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ANTONIO EDUARDO RAMIRES SANTORO TEORIA DA PROGRESSIVIDADE DO BEM JURÍDICO CONSTITUCIONAL E A RELAÇÃO ENTRE AS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL NOS CRIMES PREVIDENCIÁRIOS

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Este trabalho trata do importante tema do bem jurídico protegido, sua teria e a importante relação entre a progressão dos valores até os institutos de direito adjacente, abracando uma gama de proteções que não se limitam à tradicional relação de interesses previstos pelas leis e manuais. À luz desta teoria é apontada a solução material para o conflito entre instâncias administrativa e penal nos crimes tributários e previdenciários, colocando em xeque o dogma da independência.Este documento é licenciado CC BY: A obra Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional e a relação entre as instâncias administrativa e penal nos crimes previdenciários de Antonio Eduardo Ramires Santoro foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não-Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0 Não Adaptada.

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Page 1: Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional e a Relação entre as instâncias Administrativa e Penal nos Crimes Tributários

ANTONIO EDUARDO RAMIRES SANTORO

TEORIA DA PROGRESSIVIDADE DO BEM JURÍDICO CONSTITUCIONAL E A RELAÇÃO ENTRE AS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL NOS CRIMES PREVIDENCIÁRIOS

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

ii

ANTONIO EDUARDO RAMIRES SANTORO

Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Mestrando em Direito Penal Internacional pela Universidade

de Granada – Espanha. Especialista em Direito Penal Econômico pela

Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito da

Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas-RJ. Advogado

Criminalista. Professor da Universidade Gama Filho.

TEORIA DA PROGRESSIVIDADE DO BEM

JURÍDICO CONSTITUCIONAL E A RELAÇÃO

ENTRE AS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E

PENAL NOS CRIMES PREVIDENCIÁRIOS

Rio de Janeiro

2008

Page 3: Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional e a Relação entre as instâncias Administrativa e Penal nos Crimes Tributários

Antonio Eduardo Ramires Santoro

iii

Santoro, Antonio Eduardo Ramires

Teoria da Progressividade do Bem Jurídico

Constitucional e a Relação entre as instâncias

Administrativa e Penal nos Crimes Previdenciários /

Antonio Eduardo Ramires Santoro – Rio de Janeiro,

2008.

1. Direito Penal. 2. Direito Processual Penal. 3.

Filosofia do Direito.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

iv

Dedico este livro ao meu amigo Renato Paula de

Almeida.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

v

ÍNDICE:

1. Breves linhas a respeito da principiologia

fundante do bem jurídico..................................................7

1.1. O direito estatal de proibir (princípio da

proporcionalidade)............................................................7

1.2. Variação da ordenação de valores (do direito penal

máximo ao princípio da intervenção mínimo)..................9

1.3. Os bens jurídicos como projeção dos valores

(princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos).......10

1.4. A elevação valorativa do bem jurídico a bem

jurídico-penal (princípios da fragmentariedade e da

subsidiariedade)..............................................................14

1.5. A vulneração concreta do bem jurídico-penal em

sentido valorativo e normativo (princípio da

ofensividade)..................................................................18

2. Teorias de fundamentação constitucional do bem

jurídico............................................................................20

2.1. Concepções de caráter geral....................................22

2.2. Concepções de caráter estrito..................................27

2.3. Legitimação e deslegitimação axiológica da proteção

aos bens jurídicos (critérios de limitação do exercício do

poder político).................................................................28

3. A progressividade do bem jurídico penal...................31

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

vi

4. Os novos bens jurídicos do Estado Social..................35

5. O bem jurídico tutelado nos tipos penais de proteção

da ordem previdenciária (em especial o de apropriação

indébita das contribuições previdenciárias)....................36

5.1. O Instituto do Direito subjacente protegido pela

norma penal....................................................................42

5.2. O momento da constituição definitiva do crédito

tributário.........................................................................54

5.3. Os efeitos da proteção penal do Instituto do Direito

subjacente, inexistência de crime sem lançamento

definitivo do crédito tributário........................................61

5.4. A prejudicialidade da discussão sobre a existência do

crédito tributário.............................................................63

5.5. A posição da jurisprudência brasileira.....................65

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1. Breves linhas a respeito da principiologia fundante

do bem jurídico

1.1. O Direito estatal de proibir (princípio da

proporcionalidade)

Há legitimações do ius puniendi que

implicam na necessidade de busca da justificação do

direito de proibir do Estado e que será abordado neste

ponto.

Não é difícil verificar que o direito penal

simboliza, no plano axiológico, o embate entre o valor da

liberdade humana e o direito do Estado tolher esta

liberdade em nome de algum outro valor1.

As correntes que legitimam o direito do

Estado punir verificam que nos casos em que se

1 Neste contexto está se tomando como linha de estudo o

direito penal do ius libertatis, que, na visão de Silva Sánchez

apud GOMES, Luiz Flávio (Norma e Bem Jurídico no Direito

Penal, série as ciências criminais no século XXI, volume 5,

Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002v, pág. 51), deve ser

entendido como o conjunto de normas jurídico-penais (na

nossa visão o campo dogmático da ciência do Direito) que têm

como conseqüência a imposição (direta ou indireta) de pena

privativa de liberdade. Não deve ser olvidado que na doutrina

penal já se fala em outro tipo de Direito Penal, que teria como

conseqüência outros tipos de sanção distintas da privação de

liberdade. Este direito penal de penas diferentes das privativas

de liberdade não invalidam o que se afirmará neste estudo.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

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possibilita a aplicação de pena, o valor da liberdade

sucumbe.

Como não estamos tratando de um Estado

totalitário em que o direito do cidadão não tem

importância sobre o interesse de ordem do Estado, ou

seja, como não podemos dizer que o Brasil não atribui

qualquer relevância à liberdade do cidadão e como o

direito de punir do Estado se funda no direito estatal de

proibir comportamentos que violem um valor maior que a

liberdade, a cada caso deverá ser definido o valor que se

repute maior que a liberdade para, com sua violação,

legitimar o direito estatal de punir.

Certo é que nesta ordem de idéias, a

proporcionalidade (entre o valor de vulneração proibida e

a liberdade do cidadão2) é a base do fundamento da

proibição de condutas, servindo, destarte, de paradigma o

valor de justiça como o primeiro a ser perseguido pelo

2 Ao se falar em liberdade do cidadão, estamos tratando da

privação da liberdade como a pena. No entanto, como dito na

nota de rodapé anterior, não significa dizer que não podemos

ter outras penas como ponto comparativo ao valor da

vulneração proibida. Se, por exemplo, a pena for multa,

deveremos utilizar o valor do econômico como ponto

comparativo à legitimar a imposição de pena.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

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exercente do poder político configurador do sistema

penal sob o prisma proibitivo.

1.2. Variação da ordenação de valores (do direito

penal máximo ao princípio da intervenção mínima)

A premissa do direito de proibir estatal na

observância da proporcionalidade entre o valor de

vulneração proibida e a liberdade do cidadão encerrará

uma configuração do sistema penal maximizado ou

reduzido, o que dependerá da tábua de valores definida

para determinada sociedade e por ela própria.

Isso porque, para cada sociedade existe uma

determinada ordenação de valores que variará conforme

seu traço cultural.

Assim, para sociedades em que a liberdade

não está em primeiro plano, os diversos valores que a

antecedem na escala de prioridades merecerão tutela do

poder político que delineará o direito penal, criando

modelos de direito penal máximo, qual seja, com número

exacerbado de proibições de conduta, próprio dos

Estados totalitários.

De outro lado, nas sociedades liberais, nas

quais o valor da liberdade do cidadão é tomado como

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

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prioridade, os demais valores sucumbirão e não serão

merecedores de tutela estatal no âmbito penal, de sorte

que veremos assim configurado um modelo de direito

penal calcado no princípio da intervenção mínima do

Estado na esfera de conduta do cidadão, com reduzido

número de comportamentos proibidos.

1.3. Os bens jurídicos como projeção dos valores

(princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos)

Os valores podem ser ordenados e

classificados, sendo certo que sua ordenação e

classificação derivam da objetivação do espírito humano

projetado sobre a História.

Assim, para cada civilização, determinada

tábua de valores é escolhida para dar lugar à realização

dos valores mais importantes.

É neste passo que a sociedade cria e

desenvolve seus bens culturais, que nada mais são do que

expressões, ou tentativas de expressões, dos valores

escolhidos pelo exercente do poder político.

Para Miguel Reale, os bens culturais têm

dois elementos: o “suporte” e o “significado”. É o caso,

por exemplo, de uma escultura que tem o suporte no

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

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mármore em que se esculpe, mas revela o significado do

belo. O suporte pode, por seu turno, ser físico, psíquico

ou ideal, como é o caso dos bens jurídicos, que têm

suporte nas proposições lógicas da própria norma, ao

passo que enunciam um juízo de valor3. Conclui que

entre o suporte e o significado dos bens jurídicos há uma

correlação essencial.

