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1
RODRIGO DE ARRUDA IUNES SALOMINY
SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS: A ILEGALIDADE NA
INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO DESSE SERVIÇO
Monografia apresentada como exigência parcial para obtenção do título de bacharelado em Direito à banca examinadora da Faculdade Estácio de Sá, de Campo Grande – MS, sob a orientação da Professora Gislaine Esther Lubas Moreira Moura.
FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ
CURSO DE DIREITO
CAMPO GRANDE – MS
2014
2
FOLHA DE APROVAÇÃO
Bacharel: Rodrigo de Arruda Iunes Salominy
Monografia intitulada “Serviços públicos essenciais: a ilegalidade na interrupção do
fornecimento desse serviço”
Apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Bacharel de Direito.
À Banca Examinadora da Faculdade Estácio de Sá.
Monografia defendida e aprovada em _____/_____/________
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Orientador –
Faculdade Estácio de Sá
_________________________________________________
Membro –
Faculdade Estácio de Sá
_________________________________________________
Membro –
Faculdade Estácio de Sá
3
Dedico a presente monografia ao
meu pai, Jamil Iunes Salominy, que
faleceu há pouco tempo e não teve a
oportunidade de compartilhar esse
momento único, à minha mãe, Elaine
de Arruda I. Salominy, sempre
presente em minha vida, à minha
companheira Milena de Souza Lins e
ao meu futuro herdeiro, que ainda
está no ventre da minha companheira.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço em especial a minha orientadora, a professora Gislaine Esther
Lubas Moreira Moura, pela sua paciência e vontade em atender minhas solicitações.
5
EPÍGRAFE
“.... Os homens perdem a saúde
para juntar dinheiro, depois perdem o
dinheiro para recuperar a saúde.
E por pensarem ansiosamente no
futuro esquecem do presente de
forma que acabam por não viver nem
no presente nem no futuro. E vivem
como se nunca fossem morrer... e
morrem como se nunca tivessem
vivido.”
Dalai Lama
6
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo explanar sobre os serviços públicos,
especialmente os de caráter essencial e contínuo, verificando que na maioria das
vezes esses serviços fornecidos aos cidadãos são interrompidos de forma abusiva e
coercitiva, de forma ilegal, assim como demonstrar que o texto legal que autoriza tal
conduta é um texto inconstitucional, pois afeta o direito basilar do nosso
ordenamento jurídico e da democracia atual, que é a dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Serviço Público. Serviço Público Essencial e Contínuo. Ilegalidade.
Dignidade da Pessoa Humana.
7
ABSTRACT
This work aimed at explaining on public services, especially essential and
ongoing basis, verifying that most often these services are delivered to citizens
stopped the abusive and coercive, illegally, as well as demonstrate that the legal text
authorizing such conduct is an unconstitutional text as it affects the fundamental law
of our legal system and democracy today, it is the dignity of the human person.
Keywords: Public Service. Essential and Ongoing Public Service. Illegality. Dignity
of the Human Person.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1 SERVIÇOS PÚBLICOS 11
1.1 CONCEITO DOUTRINÁRIO 12
1.2 CLASSIFICAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS 14
1.3 SERVIÇOS PÚBLICOS – DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS 15
1.3.1 MOMENTO HISTÓRICO 15
1.3.2 PREVISÃO CONSTITUCIONAL DO SERVIÇO PÚBLICO 18
1.4 PRINCÍPIOS QUE REGEM O SERVIÇO PÚBLICO 21
1.5 FORMAS DE DELEGAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO 23
1.6 MONOPÓLIO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS – FORNECIMENTO DE ÁGUA, ESGOTO E LUZ 25
2 SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS 27
2.1 DEFINIÇÃO 27
2.2 A UTILIZAÇÃO DA LEI 7.783/89 PARA DEFINIR SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS 28
2.3 A NATUREZA ESSENCIAL E A FORMA CONTÍNUA DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS 30
3 INTERRUPÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS 35
3.1 INTRODUÇÃO 35
3.2 LEI 8.987 DE 13 DE FEVEREIRO DE 1995 36
3.2.1 BREVE COMENTÁRIO 36
3.2.2 ANALISANDO O ART. 6º § 3º, I da LEI 8.987/95 36
3.2.3 INTERRUPÇÃO DOS SERVIÇOS ESSENCIAIS COM PREVISÃO DO ART. 6º § 3º, II
LEI 8.987/95. 39
3.3 A LEI 8.078 DE 11 DE SETEMBRO DE 1990 (CDC) 40
3.3.1 RELAÇÃO DE CONSUMO 40
3.3.2 TAXAS, TARIFAS E PREÇOS PÚBLICOS 42
3.3.2.1 CONCEITO 42
3.3.2.2 A INTERRUPÇÃO DE UM SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL COM RELAÇÃO
AO NÃO PAGAMENTO DE TAXAS E TARIFAS 43
3.3.3 DA ILEGALIDADE NA FORMA DE COBRANÇA 45
3.3.3.1 BREVE COMENTÁRIO 45
3.3.3.2 DA ILEGALIDADE 46
3.3.3.3 DO CRIME 47
9
3.3.3.4 DA FORMA LEGAL DE COBRANÇA 49
3.4 DA LEI 11.445 DE 2007 E SUA PREVISÃO LEGAL PARA A INTERRUPÇÃO DO
SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL DE FORNECIMENTO DE ÁGUA 50
3.4.1 BREVE COMENTÁRIO 50
3.4.2 O ARTIGO 40, INCISO V DA LEI 11.445/07 E SEUS QUESTIONAMENTOS 51
3.4.3 DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 11.445/07 53
4 DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS 55
4.1 BREVE COMENTÁRIO 55
4.2 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 55
4.2.1 CONCEITO GERAL 55
4.2.2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O MÍNIMO EXISTENCIAL 57
CONSIDERAÇÕES FINAIS 59
REFERÊNCIAS 61
BIBLIOGRAFIA 62
10
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar o serviço público, quanto
a sua essencialidade e sua continuidade. Objetiva também demonstrar ser ilegal
quando tal serviço tem sua demanda interrompida ao cidadão.
Defende-se aqui a compreensão satisfatória do que vem a ser um serviço
público essencial, abrangendo-se também ao princípio da continuidade, sendo tais
conceitos decisivos e basilares da atuação da Administração Pública alcance seu
principal objetivo, que é o da realização do bem comum.
O trabalho estrutura-se em quatro capítulos, seguidos das considerações
finais.
O primeiro capítulo dedica-se a conceituação do que é o serviço público e
qual o papel do Estado, na função pública e nos serviços públicos, assim como sua
previsão constitucional e a influência dos princípios basilares da Administração.
Dedica-se também a explanação das formas de delegação do serviço público, bem
como o monopólio dos serviços públicos, principalmente quanto aos essenciais.
O segundo capítulo dedica-se exclusivamente à definição de serviço
público essencial, e da utilização da Lei 7.783/89 para definição do que vem a ser a
essencialidade em tal serviço, visto que carece de normatização específica ao tema.
Tratar-se-á também do princípio da continuidade, ou seja, da forma contínua com
que os serviços públicos essenciais devem ser prestados.
O terceiro capítulo tratará da Lei 8.987/95, lei essa que normatiza o
regime de concessão e permissão de prestação de serviços público por particulares.
Tratará também da problemática em torno da submissão do Estado, enquanto
prestador de serviços, às regras do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90,
e da forma com que são violados os artigos previstos em tal normatização. Por fim,
citar-se-á a Lei 11.445/2007 que prevê a interrupção do fornecimento de água,
serviço esse de caráter essencial, abrangendo alguns questionamentos a cerca do
assunto e defendendo a inconstitucionalidade de tal dispositivo.
No quarto e último capítulo, dedica-se às garantias constitucionais do
cidadão, discorrendo sobre o tema, bem como conceituação da dignidade da pessoa
11
humana em relevância ao assunto e seu mínimo existencial, encerrando assim com
as considerações finais.
O método de abordagem a ser utilizado será o dedutivo, partindo de
teorias e leis gerais a fim de alcançar conclusões lógicas a respeito do tema
proposto.
As técnicas de pesquisa utilizadas serão embasadas especialmente em
levantamento bibliográfico, em livros e artigos extraídos de revistas especializadas,
que analisadas deverão embasar a argumentação apresentada.
Em suma, espera-se que as questões que se apresentam, e a respeito
das quais será desenvolvido o presente trabalho, relativas a essencialidade e
continuidade dos serviços públicos, permitam compreender o real significado de tal
postulado, sempre com vista ao atendimento dos interesses do cidadão e a
permanente busca do bem comum por parte a Administração Pública.
12
1. SERVIÇOS PÚBLICOS
1.1 CONCEITO DOUTRINÁRIO
Existe entre os doutrinadores uma grande dificuldade em conceituar o
serviço público. Certamente tal dificuldade ocorre pelo modelo estatal
constitucionalmente adotado em concorrência com as necessidades da coletividade.
Fernando Herren Aguilar explica que: “(...) dos muitos conceitos
elaborados poucos se destinam a atender as necessidades práticas, mormente por
não possibilitarem a distinção entre os serviços públicos e outras atividades.”1
A noção do que é um serviço público sofreu várias alterações, pois sofre a
influência da evolução social, da globalização, das várias transições de regime
político, das variações econômicas, deixando para trás toda aquela noção de Estado
como desenvolvedor e prestador de serviços públicos para Estado cuja função é
delegar a iniciativa privada a prestação desses serviços, através de autorizações,
permissões e concessões. 2
Para para Helly Lopes Meireles, a conceituação de serviço público “(...) é
todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e
controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da
coletividade ou simples conveniências do Estado” 3.
Certo é que independente da conceituação que se destaque o serviço
público sempre será um serviço cuja atividade é primordial, necessária ao
desenvolvimento da sociedade, imprescindível à manutenção da dignidade da
pessoa humana e por isso, está o Estado, obrigado a desempenhá-lo.
Pode-se citar conceito de Celso Antônio de Bandeira Mello, que define
serviços públicos como:
(...)toda a atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob regime de Direito Público, portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo. (MELLO, 2004, p. 620)
1 AGUILLAR, Fernando Herren. Controle social dos serviços públicos. Ed. São Paulo. Max Limonad, 1999, p.111.2 CUNHA, Renato Alves Bernardo. Serviços Públicos Essenciais: O principio da continuidade e o inadimplemento do consumidor; Ed, 2004, Sergio Antonio Fabris, p 31 - 32.3 MEIRELES, Helly Lopes. Direito Administrativo Brasileiro; Malheiros, 24ª ed, São Paulo, 1999, p.299.
13
Na definição acima, deve-se destacar como elementos essenciais para a
caracterização do serviço público, o dever do Estado em prestar tal serviço como
forma de utilidade geral para a satisfação da coletividade, sendo sempre regulado
pelo mesmo, ou por quem ele o represente.
Partindo da premissa da equiparação de todo serviço público a uma
atividade estatal e dando complemento ao conceito de serviços públicos, Fernando
Herren Aguillar cita em sua obra que:
Serviço público é toda atividade cujo desempenho deve ser regulado, assegurado e controlado pelos governantes, porque o desempenho dessa atividade é indispensável à realização e ao desenvolvimento da interdependência social, que é de tal natureza que não pode ser assegurada completamente senão mediante a intervenção da força governante. (AGUILLAR, 1999, p. 119)
Importante ressaltar que em decorrência do regime jurídico traçado, a
titularidade dos serviços públicos, ainda que repassado a iniciativa privada, será
sempre do Poder Público. A delegação, por meio de concessão ou permissão se
restringe somente à execução dos serviços.
Em referência a natureza jurídica do serviço público, deve-se destacar
que o Estado atua de duas formas, sejam elas: a prestação de atividades que o
próprio sistema jurídico já o considera como público, portanto, próprias do Estado,
assim como as atividades que são próprias da iniciativa privada e o Estado intervém
em momentos excepcionais.
A observância ao regime jurídico permite que os conceitos elaborados
atendam às necessidades práticas, distinguindo assim as atividades econômicas,
sujeitas ao regime de direito privado, da de prestação de serviços públicos, como
prevê o Art. 173 da CF/88.
Quando se fala em dever do Estado, entende-se que a prestação de tais
serviços não é facultado ao Estado. Ele não tem só o dever, mas a obrigação de
assegurar, garantir e prestar todos os tipos de serviços públicos. Entende-se então,
que para a garantia do “bem estar” coletivo e garantia da dignidade de seus
cidadãos, ambos com previsão constitucional, cabem única e exclusivamente ao
Estado o oferecimento de tais serviços. A sua omissão gera consequências
irreparáveis na estrutura social. Para maior clareza das consequências de tal
omissão basta imaginar uma cidade sem hospital público, sem escolas públicas,
sem coleta de lixo, sem luz, sem rede de água e esgoto, sem transporte público.4 4 NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor, 6º Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 152
14
Agora imaginemos que para que todas as necessidades citadas sejam
supridas, o Estado, por meio de concessão a iniciativa privada, oferece todos esses
serviços tarifados. O serviço será oferecido, porém, serão poucos com condições de
usufruir.
