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1º Encontro Nacional da ABRI Segurança Internacional
Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi Fabrício Martins
Resumo:
O presente artigo investiga a visão de segurança internacional no romance Guerra e
Paz de Tolstoi. Para tanto, analisamos os comentários do autor acerca da Campanha de
1812 de Napoleão e seus precedentes políticos.
O autor se mostrou um exímio conhecedor da história da Europa e da Rússia. Vários
são os pesquisadores que recorrem a seus escritos devido à veracidade de seus relatos. De
fato, Guerra e Paz mescla personagens fictícios com reais para narrar um dos mais
importantes acontecimentos do século dezessete. Paralelo a descrições apuradas, no
romance, dos fatos que mudariam o rumo da humanidade, Tolstoi propicia perspicazes
análises da política internacional e filosofia política do período e também de estudos
estratégicos.
Esse artigo almeja iniciar um debate, que preencha um pouco o espaço entre a
literatura e as relações internacionais. Em um primeiro momento, apresentaremos uma
curta apresentação do autor e de sua conturbada vida. A evolução da vida de Tolstoi torna-
se importante para compreendermos melhor o caminho do seu desenvolvimento intelectual
e as bases para sua filosofia. Em seguida, apontaremos a perspicácia da visão de Tolstoi do
cenário político da época. Esse apresenta um apurado conhecimento do equilíbrio de poder
europeu e o papel da Rússia nesse panorama. Além de mostrar os reflexos da guerra na
sociedade e política russa. Por último, traçaremos um paralelo do pensamento de Tolstoi
com alguns pontos e conceitos utilizados pelos estudos estratégicos, representados por
Clausewitz. O autor acredita que a guerra está intrinsecamente marcada pelo fator da
1º Encontro Nacional da ABRI Segurança Internacional
Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi Fabrício Martins
imprevisibilidade e dificuldade de obtenção de informações confiáveis. Dessa forma, a
moral dos beligerantes ocuparia um papel central no combate.
1º Encontro Nacional da ABRI Segurança Internacional
Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi Fabrício Martins
Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi*
Fabrício Martins**
Introdução
Ítalo Calvino disse, entre várias coisas primorosas, que um clássico é um livro que
nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Guerra e Paz de Tolstoi nitidamente se
enquadra nesse conceito. O romance é um dos mais famosos de Tolstoi e é considerado
uma das maiores obras da literatura mundial, sendo para alguns o maior jamais escrito.
Tolstoi era um mestre na representação romanceada da vida militar e civil. Sua obra
descreve, com ricos detalhes, tanto as aspirações sociais e religiosas da alta sociedade russa,
seus saraus, bailes, jantares e costumes, além da vida de senhores e camponeses. Também
demonstra como era o cotidiano dos soldados, suas longas marchas, seus exaustivos
momentos de espera que antecedem o combate e a própria explosão da violência na sua
forma mais intensa. Ele mostrou um profundo talento para representar através da literatura:
a guerra e a paz.
A literatura possui um importante papel na sociedade moderna. Supostamente, de
acordo com Eco (2003), ela não produziria fins práticos (como manter registros, anotar leis
* Esse artigo é o resultado das pesquisas conduzidas durante o segundo semestre do ano de 2005, no âmbito das atividades desenvolvidas pelo programa de Programa de Pós Graduação Santiago Dantas. Gostaria de agradecer a profa. Suzeley Kalil Mathias pelas leituras das versões preliminares e pelas sugestões criticas, ao prof. Hector Saint Pierre e ao Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq. ** Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação Santiago Dantas – PUC-SP, UNESP, UNICAMP.
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e formulas cientificas, fazer atas de sessões ou providenciar horários ferroviários), mas
seria exercida por amor a si mesma e ao seu leitor(a) – trazendo deleite, elevação espiritual,
ampliação dos próprios conhecimentos ou mesmo um puro passatempo. Além disso, ela
“mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio coletivo1”. Como
conseqüência, ela ajuda a lapidar a própria identidade nacional. Por exemplo, podemos
considerar a importância da tradução da bíblia para o alemão por Lutero, ou a unificação da
língua italiana fortalecida por Dante.
O trabalho de Tolstoi facilmente se harmoniza com esses preceitos. Nos últimos dias
de sua vida ele já recebia o reconhecimento do mundo inteiro, possuindo uma legião de fãs
e seguidores, inclusive ilustres figuras brasileiras como Monteiro Lobato2. Mas não
somente no talento de romancear reside o valor de Tolstoi.
O autor se mostrou um exímio conhecedor da história da Europa e da Rússia. Vários
são os pesquisadores que recorrem a seus escritos devido à veracidade de seus relatos. De
fato, Guerra e Paz mescla personagens fictícios com reais para narrar um dos mais
importantes acontecimentos do século dezessete: as guerras napoleônicas. Paralelo a
descrições apuradas, no romance, dos fatos que mudariam o rumo da humanidade, Tolstoi
propicia perspicazes análises da política internacional e filosofia política do período e
1 ECO, Umberto, Sobre a literatura. Rio de janeiro, Record, 2003. p 11
2 “O Ana Karenina, que li agora, ponho-o junto de Guerra e paz, Lírio no Vale de Balzac e le rouge et
le noir (O vermelho e o negro) de Stendhal. Como é grande Tolstoi! Como é grande a Rússia!” disse Lobato.
