schramm fr. 1996. paradigma biotecnocientífico e paradigma bioético. in oda lm (org). biosafety...
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Ref: Biosafety of transgenic organisms in human health products, Leila M. Oda, org. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996, pp. 109-127. ISBN: 85-85471-03-4
PARADIGMA BIO-TECNOCIENTÍFICO E PARADIGMA BIOÉTICO
Fermin Roland Schramm1
INTRODUÇÃO: AS METÁFORAS DA NATUREZA
A conceituação de natureza, feita pelo imaginário ocidental ao longo
de sua história, pode ser apontada por três metáforas dominantes: o
templo (que opera uma primeira distinção entre o espaço “sagrado” e o
espaço “profano”); o laboratório (que opera uma segunda distinção entre
conhecimento “científico” e “não científico”); o código (que distingue
dois tipos de realidade: a “real” e a “virtual”)2.
As três metáforas diferem pelo tipo de distinção e de significação
feita. Em cada caso destaca-se uma diferença específica da relação
homem-mundo: a “natural”, a “artificial”, a “virtual”. Além disso, cada
metáfora indica a maneira como o humano se concebe no mundo, a forma
específica de autocompreensão humana num contexto determinado: como
ser natural; como ser criador de instrumentos e artifícios; como ser de
linguagem.
A metáfora do “templo” aplicada ao mundo natural, condensa o
sentido de cosmos inviolável, que possui um valor incomensurável, e
define portanto um espaço “sagrado”, distinto do espaço “profano”. Ela
se aplica tanto à natureza - entendida como meio - quanto ao ser humano
- entendido como lugar de uma interioridade (alma, espírito, etc.). Trata-
1 Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública, ENSP/FIOCRUZ. Bioeticista e professor de Filosofia da Ciência.
2 MARRAMAO, G. 1995. Dopo il Leviatano. Indivíduo e comunità nella filosofia politica. Torino, Giappichelli Ed., p.44.
1
se da concepção clássica, vigente desde a civilização grego-romana até a
Idade Média, que valoriza a natureza como algo que tem valor em si,
independentemente das suas “funções” para a vida e os projetos dos
humanos. Chamaremos esta concepção de “naturalista”.
Já a metáfora do “laboratório” pertence à concepção de natureza
como universo físico finito e delimitado, ou seja, recortável e
racionalizável, típico de um mundo secular. Ela indica, portanto, um valor
finalizado, submetido aos projetos e desejos humanos, e não mais
“sagrado”. Esta concepção é vigente desde a revolução científica (século
XVII) até toda a época industrial. A cha-[p. 109]maremos de “artificial”,
embora (como veremos) este termo levante alguns problemas
interpretativos.
A metáfora do “código” é, em princípio, uma criação contemporânea
(pós-industrial e pós-moderna) que corresponde à conceituação dos
fenômenos naturais como providos de informação; e, portanto, como
“significativos”, num duplo sentido: a) porque capazes de fornecer a
informação pertinente para um observador competente em interpretá-la: é
este o sentido dado por Galilei quando concebia a natureza como um
“livro” escrito em termos matemáticos; b) porque capazes de utilizar a
informação para seus fins: este é o sentido mais recente dado pelas
Ciências Biológicas, que consideram os sistemas vivos como sendo
autopoiéticos, isto é, capazes de utilizar matéria, energia e informação,
fornecidas pelo meio, para se auto-produzirem3. Com a metáfora do
“código” introduz-se no campo do conhecimento a assim chamada
“realidade virtual” que, no entanto, só é possível devido ao tratamento
matemático - à modelização - dado pela concepção “artificial”.
3 MATURANA, H. & VARELA, F. 1980. Autopoiesis and Cognition. The Realization of the Living. Boston, Reidel Publ.
2
Na cultura contemporânea - profundamente marcada pela ciência e a
técnica - as três concepções coexistem, e indicam um terreno de tensões e
conflitos entre cosmovisões, valores e princípios diferentes.
Assim, temos, por um lado, a posição “naturalista” (defendida por
alguns ambientalistas, ecologistas e grupos religiosos) segundo a qual o
homem deveria respeitar o finalismo intrínseco dos fenômenos naturais,
não podendo, em princípio, “brincar de Deus” nem interferir nos
processos da criação. Querendo ser mais precisos deveríamos, neste caso,
distinguir entre uma posição “naturalista” stricto sensu, ou
“fundamentalista”, e uma outra, lato sensu ou “superficial”, segundo que
o respeito ao finalismo dos processos naturais seja considerado como um
dever absoluto ou relativo. No primeiro caso, fazendo referência a um
dever absoluto, teremos uma visão que “sacraliza” o mundo natural e
pode, portanto, ser chamada de “fundamentalista”. No segundo caso,
teremos uma visão que valoriza a natureza, mas não como um valor
absoluto e, sim, como valor relativo ao bem-estar humano. Diremos então
que a visão naturalista fundamentalista rege-se no Princípio absoluto da
Sacralidade da Vida (PSV) e que a relativista se apóia no Princípio da
Qualidade de Vida (PQV). É claro que esta caracterização é ideal, isto é,
relativa a “tipos”, e que nos casos concretos existem nuances e
combinações possíveis.
Por outro lado, temos a posição “artificialista”, segundo a qual o que
é possível fazer em prol do bem-estar e do progresso científico tem em
princípio o direito de ser feito e até deve, em determinados casos, ser
feito, mesmo que com isso se assumam atitudes tidas como
“antinaturais”. Esta posição é de regra defendida por cientistas, cujo
objetivo principal é aquele de conseguir novos [110] conhecimentos e
novas competências para a solução de problemas concretos, e não o de
fornecer respostas metafísicas (embora esta possibilidade não seja
3
excluída a priori). Esta visão rege-se também no Princípio relativo da
Qualidade da Vida (PQV).
A posição “virtual” é aparentemente mais recente, pois ela só se
torna “visível” com a cultura da informática. Inicialmente, ela é defendida
sobretudo pelos profissionais que consideram a informação como um bem
de primeira necessidade, indispensável para resolver os problemas
concretos, e complexos, deste final de milênio, a começar pelos
problemas relativos ao bem-estar humano.
