recados urbanos - kuster
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Recados Urbanos 1
Eliana Kuster
Introdução
Ao final do dia, o trapeiro atravessa a cidade. Recolhe papéis, latas, garrafas. Tudo
o que foi deixado nas ruas, todas as sobras da vida do consumo. Podemos pensar que
esse é um personagem urbano dos mais atuais. A cada cair de tarde nas grandes cidades
brasileiras nós os vemos, cada vez mais numerosos, puxando suas carroças, empurrando
sua pobreza. Mas esse personagem, embora cada vez mais contemporâneo, nasceu
junto com o urbano. À medida que as cidades cresciam e se faziam múltiplas, também se
multiplicaram os seus personagens. Assim é que Charles Baudelaire, no século XIX, já
nos falava dessa figura urbana: o trapeiro. Aquele que recolhe os restos da cidade. Diz o
poeta:
Aqui temos um homem – ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis.2
A partir da descrição do trapeiro feita por Baudelaire, Walter Benjamin vai traçar um
paralelo entre a sua tarefa e a do poeta. Segundo ele,
Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico. [...] Trapeiro ou poeta – a escória diz respeito a ambos; solitários, ambos realizam seu negócio nas horas em que os burgueses se entregam ao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos.3
Benjamin aproxima assim, as duas figuras, juntando-as no ato de recolha dos
restos da cidade. Cada um deles faz essa ‘seleção inteligente’ - destacada por Baudelaire:
em meio ao todo, retira daí uma certa cidade. Heróicos e solitários - porque se debruçam
sobre aspectos do cotidiano que outros desejam ignorar - os dois trabalham à noite, não
devendo ser tomado o horário aqui, necessariamente como uma afirmação literal, e sim
como uma metáfora para o que escapa ao olhar da maioria, o que é feito sob as sombras.
E mais, para o que precisa de tempo, de duração, para o ritmo de um trabalho que não é
feito no mesmo fluxo da vida rotineira. Rotina, aliás, é uma palavra inexistente no
dicionário de ambos: como vivenciar a rotina quando não há nenhuma previsão do que os
restos da cidade poderão trazer-lhes a cada dia?
1 O trabalho que se segue tem como forma final um vídeo. Neste artigo está o texto introdutório deste vídeo, acompanhado do roteiro narrativo e algumas fotos que ilustrem o tema. 2 Baudelaire, Charles. Oeuvres complètes, Curiosités Esthetiques, Bibliothèque de la Plèiade, págs 407/408. Citado em As Flores do Mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Mansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 256. 3 Benjamin, Walter. Paris do segundo império. in: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2000. p. 78/79.
É nesta linha que une o trapeiro e o poeta que se situa essa reflexão. Recolhendo
da cidade, não seus restos materiais, mas suas sobras discursivas. Trata-se aqui, de
promover a subversão da cidade moderna, entendida como esse espaço que privilegia
os fluxos, a velocidade, a chegada ao invés do percurso, e - ao contrário disso - conferir a
esta cidade um olhar que lhe permita tempo. O tempo necessário para que ela se
expresse. Captar assim, a “sua capacidade de fabulação que embaralha a tendência
racionalizadora, geometrizante, dos poderes que, com os desejos, os sonhos, as
experiências e as vivências dos homens, a querem ordenar e controlar.” 4
Trata-se, na verdade, de captar a fala da cidade, através destas curtas mensagens
que aqui estão sendo chamadas de recados. Estes podem ser da ordem do consumo ou
da ordem da pedagogia. Podem nos falar de revolta e de desespero. Podem nos contar
histórias ou nos mostrar ritmos. Busca-se proceder a um mapeamento destes recados
urbanos, que se espalham pelas cidades e ocupam espaços dos mais diversos. Podemos
encontrá-los em cartazes, placas, outdoors, graffitis. E, a partir desse olhar, é que surgem
algumas questões: O que a cidade nos mostra através dessas falas? Quais interdições e
quais possibilidades ela nos apresenta? A cidade sugere sua presença por trás desses
‘recados’. Deixa-se entrever, sem se figurar por inteiro, como quebra cabeças que tem
que ser montado para que consigamos apreender seu sentido. Parece pertinente aqui,
lembrar da indagação da filósofa Olgária Matos: “o que é uma cidade e quais as relações
que com ela mantemos?”5, ou seja, ao vermos as diversas mensagens espalhadas pela
cidade, conseguiríamos nós montarmos um diálogo coerente com elas, que nos inclua
como participantes da vida urbana? E, mais que isso, caso montado, em qual direção
esse diálogo apontaria e o que ele sinalizaria sobre a cidade que o contém?
Parafraseando Walter Benjamin, alguns desses pequenos recados poderiam se
caracterizar como uma “cultura da irreprodutibilidade técnica, uma cultura do efêmero” 6,
caminhando na contramão de seu pensamento. Configuram-se, portanto, como uma das
pequenas formas de resistência à massificação imposta pelo cotidiano hiper-moderno,
existindo aquela única vez, naquele preciso contexto, como reflexo de uma determinada
situação e – curiosamente – tornando-se mais presentes no momento de esgarçamento
dos laços sociais. É como se o que não se consegue dizer de outras formas, encontrasse
através desses meios a sua maneira de expressão.