Para saber mais: GOMIDE, Bruno Barreto. Três gênios e um painel do século XIX. Entre Livros , ano 1 no 4.
ed. Ediouro. 2005
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também de estudos estratégicos – que estava para testemunhar um crescimento intelectual e
acadêmico com os trabalhos de Clausewitz e Jonini, entre outros.
Por que então, apesar de toda essa sagacidade de conhecimento do campo das ciências
sociais aplicadas, a literatura tolstoiana (e nas demais) recebe tão pouca atenção pelos
pesquisadores da área? O “espaço vazio” entre a literatura e a pesquisa em ciências sociais,
e em especial das relações internacionais, é colossal. Infelizmente, existem ainda aqueles
que chegam a abandonar quase que inteiramente a literatura devido ao comprometimento
com suas pesquisas cientificas. Para Gillie (1978):
“embora fosse um titã da literatura, Tolstoi não possuía a habilidade para a persuasão
política que, como Platão, não devia ter cultivado. O resultado foi que a riqueza das
verdades entrevistas sob a superfície vibrante de Guerra e Paz e as meias verdades
contidas no dogma de seus ensaios pela paz foram praticamente ignorados pelos
estudiosos das relações internacionais”.
Esse artigo almeja iniciar um debate, que preencha um pouco esse espaço entre a
literatura e as relações internacionais. Em um primeiro momento, apresentaremos uma
curta apresentação do autor e de sua conturbada vida. A evolução da vida de Tolstoi torna-
se importante para compreendermos melhor o caminho do seu desenvolvimento intelectual
e as bases para sua filosofia.
Em seguida, apontaremos a perspicácia da visão de Tolstoi do cenário político da
época. Esse apresenta um apurado conhecimento do equilíbrio de poder europeu e o papel
da Rússia nesse panorama. Além de mostrar os reflexos da guerra na sociedade e política
russa.
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Por último, traçaremos um paralelo do pensamento de Tolstoi com alguns pontos e
conceitos utilizados pelos estudos estratégicos, representados por Clausewitz. O autor
acredita que a guerra está intrinsecamente marcada pelo fator da imprevisibilidade e
dificuldade de obtenção de informações confiáveis. Dessa forma, a moral dos beligerantes
ocuparia um papel central no combate. Ele também critica os historiadores, que centralizam
Finalmente, fica um objetivo paralelo. O de incentivar a leitura dessa admirável obra
prima da literatura. E aqui recorro a ítalo Calvino novamente. “Dizem-se clássicos aqueles
livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma
riqueza não menor para quem se reserva à sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores
condições para apreciá-los3”.
A Vida de Tolstoi
Leon Nicolaievictch Tolstoi4 (1828 – 1910), nasceu em Iásnaia Poliana, propriedade
campestre de sua família. Ele foi portador de um sobrenome tradicional da nobreza Rússia
e herdeiro de uma considerável fortuna de seus pais. Órfão desde muito cedo, perdeu a mãe
ainda antes de completar dois anos e o pai aos nove, foi criado por duas tias idosas. Teve
uma educação francesa que fez com que ele entrasse em contato com a cultura russa
tardiamente. Em 1847, deixou a universidade de Kazan sem concluir o curso de línguas
3 CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo. Companhia das letras, 2000.
4 Em russo; Liev Nikoláievitch Tolstói
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orientais retornando para a fazenda de Iásnaias Poliana, onde passaria a maior parte de sua
vida.
Desgostoso com a vida acadêmica, Tolstoi se alista como junker (gentil homem
voluntário) no corpo de artilharia, onde participaria na guerra da Criméia5 em 1853,
testemunhando o sangrento cerco de Sebastópol6 (1854 – 1855). Foi justamente nesse
período no exército que Tolstoi publicou seus primeiros trabalhos mais importantes, como
as duas primeiras partes de uma trilogia autobiográfica (infância, adolescência e juventude).
Alem disso, durante seu serviço militar na Criméia, Tolstoi se tornou, o que alguns
consideram, “o primeiro correspondente de guerra da história7”, trabalhando para uma
prestigiada revista literária moscovita: o Contemporâneo.
Em 1857 demite-se do exercito e volta para Iásnaia Poliana para dedicar-se na tarefa
de educar os filhos dos seus servos e assumir a função de arbitro da paz de pequenos
conflitos da região. Em 1862, casa-se com Sofia Andrêievna Bers que postergou uma crise
moral. Esse período onde produziu suas maiores obras-primas; Os cossacos (1863), Guerra
5 Desde o fim do século XVIII os russos tentavam aumentar a sua influência nos Bálcãs, região entre o
mar Negro e o mar Mediterrâneo. Em 1853, o Czar Nicolau I invocou o direito de proteger os lugares santos
dos cristãos em Jerusalém, então parte do Império Turco. Sob esse pretexto as suas tropas invadiram os
principados otomanos do Danúbio (na atual Romênia). O sultão da Turquia, contando com o apoio do Reino
Unido e da França, rejeitou as pretensões do Czar, declarando guerra à Rússia.
6 O cerco de Sebastopol, sede da frota russa no mar Negro, dura 340 dias de intensos combates.
Sebastopol cai a oito de Setembro de 1855. Durante o cerco uma grande parte das tropas britânicas e francesas
morreram nos hospitais por enfermidades ou ferimentos de guerra. Fonte;
http://antesdetempo.blogspot.com/2004_08_01_antesdetempo_archive.html
7 Leão Tolstoi/ versão portuguesa de João Maia. Coleção gigantes da literatura universal. Editoria
Verbo, 1972.