Os bens jurídicos são, destarte, espécies de

bens culturais, na medida em que resultam da tentativa do

legislador, no exercício do seu poder político, de

realização de determinados valores eleitos, através das

normas jurídicas por ele elaboradas.

Os bens jurídico-penais, por sua vez,

ganham maior relevo na medida em que o arcabouço do

ordenamento punitivo pode (deve no caso de Estados

Democráticos de Direito como o nosso) vir a orbitar em

torno deste conceito para os casos em que o direito de

punir pressupõe a existência de uma violação de fato de

um valor maior que a liberdade, como visto acima. Com

efeito, todo tatbestand tem por finalidade a proteção de

um determinado bem jurídico.

3 Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São

Paulo, pág 226/227.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

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Porquanto, ao elaborar a norma jurídica

penal punitiva, tratada tecnicamente como “tipo penal”, o

legislador legitima o direito de punir e, conforme sua

justificativa axiológica para a punição, protegerá

determinado bem jurídico que somente será por ele

tutelado na medida em que o valor nele contido, qual

seja, o seu “significado”, esteja na ordem dos valores a

serem protegidos em detrimento da liberdade.

Desta forma, não resta dúvida que a escolha

dos bens jurídicos eleitos pelo legislador penal traduz a

objetivação do espírito humano sobre aquele momento

histórico, sendo com isto possível captar a essência

cultural de uma determinada civilização.

De todo evidente que isto só é possível na

medida em que a elaboração das normas jurídicas penais

punitivas, nas quais restam eleitos os bens jurídicos

penalmente relevantes, que nada mais são do que

espécies de bens culturais que revelam os seus

significados valorativos, é a própria realização da cultura

de determinada civilização.

Portanto, a proibição é mais que um traço

cultural de uma sociedade historicamente situada, pois

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

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revela os valores daquela sociedade e, desta forma, sua

própria cultura.

De toda sorte, somente um direito penal

configurado por um sistema legislativo penal protetivo de

bens jurídicos (princípio da exclusiva proteção de bens

jurídicos) se realiza axiologicamente sobre a cultura da

sociedade em que se insere, posto que os bens jurídicos,

enquanto bens culturais que traduzem a objetivação do

espírito humano sobre a História, são capazes de

salvaguardar os valores de uma civilização.

Caso contrário, ou seja, um direito penal que

negue a legitimação das proibições de comportamentos

na proteção de bens jurídicos será inócuo, vazio, carente

de fundamento axiológico e, assim, puramente

impositivo, pois não emana das relações sociais que

encetam e encerram os valores daquela civilização.

1.4. A elevação valorativa do bem jurídico a bem

jurídico-penal (princípios da fragmentariedade e da

subsidiariedade)

Cediço que os bens jurídico-penais são

espécies de bens jurídicos, que por sua vez são bens

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culturais, cumpre alcançar o(s) traço(s) distintivo(s) que

caracteriza(m) os bens jurídico-penais.

É que diversos são os valores de uma

sociedade e, portanto, diversos são os bens culturais da

mesma. Bem assim, diversas são as normas jurídicas que

pretendem realizar valores, destarte, diversos são os bens

jurídicos.

A questão está exatamente no conflito entre

a liberdade do cidadão e o valor protegido que se

pretende seja realizado pela norma jurídica.

Neste ponto cumpre traçar uma distinção

entre a norma penal primária e a norma penal secundária.

A primeira realiza um valor pela proteção de um bem

jurídico, por meio da proibição de determinado

comportamento que o viole. A segunda impõe a sanção

para a realização do comportamento proibido pela norma

primária.

Assim, a proporção entre a norma

secundária e a norma primária deve existir, promovendo

a proporcionalidade dos valores em embate.

Como a intervenção do Estado na esfera

privada é a máxima possível no direito penal, isto é,

nenhum outro ramo do direito intervém de forma mais

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

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grave na esfera de liberdade do cidadão, somente os

valores mais importantes na ordem de valores daquela

sociedade politicamente organizada podem ser objeto de

tutela penal.

Senão vejamos a lição de Luiz Flávio

Gomes:

“A construção de um Direito penal regido

pelo paradigma da ofensividade, de cunho constitucional,

material e garantista, de qualquer modo, parte da

premissa básica de que a norma penal (primária) possui

um caráter (acentuada e prioritariamente) valorativo, isto

é, ela existe para a tutela de alguns bens ou interesses (de

especial relevância) consubstanciados em relações sociais

valoradas positivamente pelo legislador para constituir o

objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a

penal.”4

Os bens jurídicos objetos de escolha pelo

legislador penal, portanto, devem passar por um critério

de ordenação axiológica dos valores que realiza, para que

sejam tutelados apenas os bens jurídicos de maior

relevância. Esta seleção de bens jurídicos de suma

4 GOMES, Luiz Flávio. op. cit., pág. 17/18.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

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relevância deve ser realizada pelo exercente do poder

político.

Portanto, é correto afirmar que somente

estará legitimado o direito estatal de proibir condutas que

lesem os bens jurídicos que realizam os valores mais

importantes de determinada sociedade. É o princípio da

fragmentariedade do direito penal.

De outro lado, pela mesma ordem de idéias,

caso as proteções promovidas pelas normas de outros

ramos do Direito (civil, trabalhista, tributário,

administrativo, etc., inclusive previdenciário) sirvam para

realizar a proteção de determinados bens jurídicos, por

mais importantes que sejam os valores por eles

realizados, é porque estes não têm relevância penal. É o

princípio da subsidiariedade.

Portanto, são bens jurídico-penais, aqueles

cujo valor somente a norma jurídica penal pode realizar,

pela sua relevância (fragmentariedade) e impossibilidade

de ser tutelado por norma de outra natureza

(subsidiariedade ou ultima ratio).

Nesta ordem de idéias, o direito penal que

proteja bens jurídicos de todo tipo de relevância, ou que

repita a proteção (já efetiva) de outro ramo do Direito,

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expande seu universo de aplicação para limites que

ultrapassam o da necessidade de proteção das relações

sociais, e passam a determinar as relações sociais, sendo

impensável para Estados liberais e democráticos.

A escolha dos valores mais relevantes e, via

de conseqüência, dos bens jurídicos de natureza penal,

cabe ao legislador. Em última análise, é este quem vai

definir quais são os valores penalmente relevantes e que

merecerão tutela do sistema penal, configurando, de

forma política, o direito penal pelo seu objeto axiológico

de proibição.

1.5. A vulneração concreta do bem jurídico-penal em

sentido valorativo e normativo (princípio da

ofensividade)

É impensável, sob o prisma axiológico,

conferir direito de punir ao Estado pelo simples fato de

ter sido transgredida uma norma jurídica.

Malgrado se possa afirmar que formalmente

o princípio da legalidade encerra uma garantia ao cidadão

consistente no fato de que ninguém poderá ser

considerado criminoso sem que a proibição esteja

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

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expressa em norma jurídica, este princípio não se

subsume ao seu aspecto formal.

Isto significa dizer que o crime não é uma

mera desobediência da imperatividade contida na norma.

Esta avaloração é própria do positivismo em sua vertente

normativista pura ou da atual concepção de Günther

Jakobs5 baseada na sociologia sistêmica de Niklas

Luhmann.

Isto significa dizer que uma norma jurídica

proibitiva não pode prescindir de um conceito anterior

material de bem jurídico-penal, dirigido ao legislador que

criará o sistema penal.

Daí porque o bem jurídico-penal deve se

restringir à proteção dos valores mais importantes de

determinada sociedade. A esta tábua de valores deve se

ater o legislador ao criar o sistema penal.

Bem assim, é impensável que o bem

jurídico-penal goze de proteção sem que se perquira

sobre sua afetação lesiva, qual seja, o simples fato de se

escolher politicamente os bens jurídico-penais (os valores

5 JAKOBS, Günther. Derecho Penal – Parte General,

Fundamentos y Teoria de La imputación, 2ª edição, Tradução

Joaquim Cuello Contreras e Jose Luis Serrano Gonzales de

Murillo, Marcial Pons, Madrid, 1997, pág. 169.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

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neles representados) aos quais será conferida proteção

estatal, não basta para legitimar a intervenção punitiva. É

preciso que os bens jurídico-penais sejam efetivamente

afetados, ofendidos, senão com sua violação, pelo menos

com a exposição a perigo concreto.

A esta necessidade de afetação material se

dá o nome de princípio da ofensividade.

