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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
MARIA RENEUDE DE SÁ
ANALFABETISMO E ALFABETIZAÇÃO:
REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORAS-ALFABETIZADORAS DE CAMPONESES
QUILOMBOLAS JOVENS E ADULTOS
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO: CURRÍCULO
SÃO PAULO
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
MARIA RENEUDE DE SÁ
ANALFABETISMO E ALFABETIZAÇÃO:
REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORAS-ALFABETIZADORAS DE CAMPONESES
QUILOMBOLAS JOVENS E ADULTOS
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO: CURRÍCULO
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor em
Educação: Currículo, sob a orientação da Profa. Dra
Marina Graziela Feldmann.
SÃO PAULO
2012
BANCA EXAMINADORA
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A Fátima, minha irmã.
A Gracinha Jardim, in memoriam.
AGRADECIMENTOS
À Professora Marina Feldmann, por assumir comigo os riscos da produção deste trabalho,
manifestando seu apoio nos momentos necessários.
Às professoras: Ana Maria Saul, Eliete Santiago, Helenice Ciampi e Solange D’Água, pelas
valiosas contribuições.
À Universidade Federal de Alagoas pela liberação para o curso e à CAPES pela concessão da
bolsa Prodoutoral.
A Ana Cláudia, Josafá, Cristiane e Vera, funcionários da Secretaria Municipal de Educação
de União dos Palmares, pela colaboração na realização da pesquisa.
A Claudete, Jane, Roberta e Salete, do Programa Brasil Alfabetizado de União dos Palmares,
pelo apoio logístico e acompanhamento nas visitas às classes de alfabetização no campo.
A Patrícia, Márcio Bruno e Maria Luiza, Enrique e Vanessa, por acreditarem que eu seria
capaz de dar conta desta tarefa.
Ao meu pai, irmãos, irmãs e demais familiares, por me incentivarem a “ir tocando em frente”.
Às minhas amigas e aos meus amigos que sempre estiveram presentes, mesmo quando
ausentes. São tantos! Poderia nomeá-los, mas creio desnecessário. Eles sabem que são meus
amigos e que os quero tanto que me são indispensáveis.
A Ana Maria, Ana Paula e Jailza, em nome das quais agradeço às professoras e aos
professores-alfabetizadores do PBA de União dos Palmares, que participaram deste trabalho.
A Pai Toinho, pela hospedagem luxuosa em União dos Palmares.
Um agradecimento especial à Comunidade de Muquém, nas pessoas de Dona Sônia e Seu
Adalto, meus anfitriões, pela acolhida generosa.
Tocando em frente
Almir Sater e Renato Teixeira
Ando devagar porque já tive pressa
levo esse sorriso porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe
só levo a certeza, de que muito pouco eu sei, eu nada sei
Conhecer as manhas e as manhãs
o sabor das massas e das maçãs
é preciso amor pra poder pulsar
é preciso paz pra poder sorrir
é preciso a chuva para florir
Penso que cumprir a vida seja simplesmente
compreender a marcha e ir tocando em frente
Como um velho boiadeiro levando a boiada
eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou
estrada eu sou
Conhecer as manhas e as manhãs
o sabor das massas e das maçãs
é preciso amor pra poder pulsar
é preciso paz pra poder sorrir
é preciso a chuva para florir
Todo mundo ama um dia todo mundo chora
um dia a gente chega e no outro vai embora
cada um de nós compõe a sua história
cada ser em si carrega o dom de ser capaz
de ser feliz
RESUMO
Instalando-se no Brasil desde a colonização, o analfabetismo vai-se tornando,
progressivamente, um problema histórico. Além da negação de um direito constitucional,
conferido a todos os cidadãos, a condição de analfabeto reduz o exercício da cidadania no
mundo contemporâneo. Sua existência inquieta pesquisadores das ciências sociais e humanas,
que buscam realizar estudos que contribuam para sua compreensão e enfrentamento. Neste
trabalho, procurei desenvolver um estudo sobre o analfabetismo por meio da análise de
representações de professoras-alfabetizadoras de camponeses quilombolas jovens e adultos,
relacionando-as ao contexto socioeconômico e cultural e à formação docente. Para isso, adotei
uma metodologia qualitativa com investigação etnográfica, realizada no ano de 2010, na
comunidade de Muquém, descendente do Quilombo dos Palmares, localizada no município de
União dos Palmares, no Estado de Alagoas. Os resultados da análise apontaram, na
construção das representações das professoras sobre alfabetização e analfabetismo,
fragmentos de conhecimentos formais adquiridos, provavelmente, em ações de formação
