Lançamento – Teoria Geral do Ato, do
Procedimento e do Processo Tributário, Editora Forense, 1997,
Rio de Janeiro, pág. 484).
Antonio Eduardo Ramires Santoro
45
do fato gerador, que é, via de regra, um fenômeno
natural26
.
Já o crédito tributário é constituído com o
lançamento, que é um ato da autoridade administrativa.
Portanto, em princípio caberia traçar uma
diferença entre a obrigação tributária e o crédito
tributário, para que possamos perquirir em que momento
o tributo é efetivamente devido. O Código Tributário
Nacional dispõe:
“Art. 139. O crédito tributário decorre da
obrigação principal e tem a mesma natureza desta.”
Daí a situação torna-se menos clara, ao
menos à vista dos não estudiosos do Direito Tributário,
não menos, data venia, para seus pesquisadores, que ora
distinguem os conceitos, ora os assemelham. Cumpre,
portanto, perquirir as balizadas opiniões a respeito desta
disposição:
“Por outras palavras, a “obrigação
tributária” é a situação jurídica subjacente; o “crédito
tributário”, a situação jurídica abstrata.
26
Verifique-se que se o fato gerador é uma situação de fato sua
ocorrência é naturalística, mas pode ser uma situação jurídica,
o que muda a regra (art. 116 do CTN).
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
46
A distinção entre obrigação tributária e
crédito tributário tem sido severamente criticada na
doutrina. Pela nossa parte – ressalvada a observação
formal de que na caracterização dessa situação se não
adota o mesmo ângulo de visão (pois se encara a primeira
pelo prisma do devedor e a segunda do ponto de vista do
credor) – consideramos esta distinção, tal como a
concebemos, uma das mais importantes conquistas
científicas do Código Tributário Nacional. Com efeito,
ela exprime a consagração do direito positivo brasileiro
da concepção do lançamento como título abstrato dotado
de eficácia preclusiva, separando – com expressões
próprias – relação subjacente e relação abstrata e
impedindo a confusão entre ambas as situações
jurídicas”. (Alberto Xavier, Do Lançamento – Teoria
Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributário,
Editora Forense, 1997, Rio de Janeiro, pág. 568).
A grande tarefa é, assim, determinar a
diferença entre os efeitos da obrigação tributária e do
crédito decorrente do lançamento, o que, na visão de
Alberto Xavier, é a causa das maiores dúvidas nesta
seara:
Antonio Eduardo Ramires Santoro
47
“De tudo quanto atrás se disse, resulta que a
obrigação tributária nasce com a completa realização do
fato descrito na hipótese normativa: o fato tributário. Mas
resulta ainda que, nos casos em que é praticado o ato
administrativo de lançamento (seja como pressuposto
necessário do pagamento, seja no exercício de uma
função de controle), os poderes e deveres que se integram
na relação jurídica tributária adquirem operância
reforçada após a prática do referido ato de aplicação do
direito. Por isso cumpre reconhecer que a plena
intensidade dos efeitos do fato tributário depende da
prática ulterior de um novo fato - autônomo do primeiro
– e que é o lançamento.
Grande parte das dúvidas que neste terreno
tão fertilmente proliferam deve-se, em grande parte, a
não se haver cuidadosamente distinguido os efeitos
imputáveis a cada um dos dois fatos, e em não se ter
procurado apreender as relações entre eles existentes.”27
E continua para definir o lançamento como
um ato administrativo de eficácia acessória, um fato
complementar ao fato tributário. Este ato administrativo
27
Alberto Xavier, idem, pág. 562.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
48
seria um título abstrato da obrigação tributária formaria
um título executivo de forma unilateral, pois contém uma
parte declarativa da existência da obrigação tributária, e,
ao mesmo tempo, obriga o contribuinte ao cumprimento
desta obrigação:
“Tal como a sentença de condenação (ao
contrário da sentença meramente declaratória) não se
limita a declarar a existência de uma obrigação, antes
impõe o seu cumprimento, também o lançamento
tributário não se esgota numa atividade declarativa e uma
realidade preexistente, antes contém um elemento
volitivo adicional, que se traduz numa exigência, numa
ordem, imposição ou injunção.
Daí o fracasso das teorias puramente
declarativistas...