Neste sentido, a metáfora mais importante para a nossa época, em
que se impõem as biotecnologias (e, portanto, o problema da
biossegurança que visa o seu controle) seria a última.
Contudo, a concepção de natureza como “código” é de fato muito
antiga, pois já existe no pensamento hermético e cabalístico da
Antiguidade. Em particular, ela preside ao surgimento da semiótica na
arte médica, isto é, da capacidade de decifrar e interpretar indícios e
sintomas dos corpos. Neste sentido, ela é a redescoberta de uma antiga
competência reconhecida (a de “decifrar” e “interpretar” os indícios) e
reservada (às corporações dos médicos, dos magos, dos poetas, etc.), mas
integrada com a competência contemporânea em construir modelos
(matemáticos) capazes de trabalhar com uma realidade virtual em
substituição de uma realidade “real”. Mas, desta forma, a metáfora da
natureza-código parece condensar simultaneamente aspectos naturais,
culturais, científicos e tecnológicos, tornando-se hiper-densa. É
provavelmente por isso que alguns sociólogos falam da realidade virtual
como de hiper-realidade, isto é, de uma realidade “densa”, mais real que
o próprio real.4
Vejamos este ponto com mais detalhes.
4 BAUDRILLARD, J. 1981. Simulacres et simulations. Paris, Ed. Galilée.
4
Quando Galilei concebeu a natureza como um grande livro, escrito
em caracteres matemáticos, seu objetivo era o de fornecer uma descrição
da natureza em si e não o de apresentar um modelo matemático do qual
deduzir resultados numéricos, como queria o Cardeal Bellarmino e
conforme à cultura e à ideologia da época, ainda marcadas pela
concepção aristotélica, essencialmente dedutivista. Ou seja, Galilei queria
desvendar os segredos do próprio real, por meio de uma forma de
conhecimento capaz de espelhá-lo, o que lhe criou os problemas
conhecidos com a Igreja do seu tempo. Mas, ao mesmo tempo em que
Galilei queria dar um “retrato” da natureza, ele abria a possibilidade de
matematizá-la (através de modelos), assim como de racionalizar a cultura
(através da análise das “razões” na base das escolhas culturais), o que
permitiu o surgimento de uma cultura essencialmente leiga e
autenticamente científica. Esta embasava-se na concepção de natureza
como universo matemático.5 [111]
Uma conseqüência cultural importante da emergência desta
concepção racionalizadora é a emergência da possibilidade do mundo
construído matematicamente vir a se sobrepor ao mundo da vida. Isto se
justificava aos olhos dos modernos porque de fato a matematização
permitia uma exatidão impossível na prática concreta da experiência
comum. A matematização do real implicou, portanto, a construção de
formas ideais (ou “objetos” matemáticos) que se sobrepunham às formas
concretas (ou objetos), o que permitiu também o surgimento de máquinas
cada vez mais performantes e precisas no tratamento do real e no
fornecimento de serviços de vários tipos para o bem-estar humano. Mas é
desta sobreposição entre mundo da vida e mundo matematizado que
nasce a dicotomia entre ciência e cultura.6 Esta dicotomia atravessa o
5 HUSSERL, E. 1959. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transcendentale Phenomenologie. Den Haag, NL, Ed. Nijhoff.6 BISOGNO, P. 1995. “Natura, cultura, scienza e tecnologia”, Prometheus, 13 : 7-20 Milano, Adelphi, 3a ed. (1a ed. 1990).
5
imaginário do mundo moderno e cria dois tipos de atitudes contrastantes:
o entusiasmo incondicional para com o progresso científico (como no
positivismo) e o temor perante seus abusos (como nas atitudes atuais
relativas aos “perigos” da ciência).
Mas as duas atitudes, embora opostas, compartilham um mesmo
dado: a consciência do avanço inexorável da tecnociência. Este fato é
conhecido também como niilismo tecnocientífico, que consiste numa
espécie de imperativo categórico segundo o qual: tudo aquilo que é
tecnicamente possível fazer será inevitavelmente feito cedo ou tarde,
independentemente do fato que seja moralmente lícito ou não.
Com isso, o imperativo tecnológico desloca os próprios limites
morais, pois o que antes não caia no campo da moralidade - do
moralmente lícito ou ilícito - pela simples razão que era impensável, pode
hoje ser objeto de avaliação moral e até de questionamento da moral.
É neste contexto que, no meu entendimento, deve ser colocada a
questão da biossegurança e, portanto, da eticidade de alguns
procedimentos tecnocientíficos como aqueles das biotecnologias, em
particular das assim chamadas biotecnologias de segunda geração (ou
engenharia genética). Para tanto, é preciso distinguir duas formas de
tecnologia: a tecnologia convencional, que pertence ao campo da
tecnociência, e a biotecnologia, pertencente ao campo daquela que
chamaremos biotecnociência.
A distinção entre as duas está contida no radical bio, que indica ao
mesmo tempo uma inovação e o retorno a uma tradição pré-moderna, isto
é, à metáfora “natural”. Com efeito, contrariamente aos artefatos da
tecnociência clássica - que são verdadeiros artefatos inventados sem em
princípio nenhum modelo pré-existente - as tecnologias de segunda
geração operam tendo um “modelo” prévio, encontrado, de regra, nos
próprios processos naturais, ou em algum outro “exemplar” pré-existente.
Massimo Negrotti chama estes artefatos - que possuem um modelo prévio
6
ou “exemplar pré-existente” - de objetos propriamen-[112]te artificiais7.
Mas a este ponto é preciso justificar a utilização do termo “artificial”,
feita contra as evidências do senso comum que considera “artificial” tudo
aquilo que se opõe ao “natural” e é criado pelo homem. A resposta de
Negrotti é de que um objeto é artificial quando existe, por um lado, a
condição necessária dele ser realizado pelo homen, mas precisa, por outro
lado, da condição suficiente de ter como referência um exemplar, isto é,
algo existente na realidade natural ou em qualquer tipo de realidade pré-
existente ao objeto “artificial”. Em suma, “o artificial é sempre tal com
relação a algo diferente, sem o qual ele perderia sentido”8.
As metáforas do templo, do laboratório e do código, se sucederam
no tempo, (época clássica, época moderna, época pós-moderna) e
correspondem a momentos significativos da história da humanidade.
