sobre capão pecado
Post on 20-Jan-2016
35 Views
Preview:
TRANSCRIPT
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
AS FRONTEIRAS DO DISCURSO LITERÁRIO NO ROMANCE CAPÃO
PECADO, DE FERRÉZ
Priscila Ferrari (PG-UPM- PIBIC CNPq)
Introdução
O final do século XX foi marcado por uma inovação na produção cultural brasileira.
As manifestações artísticas produzidas na periferia das grandes cidades começaram a se
destacar no cenário nacional e a provocar um impacto na mídia e nos meios editoriais.
Surgiu então no panorama das letras brasileiras, uma criação literária que incorporou
temas relacionados à periferia dos centros urbanos. Essas obras foram agrupadas sob a
nomenclatura de literatura marginal, que empreenderia uma luta com as palavras para
que a vida dos ditos excluídos sociais fosse contada por eles mesmos.
Dessa forma, apesar desses escritores se assemelharem a outros por causa da
temática, eles se diferenciam dos demais, pois são também atores dos cenários
representados em seus textos e, conseqüentemente, sujeitos marginais que estão
colocando suas experiências sociais na sua produção cultural.
Nesse panorama da literatura que trata da violência, feita por autores que nasceram e
cresceram em regiões onde as condições de vida são precárias, ou seja, são originários
das favelas das grandes capitais brasileiras, duas obras merecem destaque, são elas:
Cidade de Deus, do carioca Paulo Lins e Capão Pecado do paulista, Ferréz. Com a
mesma linguagem que se faz presente nas letras de “rap”, nos muros e na “boca do
povo”, esses escritores abordam temas como: miséria, desigualdade social e violência
urbana.
No corpus que escolhemos, Capão Pecado, o escritor revela o cotidiano de um dos
bairros mais violentos de São Paulo, Capão Redondo, que registra aproximadamente
86.39 assassinatos a cada grupo de 100.000 habitantes. Esse lugar, segundo o autor,
esquecido por Deus e apadrinhado pelo Diabo, serve de “pano de fundo” para a
representação de sujeitos discursivos tão reais que se confundem com milhares e
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
milhares de brasileiros. A obra em questão pode ser encarada como uma marca de
renovação do romance brasileiro, pois traz novidades tanto no conteúdo como na forma.
O presente estudo tem como tema a análise comparativa das margens da literatura e
da narrativa de testemunho, que se combinam em Capão Pecado (2005), atentando para
diversos elementos distintos em sua construção, que podem sugerir explícita ou
implicitamente, as circunstâncias histórico-sociais em que essa obra foi escrita. Uma
vez identificados os limites teóricos dessas margens, será discutido como o texto de
Ferréz, por meio de uma elaboração ficcional híbrida, constrói um testemunho a respeito
da história da periferia de São Paulo. Assim sendo, o escopo desta pesquisa, ao iniciar a
comparação entre a verdade histórica e a ficção, apresentado, na construção do enredo, é
mostrar a composição de um determinado retrato sócio-cultural presente no referido
corpus.
Referencial teórico
Para aprofundar as questões propostas sobre o discurso histórico e o discurso
literário, teremos como eixo norteador o estudo de teóricos como: Hayden White,
Walter Mignolo e Linda Hutcheon. Estes críticos investigam as correspondências que se
estabelecem entre a Literatura e a História, e evitam compreender esses discursos como
formas excludentes de conhecimento.
No que tange a narrativa histórica, Hayden White, em seu ensaio “O texto histórico
como artefato literário”, de 2001, se posiciona da seguinte forma: “ficções verbais cujos
conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum
com os seus equivalentes na literatura do que com os seus correspondentes nas
ciências”. Essas reflexões de White evidenciam um dos principais elementos da ligação
entre a História e a Literatura. Tais idéias partem da reflexão de Northrop Frye sobre
essas questões, o qual apresenta que o historiador tem como método a indução e procura
os fatos através de pesquisas e relatos da vida real, enquanto na literatura, o autor narra
a partir da imaginação.
