racismo e etnicidade - recensão crítica
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Universidade do Algarve
Escola Superior de Educação e Comunicação
Mestrado em Educação Social (2013/2015) - 1º Ano – 2º Semestre
Unidade Curricular de Racismo e Etnicidade
“Contextos e Percepções de Racismo no Quotidiano” de: Fernando Luís Machado (2001), Sociologia, Problemas e Práticas, nº 36, pp.53-80.
Docente:
Prof. Dr. João Filipe Marques
Discente:
Ricardo da Palma, nº 43043 Faro, 10 de julho de 2013
Recensão Crítica Mestrado em Educação Social Contextos e Percepções de Racismo no Quotidiano
Ricardo da Palma
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O presente trabalho, resultante da recensão crítica do artigo intitulado «Contextos e
Percepções de Racismo no Quotidiano», do autor Fernando Luís Machado, publicado no ano
2001 na revista científica Sociologia, Problemas e Práticas, nº 36, pp.53-80, insere-se no
conteúdo programático e avaliativo da Unidade Curricular (UC) de Racismo e Etnicidade, do
1º ano - 2º semestre do Mestrado em Educação Social, ministrada, orientada e coordenada
pelo professor João Filipe Marques.
A escolha deste artigo foi influenciada não só pela importância do tema, constantemente
presente nos estudos das diversas áreas das ciências sociais, mas também pela forma frontal e
séria com que o autor aborda questões fundamentais e domínio sobre o racismo e xenofobia.
No artigo ora recenseado é apresentada a posição do autor sobre a forma como é encarado o
racismo por parte dos migrantes residentes em território português, posição essa resultante
dos inquéritos e entrevistas em profundidade efetuadas a migrantes guineenses, o que lhe
permitiu produzir considerações importantes, consistentes e sustentadas pela realidade
experienciada.
Entendo, pelo seu teor, que este artigo se encontra estruturado em quatro blocos,
expostos de forma organizada e com dados e bibliografia de qualidade, o que leva o autor a
justificar e evoluir o seu pensamento de forma segura.
Num primeiro bloco, efetuado em género de introdução, o autor apresenta algumas
considerações teóricas e históricas quanto ao conceito do racismo bem como a sua evolução e
contextualização no território nacional, desde a chegada dos colonos migrantes vindos
maioritariamente de África, e alguns conceitos e interpretações esclarecedoras dos dados
apurados no estudo e da forma como foram recolhidos.
Num segundo bloco, intitulado por «Contextos e percepções de racismo: o que dizem os
migrantes», são apresentados pelo autor os dados resultantes dos inquéritos e entrevistas em
profundidade efetuados aos migrantes guineenses, onde se podem verificar as perceções e
assunções que os mesmos têm sobre o racismo bem como o distinguir graus de severidade e
natureza e aferir formas diferenciadas de expressões preconceituosas e de práticas racistas e
xenófobas.
Denominado por «Variações sociais na percepção de racismo», o terceiro bloco
pretende mostrar o que representa o racismo para a sociedade portuguesa e se existem ou não
diferenciações sociais na perceção do racismo e apresentar alguns fatores dessas
diferenciações, os quais identificados pelos próprios migrantes.
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O quarto bloco, que o autor intitulou de «Contrastes, continuidades e racismo», o
mesmo pretende apresentar a diferença cultural enquanto fator preponderante nas expressões
de racismo e mostrar as diferenças (sociais, culturais e étnicas) existentes entre minorias
“contrastantes”, que tendem a permanecer desenquadradas da sociedade e são sujeitas as
maiores expressões racistas, e entre minorias de “continuidade” que se apresentam mais
próximas (espacial, social e culturalmente) da sociedade onde estão integrados.
Entendi ser relevante iniciar a presente recensão com uma abordagem, embora que
superficial, ao racismo à luz da interpretação de alguns autores da Psicologia Social, uma vez
que considerei necessário estabelecer uma articulação entre esta área científica, a Sociologia e
o pensamento do autor, no sentido de encontrar uma definição-guia do conceito para melhor
condução e resultado deste trabalho.