Sintetizando, poderiamos dizer que 1) o templo marca a distinção entre o
aspecto “sagrado” e o aspecto “profano” do mundo natural (ou a distinção
entre o momento “público” e o momento “privado” da vida humana); 2) o
laboratório indica já um momento em que o aspecto “sagrado” não tem
mais a relevância anterior, pelo menos no que diz respeito ao mundo
natural, pois este se torna legitimamente manipulável pela competência
lógico-científica que o “obriga” a desvendar suas leis (matematizáveis)
para os fins técnicos dos humanos; 3) o código, por sua vez, resulta de
uma abstração ainda maior, pois o material utilizado já não são mais
objetos concretos, mas uma sua virtualidade definida pela informação e a
modelização, que se tornam possíveis graças à aliança entre Ciências da
Linguagem e Ciências da Computação.
O PARADIGMA BIO-TECNOCIENTÍFICO
7 NEGROTTI, M. 1995. “Per una teoria dell’artificiale”, Prometheus, 13: 21-125.8
? ibidem, p. 24.
7
Começarei por definir o termo "paradigma".
Contrariamente a uma tradição epistemológica consagrada, utilizo o
termo paradigma na acepção do senso comum de "modelo" ou "padrão
de referência", que é também o sentido primeiro, dado pela filosofia grega
desde Platão9. Este sentido "comum" não é, aliás, contraditório com o
sentido mais técnico adquirido em filosofia da ciência graças a Thomas
Kuhn. Neste caso, paradigma significa essencialmente o conjunto de
crenças, hipóteses, métodos e protocolos, válidos racionalmente e
consensualmente, num determinado campo disciplinar e numa
determinada época, isto é, um "referencial" que os membros de uma
comunidade disciplinar, de forma geral, compartilham. Ou seja, também
[113] neste sentido mais técnico, um paradigma é algo a que nós nos
referimos quando fazemos ciência e que legitima nosso saber-fazer. Um
paradigma pode, portanto, ser considerado como um "padrão" para
pensar, agir e julgar.
Com a expressão paradigma biotecnocientífico quero indicar duas
coisas: 1) uma realidade que nos atinge, em princípio, a todos, e
resultante da assim chamada Revolução Biológica; 2) o fato de que esta
realidade constitui um dos tópicos principais das considerações morais
das sociedades contemporâneas, considerações organizadas de forma
disciplinar (ou "interdisciplinar" como preferem alguns) na Bioética.
A relevância do paradigma biotecnocientífico no mundo
contemporâneo decorre do fato de que, em princípio, todo o mundo está
(ou virá a estar) envolvido nos efeitos da Revolução Biológica
(fecundação in vitro e transferência de embriões; remédios obtidos pelo
saber-fazer das biotecnologias; modificação de plantas e animais pela
manipulação e reprogramação dos seus genes; combate às grandes
9 Platão utiliza o termo em dois sentidos diferentes: a) como "modelo", ou "projeto" (Eutifrone 6e; Timeu 28a al.) e b) como "exemplo" (Apologia 23b).
8
endemias e à fome, tratamento do câncer e da AIDS, e até de
características meramente indesejáveis, etc.).
Com a Revolução Biológica - que consiste essencialmente na
descoberta do código genético e na possibilidade de reprogramá-lo com a
finalidade de melhorar em princípio o nosso bem-estar -, o saber-fazer
humano adquire uma nova forma de competência: o tratamento da
informação dos sistemas vivos. Tais sistemas são sistemas altamente
complexos, cujas funções básicas são a "autoconservação", a "auto-
reprodução" e a "auto-regulação"10, mas que, em determinadas condições
(como aquelas propiciadas pelo saber-fazer da engenharia genética)
podem ser alterados em função dos desejos e projetos humanos. Desta
forma, a Revolução Biológica não permite somente descrever e
compreender a vida, mas também modificá-la, graças a uma nova forma
de saber-fazer proporcionado pela aliança entre tecnociências da
linguagem e tecnociências biológicas. Ou seja, o fato da biotecnociência
penetrar e transformar nossos sistemas de valores, e até "a própria noção
de valor"11, razão pela qual a filosofia prática deve inscrever esta
atividade técnico-operativa no campo das suas preocupações principais.
O paradigma biotecnocientífico constitui portanto um padrão de
competência em adaptar a própria "natureza" humana aos desejos e
projetos humanos; por exemplo, para aliviar o sofrimento, prevenir
doenças, melhorar as condições de vida, programar a qualidade de vida
dos descendentes, programar o fim da vida, etc. Quer dizer, em superar os
limites impostos pela dimensão orgânica à [114] condição humana,
graças àquilo que pode-se chamar de reprogramação da própria natureza
humana e que é, essencialmente, uma recusa dos limites impostos pela
evolução biológica.
10 ROSNAY, J. 1992. A aventura da vida. O que é ? Como começou ? Para onde vai ?. Petrópolis, Ed. Vozes, p. 39.11 CHRÉTIEN, C. 1994. A ciência em ação. Mitos e limites. Campinas, Papirus, p. 19.
9
Mas, como lembra François Jacob, um dos fundadores da biologia
molecular, se, por um lado, o humano "é o primeiro produto da evolução
capaz de dominar a evolução (...), em recusar a ser somente um animal",
por outro, "esta recusa a expressa desde suas origens"12; quer dizer, desde
que sabe selecionar os melhores grãos, domesticar e cruzar animais,
utilizar microorganismos para fazer o pão e as bebidas fermentadas. Em
suma, desde que sabe utilizar, selecionando os processos naturais para
seus fins, seu bem-estar. Nesta luta contra a sua condição humana
“natural”, a ciência moderna representa uma verdadeira revolução, pois
transforma radicalmente a competência técnica anterior, tornando-a
tecnociência. Quando esta atinge o patamar da competência em
"reprogramar" os próprios sistemas vivos - como acontece atualmente
com a Revolução da biologia molecular - temos aquela que chamo de
biotecnociência, e é esta que levanta atualmente uma série de questões
morais inéditas, pois o novo tipo de competência infringe praticamente
um tabu milenar. Como afirma ainda Jacob "se a biologia moderna parece
tão perigosa, é porque ela mexe (...) com a reprodução e a
hereditariedade, campos que permaneceram por muito tempo sagrados,
[portanto] tais trabalhos têm um sabor de saber proibido” 13. Prova disso
foi a Conferência de Asilomar na California em 1975, que analisou as
primeiras experiências com seres vivos, iniciou o debate público sobre a
licitude moral e tais experiências e propôs uma moratória.