Já outros recados sinalizam na direção oposta, e buscam forçar ainda mais a
inserção dos citadinos nos moldes da sociedade do consumo, nas ‘maxilas da deusa
4 Gomes, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23. 5 Matos. Olgária. Cidade, cidadão, cidadania. in Vestígios: escritos de filosofia e crítica social. São Paulo: Ed. Palas Athena, 1998. p. 58. 6 Id. Ibid. p. 59.
indústria’. Exaltam o consumo, a inserção em padrões de comportamento pré-
estabelecidos, a adoção de formas de vida já testadas.
É ainda Benjamin quem nos afirma que o critério para saber se uma cidade é
moderna é a ausência de monumentos 7. Uma vez que a cidade tenha abdicado de sua
história, face ao aceleramento do contemporâneo, os monumentos passam a não
corresponder mais ao sentido de sua concepção, já que estes só possuiriam significado
enquanto pedaços cristalizados de uma história e reforços para a construção da memória.
Os monumentos criam, portanto, um discurso sobre a cidade. Em paralelo a isso,
podemos apresentar essas falas: embora rapidamente substituídas, facilmente
descartáveis, também têm esse papel: ‘congelam’ temporariamente um pedaço de um
discurso, de uma história, de um personagem, na tessitura do urbano, qual pequenos
monumentos. Talvez estejam desempenhando essa função na cidade hiper-moderna. Se
seguirmos na direção apontada por Otília Arantes, que afirma serem os monumentos “a
alma da cidade, fatores de memória coletiva que configuram sua imagem” 8, esse paralelo
torna-se ainda mais pertinente.
A grande diferença está no fato de que, ao contrário dos marcos monumentais de
uma cidade, que são – obrigatoriamente - fortemente dotados de sentido de importância e
hierarquia, as falas congeladas nesses recados urbanos se abstêm desse aspecto.
Qualquer hierarquização pretendida pelas mensagens citadinas desaparece na
proliferação de signos. Ao misturarmos placas de trânsito, outdoors publicitários e graffitis,
tudo passa a possuir a mesma importância. Suas mensagens são veiculadas na mesma
equalização.
Nelson Brissac nos fala de uma proposta de exposição artística, a partir de uma
pergunta dirigida a fotógrafos que têm por tema de trabalho a guerra: ‘o que você
fotografaria se o mundo estivesse em paz?’. E nos apresenta o resultado: “se o mundo
estivesse em paz – se pudéssemos olhar para ele com vagar – as imagens teriam tempo.
[...] Tudo aquilo que as imagens apressadas não são capazes de apreender. Aquilo que
em geral – apesar de estar sempre ali, na nossa frente – não conseguimos ver.”9 Assim
são esses recados: estão ali. Sempre estiveram ali. Alguns, pelo seu caráter lúdico,
gracioso, agressivo ou criativo, até nos chamam isoladamente a atenção, no cotidiano.
Mas, quando paramos para olhá-los – e ao panorama apontado por eles - mais
atentamente, vemos que a cidade está dizendo muita coisa através desses recados.
7 Benjamin, Walter. apud Brissac, Nelson. Paisagens Urbanas. São Paulo: Ed. Senac / Marca d’água, 1996. p. 131. 8 Arantes, Otília. Arquitetura simulada. in O olhar. São Paulo: Companhia das letras, 1988. 9 Brissac, Nelson. Op. Cit. p. 182.
Vídeo - Roteiro
Em 1839, François Arago faz o primeiro daguerreótipo da cidade de Paris. Este nos
mostra a cidade com suas ruas estranhamente esvaziadas. Já estamos em um período
no qual o urbano se impõe como forma de vida. Então, onde estão as pessoas?
François Arago - Paris, 1839
Ali, na parte inferior da foto, vemos os dois únicos retratados: um engraxate e seu
cliente.
Como a técnica do daguerreótipo exigia um tempo de imobilização para a fixação
da imagem, apenas estes dois personagens – os únicos que estavam parados no
burburinho da cidade – passaram à história.
A fotografia exigia um tempo. A cidade demanda um tempo? Qual o tempo
necessário para se registrar uma cidade? E, nesses registros, o que a cidade tem a nos
dizer?
Quanto mais rápido tudo se move, menor a possibilidade da percepção. Tudo se
torna paisagem, chapada contra um mesmo plano. E nessa paisagem, cada vez mais os
ouvidos se ensurdecem, os olhos se velam, os paladares se assemelham, as preferências
se uniformizam, as vozes se calam. Mas a cidade precisa falar.
E ela fala.
Resta saber se nós escutamos os “Recados Urbanos”.
E quais são, afinal, os recados que as cidades nos mandam?