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e Paz (1869) e Ana Kariênina (1877). Sonia propiciou uma estabilidade na vida de Tolstoi
que possibilitou a produção dessas obras, além de ser a responsável por copiar os trabalhos
e passar a limpo os rascunhos do marido.
Tolstoi entrou em uma profunda crise existencial pouco antes de completar 50 anos.
Deprimido e com tendências suicidas passou a dedicar-se a estudos filosóficos e criou uma
espécie de seita doutrinaria: o tolstoismo8. Essa defendia uma resistência pacifista e não
violenta além de conter forte caráter social. “Para Tolstoi, todas as formas de violência são
igualmente más. Não só a guerra, mas todas as formas de compulsão inerentes ao estado
são criminosas. O verdadeiro cristão deve abster-se de participar nas funções do estado9”.
Somente nos últimos quinze ou vinte anos de sua vida, Tolstoi teve seu trabalho
devidamente reconhecido. A Europa, na década de 1880, “descobriu” o romance russo
através das primeiras tiragens significativas de edições traduzidas, principalmente as
francesas. Paralelamente, o tolstoismo agregava cada vez mais simpatizantes, que viajavam
de várias partes do mundo para Iásnaia Poliana. Os socialistas o consideravam um modelo
contra a luta ao poder do czar.
Entretanto, se o reconhecimento mundial era cada vez mais evidente, suas relações
com a família deterioravam. Seus familiares abominavam suas idéias de abstinência
material e mal se relacionavam com ele, com exceção de sua filha caçula. Cada vez mais
8 Um conjunto racional de preceitos éticos baseados em textos centrais da filosofia moral e de religião,
notadamente o evangelho cristão. GOMIDE, Bruno Barreto. Três gênios e um painel do século XIX. Entre
Livros, ano 1 no 4. ed. Ediouro. 2005
9 ROLLAND, Romain, Vie de Tolstoi apud TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg.
5ed. São Paulo: Ediouro, 2002.
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distante da condessa, Tolstoi, decide fugir da família e da vida abastada que levavam para
buscar refugio no mosteiro de Optina, onde sua irmã era freira. O autor adoece na estação
de trem de Astapovo, em Riazan, onde morreu no dia sete de novembro de 1910.
Guerra e Paz e a Segurança Internacional
Guerra e Paz foi publicado pela primeira vez em 1865 e levou sete anos para ser
concluído. A obra percorre os anos de 1805 a 1820 e acompanha, essencialmente sob a
visão dos russos, fenômenos crucial para a história da Europa e mundial: a campanha de
Napoleão na Áustria e a invasão da Rússia. O autor pesquisou obras sobre o episódio e
colheu testemunhos de muitos sobreviventes da guerra, muitos dos quais seus próprios
familiares. Esse extenuante trabalho proporcionou uma obra prima da representação
literária da vida civil e militar da época e da política internacional.
A Europa acabara de presenciar a revolução francesa, que fora influenciada pelos
ideais iluministas e pela independência dos Estados Unidos o que afetaria em breve todas as
nações. Ela significou o fim do sistema absolutista e dos privilégios da nobreza. O povo
ganhou mais autonomia e respeito sobre seus direitos sociais, além da efetiva melhora da
vida rupestre e urbana. Com o golpe de 18 de Brumário10, em nove de dezembro de 1799,
Napoleão Bonaparte assumia o poder na França, o qual manteria por quinze anos.
10 18 de Brumário é a (data que corresponde ao calendário estabelecido pela Revolução Francesa e
equivale a 9 de novembro do calendário gregoriano.
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Durante esse período, Napoleão conquistou grande parte do continente europeu e
reformulou o sistema militar. “Motivados inicialmente pelo desejo de levar as liberdades
revolucionárias aos súditos dos reinos vizinhos, os franceses acabaram se comprometendo
com um programa militar permanente de engrandecimento nacional11”. Apesar dos ideais
antimilitaristas, racionais e legalistas da revolução, a França temia uma intervenção dos
demais paises europeus ainda comprometidos com o absolutismo. Assim, “em 1812,
Napoleão tinha mais de um milhão de homens em armas, distribuídos na Espanha à Rússia,
e comandava uma economia e uma administração imperial cujo único objetivo era manter
seus exércitos em campo12”. Temendo essa expansão territorial e militar, a Inglaterra
começou a articular alianças políticas para barrar uma hegemonia francesa, que mudaria
decisivamente as relações de poder na Europa.
Nesse conturbado cenário, Tolstoi desenvolve a narrativa de Guerra e Paz
demonstrando um profundo conhecimento histórico, filosófico, político e de estudos
estratégicos.
Logo no inicio do livro, o temor do crescimento do poder de Napoleão frente às
potencias européias é refletido nos personagens que abrem o romance. Em um sarau da alta
sociedade russa, os assuntos em pauta dizem respeito às novidades políticas da Europa e da
guerra. Ana Pavlovna afirma decididamente que “só a Rússia pode salvar a Europa13”. A
11 KEGAN, John. Uma história da guerra: trad. Pedro Maia Soares. São Paulo. Companhia das letras,
1995. p 359
12 idem.
13 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002. p 30.