Desta forma existe, desde então, também um novo paradigma moral
para enfrentar os problemas axiológicos relativos à vigência do
paradigma biotecnocientífico. Trata-se do paradigma bioético14 que, no
nosso caso específico, se refere ao padrão de reflexão e argumentação
12 JACOB, F. 1990. "L'homme maîtrisera-t-il son espèce?", La pensée aujourd'hui. Paris, Le Nouvel Observateur, Coll. Dossiers, p.18. 13 JACOB, F. 1990, op. cit., p.19.14 HOTTOIS, G. 1990.Le paradigme bioéthiqure. Une éthique pour la technoscience. Bruxelles, De Boeck-Wesmael,
10
sobre os valores e suas justificativas a respeito da vigência da
competência biotecnocientífica em "reprogramar" o fenômeno da vida.
Esta discussão se dá num contexto público em que se defrontam duas
posições fundamentais: uma visão essencialmente leiga, secularizada e
pluralista, e uma visão que chamarei de religiosa.
Atualmente, as discussões acerca dos dois paradigmas estão ainda
relativamente restritas ao âmbito dos especialistas: filósofos, teólogos,
juristas, profissionais das Ciências da Vida e cientistas sociais. Mas, nos
últimos tempos, parece tornar-se objeto de debate público, como indicam
os inúmeros artigos de jornais, programas da mídia e, sobretudo, os
projetos de lei e as leis já aprova-[115]das em vários países, inclusive no
Brasil15. O debate público sobre tais questões é necessário, se
considerarmos a possibilidade da competência humana em transformar e
recriar os processos biológicos vir a fabricar uma nova linhagem humana
(ou várias linhagens humanas), como resultante(s) de uma sinergia entre a
transformação irreversível do meio ambiente (e das condições de vida),
por um lado, e da reprogramação do ser humano, em vista da adaptação a
tal contexto transformado, por outro.
Esta competência em reprogramar a vida deve-se a uma dupla
revolução ocorrida nas Ciências da Vida e nas Ciências da Informação: a)
a "revolução terapêutica" (essencialmente empírica) e a "revolução
biológica" (mais propriamente racional), por um lado, e b) a revolução
informática, por outro. Ambas ampliaram o "poder da ciência" e,
consequentemente (pelo menos no dizer de alguns filósofos), o universo
dos "deveres do Homem"16.
15 Atualmente existe já aprovada uma Lei de Biossegurança; estão em tramitação no Congresso Nacional e no Senado um Projeto de Lei sobre a Pesquisa com animais de laboratório e uma Lei das Patentes e, desde janeiro de 1996, existe uma ampla consulta nos meios acadêmicos sobre a Resolução 1/88 que regulamenta, desde 1988, as experiências com seres humanos.16 BERNARD, J. 1990. De la biologie à l'éthique. Nouveaux Pouvoirs de la Science. Nouveaux Devoirs de l'Homme. Paris, Ed. Buchet/Chastel (trad. port. Saõ Paulo, Ed.Psy ii, 1994).
11
Mas, conceitualmente, o termo biotecnociência constitui uma
extensão semântica do termo tecnociência e indica a forma de saber-fazer
específica na época da emergência das biotecnologias (de segunda
geração) e da engenharia genética. Como já vimos, esta forma de
competência realiza antigas aspirações de controle da vida e da morte, já
amplamente relatadas pelos mitos, as artes e as técnicas desde a
Antiguidade. Ela não é, portanto, e em princípio, um fato
qualitativamente inédito da hominização. Pode-se, evidentemente,
discutir se e quando o quantitativo se torna qualitativo (por exemplo, se a
intensificação quantitativa da competência técnica humana não atingiria
por acaso patamares que a transformam qualitativamente), mas o mais
importante seja talvez aquilo que o bioeticista Maurizio Mori, ao longo de
seus escritos17, chama de mudança cultural perante tais práticas; ou seja, o
fato de que sua licitude ou não seja estabelecida não recorrendo a
princípios absolutos e transcendentes (lei divina ou natural), mas fazendo
referência a princípios imanentes às sociedades e culturas, portanto
relativos e negociáveis. De toda forma, no nosso entender, o fato novo
relevante é a construção de um novo olhar sobre tais práticas, quer dizer,
o surgimento de um novo ponto de vista que, após a lição de Saussure,
sabemos que constrói um novo objeto.
Mas a expressão paradigma biotecnocientífico indica ao mesmo
tempo (1) uma continuidade e (2) uma "revolução" com a tradição do
saber-fazer da Ciência Moderna: [116]
1) a biotecnociência continua a tradição moderna da ciência porque
realiza - aprofundando e estendendo - o ideal operativo que vinha
paulatinamente se substituindo ao tradicional primado da teoria
(epistême) sobre a prática (têchne), vigente desde Platão. A substituição
17 MORI, M. 1994. "A bioética: sua natureza e história",Humanidades, 9(4): 332-341.
12
se tornou possível abandonando progressivamente a relevância do
conceito de "essência" em prol dos conceitos de "função" e de "sentido".
Desta forma realiza-se o ideal "pragmático" de Francis Bacon de uma
ciência ao serviço da dominação da natureza e do bem-estar humano18.
Em suma, se é pertinente afirmar - como fez Jacques Ellul - que
com a tecnociência "a ciência tem se tornado um meio da técnica"19, com
a biotecnociência amplia-se este processo, acrescentando ao saber-fazer
já possuído novas competências criadas pelas ciências biomédicas, que se
tornam, desta forma, um meio das biotecnologias.
2) a "revolução" da biotecnociência ao interior da tradição operativa
e funcional da tecnociência moderna consiste no fato de não limitar-se a
considerar o mundo como mero Bestand ("fundo de reserva", "estoque")
ao serviço da razão instrumental e arrazoadora (ou Ge-stell)20, mas de
projetar e recriar o próprio "fenômeno da vida" na sua totalidade21, graças
aos meios da "engenharia genética", da "terapia genética", da
"eugenética", do "projeto genoma humano", etc.