docente, leituras de material específico da área, como o livro didático utilizado nas classes de
alfabetização, entre outros; crenças sedimentadas no imaginário coletivo sobre o
analfabetismo e a alfabetização; saberes desenvolvidos em e sobre sua própria prática
pedagógica no exercício da alfabetização; troca de experiências com seus pares em diversas
situações, entre outras fontes de conhecimento. Por meio de suas representações, as
professoras buscam explicações e justificativas que respondam a suas inquietações em sala de
aula. Ora essas representações evidenciam o ocultamento de questões relacionadas à prática
docente, que podem estar contribuindo para o problema do analfabetismo, ora anunciam
possibilidades de mudança. Entre as considerações conclusivas, o estudo aponta a importância
de se priorizar, nas ações de formação docente, um princípio fundamental defendido por
Paulo Freire desde seus primeiros estudos na década de 1950, a reflexão crítica sobre a
prática, possibilitando aos professores reverem suas concepções e reorientarem suas práticas
pedagógicas.
Palavras-chave: Alfabetização. Analfabetismo. Representações de professores. Formação de
professores.
ABSTRACT
Settling in Brazil since colonial times, illiteracy is becoming, increasingly, a historical
problem. In addition to the denial of a constitutional right granted to all citizens, the illiterate
condition reduces the exercise of citizenship in the contemporary world. Its existence uneasy
social and human sciences researcher who seek carry studies that can contribute to their
understanding and facing. In this work I decided to develop a study on illiteracy through the
analysis of representations about this issue from literacy-teachers of young and adult peasants
descendent of historical African people (quilombolas), relating these representations to their
socio-economic and cultural context and to their teacher training. For this, I adopted a
qualitative methodology with ethnographic research conducted in the year 2010 in Muquém
community, descendent of the Quilombo dos Palmares, located in the municipality of União
dos Palmares, in Alagoas state. The results of the analysis showed, in the construction of
representations of the teachers on alphabetization and illiteracy, fragments of formal
knowledge, acquired, probably in teacher training activities, reading material of the specific
area, such as the textbook used in alphabetization classes, among others; established beliefs in
the collective imaginary about illiteracy and literacy; and on knowledge developed in and
about their own teaching practice in the exercise of literacy; exchange experiences with their
peers in several situations, among other sources of knowledge. Through their representations,
the teachers seek explanations and justifications that respond to their concerns in the
classroom. Sometimes these representations indicate the concealment of issues related to the
teaching practice, which may be contributing to the problem of illiteracy, sometimes advertise
possibilities for change. Among the conclusive considerations, the study shows the
importance of priority in the formation courses for teacher, a fundamental principle advocated
by Paulo Freire, from his early studies in the 1950s - a critical reflection on practice, allowing
for the teachers to revise their views and redirect their pedagogical practices.
Key-words: Alphabetization. Illiteracy. Representations of teachers. Teachers formation.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Crescimento absoluto (●) e taxa de crescimento (■) da população
analfabeta com 15 anos ou mais de idade no Brasil - de 1900 a 2000 ......
23
Figura 2 Lagoa Encantada dos Negros. Serra da Barriga. União dos Palmares -AL 54
Figura 3 Residência de um artesão na comunidade de Muquém ............................. 64
Figura 4 Aula de capoeira infantil na comunidade de Muquém .............................. 74
Figura 5 Escola municipal no povoado de Muquém ................................................ 81
Figura 6 Classe de alfabetização de jovens e adultos no Muquém .......................... 89
Figura 7 Sala de aula no Centro Comunitário de Muquém....................................... 107
Figura 8 Professora Anita durante uma aula na escola municipal de Muquém ....... 147
Figura 9 Aula de alfabetização de jovens e adultos no Centro Comunitário de
Muquém .....................................................................................................