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aliança contra a França pouco significa efetivamente contra o poderio militar de Napoleão,
pois de acordo com Tolstoi: a Áustria não quer a guerra; a Prússia declarou Bonaparte
invencível; e não se pode contar com a Inglaterra e seu espírito mercantil. Logo em
seguida, o autor aprofunda o debate dos nobres sobre a balança de poder européia através
de um dos personagens principais do livro: Pedro Bezukhov. Pedro, que assim como o
autor teve uma educação francesa com claras tendências iluministas, discursa com os
presentes, desajeitado e passionalmente como quem abraçou idéias a pouco tempo, que a
paz universal é possível não sendo simplesmente um equilíbrio político (esse juízo pode ser
compreendido como semente do pacifismo anti-militarista que o autor assumiria com idade
mais avançada)14. Já para seu interlocutor, o abade Moria, mais maduro sobre suas idéias, o
equilíbrio da balança de poder só seria mantido pela força, pois seria “ necessário que um
país poderoso como a Rússia, tido como bárbaro, encabece desinteressadamente uma união
com a finalidade de manter o equilíbrio europeu que salvará o mundo”. Com base nessa
linha de pensamento, parece-nos que Tolstoi era familiarizado com o conceito de balança
de poder.
Durante séculos a Balança de Poder providenciou um padrão de comportamento nas
Relações Internacionais. Dentro de sua lógica, o crescimento do poder de um país vizinho
justifica um ataque preventivo a qualquer ação hostil do mesmo. Dessa forma, almeja-se
diminuir os riscos, custos e escalas de uma eventual guerra no futuro. A balança era vista
como um instrumento capaz de manter a ordem e paz no cenário internacional através da
14 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002. cap III e V,
parte um.
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manutenção do equilíbrio de poder. Entretanto para Burke (2000), “a balança de poder, o
orgulho da política moderna... inventada para preservar a paz geral assim como a liberdade
da Europa, somente preservou sua liberdade. Ela tem sido a origem de inúmeras e
infrutíferas guerras15”.
Essa apreciação foi reforçada pela doutrina da Raison d´Etat, vigente na época. Nela,
a guerra se apresentava como um direito soberano do Estado. O cenário internacional era
visto como um anárquico palco de constantes conflitos bélicos julgados necessários. Entre
o século XIX e XX a Raison d´Etat atingiu seu ápice com o preceito do Estado-Potência16.
Os objetivos da política externa dos países eram responsáveis pela deflagração de diversos
conflitos baseados em interesses egoístas violando todos princípios e normas morais e
jurídicas. O aumento do poder de Napoleão era, então, um risco. Tolstoi demonstra através
do manifesto de declaração de guerra que o imperador Alexandre não poderia ignorar o
perigo que ameaçava a Rússia, a segurança do império e das suas alianças: “e é o desejo
que constitui a única finalidade do Imperador, que é estabelecer a paz na Europa sobre
bases sólidas, levou-o a fazer passar uma parte do exercito para o estrangeiro e a enviar
novos esforços para chegar ao fim colimado17”. Com essa declaração, a Rússia envia suas
forças armadas para combater os franceses na Áustria em 1805. Por outro lado, Napoleão
15 BURKE, Edmund. 1760 citado em WALZER, Michael. Just and Unjust War: a moral argument
with historical illustrations. New York, Basic Books, 2000. p.76
16 Os Estados almejavam buscar a consolidação da própria potencia, em detrimento aos demais. O
direito de declarar guerra fazia parte da própria constituição do poder soberano e se imperativo, para o alcance
dos objetivos políticos particulares, era engajada. A guerra era legitima porque era necessária.
17 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002. p 89.
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também desejava o combate, pois “necessitava liquidar o único poder continental que para
ele ainda constituía uma ameaça, antes de enfrentar em instancia final, a Inglaterra18”.
Entretanto, no dia 27 de junho de 1807, Napoleão e Alexandre assinam um tratado de paz
dividindo a Europa oriental entre os dois impérios. Essa aliança chegou, inclusive, a colocar
a Rússia contra seu antigo aliado, a Áustria, quando a França declarou guerra novamente a
esse em 1809. A paz entre os dois impérios duraria até a invasão francesa ao território russo
na campanha de 1812.
É curioso notar os reflexos dos conflitos bélicos na sociedade russa descrita por
Tolstoi. O país era no inicio do século XIX extremamente francófilo. A sociedade russa, em
todas as suas instâncias era influenciada culturalmente e politicamente por Paris. As roupas,
o teatro, a música e até mesmo a língua francesa era preferida à russa nos salões da
nobreza. Tal proximidade psíquica tornava difícil até mesmo imaginar um grande conflito
entre os impérios. Em idos da oitava parte do romance, o patriótico conde Rostoptchine
declara ao príncipe Nicolau Andreievitch Bolkonski:
“Oh! Príncipe, de que forma poderíamos guerrear com os franceses? – disse o conde
Rostoptchine. – Você acha que seria possível nos armarmos? Veja: nossa mocidade,
nossas damas, nossos deuses são franceses; nosso reino celeste: Paris – e levantou a voz
para q todos ouvissem. – Indumentárias francesas, pensamentos franceses, sentimentos
franceses. Eis que o senhor escorraçou Métivier por se tratar de um francês e de um
covarde, e nossas damas de joelhos atrás dele. Ontem eu estava num sarau, quando cinco
damas apareceram: três são católicas e bordam aos domingos com a permissão do papa e,
apesar disso, estavam quase nuas como as figuras de propaganda dos banhos públicos,
18 NICOLSON, Nigel. Napoleão 1812. trad. Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro. Nova
Fronteira, 1987, p 19.