Isto quer dizer que a revolução biotecnocientífica, ao integrar a
reforma da biologia humana no seu saber-fazer, reprograma a própria
condição antropológica como um todo.
Dentre dos vários questionamentos que a emergência desta nova
competência coloca às sociedades atuais, podemos destacar a questão
18 Como mostraram Piaget e Garcia, o contributo fundamental da revolução científica do século XVII (data de nascimento da ciência moderna) não foi nem um progresso nos instrumentos de observação nem uma sofisticação metodológica, mas a reformulação dos problemas, quer dizer, a "descoberta de novas questões que permitissem formular os problemas de maneira diferente" (PIAGET & GARCIA, 1987: 228). É isto que os autores chamam de mudança do quadro epistémico que caracterizaria uma revolução científica. Neste sentido, pode-se dizer que a ciência moderna é formada pelo novo quadro epistêmico definido pela funcionalidade e operatividade do saber científico. 19 ELLUL, J. 1954. La technique ou l'enjeu du siècle. Paris, Ed. Calmann-Lévy, p. 8. 20 HEIDEGGER, M. 1990. "Die Frage nach der Technik". In:Vorträge und Aufsätze, 6a ed. Pfullingen, G. Neske Verlag, pp. 9-41. 21 JONAS, H. 1974. Philosophical Essays. From Ancient Creed to Technological Man. Chicago, The Un. of Chicago Press
13
sobre a legitimidade moral deste tipo de práticas, que é justamente o que
em princípio permite fazer a bioética.
Esta questão prática diz respeito à legitimidade das ações concretas
do saber operatório da biotecnociência, perguntando-se pelos eventuais
vínculos entre o "universo dos fatos" e o "universo dos valores"
correspondente. E isso, apesar do fato de que tais universos não possam
ser confundidos, pois [117] contradiriam a famosa lei de Hume - que
impede a derivação daquilo que deveria ser daquilo que é, a confusão
entre "fatos"e "valores" -, praticamente aceita prima facie pela maioria
dos eticistas contemporâneos. A bioética pergunta-se, portanto, sobre a
legitimidade moral dos projetos e efeitos da biotecnociencia.
Mas com a "revolução" biotecnocientífica (que é ao mesmo tempo
biotécnica e logotécnica como vimos) o saber operatório não só
transforma o mundo em artefatos e objetos de consumo, mas adquire uma
nova dimensão: a competência em criar novas formas de seres vivos,
inclusive novos seres humanos, que se tornam, assim, novos objetos de
manipulação e de consumo ou - como diria Negrotti - novos “seres
artificiais”. Por isso, as questões éticas colocadas por esta nova
configuração da competência humana podem coerentemente ser
chamadas de bio-éticas (literalmente referidas a "objetos" vivos), vindo a
constituir o assim chamado "paradigma bioético"22.
O paradigma bioético seria, portanto, uma espécie de "referencial"
para a ponderação dos problemas axiológicos, resultantes dos novos
poderes do saber-fazer na época de vigência do paradigma da
biotecnociência.
Resumindo, pode-se supor que existe atualmente alguma forma de
sinergia entre o paradigma biotecnocientífico e o paradigma bioético. Esta
sinergia pode ser pensada como o encontro entre a operatividade da
22 HOTTOIS, 1994, op cit.
14
biotecnociência - que atinge o "corpo" das pessoas e a "carne do
mundo"23 - e o pragmatismo da bioética - que se questiona pelos valores
que informam o agir biotecnocientífico produzido por um imaginário
projetual que tem suas raízes no surgimento da Ciência Moderna, em
particular, no imaginário dos laboratórios. Como afirma Bruno Latour, "a
ciência não está fundada sobre idéias, mas sim sobre uma prática (...)
sobre as competências" desenvolvidas no espaço fechado do laboratório24.
O PARADIGMA BIOÉTICO: É POSSÍVEL UMA 'NOVA
ALIANÇA' ENTRE FATOS E VALORES?
A questão é complexa e, talvez, uma das mais polêmicas atualmente
em bioética, pois parece repropor a vexata quaestio da "falácia
naturalista" em ética, que consiste em deduzir deveres a partir da
constatação de fatos (aparentemente resolvida por David Hume e George
E. Moore com um redondo não).
Ademais, num mundo que é regido por uma pluralidade de interesses
e valores contraditórios entre si, parece difícil encontrar um denominador
co-[118]mum que não seja, na melhor das hipóteses, mera tolerância
entre pequenas diferenças "suportáveis".
Neste sentido, a "nova aliança” 25 seria, quando muito, só algo como
uma ética mínima, produzida para que exista alguma forma de
compromisso aceitável pelas partes, e elaborada ao interior de uma
23 MERLEAU-PONTY, M. 1986. Le visible et l'invisible. Notes de travail. Paris, Gallimard, Coll. Tel.
24 LATOUR, B. 1994. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro, Ed. 34, pp. 31-2.25 Esta expressão, como é sabido, deve-se à tentativa de estabelecer uma ponte entre saber científico e saber humanístico, feita por Ilia Prigogine e Isabelle Stengers (PRIGOGINE, I. & STENGERS, 1979. La Nouvelle Alliance. Paris: Ed. Gallimard). Aqui a utilizamos, num sentido um pouco diferente e restrito, de relação entre saber científico e ética, assim como foi enunciado pelo provável inventor do termo "bioética" Van Rensslaer Potter (POTTER, V.R. 1970. "Bioethics, The Science of Survival", Perspectives in Biology and Medicine, Autumn 1970: 127-53.
15
comunidade que, de fato, já deveria compartilhar os pressupostos de base
de um determinado ato lingüístico, a saber: a racionalidade e
imparcialidade da lógica argumentativa embasada na força do melhor
argumento; o respeito do princípio da não-autocontradição26.
Entretanto, é a própria vigência de um minimalismo ético que torna
possível estabelecer um conjunto "mínimo" de proposições pertinentes
sobre a biotecnociência, como maneira de iniciar um jogo lingüístico
racional, imparcial e não-excludente num mundo secularizado e politeísta.