Muito embora comporte os referidos
elementos cognitivos ou lógicos, o lançamento vai mais
além: se não nos contentarmos somente com a aparência
e procurarmos descobrir o que substancialmente se
contém no lançamento tributário, havemos de reconhecer
que a parte importante, a que imprime caráter e dá ao
lançamento a sua verdadeira feição, é a que está implícita
no comando referido. Ao lado da expressão numérica do
Antonio Eduardo Ramires Santoro
49
valor devido pelo sujeito passivo, está implícito ou
explícito o seguinte comando: “ordeno ao contribuinte
pagar a quantia determinada, sob pena de, não o fazendo,
se proceder à cobrança coerciva mediante o emprego do
processo de execução”.28
Para o multicitado autor o lançamento
declara a obrigação e confere exigibilidade à mesma, o
que antes não existia, tornando-o, assim, um título
executivo.
Não é difícil, portanto, concluir, que a
obrigação tributária e o crédito tributário são conceitos
diversos. Este decorre daquela. Aquela nasce com o fato
tributário, ao passo que este é constituído pelo
lançamento.
Todavia, casos existem em que a não
exigibilidade do crédito não altera a existência da
obrigação tributária, como se observa pelo texto do artigo
140 do Código Tributário Nacional. In verbis:
“Art. 140. As circunstâncias que modificam
o crédito tributário, sua extensão ou seus efeitos, ou as
garantias ou os privilégios a ele atribuídos, ou que
28
Alberto Xavier, idem, pág. 570 e 571.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
50
excluem sua exigibilidade não afetam a obrigação
tributária que lhe deu origem.”
De se ver que entre o fato tributário e a
constituição do crédito, ocorrida com o ato de lançamento
podem ocorrer novos elementos que o retirem a
exigibilidade, como é o caso da isenção, sem afetar a
existência da obrigação tributária na forma do artigo
supra transcrito:
“Primeiro passo a dar no sentido de uma
exata compreensão da função do lançamento é, pois,
reconhecer que ele se apresenta relativamente ao fato
tributário como um fato complementar, no sentido que a
esta expressão reservou Carnelutti: um fato previsto na
lei, que se reporta a uma situação jurídica anterior, com
vista a introduzir-lhe um elemento novo, que pode ser de
paralisação, mas que também pode ser de reforço. Se no
primeiro caso podem incluir-se os fatos impeditivos,
como as isenções, o lançamento – seja qual for a sua
função concreta – integra-se necessariamente no
segundo”.29
(grifo nosso)
29
Alberto Xavier, idem, pág. 562.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
51
Ora, sob este prisma, como se pode avaliar a
conduta do contribuinte como supressora ou redutora de
um tributo antes que ele se torne exigível? Como se pode
afirmar haver afetação da arrecadação tributária sem que
exista crédito em favor do Estado? Como se pode afirmar
que a obrigação tributária é o bem jurídico protegido de
forma imediata se a arrecadação tributária pode não ser
afetada mesmo existindo obrigação tributária, como nos
casos de isenção?
Não há dúvida que o sistema adotado em
nosso país faz nascer a obrigação tributária com a
ocorrência do fato gerador, porém isto não é suficiente
para tornar o crédito tributário decorrente da obrigação
exigível, o que somente ocorreria com a constituição do
crédito pelo ato de lançamento.
Assim não fosse, estaríamos diante de uma
situação inusitada, em que o contribuinte isento
tributariamente poderia ser sujeito ativo de crime contra a
ordem tributária do artigo 1º da Lei 8.137/90, sem ser
devedor de tributo algum, mesmo sendo elementar do
tipo penal a supressão ou redução de tributo, pois que a
obrigação tributária nasce antes da isenção.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
52
Evidente, portanto, que isto não ocorre em
razão do princípio da ofensividade do bem jurídico,
porquanto para haver crime deve haver afetação direta ao
bem jurídico protegido, ou, ao menos exposição do
mesmo a perigo. Em outras palavras, dada a existência,
no tipo do artigo 1º da Lei 8.137/90 ou do artigo 168-A
do Código Penal, da descrição do resultado naturalístico
consistente na supressão ou redução de tributo ou no não
repasse à Previdência da contribuição descontada dos
segurados, temos que isto só ocorrerá com o lançamento,
porquanto em etapa anterior não temos débito tributário,
malgrado possa haver obrigação tributária.