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
Entretanto, White diz que a narrativa histórica e a literária se assemelham, já que as
duas são construídas a partir de uma ordenação dos fatos e de uma seleção do tipo de
enredo, para que o leitor as compreenda. Desse modo, nos mostra que o conjunto de
acontecimentos históricos documentados e colhidos pelo historiador não pode, sozinho,
formar uma narrativa histórica.
Em outros termos, a estrutura da narrativa histórica não é somente formada por
acontecimentos da realidade, mas também com a ordenação desses acontecimentos, isto
é, o mesmo fato poderá servir como componente para histórias com diferentes
abordagens, isso ocorre graças às escolhas do historiador, como ressalta White (2001)
“a maioria das seqüências históricas pode ser contada de inúmeras maneiras diferentes,
de modo a fornecer interpretações diferentes daqueles eventos e a dotá-los de sentidos
diferentes (...)”.
De acordo com as idéias apresentadas, percebemos que os acontecimentos podem ser
organizados diferentemente de um momento para o outro. Por isso, atribuir à narrativa
histórica, um caráter de “verdade” incontestável pode ser um ato falho.
Essas idéias centrais parecem ser retomadas por Linda Hutcheon, quando essa
explana que a fronteiras entre a ficção e a história se tornaram cada vez mais sutis, nas
palavras de Hutcheon, “o que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos
ensinou é que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem sistemas de
significação pelos quais damos sentido ao passado”.
Para referir-se a essa escrita pós-moderna, Hutcheon adotou o termo metaficção
historiográfica, ou seja, esse termo designa que a expressão literária da escrita pós-
moderna recusa os métodos naturais para distinguir entre fato histórico e ficção, visto
que contradiz a visão de que apenas a história tem pretensão à verdade.
A partir do que mostram White e Hutcheon, em suas idéias, percebemos que as
margens desses discursos não são opostas e sim paralelas. Portanto, mais uma vez a tese
do parentesco história-literatura é reforçada, já que os fatos se subordinam a uma
estrutura verbal.
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
Um outro ponto se suma importância para essa pesquisa é o estudo do teórico Walter
Mignolo. Para esse estudioso, a História e a Literatura são conhecimentos partilhados
entre os que produzem e os que interpretam os discursos e são formados de acordo com
os objetivos da produção discursiva e da análise.
Mignolo sugere demarcações fundamentadas nas convenções de veracidade e da
ficcionalidade. Em seu ensaio de 1993, Lógica das diferenças e política das semelhanças
da Literatura que parece História ou Antropologia, e vice-versa, Mignolo menciona
normas da linguagem historiográfica e literária.
Em consonância com o estudioso podemos dizer que o discurso histórico está de
acordo com o real, por isso pode ser julgado a partir da veracidade dos fatos, que são
sempre exteriores a enunciação. Dessa forma, o historiador está exposto ao erro, uma
vez que os fatos podem estar à mostra para possíveis re-interpretações. Já no que diz
respeito à ficção, isso não ocorre, pois a verdade é construída no próprio discurso. Nesse
caso, o que importa é a verossimilhança, ou seja, as verdades apresentadas possuem
uma coerência no texto.
Portanto, o estudioso Walter Mignolo apoiado em delimitações baseadas na recepção
dos textos, propõe demarcações das convenções de veracidade e de ficcionalidade.
Destacamos ainda, o conceito de duplo discurso apresentado por Walter Mignolo.
Conforme o teórico esse duplo discurso aparece na obra literária, quando há a
reprodução de um discurso histórico.
As diferenças entre os discursos, histórico e literário, parecem desaparecer quando
enxergamos o princípio discurso comum a ambos, ou seja, a sua organização narrativa
por meio de uma estrutura verbal. Desse modo, podemos afirmar que as leituras críticas
atuais sobre essas questões se concentram mais no que esses discursos têm de
semelhante, do que em suas diferenças.