Eis tais proposições:
1) a dimensão biotecnocientífica do saber-fazer contemporâneo afeta
a qualidade de vida de um número crescente de indivíduos e populações,
e a rigor de outros sistemas vivos não-humanos, assim como de seus
ambientes "naturais" que, por sua vez, afetam a própria vida humana
(exemplo típico é o caso de vírus e bactérias resistentes que volta a
preocupar seriamente as autoridades sanitárias do mundo inteiro);
2) ignorar este fato pode levar a dois tipos de atitudes, igualmente
problemáticas para a auto-realização da vida humana; a saber:
2a) a uma recusa "obscurantista" da própria transformação da
condição antropológica, que consiste numa ampliação do domínio de
realidade construído pelo humano e resultante da "contínua 'reunião no
homem' de territórios antes exteriores [e] igualmente contínua aplicação
de normas humanas a tais territórios"27;
2b) a glorificação "imprudente" da nova condição antropológica,
determinada pela aquisição da competência biotecnocientífica; quer dizer,
uma obcecada confiança no poder auto-organizador do sistema
biotecnocientífico que não precisaria de nenhum vínculo moral, pois este
26 Como é sabido, esta questão foi longamente debatida por Habermas, Lyotard e Rorty durante os anos 70 e 80 e a respeito da Modernidade, Pósmodernidade ou Modernidade Tardia caracterizando a nossa época. 27 PRODI, G. 1993 O indivíduo e sua marca. Biologia e transformação antropológica. S. Paulo, Ed. Unesp, p. 7
16
seria desnecessário, e até prejudicial, à própria evolução do mundo e do
homem.[119]
Como afirma Gilbert Hottois28, tanto a "recusa obscurantista" quanto
a "glorificação imprudente" da biotecnociência podem ter consequências
nefastas para a qualidade de vida das pessoas.
Com efeito, recusar a oportunidade de transformação da norma
humana pela reforma biotecnocientífica, poderia revelar-se suicidário
para a própria espécie humana, incapacitada de evoluir em contextos
radicalmente transformados. Nestes, o humano "desprovido" se tornaria
literalmente obsoleto, pois "nada nos autoriza a dizer que [a evolução
biofísica do universo] acabe com o animal simbólico que somos"29. Ou
seja, se considerarmos as rápidas transformações do mundo, parece
razoável afirmar que um dos fatores importantes desta evolução rumo a
uma eventual "nova espécie" humana, melhor adaptada a contextos
desconhecidos, só pode ser o aprofundamento da competência
biotecnocientífica. Contudo, considerando que "a imprevisibilidade faz
parte da própria natureza do empreendimento científico" e que "por
definição, aquilo que vamos encontrar é novo, logo desconhecido", não é
possível prever para onde irá, de fato, um determinado campo de
investigação, razão pela qual "não podemos escolher determinados
aspectos da ciência e recusar outros" mas tão somente "aceitar também o
lado imprevisível e inquietante"30.
Por outro lado, devido a este aspecto "imprevisível" e "inquietante",
a competência biotecnocientífica precisa de um acompanhamento
racional e imparcial, fornecido pela competência bioética, capaz de trazer
no espaço do debate público a crítica de eventuais guinadas autoritárias e
tecnocráticas, prejudiciais aos direitos das pessoas. Neste caso,
28 HOTTOIS, G. 1994. "Vérité objective, puissance et système, solidarité. (D'une éthique pour l'âge tecnocientifique)", Ruptures, revue transdisciplinaire en santé, vol. 1, n. 1, pp. 69-84.29 HOTTOIS, G. 1994, op. cit., p. 70.30 JACOB, F. 1990, op. cit., p. 19.
17
contrariamente aos avanços na ciência (que são parcialmente
imprevisíveis), suas aplicações práticas dependem de fatores previsíveis
que dependem também da autocompreensão que o humano tem de si e do
seu lugar no mundo, num determinado momento histórico e contexto
cultural. Neste sentido, a competência bioética pode constituir um redutor
do imprevisível, na medida em que informa o debate público sobre as
opções possíveis - e moralmente aceitáveis - nas decisões individuais e
coletivas concernentes aos rumos a serem seguidos.
Parece, portanto, razoável afirmar que a competência
biotecnocientífica deva aliar-se (de alguma forma a ser estabelecida em
cada momento histórico e em cada cultura) à competência bioética, como
forma de preservar uma análise crítica e imparcial, necessária para um
agir aceitável pelas várias partes em situações de conflito. Admitindo,
evidentemente, que as controvérsias possam ser resolvidas pacificamente
(o que é longe de ser evidente). [120]
Para tanto, pode-se afirmar que, nos dias de hoje, os problemas
práticos da vida humana reformada pelo paradigma biotecnocientífico
devam necessariamente ter em conta as discussões trazidas pela vigência
simultânea do paradigma bioético.
Em particular, defendo aqui a relevância de uma bioética leiga, que
considero, em princípio, mais adaptada ao contexto das sociedades
pluralistas num mundo prevalentemente secularizado e complexo, e isso
apesar dos fortes indícios atuais sobre uma nova forma de "religiosidade",
que permeia amplos setores das sociedades "pós-modernas", mas que
parece conviver muito bem com a sociedade de consumo.
As principais características da bioética leiga podem ser sintetizadas
da seguinte forma:
1) não ter nenhum princípio de autoridade heteronomamente
estabelecido, a não ser a autoridade construída pelo consenso livre entre
18
partes numa sociedade determinada. Como escreve Tristram H.
Engelhardt Jr., "sem este consentimento não existe autoridade” 31;
2) não ter nenhum princípio absoluto norteador das discussões em
âmbito público e legitimador da maior ou menor relevância de um
argumento, mas somente princípios prima facie, reguladores de conflitos,
"pelo menos para tudo o que diz respeito ao estabelecimento de uma ética
comum pública"32;
3) ser, em princípio, tolerante, respeitosa dos argumentos racionais
(publicamente relevantes) e das emoções privadas quando estas não
ferirem concretamente os iguais interesses de terceiros nem o interesse
público; em suma - como afirma Peter Singer – vale, neste caso, a igual
consideração dos interesses envolvidos, quer dizer o princípio segundo o
qual "um interesse é um interesse, seja lá de quem for esse interesse"33.