154
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Analfabetismo na faixa de 15 anos ou mais de idade - Brasil – 1900/2000 22
Tabela 2 Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e Taxa de Analfabetismo da
População de 15 anos ou mais – 2000 .........................................................
24
Tabela 3 Taxas de analfabetismo e analfabetismo funcional das pessoas com 15
anos ou mais de idade, por situação de domicílio, nas grandes regiões
brasileiras – 2005 .........................................................................................
25
Tabela 4 Taxas de analfabetismo e analfabetismo funcional das pessoas com 15
anos ou mais de idade, por situação de domicílio, na região Nordeste –
2005 ..............................................................................................................
26
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CNAEJA - Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos
CNE - Conselho Nacional de Educação
EJA - Educação de Jovens e Adultos
FNDE - Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
GPT - Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDH - Índice de Desenvolvimento Humano
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação
PBA - Programa Brasil Alfabetizado
PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
PRONERA - Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
Sebrae - Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e Pequenas Empresas
SECADI - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
UFAL - Universidade Federal de Alagoas
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 13
CAPÍTULO 1 ANALFABETISMO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES 18
1. O analfabetismo no Brasil: um problema histórico ............................................. 18
2. No campo, o problema do analfabetismo piora ..................................................... 28
3. Formação de professores: uma visão crítica .......................................................... 31
3.1 A formação docente na visão de pensadores progressistas ................................. 31
3.2. A formação de professores na legislação nacional .............................................. 38
3.3. A formação do professor de Educação de Jovens e Adultos (EJA) .................. 45
CAPÍTULO 2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS E
DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA DE CAMPO ................
49
1. Orientação teórico-metodológica ........................................................................... 49
2. Desenvolvimento da pesquisa de campo ................................................................ 50
CAPÍTULO 3 O CONTEXTO DA PESQUISA ..................................................... 54
1. O Município de União dos Palmares ..................................................................... 54
1.1 Do Quilombo à União dos Palmares ..................................................................... 54
1.2 Caracterização socioeconômica do Município ..................................................... 56
1.3 Atendimento escolar aos jovens e adultos ............................................................ 58
1.4 O Programa Brasil Alfabetizado e seu funcionamento no Município ............... 59
2. O Muquém e sua comunidade ................................................................................. 64
2.1 Origem e meios de vida ......................................................................................... 65
2.2 Habitação ................................................................................................................. 67
2.3 Alimentação ............................................................................................................. 68
2.4 Espiritualidade e práticas religiosas ..................................................................... 72
2.5 Práticas de preservação da cultura e transmissão de saberes ............................ 73
2.6 Atendimento escolar ............................................................................................... 80
CAPÍTULO 4 REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORAS-
ALFABETIZADORAS SOBRE ANALFABETISMO E
ALFABETIZAÇÃO .........................................................................
83
1. Professora Anita ....................................................................................................... 83
1.1 Dados biográficos da professora ........................................................................... 84
1.2 Relação da professora com a questão étnico-racial ............................................. 87
1.3 A classe de alfabetização da professora Anita .................................................... 89
1.4 Representações sobre analfabetismo ................................................................... 90
1.5 Representações sobre alfabetização ..................................................................... 99
2. Professora Mariana ................................................................................................. 104
2.1 Dados biográficos da professora .......................................................................... 104
2.2 Relação da professora com a questão étnico-racial ........................................... 105
2.3 A classe de alfabetização da professora Mariana .............................................. 107
2.4 Representações sobre analfabetismo .................................................................. 110
2.5 Representações sobre alfabetização .................................................................... 114
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 118
REFERÊNCIAS............................................................................................................ 121
APÊNDICES
APÊNDICE A – Roteiro de entrevista com a gestora local do PBA no município
de União dos Palmares ................................................................................................