Assim, e indo ao encontro do pensamento de Cabecinhas (2010), que afirma que o
racismo tem alterado quer os seus alvos (ciganos, negros, indianos, etc.) e todos os mitos que
o justificam (menor inteligência, incultos, mais perigosos, etc.), quer os interesses (mão-de-
obra barata, exploração, etc.) bem como as atividades a que estão conotados (marginalidade,
perseguição, isolamento, etc.), podemos efetivamente constatar que o racismo é distinto entre
culturas e estratos sociais e inclusivamente entre perfis sociais das próprias vítimas.
No entanto, é um facto que em Portugal não existem muitos estudos sobre a questão do
racismo e muito menos sobre as perceções das suas vítimas, apesar do tema do racismo, da
xenofobia, e de todos os estereótipos, preconceitos e discriminações que giram à sua volta não
serem temas novos e até estarem na ordem do dia. Sobretudo no que toca às minorias étnicas,
como os ciganos, migrantes indianos, africanos e do leste da europa, essencialmente, e
inclusivamente judeus. Nomeadamente, nas últimas três décadas, áreas como a Sociologia,
Psicologia Social e a Antropologia, têm-se debruçado sobre o estudo do racismo e da
xenofobia enquanto problemáticas recorrentes em vários países europeus, países estes que têm
vindo frequentemente a subsidiar estudos para que se chegue a consensos políticos que visem
tomar medidas e criar legislação para este campo (Silva, 2000). Tais medidas, embora pouco
salientes no nosso País, quer pela ausência de expressões racistas e pelo «luso-tropicalismo»
referido pelo autor, que entende que os partidos políticos portugueses, da esquerda à direita,
apesar de reconhecerem a existência de algum «racismo subtil» acabam por não tomar
medidas «anti-racistas ou antixenófobas» (Vala, Brito e Lopes, 1999, citado em Machado,
2001, p.53), quer, como Boaventura de Sousa Santos (1993) defende, pela dificuldade que
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Portugal sempre teve em legislar, ou melhor, pela flexibilidade, por vezes exagerada, na
interpretação e aplicação das leis, que mostra, assim, alguma despreocupação quanto a esta
problemática. O sentido de raça continua a organizar o entendimento que se tem dos outros e
a manobrar o discurso de exclusão, dissimulado socialmente pela identidade cultural e
canalizado constantemente para o campo da natureza. Neste sentido, é legítimo continuar-se a
falar de racismo, não obstante a palavra raça ter sido afastada do discurso científico e político
(Cunha, 2000; Taguieff, 1997).
O autor argumenta, que Portugal não é, de todo, um país com tendências racistas ou
xenófobas, quer no plano social quer político. No plano social pela ausência de grandes
manifestações ou iniciativas de incitamento a comportamentos e atitudes racistas ou
xenófobas; e no plano político na medida em que não são visíveis grandes ligações e relações
de ideologias políticas e partidárias a práticas racistas. Contudo, não nos podemos esquecer
dos movimentos violentos de skinheads dos anos 90 que chegaram a levar à morte um jovem
luso-africano (Alcindo Monteiro) na noite de 10 de junho de 1995 (dia que os skinheads
comemoraram o Dia da Raça) em pleno Bairro Alto. Crê-se que estas manifestações racistas
e de extrema violência vieram, por sua vez, despoletar ligações a partidos políticos com
ideologias de extrema direita e neonazis, como no caso da Frente Nacional, criada em 2004 e
resultante das divergências internas no Partido Nacional Renovador (PNR), fundado no ano
2000. Esta Frente Nacional, com princípios baseados no nacionalismo exacerbado viria a ser
liderada por Mário Machado, assumido skinhead, e que em 1997 foi julgado e condenado a 4
anos e 3 meses de prisão por envolvimento na morte de Alcindo Monteiro, arrastando
consigo mais 15 skinheads envolvidos neste crime (e outros). Mais tarde, estes skinheads
viriam a integrar o grupo de supremacia branca denominado por Hammerskins Portugal,
também liderado por Mário Machado (que acumulou penas de prisão preventivas e efetivas