Aqui se coloca uma outra questão, como se constitui a historicidade dessas
narrativas? Elas são formadas por registros documentais que podem ser escritos ou não,
e são familiares para o leitor, principalmente para aquele que está inserido na
comunidade retratada. Uma outra característica fundamental para a incorporação do
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
discurso histórico no literário é o princípio de que “só é verdadeiramente histórico
quando reverbera para além da trajetória individual e/ou familiar da personagem”.
Portanto, é necessário que haja uma relação entre o destino da protagonista e o da
comunidade leitora.
Na contemporaneidade, percebemos um boom no mercado editorial de biografias,
autobiografias, relatos de testemunho, diários e cartas íntimas, esse fenômeno ocorre do
anseio pelo retrato do real que marca o nosso momento cultural.
Partindo da premissa que na atualidade temos manifestações culturais que visam
registrar as experiências vividas por populações envolvidas com a pobreza e a
criminalidade, passaremos a discutir como os relatos se incorporam a essa narrativa
contemporânea.
Esse espaço que vem sendo conquistado por esses escritores representa o poder de
contar o seu lado da história e de entrar para o mundo da literatura, o qual por muito
tempo foi ocupado pela elite.
Desse modo, a literatura periférica possibilita a narrativa de discursos que poderiam
escapar do discurso histórico oficial, assim essa escrita nos coloca diante de uma nova
imbricação entre o ficcional e o real. Em outros termos, essa literatura tenta recuperar,
mostrar e denunciar fatos que marcaram a história e a trajetória de vida dos sujeitos que
estão inseridos no universo marginal. Ao nos debruçarmos, então, sobre essas questões,
percebemos que o discurso literário se mostra insuficiente para a compreensão dessas
manifestações, necessário, portanto a incorporação de categorias de outras áreas de
estudo, como a que temos discutido: a história.
O elemento documental do qual trataremos é o testemunho, e o que é o testemunho?
É um gênero narrativo que, como aponta Mabel Moraña (1995), destaca-se pela
abordagem de assuntos coletivos, essencialmente das classes sociais menos
privilegiadas, as quais diariamente enfrentam problemas por causa da exclusão
sociocultural que enfrentam.
Nas palavras de Moraña testemunho é o:
Entrecruzamiento de narrativa e historia, la alianza de ficción y
realidad, la voluntad, en fin, de canalizar uma denuncia, dar a conocer
o mantener viva la memória de hechos significativos, protagonizados
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
em general por actores sociales pertenecientes a sectores subalternos.
(2006 apud Pereira, p.2)
Uma das possibilidades de expressão da literatura de testemunho é utilizar-se do
discurso de uma pessoa, geralmente das classes menos privilegiadas, a qual não dispõe
dos meios da cultura letrada, por outras pessoas que detenham o poder da escrita e
sejam capazes de expressar o que o outro não pode no meio literário. Porém, na escrita
periférica não encontramos esse movimento, visto que os escritores são sujeitos
periféricos, que colocam as suas próprias vivências no papel.
Sendo assim, esses escritores ao formarem parte de um processo narrativo com o
intuito de narrar a história, constroem por via da literatura um testemunho a respeito da
sua versão da história, o seu retrato possui muito mais poder de barganha, do que o
relato de escritores que não estão inseridos naquela comunidade, visto que “o retrato do
favelado é verbalizado pelo favelado”. Com isso, o escritor resgata o comum em algo
que nos impele a refletir sobre a nossa condição humana.
De Capão Pecado a Capão Redondo
O romance Capão Pecado, de Ferréz foi publicado em 2005 pela editora objetiva. A
obra tem vinte e três capítulos, divididos em cinco partes e distribuídos em 149 páginas.
Em cada parte da narrativa, o autor trouxe a voz de um sujeito real, que com um texto
curto trata da mesma temática do romance: o cotidiano da periferia, isto é, a violência, a
repressão do sistema capitalista, as necessidades dos marginalizados e o amor pela
periferia.