128
APÊNDICE B - Roteiro de entrevista com coordenadoras de turma do PBA...... 130
APÊNDICE C - Questionário – Coordenadora de EJA.......................................... 132
APÊNDICE D - Relatório de visitas a classes de alfabetização de jovens e
adultos em áreas rurais do município de União dos Palmares...
136
APÊNDICE E – Caracterização dos professores entrevistados.............................. 144
APÊNDICE F – Roteiro de entrevista com professores-alfabetizadores................ 145
APÊNDICE G – Formulário de coleta de dados dos professores-alfabetizadores 146
APÊNDICE H – Uma aula da professora Anita ..................................................... 147
APÊNDICE I – Uma aula da professora Mariana .................................................. 154
ANEXOS
ANEXO A - Extrato da LDB ...................................................................................... 159
ANEXO B – Programa Brasil Alfabetizado – Formação Inicial ............................ 162
ANEXO C - Programa Brasil Alfabetizado – Formação Continuada..................... 165
ANEXO D - Letra da música Marinheiro Só............................................................ 167
ANEXO E - Hino do Município de União dos Palmares – AL ............................... 168
13
INTRODUÇÃO
Meu interesse pelo estudo do problema do analfabetismo em populações jovens e
adultas originou-se das atividades acadêmicas que venho desenvolvendo ao longo de 39 anos
de vida profissional, no exercício da docência e de atividades correlatas na educação básica e
na educação superior.
Integrando o corpo docente da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) nos últimos
17 anos, venho lecionando nos cursos de Pedagogia e nas demais licenciaturas. Tenho
participado de pesquisas e de projetos de extensão na área de educação de jovens e adultos,
por meio de convênios da UFAL com órgãos públicos federais, a Secretaria Estadual de
Educação de Alagoas, secretarias municipais de educação e organizações da sociedade civil.
Desde 1998, tenho me dedicado, mais especificamente, a atividades de extensão e pesquisa
relacionadas à educação de populações do campo.
Essas vivências levaram-me, no curso de mestrado, a eleger essa área como campo de
estudo. Por meio de uma pesquisa qualitativa, analisei a visão de camponeses, residentes em
assentamentos rurais de Alagoas, sobre necessidades de conhecimentos letrados e demandas
de escolarização (SÁ, 2002)1. A escolha desse objeto de estudo originou-se do desejo de
investigar o problema histórico do baixo aproveitamento dos programas nacionais de
alfabetização de jovens e adultos no Brasil, constatado por diversos estudos da área2.
No mestrado investiguei a visão de camponeses egressos de programas de
alfabetização de jovens e adultos sobre as razões que os levavam a buscar, insistente e
reiteradamente, matrícula em classes de alfabetização de jovens e adultos, porém, quando
conseguiam acesso, em pouco tempo, a maioria as abandona sem ter adquirido, pelo menos,
habilidades mínimas de leitura e escrita.
Entre as suposições apontadas pela pesquisa, constatei que a insistência dos
camponeses na busca de matrícula em classes de alfabetização devia-se à percepção da
1 A pesquisa de campo foi realizada em 11 assentamentos rurais de seis municípios de Alagoas, com 30
camponeses na faixa etária de 16 a 58 anos, egressos de classes de alfabetização do Programa Nacional de
Educação da Reforma Agrária (PRONERA). 2 Cf. Di Rocco (1979); Freitag (1984); Romanelli (1986); Paiva (1987); Freire (1993); Di Pierro (2000); Haddad
e Di Pierro (2000); Ferraro (2009), entre outros.
14
necessidade de conhecimentos letrados em sua vida cotidiana, conforme concluo nas
considerações finais da dissertação:
[...] conhecimentos letrados são percebidos pelas camadas populares rurais como
necessários ao melhor desempenho de atividades práticas na vida cotidiana. São
atividades relacionadas, predominantemente, ao trabalho no contexto atual de
desenvolvimento do meio rural brasileiro, em áreas onde conhecimentos científicos
e processos tecnológicos foram incorporados à produção econômica. Essa
necessidade relaciona-se, também, às expectativas da família camponesa em
melhorar sua qualidade de vida (SÁ, 2002, p. 141).