até 2010, encontrando-se a cumprir 10 anos de prisão efetiva) mas já sem qualquer conotação
política partidária e que o mesmo, numa entrevista dada por si em 19-05-2014 no sítio de
notícias on-line www.observador.pt, assumiu estar atualmente dissolvido. Com esta breve
ilustração sobre os skinheads em Portugal (acessível em qualquer sítio da internet), e não
obstante o autor ter-se apoiado no paradigma de Wieviorka (1991) que defende que em
Portugal a existir racismo tratar-se-á de um “infra-racismo” ou “racismo fragmentado”, uma
vez que comparativamente com outros países europeus não apresenta acontecimentos racistas
significativos nem se verifica uma estreita ligação entre políticas partidárias a práticas
racistas, e apesar da existência de acontecimentos racistas, como o caso de 1995 e que viria a
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ter contornos e ligações políticas, permite-nos partilhar da posição do autor quando este refere
que “(…) o racismo é um problema também da sociedade portuguesa” (p.53) e, como tal, não
obstante a baixa representatividade, deverá ser encarado cada vez mais como um campo de
estudo e de intervenção.
Segundo o autor, fundamentando-se em Baganha (1996) e França (1993), os
portugueses, de uma forma geral e comparativamente com outros países da União Europeia
(UE), não se consideram racistas nem se sentem incomodados com a presença de pessoas de
outras raças, culturas, religiões ou nacionalidades. Contudo, esta posição é facilmente
contraposta quando nos deparamos com expressões do género eu não sou racista mas
ucranianos(as) não…, ou eu não me importo que o meu filho brinque com ciganos(as) mas se
puder evitar…, ou ainda até me sento à mesa com um(a) africano(a)…, entre outras. Em
expressões como estas é claramente percetível a carga negativa e depreciativa e que
Cabecinhas (2007) entende como uma diferenciação do outro e que leva ao sentimento de
inferioridade de uns, e logo, superioridade de outros. Neste sentido, Lima (2002) entende o
racismo é
«(…) um processo de hierarquização, exclusão e discriminação contra um indivíduo ou
toda uma categoria social que é definida como diferente com base numa marca física
externa (real ou imaginária), a qual é resignificada em termos de uma marca cultural
interna que define padrões de comportamento». (p.27)
O mesmo autor indica que o racismo é, assim, mais do que um processo dinâmico de
compreensão das caraterísticas físicas e culturais do outro, é acima de tudo a construção e
naturalização das diferenças, cujo propósito, como defendem Cabecinhas e Amâncio (2003), é
balizar a liberdade dos “grupos dominados”, confinados a funções e papéis específicos, de
modo a garantir, legitimar e justificar a posição privilegiada ocupada pelos “grupos
dominantes”. Contudo, e como refere Guillaumin (1992), somente são objeto deste processo
de naturalização os “grupos dominados” ou “minoritários”, uma vez que este processo de
“racialização” seguido de um processo de “etnicização” verifica-se em relação aos grupos
dominados e não aos grupos dominantes (Vala, Lopes, Brito,1999).
No artigo, Machado baseia-se na teoria de Cabral (1997b) para contextualizar o
racismo em Portugal, apontando como caraterísticas fundamentais a histórica expansão
nacional e do colonialismo dos séculos XIX e XX e posterior regresso a território nacional
dos ex-colonos, essencialmente Africanos, os chamados de retornados, e a subsequente
transformação do país num território recetor de imigrantes e, logo, multicultural. É a partir da
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revolução de Abril de 1974, com maior incidência na década de 80 e com a chegada não só de
retornados mas também de africanos negros à procura de novas e melhores condições de vida,
e quando Portugal, coincidentemente, começa a crescer economicamente, que surgem as
primeiras diferenciações raciais e onde o racismo se começa a afirmar com maior
consistência.