Ferréz é o pseudônimo de Reginaldo Ferreira da Silva, uma homenagem a dois
nomes importantes da história brasileira: “Ferre”, de Virgulino Ferreira e “Z” de Zumbi
dos Palmares. Ele é um jovem escritor, que nasceu no bairro do Valo Velho, distrito do
Capão Redondo, zona sul de São Paulo. Conforme Érica Peçanha, “o escritor se declara
um „produto do meio brasileiro‟, que optou por se definir negro por considerar honroso
defender „o lado mais prejudicado da história”.
Em uma fala de Ferréz, extraída do evento “450 Anos de Paulicéia Desvairada”,
realizado no CEU Pêra Marmelo, no bairro de Jaraguá apud Érica Peçanha, ele diz que:
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
Quando eu lancei o Capão Pecado me perguntavam de qual movimento eu
era do modernismo, de vanguarda... e eu não era nada, só era do hip hop.
Nessa época eu fui conhecendo reportagens sobre o João Antônio e o Plínio
Marcos e conheci o termo Marginal . Eu pensei que era adequado ao que eu
fazia porque eu era da literatura que fica à margem do rio e sempre me
chamaram de marginal. Os outros escritores, pra mim, eram boyzinhos e eu
passei a falar que era literatura marginal. (Ferréz, em fala no dia 20/07/2004)
Cabe, então, acrescentar que a Literatura Marginal contemporânea pode ser
entendida como discípula de uma escrita de gênero híbrido, já que a realidade, ali
retratada, os interessava, como arma de luta. É evidente que além dessas escritas
convergirem, elas apresentam divergências marcantes, como o fato das obras
contemporâneas apresentarem a visão dos excluídos, contada por eles mesmos,
diferentemente das obras de João Antonio e Plínio Marcos, onde há um certo
distanciamento entre autor e conteúdo.
A Literatura Marginal, sempre é bom frisar, é uma literatura feita por minorias,
sejam elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à margem dos núcleos centrais
do saber e da grande cultura nacional, isto é, de grande poder aquisitivo. Mas alguns
dizem que a sua principal característica é a linguagem, é o jeito como falamos, como
contamos a história (,,,) (FERRÉZ, 2005, p.12).
A figura do escritor é essencial, nessas novas manifestações periféricas, pois ao se
apropriarem da escrita, código da cultura letrada, os autores invertem o processo
cultural, criando uma cultura de libertação. Em outras palavras, o poder da escrita passa
das mãos dos dominadores para os dominados.
A literatura marginal de Ferréz constitui-se em uma reflexão sobre a realidade
presente. Sabemos então, que ao refletir sobre o presente, o texto também se coloca
dentro de uma perspectiva teórica, na medida em que esse presente se tornará história,
ou ainda porque a sua própria existência é histórica.
Assim, podemos ler no texto Capão Pecado uma relação entre o discurso ficcional e
o discurso histórico, ligação essa que se manifesta em vários níveis. Primeiramente em
uma exposição ficcional da referencialidade e da experiência da realidade vivida pela
periferia paulistana. Em segundo lugar, no modo como o texto ficcional se apresenta
como uma outra possibilidade de fazer história, dando voz a versão dos excluídos
sociais, voz essa que as camadas sociais mais privilegiadas sempre abafou.
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
O livro narrado em terceira pessoa é composto por linguagem coloquial, marcada por
gírias e palavrões. A história é protagonizada por Rael, filho de uma valente empregada
doméstica e de um trabalhador alcoólatra, menino pobre que diferentemente de seus
amigos de infância, não se envolve no mundo da criminalidade. Começa a trabalhar
cedo em uma padaria e na busca de um salário melhor, consegue um emprego como
ajudante de produção em uma metalúrgica. E é nesse ambiente que reencontra a
namorada de seu melhor amigo, por quem se apaixona. Por causa dessa paixão, o seu
destino será tão trágico quanto ao de seus amigos de infância.
Além das vozes do narrador e das personagens, temos outras vozes que não
pertencem ao círculo dos sujeitos ficcionais e sim referem-se à de sujeitos do mundo
contemporâneo, que deixam seus testemunhos no prefácio, posfácio e em comentários
nos intervalos da narrativa. Essas vozes do mundo “real” são de rappers, que colaboram
em cada parte do livro com textos curtos, os quais tratam da mesma temática do livro: o
cotidiano da periferia, a repressão dos sistemas sociais e a luta pela sobrevivência. É
importante lembrar que esses sujeitos contam uma versão da história que costuma não
ter espaço de expressão no discurso considerado “oficial”.