Não for assim, ou seja, merecendo punição

mesmo quem não atinja um bem jurídico-penal, estar-se-

á legitimando a intervenção punitiva do Estado mesmo

sem observância do princípio da proporcionalidade

(portanto, inobservando o valor justiça), pois que o valor

atingido pela pena sucumbirá ao capricho do detentor do

poder político, sem que um valor (maior que a liberdade)

tenha sido lesado para legitimar a imposição da punição

pelo Estado.

Estaremos falando de um Estado totalitário,

em que aquele que exerce o poder político pode intervir

na liberdade do cidadão pelo seu ato arbitrário de

vontade, mas sem legitimação axiológica.

Um Estado de natureza liberal deve proteger

seus valores sem olvidar da liberdade de seus cidadãos,

portanto, a proteção axiológica encerrada pelos bens

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

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jurídico-penais somente será legitimadora da intervenção

punitiva estatal em caso de violação efetivamente

afetadora do bem jurídico-penal, seja por lesão ou

exposição a perigo concreto (este restritamente nos casos

necessários).

2. Teorias de fundamentação constitucional do bem

jurídico

A necessidade de um conceito material de

bem jurídico-penal que oriente e limite a atividade

legiferante do Estado é uma necessidade de um Direito

penal que, sob o prisma axiológico, busque legitimar o

direito de proibir estatal.

Fato é que nem mesmo as demais regras

jurídicas prescindem da justificação axiológica pré-

jurídica. Em um Estado Democrático de Direito orientado

por uma norma magna programática e principiológica

que é a Constituição, estes valores a serem protegidos

devem ser realizados pelas normas jurídicas

constitucionais, que funcionariam, destarte, como oráculo

orientador de todas as normas, de todas as naturezas:

“As regras jurídicas, incluindo

evidentemente as penais, somente podem existir enquanto

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

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realização dos valores básicos (liberdade, justiça,

igualdade, pluralismo, dignidade) contemplados em cada

Constituição, que consubstanciam um conjunto

normativo de respeito à liberdade alheia.”6

No que concerne aos bens jurídico-penais,

de todo evidente, e com muito mais razão, a norma

constitucional deve ser entendida como limite ao

legislador para conhecimento e adequação da norma

penal, na medida em que a Constituição realiza os bens

mais valiosos.

Este entendimento de que a Constituição é a

norma orientadora dos valores a serem tutelados pelo

Estado ao elaborar o Sistema Penal é amplamente

majoritário no pensamento penalístico hodierno. Porém,

diversas são as vertentes sobre este paradigma

constitucional do bem jurídico-penal, senão vejamos:

2.1. Concepções de caráter geral.

Esta é concepção que enxerga materialmente

o bem jurídico-penal como a realização de valores

adequados à ordem constitucional.

6 GOMES, Luiz Flávio. op. cit., pág. 24.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

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Heloisa Estellita Salomão7 apresenta os

seguintes juristas expoentes desta concepção: Walter von

Sax, Claus Roxin, Jorge Figueiredo Dias, Hans Joachim

Rudolphi, Michael MarxMir Puig, Polaino Navarrete,

Emilio Dolcini, Giorgio Marinucci e Giovanni Fiandaca.

De todo evidente que nem todas as

concepções coincidem, mas se aproximam na medida em

que verificam ser a Constituição um ponto de orientação

axiológica do legislador ao exercer o poder político-

criminal e elaborar o sistema penal, delineando o direito

penal.

A referida jurista, citando Maria da

Conceição Ferreira da Cunha, aduz que “esta é a posição

assumida pela maioria da doutrina alemã”8.

Vale trazer à colação a lição de Figueiredo

Dias, citado por Heloisa Estellita Salomão, sobre o papel

orientador dos valores constitucionais, dirigidos ao

legislador:

7 Heloisa Estellita Salomão, A Tutela Penal e as Obrigações

Tributárias na Constituição Federal, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, pág. 38 usque 59. 8 Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 38.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

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“os bens do sistema social preexistem à

tutela penal, porém, „os bens do sistema social se

transformam e se concretizam em bens jurídicos dignos

de tutela penal (em bens jurídico-penais) através da

ordenação axiológica jurídico-constitucional‟.”9

Este mesmo jurista lusitano deixa claro o

papel da Constituição não impondo uma identidade entre

os valores constitucionais e os valores político-penais,

mas uma relação de essência:

“Logo, por aqui se deve concluir que um

bem jurídico político-criminalmente vinculante existe ali

– e só ali – onde se encontre refletido num valor jurídico-

constitucionalmente reconhecido em nome do sistema

social total e que, deste modo, se pode afirmar que

„preexiste‟ ao ordenamento jurídico-penal. O que por sua

vez significa que entre a ordem axiológica jurídico-

constitucional e a ordem legal – jurídico-penal – dos bens

jurídicos tem por força de se verificar uma qualquer

relação de mútua referência. Relação que não será de

„identidade‟, ou mesmo de „recíproca cobertura‟, mas de

analogia material, fundada numa essencial

9 Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 43

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

24

correspondência de sentido e – do ponto de vista de sua

tutela – de fins. Correspondência que deriva , ainda ela,

de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro

obrigatório de referência e, ao mesmo tempo, o critério

regulativo da atividade punitiva do Estado. É nesta

acepção, e só nela, que os bens jurídicos protegidos pelo

direito penal se dêem considerar concretizações dos

valores constitucionais expressa ou implicitamente

ligados aos direitos e deveres fundamentais. É por esta

via – e só por ela em definitivo – que os bens jurídicos se

„transformam‟ em bens jurídicos dignos de tutela penal

ou com dignidade jurídico-penal.”10

Desta lição decorrem três corolários: 1) não

há identificação absoluta dos valores constitucionais e

aqueles protegidos pelo sistema penal; 2) podem ser

contemplados outros valores que não aqueles

contemplados literalmente na Constituição; 3) a

Constituição não impõe ao legislador penal a tutela de

determinado valor.

Quanto ao primeiro corolário, Luiz Flávio

Gomes o explica ao esclarecer que “o conceito material

10

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 43/44.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

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de bem jurídico vincula-se aos valores superiores

assumidos pelo Estado Constitucional e Democrático de

Direito, mas não segundo a perspectiva de uma relação

de “identificação absoluta”, senão de mera referência

axiológica ou de analogia substancial.”11

Quanto à segunda conseqüência, duas

questões são levantadas: em primeiro lugar as

Constituições podem não contemplar um determinado

valor em determinado momento histórico que,

posteriormente, pode vir a ser considerado penalmente

relevante; em segundo lugar as Constituições podem não

contemplar todos os valores relevantes, em sua

integralidade, de uma determinada sociedade. Nestes

casos, o valor a que se pretende conferir proteção penal e

que não está expressamente previsto na Constituição, dês

que não seja incompatível com os demais valores

constitucionais essenciais, não terá sua proteção defesa

ao legislador penal.

Quanto à terceira decorrência, argumenta

Luiz Flávio Gomes que “não existe, portanto, uma

obrigação de criminalização ou penalização automática,

11

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 92.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

26

senão só uma indicação do valor do bem jurídico

referido. Elevado „merecimento de pena‟ não significa

automaticamente „necessidade‟ de pena”, daí porque “...o

não cumprimento pelo legislador das obrigações de

criminalização não está sancionado com nenhuma

conseqüência jurídica.” 12

2.2. Concepções de caráter estrito

Esta é concepção que enxerga materialmente

o bem jurídico-penal como a realização dos valores da

ordem constitucional.

Heloisa Estellita Salomão13

apresenta os

seguintes juristas expoentes desta concepção: Franco

Bricola, Francesco Angioni, Luigi Ferrajoli e Maria da

Conceição Ferreira da Cunha. Para Luiz Flavio Gomes14

,

Franco Bricola é o principal expoente.

Mais uma vez, é evidente que nem todas as

concepções coincidem, mas verificam a necessidade de

12

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 106/107. 13

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 38 usque 59. 14

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 89.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

27

harmonização dos valores penais com os valores

constitucionais, proibindo a penalização de valores que

não lesem ou coloquem em perigo concreto os valores

constitucionais.

Esta doutrina tenta deduzir diretamente da

Constituição os valores objetos de proteção penal. Nas

palavras de Heloisa Estellita Salomão, “...somente

poderia haver criminalização na hipótese de tutela de

valores constitucionalmente reconhecidos, ainda que de

forma implícita.”15

A referida jurista, citando Maria da

Conceição Ferreira da Cunha, aduz que esta é a posição

assumida “por parte da doutrina italiana e portuguesa”16

.

No entanto, cabe ressaltar que, segundo Luiz Flávio

Gomes “...esta formulação mereceu uma especial

consideração das doutrinas alemã e italiana”17

.

De toda sorte, esclarece o jurista brasileiro

que “...a verdade é que a doutrina constitucionalista

inflexível não assegurou grande ressonância na praxis”18

.