Assim, dúvidas não podem haver quanto ao
bem jurídico protegido de forma mais imediata, ou seja, o
crédito tributário. Isso porque, protegida
progressivamente a função social do Estado prevista na
Constituição, a ordem Tributária e Previdenciária, a
arrecadação tributária, somente o crédito tributário do
Estado, se violado, atinge aos bens jurídicos
progressivamente mediatos, o que não ocorre, como
visto, com a obrigação tributária, que pode existir sem
que exista crédito, caso em que os bens jurídicos
mediatos não serão atingidos.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
53
5.2. O momento da constituição definitiva do crédito
tributário
Outra questão de extrema relevância é
definir qual o momento da constituição definitiva do
crédito tributário, porquanto antes deste momento não
existe exigibilidade do mesmo.
Assim leciona Hugo de Brito Machado:
'Outra divergência profunda diz respeito ao
momento em se deve considerar exercido o direito de
construir o crédito tributário. Segundo as diversas
correntes doutrinárias, esse momento seria:
(a) aquele em que o Fisco determinasse o montante a ser
pago e intimasse o sujeito passivo para fazê-lo;
(b) a decisão, pela procedência da ação fiscal, em
primeira instância administrativa;
(c) a decisão definitiva em esfera administrativa;
(d) a inscrição do crédito tributário como dívida ativa.
Para quem se situa na posição 'a', um
simples auto de infração seria o lançamento. Com a sua
lavratura estaria exercido o direito de constituir o crédito
tributário e, portanto, não se poderia mais cogitar de
decadência.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
54
Tal posição nos parece insustentável. O
lançamento, como vimos ao estudar a constituição do
crédito tributário, é procedimento administrativo
integrado em duas fases. A lavratura do auto de infração
é o encerramento apenas na primeira fase. Com a
impugnação formulada pelo sujeito passivo tem início a
fase litigiosa que é a segunda do procedimento
administrativo de lançamento.
O Tribunal Federal de Recursos orientou
suas decisões no sentido de que o auto de infração é
lançamento tributário, e não apenas início do
procedimento administrativo de lançamento. Essa
posição, todavia, não se concilia com a tese, também
adotada por aquele
Colendo Tribunal, de que a Administração,
quando tiver de fazer um lançamento tributário, há de
assegurar o direito de defesa ao contribuinte. A
oportunidade de defesa é obviamente posterior à lavratura
do auto de infração. Assim, ou o lançamento não se
completa com o auto de infração, ou se se completa, a
oportunidade de defesa não é essencial no lançamento.
Para os que se colocam na posição 'b' o auto
de infração ainda não seria um lançamento por lhe faltar
Antonio Eduardo Ramires Santoro
55
o pronunciamento de autoridade administrativa com
poder decisório, não tendo sido assegurado ao sujeito
passivo o direito de defender-se. Assim, com o
julgamento da impugnação em primeira instância estaria
suprida essa falta, completando-se o lançamento.
Também não nos parece que seja assim. Se a
própria administração fazendária ainda admite discutir a
exigência, é porque esta não está ainda perfeita, assentada
em bases definitivas, o que na verdade só vem a ocorrer
com o julgamento último, ou com a não interposição do
recurso no prazo legal. A fragilidade da posição 'b' se
revela sobretudo nos casos em que a decisão em primeira
instância seja contrária à Fazenda Pública e venha a ser
reformada, prevalecendo afinal a exigência.
Com efeito, acertada nos parece a posição
'c', pois somente quando a Administração, que é parte no
procedimento e é quem efetua o lançamento, não mais
admite discuti-lo, pode-se considerar consumado o
lançamento.
Consuma-se, pois, o lançamento:
1º) não havendo impugnação, com a homologação do
auto de infração;
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
56
2º) havendo impugnação e sendo a decisão primeira
favorável à Fazenda, se o sujeito passivo não recorrer;
3º) havendo recurso, com a decisão definitiva, favorável à
Fazenda.
Em resumo: o lançamento está consumado, e
não se pode mais cogitar de decadência, quando a
determinação do crédito tributário não possa mais ser
discutida na esfera administrativa”30
Comentando o art. 174 do CTN, assim se
expressa o Juiz Manoel Álvares:
'Em se tratando de crédito tributário, o art.
174 do CTN estabelece um prazo de 5 (cinco) anos, que,
escoado, acarreta a prescrição da ação de cobrança.