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salvo o respeito q devo a Vossa Excelência. É verdade, príncipe, quando vejo nossa
mocidade tenho ímpetos de arrancar do meu museu o velho bastão de Pedro o grande e
quebrar-lhe as costelas, à moda russa, o que faria desaparecer todas essas tolices19”.
Entretanto, com o avançar da campanha de Napoleão em território nacional, os russos
passam a desprezar gradativamente as particularidades francesas. De inicio, essa
depreciação cultural aparece como joguetes dos salões em bailes e festas, como multas
simbólicas para os nobres que conversassem em francês. Logo a língua natal volta a ser
admirada. Em seguida, surge o boicote ao teatro francês, até culminar com a expulsão de
todos os franceses de Moscou justificado pelo temor de espiões20. A ojeriza a Napoleão
chega a tal ponto, que em vários momentos do romance ele recebe títulos de “inimigo do
gênero humano”. A esse ponto da história, o exercito de Napoleão já se aproximava de
Moscou e, tendo sobrepujado o exercito russo, ameaçava a uma das capitais do país. Cabe
então, algumas observações a respeito das considerações de Tolstoi quanto à guerra em si.
Tolstoi e os Estudos Estratégicos
Por ter participado da guerra da Criméia e já produzido textos a respeito de conflitos
bélicos anteriormente, Tolstoi demonstra possuir um acurado e profundo conhecimento da
gramática da guerra. Todavia, é nítido em sua obra que ele se mostrava receoso quanto a
aceitação de uma teoria universal e infalível da guerra. Tolstoi acreditava que:
19 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002. p 613.
20 Idem. cap VI e XVII, Décima parte.
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“A compreensão verdadeiramente científica de um conflito militar em larga escala
exigiria uma transformação radical da opinião comum sobre sua terminologia, interesse,
pressupostos e perspectivas. Ao invés de encarar a guerra como uma forma planificada e
racionalmente dirigida, deveríamos pensar nela como um aspecto dos movimentos não
planejados, das convergências e conflitos das sociedades humanas operando de acordo
com as então desconhecidas leis da ‘dinâmica social21”.
Essa postura revela-se perante a descrição dos oficiais dos exércitos russos,
essencialmente em Kutuzov – comandante geral das forças armadas russas – e em André
Bonkonski. Ambos acreditam que a guerra segue seu próprio curso e que durante a batalha
seria impossível prever e planejar todos os fatores que interferem em um conflito ou definir
um único fator chave determinante da vitória ou derrota. “Tolstoi ridiculariza... ‘teóricos
persuadidos da existência de uma ciência da guerra, a qual repousa sobre leis imutáveis, tais
como o movimento oblíquo e o envolvimento do inimigo22’”. Nesse ponto é interessante
notar como o pensamento de Tolstoi se aproxima do de Clausewitz.
Ambos os autores acreditam que devido à improbabilidade de previsão do decorrer da
batalha, nenhum comandante por mais experiente, poderia se ater cegamente a
planejamentos prévios, tendo que se adaptar constantemente frente aos acontecimentos. “É
a inteligência do chefe que abrange o conjunto das situações e é a vontade que decide
21 GALLIE, W.B. Os Filósofos da Paz e da Guerra. Trad. Silvia Rangel. Rio de janeiro, ed. Artenova.
1979 p 107.
22 ARON, Raymond. Pensar a Guerra: Clausewitz. Trad. Elisabeth Maria Speller Trajano. Brasília. Ed.
Universidade de Brasília. 1986. Vol. 1, p 354, sobre o conselho de guerra russo descrito no capitulo IX da
nona parte de Guerra e Paz.
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dentro da incerteza e do risco23”. Alem disso, ambos se dedicam a mostrar que a moral dos
beligerantes pode pesar decisivamente em uma batalha. O alcance que a coragem e o
talento terão no campo das probabilidades e do acaso depende do caráter particular do
comandante e do de sua força. O acaso diz respeito aos acontecimentos improváveis e
incertos que podem ocorrer e prejudicar as ações militares.
Em Clausewitz, podemos resumir essas idéias através do conceito de trindade
esquisita24.
“A guerra é um verdadeiro camaleão, que adapta suas características ligeiramente a cada
caso particular. Enquanto fenômeno integral, suas tendências dominantes sempre fazem
da guerra uma trindade esquisita – composta de violência primordial, ódio e inimizade,
que podem ser tratadas como uma força natural, cega; do jogo do acaso e de
probabilidades, onde o espírito criativo pode enveredar livremente; e de seu elemento de
subordinação, de instrumento político, que a faz subordinada apenas à razão.
O primeiro destes três aspectos diz respeito principalmente ao povo; o segundo ao
comandante e à sua força; o terceiro ao governo. As paixões que devem ser inflamadas na
guerra já devem estar presentes no povo; o alcance que a coragem e o talento terão no
campo das probabilidades e do acaso depende do caráter particular do comandante e do
de sua força; mas os objetivos políticos são província exclusiva do governo.
23 ARON, Raymond. Pensar a Guerra: Clausewitz. Trad. Elisabeth Maria Speller Trajano. Brasília. Ed.
Universidade de Brasília. 1986. Vol. 1, p 355.