O texto que antecede a primeira parte do livro foi escrito pelo líder do grupo
Racionais MC‟s, Mano Brown, intitulado “A número 1 sem troféu”:
(...) São Paulo não é a cidade maravilhosa, e o Capão Redondo no
lado sul do mapa muito menos.
Aqui as histórias de crime não têm romantismo nem heróis.
Mas, aí! Eu amo essa porra!
No mundo eu não sou ninguém, mas no Capão Redondo eu tenho o
meu lugar garantido, morô, mano?
No fragmento acima, Mano Brown expressa o seu amor ao Capão Redondo apesar
das adversidades que marcam essa comunidade. O enunciatário deixa claro que o seu
relato é marcado pela experiência, “Eu era bem pivetinho e já ligava o nome Capão
Redondo a sofrimento, 80% dos primeiros moradores, ou quase primeiros, eram
nordestinos analfabetos. Gente muito humilde, sofredora, que gosta da coisa certa.
Gente igual à minha mãe”.
Ele apresenta três nomes de pessoas que expressaram e combateram as injustiças
sociais, são eles: Tupac, Bob Marley e Tim Maia, em suas palavras, eles não
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
concordavam “com as pilantragens do mundão”. A utilização de nomes de pessoas que
se expressaram ou se expressam contrários ao sistema sócio-político-cultural, é um
recurso encontrado com freqüência nas letras de rap, o que endossa os argumentos
encontrados no seu discurso.
Ademais, Brown nos mostra que a comunidade periférica é um outro universo “da
ponte João Dias pra cá é outro mundo, tá ligado?”. Tal idéia será vista em outros textos
que entremeiam a narrativa. Para terminar seu testemunho, ele diz: “Vida longa aos
guerreiros justos. É assim que eu vejo. “A número 1 sem troféu” Capão Redondo, uma
escola. Nesse fragmento, merece destaque a palavra guerreiro, que pode ser entendida
como aquele que luta para sobreviver nesse mundo periférico, buscando por melhorias
sociais, esse vocábulo, também, é bastante recorrente no rap.
A utilização desses depoimentos é um fenômeno original e inovador, pois esses
testemunhos incorporados a narrativa corroboram para o objetivo da literatura marginal,
ou seja, esses dados da realidade, auxiliam na expressão da visão dos excluídos.
Como já mencionamos, o gênero testemunho foi incorporado as narrativas
contemporâneas, pois comunicam conteúdos e problemas coletivos das classes
subalternas. Fazendo uso dessa interpretação, podemos dizer que a obra de Ferréz é
constituída pela junção de dois gêneros: romance e testemunho, dessa forma a narrativa
possui um caráter dialógico. A matéria narrada carrega consigo o valor de testemunho,
pois o autor ficcionaliza aspectos da sua vivência e os textos que aparecem nos
intervalos da narrativa, reforçam esse valor testemunhal.
Para retratar a vida da periferia paulistana, Ferréz escolheu como pano de fundo o
bairro em que mora, Capão Redondo, o próprio título já faz alusão a esse lugar, com a
referência metafônica expressa em Capão Pecado. Dessa forma, os personagens vivem
seus conflitos em um ambiente carregado de características socioeconômicas, extraídas
da realidade que refletem a ação das personagens. É sabido, que esse bairro apresenta
um dos maiores índices de criminalidade da cidade de São Paulo. Por isso, o espaço terá
um papel determinante na narrativa. Nas palavras de Mano Brown Capão Redondo “é a
pobreza, injustiça, ruas de terra, esgoto a céu aberto, crianças descalças, distritos
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
lotados, veículos do IML subindo e descendo pra lá e pra cá, tensão e cheiro de morte o
tempo todo”.