O dies a quo desse qüinqüênio é a data da
constituição definitiva do crédito tributário.
Para que o crédito tributário seja
considerado definitivamente constituído não basta a
existência do lançamento; do resultado desta atividade
administrativa, o sujeito passivo deve ser regularmente
notificado. Assim, o início do prazo prescricional se dá
com a notificação regular do lançamento.
30
Hugo de Brito Machado, Curso de Direito Tributário - 5ª ed.
- págs. 135⁄137.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
57
Não se pode olvidar, contudo, que a primeira
notificação ao sujeito passivo pode não se constituir no
marco inicial do qüinqüênio prescricional, pois, em
havendo apresentação de defesa e posterior recurso para a
instância administrativa superior, enquanto não for
proferida a decisão final, não transcorrerá qualquer prazo,
de decadência ou de prescrição. Nesse caso, o crédito
tributário somente estará definitivamente constituído com
a notificação da decisão final administrativa, que marcará
o dies a quo do prazo prescricional.”31
O Professor Ricardo Lobo Torres, diz com
precisão:
“O prazo da prescrição é de 5 anos contados
da constituição definitiva do crédito, isto é, da data
marcada para o pagamento no lançamento notificado ou
do decurso de 30 dias contados da decisão definitiva.
Inexiste prescrição intercorrente no processo tributário-
administrativo, o que significa que entre o lançamento e a
decisão definitiva não corre o prazo prescricional.”32
31
Manoel Álvares, Código Tributário Nacional Comentado,
Ed. Revista dos Tribunais, pág. 670. 32
Ricardo Lobo Torres, Curso de Direito Financeiro e
Tributário, 9ª ed., Renovar, pág. 269.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
58
Adotando a posição doutrinária e
jurisprudencial hodierna, o Superior Tribunal de Justiça,
na esteira do entendimento do Supremo Tribunal Federal,
passou a entender que o lançamento definitivo ocorre
com a notificação do contribuinte da decisão definitiva na
esfera administrativa e é neste momento que o crédito
tributário está definitivamente constituído, passando a ser
exigível. In verbis:
"TRIBUTÁRIO - DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO -
ICMS - TRIBUTO LANÇADO POR HOMOLOGAÇÃO
- LAVRATURA DE AUTO DE INFRAÇÃO.
1. A antiga forma de contagem do prazo prescricional,
expressa na Súmula 153 do extinto TFR, tem sido hoje
ampliada pelo STJ, que adotou a posição do STF.
2. Atualmente, enquanto há pendência de recurso
administrativo, não se fala em suspensão do crédito
tributário, mas sim em um hiato que vai do início do
lançamento, quando desaparece o prazo decadencial, até
o julgamento do recurso administrativo ou a revisão ex-
officio.
3. Somente a partir da data em que o contribuinte é
notificado do resultado do recurso ou da sua revisão, tem
início a contagem do prazo prescricional.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
59
4. Prescrição intercorrente não ocorrida, porque efetuada
a citação antes de cinco anos da data da propositura da
execução fiscal.
5. Datando o fato gerador de 1989, afasta-se a
decadência, porque lavrado auto de infração em 12⁄05⁄92.
Impugnada administrativamente a cobrança, não corre o
prazo prescricional até a decisão final do processo
administrativo, quando se constitui definitivamente o
crédito tributário, no caso 18⁄09⁄97. Tendo ocorrido a
citação válida em 09⁄06⁄99 (art. 174, I do CTN), não há
que se falar em prescrição. Afasta-se, ainda, a prescrição
intercorrente, porque não decorridos mais de cinco anos
entre o ajuizamento da execução fiscal e a citação válida.
6. Recurso especial provido." (RESP 485738⁄RO,
Relatora Ministra ELIANA CALMON, DJ de 13.09.2004
– grifo nosso)
Desta forma, resta claro que o crédito
tributário inicia sua constituição com a lavratura do Auto
de Infração ou da NFLD´s decorrente da ação fiscal e se
torna definitivamente constituída, ou seja exigível, no ato
de notificação do contribuinte da decisão irrecorrível na
esfera administrativa que julgou existente e exigível o
crédito tributário.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
60
5.3. Os efeitos da proteção penal do Instituto do
Direito subjacente
Como visto anteriormente, não há
legitimidade a um sistema penal que proíba condutas
aleatoriamente. A limitação do poder estatal de proibir
está na finalidade de proteção a bens jurídicos.