24 Utilizo aqui a mesma tradução de trindade esquisita utilizada por DINZ. Segue a nota explicativa
dos autores justificando a escolha em DINIZ e Proença – 2004: Parece suficiente reproduzir uma nota de
Diniz (2002), com relação a esta escolha de tradução: “O termo em alemão é wunderliche. A tradução de
Howard e Paret como “paradoxical” é injustificada. Outros autores têm simplesmente modificado a tradução,
mesmo quando citam a edição Howard e Paret. Villacres & Bassford (1995), por exemplo, utilizam o termo
“ remarkable”, que faria mais sentido. Em português, “esquisita” capta a estranheza que Clausewitz quis
salientar.” Diniz (2004): 77, nota a.
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Estas três tendências são como três diferentes fontes do direito, cada uma profundamente
enraizada em seu próprio tema, e ainda assim sensíveis em seu relacionamento recíproco.
Uma teoria que ignorasse qualquer uma delas, ou que ambicionasse fixar arbitrariamente
o seu relacionamento entraria em tal conflito com a realidade que apenas por este motivo
seria totalmente inútil25”.
É o entendimento da guerra como uma trindade esquisita que permite compreender
como os valores morais influenciam a ação dos seus atores. Apesar dos três pontos da
Trindade Esquisita possuírem maior ligação com grupos específicos – a paixão com o povo,
o acaso com o comandante e a força militar e a razão com o governo – eles estão
intrinsecamente ligados e fazem parte do processo de decisão em toda ação na guerra.
Tolstoi por sua fez parece fazer como sua a voz de André Bolkonski ao dizer que:
“Sua experiência militar dera-lhe a convicção de que os planos mais profundamente
refletidos nada significam na guerra (vira na batalha de Austerlitz), que tudo depende da
maneira de responder aos ataques inesperados, impossíveis de prever, que tudo depende
daquele que dirige a refrega e do modo como a dirige26”.
Essa linha de pensamento se mantêm constante por toda narrativa de Guerra e Paz.
Durante a descrição de diversas batalhas ou do testemunho dos personagens a respeito do
teatro da guerra, fica evidente a importância que o autor desloca para a moral, a incerteza
das informações e o acaso. Talvez a melhor amostra disso seja nos capítulos referentes à
batalha de Borodino.
25 CLAUSEWITZ, Carl von. 1984. On War. (translated and edited by Michael Howard and Peter
Paret). 2. ed. Princeton, Princeton University Press. p. 89
26 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002 p 703
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A batalha de Borodino, uma vila localizada próxima a estrada que leva a Moscou, foi
travada no dia sete de setembro de 181227, e é considerada por historiadores como a mais
violenta de toda a campanha napoleônica. Mais de duzentos mil soldados se envolveram na
batalha e teve aproximadamente um terço de casualidades, entre feridos e mortos, em
ambos os lados. Tolstoi enfatiza que o exercito russo seguia a estratégia do tempo e
paciência de Kutuzov – vale notar que este recebera o cargo de comandante chefe que
pertencia a Barclay, pois esse não possuía o fator moral necessário para defender o país já
que era um estrangeiro28. Kutuzov almejava alongar a linha de comunicações do exercito
francês e derrotar o oponente com pequenas e gradativas perdas, ocasionadas devido à
dificuldade de adquirir suprimentos, forragem para os cavalos, a fadiga dos soldados por
extensivas marchas em estradas em condições inadequadas e pelo desgaste moral. Quanto
mais o exercito russo recuava, mais fácil se tornava à reposição de tropas, o suprimento e
mais elevada era à vontade de combater dos soldados para defender suas terras e famílias.
Fenômeno contrario ocorria ao exercito francês. O recuo das forças armadas cessou em
Borodino, pois toda a corte, a nobreza e o exercito pressionavam para que o combate
acontecesse.
A força dos dois exércitos se equivalia, mas para Tolstoi a moral dos russos era
superior. Os russos estavam confiantes que essa seria a batalha definitiva para expulsar os
franceses de suas terras. Pedro Bezukov aparece então como uma testemunha ocular desse
27 Ou dia vinte e seis de agosto de acordo com o calendário russo de então.
28 “Enquanto a Rússia estava forte um estrangeiro podia servi-la, e ele (Barclay) em um hábil ministro
(da guerra), mas agora que ela está em perigo, precisa de um dos seus”. TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad.
Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002 p 854
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fenômeno ao assistir uma “animação uniforme e solidária29” dos soldados de artilharia. Já
do lado oposto, as primeiras dificuldades apareciam ao notar que os canhões da artilharia
francesa estavam longe demais dos alvos propostos. Tolstoi também aponta que o próprio
Napoleão não se encontrava em boas condições, já que estava resfriado e a doença poderia
ter afetado na elaboração dos seus planos de ataque. Para ele, “nos campos de Borodino os
russos não conquistaram a vitória que se caracteriza pelos pedaços de pano amarrados a
hastes de madeira que tem o nome de bandeiras, pela área pela qual as tropas se mantêm,
mas conquistaram uma vitória moral: aquela que convence o inimigo da superioridade
moral do adversário e de sua própria fraqueza”. De fato, o resultado da batalha pode
receber uma interpretação ambígua. Ambos os lados reivindicaram a vitória. Napoleão
dizia ter dizimado seu oponente. O exercito russo, apesar de ter sofrido pesadas baixas, não
cedeu o território decisivamente, e ao fim da batalha Kutuzov pretendia lançar um ataque
contra o oponente no dia seguinte para liquidá-lo30. Porem, a descoberta de que metade do
seu exercito fora devastado tornara a nova batalha materialmente impossível. Nicolson
(1987) defende que a vitória tática pertencia aos franceses, mas que a vitória estratégica
cabia aos russos, pois o resultado do combate inclinou a balança de poder em favor dos
russos.
