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05 Milk-shake e Sangue
— SÁB 12h59min – Jardim Ingá (Bairro de Luziânia – GO) —
Na teoria, o caso em que estamos trabalhando é bem simples. Devemos apenas localizar a
mulher chamada Marta e revelar o seu paradeiro para o marido, Raniel. Feito isso, receberemos uma
quantia considerável de dinheiro independente da maneira que a situação entre os dois se desenrole
em seguida.
Porém, na prática não é algo tão fácil assim.
Desde que desapareceu, Marta tornou-se incomunicável. Seu telefone celular sempre cai na
caixa postal, e mesmo seus familiares afirmam não saberem onde ela se encontra. O que nos leva a
grande pergunta: como poderíamos localizá-la em uma capital gigante como Brasília? Isso sendo
positiva, pois ela poderia muito bem estar curtindo uma praia no litoral neste exato momento.
Resumindo, se tivessem jogado tal tarefa nas minhas mãos, eu, provavelmente, passaria o resto da
minha vida investigando e não a encontraria. Quanto a isso, ninguém teria o direito de me julgar,
afinal, esse era um pedido impossível desde o início. Entretanto, a palavra ‘impossível’ de forma
alguma pode ser associada à minha chefe.
— Alice, pode ser meio tarde, mas poderia me explicar como diabos você conseguiu localizar a
esposa tão rápido?
Nós duas estamos sentadas em uma loja de salgados na avenida de um bairro no entorno do
Distrito Federal, observando o interior de um restaurante fast-food no outro lado da rua. Lá dentro
encontrava-se a nossa fugitiva, cabelos curtos tingidos de loiro, trajando roupas casuais, bastante
diferente da pessoa requintada e bem vestida da foto que recebemos do marido dela.
— Ora, não é óbvio? A nossa amiguinha ali é uma das cabeças de uma organização gigantesca.
Por conta disso, mesmo que não atenda as ligações, ela é meio que obrigada a ficar conectada à
rede. Com esse fato em mente, só precisei abrir o meu notebook e pedir a ajuda de uns amiguinhos
no Facebook para poder invadir o celular dela e encontrar a localização do aparelho via GPS. — Riu
da minha expressão de confusão. — Imagine uma aranha no centro da sua própria teia. Só precisei
achar um único fio para saber a exata localização dela.
— Está ciente de que cometeu um crime, não é?! Também está ciente de que acabou de
confessar que todos os seus ‘amiguinhos’ na Web são criminosos, não é? Fala sério... Acho que não
me resta outra alternativa, terei que cortar a sua internet antes que acabe sendo presa.
— Não! Por favor, tudo menos isso! Prefiro que me mate primeiro! — Ela agarrou os meus
ombros com força, em completo desespero, feito uma viciada que acabou de ter a sua cocaína
apreendida. — E-eu já não tenho muitos amigos, e você ainda planeja me afastar dos poucos que
tenho?! Uuaa, meu Twitter, minha Netflix, meu DramaFever, como continuarei respirando sem
eles?! Tirá-los de mim seria o mesmo que arrancar todos os meus órgãos e jogá-los na privada! —
Me lançou um olhar sombrio. — Eu juro que se a internet for cortada, cometerei suicídio dentro do
seu quarto no mesmo dia! Farei com que carregue o peso dessa culpa para sempre!
— Que exagero... A sua vida é uma merda, sabia?
Tomei um longo gole do meu Milk-shake de morango para tentar recuperar um pouco da minha
paciência.
— Voltemos aos negócios. Sinceramente, apesar de estar bem longe de casa, Marta não
aparenta estar traindo o marido. Será que apenas não precisava de um tempo longe daquele babaca?
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Alice ignorava completamente as minhas palavras, deslizando vagarosamente pela cadeira para
insinuar que estava derretendo. Ela realmente está se esforçando para acabar com o meu
autocontrole.
— Uaaaaa... Isso está tão entediante... Bem que poderia cair um míssil gigante em cima daquela
lanchonete apenas para deixar as coisas mais interessantes.