Consolidado o entendimento do conceito de serviços públicos,
aprofundar-se-á o estudo nos serviços públicos essenciais. Para uma melhor
conceituação, deve-se ter clara a definição do que é um serviço de natureza
essencial e como se trata de serviço público essencial, ou seja, ligado as
necessidades básicas da coletividade, a forma contínua com que esse tipo de
serviço deve ser oferecido.5
1.2 CLASSIFICAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
Quando se fala em classificação dos serviços públicos, a doutrina ainda
não chegou a uma definição unânime. Adotar-se-á, considerando a abrangência dos
critérios utilizados, a classificação de Helly Lopes Meireles. O autor revela que de
acordo com a essencialidade, a adequação, a finalidade e os destinatários podem
classificar em: “públicos e de utilidade pública; próprios e impróprios do Estado;
administrativos e industriais; “uti universi” e “uti singuli” 6”
Definindo cada item da classificação do autor, pode-se dizer que quanto à
essencialidade, os serviços públicos são os que o Estado, reconhecendo a
essencialidade dos mesmos para a coletividade e para o próprio Estado, presta
diretamente, por meio de atos de império e medidas compulsórias, sem a delegação
de terceiros. Já os serviços de utilidade pública são os que o Estado, diante da
conveniência para os membros da coletividade, presta diretamente ou delega a
terceiros, lembrando sempre que o terceiro somente executará o serviço, sendo que
o controle e a regulamentação serão sempre do Estado.
Quanto à adequação, serão divididas em serviços próprios e impróprios
do Estado. 5 NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor, 6º Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1526 MEIRELES, Helly Lopes. Direito Administrativo Brasileiro; Malheiros, 24ª ed, São Paulo, 1999, p. 298.
Os serviços próprios serão aqueles que para sua execução, o Estado usa
de sua supremacia para com seus administrados, sendo que não cabe repasse da
15
execução dos serviços aos particulares. Nos serviços impróprios, são os que
satisfazem interesses comuns da coletividade, em razão disso os presta
remuneradamente por seus órgãos e entidades descentralizadas, ou repassa a sua
execução aos particulares.
No que se refere à finalidade, tem-se a distinção entre os serviços
administrativos e os industriais. Nos serviços administrativos, o Estado executa para
atender suas necessidades internas. Já nos serviços industriais, produzem renda
para que os prestem, sendo que o mesmo, por ser impróprio ao Estado, somente
pode ser prestado pelo mesmo quando necessários ao imperativo da segurança
nacional ou a interesse coletivo, conforme Art. 173 CF/88.
Destaca-se a última definição como sendo a mais importante para o
presente estudo, pois nela encontrar-se-ão elementos que farão com que o serviço
público esteja sob a égide do Código de Defesa do Consumidor. Tal classificação,
levando-se em consideração aos destinatários atingidos, divide-se em “uti universi” e
“uti singuli” que respectivamente gerais e individuais. O primeiro é aquele em que o
Estado presta o serviço sem um usuário determinado, atendendo a coletividade
como um todo. São serviços indivisíveis, ou seja, não são mensuráveis na sua
utilização e são mantidos por meio da arrecadação de tributos em geral. O segundo
já tem usuários determinados, utilização individualizada e mensurável, sendo que a
remuneração é proporcional à sua utilização, por meio de tarifa. Com relação a
tarifa, será tratada posteriormente em um tópico dedicado a este tema.
1.3 SERVIÇOS PÚBLICOS – DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS
1.3.1 MOMENTO HISTÓRICO
Para uma melhor compreensão da necessidade de previsão
constitucional no oferecimento dos serviços públicos para garantia de um bem estar
coletivo e promovendo a dignidade da pessoa humana, deve-se ter em mente que
tudo se passou por alguns momentos históricos e sociais.
Ao longo da história, o Estado assumiu variadas feições, em um processo
de transformação, com o escopo de se adequar à dinâmica social.
16
A Constituição Federal vigente foi promulgada em 1988, época em que se
vivia em um paradigma da luta existente entre o capitalismo e o comunismo.
Seguindo os moldes de vários países europeus, tendo como base os princípios da
liberdade e igualdade, surge a Constituição Federal atualmente vigente,
consubstanciada em uma Carta do “bem estar social”, ou seja, o Estado não pode
abster-se em prestar aos seus cidadãos seu dever social. Verifica-se claramente tal
assertiva quando em seu Art. 6º prevê: “São direitos sociais a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição.” Tendo, no período de sua elaboração uma desigualdade social
relevante à época, passa a prever em seu texto constitucional a prestação de
atividades ao cidadão, a fim de tornar sua vida com a mínima dignidade.
Com isso, abandona-se um conceito de Estado Liberal7 incutida na forma
política em épocas anteriores em que o mesmo era um mero guardião da ordem,
para um Estado preocupado em prestar e realizar o bem estar dos cidadãos. Em
síntese, a Constituição Federal de 1988 nasceu com intuito de garantir ao cidadão
suas necessidades sem a dependência apenas do mercado, da economia e sim
atribui ao Estado diversas competências, obrigando a Administração Pública a
desempenhar certas atividades que o Estado, considerando que tais atividades são
“atinentes a interesses integrados em sua esfera de ação própria”8 retira da iniciativa
privada e trás para si tal competência, ou seja, um dever poder9.
Contudo, percebe-se que pouco tempo após a promulgação da
Constituição Federal, em 1988, surge um novo fenômeno que passa a influenciar as
condutas políticas, econômicas e jurídicas do nosso país. Tal fenômeno denomina-
se neoliberalismo, onde o Estado retira atribuição estatal passando-as a particulares.7 O liberalismo é uma doutrina que se baseia na defesa das iniciativas individuais e que procura limitar a intervenção do Estado na vida econômica, social e cultural.8 MELLO, Celso Antônio Bandeira de.Privatização e Serviços Públicos.In Revista Trimestral de Direito Público. N° 22. São Paulo : Malheiros. 1998.9 ."Tendo em vista este caráter de assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no interesses de todos – e não da pessoa exercente do poder -, as prerrogativas da Administração não devem ser vistas ou denominadas como "poderes" ou como "deveres-poderes", Antes se qualificam melhor se designam como "deveres-poderes", pois nisto se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas inerentes limitações." (MELLO, 1998, p. 32)
O Estado estava em crise, impondo um novo modelo de gestão
administrativa visando à eficiência e a qualidade dos serviços a serem prestados.
Assim, implantou-se um modelo gerencial de Administração Pública, baseado na
regulação, redução dos custos e eficiência da administração quanto aos serviços
cabiam ao Poder Público10. Os países possuidores de altas dívidas começaram a se
17
dedicar a promoção do ajuste fiscal, a liberalizar o comércio, a privatizar e a
desregulamentar. Essa reforma tinha como finalidade reduzir o papel do Estado,
limitar suas funções como produtor de bens e serviços e, em menor extensão, como
regulador.
Em suma, o que realmente figurava era a incapacidade do Estado em
acompanhar as necessidades em investimentos na expansão do serviço público, já
que, de forma crescente, as demandas sociais requeriam tal investimento. O Estado
não suportou acompanhar essa demanda e com certeza não conseguiria sem entrar
em crise ou revelar de fato sua ineficiência. A solução encontrada pelo Estado, a fim
de não perder a titularidade, foi descentralizar a autoridade e delegar à iniciativa
privada a prestação dos serviços públicos, passando de provedor a regulador
Porém, com a reforma surgem duas preocupações: o de prover as
atividades tidas por essenciais à população, assim satisfazendo as demandas
sociais crescentes à época e também assegurar (normatizar) o funcionamento dos
serviços repassados a iniciativa privada, como revela Fernando Herren Aguilar: “A
consolidação dos centros urbanos fez crescer, por um lado, a pressão para prover a
população de serviços públicos e, de outro, para controlar os serviços que
eventualmente fossem delegados aos particulares.”11
Com isso, somente as atividades exclusivas do Estado, ou seja, as
atividades que garantem diretamente o cumprimento e financiamento das leis e
políticas públicas ficaram a cargo do Estado. Nessas atividades exclusivas estão as
que têm o controle exercido pelas agências reguladoras.
Cabe ressaltar que quando o Estado delega a prestação dos serviços
públicos a empresas particulares não significa a omissão em prestar o serviço, ao
contrário, a Constituição incumbiu ao Poder Público velar pela sua adequação e
efetividade social. Assim sendo, delega somente uma parte, que é a prestação dos
serviços. A normatização e a responsabilidade continuam sendo do Estado.10 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter. Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. 5ªed. Rio de Janeiro. Editora Fundação Getúlio Vargas. 2003, p. 28.11 AGUILLAR, Fernando Herren. Controle social dos serviços públicos. Ed. São Paulo. Max Limonad, 1999, p.196
Nesse sentido, Fernando Herren Aguillar cita que:
Diferentemente do regime das atividades econômicas, o Estado não pode se desvencilhar, ao menos no modelo constitucional atual, das atribuições de controle dos serviços públicos. Ou o Estado os desempenha diretamente ou os delega a particulares, hipótese em que, entendemos, não está livre para escolher se regula ou não essa prestação indireta dos serviços.12
18
É dever do Estado a prestação de serviços públicos, uma vez que busca
atender às necessidades essenciais da comunidade. O serviço público constitui
direito público subjetivo do cidadão e também é um instrumento de realização efetiva
dos direitos fundamentais sociais. A concretização dos direitos fundamentais está
intrinsecamente relacionada ao consumo de serviços públicos.
1.3.2 PREVISÃO CONSTITUCIONAL DO SERVIÇO PÚBLICO
Como mencionado anteriormente, as atuações Estatais estariam divididas
em dois campos básicos: as atividades próprias do Estado, que são os serviços
públicos, e aquelas próprias dos particulares, mas que, dadas determinadas
circunstâncias, poderia o Estado nelas intervir. Com isso, chegamos a duas searas
antagônicas em que o Estado pode atuar, quais sejam, o serviço público e a
atividade econômica. No direito brasileiro, tal divisão é evidenciada em nossa Carta
Constitucional. Oportunamente, podemos nos utilizar das palavras de Eros Roberto
Grau, que em sua obra diz que:
(...)a constituição aparta hialinamente os dois tipos de atividades, enunciando, no artigo 173, as atividades que são próprias dos particulares e que o Poder Público só pode intervir em casos específicos, e no artigo 175, definindo que cabe ao Poder Público a prestação daquelas atividades que são serviços públicos.(GRAU, 2001, P. 250)
12 AGUILLAR, Fernando Herren. Controle social dos serviços públicos. Ed. São Paulo. Max Limonad, 1999, p.237
Cabe destacar ser pertinente a citação do autor, considerando que no Art.
175 da Constituição Federal normatiza que compete ao poder público a prestação
de serviços públicos, caracterizando assim, certas atividades como “serviço público”,
retirando-as da esfera econômica que é de domínio em que se entra na seara da
dos particulares, de tal monta que o Art. 173 do mesmo texto constitucional “ordem
19
econômica”, ou seja, atividades próprias dos particulares, tendo interferência estatal
somente nos casos específicos elencados no próprio artigo.13
Quando citadas as searas antagônicas entre serviço público e atividade
econômica, percebe-se claramente na distinção dos dois referidos artigos que de um
lado estão previstas as atividades que o Estado deve desempenhar e em outro a
atividade econômica do particular, podendo sofrer influência do Estado somente em
algumas situações. A grande valia de tal diferenciação se dá pelo regime jurídico
específico na qual estarão regidas.
Já no Art. 21 da Constituição Federal são elencadas várias atribuições de
competência da União, seja ela com competência exclusiva ou mediante
autorização, concessão ou permissão. Dar-se-á destaque neste mesmo artigo, ao
inciso XII, alínea a a f. Nesse inciso, a Constituição Federal prevê explorar
diretamente ou mediante concessão, autorização ou permissão os serviços
elencados nas alíneas que se seguem.14
13 Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.Parágrafo único. A lei disporá sobre:I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;II - os direitos dos usuários;III - política tarifária;IV - a obrigação de manter serviço adequado.14 Art. 21. Compete à União:XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens;b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;
Quando o Estado transfere a exploração de um serviço público que é de
sua competência para a iniciativa privada, não está cometendo um ato ilegal. O
próprio texto constitucional garante tal ação. Porém, ilegalidade ocorre quando
concessionárias ou permissionárias de serviços públicos desrespeitam a lei,
principalmente quando envolvem garantias constitucionais previstas para o cidadão.
20
Mesmo não sendo o Estado quem diretamente oferece tal serviço, ele não deixa de
ser público. Sempre é válido lembrar, como prevê o Art. 175 da Constituição
Federal, que compete ao poder público a prestação de serviços públicos.
No Art. 22, inciso V da Constituição Federal, dispõe incumbir
privativamente a União legislar sobre os “serviços postais” e no Art. 24 prevê
competência concorrente para legislar sobre “custas dos serviços forenses”.
Encontramos também, com relação aos serviços públicos, o Art. 23 da
Constituição Federal, que prevê competência comum da União, Estados, Distrito
Federal e Municípios. O referido artigo é o principal dispositivo que prevê as
competências materiais, ou seja, de exercício de atividades comuns a todos os
Entes Federados, ou seja, que podem ser exercidas por todos eles, podendo ser
dividida em três grupos: atividades cujos benefícios se refletem indistintamente em
toda coletividade, de maneira inespecífica e indivisível15 , atividades de fomento16 e
atividades específicas e divisíveis, cujo benefício pode ser individualmente
identificado e quantificado17.
No Art. 30, em seu inciso V dispõe ser de competência dos Municípios
“organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os
serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem
caráter essencial” assim como no inciso VII que dispõe “prestar, com a cooperação
técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da
população”.
15 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;16 VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;17 IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;
Há na Constituição também uma série de referências aos serviços
públicos de saúde e à educação. Quanto ao serviço de educação, dispõe o Art. 205
serem “direito de todos e dever do Estado e da família”. Em relação ao dever do
Estado, tais deveres estão especificados no Art. 208.18
21
Ainda com relação aos serviços públicos elencados na Constituição
Federal, encontramos obrigação do Estado em relação ao desenvolvimento urbano
(Art. 182), à cultura (Art. 215), ao desporto e ao lazer (Art. 217), à ciência e à
tecnologia (Art. 218), ao meio ambiente (Art. 225), à proteção da família (Art. 226) e
à proteção dos índios (Art. 231).