Dessas considerações à cerca da guerra, Tolstoi desenvolve a critica do que Gallie
(1979) chama de “teoria dos grandes homens da história” aplicada na história militar. Para
o autor, não se deve afirmar que os responsáveis pelo resultado da batalha foram Kutuzov,
29 idem, cap. XXI decima parte.
30 idem, cap. XXXI e XXXVI décima parte.
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Alexandre ou Napoleão. A organização e movimentação coerente de vastos exércitos não
podem ser definidas pela vontade única e exclusivamente de “heróis”. Na descrição da
batalha de Borodino essa idéia, que seria mais trabalhada no epílogo do romance, fica clara.
Ambos comandantes tem sob suas responsabilidades a tarefa de dispor mais de 100.000
homens de acordo com os planos previamente definidos. Todavia, a própria logística da
comunicação com os batalhões não permite uma eficácia. Napoleão “postara-se, o dia
inteiro, à distância de um a meio quilometro da luta, observando-a com uma luneta e
enviando ordens que, ou eram fundadas em informações errôneas, ou chegavam demasiado
tarde para que pudessem ser executadas31”. Tolstoi descreve a quantidade de ajudantes de
ordens que recorriam ao imperador para pedir reforços, demandas e informações sobre os
demais batalhões, enquanto Napoleão simulava manter um controle da situação, mas que
“só dava ordens porque julgava que os outros as esperavam dele32”. Já Kutuzov se
beneficia pela descrição de Tolstoi sendo mostrado como um simpático idoso, um herói
(incompreendido no final na guerra) e um patriota.
“Kutuzov ouvia os relatos que lhe faziam, dava ordens quando seus subordinados as
pediam, mas quando lhes ouvia as comunicações, parecia não se interessar pelo sentido
das palavras que lhe diziam, mas sim por outra coisa na expressão do rosto, no tom
daqueles que lhe falavam. Sabia pela sua longa experiência militar e compreendia com
seu critério de homem idoso, que um homem só não pode guiar cem mil que lutam contra
a morte”.
31 NICOLSON, Nigel. Napoleão 1812. trad. Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro. Nova
Fronteira, 1987, p 121
32 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002 p 901
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“Sabia que não são as ordens do general-em-chefe, que não é o local onde se acham
dispostas as tropas, nem a quantidade de canhões e o numero de homens mortos que
decidem uma batalha, mas essa força indefinível que se chama de espírito do exercito, e
ele acompanhava essa força e guiava na medida do possível33”.
Os argumentos de Tolstoi para justificar tal posição são que nenhum oficial possui
conhecimento do inicio de um evento, de todas suas ramificações e detalhes, e que nenhum
comandante ordena uma ação em larga escala como uma invasão de um país. Para Gallie
(1978), as verdadeiras ordens militares são sempre especificas a determinadas batalhas e
possuem informações detalhadas para suas execução que devem ser continuamente
repetidas e revisadas frente os imprevistos e as ações dos inimigos. Dessa forma, a
operação global de um exercito deveria ser avaliada através da sucessão de ordens locais e
das condições do próprio exercito e do oponente.
33 idem p 889
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Vale salientar uma curiosa passagem do romance que demonstra uma postura de
repudio aos horrores da guerra e que podem ser entendidas como o precedente do pacifismo
antimilitarista da idade avançada do autor. No capitulo vinte e cinco da décima parte, Pedro
Bezukov, curioso para compreender a dinâmica da guerra, parte para o acampamento russo,
um dia antes da batalha de Borodino, e encontra seu amigo André Bolonski. Ao
entabularem uma conversa, André reconhece dois oficiais alemães conversando, um deles
era Clausewitz que participou de fato da Batalha.
Batalha de Borodino. Fonte: www.lafortezzaclub.it/nborodino.html
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- o teatro da guerra deve ser estendido. Falta-me palavras para exprimir minha admiração
por esse conceito – dizia um.
- Isso mesmo. Com a finalidade de enfraquecer o inimigo, não se pode ter em
consideração as perdas individuais – dizia a outra voz.
- Sim sim – repetiu a primeira voz.
- Sim, estender o teatro da guerra... – repetiu o príncipe André resmungando
colericamente depois de eles terem passado. – O teatro da guerra. Eu tenho um pai, uma
irmã, um filho em Lissia-Gori. Isso lhe é indiferente! Eis o que eu te dizia. Esses senhores
alemães não ganharão a batalha de amanha, mas estragarão tudo que puderem porque na
cabeça deles só se desenvolvem raciocínios que não valem a casca de um ovo, e além
disso eles não possuem a única coisa necessária para amanha, e que Timokhine (seu
simplório mas fiel segundo em comando) possui. Entregaram a ele (Napoleão) a Europa
inteira, e estão aqui para nos instruir. Que bons mestres! – rangeu mais uma vez a voz...
Não fazer prisioneiros – prosseguia o príncipe André. – somente isso daria um novo
aspecto à guerra e a tornaria menos cruel e nós brincamos de guerra, eis que está errado;
fomos magnânimos. Essa magnanimidade e essa sensibilidade são do gênero daquelas de
uma senhora que se sente mal quando vê matar uma vitela... mas come com apetite voraz
depois de ensopada. Falam-nos do direito de guerra, do cavalheirismo, do
parlamentarismo, dos sentimentos humanos para com os desgraçados, etc. tudo tolices!