Essa percepção parece justificar o abandono das classes de alfabetização pelos
camponeses, na medida em que eles constatam que os processos de ensino não estão lhes
proporcionando as aprendizagens almejadas, levando-me a supor que:
[...] se os processos escolares possibilitarem o atendimento às suas expectativas e
necessidades, os camponeses, além de buscarem acesso à escola, nela permanecerão
para concretizar as aprendizagens desejadas e esperadas, apesar de condições
pessoais adversas, tais como: pouca disponibilidade de tempo, cansaço,
preocupações com a família e o trabalho, distância da escola e, até mesmo,
problemas de saúde. Isto leva à suposição de que os camponeses perdem a
motivação, se desinteressam e abandonam os processos de escolarização porque
percebem que não estão se concretizando as aprendizagens desejadas e esperadas.
(Ibid, p. 141).
Desse modo, sem desconsiderar os efeitos negativos de fatores de ordem
socioeconômica sobre a escolarização das camadas populares, as suposições registradas na
pesquisa do mestrado mostraram relação direta entre o insucesso dos programas de
alfabetização de jovens e adultos e fatores pedagógicos referentes aos processos de ensino,
decorrentes, provavelmente, do tipo de políticas de educação destinadas à escolarização
básica da população jovem e adulta no Brasil.
Em termos gerais, a pesquisa reiterou resultados de outros estudos, ao concluir que as
próprias políticas educacionais têm contribuído para a manutenção do analfabetismo no
Brasil.
[...] é possível afirmar que as políticas de educação inclusas nas políticas sociais
desenvolvidas pelo Estado brasileiro, especialmente aquelas destinadas às
populações jovens e adultas, produzem a exclusão escolar por meio de um processo
de “inclusão marginal”, dada a forma perversa como têm promovido a exclusão
escolar (Ibid, p. 142).
Essas conclusões levaram-me à decisão de ampliar, no doutorado, os estudos
realizados no mestrado, investigando o analfabetismo por meio de uma análise de
15
representações de professores-alfabetizadores3 sobre o problema. Abordar o analfabetismo
sob esse ângulo deve-se à compreensão, fundamentada em trabalhos sobre o tema
(KLEIMAN, 2001; PENIN, 1989, 1994), da relação existente entre o fazer pedagógico do
professor (prática de ensino) e sua visão (concepções) sobre questões que envolvem esse fazer
(representações).
Desse entendimento decorreu a definição do objetivo geral deste estudo: analisar
representações de professores-alfabetizadores de camponeses quilombolas jovens e adultos
sobre analfabetismo e alfabetização, estabelecendo relação com o contexto sociocultural, sua
formação docente e suas práticas pedagógicas alfabetizadoras.
Na versão inicial do projeto de pesquisa, previ um estudo de representações sobre
analfabetismo. Entretanto, ao começar as entrevistas com os primeiros professores, constatei
que, ao tratarem do analfabetismo, a alfabetização surgia entrelaçada a ele, sem que um tema
se limitasse a ser o contrário do outro, conforme esclarece Ferraro, fundamentando-se no
pensamento de Paulo Freire: “[...] nem o analfabetismo se reduz à simples ausência de
alfabetização, ou a mero desconhecimento da técnica de ler, escrever e contar, nem a
alfabetização se limita à aprendizagem e domínio da técnica de ler, escrever e contar”
(FERRARO, 2009, p. 21). Na base dessa concepção, reside a dimensão política do
analfabetismo como um problema social e a alfabetização como um processo de
conhecimento.
Com esse entendimento, reorientei a abordagem do problema do analfabetismo,
passando a considerar a alfabetização no estudo das representações das professoras-
alfabetizadoras.