Ademais, não se pode olvidar que o Direito
Penal visa proteger valores constitucionais que encerram
bens jurídicos de ramos subjacentes, como sói ocorrer
com o Direito Tributário e Previdenciário.
Destes ramos do Direito o legislador penal,
para proteger a função social do Estado, tutelou a
arrecadação que possibilita o desempenho da referida
função. À vista da característica da progressividade do
bem jurídico, esta arrecadação está vazada no instituto do
Direito Tributário conhecido como crédito tributário.
Destarte, à luz do princípio da ofensividade,
somente as condutas que lesem o crédito tributário
podem ser consideradas penalmente relevantes. Este fato
por sua vez somente ocorre quando o crédito tributário é
definitivamente constituído pelo lançamento que se
Antonio Eduardo Ramires Santoro
61
aperfeiçoa com a decisão irrecorrível na esfera
administrativa.
Porquanto, o agente estatal incumbido de
fiscalizar o lançamento do crédito pelo contribuinte,
homologando-o ou não, é quem tem atribuição para
constituir o crédito tributário em caso de falha do
contribuinte no desempenho de suas obrigações
acessórias.
No entanto, o agente fiscalizador, ao
discordar do contribuinte e proceder ao lançamento de
ofício, precisa formalmente notificá-lo para que pague ou
impugne o ato de lançamento realizado pelo fiscal.
Uma vez impugnado o ato do fiscal, apenas
foi iniciado o lançamento do crédito tributário, o qual
somente se tornará definitivo com o julgamento
irrecorrível na esfera administrativa da impugnação e
eventuais recursos apresentados pelo sujeito passivo da
obrigação tributária.
Portanto, até o julgamento definitivo na
esfera administrativa do lançamento realizado pelo fiscal,
não há fato típico na esfera penal, porquanto ainda não
existe crédito tributário, que é o bem jurídico protegido
pela norma penal, seja dos tipos penais da Lei nº
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
62
8.137/90 (artigos 1º e 2º), seja dos tipos do artigo 168-A
do Código Penal.
5.4. A prejudicialidade da discussão sobre a existência
do crédito tributário
Outra questão importante a ser tratada é a
que diz respeito à prejudicialidade da questão subjacente
Tributária. É que a análise da existência do crédito
tributário prejudica a análise da violação da norma penal
que o protege.
Fernando da Costa Tourinho Filho define
questão prejudicial assim:
“Florian define a prejudicial como sendo
uma questão de Direito cuja solução se apresenta como
antecedente lógico e jurídico da de Direito Penal objeto
do processo, e versa sobre uma relação jurídica particular
e controvertida. Para Manzini, a questão prejudicial é
toda questão jurídica cuja solução constitua um
pressuposto para a decisão da controvérsia principal
submetida a juízo (cf. Trattato, cit., v. 1, p. 246). (...)
Por questão prejudicial entende-se toda
questão de valoração jurídica, seja de Direito Penal, seja
Antonio Eduardo Ramires Santoro
63
Extrapenal, que deve ser decidida antes da questão
principal – chamada, por isso mesmo, prejudicada.”33
É evidente, portanto, que a discussão quanto
à existência do crédito tributário implica na existência ou
inexistência do crime que o viola, porquanto se o crédito
não existir, evidentemente ele não pode ter sido violado.
Desta forma, enquanto sua existência estiver
sendo discutida, temos uma questão prejudicial aos
crimes tributários e previdenciários que o tem como bem
jurídico protegido.
De outro lado, importa distinguir o momento
em que o crédito tributário foi constituído, mas sua
existência está sendo discutida, do momento em que ele
sequer foi constituído.
É que, como visto, antes do lançamento
definitivo na esfera administrativa o crédito tributário
sequer foi constituído. Evidente que neste momento está
sendo discutida sua ocorrência, mas não há um ato formal
necessário à sua constituição que é o julgamento
definitivo do processo administrativo de lançamento do
crédito.
33
Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, v. 2, 25ª
edição, Saraiva, 2003, p. 538.
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
64
Por outro lado, após o lançamento definitivo
na esfera administrativa o contribuinte ainda pode
questionar sua existência por meio de processo judicial
de natureza desconstitutiva do crédito tributário. Neste
caso o crédito está constituído, mas sua existência está
sendo questionada.