1.4 PRINCÍPIOS QUE REGEM O SERVIÇO PÚBLICO
A Constituição Federal não traz expresso em seu texto constitucional,
porém, devem ser respeitados certos requisitos, e estes requisitos recebem título de
princípio, isso porque devem ser compreendidos em razão da determinação de que
um serviço público deve ser prestado de forma adequada, como prevê o Art. 175, IV
da CF/88 que determina: “A lei disporá sobre a obrigação de manter serviço
adequado”.
Quando o Estado, por meio de concessão ou permissão, repassa a
execução dos serviços aos particulares, a Lei 8.987/95 traz em seu texto o conceito
de serviço público adequado, além dos requisitos que devem ser seguidos, que são:
regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia
na sua prestação e modicidade nas tarifas.19
18 Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva universalização do ensino médio gratuito;III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.§ 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.§ 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.§ 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.
19 Art. 6º § 1o Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
A respeito da regularidade, deve ser observado o atendimento às regras e
condições que norteiam a prestação dos serviços por parte dos prestadores. Os
serviços devem obedecer aos padrões de qualidade e quantidade imposta pela
Administração Pública.20
22
Já na eficiência, está presente a relação da otimização na aplicação dos
recursos para o fornecimento dos serviços públicos, buscando sempre o melhor
resultado, onerando menos possível o consumidor cidadão, sempre sem qualquer
tipo de desperdício.21
Um serviço público seguro se garante quando não se põe em risco a
integridade física e emocional de quem quer que seja. Não se admite descuido ou
omissão na execução do serviço, assim como os equipamentos utilizados devem
estar em constante manutenção. As falhas ou defeitos técnicos devem ser
imediatamente reparados.22
Ser atual significa que os serviços públicos prestados devem estar de
acordo com as modernas técnicas de desenvolvimento, acompanhando sempre a
evolução tecnológica.23
A cortesia obriga a Administração Pública oferecer ao cidadão um
tratamento digno. A Administração Pública não faz um favor com o cidadão. É dever
do Estado a prestação de um serviço cortês, já que o tratamento urbano é um direito
do cidadão.24
A modicidade é aplicada quanto aos serviços públicos remunerados.
Impõe que as tarifas pagas pelo contribuinte sejam justas, já que teoricamente, o
serviço efetuado pelo Estado não visa lucro. O serviço é prestado para garantir o
“bem estar” e a dignidade do cidadão. A remuneração seria em tese, aplicada para
possível expansão da rede, permitindo seu melhoramento.25
20 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo; Saraiva, 9ªed, São Paulo, 2004, p. 284 – 287.21 Ibidem22 Ibidem23 Ibidem24 Ibidem25 Ibidem
Finalizando, tem-se o princípio da continuidade. Esse tema será o pilar na
estruturação deste estudo. Quando se fala em continuidade, significa dizer que a
prestação do serviço público não é passível de interrupção, em virtude da
importância (essencialidade) de tais serviços para a coletividade. O próprio regime
jurídico dos serviços públicos reserva à Administração poderes especiais para, se
necessário for, assumir imediatamente a posição de prestador em caso de
interrupção pelo concessionário, seja qual for o pretexto.26
23
1.5 FORMAS DE DELEGAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO
Diante de uma sociedade que todos os dias sofrem avanços, tantos
econômicos quanto tecnológicos, exigem um investimento cada vez mais intenso por
parte do Poder Público. Infelizmente o Estado, por falta de recursos ou falta de
capacidade na administração desses recursos, não acompanha essa demanda que
a estrutura social exige. Com isso, o Estado começa a repassar a titularidade e a
execução, ou somente a execução, dos serviços públicos, a terceiros, que se
incumbe de prestá-los à coletividade, dentro das condições fixadas em normatização
própria.27
Tal forma de descentralização no oferecimento de serviços públicos
constitui a delegação, ou seja, o Estado repassa a atividade que por essência seria
sua para outra pessoa jurídica, seja ela particular, pública ou governamental.
Então, a delegação pode ocorrer quando o Estado repassa a titularidade
e execução do serviço público para uma pessoa jurídica de direito público criada
para esse fim, sendo esta uma autarquia ou uma fundação, ou ainda repassar
somente a execução dos serviços para uma pessoa jurídica de direito privado, que
terá uma posição de concessionária ou permissionária, ou para uma instituída pelo
Estado, que terá uma posição de delegatária.28
26 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo; Saraiva, 9ªed, São Paulo, 2004, p. 284 – 287.27 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo; 9ªed, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 29628 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo; 9ªed, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 298
Percebe-se que a delegação para prestação dos serviços públicos,
consubstanciada a concessão ou permissão, para a iniciativa privada, somente sua
execução é transferida, mantendo sempre a titularidade do serviço sempre ao
Estado.
As formas de delegação estão previstas no texto constitucional, mas
precisamente no Art. 175 da CF/88 e reguladas pela lei 8.987/95, também
denominada de lei das permissões e concessões do serviço público.
Pode-se definir concessão do serviço público o particular que executa o
serviço em nome próprio, porém, agindo em nome do Estado, por sua conta e risco,
respeitando as condições contratuais e normativas fixadas ou podendo ser alteradas
24
unilateralmente pelo Poder Público. Remunera-se pela própria exploração do
serviço, mediante a cobrança de tarifas cobradas diretamente dos usuários do
serviço29. Tal delegação deverá ser sempre precedida de licitação, na modalidade
concorrência, e é possível somente quando o Estado considera o serviço público
como privativo e próprio do Poder Público; e, ainda, que sua prestação não seja
exclusivamente reservada a este. 30
Ao concessionário também é assegurado um equilíbrio
econômicofinanceiro, ou seja, um equilíbrio entre as obrigações e a remuneração do
concessionário, porém, a Administração, diante do desenvolvimento de uma política
social, determine tarifas menores, ou até mesmo, a gratuidade dos serviços e não
poderá negar justa retribuição do capital ao concessionário. Para que isso ocorra,
poderá prever que este se utilize de receitas alternativas, complementares,
acessórias ou projetos associados, conforme determina o Art. 11 da Lei 8.987/95.31
A permissão, também prevista na Lei 8.987/95, se diferencia da
concessão, por ser um ato unilateral, porém precário. Na permissão o Poder Público
também disponibiliza um serviço que é de sua competência à iniciativa privada, com
a possibilidade de cobrança de tarifas do usuário. Mas, quando em sua definição se
refere a precário, significa que o mesmo não se utiliza de tantos investimentos para
a execução do serviço.32
29 MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo; 13ªed, São Paulo, Malheiros, 2001, p.62230 Ibidem, p.62331 Art. 11 da Lei 8.987/95 – “No atendimento às peculiaridades de cada serviço público, poderá o poder concedente prever, em favor da concessionária, no edital de licitação, a possibilidade de outras fontes provenientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade das tarifas, observado o disposto no art.17 desta lei”. Parágrafo único. As fontes de receita previstas neste artigo serão obrigatoriamente consideradas para a aferição do inicial equilíbrio econômicofinanceiro do contrato.32 MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo; 13ªed, São Paulo, Malheiros, 2001, p.654
Como forma de repasse aos particulares na execução de um serviço,
encontramos também a modalidade autorização. Esta, por sua vez, somente será
denominada pública em face do interesse público na qual sua prestação estará
revestida. A modalidade autorização não está prevista na Lei 8.987/95 e também
não tem previsão constitucional.
A concessão, inegavelmente, é a forma mais usual de delegação de
serviços públicos, pois para o concessionário é uma forma de remuneração e para o
Estado uma forma de atingir sua finalidade, que é a prestação satisfatória do
serviço, pois com essa estabilidade pode se assegurar sua efetiva continuidade.
25
1.6 MONOPÓLIO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS –
FORNECIMENTO DE ÁGUA, ESGOTO E LUZ
O regime jurídico a qual as concessionárias e prestadoras de serviço
público estão submetidas é o de direito público, então se entende que está afastada
a aplicação de institutos oriundos de direito privado com relação à execução do
serviço por parte das concessionárias. Entenderemos então o porquê do não
cabimento de tal afirmação quando se trata do fornecimento de água e luz.
Quando se iniciou os processos de privatizações e concessões, reduzindo
assim o papel do Estado em investimentos nesses setores, pretendiam fazer com
que a comercialização dos serviços de água e luz se tornasse competitivas, assim
como ocorreu com a telefonia.
Contudo, ao tratar-se de empresas que fornecem os serviços água, luz e
esgoto não se encontram concorrência para tal serviço, ou seja, apenas uma
empresa concessionária fornecerá a água e o esgoto para o cidadão, assim como
somente uma concessionária fornecerá a eletricidade. Consequentemente não se
tem uma concorrência efetiva.
A esse fato, doutrinadores nominam como monopólio natural. Em sua
definição, tem-se que monopólio natural ocorre quando a atividade econômica a qual
se destina requer altos investimentos em maquinários, instalações, linhas de
produção e outros. Assim, com custos fixos elevados, não existe a viabilidade
econômica na entrada de um concorrente, que, para que se ingresse no mercado,
igualmente deverá incorrer nos mesmos custos elevados. Por esse fato, exige-se
por parte do Poder Público uma regulamentação mais intensa.33
Sem a devida concorrência, os monopólios naturais existentes na
prestação desses serviços ficaram consubstanciados em um regime de privilégios e
de exclusividade na sua prestação, ou seja, os serviços públicos serão,
necessariamente, objetos de privilégios exclusivos, quer o Estado preste
diretamente, quer delegue sua prestação.34
Como a concorrência prevista inicialmente não ocorreu, ficando os
serviços restritos a uma única opção de executora do serviço e com a demanda de
consumidores sempre crescente, os usuários não elegem livremente com quem irão
contratar.
26
Com a delegação na execução dos serviços repassada a iniciativa
privada teve como consequência ocasionar, na prática, a aplicação de institutos ora
de direito privado, ora de direito público. Importante ressaltar que em nosso
ordenamento jurídico, não há como um regime jurídico ser a um tempo privado e a
outro ser público para o desempenho de atividades que constituam serviço público.35
A consequência disso é a geração da que a maior parte dos conflitos
doutrinários e decisões judiciais, principalmente no que concerne a interrupção do
fornecimento dos serviços essenciais de água e luz, que geralmente afrontam não
só o Código de Defesa do Consumidor como também a própria Constituição
Federal.
33 Consulta do conceito no sitio: http://www.investionario.com.br/glossario/m/monopolio-natural-definicao-conceito-o-que-e/34 GRAU. Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 6ª ed. Malheiros. São Paulo. 2001.p.160.35 AGUILLAR, Fernando Herren. Controle social dos serviços públicos. Ed. São Paulo: Max Limonad, 1999, p.273.
27
2 SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
2.1 DEFINIÇÃO
Definir o que é um serviço público essencial não se torna fácil na medida
em que existem muitos estudos e doutrinas do que vem a ser um serviço de
natureza essencial.
Para o entendimento de Rizzatto Nunes acerca dos serviços públicos de
natureza essencial aponta que “todo serviço público, simplesmente por ser público,
possui natureza essencial.” ( RIZZATTO NUNES, 2007, p. 128)
A afirmativa do autor, mesmo se utilizando de poucas palavras e de
maneira generalizada, tem fundamento. Mas para que se possa chegar a essa
conclusão mencionada por ele, deve-se realizar um estudo mais profundo sobre
alguns conceitos.
Primeiramente, deve-se conhecer qual a definição de um serviço público
essencial.
Pode-se utilizar como definição o Art. 11 e o Parágrafo Único do mesmo
artigo da Lei 7.783/89 em complemento ao Art. 9º § 1º da CF/88:
Art. 11. Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Parágrafo único. São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
Define-se então que, nos serviços públicos essenciais, tais serviços se
tornam indispensáveis à coletividade, de modo que, na interrupção do mesmo,
incorrer-se-á em perigo iminente a sobrevivência, saúde e segurança da população.
O questionamento que pode surgir utilizando a definição do Art. 11 e
Parágrafo Único da Lei 7.783/89 é que se fala em serviços ou atividades essenciais,
porém, em nenhum momento se fala em “serviço público essencial”. Então como
pode ser sugerido que tal artigo trata de serviço público?
Propositalmente, quando foi tratado das previsões constitucionais dos
serviços públicos no capítulo anterior, não se elencou o Art. 9º §1º da Constituição
Federal.36 36 Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.§ 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
28
Isso porque no capítulo anterior tratávamos de “serviços públicos”. O
referido artigo também trata de “serviços públicos”, porém surge um detalhe
importante em tal serviço, que, além de ser público, ou seja, foca o atendimento do
bem estar da coletividade e torna a vida do cidadão mais digna, tem inserido em seu
contexto a “natureza essencial” que tal serviço possui.
2.2 A UTILIZAÇÃO DA LEI 7.783/89 PARA DEFINIR SERVIÇOS
PÚBLICOS ESSENCIAIS
A Constituição Federal em vigor, como mencionado até agora, trás
consigo um rol de serviços que o Estado deve cumprir para manter o bem estar
coletivo, oferecendo o mínimo para que se possa dizer que as garantias e direitos
sociais dos cidadãos estão sendo respeitadas, assim como sua dignidade está
sendo mantida.
Tais serviços, como denominados “serviços públicos”, garantem ao
cidadão o cumprimento ao que a Constituição Federal determina, incluindo garantias
e direitos fundamentais, direitos sociais, como por exemplo, quando no Art. 6º CF/88
prevê: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Percebe-se
tamanha importância de que os serviços públicos sejam realizados para com o
cidadão, já que a Carta Máxima das Leis, a Constituição Federal estabelece que o
Estado garanta ao cidadão viver dignamente.