15

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 59/60. 16

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 60. 17

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 89. 18

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 91.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

28

2.3. Legitimação e Deslegitimação axiológica da

proteção aos bens jurídicos (critérios de limitação do

legislador)

Desde o nascimento do bem jurídico, não

com este nomen juris, na época Iluminista, o objetivo dos

pensadores era impor um conceito material que orientasse

e limitasse o poder legislativo de proibição de condutas.

Historicamente este conceito se desvirtuou a

ponto de, no extremo normativismo positivista, carecer

por completo de conteúdo axiológico pré-jurídico,

inferindo-se o bem protegido da própria norma.

Todavia, o caminho da garantia do cidadão

em relação ao poder punitivo e proibitivo do Estado,

rumou para a busca de uma justificação que, malgrado

não se pudesse ignorar a diversidade cultural de uma

civilização, pudesse impor uma orientação e limitação ao

poder legiferante de caráter geral e axiológico.

Daí porque a limitação do poder político

delineador do direito penal pelo sistema legislativo pelos

valores insertos na Constituição, ou não incompatíveis

com ela, foi, na esteira da melhor doutrina atual, o

conceito encontrado como limite e orientação material do

legislador.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

29

Desrespeitada a orientação e vulnerados os

limites axiológico-constitucionais, estaremos diante do

que a doutrina chama de função crítica do bem jurídico,

que podemos chamar de deslegitimação do direito de

proibir do Estado:

“Quando utilizamos o conceito político-

criminal para constatar em cada norma penal concreta se

há ou não correspondência entre o conceito ideal e o real,

então se fala da função crítica do bem jurídico, que

questiona a legitimação do bem protegido, é dizer, do

próprio Direito penal.”19

Respeitados estes limites de conformação ao

quadro de valores constitucional, teremos uma realização

do direito de proibição estatal legítimo, sob o prisma

axiológico.

Assim, uma vez construído o sistema de

proibições estatal legitimado do ponto de vista

axiológico-constitucional, respeitado o embate entre o

valor liberdade e o valor cuja vulneração se pretende

proibir, ter-se-á realizado o valor da justiça:

19

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 137.

Page 30: Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional e a Relação entre as instâncias Administrativa e Penal nos Crimes Tributários

Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

30

“Com o novo método de ponderação, o

Direito penal torna-se mais complexo, perde a

simplicidade e a linearidade do método da subsunção (do

positivismo legalista e formalista), mas ganha em

razoabilidade, equilíbrio e proporcionalidade, em suma,

eleva-se (a patamares notáveis) o valor justiça, que é o

valor-meta do Estado Constitucional e Democrático de

Direito.”20

3. A progressividade do bem jurídico penal

A origem constitucional-axiológica do bem

jurídico como critério orientador da tutela a ser

implementada pelo legislador não pode ser concebida

sem a interligação dos diversos princípios que regem não

apenas o Direito Penal, mas, sobretudo, a teoria do bem

jurídico.

É que, adotada que se tenha a teoria

constitucionalista do bem jurídico de caráter geral, não

difícil verificar que quantidade de valores inferidos pela

Constituição como relevantes, ou que pelo menos não se

choquem com os valores constitucionais é muito grande.

20

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 146.

Page 31: Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional e a Relação entre as instâncias Administrativa e Penal nos Crimes Tributários

Antonio Eduardo Ramires Santoro

31

Todavia, o princípio da subsidiariedade é,

outrossim, um norte a ser seguido, porquanto não apenas

os valores a serem penalmente tutelados devem estar em

consonância com os valores constitucionais, como ainda

devem estar assentados nas bases do ramo do Direito

subjacente à norma penal que o protege.

Assim, como corolário dos princípios da

proteção de bens jurídicos constitucionais e da

subsidiariedade temos a característica da progressividade

do bem jurídico, ou seja, podemos verificar que dos

valores constitucionais iremos progredir por inferência

até o direito decorrente do valor, concebido juridicamente

por outro ramo do Direito, mas protegido via subsidiária

pelo Direito Penal.

Tome-se como exemplo o patrimônio. Não

há dúvida que este bem jurídico encontra guarida na

Constituição da República Federativa do Brasil, quando

reconhece os valores da liberdade e da privacidade,

dando origem ao direito da propriedade privada.

Ora, não é difícil estabelecer a relação

progressiva do bem jurídico, pois de valores

constitucionais como a liberdade e a privacidade, nasce o

instituto propriedade privada. O conjunto de propriedades

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

32

privadas de um indivíduo compõe o seu patrimônio, que,

por sua vez, encerram uma série de direitos reconhecidos

pelo direito civil, tais como propriedade, posse, hipoteca,

penhor, etc.

Desta forma temos que o furto, por exemplo,

protege o bem jurídico patrimônio. Mas não é esta a

proteção pura e simples. O furto protege, na realidade, os

valores constitucionais progressivamente até chegarmos

ao direito juridicamente concebido pelo ramo do Direito

subjacente ao penal (no caso o civil, especificamente os

direitos reais). Portanto, o furto protege os valores

constitucionais da liberdade e da privacidade, o direito à

propriedade privada, bem como os direitos de

propriedade e posse tais como concebido pelo Direito

Civil (Heleno Fragoso chega até a ver o direito de

detenção tutelado pelo tipo penal de furto). Há, destarte,

uma progressão de proteções que devem ser levadas em

consideração em cada caso.

Tomemos outro exemplo, o crime do artigo

1º da Lei nº 8.137/90. É lugar comum afirmar que este

tipo penal tutela a ordem tributária. De fato não é falsa

esta afirmação, mas é incompleta na medida em que ela

não considera a progressividade do bem jurídico tutelado.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

33

Este dispositivo tem origem na necessidade do Estado

brasileiro de socializar serviços à população. Esta é a

primeira proteção conferida pelo dispositivo, uma vez

que a socialização de serviços só é possível por meio de

uma arrecadação que permita ao Estado prover as

necessidades de seus cidadãos. Todavia, a arrecadação se

dá por meio das regras tributárias, daí porque de fato o

tipo protege a ordem tributária. No entanto, esta ordem é

regulada pelo Direito Tributário que, por sua vez, tem

uma regulamentação própria e concebe direitos e deveres

a cada um. No caso do artigo 1º da Lei nº 8.137/90 não é

qualquer obrigação atribuída ao contribuinte que está

sendo tutelada, mas especificamente a que diz respeito à

fraude que leva à diminuição da arrecadação. Desta

forma, a mera violação da obrigação de prestar

informações verdadeiras não é suficiente para configurar

o crime descrito pelo tipo penal do artigo 1º da Lei nº

8.137/90, mas somente aquelas que excluam ou

suprimam valores a serem arrecadados. Daí porque

afirmar que a ordem tributária é o bem jurídico protegido

é verdadeiro, mas incompleto, porquanto prestar

informações falsas também viola a ordem tributária, mas

se não suprimir ou reduzir tributo não viola o bem

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

34

jurídico protegido pelo artigo 1º da Lei nº 8.137/90, não é

uma conduta que se adeque a este tipo penal. Prestar

informações falsas sem que esta conduta suprima ou

reduza tributo atinge apenas a fé pública depositada nos

documentos, porquanto configura o tipo penal de

falsidade ideológica, mas não atinge a ordem tributária.

Somente se o contribuinte prestar informações falsas e

com isto suprimir ou reduzir tributo é que o bem jurídico

restará violado, razão pela qual o que se protege, em

última análise é a exigibilidade do crédito tributário.

Tanto no exemplo do furto, como no do tipo

do artigo 1º da Lei nº 8.137/90, só poderíamos

compreender a proibição da norma penal e a completa

desvaloração da conduta humana se analisarmos

progressivamente o bem jurídico, desde o valor

constitucionalmente protegido, até o direito concreto

protegido pelo tipo penal específico.

4. Os novos bens jurídicos do Estado Social

Como se viu, uma nova ordem de valores

constitucionais foram inseridos ao Estado de Direito

hodierno, são aqueles de caráter social.

Page 35: Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional e a Relação entre as instâncias Administrativa e Penal nos Crimes Tributários

Antonio Eduardo Ramires Santoro

35

Se o Estado se propõe a prover ao cidadão

suas necessidades básicas e para isso precisa fazer

receita, em última análise a proteção da arrecadação de

receita é, de forma mediata, a proteção penal dos direitos

sociais do Estado provedor.

O Estado brasileiro, embora muito mal faça

sua parte, se insere entre os Estados Democráticos de

Direito e Sociais que precisam, destarte, proteger sua

arrecadação por meio do Direito Penal.

Entre outras formas de proteção de direitos

desta categoria, estão os crimes previstos na Lei

8.137/90, bem como os delitos inseridos no Código Penal

pela Lei 9.983/2000, que tutelam a ordem previdenciária.