Resumindo, o paradigma da bioética leiga - como o acabamos de
delinear - parece mais adaptado à situação contemporânea, que é, em
princípio, secularizada e pluralista no espaço público, politeista e
tolerante no espaço privado.
Considero que a bioética leiga possa, por exemplo, fornecer
argumentos pertinentes para encarar algumas intricadas questões morais
como aquelas do meio ambiente "sustentável" e da engenharia genética
"terapêutica".
31 ENGELHARDT, H.T. jr. 1986. The Foundations of Bioethics. New York, Oxford Un. Press Inc., p. 86.32 HOTTOIS, 1990, op cit., p. 192.33 SINGER, P. 1994. Ética Prática. S. Paulo: Martins Fontes, p. 30.
19
O MEIO AMBIENTE SUSTENTÁVEL
Acompanhando o raciocínio desenvolvido até aqui - a
irreversibilidade dos fenômenos naturais; o paradigma construtivista
dominante nas ciências; a vigência progressiva do paradigma
biotecnocientífico nas nossas vidas concretas e o correspondente
paradigma bioético nas nossas vidas morais - pode-se [121] supor que a
sustentabilidade do planeta depende menos de uma atitude
preservacionista (que no máximo pode reduzir desperdícios e racionalizar
as relações "predatórias" homem-meio) do que de uma intensificação da
competência biotecnocientífica (capaz, em princípio, de adaptar o
humano a um ambiente transformado). Mas esta competência
biotecnocientífica deve estar vinculada à competência bioética, capaz de
fornecer as escolhas racionais mais adequadas para a sobrevivência e a
convivência humanas, num contexto complexo, pluralista e em rápida
transformação.
Assim, a partir dos vínculos entre paradigma biotecnocientífico e
paradigma bioético, possamos, talvez, encarar um dos possíveis cenários
para as gerações futuras. Para tanto vale citar novamente Engelhardt
quando argumenta que pelo fato da "natureza humana não ter nada de
sagrado (e [de que] nenhum argumento secular poderia declará-la como
sagrada), não existe razão para que ela não seja radicalmente modificada,
por razões particulares e com prudência” 34. Engelhardt vai mais longe
quando afirma que "não existe razão para se pensar que uma só espécie
derive da nossa, [pois] é possível que venham a existir tantas espécies
diferentes quantas são as razões para remodelar em profundidade a
natureza humana em função de novos ambientes” 35. Em suma, uma das
consequências diretas para as gerações futuras, derivantes das nossas
34 ENGELHARDT, 1986, op. cit., p. 377.35 ENGELHARDT, 1986, op. cit., p. 381.
20
escolhas atuais, pode muito bem ser uma pluralidade de "naturezas
humanas" adaptadas a ambientes radicalmente transformados e que,
portanto, requerem também uma nova competência ética leiga, pluralista
e tolerante.
A ENGENHARIA GENÉTICA
A necessidade de sobreviver num ambiente transformado e a
conseqüente emergência de uma nova "natureza humana", ou uma
pluralidade de naturezas humanas produzindo novas linhagens,
introduzem-nos à questão que - com uma expressão genérica amplamente
utilizada - chamamos de engenharia genética; em particular, às questões
específicas 1) da terapia genética; 2) da eugenética e 3) do Projeto
Genoma Humano.
1) Substancialmente, a terapia genética diz respeito à possibilidade
de corrigir prejuízos para a qualidade de vida saudável de indivíduos e
populações. Neste sentido, a terapia genética deve ser considerada como
qualquer outra terapia, e não usá-la significaria infringir os próprios
princípios de beneficência e de não-maleficência que legitimam o ato
sanitário desde Hipócrates. [122]
Não parece, portanto, haver nenhuma objeção moralmente relevante
contra o uso da terapia genética, desde que seja também respeitado o
princípio de autonomia do "consumidor", convenientemente informado e
consenciente, e o princípio da justiça (ou de "eqüidade"), que regula a
distribuição dos recursos disponíveis dentro do princípio da igual
consideração dos interesses em conflito.
Entretanto, existem várias objeções possíveis, desde aquelas de
cunho religioso (sobre a licitude em intervir nos desígnos de um Criador,
de "brincar de Deus", uma tradução com conotação negativa do inglês
21
playing God, propriamente “fazendo o papel de Deus”) e naturalista
(sobre a licitude em interferir na autopoiese do mundo natural), até
aquelas sobre as consequências imponderáveis, em longo prazo,
resultantes das intervenções sobre a linha germinal. Mas tais objeções,
embora pertinentes de outros pontos de vista e em outros contextos (por
exemplo, do ponto de vista religioso e em comunidades de tipo
"naturalista"), não o são aqui porque:
1a) as objeções religiosas e naturalistas não consideram
adequadamente o ponto de vista segundo o qual a "natureza humana" é
algo dinâmico, suscetível de ser remodelado pela própria competência
biotecnocientífica em rápida expansão; de que os processos naturais estão
submetidos também ao acaso e de que as soluções naturais nem sempre
são soluções ótimas;
1b) uma objeção aparentemente mais pertinente refere-se à terapia
genética aplicada à linha germinal pois - argumenta-se - as consequências
a médio e longo prazo são amplamente desconhecidas, o que nos
obrigaria, em princípio, a uma saudável "moratória". Esta objeção tem o
mérito de apontar para a necessária prudência quando lidamos com
sistemas dinâmicos complexos, como são os sistemas vivos e os
ambientes naturais. Contudo, escamoteia a própria questão colocada aqui,
que é a hipótese da terapia da linha germinal se tornar indispensável para
a existência das gerações futuras.