Pertinente ressaltar que todos os serviços públicos são importantes,
porém, alguns são essenciais. Quando se dizem essenciais, pode-se afirmar que
caso não se realize ou interrompa tal serviço, abalaremos diretamente a estrutura
social ou familiar de um cidadão, podendo até mesmo colocar em risco a integridade
ou a sobrevivência do mesmo.
Não encontramos previsão constitucional por parte dos serviços de
natureza essencial. Encontramos sim, os serviços oferecidos pelo Estado, ou até
mesmo serviços de responsabilidade do Estado, porém repassado legalmente a
iniciativa privada. O questionamento acerca do assunto é de que como se pode
29
identificar dentre os serviços públicos previstos na Constituição Federal em vigor,
quais deles possuem natureza essencial, ou seja, quais desses serviços podemos
dizer que são serviços públicos essenciais?
O Art. 9º §1º da Constituição Federal prevê: “A Lei definirá os serviços ou
atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da
comunidade.” Partindo do que determina tal artigo, pode-se afirmar que a
Constituição Federal determinou que os serviços ou atividades essenciais fossem
definidos por legislação própria. Infelizmente a Constituição Federal não trata
expressamente de tal conteúdo, dada sua importância para com a coletividade.
Quando se trata de “serviços públicos essenciais”, já pela nomenclatura se vê a
importância e o quanto é essencial tratar de tal matéria. Vislumbrando o caput do
mesmo artigo, percebe-se a seguinte previsão: “É assegurado o direito de greve...”.
A Constituição Federal não previu quais os serviços denominados essenciais, porém
ao verificarmos quando o artigo se refere ao direito de greve, perceberemos que
determinados serviços, tidos como essenciais, mesmo garantido ao trabalhador o
direito de greve, não podem ser paralisados. Então pode-se afirmar, como
mencionado em parágrafos anteriores, que o serviço público com natureza essencial
deve ser contínuo. Com relação à continuidade dos serviços públicos, tratar-se-á
posteriormente.
Ainda relacionado ao Art. 9º juntamente com o §1º desse mesmo artigo
não especifica quais os serviços essenciais e determina que tal conteúdo seja
tratado em legislação própria. Atualmente, a única fonte legislativa que elenca todos
os serviços e atividades essenciais públicas, exercidas pelo próprio Estado ou
repassado à iniciativa privada na forma de permissão, autorização ou concessão
está na conhecida Lei da Greve, para ser mais exato, na Lei 7.783 de 28 de Junho
de 1989.
Nesta mesma lei, em seu Art. 10º, encontraremos um rol de atividades e
serviços que possuem natureza essencial.37 37 Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;II - assistência médica e hospitalar;III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;IV - funerários;V - transporte coletivo;VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;VII - telecomunicações;VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais;X - controle de tráfego aéreo;XI compensação bancária.
30
Nesta mesma lei, em seu Art. 11 estabelece que mesmo sendo a greve
um direito constitucional do trabalhador, que os serviços praticados por seus
agentes não sejam interrompidos. A paralisação pode ser feita, porém, tal
paralisação deve ser parcial e não total. A legislação entende que a paralisação total
desses serviços implicaria em risco iminente a sobrevivência, saúde e segurança da
população.38 Por se tratar de necessidade inadiável do cidadão e da coletividade,
podemos certamente afirmar que tais serviços devem ser ininterruptos, devem ser
contínuos. Para garantir a continuidade desses serviços, ditos essenciais, o Art. 12
prevê: “No caso de inobservância do disposto no artigo anterior, o Poder Público
assegurará a prestação dos serviços indispensáveis.”
Percebe-se, apreciando a Constituição Federal e a Lei 7.783/89 (Lei da
Greve) a preocupação do legislador em não permitir que a vontade de poucos
prevaleça sobre os interesses da maioria. Oportuno acrescentar sábio comentário de
Amadeu dos Anjos Vidonho Junior, quem seu Artigo diz que:
Tal norma sob o ponto de vista hermenêutico pode ser classificada tecnicamente como uma norma jurídica nacional, ou seja, que atinge a coletividade sem distinção, e, portanto, é autônoma no que pertine a referida matéria, podendo ser estendida a quaisquer casos ou condições que levem a interrupção de serviço de natureza essencial e não só nas greves (...)39
2.3 A NATUREZA ESSENCIAL E A FORMA CONTÍNUA DOS
SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
Após conceituação do que vem a ser um serviço público e quais os
serviços públicos previstos na Constituição Federal, chega-se ao tipo de serviço
público tido como essencial.38 Art. 11. Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.Parágrafo único. São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.39 Consulta realizada no sitio: http://jus.com.br/revista/texto/2505/da-continuidade-dos-servicos-publicos-essenciais-de-consumo#ixzz2T0FIurce
Mesmo sem maior relevância ao ser tratado pela nossa atual constituição
e de forma análoga definirmos seu conceito e quais são os serviços públicos
essenciais através da Lei 7.783/89 (Lei da Greve), pode-se categoricamente afirmar
que devido a sua importância, não existir uma legislação específica para tratar do
31
assunto abre um leque de opiniões e decisões satisfatórias ou não ao cidadão, já
que, por ser uma matéria pouco fundamentada juridicamente e não ter uma base
legal consistente utiliza-se muito da analogia.
Para que sua importância seja justificada, devem-se analisar
criteriosamente duas bases que norteiam o serviço público quando é tido como
essencial, que são: a sua natureza essencial e a forma contínua com que esses
serviços devem ser disponibilizados.
O serviço público, como destacado várias vezes, pode ser prestado de
forma direta ou indireta, ou seja, o Estado, assim como as Unidades Federativas, o
Distrito Federal ou Municípios podem diretamente exercer suas atividades para com
o cidadão ou de forma indireta, através da concessão, autorização ou permissão,
fazer com que tais serviços sejam oferecidos pela iniciativa privada, porém sempre
tendo em mente como prevê o Art. 175 CF/88 que independentemente da forma
com que o serviço público tenha sido repassado a iniciativa privada, cabe ao Poder
Público a prestação do serviço público.40
A relevância de tal conceito tem pertinência na medida em que no Código
de Defesa do Consumidor, Lei 8.078 de 11 de Setembro de 1990, em seu Art. 22
regra que: “Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a
fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais,
contínuos.” A importância de tal regramento fundou-se na impossibilidade de
prestadores de serviços públicos alegarem não estarem submetidas ao Código de
Defesa do Consumidor. 40 Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Quando a norma diz que “(...)órgãos públicos, por si ou suas empresas,
concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de
empreendimento(...)”, ou seja, toda e qualquer empresa pública ou privada, que por
via de contratação com a Administração Pública, forneça serviços públicos, o que
caracteriza a pessoa jurídica responsável na relação jurídica de consumo
estabelecida é o serviço público que ela está oferecendo e ou prestando.41 Tal
assertiva será abordada com maior relevância posteriormente, pois a relevância
para este tópico está na continuação do mesmo artigo, onde regra: “(...)são
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos
essenciais, contínuos.”
32
Percebe-se a obrigação do Estado, com relação aos serviços oferecidos,
que o mesmo seja adequado, eficiente e seguro.42 Essa disposição da norma
decorre do princípio constitucional estampado no caput do Art. 37 da CF/88.43
Quando se trata de eficiência, imagina-se que o serviço deva cumprir sua
finalidade concreta, ou seja, o indivíduo recebe o serviço público eficiente quando a
necessidade para qual ele foi criado é suprida concretamente. Logo, a adequação e
a segurança são características ligadas à necessária eficiência dos serviços
públicos. Percebe-se a preocupação do legislador com relação à eficiência do
serviço público, quando normatiza através da Lei 8.987/95, em seu Art. 6º, §§ 1º e 2º
que dispõe:
Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
§ 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço.
41 Para exemplificar o exposto, verifica-se o caso da decisão da 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo no agravo de instrumento interposto pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo — Sabesp. Nas razões do recurso do feito, que envolve a discussão a respeito de valores cobrados pelo fornecimento de água e esgoto (que o consumidor alega foram cobrados exorbitantemente), a empresa fornecedora fundamenta sua resignação "na não subordinação da relação jurídica subjacente àquela legislação especial (o CDC)". O Tribunal, de maneira acertada, rejeitou a resistência da Sabesp: "indiscutível que a situação versada, mesmo envolvendo prestação de serviços públicos, se insere no conceito de relação jurídica de consumo. Resulta evidente subordinar-se ela, portanto, ao sistema do Código de Defesa do Consumidor" AI 181.264-1/0, rel. Des. J. Roberto Bedran, j. 9-2-1993, v. u. RTJE 132/94.42 "O princípio da eficiência tem partes com as normas de 'boa administração', indicando que a Administração Pública, em todos os seus setores, deve concretizar atividade administrativa predisposta à extração do maior número possível de efeitos positivos ao administrado. Deve sopesar relação de custo-benefício, buscar a otimização de recursos, em suma, tem por obrigação dotar da maior eficácia possível todas as ações do Estado". (ARAÚJO, 1998, p. 235)Já Hely Lopes Meirelles disciplina que a eficiência é um dever imposto a todo e qualquer agente público no sentido de que ele realize suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. Em sua obra, demonstra que: "É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros." (MEIRELLES, 1987, p. 90)43 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência(...).”
Verifica-se, portanto, para que tenhamos um serviço adequado, impõe-se
a satisfação de algumas condições como, serviço regular, contínuo, eficiente,
seguro, atual, cortês, e com modicidade das tarifas, já com suas definições
anteriormente elaboradas.
Tais requisitos, igualmente intitulados como princípios, não estão
expressamente delineados no texto constitucional, contudo, podem ser
compreendidos em razão da determinação de que o serviço público prestado deve
ser adequado44.
33
Chega-se, então, ao aspecto principal que será tratado neste tópico, que
é a essencialidade do serviço que, conforme a determinação da norma no caput do
Art. 22 da Lei 8.078/90, que deve ser contínuo.
Impensável nos dias de hoje em uma estrutura social, analisando a
coletividade de uma maneira geral, a omissão por parte do Estado na segurança
pública, na assistência médica e hospitalar, assistência judiciária, assistência escolar
e por que não acrescentar a esse rol de necessidades os serviços de fornecimento e
tratamento de água e esgoto, o fornecimento de energia elétrica, a coleta de lixo
urbano etc. Quando tal afirmação é feita, tem-se a ideia de que todo serviço público,
independente qual seja, é essencial. Chega-se então ao conceito de Rizzatto Nunes
acerca dos serviços públicos de natureza essencial apontando que “todo serviço
público, simplesmente por ser público, possui natureza essencial.” ( RIZZATTO
NUNES, 2007, p. 128)
Chega-se, entretanto a um entrave doutrinário, pois o autor Rizzato
Nunes afirma que todo o serviço público possui natureza essencial partindo do
pressuposto de que todo serviço público, por ser público é essencial, então por que
a Lei 8.078/90 (CDC), em seu Art. 22 quando normatiza: “(..)são obrigados a
fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais,
contínuos.” revela que não são todos os serviços públicos que tem natureza
essencial e somente os serviços essenciais devem contínuos?
O próprio autor revela de forma simples a resposta para tal
questionamento partindo de dois pressupostos: o caráter não essencial de alguns
serviços e o aspecto de urgência que se percebe em alguns deles.44 Artigo 175, inciso IV da Constituição Federal – “A lei disporá sobre a obrigação de manter serviço adequado”.
O autor cita em sua obra que:
Existem determinados serviços, entre os quais apontamos aqueles de ordem burocrática, que, de per si, não se revestem de essencialidade. São serviços auxiliares que: a) servem para que a máquina estatal funcione; b) fornecem documentos solicitados pelo administrado, como por exemplo, certidões. ( RIZZATTO NUNES, 2011, p. 152)
Continuando com sua argumentação, o autor não minoriza a importância
na emissão de certidões quando afirma:
Claro que existirão até mesmo emissões de documentos cujo serviço de expedição se reveste de essencialidade, e não estamos olvidando isso. Por exemplo, o pedido de certidão para obter a soltura de alguém preso ilegalmente.” (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 153)
34
Percebe-se então, que quando se pressupõe o caráter não essencial em
alguns serviços quando analisados, deve-se verificar o caso concreto, que em
algumas situações revelará o quão é essencial a prestação de determinado serviço.
Entretanto destacou-se outro pressuposto que revelará a essencialidade
do serviço, quando se fala no aspecto de urgência. O mesmo autor cita a relevância
desse aspecto para caracterizar a essencialidade em um serviço:
Há no serviço considerado essencial uma perspectiva real e concreta de urgência, isto é, necessidade concreta e efetiva de sua prestação. O serviço de fornecimento de água para uma residência não habitada não se reveste dessa urgência. Contudo, o fornecimento de água para uma família é essencial e absolutamente urgente, uma vez que as pessoas precisam de água para sobreviver. Essa é a preocupação da norma. ( RIZZATTO NUNES, 2011, p. 153)
Quando tal serviço é revestido de urgência, afeta diretamente o cidadão,
pode-se afirmar que ele não pode ser descontinuado. O Código de Defesa do
Consumidor é taxativo, claro e não prevê exceções: os serviços essenciais devem
ser contínuos.
Pode-se reforçar tal afirmação no texto constitucional, já que a legislação
consumerista deve obediência aos vários princípios constitucionais que dirigem suas
determinações. Podemos citar o princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º,
III), da garantia à segurança e à vida (caput do Art. 5º), que tem de ser sadia e com
qualidade, em função da garantia e do meio ambiente ecologicamente equilibrado
(caput do Art. 225) e da qual decorre o direito necessário à saúde (caput do Art. 6º).