O referencial teórico que fundamenta este estudo situa-se no campo do pensamento
crítico-dialético. Nesse campo, selecionei autores de algumas áreas de conhecimento
pertinentes ao estudo em questão, mais especificamente, de filosofia, sociologia, antropologia,
história e educação. Na análise das representações priorizei o pensamento de Lefebvre (1991,
2006) como referência principal.
Adotei, neste trabalho, uma abordagem metodológica de pesquisa qualitativa com
orientação etnográfica4, realizada por meio de contato direto com o campo de pesquisa, na
convivência com a comunidade selecionada para esse fim.
3 As expressões professor e professores estão sendo utilizadas com o único objetivo de simplificar a
comunicação. Não têm, portanto, nenhuma conotação de prioridade ou de discriminação. 4 Cf. Ezpeleta e Rockewell (1986); Bogdan e Biklen (1994); Chizzotti (2001).
16
A pesquisa foi realizada no município de União dos Palmares, no Estado de Alagoas,
cuja opção se deu em decorrência de minha vinculação profissional à UFAL, associada ao
propósito de, com este estudo, produzir conhecimentos capazes de contribuir para a definição
de políticas educacionais que conduzam à superação do analfabetismo e à elevação dos níveis
de escolaridade da população alagoana, cujo Estado registra, historicamente, os mais elevados
índices de analfabetismo do Brasil.
No contexto do município de União dos Palmares, escolhi a comunidade quilombola
de Muquém para realizar a investigação etnográfica. Essa escolha deveu-se, especialmente, à
sua provável descendência do Quilombo dos Palmares, fato que lhe confere características
singulares na sua organização e vida cotidiana.
As marcas da cultura do Quilombo estão no modo de vida das comunidades
quilombolas existentes na região, entre elas, a comunidade de Muquém, sediada num povoado
próximo à Serra da Barriga, onde existiu o referido quilombo, entre os séculos XVI e XVII.
Direcionar o foco deste estudo para um espaço limitado e um contingente específico
de uma população - uma comunidade quilombola – foi o motivo principal que me levou a
adotar uma abordagem de pesquisa que me possibilitasse investigar os contextos material e
simbólico do lugar e da vida da comunidade: sua história, sua origem, sua organização, seus
meios de vida, costumes, crenças, visões de mundo, modos de educar as novas gerações e de
conservar e dar continuidade à cultura de seus ancestrais. Fatores que caracterizam aquela
comunidade conferindo-lhe uma identidade própria, diferenciada de outros contingentes
populacionais campesinos, existentes na mesma região. Assim, a investigação etnográfica
mostrou-se como um dos caminhos mais adequados ao estudo em questão.
Este trabalho compõe-se de quatro capítulos. No primeiro, discuto o problema do
analfabetismo no Brasil por meio de uma abordagem histórica, sob a ótica do
descumprimento do direito constitucional, que assegura a todos os brasileiros o acesso à
escolarização básica. Abordo, também, a formação do professor na visão de pensadores
progressistas. Examino concepções e modalidades de formação, sua normatização na
legislação educacional brasileira e a formação específica do professor da educação de jovens e
adultos.
No segundo capítulo, anuncio a fundamentação teórico-metodológica que orientou
este estudo e descrevo o desenvolvimento da pesquisa de campo, explicitando os
procedimentos adotados.
Exploro, no terceiro capítulo, o contexto da pesquisa empírica, compreendendo uma
caracterização do Município de União dos Palmares, sua origem histórica, o cenário
17
socioeconômico atual e o atendimento escolar à população de jovens e adultos, finalizando
com uma síntese do Programa Brasil Alfabetizado no município. Com dados da investigação
etnográfica, apresento uma síntese da vida cotidiana da comunidade de Muquém, a partir da
minha convivência com ela. Procuro destacar aspectos que contribuam para a análise que
desenvolvo das representações das professoras.
Analiso, no quarto capítulo, as representações das professoras-alfabetizadoras de
Muquém sobre analfabetismo e alfabetização, estabelecendo relação com a vida cotidiana da
comunidade, a formação docente e suas práticas pedagógicas na alfabetização de camponeses
quilombolas jovens e adultos. Finalizo, expondo algumas considerações gerais decorrentes
deste estudo.