Esta imigração é vista pelo autor como um contexto indispensável, em certa medida,
para a compreensão do racismo e, essencialmente, a partir da década de 80 veio efetivamente
provocar uma transformação social em Portugal que contava com cerca de 200.000
estrangeiros residentes no início dos anos 90, apesar de cerca de 40 % estarem em situação
ilegal. É então, no início desta década, que os investigadores portugueses se começam a
interessar pelo fenómeno da imigração, já que, por hábito, Portugal sempre foi tido como um
país de rejeição de emigrantes e de movimentos migratórios internos (Esteves, 1991).
Esta abertura às novas etnias, direcionada sobretudo para as grandes metrópoles,
forçou o convívio entre portugueses e migrantes e impôs à sociedade portuguesa uma
convivência multicultural. Apesar das relações estreitas da sociedade portuguesa com a
emigração, vista como um dos fatores que levaria à natural integração dos migrantes
africanos, apenas atestou a inversão dos fluxos de saída nacionais onde aumentaram os
trânsitos de entrada, cuja alteração desses fluxos veio intervir nas dinâmicas da população
portuguesa, sem que com isso tornasse o país isento de racismo (Marques, 2007).
A imigração socialmente considerada como uma ameaça, quer económica quer de
segurança, nem sempre está interligada ao conceito de racismo, como defende o autor. De
uma maneira geral, a perceção da sociedade portuguesa é que só aqueles imigrantes com
maior visibilidade social (p.e. por razões socioeconómicas, cargos, emprego/desemprego ou
por razões criminais, etc.) são conotados como ameaças sociais. Já os imigrantes da UE e de
países ocidentais, os quais representam mais de 40% dos estrangeiros em Portugal, como
Machado refere, não se consideram vítimas de preconceito ou discriminação racial. O mesmo
não se poderá dizer ao analisarmos as perceções dos guineenses participantes no estudo que,
partindo de experiências pessoais e profissionais e de uma forma genérica, consideram que há
muito racismo em Portugal (63%).
Estas perceções, alicerçadas apenas nas observações e nos dados resultantes do estudo e
não nas observações das atitudes ou comportamentos que conduzem ao racismo ou à
xenofobia, são mediadas pelas perceções que levaram os participantes a sentirem-se vítimas
de racismo no seu quotidiano e em diferentes contextos de interação. Isto é, a forma como
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estes migrantes se sentem vítimas de racismo depende de vários fatores nos seus campos
inter-relacional (amizade, afetividade, sexualidade, etc.) e social (acesso a serviços de justiça,
saúde, educação, residência, transportes, etc.). A dificuldade do(a) negro(a) em estabelecer
relações afetivas com o(a) branco(a), o casamento e a sexualidade, bem como o evitar o
diálogo e o contato físico nos transportes públicos e o excesso de fiscalização por serem
negros, são estigmas identificados pelos próprios migrantes como indicadores de racismo na
sociedade portuguesa no quotidiano e que nada têm de “subtil” mas sim de “flagrante” na
medida em que a sociedade (leia-se indivíduos, grupos e instituições) não se inibe em
exprimir publicamente atitudes (conscientes e inconscientes) de racismo e com respostas que
vão contra a norma anti-racista (Cabecinhas, 2010).