Em suma, não é possível garantir vida saudável, segurança, em um meio
ambiente equilibrado, respeitando sempre a dignidade da pessoa humana, se os
serviços públicos essenciais urgentes não forem contínuos.
35
3 INTERRUPÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
3.1 INTRODUÇÃO
Convém dedicar um capítulo deste trabalho exclusivamente para ser
tratado sobre o tema. É preciso ter ciência da base legal utilizada para que um
serviço público essencial seja interrompido por inadimplemento do consumidor.
Devido à abrangência que a prestação do serviço público atinge na esfera
social, limitar-se-ão futuras proposições, doutrinárias e legais, em parte do que
normatiza o Art. 10º, I da lei 7.783/89 quando trata de: “Art. 10 São considerados
serviços ou atividades essenciais: I - tratamento e abastecimento de água; produção
e distribuição de energia elétrica (...)”, serviço esse que é revestido de
essencialidade e com caráter de urgência. Não que os outros serviços tenham sua
importância minorizada, porém, certamente, os serviços acima citados fazem parte
do cotidiano popular e são utilizados diariamente pela grande maioria dos cidadãos.
Verificou-se anteriormente, a definição do que é um serviço público
essencial, assim como sua natureza essencial e a forma contínua com que esses
serviços devem ser oferecidos, baseado no caráter de urgência que revestem tais
serviços. Percebe-se também a preocupação do legislador em destacar a
continuidade de tais serviços, já que o não oferecimento ou a interrupção desses
serviços, que o legislador se refere como “necessidades inadiáveis” podem gerar
iminente perigo a sobrevivência, a saúde e a segurança da população. Mesmo com
a legislação prevendo que tais serviços devem ser contínuos, por que
constantemente são interrompidos? Qual a justificativa legal em se interromper o
fornecimento de água e luz de uma residência, por exemplo, no caso de falta de
pagamento?
Tentar-se-á elucidar tais questionamentos tecendo comentários com base
em doutrinadores renomados em relações de consumo, analisando a norma em que
se “permite” que tal interrupção seja efetuada, assim como a aplicação do Código de
Defesa do Consumidor para defesa de vários argumentos.
36
3.2 LEI 8.987 DE 13 DE FEVEREIRO DE 1995
3.2.1 BREVE COMENTÁRIO
Trata-se de uma Lei Ordinária sob o n. 8.987/95 que dispõe sobre o
regime de concessão e permissão de prestação de serviços públicos previstos no
Art. 175 da CF/88. 45
A importância em se criar um tópico exclusivamente para tratar da lei em
referência está simplesmente que é a referida lei a base “legal” utilizada para que se
possa promover a interrupção de um serviço público essencial.
Propositalmente destacamos o “legal”, pois analisaremos que na maioria
das vezes, juristas, de forma equivocada, manifestam-se contrários ao que a própria
lei determina, sejam por falha na interpretação ou até na falta de um estudo mais
profundo sobre a matéria. Perceberemos que a argumentação se procede quando
realizado uma análise pertinente a respeito do que determina a Lei em referência.
O estudo deste tópico se restringirá no Art. 6º § 3º, I e II da Lei 8.987/95,
que normatiza a descontinuidade do serviço público, prevendo da seguinte forma:
§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
3.2.2 ANALISANDO O ART. 6º § 3º, I da LEI 8.987/95
Iniciará a análise apreciando o Art. 6º § 3º, da Lei 8.987/95, que prevê: “§
3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em
situação de emergência ou após prévio aviso(...).”
45 Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Em uma rápida análise, já no início da leitura do referido parágrafo,
encontra-se a frase “não se caracteriza como descontinuidade do serviço”. Se o
37
legislador inseriu a palavra descontinuidade, certamente se trata da continuidade
dos serviços públicos, tema tratado de forma ampla neste trabalho. Tratando de
continuidade, pode-se afirmar então que se trata de um serviço público essencial.
Então, se tratando de um serviço público essencial, pode-se recorrer a Lei 7.783/89,
em seu Art. 11 e no Parágrafo Único que estabelece:
Art. 11. Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Parágrafo único. São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
Certamente surgirá, após a leitura do referido artigo, o seguinte
questionamento: Mas o Art. 11 e o Parágrafo Único não se referem à greve?
Para elucidação de tal questionamento, pertinente mencionar novamente
trecho do Artigo de Amadeu dos Anjos Vidonho Júnior, na qual comenta que:
“Tal norma sob o ponto de vista hermenêutico pode ser classificada tecnicamente como uma norma jurídica nacional, ou seja, que atinge a coletividade sem distinção, e, portanto, é autônoma no que pertine a referida matéria, podendo ser estendida a quaisquer casos ou condições que levem a interrupção de serviço de natureza essencial e não só nas greves, até porque, em sua própria ementa insculpe que "define as atividades essenciais", e não somente em situações de greve. Portanto deflui-se que a continuidade dos serviços denominados essenciais alcançam não apenas os casos em que há interrupção por motivo de greve, mas também, a quaisquer tipos de interrupção, seja por cobrança de dívidas ou por falta do próprio serviço, isto porque pela natureza essencial da prestação, presume-se o decréscimo ou ausência de qualidade de vida, de dignidade e por vezes da própria realização da cidadania, fundamentos a que se apóia a República Federativa do Brasil (artigo 1º da Constituição Federal de 1988).46
Em complemento a essa análise, pode-se destacar o Código de Defesa
do Consumidor, Lei 8.078 de 11 de Setembro de 1990, em seu Art. 22 regra que:
“Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou
sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços
adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.” Em nenhum
momento, no Código de Defesa do Consumidor, prevê exceções a continuidade dos
serviços públicos essenciais. Criteriosamente e expressamente prevê que os
serviços públicos essenciais devem ser contínuos, e caso ocorra a interrupção, além
46Trecho sitio http://jus.com.br/revista/texto/2505/da-continuidade-dos-servicos-publicos-essenciais-de-consumo#ixzz2T0FIurce
38
da obrigatoriedade em restabelecer o serviço interrompido, ficam as pessoas
jurídicas responsáveis pela prestação do serviço a responsabilidade de indenizar
caso ocorra algum dano.47
Porém a Lei 8.987/95 prevê que ocorra a interrupção dos serviços
essenciais, quando em seu Art. 6º, § 3º, I prevê a possibilidade de interrupção do
serviço público em situação de emergência por motivo de “ordem técnica ou de
segurança das instalações”.48
Anteriormente tratou-se da questão em que os órgãos públicos são
obrigados a disponibilizar serviços “adequados, eficientes, seguros”. Teceram-se
também comentários ao princípio da eficiência, previsão essa constitucional. Vale
lembrar um trecho da obra de Hely Lopes Meirelles que precisamente disciplina que:
“a eficiência é um dever imposto a todo e qualquer agente público no sentido de que
ele realize suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional.”
(MEIRELLES, 1987, p. 90) Estranhamente, quando a Lei 8.987/95 se refere a
“ordem técnica ou de segurança das instalações” pode-se supor que o Estado está
se furtando do seu dever em ser eficiente. Pode-se dizer então que tal previsão está
contrária a uma previsão constitucional, quando se refere ao princípio da eficiência?
Rizzatto Nunes, em trecho de sua obra, nos ensina que:
Essa norma é de constitucionalidade duvidosa. Em primeiro lugar ela apenas constata que certas situações de fato podem ocorrer, mas não deviam (razões de ordem técnica e segurança das instalações que gerem a interrupção), e tais situações, ainda que, eventualmente, venham a surgir, significam interrupção irregular do serviço público, aliás em clara contradição com o sentido de eficiência e adequação. Afinal, problema técnico e de insegurança demonstra ineficiência e inadequação. (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 154)
47 Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.48 “§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações;”
3.2.3 INTERRUPÇÃO DOS SERVIÇOS ESSENCIAIS COM PREVISÃO
DO ART. 6º § 3º, II da LEI 8.987/95
Outra forma de interrupção dos serviços públicos essenciais está previsto
no Art. 6º § 3º, II da LEI 8.987/95 que prevê: “§ 3o Não se caracteriza como
descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após
39
prévio aviso, quando: II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da
coletividade.”
Quando afirmou-se anteriormente que na maioria das vezes, juristas, de
forma equivocada, manifestam-se contrários ao que a própria lei determina, sejam
por falha na interpretação ou até a falta de um estudo mais profundo sobre a
matéria, certamente se refere ao inciso II acima citado.
Nesse inciso, permite que o serviço essencial seja interrompido
inadimplemento do usuário, considerando o “interesse da coletividade”. É nessa
frase final que devem-se concentrar os estudos.
Cabe uma ressalva, antes de iniciar tal análise, que não objetiva defender
maus pagadores, e muito menos tentando isentar pessoas com boas condições
financeiras de não pagar suas despesas com o fornecimento de água ou luz
mensalmente. Mesmo porque até nesses casos a interrupção dos serviços seriam
proibidos, já que existem diversas maneiras de cobrança e o CDC proíbe cobranças
coercitivas ou vexatórias. Rizzatto Nunes comenta em sua obra que:
(...)admitir-se-á o corte do fornecimento do serviço apenas após autorização judicial, se demonstrado no feito que o consumidor inadimplente, podendo pagar sua conta – isto é, tendo condições econômicas e financeiras para isso – não o faz. Afora essa hipótese e dentro dessa condição – autorização judicial –, o serviço não pode ser interrompido. (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 155)
Quando a norma diz em “interesse da coletividade” pode-se certamente
referir à fraude. Essa sim, afeta indiretamente o interesse da coletividade, pois como
sempre anunciado pelas concessionárias detentoras do serviço, o prejuízo causado
com a fraude é distribuído para os outros usuários. Questionável tal situação, porém,
nessa situação percebe-se que a coletividade está sendo prejudicada. Quando se
interrompe o serviço por inadimplemento do usuário, nesta situação, estará
colocando em risco a coletividade e o próprio usuário. Certamente uma residência
sem água tem uma grande chance de ser um foco de doenças, pois como pode-se
pensar em higiene sem água. As residências no entorno estariam em risco. Nesse
caso, percebe-se que o interesse da coletividade não é o de se ganhar uma doença,
então certamente interromper um serviço público essencial afeta de maneira direta o
interesse da coletividade. Por isso afirma-se que os juristas interpretam de maneira
equivocada o referido inciso.
A justificativa de diversos doutrinadores e juristas é de que existe um
direito de crédito por parte do fornecedor e o mesmo não pode ser obrigado a
40
prestar um serviço público se não efetuado o pagamento de taxas ou tarifas. Qual a
razão então que o legislador escreveu que os serviços essenciais são contínuos?
Encontra-se tal resposta nos textos de Rizzatto Nunes:
Se fosse para permitir que eles pudessem ser interrompidos em caso de inadimplemento, então não precisaria ter escrito. Bastava a redação do Art. 22 do CDC terminar no adjetivo “seguro”.
Em sendo assim, o prestador de serviço publico essencial poderia cortar o seu fornecimento, desde que existisse previsão contratual para tanto. Porém, a lei declara expressamente: serviço essencial é contínuo!
Por outro lado, se o legislador escreveu apenas para dizer que os serviços públicos são essenciais e contínuos, isto foi em vão, por que não é o Art. 22 do CDC que faz esse tipo de prestação ser essencial, mas sua própria natureza. (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 156)
Quanto ao não pagamento de taxas ou tarifas por parte dos usuários,
garantido assim o direito do fornecedor em interromper os serviços essenciais, o
mesmo autor responde de forma simples e oportuna:
Há milhares de cidadãos isentos de pagamentos de tributos e taxas, sem que isso implique a descontinuidade dos serviços ou qualquer problema para a administração do Estado.
Um bem maior como a vida, a saúde e a dignidade não pode ser sacrificado em função do direito de crédito (um bem menor).
É plenamente aceitável que seja fornecido ao cidadão um serviço público gratuito. Aliás, em última instância é essa a função do Estado, que deve distribuir serviços de qualidade e gratuitos a partir dos tributos arrecadados.
Aliás, se quem mais pode mais paga tributo, não há qualquer inconveniente em que aquele que não pode pagar pelo serviço público o receba gratuitamente, como já ocorre no atendimento hospitalar, na segurança pública, na educação etc. (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 156)
3.3 A LEI 8.078 DE 11 DE SETEMBRO DE 1990 (CDC)
3.3.1 RELAÇÃO DE CONSUMO
Não restam dúvidas de que quando o Estado disponibiliza os serviços
essenciais para seus cidadãos, tal relação se trata de uma relação de consumo, por
isso, regida pela Lei 8.078/90 ou simplesmente Código de Defesa do Consumidor.
No Art. 4º, ao elencar os objetivos da Política Nacional das Relações de
Consumo, prevê que será atendido o princípio da racionalização e melhoria dos
serviços públicos. Em seqüência, o Art. 6º, em seu inciso X, dispõe como direito
básico do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em
41
geral. Já no Art. 22 reforça a prestação adequada, eficaz e segura dos serviços
públicos e assegura a continuidade dos serviços públicos essenciais.
Encontram-se duas correntes quando se fala em relação de consumo, a
finalista e a maximalista. A corrente finalista aponta que o Código de Defesa do
Consumidor em o escopo de proteger aquele que é mais frágil na relação de
consumo, a parte verdadeiramente vulnerável, ou seja, aquele que consome para
uso próprio ou para sua família. Já a corrente maximalista entende que mesmo que
a pessoa adquira um produto e a utilize em sua atividade comercial, gerando lucro,
esta será protegida pelas normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor.
Utilizaremos a corrente finalista, assim sendo, o destinatário final na cadeia de
consumo do produto ou serviço.