Os apêndices e anexos inclusos no final do texto, além de documentar o trabalho, têm
a finalidade de ampliar a compreensão do leitor.
18
CAPÍTULO 1 - ANALFABETISMO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
1. O analfabetismo no Brasil – um problema histórico5
Este estudo aborda o analfabetismo da população brasileira, especialmente, de jovens
e adultos na faixa etária de 15 anos ou mais de idade. A delimitação deve-se ao propósito de
examinar o analfabetismo como problema, numa perspectiva histórica, analisando-o no
contexto de descumprimento do direito constitucional, que garante a todos os brasileiros o
acesso à escolarização básica. Aos 14 anos de idade toda criança no Brasil deve concluir o
ensino fundamental (9 anos de escolaridade).
Entretanto, as estatísticas educacionais mostram que, além de não se cumprir a
determinação constitucional, um contingente considerável de crianças de 7 a 14 anos de idade
não domina nem mesmo a leitura e a escrita em nível elementar, ampliando as taxas gerais de
analfabetismo no Brasil. Parte do contingente que continua analfabeta contribui para a
reposição do estoque de analfabetos jovens e adultos, conforme mostra o estudo realizado no
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) por Souza (1999).
O ensaio analisa a evolução do analfabetismo no Brasil de 1980 a 1991 e apresenta
projeções com vistas à sua superação até o ano 2020, segundo alguns cenários. Trabalhando
com a relação entre dinâmica demográfica e nível educacional da população a partir do
indicador taxa de analfabetismo, o autor mostra que, além do envelhecimento de gerações de
analfabetos, a manutenção do analfabetismo ao longo do tempo relaciona-se, também, com
condições que produzem novos analfabetos, garantindo a reposição de seu estoque. Entre
essas condições, Souza aponta a ineficiência das políticas educacionais: “[...] o analfabetismo
atual é resultado tanto da insuficiência quanto da demora na melhoria da alfabetização ao
longo da segunda metade deste século.” (SOUZA, 1999, p. 17, grifos do autor).
Estudos históricos sobre a educação brasileira, mostram que o analfabetismo tem suas
raízes no início da colonização portuguesa, no começo do século XVI, constituindo-se como
problema no decorrer do processo da construção da nação (FREIRE, 1993)6.
5 Neste estudo serão considerados dois níveis de analfabetismo: analfabetismo absoluto e analfabetismo
funcional, conforme conceitos adotados pelo IBGE e por outros órgãos que lidam com a questão. 6 Convém assinalar que até o início da colonização não se aplicava o termo analfabetismo às populações
indígenas que habitavam o território ocupado pelos portugueses, visto tratarem-se de sociedades ágrafas
(TFOUNI, 2000).
19
Desse modo, estendendo-se até o final do século XIX, o analfabetismo atravessou o
império, chegou ao período republicano e ainda persiste no século XXI. Porém, somente na
segunda metade do século XX, o Estado passou a considerar o analfabetismo um problema
nacional, encaminhando ações destinadas a combatê-lo, mas que não têm surtido efeitos
satisfatórios, conforme afirma Ferraro:
Desde as últimas décadas do século XIX, quando o analfabetismo se transformou,
quase que de repente, num problema nacional, sucederam-se inúmeros discursos,
juras, projetos, campanhas e até declarações de guerra contra o analfabetismo,
acompanhados de periódicas reformas de ensino. De tais esforços empenhados na
escolarização e alfabetização do povo, resultaram, não há dúvida, alguns avanços
reais que se traduziram em alargamento da escolarização e em queda lenta, porém
continuada, das taxas de analfabetismo durante todo o decorrer do século XX. No
entanto, em que pesem tais esforços e conquistas, permanece de pé um fato
inegável: o Brasil findou o século XX e adentrou o século XXI com um número
verdadeiramente preocupante de pessoas ainda não alfabetizadas (FERRARO, 2009,
p. 25).