A narrativa segue uma estrutura linear, podendo ser dividida da seguinte forma:
introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho. Na introdução somos apresentados ao
protagonista, a sua família e ao espaço. O narrador, em terceira pessoa, apresenta Rael,
garoto muito pobre, que ainda novo, mudou-se para o bairro Capão Redondo “(...) lugar
onde seu pai pôde comprar um barraquinho”. Segundo o narrador ele fazia amigos com
facilidade e logo passava a freqüentar a casa dos colegas, pois era educado e seu tipo
físico agradava as mães “Seu aspecto sempre agradava as mães dos colegas:gordinho,
cabelo todo encaracolado, e óculos grandes (...)”
O menino passou a sua infância assistindo a desenhos e séries na televisão “(...) seus
preferidos eram mesmo os heróis de ponta de desenhos e seriados como Super-homem,
Batman, Flipper, Patrulha Estelar, Speed Racer, Jonny Quest, Combat, Bonanza (...) .
Rael começou a trabalhar cedo, como ajudante em uma padaria, ele se mantém distante
do mundo de criminalidade, do qual fazem parte seus amigos e vizinhos.
Seu pai, José, é um trabalhador simples e analfabeto, “(...) ele só estava fingindo
entender o escrito, pois tinha vergonha de ficar dizendo que era analfabeto” e apresenta
uma doença: o alccolismo, “estava completamente entregue, viajando no mundo da
lua.”
Sua mãe, Maria, por sua vez, é uma empregada doméstica, que zela o tempo todo
pelo bem-estar de seu filho, “(...) ela o embrulhara com seu cobertor e ficara dormindo
no frio”.
Acompanhamos ao longo da leitura, a saga de Rael em busca de uma vida melhor,
passa então, a trabalhar em uma metalúrgica, e lá reencontra Paula, a namorada de seu
melhor amigo, Matcherros, por quem se apaixona. A partir daí, a vida de Rael toma
outro rumo, e o desfecho trágico começa a ser traçado, assim como a história de outros
personagens da narrativa, o protagonista tem um destino trágico.
Verifica-se uma ordenação de fatos hipotaxicamente ligados para a construção do
conflito principal, cada um gerando outro, todos voltados para o desfecho que encerra a
narrativa: amor impossível – casamento – vingança – cadeia – morte. Portanto, a ação é
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
gerada pela dialética de causa-efeito, isto é, cada fato do texto tem uma motivação, que
desencadeia em outras conseqüências.
Durante a construção do enredo, podemos observar práticas sociais, que retratam a
vida das pessoas e o espaço daquela comunidade, como por exemplo, um baile:
Combinaram de ir ao baile da News Black Chic, lá no pátio da escola José
Olímpio; o som da equipe era muito bom e vinha gente lá do Valo Velho,
Piraporinha, Jardim Ingá, Pirajussara, Morro do S, Parque Regina, Parque
Arariba, São Luís, Buraco do Sapo, Parque Fernanda e de várias quebradas
(...)
Ainda no trecho acima, podemos observar como referências do mundo concreto
aparecem no nível da textualidade. Os bairros mencionados são marcas registradas, ou
seja, esses lugares são reconhecíveis pelo leitor informado sobre a comunidade
retratada.
Com isso, percebemos que existem na narrativa, elementos textuais que remetem a
dados históricos documentados, em outras palavras, acontecimentos históricos servem
para criar a atmosfera do espaço e do enredo.
Ampliando as idéias de White, que descrevemos nessa pesquisa, sobre a construção
da narrativa, podemos dizer que Ferréz constrói sua narrativa ficcional através de
recortes e escolhas do real, de acordo com a sua intencionalidade. No entanto, a sua
história é lida dentro de uma perspectiva de convenção ficcional.
Para uma melhor compreensão dessa convenção, retomamos a obra de Mignolo, o
qual sugere demarcações baseadas nas convenções de veracidade e da ficcionalidade,
ele menciona normas da linguagem historiográfica e literária.