Inicialmente, quando começaram a propor as primeiras ações com
relação a interrupção do serviço público essencial, a tentativa de argumentação por
parte das concessionárias era a de que a relação de consumo nesses casos não
teria regência sob a Lei citada, mas sabiamente foi pacificado que se trata sim de
uma relação de consumo, podendo utilizar os artigos dessa mesma lei como
argumentação jurídica.
Pode-se destacar decisão do TJ/SP como exemplo:
Decisão da 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo no agravo de instrumento interposto pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo — Sabesp. Nas razões do recurso do feito, que envolve a discussão a respeito de valores cobrados pelo fornecimento de água e esgoto (que o consumidor alega foram cobrados exorbitantemente), a empresa fornecedora fundamenta sua resignação "na não subordinação da relação jurídica subjacente àquela legislação especial (o CDC)". O Tribunal, de maneira acertada, rejeitou a resistência da Sabesp: "indiscutível que a situação versada, mesmo envolvendo prestação de serviços públicos, se insere no conceito de relação jurídica de consumo. Resulta evidente subordinar-se ela, portanto, ao sistema do Código de Defesa do Consumidor" AI 181.264-1/0, rel. Des. J. Roberto Bedran, j. 9-2-1993, v. u. RTJE 132/94.”
Quanto a Responsabilidade do Poder Público, os próprios autores do
anteprojeto da Lei 8.078/90, prevendo que tal situação poderia ocorrer, ou seja, a
tentativa de o Estado se exaurir da possibilidade de regência do Código de Defesa
do Consumidor escreve:
RESPONSABILIDADE DO PODER PÚBLICO – nos termos do Art. 3º do CDC49, as pessoas jurídicas de Direito Público – centralizadas ou descentralizadas – podem figurar no pólo ativo da relação de consumo, como fornecedoras de serviços. Por via de conseqüência, não se furtarão a ocupar o pólo passivo da correspondente relação de responsabilidade.” (CDC COMENTADO, 2005, p. 214)
42
Importante nesse momento dizer que a responsabilidade do Estado é
sempre objetiva 50 devido à Teoria do Risco Administrativo, independentemente se
quem execute o serviço é o próprio Estado ou algum ente que em nome dele
execute o serviço.
Então, não restam dúvidas da relação de consumo entre Estado e
cidadão consumidor é regido pelo Código de Defesa do Consumidor, tendo
relevância tal afirmação na medida em que utilizaremos os artigos que normatizam
essa lei para que se deixe claro a ilegalidade cometida quando se interrompe um
serviço público essencial.
3.3.2 TAXAS, TARIFAS E PREÇOS PÚBLICOS
3.3.2.1 CONCEITO
No texto do Código de Defesa do Consumidor, em seu Art. 3º § 2º, aponta
de forma ampla o serviço que será objeto de uma relação consumerista51, estando
inseridos os públicos. Na relação consumerista deve existir a remuneração, e no
caso do Poder Público, essa remuneração se faz na forma de taxas, tarifas e preços
públicos. Importante definirmos o conceito de cada forma de remuneração.49 Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.50 A responsabilidade objetiva é aquela em que basta a ocorrência do fato para imputar ao autor a responsabilidade pelo devido ressarcimento, isto é, não há a necessidade em se buscar a existência da culpa. Assim, a responsabilidade civil do Estado é sempre objetiva, ante a teoria do risco administrativo: a responsabilidade civil do Estado por atos comissivos ou omissivos de seus agentes, é de natureza objetiva, ou seja, dispensa comprovação de culpa.51 Artigo 3º, § 2º do Código de Defesa do Consumidor – “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”
3.3.2.2 A INTERRUPÇÃO DE UM SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL
COM RELAÇÃO AO NÃO PAGAMENTO DE TAXAS E TARIFAS
Como já comentado, um dos argumentos que se utiliza para que um
serviço essencial seja interrompido se baseia na perspectiva do não pagamento de
taxa ou tarifa referente ao serviço prestado.
Ada Pellegrini Grinover, em breve trecho de sua obra em relação aos
“serviços essenciais devem ser contínuos” destaca que:
43
(...)no sentido de que não podem deixar de ser ofertados a todos os usuários, vale dizer, prestados no interesse coletivo. Ao revés, quando estiverem em causa interesses individuais, de determinado usuário, a oferta do serviço pode sofrer solução de continuidade, se não forem observadas as normas administrativas que regem a espécie.(CDC COMENTADO, 2005, p. 215)
Em continuidade à sua indagação, afirma também:
A obrigação de pagar as contas de luz, água ou telefone não é tributária, pois trata-se de serviços prestados sob o regime de Direito Privado, remunerado por meio de preços públicos, ou seja, por meio das tarifas. (CDC COMENTADO, 2005, p. 215)
Cita inclusive trecho de um parecer de Eduardo Lima de Matos52 que
escreve: “(...) a gratuidade não se presume e que as concessionárias se serviço
público não podem ser compelidas a prestar serviços ininterruptos se o usuário
deixa de satisfazer suas obrigações relativas ao pagamento.” (CDC COMENTADO,
2005, p. 215)
Pertinente opinião do autor Rizzatto Nunes, em razão de tal afirmação,
que simplesmente questiona: “para que então o legislador escreveu que os serviços
essenciais são contínuos? Se fosse para permitir que eles pudessem ser
interrompidos em caso de inadimplemento, então não precisaria ter sido escrito.”
(RIZZATTO NUNES, 2011, p. 156)
E continua sua justificativa com os seguintes dizeres:
Se os prestadores de serviços públicos cortarem o fornecimento de energia elétrica, bem como água e esgoto, ales das perdas imediatas (comida se estragando na geladeira, riscos de acidente noturno no escuro com as crianças etc.), os direitos básicos daquelas pessoas passam a não supridos. Com isso, surge um problema de saúde pública. (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 157)
52 Parecer de Eduardo Lima de Matos, in Direito do Consumidor, vol. 5, ps. 202-205, além de Diógenes Gasparini, in Direito Administrativo, p. 149.
A necessidade do cidadão sobrepõe ao interesse do Estado quando a
autora indaga ao pagamento de tarifas. A amplitude do tema e suas consequências
não podem se restringir ao pagamento de tarifas, “É de se lembrar que a
determinação de garantia da dignidade, vida sadia, meio ambiente equilibrado etc. é
constitucional (...). É um direito inexpugnável a favor do cidadão consumidor.”
(RIZZATTO NUNES, 2011, p. 156)
Quando a autora se refere a preço (tarifa) não se deve esquecer que se
está tratando de um serviço público. “(...) o serviço público é um bem indisponível,
sendo prestado pelo Estado e seus agentes por força de lei. Tais agentes não
44
podem dispor do serviço público: são obrigados a prestá-los para atingir o interesse
público irrenunciável.” (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 159)
O entendimento da importância na prestação de um serviço público não
se compara a prestação de serviço por um particular. Não se está tratando, no caso,
por exemplo, de uma empresa contratada para elaborar um projeto de jardinagem
(onde se tem várias opções de empresas que prestam tais serviços), se trata de um
serviço na qual não se tem o critério de decidir por adquiri-lo ou não, pois, trata-se
de nossas necessidades básicas. Além do que, não tem-se opção de escolha na
empresa que prestará o serviço de fornecimento de água ou luz. Tornamos-nos
reféns da concessionária. “Nos serviços públicos a necessidade é de sua própria
natureza. De um lado o comando constitucional que determina sua prestação; de
outro, o usuário não tem possibilidade de escolher a negociação (...)”.(RIZZATTO
NUNES, 2011, p. 159)
O autor ainda cita trecho de Geraldo Ataliba: “Se o serviço é público, deve
ser desempenhado por força de lei, seu único móvel. O pagamento (...) é-lhe
logicamente posterior: é mera conseqüência; não é essencial à relação de
prestação-uso do serviço.” (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 159)
Oras, se a lei determina que tal serviço deva ser prestado, “com ou sem
pagamento do preço (tarifa), o Estado não pode eximir-se de prestar o serviço
público (...)”(RIZZATTO NUNES, 2011, p. 159)
Claramente, pode-se citar como serviços públicos prestados,
independentemente de pagamento, a coleta de lixo. Pagando ou não impostos,
taxas ou tarifas, o lixo deverá ser recolhido, pois tal serviço além de ser essencial e
contínuo, existe a garantia constitucional que reveste tal serviço, que envolve saúde
pública e o meio ambiente saudável e equilibrado.
Dessa maneira, não podemos justificar a falta de pagamento como
pressuposto para interrupção de serviço público essencial. Em nenhum momento
teve-se como objetivo exaltar que o consumidor não deva pagar sua conta. O
objetivo principal é relacionar o não pagamento ao “direito” que a concessionária
julga ter em interromper tal serviço. “Não se pretende simplesmente tirar-lhe o direito
de receber o quantum relativo ao fornecimento do serviço.” (RIZZATTO NUNES,
2011, p. 160), mas como se trata de uma relação de consumo regida pelo CDC, a
maneira com que essa cobrança deva ser efetuada deverá ser submetidas às regras
instituídas nesta normatização.
45
3.3.3 DA ILEGALIDADE NA FORMA DE COBRANÇA
3.3.3.1 BREVE COMENTÁRIO
Como existe uma relação de consumo entre o serviço público essencial
disponibilizado e o cidadão consumidor, deve-se atentar no regramento que prevê a
forma de cobrança realizada e a maneira ilegal com que a mesma é executada.
Resumidamente, qual o procedimento que se utiliza por parte das
concessionárias fornecedoras do serviço essencial, quando a mesma constata que o
usuário não efetuou o pagamento de tal serviço? A resposta é simples: sua
interrupção, ou seja, o corte do fornecimento.
Mas exaustivamente não foi exposto que tal serviço se trata de serviço
público essencial, e por ser essencial a lei prevê sua continuidade; e a mesma lei
que prevê sua continuidade não prevê exceções para sua descontinuidade; e por se
tratar de necessidades inadiáveis, quando não atendidas colocam em perigo a
sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, como pode então o legislador
deixar que se permita que essa interrupção seja realizada, já que se está violando o
bem estar coletivo, ferindo a dignidade humana do cidadão e afrontando a todas as
garantias constitucionais?
Incrivelmente, tudo isso é esquecido e o corte (interrupção) do serviço é
realizado. Como se não bastasse a afronta ao texto constitucional, a forma com que
a cobrança é feita vem contra as normatizações do Código de Defesa do
Consumidor. Para que se entenda com maior clareza tal assertiva, far-se-á um breve
estudo dos Artigos 42 e 71 da Lei 8.078/90 (CDC), que trata da forma da cobrança
de dívidas e também de condutas proibitivas para tal cobrança.
3.3.3.2 DA ILEGALIDADE
Por se tratar de uma relação consumerista, todas as condutas realizadas
pelo fornecedor do serviço público essencial para com o cidadão consumidor tem
46
amparo legal no CDC. O que se percebe é que na maiorias das vezes não é isso
que acontece. Quando se trata do fornecimento de água e luz, verificamos os
maiores abusos.
O Art. 42 da Lei 8.078/90 prevê: “Art. 42. Na cobrança de débitos, o
consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a
qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.”
Quando o cidadão não efetua o pagamento da conta, seja ela de luz ou
de água, qual o procedimento utilizado pelas concessionárias que fornecem o
serviço essencial: certamente virá um veículo de sua frota, com agentes
uniformizados para identificar a empresa que presta o serviço, retiram de sua viatura
os equipamentos necessários para realizar o corte, evidenciando para toda
vizinhança que o cidadão não pagou sua conta, por isso, não terá o serviço
disponível.
Tal procedimento não expõe o consumidor ao ridículo? Mas por sorte,
nenhum dos seus vizinhos presenciou o desligamento do serviço, então o cidadão
chega em sua residência, provavelmente cansado e precisando de um banho para
se higienizar, ou até mesmo limpar seu filho que está todo sujo, abre a torneira e
não sai uma gota de água. Então ele vai até seu vizinho e pede sua ajuda, que
simplesmente será de um balde de água. Tal situação não expõe o cidadão ao
ridículo?
A amplitude deste tema é muito maior que uma forma ilegal de cobrança.
Evidencia-se categoricamente a possibilidade de ferir a integridade moral de uma
família, da possibilidade de ferir a dignidade de um pai e uma mãe que não vai ter
como explicar para um filho o porquê o Estado, que garante a todo cidadão vida
digna, saudável e segura, a impossibilidade de se tomar um banho, ou ter uma água
gelada para se beber, ou ver o leite do seu filho estragando dentro de uma
geladeira. Por isso é sempre reforçada a amplitude que pode alcançar esse tema.
Quando o Art. 42 expressa “(...) nem será submetido a qualquer tipo de
constrangimento ou ameaça.” certamente, no momento do corte, o cidadão já foi
constrangido. E a ameaça? A resposta é simples. Quando se está com a conta
atrasada, na próxima fatura o usuário receberá um aviso: “constam débitos em
atraso. Caso não efetue o pagamento, o serviço será interrompido.” Percebe-se
claramente que a concessionária, de forma direta, lhe fez uma ameaça: “ou você
paga, ou você paga!” E se não pagar? Simplesmente não terá o serviço.
47
Verifica-se então que o procedimento de interrupção quando praticado
pelas concessionárias, está indo totalmente contra ao que a norma determina. E
incrivelmente, todo o Art. 42 cabe em tal situação. Por isso pode-se afirmar que o
corte (interrupção) de um serviço essencial, além de ir contra tudo o que foi
contextualizado, a forma com que é feita a cobrança fere diretamente o referido
artigo do Código de Defesa do Consumidor.
3.3.3.3 DO CRIME
Afirmou-se que o procedimento de interrupção de um serviço essencial,
além de ser uma conduta ilegal, inconstitucional pode-se dizer também que a forma
com que a cobrança é exercida entra na seara da prática criminosa.