Além das perceções de racismo dos migrantes nos planos social e da interação
apresentados no estudo de Machado, foram identificados outros sentimentos de racismo
ligados ao exercício da profissão e da qualificação profissional. O facto de ser negro, como se
pode verificar nos excertos das entrevistas, prejudicou os migrantes quer no pleno exercício
da sua profissão, com manifestações preconceituosas, quer no reconhecimento de
qualificações literárias, onde o facto de ser branco prevalece e onde o negro é
descredibilizado e desvalorizado. Esta diferenciação em contexto de trabalho leva a que o
empregador construa mentalmente uma hierarquia de juízos de valor baseados nas
caraterísticas particulares e físicas dos candidatos, sendo, assim, atribuída uma função
preconceituosa e, logo, “racializada”, tal como defende Miles (1989). Não menos gravosas
são as ofensas verbais carregadas de expressões depreciativas e que tendem a rebaixar o
migrante que, pela precaridade laboral e muitas vezes ilegal mas únicas para a sua
subsistência, tem de suportar essa descriminação flagrante. Neste sentido, o autor deixa no ar
a questão de como será o mercado de trabalho de amanhã em termos raciais, com o aumento
gradual do desemprego e ainda com uma provável qualificação dos filhos destes migrantes
que com uma aposta na qualificação e formação tenderão a romper o ciclo dos empregos
precários e ilegais. Aliás, como refere Machado (1994), existe atualmente uma boa parte da
população migrante, apesar de pouco significativas e acima de tudo constituídos por
migrantes luso-africanos, com cargos diretivos empresariais e profissões intelectuais e
científicas e que se encontram bem firmados na sociedade portuguesa.
Ainda dos resultados apurados no estudo de Machado, baseados nas experiências dos
migrantes que manifestaram ter familiares portugueses bem como os que indicaram terem
cônjuges nacionais, os valores são inferiores aos daqueles que disseram não ter família ou
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casado com algum(a) português(a). Os resultados baseados nas experiências passadas na rua e
da interação no dia-a-dia destes migrantes, que quando acompanhados por amigos
portugueses brancos apresentam valores mais baixos do que aqueles que estão sozinhos ou
com outros migrantes, apesar de em ambas serem verificadas formas claras de preconceito e
descriminação racial. Estes dados mostram a pluralidade de contextos em que ocorrem
manifestações racistas e onde são identificados vários indicadores que mostram que o racismo
e a gravidade com que é caraterizado pode ter várias formas e já se manifesta há vários anos
no nosso território.
Recorrendo à analogia entre o seu estudo e o estudo de Essed (1991) efetuado a
mulheres negras Holandesas e Norte-Americanas (EUA), Machado pretende mostrar que as
manifestações racistas também podem depender do que esta autora chamou de “cenários de
racismo”. O racismo manifestado na procura de quarto para alugar, entrada em lojas e saídas
com homens brancos foram os cenários mais identificados em manifestações racistas, alguns
deles também apurados no estudo de Machado.
A variável contexto de vizinhança é também apresentada no estudo de Machado
quanto às perceções de racismo. Como o autor refere (fundamentando-se em Marques,
Margarida, Santos, Santos e Nóbrega, 1999, e Craveiro e Meneses, 1993; Alves, 1994;
Quedas, 1994; Gonçalves, 1994 e Machado, 1999), apesar da existência de várias etnias na
mesma zona residencial, bairro, aldeia, vila e até mesmo cidade, não justifica per se que essa
coexistência espacial interétnica e inter-racial promova experiências relacionais e interativas
saudáveis e pacíficas.
Pelos testemunhos apresentados no estudo, o autor salienta o facto do racismo flagrante
estar bem presente na sociedade portuguesa, rompendo assim com a ideia generalizada de
Pettigrew (1993, 1999) que todo o racismo nacional assume uma forma subtil.
São apontados ainda pelo autor vários fatores relacionados com a forma diferenciada
como os próprios migrantes se encaram de acordo com o status de cada migrante, a profissão,
a própria etnia, o género, a língua e a religião, e que mostram a variação da perceção do
racismo. A forma diferenciada como os guineenses do género feminino, de religião
muçulmana e as classes operárias mais desfavorecidas sentem sofrer de racismo é mais alta do
que nos homens, nas religiões manjacas e macanhas e nas profissões enquadradas em quadros
técnicos, respetivamente. A diferenciação destas perceções, apesar de sustentadas somente
pelo estudo do autor, pode, de uma maneira geral, depender das circunstâncias de integração
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dos migrantes na sociedade portuguesa e das suas interações pessoais e profissionais no dia-a-
dia.