5. O bem jurídico tutelado nos tipos penais de

proteção da ordem previdenciária (em especial o de

apropriação indébita das contribuições

previdenciárias)

Assim dispõe o Código Penal em seu artigo

168-A:

“Art. 168-A. Deixar de repassar à

previdência social as contribuições recolhidas dos

contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

36

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos,

e multa.

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar

de:

I - recolher, no prazo legal, contribuição ou

outra importância destinada à previdência social que

tenha sido descontada de pagamento efetuado a

segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

II - recolher contribuições devidas à

previdência social que tenham integrado despesas

contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à

prestação de serviços;

III - pagar benefício devido a segurado,

quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido

reembolsados à empresa pela previdência social.

Omissis”

A questão aqui é determinar qual o bem

jurídico protegido por este dispositivo.

Não é difícil responder que o bem jurídico

protegido, a despeito da péssima técnica utilizada pelo

legislador ao inserir o tipo entre os crimes contra o

patrimônio, é a ordem previdenciária.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

37

Não é demais lembrar, outrossim, que esta

afirmação é deveras insuficiente, porquanto não

considera os princípios da subsidiariedade e a

característica da progressividade do bem jurídico.

De fato, a ordem previdenciária é tutelada

pelo dispositivo, mas fazendo incidir a progressividade

do bem jurídico, temos que o patrimônio da Previdência

Social é o que se pretende tutelar, com a garantia da

arrecadação.

Não se pode olvidar, no sentido inverso da

progressividade, que, por ser um valor constitucional

social, há proteção indireta às prestações que o Estado

dará à população com esta arrecadação.

Assim, fazendo incidir por completo a

característica da progressividade do bem jurídico, este

dispositivo protege a prestação de serviços sociais do

Estado, a ordem previdenciária, o patrimônio da

Previdência Social e a arrecadação.

Mesmo não falando expressamente em

progressividade, mas sim em bem jurídico mediato e

imediato, Luiz Regis Prado aborda todos os bens

jurídicos aqui relatados:

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

38

“No entanto, com o surgimento do Estado

social, que tutela não só a liberdade mas também os

direitos sociais, culturais e econômicos, com objetivo de

corrigir distorções, afloram, assim, os direitos de segunda

geração, sucedidos modernamente pelos de terceira

geração, que visam à proteção de bens sociais de

relevância para todos os seres humanos.

Acrescente-se que a construção de uma

sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da

pobreza e da marginalização, a redução das

desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem

de todos constituem objetivos fundamentais da República

Federativa do Brasil (art. 3º, I, III e IV, CF).

A Previdência Social e a assistência aos

desamparados são direitos sociais assegurados no artigo

6º da Carta Constitucional.

É inegável, portanto, que a contribuição

destinada à Previdência Social constitui viga mestra de

parte do programa social desenvolvido pelo Estado para

cumprir as prestações públicas de natureza social.

Não é por outra razão que, além da tutela de

bens jurídicos individuais, o Direito Penal passou, na

atualidade, a proteger também bens jurídicos

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

39

metaindividuais, próprios do Estado de Direito

democrático e social, como o ambiente, a saúde pública,

a ordem econômica e tributária, objetivando garantir as

prestações públicas e sociais com a finalidade de

possibilitar melhor qualidade de vida às pessoas.

Assim, ao tipificar as condutas descritas no

artigo 168-A, o legislador busca tutelar não apenas o

patrimônio da Previdência Social, mas também protege

de forma reflexa as prestações públicas no âmbito social.

Tendo em vista os mandamentos

constitucionais supramencionados, verifica-se que a

Constituição, no que tange ao sistema penal, não cumpre

apenas um papel limitativo do jus puniendi estatal, visto

que num Estado de Direito Democrático e social,

desempenha a função de relacionar o rol de bens jurídicos

considerados dignos de proteção.21

21

Nesse sentido, saliente-se que, de acordo com uma teoria

constitucional eclética, o conceito de bem jurídico deve ser

inferido do texto constitucional, operando-se uma espécie de

normativização de diretivas político-criminais que limitam o

legislador ordinário no momento de criar o ilícito penal. Assim,

o legislador deve sempre ter em conta as diretrizes contidas na

Constituição e os valores nela consagrados, em razão do caráter

limitativo da tutela penal. É na norma constitucional que

Page 40: Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional e a Relação entre as instâncias Administrativa e Penal nos Crimes Tributários

Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

40

Daí por que se afigura necessária a

intervenção penal para tutelar o patrimônio da

Previdência Social e seu correto funcionamento. Deve,

contudo ser uma intervenção seletiva e cuidadosa, sob

pena de se transformar em instrumento simbólico

negativo.

O bem jurídico aqui protegido vem a ser o

interesse patrimonial da Previdência Social, bem como o

processo de arrecadação e sua distribuição na despesa

pública. A propósito do tema, assevera-se que o bem

jurídico não é outro que o patrimônio da Seguridade

Social, tanto e enquanto este último resulte afetado em

sua vertente arrecadatória”22

Todavia, concessa venia, há ainda, uma

questão faltante, que diz respeito à subsidiariedade do

Direito Penal Tributário e Previdenciário à teoria

específica destes ramos do Direito protegidos pela norma

penal que pretende garantir a arrecadação, uma vez que a

residem as linhas substanciais prioritárias para a incriminação

ou não de condutas (cf. PRADO, L. R. Bem Jurídico-penal e

Constituição, p. 62 e ss)

22 Luiz Regis Prado, Direito Penal Econômico, Revista dos

Tribunais, 2004, São Paulo, pág. 492 usque 494.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

41

própria Constituição veda a prisão por dívida tributária.

Senão vejamos:

5.1. O Instituto do Direito subjacente protegido pela

norma penal

Cabe verificar que o conhecimento de

Direito Tributário é vital para definição do bem jurídico

protegido pelos tipos penais contra a ordem tributária e

previdenciária, bem assim para determinação da extensão

de seus efeitos na esfera penal.

Isso porque cumpre observar que quatro

conceitos tributários têm direta influência quanto à

tipicidade dos delitos ora em comento.

Verifique que, no caso dos crimes descritos

no artigo 1º da Lei nº 8.137/90 está-se tratando de crime

de dano, o qual exige resultado material, qual seja, a

efetiva supressão ou redução de tributos23

. O mesmo

ocorre, por exemplo, com o crime do artigo 168-A do

Código Penal, que exige não ter sido repassado à

Previdência Social o valor das contribuições descontadas

dos segurados.

Page 42: Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional e a Relação entre as instâncias Administrativa e Penal nos Crimes Tributários

Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

42

Vale, portanto, determinar quando ocorre a

supressão ou redução de tributos, visto que este é,

destarte, o momento consumativo dos delitos descritos no

citado dispositivo. Não é demais afirmar que o momento

consumativo de crimes de dano só ocorre quando o bem

jurídico imediato for diretamente violado, portanto vale

perquirir o Instituto do Direito Tributário e

Previdenciário que se encontra tutelado pela norma penal,

para argüir de sua violação.

Assim, importa verificar o que vem a ser

“obrigação tributária”, “fato gerador”, “crédito tributário”

e “lançamento” segundo o Código Tributário Nacional.

Obrigação Tributária:

“Art. 113. A obrigação tributária é principal

ou acessória.

§ 1º A obrigação principal surge com a

ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento

de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se

juntamente com o crédito dela decorrente.

§ 2º A obrigação acessória decorrente da

legislação tributária e tem por objeto as prestações,

positivas ou negativas, nela previstas no interesse da

arrecadação ou da fiscalização dos tributos.”

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

43

Fato Gerador:

“Art. 114. Fato gerador da obrigação

principal é a situação definida em lei como necessária e

suficiente à sua ocorrência.”

Crédito Tributário:

Art. 139. O crédito tributário decorre da

obrigação principal e tem a mesma natureza desta.

Lançamento:

“Art. 142. Compete privativamente à

autoridade administrativa constituir o crédito tributário

pelo lançamento, assim entendido o procedimento

administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato

gerador da obrigação correspondente, determinar a

matéria tributável, calcular o montante do tributo devido,

identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a

aplicação da penalidade cabível.”

A leitura esparsada dos trechos de lei, sem

perquirição do sistema tributário pode levar a

interpretações diversas. Por sinal, mesmo a interpretação

doutrinária, altamente qualificada e balizada, como de

resto ocorre em todas as disciplinas do Direito, permitem

uma gama variada de interpretações que se fulcram

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

44

fundamentalmente na natureza jurídica do lançamento

tributário.

Há doutrinas declarativistas24

, em que o ato

de lançamento declararia a obrigação tributária que já

nasceu com o fato natural, e doutrinas constitutivistas25

,

em que a obrigação tributária nasceria com o lançamento.