Ao apreciar o Art. 71 da Lei 8.078/90, que normatiza:
Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer:
Pena Detenção de três meses a um ano e multa.
Poder-se-ia enriquecer com argumentos inúmeras páginas com relação ao que
expressa tal artigo. O Art. 71 é mais amplo que o Art. 42 e, em certo sentido,
complementa e esclarece o propósito da lei.
Para uma melhor compreensão da violação na cobrança que ocorre
quando um serviço essencial é interrompido, podemos exemplificar de forma
hipotética uma situação: João, marido de Ana, possui juntos dois filhos, um com dois
anos e o outro ainda de colo. João está há três meses desempregado e Maria
simplesmente é uma dona de casa. João é o provedor da família. Nesse período
desempregado, João não percebe nenhum tipo de renda, a não ser a pouca
economia que tinha. João então, sem muitas alternativas e perspectivas, estabelece
prioridades e a principal é a alimentação de seus filhos. A economia não é suficiente
para o pagamento de sua conta de água e nem da luz.
As concessionárias, que fornecem os serviços de água e luz, percebendo
a inadimplência de João, efetuam o corte dos serviços. João argumenta com o
agente que está efetuando o corte a sua atual condição financeira, mostra que tem
48
criança em casa e a situação sem água e nem luz seriam insustentáveis. O pouco
alimento que sobrara na geladeira iria estragar, seus filhos não teriam água para
beber, ou seja, como se trata de uma necessidade imediata, colocaria em risco a
sobrevivência, a saúde e a segurança de sua família.
Com essa situação podem-se chegar às seguintes conclusões: João
sofreu uma coação, pois a única opção dada a ele é que se pague a conta. Ou paga
para restabelecer o serviço, ou não o terá. “A coação é já em si o exercício de uma
ação (coação) contra a vontade do consumidor inadimplente.” (RIZZATTO NUNES,
2011, p. 628) Seria a mesma situação de uma loja que vende uma geladeira em dez
prestações. O cidadão deixa de pagar por qualquer motivo, então a loja vai a sua
residência, sem qualquer autorização judicial, resgata a geladeira e diz: “você só
terá a geladeira de volta de pagar”. Certamente, a loja citada está cometendo um ato
criminoso. E por que a concessionária, realizando tal procedimento, está praticando
um ato legal? Continuando com a exemplificação, a coação está evidenciada por
parte da concessionária. Mas João, com os serviços essenciais interrompidos, não
tem como fazer sua higiene pessoal nem de sua família. João nesse caso não está
sofrendo um constrangimento moral ou até mesmo físico? “ Enquadram-se nesse
caso de cobrança abusiva todas as práticas que expõe o consumidor inadimplente a
riscos a sua saúde e integridade física, bem como de seus familiares, e ou lhes
causem dor (aspecto moral)” (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 628)
Quando se trata se um serviço essencial, a essencialidade não deve se
restringir somente a conceitos doutrinários e jurídicos. Estamos falando do dia a dia
das pessoas. Quando se diz essencial, é por que, realmente, se trata de algo
essencial.
3.3.3.4 DA FORMA LEGAL DE COBRANÇA
Verificou-se que quando um serviço essencial é interrompido, gera-se
uma cadeia de ocorrências abusivas, tanto no momento da interrupção, quanto no
momento da cobrança. A cobrança, nesse caso, que se inicia no momento em que
se atrasa uma fatura, com o aviso de ameaça de suspensão, até o momento da
interrupção (corte) do serviço, sempre de maneira ameaçadora, constrangedora.
49
A cobrança, quando respeitada a normatização do Código de Defesa do
Consumidor, é legal e é um direito que o fornecedor tem de receber seu crédito. “A
cobrança não pode ser abusiva (...), uma ameaça ilegal de cobrança é a do corte do
serviço essencial. E pior: o corte efetivo com o intuito de forçar o consumidor
inadimplente ao pagamento é uma concreta violação.” (RIZZATTO NUNES, 2011, p.
160)
Ademais, existem várias formas legais de se receber um crédito. O que
não pode ser admitido é que para tal recebimento, as concessionárias rasguem as
legislações vigentes para recebimento de seu crédito.
O autor Rizzatto Nunes afirma que a suspensão do serviço essencial é
cabível somente por um motivo: “(...) é ele propor uma ação judicial para cobrar seu
crédito e nessa ação comprovar que o consumidor está agindo de má-fé ao não
pagar as contas (...). Com isso, salva-se o sistema jurídico, respeita-se o consumidor
e garante-se o direito do credor.” (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 160)
Para concretização das afirmações realizadas até o momento, importante
ressaltar decisão do STJ, citada por Rizzatto Nunes onde:
(...) acertadamente, já decidiu que o fornecimento de água, por se tratar de serviço público fundamental, essencial e vital para o ser humano, não pode ser suspenso pelo atraso no pagamento das respectivas tarifas, já que o Poder Público dispõe dos meios cabíveis para a cobrança dos débitos dos usuários.
Essa foi uma decisão unânime da 1º Turma do Superior Tribunal de Justiça, que rejeitou o recurso especial da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento – Casan contra o pescador A.M.P.
Segundo o pescador, em julho de 1997, o barraco de madeira em que morava com a família incendiou-se e todos os móveis foram destruídos, não podendo nada ser recuperado. E, por isso, devido às dificuldades financeiras, atrasou o pagamento das contas de água à Casan.
A esposa de A., M.T.P., foi ao escritório da companhia para pedir o parcelamento da dívida, pois não teriam condições de pagar a quantia à vista. O pescador estava reconstruindo a casa com a ajuda da comunidade local, e não poderia ficar sem água. O representante da Casan não atendeu o pedido de M. Então, o pescador, que trabalhava na Prefeitura de Piçarras – SC, na qual recebia um salário de R$ 200,00 reais, entrou com mandado de segurança contra a empresa.
A primeira instância acolheu o pedido de A.M.P. A Casan, então, apelou ao TJ/SC, tendo sua apelação rejeitada. Inconformada, a companhia entrou com recurso especial no Superior Tribunal de Justiça alegando que o fornecimento de água constitui um serviço remunerado por tarifa, e que deve ser permitida sua interrupção no caso de não pagamento das contas.
O Ministro Garcia Vieira, relator do processo, disse, muito corretamente, que a Companhia Catarinense de Água “cometeu um ato reprovável, desumano e ilegal. É ela obrigada a fornecer água a população de maneira adequada, eficiente, segura e contínua e, em caso de atraso por parte do usuário, não poderia cortar seu fornecimento, expondo o consumidor ao ridículo e ao constrangimento, casos previstos no Código de Defesa do Consumidor. E que “para receber seus créditos, a Casan deve
50
usar os meios legais próprios, não podendo fazer justiça privada porque não estamos mais vivendo nessa época e sim no império da lei, e os litígios são compostos pelo Poder Judiciário, e não pelo particular. A água é bem essencial e indispensável à saúde e higiene da população. Seu fornecimento é serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade, sendo impossível sua interrupção e muito menos por atraso no seu pagamento”53 (RIZZATTO NUNES, 2011, p. 162)
3.4 DA LEI 11.445 DE 2007 E SUA PREVISÃO LEGAL PARA A
INTERRUPÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL DE
FORNECIMENTO DE ÁGUA
3.4.1 BREVE COMENTÁRIO
A Lei nº 11.445/2007 é uma lei federal e cuida de tratar as diretrizes
nacionais de saneamento básico e das normas para a política federal de
saneamento.
Atualmente, entendem-se como ações integrantes do saneamento básico
no Brasil as seguintes: abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza
pública, incluindo todas as fases de manejo de resíduos sólidos domésticos.
Inúmeros são os casos de doenças diretamente ligadas à falta de
saneamento básico no Brasil. Dessa forma, há íntima ligação entre a saúde e bem-
estar do homem e o direito ao saneamento adequado, de modo a indicar que é
impossível falar em saúde sem discorrer a respeito do saneamento básico. Assim, a
solução para uma sadia qualidade de vida de nossos habitantes deixou de ser uma
questão apenas de saúde pública e ganhou contornos sociais.
53 REsp 201.112, publicado no site do STJ (27/4/1999)
Tal lei foi editada com o intuito de regular a prestação do serviço de
saneamento básico no país, incluindo também o fornecimento de água, e seus
principais aspectos, visando solucionar um antigo problema social das cidades
brasileiras.
A ressalva encontrada em tal dispositivo é o fato do mesmo prever a
interrupção do serviço público essencial, mais precisamente, o serviço de
fornecimento de água, previsto no artigo 40, inciso V.
Importante realizar-se um estudo sobre tal artigo, pelo simples fato de
estar diretamente em afronta ao princípio fundamental da dignidade da pessoa
51
humana, já que como mencionado, inúmeros são os casos de doenças diretamente
ligadas à falta de saneamento básico no Brasil e principalmente com relação ao não
fornecimento de água ao cidadão.
3.4.2 O ARTIGO 40, INCISO V DA LEI 11.445/07 E SEUS
QUESTIONAMENTOS
A questão que se coloca é no tocante à regularidade dos serviços de
saneamento básico, surgindo dúvida que sempre pairou na doutrina e na
jurisprudência a respeito da possibilidade ou não de cortes no fornecimento destes
serviços. Sobre o tema abordado importante destacar que a Lei nº 11.445/2007 tenta
pacificar o entendimento trazendo, em seu artigo 40, cinco situações autorizadoras
de interrupção dos serviços, dentre as quais se encontra aquela que se refere ao
corte por inadimplemento do consumidor.
Prevê o artigo 40, inciso V da lei 11.445/07:
Art. 40. Os serviços poderão ser interrompidos pelo prestador nas seguintes hipóteses:
V - inadimplemento do usuário do serviço de abastecimento de água, do pagamento das tarifas, após ter sido formalmente notificado.
§ 1º As interrupções programadas serão previamente comunicadas ao regulador e aos usuários.
§ 2º A suspensão dos serviços prevista nos incisos III e V do caput deste artigo será precedida de prévio aviso ao usuário, não inferior a 30 (trinta) dias da data prevista para a suspensão.
§ 3º A interrupção ou a restrição do fornecimento de água por inadimplência a estabelecimentos de saúde, a instituições educacionais e de internação coletiva de pessoas e a usuário residencial de baixa renda beneficiário de tarifa social deverá obedecer a prazos e critérios que preservem condições mínimas de manutenção da saúde das pessoas atingidas.
Tal previsão se torna incabível, pois como abordado anteriormente, entra
em total dissonância ao que preceitua o Código de Defesa do Consumidor. O
dispositivo que regula possibilidade de corte do fornecimento de água por
inadimplemento do consumidor é comentada por Luiz Henrique Antunes Alochio em
sua obra, nos seguintes termos:
e) Inadimplemento do usuário do serviço de abastecimento de água, do pagamento das tarifas, após ter sido formalmente notificado: não se pode usar o corte de fornecimento com coação para quitação de inadimplências. Se, por ventura, as faturas atuais estejam quitadas, não se pode suspender o fornecimento para coagir os pagamentos dos meses pretéritos. Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, Agravo de Instrumento n. 676.901 – RS, Rel. Min. José Delgado, que o corte de água potável pressupõe o inadimplemento de conta regular, relativa ao mês do consumo, sendo inviável, pois, a suspensão do abastecimento em razão de débitos
52
antigos, em relação aos quais a companhia deve utilizar-se dos meios ordinários de cobrança, não se admitindo qualquer espécie de constrangimento ou ameaça ao consumidor, nos termos do art. 42 do CDC.54
Nesse mesmo sentido, torna-se oportuno citar decisão do Colendo
Tribunal de Justiça a respeito do tema:
Processo: AgRg no REsp 1074977 RJ 2008/0158909-7 Relator(a): Ministro CASTRO MEIRA Julgamento:01/10/2009 Órgão Julgador: T2 - SEGUNDA TURMA Publicação: DJe 14/10/2009 Ementa “ADMINISTRATIVO. ÁGUA. FORNECIMENTO. CORTE. DÉBITO ANTIGO. ILEGALIDADE.
1. É indevido o corte do fornecimento de água nos casos em que se trata de cobrança de débitos antigos e consolidados, os quais devem ser reivindicados pelas concessionárias por meio das vias ordinárias de cobrança, sob pena de infringir-se o disposto no art. 42 do Código de Defesa do Consumidor. Incidência da Súmula 83/STJ.
Além da dissonância ao Código de Defesa do Consumidor, podemos
categoricamente dizer que tal artigo viola de maneira direta preceitos e princípios
constitucionais, visto que os serviços de saneamento básico estão compreendidos
pela atual Constituição Federal como de natureza ambiental, dentre os bens de uso
comum do povo, considerados essenciais à vida digna dos cidadãos brasileiros.54 Direito do saneamento: introdução à lei de diretrizes nacionais de saneamento básico (Lei Federal n. 11.445/2007), pp. 107-108.
Mostra-se, assim, inconstitucional o texto do referido artigo 40, inciso V,
da Lei n° 11.445/07, tendo em vista que o corte do fornecimento de um serviço
essencial à vida digna está em flagrante afronta aos princípios constitucionais
consagrados, mais propriamente, o fundamental da dignidade da pessoa humana,
artigo 1°, inciso III, da CF.
3.4.3 DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 11.445/07
A dignidade da pessoa humana, que, nos termos do postulado de
Rizzatto Nunes, é o “primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o
último arcabouço da guarida dos direitos individuais”, constitui-se em verdadeira
linha mestra que deverá ser seguida no estabelecimento dos demais direitos
exigidos para que a pessoa viva na sociedade contemporânea, ao menos nos
53
padrões mínimos suficientes para a consecução de suas necessidades básicas e o
desenvolvimento de suas potencialidades.55
Nessa mesma seara, Ricardo Kling Donini, em artigo publicado a respeito
do tema, defende de maneira bem criteriosa a inconstitucionalidade deste dispositivo
legal.