Assim sendo, a atitude moralmente relevante consiste em perguntar-
nos - como faz John Harris - se "é errado ou não, não proteger indivíduos
utilizando estes novos achados que aumentariam, de maneira eficaz, a
função ao invés de cuidar da disfunção" e se "é errado ou não, fazer uso
destes novos achados, que constituem melhorias para os indivíduos
humanos e para o genoma humano, ao invés de se ater a simples
22
correções reparadoras "36. Ou seja, para dar uma resposta moralmente
relevante temos que saber se o fato de "proteger os indivíduos que
poderíamos proteger venha a constituir um dano a seu respeito” 37. A
resposta - acredito correta - é de que tal proteção deva ser dada, pois, caso
contrário, teríamos abdicado da própria saúde pública (que se preocupa
em princípio com o bem-estar das populações) e da ética deontológica
[123] (que impõe os deveres da não-maleficência e da beneficência, no
respeito da autonomia individual).
2) Com este tipo de raciocínio pode-se também justificar a assim
chamada "eugenética", que, num sentido "positivo" (de não-maleficência)
nada mais é do que a terapia genética na sua forma preventiva em vista de
proteger a saúde e a vida das gerações futuras. De fato, graças à terapia
genética, pode-se, em princípio, fazer com que indivíduos com alguma
"disfunção" de origem genética, responsável por alguma doença ou
alguma suscetibilidade comprovadas, tenham uma descendência
competente para enfrentar os desafios de sua vida biológica; em
particular, de serem capazes de enfrentar e evitar danos à sua saúde.
Neste caso - como afirma ainda Harris - "se esta é eugenética, então
devemos ser a favor dela"38. Evidentemente, os desdobramentos abusivos
e discriminatórios, sob a forma de eugenismo, de racismo, de segregação
de doentes, etc., são sempre possíveis, mas isso não invalida o fato de que
a eugenética, corretamente entendida (i.e, com fins preventivos e
terapêuticos), represente um achado valioso para a adaptação humana e a
proteção da sua qualidade de vida. Recusá-la seria um pouco como
recusar outros objetos de consumo, considerados úteis, em nome de
36 HARRIS, J. 1993. "La biotecnologia nel 2000. Wonderwoman e Superman", Bioetica. Rivista interdisciplinare, 1: 25-39, p. 28.37 HARRIS, ibidem, idem.38 HARRIS, ibidem, p. 29.
23
eventuais abusos que desvirtuariam a função pela qual foram criados (tais
como a aspirina, as cirurgias plásticas, os transplantes, etc).
3) Já o Projeto Genoma Humano, e a conseqüente modificação do
código genético, parecem levantar questões morais mais substantivas.
Em primeiro lugar, porque o mapeamento do genoma torna
disponível um número praticamente ilimitado de dados sobre indivíduos e
populações alvos. Neste caso, coloca-se o problema do controle da
informação para evitar abusos. Mas a questão não é propriamente
bioética, pois os abusos podem muito bem ser evitados por uma
legislação de biodireito adequada, que proteja o direito à "privacidade" de
determinadas informações. Ou seja, os abusos são evitáveis graças a
alguma forma de controle do controle que garanta os direitos dos
cidadãos.
De fato, o mapeamento torna, em princípio, possível detectar
desordens genéticas responsáveis de doenças, assim como a
suscetibilidade a determinadas doenças profissionais; a determinados
climas; a determinadas alergias e a outros riscos, além de detectar
portadores assintomáticos de disfunções genéticas que podem ser
transmitidas para os descendentes. Mas pode, também, revelar que muitas
informações genéticas são de fato meras variações irrelevantes para a
qualidade de vida e a saúde (como parece ser a convicção de muitos [124]
cientistas engajados no próprio Projeto Genoma atualmente). Neste caso,
o mapeamento do genoma contribuiria para desmistificar uma série de
medos infundados.
De toda forma, as informações possuem "uma dupla face” 39: assim
como podem permitir encontrar terapias e estratégias preventivas, podem
também fornecer informações a terceiros, tais como empregadores,
companhias de seguros, instituições públicas, o Estado (e a própria
39 HARRIS, ibidem, p. 31.
24
família), que podem usá-las por fins não benevolentes e discriminatórios.
Mas, também neste caso, o risco do abuso não inviabiliza
necessariamente seu uso benéfico e valem, portanto, os argumentos
morais em defesa da realização deste projeto, sendo que os abusos podem
ser evitados pelo exercício da cidadania responsável e protegida por lei.
Contudo, este fato leva a pensar que o futuro da bioética terá
desdobramentos políticos e jurídicos relevantes (como já aconteceu com a
Conferência sobre população do Cairo em 1994 e aquela sobre a mulher
de Pequim em 1995), que podem resultar numa profunda transformação
do próprio paradigma bioético e de seus problemas relevantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento da competência biotecnocientífica parece ser
uma necessidade para a sobrevivência da espécie humana e para a
qualidade de vida.
Parece, portanto, pouco provável que as sociedades secularizadas e
complexas renunciem aos benefícios da biotecnociência, pois - como
lembra Hans Jonas - uma inversão de tendência no desenvolvimento
biotecnocientífico teria consequências desastrosas e incalculáveis40.
Entretanto, na avaliação complexiva dever-se-á também fazer as
contas com eventuais riscos.
A partir destas premissas, acredito que duas atitudes integradas
possam contribuir para evitar os cenários piores:
- uma atitude crítica e imparcial face aos riscos e às potencialidades,
ambos em princípio enormes: a imagem neste caso é o Jano de duas
faces;
40 JONAS, H. 1987. Technik, Medizin und Ethik. Praxis des Prinzips Verantwortung. Frankfurt: Suhrkamp Verlag.
25
- uma atitude eticamente responsável, engajada em acompanhar
individual e publicamente os atos da biotecnociência, e em praticar tanto
uma "sabedoria prudencial" quanto uma prevenção eficaz (quando for
necessária).
Concluindo, o quadro de possibilidades e perigos delineado pela
competência representada pelo paradigma biotecnocientífico é imenso;
implica numa responsabilização radical, delineada pelo paradigma
bioético, cujo princípio fundamental é, talvez, um tipo de solidariedade
antropocósmica que [125] - como sugere Hottois - seja ao mesmo tempo
dialógica (entre pontos de vista diferentes), procedimental (reguladora
dos conflitos de forma não violenta), pragmática (que não pretende
resolver os problemas a priori), aberta aos afetos (que perpassam as
decisões éticas racionais do humano), evolutiva (capaz de mudar de idéia
quando for necessário)41.
41 HOTTOIS, 1994, op cit., pp. 80-82.
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