O Código Tributário Nacional, como visto,

dispõe que a obrigação tributária nasce com a ocorrência

24

“...das diversas formulações da doutrina no sentido de

caracterizar o “efeito declarativo” próprio do lançamento

podem extrair-se, ao menos quatro orientações bem

demarcadas: as que identificam o efeito declarativo com as

idéias de concretização ou especificação; as que o assimilam ao

conceito de liquidação; as que o caracterizam pelo recurso à

noção de certeza jurídica; as que vêem a sua essência em o

lançamento representar uma conditio iuris dos direitos que se

integram na relação jurídica tributária”. (Alberto Xavier, Do

Lançamento – Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do

Processo Tributário, Editora Forense, 1997, Rio de Janeiro,

pág. 534 e 535). 25

“São de duas ordens os fundamentos que assentam as teorias

da eficácia constitutiva do lançamento: fundamentos de ordem

substancial, ligados à paralisação temporária dos direitos

emergentes da obrigação tributária; fundamentos de ordem

processual, ligados aos reflexos exercidos pela estrutura do

processo tributário na própria situação de direito material”.

(Alberto Xavier, Do Lançamento – Teoria Geral do Ato, do

Procedimento e do Processo Tributário, Editora Forense, 1997,

Rio de Janeiro, pág. 484).

Page 45: Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional e a Relação entre as instâncias Administrativa e Penal nos Crimes Tributários

Antonio Eduardo Ramires Santoro

45

do fato gerador, que é, via de regra, um fenômeno

natural26

.

Já o crédito tributário é constituído com o

lançamento, que é um ato da autoridade administrativa.

Portanto, em princípio caberia traçar uma

diferença entre a obrigação tributária e o crédito

tributário, para que possamos perquirir em que momento

o tributo é efetivamente devido. O Código Tributário

Nacional dispõe:

“Art. 139. O crédito tributário decorre da

obrigação principal e tem a mesma natureza desta.”

Daí a situação torna-se menos clara, ao

menos à vista dos não estudiosos do Direito Tributário,

não menos, data venia, para seus pesquisadores, que ora

distinguem os conceitos, ora os assemelham. Cumpre,

portanto, perquirir as balizadas opiniões a respeito desta

disposição:

“Por outras palavras, a “obrigação

tributária” é a situação jurídica subjacente; o “crédito

tributário”, a situação jurídica abstrata.

26

Verifique-se que se o fato gerador é uma situação de fato sua

ocorrência é naturalística, mas pode ser uma situação jurídica,

o que muda a regra (art. 116 do CTN).

Page 46: Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional e a Relação entre as instâncias Administrativa e Penal nos Crimes Tributários

Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

46

A distinção entre obrigação tributária e

crédito tributário tem sido severamente criticada na

doutrina. Pela nossa parte – ressalvada a observação

formal de que na caracterização dessa situação se não

adota o mesmo ângulo de visão (pois se encara a primeira

pelo prisma do devedor e a segunda do ponto de vista do

credor) – consideramos esta distinção, tal como a

concebemos, uma das mais importantes conquistas

científicas do Código Tributário Nacional. Com efeito,

ela exprime a consagração do direito positivo brasileiro

da concepção do lançamento como título abstrato dotado

de eficácia preclusiva, separando – com expressões

próprias – relação subjacente e relação abstrata e

impedindo a confusão entre ambas as situações

jurídicas”. (Alberto Xavier, Do Lançamento – Teoria

Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributário,

Editora Forense, 1997, Rio de Janeiro, pág. 568).

A grande tarefa é, assim, determinar a

diferença entre os efeitos da obrigação tributária e do

crédito decorrente do lançamento, o que, na visão de

Alberto Xavier, é a causa das maiores dúvidas nesta

seara:

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

47

“De tudo quanto atrás se disse, resulta que a

obrigação tributária nasce com a completa realização do

fato descrito na hipótese normativa: o fato tributário. Mas

resulta ainda que, nos casos em que é praticado o ato

administrativo de lançamento (seja como pressuposto

necessário do pagamento, seja no exercício de uma

função de controle), os poderes e deveres que se integram

na relação jurídica tributária adquirem operância

reforçada após a prática do referido ato de aplicação do

direito. Por isso cumpre reconhecer que a plena

intensidade dos efeitos do fato tributário depende da

prática ulterior de um novo fato - autônomo do primeiro

– e que é o lançamento.

Grande parte das dúvidas que neste terreno

tão fertilmente proliferam deve-se, em grande parte, a

não se haver cuidadosamente distinguido os efeitos

imputáveis a cada um dos dois fatos, e em não se ter

procurado apreender as relações entre eles existentes.”27

E continua para definir o lançamento como

um ato administrativo de eficácia acessória, um fato

complementar ao fato tributário. Este ato administrativo

27

Alberto Xavier, idem, pág. 562.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

48

seria um título abstrato da obrigação tributária formaria

um título executivo de forma unilateral, pois contém uma

parte declarativa da existência da obrigação tributária, e,

ao mesmo tempo, obriga o contribuinte ao cumprimento

desta obrigação:

“Tal como a sentença de condenação (ao

contrário da sentença meramente declaratória) não se

limita a declarar a existência de uma obrigação, antes

impõe o seu cumprimento, também o lançamento

tributário não se esgota numa atividade declarativa e uma

realidade preexistente, antes contém um elemento

volitivo adicional, que se traduz numa exigência, numa

ordem, imposição ou injunção.

Daí o fracasso das teorias puramente

declarativistas...

Muito embora comporte os referidos

elementos cognitivos ou lógicos, o lançamento vai mais

além: se não nos contentarmos somente com a aparência

e procurarmos descobrir o que substancialmente se

contém no lançamento tributário, havemos de reconhecer

que a parte importante, a que imprime caráter e dá ao

lançamento a sua verdadeira feição, é a que está implícita

no comando referido. Ao lado da expressão numérica do

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

49

valor devido pelo sujeito passivo, está implícito ou

explícito o seguinte comando: “ordeno ao contribuinte

pagar a quantia determinada, sob pena de, não o fazendo,

se proceder à cobrança coerciva mediante o emprego do

processo de execução”.28

Para o multicitado autor o lançamento

declara a obrigação e confere exigibilidade à mesma, o

que antes não existia, tornando-o, assim, um título

executivo.

Não é difícil, portanto, concluir, que a

obrigação tributária e o crédito tributário são conceitos

diversos. Este decorre daquela. Aquela nasce com o fato

tributário, ao passo que este é constituído pelo

lançamento.

Todavia, casos existem em que a não

exigibilidade do crédito não altera a existência da

obrigação tributária, como se observa pelo texto do artigo

140 do Código Tributário Nacional. In verbis:

“Art. 140. As circunstâncias que modificam

o crédito tributário, sua extensão ou seus efeitos, ou as

garantias ou os privilégios a ele atribuídos, ou que

28

Alberto Xavier, idem, pág. 570 e 571.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

50

excluem sua exigibilidade não afetam a obrigação

tributária que lhe deu origem.”

De se ver que entre o fato tributário e a

constituição do crédito, ocorrida com o ato de lançamento

podem ocorrer novos elementos que o retirem a

exigibilidade, como é o caso da isenção, sem afetar a

existência da obrigação tributária na forma do artigo

supra transcrito:

“Primeiro passo a dar no sentido de uma

exata compreensão da função do lançamento é, pois,

reconhecer que ele se apresenta relativamente ao fato

tributário como um fato complementar, no sentido que a

esta expressão reservou Carnelutti: um fato previsto na

lei, que se reporta a uma situação jurídica anterior, com

vista a introduzir-lhe um elemento novo, que pode ser de

paralisação, mas que também pode ser de reforço. Se no

primeiro caso podem incluir-se os fatos impeditivos,

como as isenções, o lançamento – seja qual for a sua

função concreta – integra-se necessariamente no

segundo”.29

(grifo nosso)

29

Alberto Xavier, idem, pág. 562.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

51

Ora, sob este prisma, como se pode avaliar a

conduta do contribuinte como supressora ou redutora de

um tributo antes que ele se torne exigível? Como se pode

afirmar haver afetação da arrecadação tributária sem que

exista crédito em favor do Estado? Como se pode afirmar

que a obrigação tributária é o bem jurídico protegido de

forma imediata se a arrecadação tributária pode não ser

afetada mesmo existindo obrigação tributária, como nos

casos de isenção?

Não há dúvida que o sistema adotado em

nosso país faz nascer a obrigação tributária com a

ocorrência do fato gerador, porém isto não é suficiente

para tornar o crédito tributário decorrente da obrigação

exigível, o que somente ocorreria com a constituição do

crédito pelo ato de lançamento.