— Fala sério, você não consegue parar de reclamar por um segundo? Na crise em que estamos,
não podemos ficar desperdiçando trabalhos por mais entediantes que sejam! — Dei um suspiro
prolongado. — Enfim, vou apenas ligar para o Raniel e informar a situação. Pegaremos o dinheiro e
daremos esse caso por encerrado.
Enquanto eu fazia a ligação, eis que um homem trajando um terno fino se aproximou da
entrada do restaurante, sempre observando os seus arredores para se certificar de que não estava
sendo seguido. Após entrar, foi imediatamente na direção da mesa de Marta e sentou na frente dela.
Como se tivesse sido ligada na tomada, a minha chefe recuperou toda a sua energia. Seus olhos
brilharam de tanto entusiasmo.
— Ohohoho... Parece que as coisas finalmente vão esquentar. No bom sentido, é claro.
Terminei o meu telefonema com um impiedoso ‘acho melhor se apressar’, guardei o celular e
tomei mais um gole do meu Milk-shake.
— Pensando melhor, esse não é um lugar que pessoas da classe deles frequentariam. Vestir um
terno em um bairro como esse é o mesmo que pedir para ser assaltado. — Comentei. — Mas ainda
assim, não parece que os dois estejam em um relacionamento...
— E o que você entende de ‘relacionamentos’? Alguém que sequer tocou em alguém do sexo
oposto durante a vida toda.
O líquido gelado ficou retido na minha garganta, fazendo-me tossir sem controle.
— Fique calada, pervertida. Tenho certeza de que no instante em que as pessoas descobrem
que você é louca de pedra, acabam fugindo com o rabo entre as pernas.
— Nesse ponto, a pura e impiedosa Lilian não é igual a mim? — Deu um olhar afiado. — Além
do mais, você ainda não fugiu, não é? Continua do meu lado mesmo sabendo exatamente o tipo de
pessoa que sou.
Não consegui negar as palavras dela. Na verdade, a única atitude que tive foi desviar o olhar
para fugir do sorriso venenoso que ela mantinha em seu rosto. Sinceramente, eu preferia que
continuássemos brigando por causa do clima.
Tornei a beber o meu Milk-shake.
— E outra, é claro que já tive contato físico com homens. Ou você realmente pensa que ainda
sou virgem? Que ingênua.
Dessa vez cuspi a minha bebida, tossindo rispidamente por quase meio minuto.
— Olha, olha! Ele está entregando algo para Marta! — Ignorando por completo a minha tola
reação, Alice tornou a observar atentamente o interior da lanchonete. — Não dá para ver direito,
mas me parece ser um HD externo.
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Após uma rápida despedida, o homem de terno deixou o estabelecimento à passos largos,
olhando desconfiado os seus arredores de vez em quando. Já a esposa fugitiva esperou por mais um
minuto, organizou seus materiais em uma bolsa e também deixou o estabelecimento.
— Ei, vamos segui-la!
Sem sequer esperar pela minha opinião, Alice saltitou atrás dela, atravessando a avenida.
Suspirei e, na minha própria velocidade, segui as duas enquanto apreciava o sabor refrescante da
minha bebida.
De repente, um carro popular preto passou por mim em alta velocidade, seus pneus quase
tocando o meio-fio da calçada. Os vidros eram escuros, por isso não fui capaz de enxergar o
motorista. No entanto, assim que o veículo se aproximou de Marta, a mesma entrou em desespero,
agindo como se já soubesse quem era a pessoa por trás do volante. Em seguida, correu em disparada
para a primeira rua que apareceu pela frente. Ao mesmo tempo, o automóvel deu uma freada brusca
e parou. Pude ver de relance o instante em que o motorista abandonou o carro de qualquer maneira
e começou a perseguir a mulher fugitiva. Por culpa da grande quantidade de pessoas na minha
frente, mais uma vez não consegui enxergar o rosto do perseguidor, mas como Alice estava mais
próxima, notei que ela havia o reconhecido.
Ignorando completamente o medo que se espalhava pelo seu corpo, minha chefe também
correu atrás dos dois.
— Alice, espere! Uah, fala sério!