Existem também variações de ordem espacial, como no caso das etnias muçulmanas que
tendem a aglomerar-se de forma mais concentrada do que a média das restantes etnias (p.e. a
comunidade Hindu residente no Martim Moniz, em Lisboa), o que torna as suas perceções
mais ativas uma vez que a sua rede de sociabilidade é dentro do próprio grupo, o que leva a
que não resultem grandes relações sociais fora do grupo e, logo, torna-as mais consistentes
enquanto minorias contrastantes (Machado, 1999).
Em género de conclusão, este artigo, pela rica fundamentação teórica apresentada
acrescida ao facto do estudo se basear nas perceções das próprias vítimas, contribui para um
esclarecimento mais sólido e para uma interiorização mais próxima da realidade do conceito
de racismo. Bastante elucidativo quanto ao seu conteúdo e devidamente estruturado, permite-
nos concordar, acima de tudo, com a posição do autor quando este indica que as perceções de
racismo mais do que criadas de forma holística e fora de contexto real são reguladas pela
forma como os migrantes interagem e em função do perfil social de cada um, sendo certo que
as minorias étnicas mais contrastantes tendem a favorecer o aumento do racismo enquanto as
de continuidade a sua redução. E isso é, atualmente, por exemplo, perfeitamente visível nas
comunidades ciganas, onde a própria constituição étnico-racial das suas redes de sociabilidade
(pares) apresenta um papel fundamental na definição dessas perceções. Na comunidade
cigana ainda se verifica a fraca relação de sociabilidade interétnica e não favorece a ideia de
que quanto mais e maiores relações existirem entre várias e diferentes etnias maior será a
tendência em não existir racismo na sociedade.
Este contributo literário, ora recenseado, leva-nos a refletir sobre a forma como
devemos encarar o racismo e que, apesar de produzido há 13 anos, apresenta-se muito atual,
infelizmente… e infelizmente porque é sinal que não houve grande mudança. Sendo certa a
existência de contrastes culturais na nossa sociedade e que tendem a gerar manifestações
preconceituosas e discriminatórias que levam a que se intensifique o racismo e a exclusão,
cabe-nos a nós, enquanto Educadores Sociais, o dever de capacitar, estimular, educar e
intervir positivamente na vida das pessoas e da sociedade de forma a mostrar que o caminho a
percorrer será o do princípio da interculturalidade, que passa pelo desafio lançado pelo efeito
da globalização e das suas condições étnicas e culturais. Identidade, homogeneidade e
diversidade são os eixos orientadores da interculturalidade e tem na educação e nas suas
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instituições e agentes os meios de desenvolvimento. Tem como valores basilares a paz, a
cidadania, os direitos humanos, a igualdade, a tolerância, a educação multicultural… É que
falar de interculturalidade não é o mesmo que falar de multiculturalidade, como já foi falado
anteriormente neste trabalho. O conceito de interculturalidade refere-se a um estímulo às
capacidades criativas e essenciais derivadas das interações entre pessoas nos respetivos
contextos e é neste campo das interações que se verifica a diferença entre ambas. A
interculturalidade implica a convivência entre culturas existente num determinado
contexto/espaço, enquanto a multiculturalidade apenas se limita a indicar existência de
culturas diferentes sem que haja uma cultura de convivência. A interculturalidade aponta não
apenas para a formação mas também a integração das pessoas em todo o tecido social, perante
o individualismo e a cultura consumista e imediatista da globalização e admite a educação
democrática, a transnacionalidade da mesma, bem como a oposição à hegemonia de certas
culturas sobre outras (Fleuri, 2009).
Como refere o autor, o facto de se verificar racismo no quotidiano não significa que
exista racismo quotidiano. Ou seja, apesar se reconhecer a existência de racismo na nossa
sociedade não significa que o mesmo esteja estruturalmente presente em todos os contextos e
interações, sendo certo que este fenómeno acorre em todas as etnias, culturas, países, etc. e
que a sua origem se fundamenta na ignorância, no medo de novas culturas e a crença da
existência de raças superiores e inferiores.
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