Assim não fosse, estaríamos diante de uma

situação inusitada, em que o contribuinte isento

tributariamente poderia ser sujeito ativo de crime contra a

ordem tributária do artigo 1º da Lei 8.137/90, sem ser

devedor de tributo algum, mesmo sendo elementar do

tipo penal a supressão ou redução de tributo, pois que a

obrigação tributária nasce antes da isenção.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

52

Evidente, portanto, que isto não ocorre em

razão do princípio da ofensividade do bem jurídico,

porquanto para haver crime deve haver afetação direta ao

bem jurídico protegido, ou, ao menos exposição do

mesmo a perigo. Em outras palavras, dada a existência,

no tipo do artigo 1º da Lei 8.137/90 ou do artigo 168-A

do Código Penal, da descrição do resultado naturalístico

consistente na supressão ou redução de tributo ou no não

repasse à Previdência da contribuição descontada dos

segurados, temos que isto só ocorrerá com o lançamento,

porquanto em etapa anterior não temos débito tributário,

malgrado possa haver obrigação tributária.

Assim, dúvidas não podem haver quanto ao

bem jurídico protegido de forma mais imediata, ou seja, o

crédito tributário. Isso porque, protegida

progressivamente a função social do Estado prevista na

Constituição, a ordem Tributária e Previdenciária, a

arrecadação tributária, somente o crédito tributário do

Estado, se violado, atinge aos bens jurídicos

progressivamente mediatos, o que não ocorre, como

visto, com a obrigação tributária, que pode existir sem

que exista crédito, caso em que os bens jurídicos

mediatos não serão atingidos.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

53

5.2. O momento da constituição definitiva do crédito

tributário

Outra questão de extrema relevância é

definir qual o momento da constituição definitiva do

crédito tributário, porquanto antes deste momento não

existe exigibilidade do mesmo.

Assim leciona Hugo de Brito Machado:

'Outra divergência profunda diz respeito ao

momento em se deve considerar exercido o direito de

construir o crédito tributário. Segundo as diversas

correntes doutrinárias, esse momento seria:

(a) aquele em que o Fisco determinasse o montante a ser

pago e intimasse o sujeito passivo para fazê-lo;

(b) a decisão, pela procedência da ação fiscal, em

primeira instância administrativa;

(c) a decisão definitiva em esfera administrativa;

(d) a inscrição do crédito tributário como dívida ativa.

Para quem se situa na posição 'a', um

simples auto de infração seria o lançamento. Com a sua

lavratura estaria exercido o direito de constituir o crédito

tributário e, portanto, não se poderia mais cogitar de

decadência.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

54

Tal posição nos parece insustentável. O

lançamento, como vimos ao estudar a constituição do

crédito tributário, é procedimento administrativo

integrado em duas fases. A lavratura do auto de infração

é o encerramento apenas na primeira fase. Com a

impugnação formulada pelo sujeito passivo tem início a

fase litigiosa que é a segunda do procedimento

administrativo de lançamento.

O Tribunal Federal de Recursos orientou

suas decisões no sentido de que o auto de infração é

lançamento tributário, e não apenas início do

procedimento administrativo de lançamento. Essa

posição, todavia, não se concilia com a tese, também

adotada por aquele

Colendo Tribunal, de que a Administração,

quando tiver de fazer um lançamento tributário, há de

assegurar o direito de defesa ao contribuinte. A

oportunidade de defesa é obviamente posterior à lavratura

do auto de infração. Assim, ou o lançamento não se

completa com o auto de infração, ou se se completa, a

oportunidade de defesa não é essencial no lançamento.

Para os que se colocam na posição 'b' o auto

de infração ainda não seria um lançamento por lhe faltar

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

55

o pronunciamento de autoridade administrativa com

poder decisório, não tendo sido assegurado ao sujeito

passivo o direito de defender-se. Assim, com o

julgamento da impugnação em primeira instância estaria

suprida essa falta, completando-se o lançamento.

Também não nos parece que seja assim. Se a

própria administração fazendária ainda admite discutir a

exigência, é porque esta não está ainda perfeita, assentada

em bases definitivas, o que na verdade só vem a ocorrer

com o julgamento último, ou com a não interposição do

recurso no prazo legal. A fragilidade da posição 'b' se

revela sobretudo nos casos em que a decisão em primeira

instância seja contrária à Fazenda Pública e venha a ser

reformada, prevalecendo afinal a exigência.

Com efeito, acertada nos parece a posição

'c', pois somente quando a Administração, que é parte no

procedimento e é quem efetua o lançamento, não mais

admite discuti-lo, pode-se considerar consumado o

lançamento.

Consuma-se, pois, o lançamento:

1º) não havendo impugnação, com a homologação do

auto de infração;

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

56

2º) havendo impugnação e sendo a decisão primeira

favorável à Fazenda, se o sujeito passivo não recorrer;

3º) havendo recurso, com a decisão definitiva, favorável à

Fazenda.

Em resumo: o lançamento está consumado, e

não se pode mais cogitar de decadência, quando a

determinação do crédito tributário não possa mais ser

discutida na esfera administrativa”30

Comentando o art. 174 do CTN, assim se

expressa o Juiz Manoel Álvares:

'Em se tratando de crédito tributário, o art.

174 do CTN estabelece um prazo de 5 (cinco) anos, que,

escoado, acarreta a prescrição da ação de cobrança.

O dies a quo desse qüinqüênio é a data da

constituição definitiva do crédito tributário.

Para que o crédito tributário seja

considerado definitivamente constituído não basta a

existência do lançamento; do resultado desta atividade

administrativa, o sujeito passivo deve ser regularmente

notificado. Assim, o início do prazo prescricional se dá

com a notificação regular do lançamento.

30

Hugo de Brito Machado, Curso de Direito Tributário - 5ª ed.

- págs. 135⁄137.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

57

Não se pode olvidar, contudo, que a primeira

notificação ao sujeito passivo pode não se constituir no

marco inicial do qüinqüênio prescricional, pois, em

havendo apresentação de defesa e posterior recurso para a

instância administrativa superior, enquanto não for

proferida a decisão final, não transcorrerá qualquer prazo,

de decadência ou de prescrição. Nesse caso, o crédito

tributário somente estará definitivamente constituído com

a notificação da decisão final administrativa, que marcará

o dies a quo do prazo prescricional.”31

O Professor Ricardo Lobo Torres, diz com

precisão:

“O prazo da prescrição é de 5 anos contados

da constituição definitiva do crédito, isto é, da data

marcada para o pagamento no lançamento notificado ou

do decurso de 30 dias contados da decisão definitiva.

Inexiste prescrição intercorrente no processo tributário-

administrativo, o que significa que entre o lançamento e a

decisão definitiva não corre o prazo prescricional.”32

31

Manoel Álvares, Código Tributário Nacional Comentado,

Ed. Revista dos Tribunais, pág. 670. 32

Ricardo Lobo Torres, Curso de Direito Financeiro e

Tributário, 9ª ed., Renovar, pág. 269.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

58

Adotando a posição doutrinária e

jurisprudencial hodierna, o Superior Tribunal de Justiça,

na esteira do entendimento do Supremo Tribunal Federal,

passou a entender que o lançamento definitivo ocorre

com a notificação do contribuinte da decisão definitiva na

esfera administrativa e é neste momento que o crédito

tributário está definitivamente constituído, passando a ser

exigível. In verbis:

"TRIBUTÁRIO - DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO -

ICMS - TRIBUTO LANÇADO POR HOMOLOGAÇÃO

- LAVRATURA DE AUTO DE INFRAÇÃO.

1. A antiga forma de contagem do prazo prescricional,

expressa na Súmula 153 do extinto TFR, tem sido hoje

ampliada pelo STJ, que adotou a posição do STF.

2. Atualmente, enquanto há pendência de recurso

administrativo, não se fala em suspensão do crédito

tributário, mas sim em um hiato que vai do início do

lançamento, quando desaparece o prazo decadencial, até

o julgamento do recurso administrativo ou a revisão ex-

officio.

3. Somente a partir da data em que o contribuinte é

notificado do resultado do recurso ou da sua revisão, tem

início a contagem do prazo prescricional.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

59

4. Prescrição intercorrente não ocorrida, porque efetuada

a citação antes de cinco anos da data da propositura da

execução fiscal.

5. Datando o fato gerador de 1989, afasta-se a

decadência, porque lavrado auto de infração em 12⁄05⁄92.

Impugnada administrativamente a cobrança, não corre o

prazo prescricional até a decisão final do processo

administrativo, quando se constitui definitivamente o

crédito tributário, no caso 18⁄09⁄97. Tendo ocorrido a

citação válida em 09⁄06⁄99 (art. 174, I do CTN), não há

que se falar em prescrição. Afasta-se, ainda, a prescrição

intercorrente, porque não decorridos mais de cinco anos

entre o ajuizamento da execução fiscal e a citação válida.