Avancei à toda velocidade por entre o mar de pessoas, recebendo xingamentos sempre que
trombava em alguém. Virei na primeira esquina e corri pela rua deserta até encontrar a mulher de
cabelos pretos escondida atrás de uma caixa de entulhos. Me agachei ao lado dela.
— O que está acontecendo?
Mas sequer precisei de uma resposta. Os gritos desesperados da esposa desaparecida
anunciavam um provável assalto.
Como eu estava mais próxima da ponta da lixeira, observei a cena que se desenrolava. Um
homem de estatura mediana, usando roupas simples e uma touca ninja na cabeça, apontava uma
pistola 9mm na direção da loira. Gritava repetidamente para que ela entregasse a bolsa.
Por que Marta simplesmente não faz o que ele diz? Por que a está segurando com tanta força?
O que pode ser tão importante a ponto de arriscar a própria vida?
— Por favor, não! Não a leve! Não, por favor!
Entretanto, o ladrão inevitavelmente conseguiu o que queria. No mesmo instante, abriu a bolsa
e gargalhou ao avistar seja lá o que estava dentro.
Mas o pior evento possível ainda estava para acontecer.
Ao invés de ir embora com os pertences, o assaltante tornou a apontar a arma na direção de
Marta.
— Não... Não... Não faça isso... — Alice sussurrava sem parar, mesmo sem enxergar o que
estava acontecendo. — Não atire, por favor... Não atire... Não...
Contrariando-a, o gatilho foi pressionado pela primeira vez. O barulho do disparo feriu os meus
tímpanos, fazendo o meu cérebro zumbir. A mulher ao meu lado imediatamente sentou no chão e
escondeu a cabeça entre os joelhos, puxando os cabelos com força. Estava em estado de choque.
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Olhei mais uma vez por detrás da caixa de entulhos. Marta encontrava-se no chão, imóvel. No
entanto, como se quisesse garantir que ela nunca mais levantaria, o ladrão apertou o gatilho
novamente. Depois veio o terceiro, o quarto e o quinto tiro. Uma poça de sangue rapidamente se
formou ao redor do corpo daquela mulher.
Só então o silêncio retornou, e o homem fugiu correndo da cena do crime, desaparecendo ao
virar na rua seguinte.
Nós duas permanecemos escondidas por mais vinte segundos. Alice tremia compulsivamente
com os olhos lacrimejantes, como se ainda não acreditasse na barbárie que acabou de testemunhar.
Já eu me levantei e caminhei até a morta. Foram três tiros no peito, um no braço direito e um de
raspão na coxa esquerda. Havia sangue suficiente para encher os diversos buracos na pavimentação,
sangue capaz de embrulhar o estômago de qualquer um. Porém, acredito que eu não seja ‘qualquer
um’, afinal, tal cena sequer foi capaz de fazer a minha pressão disparar.
Para ser mais exata, reagi como se tivesse presenciado um acontecimento comum e entediante
do dia a dia. Meu coração sequer batia mais rápido que o normal, até porque não sinto nenhuma
compaixão pela pessoa que acabou de perder a vida.
Me agachei ao lado de Marta e tomei mais um longo gole do meu Milk-shake. Só depois levei
dois dos meus dedos até a jugular dela.
Acabei rindo ao notar que a minha mão sequer tremia ao tocar uma pessoa ensanguentada
pela primeira vez. Na verdade, foi como se eu já tivesse feito isso milhares de outras vezes.
Realmente, existem sérios problemas comigo, mas não é como se eu fosse incumbida de todos
os sentimentos, pois veja, acabei ficando um pouco surpresa.
— Ei, Alice... Acho que ela ainda está viva. — Disse enquanto finalizava a minha bebida, para só
então pegar o meu celular e discar para a emergência.
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FICHA TÉCNICA
Roteiro │ ANDERSON WILLIAM
Ilustrações │ ANDERSON WILLIAM
Revisão │ RENATA ALENCAR
Upload │ NOVELAND
@NoveLandOficial
Facebook.com/novelandBR
noveland.com.br
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