Como abordamos, na visão de Mignolo, o discurso histórico está fundamentado na
convenção de veracidade, portanto está comprometido com a veracidade dos fatos
narrados. Enquanto, no discurso da ficção, a verdade é construída no próprio discurso,
estabelecendo com o leitor uma convenção de ficcionalidade. Mignolo, ainda, apresenta
um conceito de duplo discurso, esse aparece na obra quando há a reprodução de um
discurso histórico.
Conforme o que acabamos de mostrar, podemos dizer que Capão Pecado coloca em
xeque as convenções estabelecidas. Na ficha catalográfica deste livro temos a indicação
de que se trata de um romance, tal informação estabelece um pacto de ficcionalidade.
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
Porém, esse pacto parece ser transformado quando toda uma comunidade espera que o
autor se comprometa com o dito, já que há claramente uma combinação discursiva,
formada pela imitação do discurso antropológico, mais a força dos depoimentos e a
elaboração ficcional de situações vividas pelos próprios autores marginais. As histórias
que são contadas ao longo da narrativa, se aproximam da vida de muito dos leitores,
visto que a violência faz parte da realidade desse público leitor.
Ao refletirmos sobre a escritura crítica da história, identificamos que acontecimentos
semelhantes aos reais, representam o modus cogitandi da comunidade periférica do
Capão Redondo. Assim o romance constrói uma versão da história do bairro Capão
Redondo que demonstra um panorama político e social do final dos anos 90, desse
lugar, já que o livro foi gerado nessa época.
Considerações Finais
Dado o exposto, concluímos que na obra Capão Pecado, o discurso da ficção é
construído nos limites do testemunho, pois o registro histórico permeia toda a
construção da narrativa.
A obra em questão pode ser entendida como pertencente a um movimento bastante
articulado com ramificações que saem do terreno do literário. Como tratamos ao longo
do texto a Literatura Marginal tem uma atuação na esfera pública, pois ela questiona as
bases de um país, que discrimina e explora os setores periféricos.
Como vimos, o autor é um sujeito periférico, que parece ser porta-voz de toda uma
comunidade. Ele através da escrita, dá voz àquele povo que nunca encontrou espaço
para contar a sua versa da história. O seu relato ganha força ao trazer vozes do mundo
real, que compartilham dos seus ideais, essas vozes são de pessoas que têm construído a
identidade do cidadão periférico, por meio da cultura.
Analisamos aqui, como esse romance demonstra uma nova forma de estar entre a
ficção e o registro histórico, estabelecendo a urgência da instalação de um novo olhar
sobre a produção contemporânea.
Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________
Referências Bibliográficas
FERRÉZ. Capão Pecado. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2005.
_______. (org.) Literatura Marginal: Talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir,
2005.
FINOTTI, Ivan. Bem vindo ao fundo do mundo. Folha de São Paulo, São Paulo, 06 de
janeiro de 2000.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo. Tradução Ricardo Cruz, Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1991.
JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro:
Rocco, 2007.
MIGNOLO, Walter. Lógica das diferenças e política das semelhanças da literatura que
parece história ou antropologia, e vice-versa. In: CHIAPPINI, L. & AGUIAR. F. W.
(Orgs.). Literatura e História na América Latina. Tradução de Joyce Rodrigues Ferraz.
São Paulo: Edusp, 1993, p.115 – 134.
MORAÑA, Mabel. Documentalismo y ficción: testimonio y narrativa testimonial
hispanoamericana en el siglo XX. In: América Latina: Palabra, Literatura e Cultura. São
Paulo, v.3, p.479-515. 1995.
NASCIMENTO, Érica Peçanha do. “Literatura Marginal”:Os escritores da periferia
entram em cena. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.
PEREIRA, Luciara. A narrativa do testemunho: contextualização crítica.Pequisa
Científica, Universidade Federal de Santa Maria,2006.
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Trad. José
Laurêncio de Melo. 2 ed. São Paulo: Edusp,1995.
_____________Trópicos do discurso: ensayos sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio
Correia de Franca Neto. 2 ed. São Paulo: Edusp, 2001.
top related