Perdidos na balbúrdia do dia a dia, estes podem ser de diversas ordens:
Os mais visíveis, na cidade contemporânea, são os que nos falam da necessidade
do consumo. Eles se espalham por placas, outdoors, adesivos, postais, banners,
empenas de edifícios, e até pelo asfalto. Apropriando-se de linguagens das mais diversas,
a publicidade oferece, impõe, confronta. Às vezes, podemos até confundi-la com alguma
outra manifestação da cidade, mas, quando olhamos mais atentamente, é ela que está lá,
fixando seus produtos em nossa mente. Ela é a parte mais visível das falas urbanas. Ser
urbano é consumir.
Exemplos de publicidade urbana. Diversos locais.
Mas outras questões também querem se fazer ouvidas na cidade. Elas talvez não
encontrem suportes tão bem localizados, iluminados e visíveis quanto os da publicidade.
Mas estão ali, para quem se disponha a vê-las.
Dizem respeito, muitas vezes, à pedagogia da cidade. É, conviver em um espaço
urbano implica em um aprendizado. Algumas normas já são estabelecidas de longa data,
seu significado já foi assimilado, e algumas já se tornaram invisíveis: não as percebemos
mais. Outras, nem tanto.
Placas de rua em Vitória
Esse aprendizado urbano pode ser feito da forma mais tradicional, sistematizada,
usando uma linguagem já previsível e padronizada.
Pode ser feito por meio de símbolos cujo significado, em geral, já é bastante
conhecido de quem transita pelo espaço urbano. Isso não significa que serão sempre
respeitados...
Placas de rua em Vitória
Mas existem as outras maneiras. Sem padronização ou sistematização, elas se
espalham pela cidade.
Usam o humor...
Usam a agressividade...
Usam a ironia...
E, na maior parte das vezes, tem um desempenho bastante eficaz...
Placas e cartazes de rua. Diversos locais.
Aqueles que, de alguma maneira incomodam-se com esta “sistematização” do viver
urbano – que se dá através dessas regras civilizatórias ou do incessante estímulo ao
consumo – também encontram espaços na cidade onde fazer a sua voz ser ouvida.
As pichações e os grafittis estão aí, qual tatuagens urbanas, criticando formas de
vida, regras, valores.
Muitas vezes, tentando tornar o ambiente ao redor menos hostil...
Banksy - Graffiti no muro de Jerusalem
Às vezes, a intenção é exatamente o contrário...
Anônimo - Graffiti no centro do Rio de Janeiro
Ou em outras situações, apenas fazendo com que o passante olhe em volta com
mais atenção. Quem sabe se aquela parcela da população que raramente é percebida for
transformada em arte, consiga assim mais atenção...
Jef Aerosol - Graffiti em Paris
Linguagem tipicamente urbana, uma das principais características do graffiti é o
humor. Um bom graffiti tem o poder de nos alçar de nosso cotidiano, rumo a outra
realidade.
Há outros assuntos sobre os quais fala a cidade:
Muitas vezes, ela nos dá conselhos.
Graffiti de rua
Ela transmite ideais, formas de vida, filosofias, valores, estética...
Vendedor de rua em Brasília
Ela fala de si mesma, às vezes em um lamento, outras vezes, como uma mulher
bonita e vaidosa, que olha no espelho e gosta do que vê...
Graffiti de rua em Lisboa
A sua sociabilidade também está lá, ainda que, muitas vezes, ela seja abafada pelo
seu oposto...
Placa em Vitória Placa em frente à casa particular
(foram colocadas também: paz, respeito, solidariedade, amor)
E ela também fala do seu desespero, de forma quase silenciosa, mas está ali,
presente, para quem se disponha a ouvir...
Jenny Holzer - Série Truisms
E a indignação? Com a política, com o consumo, com os padrões estéticos, com a
vida, com a morte. Ela está ali. Às vezes agressiva, às vezes mascarada por trás de
humor. Mas falando cada vez mais alto...
Outdoor nas ruas de Vitória
Por fim, a cidade conta a sua história. Não aquela que está nos livros ou nas
construções. Esta também está lá. Mas a nós, interessa aquela menos aparente. Aquela
que é feita das pequenas, quase imperceptíveis narrativas. A história dos seus nomes,
dos seus personagens,...
Túmulo do escritor Paul Eluard - Paris.
A história das suas cicatrizes,...
Sepultura em homenagem às vítimas de Auschwitz - Paris.
A história dos seus lugares,...
Placa no interior da Igreja de Notre Dame - Paris.
E a história das suas festas, das suas comemorações,...
Comemorações de Reveillon na rua.
De quantas histórias é feita uma cidade?
Bibliografia
Arantes, Otília. Arquitetura simulada. in O olhar. São Paulo: Companhia das letras, 1988.
Baudelaire, Charles. As Flores do Mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Mansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
Benjamin, Walter. Paris do segundo império. in: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2000.
Brissac, Nelson. Paisagens Urbanas. São Paulo: Ed. Senac / Marca d’água, 1996.
Gomes, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
Matos. Olgária. Vestígios: escritos de filosofia e crítica social. São Paulo: Ed. Palas Athena, 1998.
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