6. Recurso especial provido." (RESP 485738⁄RO,

Relatora Ministra ELIANA CALMON, DJ de 13.09.2004

– grifo nosso)

Desta forma, resta claro que o crédito

tributário inicia sua constituição com a lavratura do Auto

de Infração ou da NFLD´s decorrente da ação fiscal e se

torna definitivamente constituída, ou seja exigível, no ato

de notificação do contribuinte da decisão irrecorrível na

esfera administrativa que julgou existente e exigível o

crédito tributário.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

60

5.3. Os efeitos da proteção penal do Instituto do

Direito subjacente

Como visto anteriormente, não há

legitimidade a um sistema penal que proíba condutas

aleatoriamente. A limitação do poder estatal de proibir

está na finalidade de proteção a bens jurídicos.

Ademais, não se pode olvidar que o Direito

Penal visa proteger valores constitucionais que encerram

bens jurídicos de ramos subjacentes, como sói ocorrer

com o Direito Tributário e Previdenciário.

Destes ramos do Direito o legislador penal,

para proteger a função social do Estado, tutelou a

arrecadação que possibilita o desempenho da referida

função. À vista da característica da progressividade do

bem jurídico, esta arrecadação está vazada no instituto do

Direito Tributário conhecido como crédito tributário.

Destarte, à luz do princípio da ofensividade,

somente as condutas que lesem o crédito tributário

podem ser consideradas penalmente relevantes. Este fato

por sua vez somente ocorre quando o crédito tributário é

definitivamente constituído pelo lançamento que se

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

61

aperfeiçoa com a decisão irrecorrível na esfera

administrativa.

Porquanto, o agente estatal incumbido de

fiscalizar o lançamento do crédito pelo contribuinte,

homologando-o ou não, é quem tem atribuição para

constituir o crédito tributário em caso de falha do

contribuinte no desempenho de suas obrigações

acessórias.

No entanto, o agente fiscalizador, ao

discordar do contribuinte e proceder ao lançamento de

ofício, precisa formalmente notificá-lo para que pague ou

impugne o ato de lançamento realizado pelo fiscal.

Uma vez impugnado o ato do fiscal, apenas

foi iniciado o lançamento do crédito tributário, o qual

somente se tornará definitivo com o julgamento

irrecorrível na esfera administrativa da impugnação e

eventuais recursos apresentados pelo sujeito passivo da

obrigação tributária.

Portanto, até o julgamento definitivo na

esfera administrativa do lançamento realizado pelo fiscal,

não há fato típico na esfera penal, porquanto ainda não

existe crédito tributário, que é o bem jurídico protegido

pela norma penal, seja dos tipos penais da Lei nº

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

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8.137/90 (artigos 1º e 2º), seja dos tipos do artigo 168-A

do Código Penal.

5.4. A prejudicialidade da discussão sobre a existência

do crédito tributário

Outra questão importante a ser tratada é a

que diz respeito à prejudicialidade da questão subjacente

Tributária. É que a análise da existência do crédito

tributário prejudica a análise da violação da norma penal

que o protege.

Fernando da Costa Tourinho Filho define

questão prejudicial assim:

“Florian define a prejudicial como sendo

uma questão de Direito cuja solução se apresenta como

antecedente lógico e jurídico da de Direito Penal objeto

do processo, e versa sobre uma relação jurídica particular

e controvertida. Para Manzini, a questão prejudicial é

toda questão jurídica cuja solução constitua um

pressuposto para a decisão da controvérsia principal

submetida a juízo (cf. Trattato, cit., v. 1, p. 246). (...)

Por questão prejudicial entende-se toda

questão de valoração jurídica, seja de Direito Penal, seja

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

63

Extrapenal, que deve ser decidida antes da questão

principal – chamada, por isso mesmo, prejudicada.”33

É evidente, portanto, que a discussão quanto

à existência do crédito tributário implica na existência ou

inexistência do crime que o viola, porquanto se o crédito

não existir, evidentemente ele não pode ter sido violado.

Desta forma, enquanto sua existência estiver

sendo discutida, temos uma questão prejudicial aos

crimes tributários e previdenciários que o tem como bem

jurídico protegido.

De outro lado, importa distinguir o momento

em que o crédito tributário foi constituído, mas sua

existência está sendo discutida, do momento em que ele

sequer foi constituído.

É que, como visto, antes do lançamento

definitivo na esfera administrativa o crédito tributário

sequer foi constituído. Evidente que neste momento está

sendo discutida sua ocorrência, mas não há um ato formal

necessário à sua constituição que é o julgamento

definitivo do processo administrativo de lançamento do

crédito.

33

Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, v. 2, 25ª

edição, Saraiva, 2003, p. 538.

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

64

Por outro lado, após o lançamento definitivo

na esfera administrativa o contribuinte ainda pode

questionar sua existência por meio de processo judicial

de natureza desconstitutiva do crédito tributário. Neste

caso o crédito está constituído, mas sua existência está

sendo questionada.

Desta forma, enquanto não houver

constituição definitiva do crédito tributário na esfera

administrativa não há crime, ao passo que após a

constituição do crédito, a discussão judicial quanto à sua

existência é questão prejudicial.

5.5. A posição da jurisprudência brasileira

O Supremo Tribunal Federal mudou sua

posição no julgamento do Habeas Corpus nº 81.611 pelo

Tribunal Pleno em que foi relator o Ministro Sepúlveda

Pertence.

Vale dizer que sua posição, que somente não

foi acompanhada pelos Ministros Ellen Gracie, Ministros

Joaquim Barbosa e Carlos Britto, adota o entendimento

segundo o qual o processo administrativo em que se

discute a exigibilidade do crédito tributário é uma

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

65

“condição objetiva de punibilidade” do crime descrito

pelo artigo 1º da Lei nº 8.137/90.

Porquanto não trata a representação fiscal

para fins penais com condição de procedibilidade, nem

tampouco, como fizemos nas linhas acima, trata a

questão da constituição definitiva do crédito tributário

como bem jurídico de cuja existência depende o

lançamento definitivo decorrente da decisão proferida em

processo administrativo, mas condiciona a propositura da

ação penal ao lançamento definitivo, o qual trata como

“...condição objetiva de punibilidade ou um elemento

normativo de tipo...”, aduzindo argumento de ordem

pragmática segundo o qual é um direito do contribuinte

impugnar o lançamento, bem como efetuar o pagamento

e extinguir a punibilidade após o julgamento final do

processo administrativo de reconhecimento do crédito

tributário, o que deve se dar antes do oferecimento da

denúncia que, portanto, não pode ter sido oferecida ou

recebida antes do lançamento definitivo.

O Superior Tribunal de Justiça, bem como

os demais tribunais vêm seguindo esta orientação,

malgrado a aplicação deste entendimento aos crimes

contra a ordem previdenciária esteja sendo alvo de

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Teoria da Progressividade do Bem Jurídico Constitucional

66

intensos e acalorados debates, o que não se justifica,

como vimos acima, em se entendendo que o bem jurídico

protegido pelo dispositivo progrida da tutela das

prestações sociais pelo Estado, passando pela Ordem

Previdenciária, até a arrecadação das contribuições

previdenciárias, especificamente o crédito tributário de

natureza previdenciária, que somente se constitui pelo

lançamento definitivo na esfera administrativa.

Paradigmático foi o julgamento do Habeas

Corpus nº 82.397 – RJ, impetrado pelo autor deste

trabalho, no qual, a despeito da intensa discussão sobre o

assunto34

, entendeu o Superior Tribunal de Justiça que

assim como nos crimes contra a ordem tributária, o

processo administrativo em que se discute a exigibilidade

do crédito previdenciário também é condição objetiva de

34

Vale dizer que após o voto contrário do relator, ministro

Hamilton Carvalhido, o ministro Nilson Naves pediu vista e

votou pela concessão da ordem, tendo sido acompanhado pela

ministra Maria Thereza de Assis Moura. Em seguida o

Desembargador convocado Carlos Fernando Mathias votou

contra a concessão da ordem. Como o ministro Paulo Gallotti

não estava na sessão inaugural, o resultado de empate em dois

a dois terminou com a concessão da ordem.

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Antonio Eduardo Ramires Santoro

67

punibilidade do delito de apropriação indébita de

contribuição previdenciária.

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Comentado. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo.

_GOMES, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito

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Tribunais, 2004, São Paulo.

_REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed., 2ª tiragem,

Saraiva, 2002, São Paulo

_SALOMÃO, Heloisa Estellita. A Tutela Penal e as

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Tribunais, São Paulo, 2001.

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Rio de Janeiro