Em 1805, eu vi o cavalheirismo e o parlamentarismo! Fomos enganados e enganamos! ...
- Se a magnanimidade não existisse na guerra, nós só marcharíamos no caso em que fosse
necessário, como agora, ir ao encontro da morte; não haveria guerra porque Paulo
Ivanitch ofendeu Miguel Ivanitch. Mas a guerra como a de agora, isso é que é guerra;
porque então o estado de espírito das tropas seria outro, todos esses westfalianos e
hessianos que Napoleão conduz não o teriam acompanhado até a Rússia; e nós não
teríamos ido combater na Áustria e na Prússia sem querer saber por quê. A guerra não é
uma coisa graciosa, mas a mais horrível das atividades, e é preciso compreender isso para
não fazer dela um brinquedo34.
A opinião do príncipe André não deve ser considerada de forma literal. Gallie (1978)
defende que falar que os homens só devem combater por motivos que fossem “necessário ir
34 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002 p 901
34 idem p 856
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de encontro à morte” significa que somente devem-se declarar guerras se os motivos fosses
justos. E mais. A guerra só se justificaria se tomasse à forma de um ultimato, uma ultima
opção quando todas as opções diplomáticas falham. “Somente quando se sabe que a guerra
será terrível é que a mera perspectiva de seu desencadeamento serve para inibir as
tradicionais tendências ou desculpas dos homens para declarar guerra35”.
Essas idéias seriam aperfeiçoadas e mais tarde abandonadas por Tolstoi em favor de
um pacifismo antimilitarista. Em trabalhos posteriores ao seu romance, como O reino de
Deus esta dentro de nós36, essa tendência é clara. Ele defende que o continuo crescimento
da capacidade militar da Rússia e dos demais paises europeus era a causa das guerras no
continente. Não somente a violência entre Estados era condenada, mas toda sua
manifestação, inclusive do próprio governo. Para ele, o exército e a policia tinha a função
de manter o povo submisso e explorar o seu trabalho. A sua aversão à violência
manifestada pelo estado chega a tal ponto de transformar em uma espécie de anarquismo
como um dever moral. Todavia, não se percebe esses traços em Guerra e Paz onde a vida
de membros do Estado são mostrados junto com a nobreza russa com simpatia e encanto.
Conclusão
35 GALLIE, W.B. Os Filósofos da Paz e da Guerra. Trad. Silvia Rangel. Rio de janeiro, ed. Artenova.
1979 p 115.
36 Disponível em http://www.ltolstoy.com/etext/index.html
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Apesar da trama de Guerra e Paz contar a trajetória dos seus personagens principais,
vide Pedro Bezukov e Andre Bolonski, durante os anos que vão de 1805 a 1820, não se
pode resumi-lo a isso. Mais que a história dos protagonistas e suas relações com seus
coajuvantes, o livro se debruça sobre a história e a política da Europa e da Rússia e, assim,
narra a evolução dos seus povos.
Na introdução da obra, Roland37 defende que Guerra e Paz consiste na ressurreição
de toda uma época histórica, de suas migrações de povos, de batalhas das nações. Seus
verdadeiros heróis são os povos; e, atrás deles as forças invisíveis que os conduzem e os
fazem colidir uns cons os outros. Esses combates gigantescos, em que um destino oculto
faz entrechocar-se as nações, são de uma grandeza digna de debates e estudos.
Os personagens da trama, nada mais são do que um instrumento para dar voz as
nações envolvidas nas guerras napoleônicas. Suas falas e ações refletem as dos políticos,
pensadores, filósofos, clérigos e demais que viveram nessa conturbada época além, é claro,
de serem porta-vozes do próprio autor. Guerra e Paz se mostra então um fiel retrato das
relações internacionais do inicio do século dezessete e assim um objeto potencial de
pesquisas acadêmicas mais profundas. Por isso cumpre aos pesquisadores da área
remodelar a visão a respeito da literatura e das ciências sociais. As relações internacionais
por ser particularmente um campo de conhecimento multidisciplinar poderiam empregar
essa característica a favor do crescimento conjugado de ambas. Espera-se que com esse
trabalho um passo nesse sentido tenha sido dado.
37 ROLLAND, Romain, Vie de Tolstoi apud TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg.
5ed.. São Paulo: Ediouro, 2002.
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Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi Fabrício Martins
Artigo: Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi
Autor: Fabrício Martins
Grau acadêmico: Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós
Graduação Santiago Dantas em Relações Internacionais – PUC-SP, UNESP e UNICAMP.
Bolsista pelo Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq.
Endereço: Rua dos economistas, 341. bairro alípio de melo. Cep: 30 840 330
Tel: 03 3474 6548 / 8888 6548
FAX: 031 3474 6548
E-mail: fabríciomail@yahoo.com.br
Área: segurança internacional
Bibliografia
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Trajano. Brasília. Ed. Universidade de Brasília. 1986.
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NICOLSON, Nigel. Napoleão 1812. trad. Henrique de Araújo Mesquita. Rio de
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TOLSTOI, Leon. O reino de Deus está entre nós. Disponível em
http://www.ltolstoy.com/etext/index.html
Tolstoi's "Peace and War". Source: Nation; 1/22/1885, Vol. 40 Issue 1021, p70-71,
2p
WALZER, Michael. Just and Unjust War: a moral argument with historical
illustrations. New York, Basic Books, 2000.
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