“(...) embora seja um serviço que pressupõe remuneração do usuário, a ausência de água implica necessariamente na negação ao usuário de elemento essencial à vida, valor que transcende a esfera jurídica e constitucional. Ademais, a previsão constitucional (art. 1º, III) da dignidade da pessoa humana como fundamento de nosso Estado Democrático de Direito traz a importância que o legislador constitucional deu aos elementos que compõem tal dignidade. Com isso, entendemos que podem o Estado e seus prestadores de serviço se valer de todos os mecanismos legalmente possíveis para buscar o pagamento dos valores, como execução judicial, penhora de bens que não o de família, e busca de fraudes que escondam o patrimônio do usuário.
Todavia, não encontrados pelo Estado ou por seu prestador de serviços, bens que possam dar azo ao adimplemento das dívidas, não há suporte constitucional, a partir de uma interpretação sistemática e teleológica do texto constitucional, para se interromper o fornecimento de água ao usuário, exatamente por ser ônus do Poder Público a manutenção da vida e dignidade de seus cidadãos, caracterizando-se a inconstitucionalidade. O que consideramos relevante para a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de prestação de serviços, quando é o caso, é a previsão contratual de mecanismos de compensação ao prestador nos casos de inadimplência sem real capacidade patrimonial de pagamento. Seja por meio de compensações fiscais, seja por meio de recursos orçamentários, há diversos modos de se manter o equilíbrio dos contratos sem prejudicar o usuário desamparado financeiramente.”56
55 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana – doutrina e jurisprudência, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 45.56 DONINI, Ricardo Kling. Saneamento básico e a Lei nº 11.445/07 – comentários acerca da nova formatação legal. Revista Brasileira de Direito Ambiental, pp. 52-53.
De fato, a interrupção dos serviços de abastecimento de água,
considerados indispensáveis e essenciais à vida dos cidadãos não pode ficar à
mercê de eventuais inadimplementos dos usuários, cabendo ao Poder Público
Municipal ou ao prestador dos serviços outros mecanismos jurídicos viáveis para a
resolução da inadimplência.
Os autores acima defendem a inconstitucionalidade do artigo 40, inciso V
da Lei n° 11.445/07. Admitir-se o corte do fornecimento de água, ainda que somente
no que tange a débitos atuais do consumidor, após sua devida notificação, é
consagrar um retrocesso no direito brasileiro violador da dignidade da pessoa
humana.
Não se pode admitir que os serviços de distribuição de água potável,
diante de sua essencialidade e imprescindibilidade para uma vida digna, cedam em
face da inadimplência do consumidor, ainda mais quando se consagra
constitucionalmente o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art.
54
1°, inciso III), estando a Lei n° 11.445/07, em flagrante inconstitucionalidade
material.
Enfim, a prestação dos serviços de saneamento básico é um dever do
Estado e das concessionárias, que deverão respeitar os princípios da universalidade
de acesso e regularidade da prestação, sem qualquer interrupção, cabendo a eles
buscar por todas as vias cabíveis judicialmente a cobrança dos débitos em aberto,
por se tratar da interpretação mais compatível com os fundamentos constitucionais
consagrados na República Federativa do Brasil.
55
4 DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS
4.1 BREVE COMENTÁRIO
A Constituição Federal de 1988 foi consubstanciada em uma Carta do
“bem estar social”, ou seja, o Estado não pode abster-se em prestar aos seus
cidadãos seu dever social. Verifica-se claramente tal assertiva quando em seu Art.
6º prevê: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”, ou seja, o
interesse do cidadão sobrepõe ao interesse econômico do Estado.
Pode-se evidenciar claramente o interesse do legislador em prol do
cidadão, quando essa mesma Constituição Federal recebeu o adjetivo de
“Constituição Cidadã”. O constituinte deixou clara sua intenção em conferir aos
princípios fundamentais o status de “normas embasadoras e informativas de toda a
ordem constitucional, inclusive (e especialmente) das normas definidoras de direitos
e garantias fundamentais.” (SARLET, 2011, p. 75). Ao contrário dos textos
constitucionais anteriores, que em seu conteúdo resguardavam ao Estado ser o
guardião da Ordem Pública, o texto constitucional vigente trouxe a proposta de
aproximação do Estado para com o cidadão, visto que era evidente e ainda é, a
desigualdade social.
A Constituição Federal de 1988 carrega em seu texto vários princípios
constitucionais, podendo assim destacar o princípio da dignidade da pessoa
humana, assim como garantia de segurança e direito a saúde, garantia de um meio
ambiente ecologicamente equilibrado e o direito a vida, sendo os mesmos
absorvidos pelo princípio da dignidade, como veremos a seguir.
4.2 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
4.2.1 CONCEITO GERAL
Prevista no Art. 1º, III da CF/88, pode-se dizer da sua importância na
medida em que o caput do artigo revela que a República Federativa do Brasil,
56
constituindo-se como Estado Democrático de Direito usa tal inciso, assim como os
demais, como fundamento.
A dignidade da pessoa humana ganha destaque na ordem jurídica
brasileira tendo em vista que concebe a valorização da pessoa humana como sendo
razão fundamental para a estrutura de organização do Estado e para o Direito.
Trata-se de uma imposição que recai sobre o Estado o dever para com o cidadão de
respeitá-lo, protegê-lo e de promover as condições que viabilizem a vida com
dignidade.
O princípio da dignidade da pessoa humana constitui o critério unificador
de todos os direitos diretos fundamentais. De um modo geral, ao se fazer uma
reflexão sobre a palavra dignidade no âmbito jurídico, vem a nossa lembrança
acerca da responsabilidade do Estado em assegurar que o indivíduo tenha as
condições mínimas necessárias para sua sobrevivência, sendo inclusive esta
finalidade prevista na Constituição Federal.
Ingo Wolfgang Sarlet propôs uma conceituação jurídica para a dignidade
da pessoa humana:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos. (SARLET, 2011, p. 73)
Com isso, mesmo que o direito a saúde, a educação, embora não sejam
originariamente fundamentais, adquirem o status daqueles no que concerne à
parcela mínima sem a qual a pessoa não sobrevive.
A previsão constitucional da dignidade da pessoa humana como
fundamento da república se torna ainda mais consagrada no sentido de garantir a
busca do Estado em proporcionar ao indivíduo condições para que se possa ter uma
vida digna, sendo, portanto, um fim e não um meio pelo qual o Estado atinge suas
finalidades.
Quando se fala de dignidade, fala-se do mínimo necessário ao cidadão e
claro, que quando falamos do mínimo, estamos consequentemente falando de
sobrevivência. Importante reportarmos ao que normatiza o Parágrafo Único da Lei
7.783/89, onde prevê: “Parágrafo único. São necessidades inadiáveis, da
57
comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a
sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.”, ou seja, como o próprio Ingo
Wolfgang Sarlet conceituou: “(...) um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma
vida saudável (...).”(SARLET, 2011, p. 73)
Embora haja uma preocupação significativa com os direitos fundamentais
no Brasil e com a valorização da dignidade da pessoa humana, na medida em que
estão tutelados e declarados no Texto Constitucional, infelizmente observa-se a
violação contínua dos referidos direitos e o aviltamento da dignidade humana.
Embasando tal afirmação, o autor Daniel Sarmento, em sua obra, afirma
que:
(...) o Estado tem não apenas o dever de se abster de praticar atos que atentem contra a dignidade humana, como também o de promover esta dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. O homem tem a sua dignidade aviltada não apenas quando se vê privado de alguma das suas liberdades fundamentais, como também quando não tem acesso à alimentação, educação básica, saúde, moradia etc. (SARMENTO, 2000, p. 71)
Nesse sentido, cabe dizer que hoje a dignidade da pessoa humana é um
dos fundamentos principais, senão o fundamento basilar do Estado Democrático de
Direito.
4.2.2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O MÍNIMO EXISTENCIAL
A dignidade da pessoa humana constitui valor máximo do ordenamento
jurídico, fundamento da República e corolário do Estado Social e Democrático de
Direito (art. 1º, III, da Constituição Federal).
Conforme ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet, o status jurídico-
normativo da dignidade da pessoa humana no âmbito de nosso ordenamento
constitucional é o de princípio ou valor fundamental. Portanto, a qualificação da
dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o
artigo 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também
e acima de tudo) uma declaração de conteúdo moral, mas que constitui norma
58
jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material,
e como tal, inequivocadamente carregado de eficácia, alcançando portanto, valor
jurídico fundamental.57
A dignidade da pessoa humana como fundamento da República constitui
o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democrática. Como valor jurídico
fundamental e alicerce do ordenamento, a dignidade da pessoa humana está
diretamente ligada aos direitos de personalidade, construindo uma verdadeira
cláusula geral de tutela da pessoa humana.
Entre os direitos da personalidade, um dos principais direitos
fundamentais é a vida, que somente se complementa com o atendimento das
necessidades existenciais mínimas condizentes com uma existência digna.
Neste contexto, o mínimo existencial, conforme Ingo Wolfgang Sarlet,
consiste em uma garantia fundamental às condições materiais que assegurem uma
vida com dignidade. De certo modo, a garantia efetiva de uma existência digna
abrange mais do que a mera sobrevivência física, situando-se assim, além da linha
da pobreza.58
Adalberto Pasqualotto leciona que:
“Transpondo a idéia de mínimo existencial para as relações de consumo, pode-se falar de um consumo básico como direito fundamental. Não apenas o direito à alimentação como pressuposto de saúde e sustento físico, mas incluindo o acesso a outros bens que atualizam o significado de direitos fundamentais.”59
Conforme Pasqualotto, não tendo havido no Brasil, a expressa garantia
constitucional do mínimo existencial, é a defesa do consumidor, tal como proposta
na Constituição, um dos suportes desse reconhecimento, tendo em vista o
reconhecimento amplo dos direitos do consumidor. Tendo por objeto toda aquisição
de produtos e toda prestação de serviços públicos, o Código de Defesa do
Consumidor se presta a tutelar bens e serviços essenciais a vida digna e saudável.
Desse modo, compensa as desigualdades do mercado, sendo instrumento de
garantia do mínimo existencial.60
57 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 72.58 Ibidem, p. 22.59 PASQUALOTTO, Adalberto. Fundamentalidade e efetividade da defesa do consumidor. Porto Alegre: In: Direitos Fundamentais e Justiça, n. 9, p. 69, out./dez. 2009.60 Ibidem, p. 69 e 70.
59
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A interrupção do fornecimento de um serviço público essencial, por
inadimplemento, gerou e continua gerando controvérsias na doutrina e na
jurisprudência. A jurisprudência do STJ há muito vem oscilando, em momentos
impedindo o corte e em outros o permitindo.
As teses apresentadas por ambas as correntes, tanto a que defende a
interrupção do fornecimento do serviço publico essencial, como a que o proíbe
veementemente, possuem fundamentos importantes. Para os que admitem, o
interesse coletivo, neste caso, se sobrepõem aos interesses individuais do
consumidor inadimplente, pois o custo seria socializado e a qualidade do serviço
cairia, frente à falta de recursos para investimentos de melhoria.
Na esfera oposta, considerando a fundamentalidade do serviço publico
essencial na promoção da personalidade da pessoa humana, baseado, portanto na
dignidade da pessoa humana, no mínimo existencial para uma existência digna, o
fornecimento do serviço não pode ser interrompido. Neste caso, haveria o direito
fundamental ao mínimo existencial que deveria ser amparado, inclusive nas relações
de consumo caracterizadas pelo fornecimento de serviços públicos. Esta parece ser
a solução mais adequada para o problema em questão, pois a ordem jurídica atual,
centrada na pessoa humana e na promoção da personalidade visa a tutelar as
necessidades essenciais do ser humano inclusive frente a interesses meramente
patrimoniais.
Mesmo nesses casos, o ordenamento jurídico impede os abusos, seja
praticados pelo consumidor, seja pelo fornecedor, devendo ser adotadas as medidas
proporcionais menos gravosas ao consumidor inadimplente. A interrupção de um
serviço publico essencial, nesses casos, configuraria medida extrema e
desproporcional. A via correta seria a cobrança do débito pelos meio judiciais
cabíveis.
Deve-se privilegiar a dignidade do cidadão que, na maioria das vezes, em
decorrência de sua precária situação financeira, deixa de pagar sua conta água, luz,
esgoto, ou qualquer outro serviço público essencial. Nesses casos, a interrupção do
fornecimento do serviço em razão do inadimplemento atentaria contra a dignidade
60
da pessoa e seu direito fundamental ao mínimo existencial pertinente a uma
existência digna.
61
REFERÊNCIAS
Referências Legislativas
Constituição
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, localizado
no sitio http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Leis
LEI Nº 8.987, DE 13 DE FEVEREIRO DE 1995, que dispõe sobre o regime de
concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da
Constituição Federal, e dá outras providências. Localizado no sitio
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm
LEI Nº 7.783, DE 28 DE JUNHO DE 1989, que dispõe sobre o exercício do direito de
greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades
inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. Disponível no sitio
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7783.htm
LEI Nº 8.078, DE 11 DE SETEMBRO DE 1990, que dispõe sobre a proteção do
consumidor e dá outras providências. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm
LEI Nº 11.445, DE 5 DE JANEIRO DE 2007, que estabelece diretrizes nacionais
para o saneamento básico; altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979,
8.036, de 11 de maio de 1990, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de
fevereiro de 1995; revoga a Lei no 6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras
providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2007/lei/l11445.htm
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