Desta forma, enquanto não houver
constituição definitiva do crédito tributário na esfera
administrativa não há crime, ao passo que após a
constituição do crédito, a discussão judicial quanto à sua
existência é questão prejudicial.
5.5. A posição da jurisprudência brasileira
O Supremo Tribunal Federal mudou sua
posição no julgamento do Habeas Corpus nº 81.611 pelo
Tribunal Pleno em que foi relator o Ministro Sepúlveda
Pertence.
Vale dizer que sua posição, que somente não
foi acompanhada pelos Ministros Ellen Gracie, Ministros
Joaquim Barbosa e Carlos Britto, adota o entendimento
segundo o qual o processo administrativo em que se
discute a exigibilidade do crédito tributário é uma
Antonio Eduardo Ramires Santoro
65
“condição objetiva de punibilidade” do crime descrito
pelo artigo 1º da Lei nº 8.137/90.
Porquanto não trata a representação fiscal
para fins penais com condição de procedibilidade, nem
tampouco, como fizemos nas linhas acima, trata a
questão da constituição definitiva do crédito tributário
como bem jurídico de cuja existência depende o
lançamento definitivo decorrente da decisão proferida em
processo administrativo, mas condiciona a propositura da
ação penal ao lançamento definitivo, o qual trata como
“...condição objetiva de punibilidade ou um elemento
normativo de tipo...”, aduzindo argumento de ordem
pragmática segundo o qual é um direito do contribuinte
impugnar o lançamento, bem como efetuar o pagamento
e extinguir a punibilidade após o julgamento final do
processo administrativo de reconhecimento do crédito
tributário, o que deve se dar antes do oferecimento da
denúncia que, portanto, não pode ter sido oferecida ou
recebida antes do lançamento definitivo.
O Superior Tribunal de Justiça, bem como
os demais tribunais vêm seguindo esta orientação,
malgrado a aplicação deste entendimento aos crimes
contra a ordem previdenciária esteja sendo alvo de
Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional
66
intensos e acalorados debates, o que não se justifica,
como vimos acima, em se entendendo que o bem jurídico
protegido pelo dispositivo progrida da tutela das
prestações sociais pelo Estado, passando pela Ordem
Previdenciária, até a arrecadação das contribuições
previdenciárias, especificamente o crédito tributário de
natureza previdenciária, que somente se constitui pelo
lançamento definitivo na esfera administrativa.
Paradigmático foi o julgamento do Habeas
Corpus nº 82.397 – RJ, impetrado pelo autor deste
trabalho, no qual, a despeito da intensa discussão sobre o
assunto34
, entendeu o Superior Tribunal de Justiça que
assim como nos crimes contra a ordem tributária, o
processo administrativo em que se discute a exigibilidade
do crédito previdenciário também é condição objetiva de
34
Vale dizer que após o voto contrário do relator, ministro
Hamilton Carvalhido, o ministro Nilson Naves pediu vista e
votou pela concessão da ordem, tendo sido acompanhado pela
ministra Maria Thereza de Assis Moura. Em seguida o
Desembargador convocado Carlos Fernando Mathias votou
contra a concessão da ordem. Como o ministro Paulo Gallotti
não estava na sessão inaugural, o resultado de empate em dois
a dois terminou com a concessão da ordem.
Antonio Eduardo Ramires Santoro
67
punibilidade do delito de apropriação indébita de
contribuição previdenciária.
BIBLIOGRAFIA:
_ÁLVARES, Manoel. Código Tributário Nacional
Comentado. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo.
_GOMES, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito
Penal. série as ciências criminais no século XXI, volume 5,
Revista dos Tribunais, 2002, São Paulo.
_MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 5ª
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_PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. Revista dos
Tribunais, 2004, São Paulo.
_REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed., 2ª tiragem,
Saraiva, 2002, São Paulo
_SALOMÃO, Heloisa Estellita. A Tutela Penal e as
Obrigações Tributárias na Constituição Federal. Revista dos
Tribunais, São Paulo, 2001.
_TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, v.
2, 25ª edição, Saraiva, 2003.
_TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e
Tributário, 9ª ed., Renovar.
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68
_XAVIER, Alberto. Do Lançamento – Teoria Geral do Ato, do
Procedimento e do Processo Tributário. Editora Forense, 1997,
Rio de Janeiro
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