Freitag (1984, p. 48-49), em análise fundamentada em Gramsci, retrocedendo
historicamente e contextualizando o estudo da mesma questão, situa a emergência da atenção
do Estado brasileiro com a educação de sua população, entre o fim do Império e o começo da
República, em decorrência do fortalecimento do Estado como sociedade política. Considera
que a definição de uma política educacional estatal tem origem nesse período: “Até então, a
política educacional era feita quase exclusivamente no âmbito da sociedade civil, por uma
instituição todo-poderosa, a Igreja”.
Entre outros autores, Freitag considera a Constituição de 1934 o marco histórico
regulatório de uma política educacional no Brasil, ao estabelecer, pela primeira vez, a
gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário, as formas de financiamento da rede oficial
em quotas fixas para a Federação, os Estados e os Municípios (Art. 156), fixando, também, as
competências dos respectivos níveis administrativos para os níveis de ensino (Art. 150); a
necessidade de elaboração de um Plano Nacional de Educação (Art. 150), além de tornar o
ensino religioso facultativo (FREITAG, 1984, p. 50-51).
Romanelli (1986), analisando a necessidade de escolarização da população brasileira,
também do ponto de vista socioeconômico e político, atribui o analfabetismo e a baixa
escolaridade até o início do século XX, ao pouco interesse do Estado e à baixa demanda da
população por esse serviço. Considera que, numa economia comandada pelo modelo agrário
exportador dependente, a ausência de conhecimentos escolares não era sentida pelas massas
trabalhadoras, nem mobilizava as ações do Estado. Haja vista que mais da metade das pessoas
de 15 anos ou mais de idade era analfabeta, conforme o censo demográfico realizado pelo
20
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 1900, que registrou 65,3% de
analfabetismo nessa faixa etária.
Porém, com a intensificação do processo de industrialização, a partir da década de 30
do século passado, que passou a demandar mão-de-obra minimamente escolarizada, o Estado
brasileiro, enfim, assumiu, constitucionalmente, a responsabilidade pela escolarização da
população que, até então, conforme já mencionando, havia sido tacitamente delegada à Igreja
Católica.
Haddad e Di Pierro (2000) também constatam que a educação de jovens e adultos só
vai se tornar, formalmente, um problema nacional no final da década de 40, após sua inclusão
no ensino primário gratuito e de frequência obrigatória, no texto da Constituição Federal de
1934.
Na mesma linha de análise, Souza (2000), situando a EJA no contexto socioeconômico
e político da segunda metade da década de 1940, afirma que as ações do Estado brasileiro
dirigidas para os jovens e adultos não escolarizados destinaram-se, prioritariamente, às
populações do campo, destacando os interesses eleitorais e o formato de campanha que a
caracterizaram:
Com o fim da ditadura estadonovista, era importante não só incrementar a produção
econômica, como também aumentar as bases eleitorais dos partidos políticos e
integrar ao setor urbano as levas migratórias vindas do campo. Por outro lado, no
espírito da “guerra fria”, não convinha ao país exibir taxas elevadas de populações
analfabetas. É nesse período que a educação de jovens e adultos assume a dimensão
de campanha. Em 1947 é lançada a Campanha de Educação de Adolescentes e
Adultos, dirigida principalmente para o meio rural. (Ibid., p. 111).
Entretanto, mesmo com o desenvolvimento econômico centrado na industrialização,
gerando demandas crescentes de mão-de-obra escolarizada, acompanhado da urbanização das
cidades e de movimentos deflagrados por intelectuais e políticos progressistas em defesa da
extensão da escola pública e gratuita para todos, somados às pressões da própria classe
trabalhadora, o Brasil ultrapassou o século XX sem cumprir a obrigação constitucional de
universalizar a escolarização básica de sua população.
Assim, o Brasil não chegou nem a cumprir a promessa de “erradicar” o analfabetismo
absoluto, conforme previsto em planos, programas e projetos educacionais. Previsão que se
repete nas constituições e leis complementares, a exemplo da Constituição de 1988, em vigor,
que fixa no Art. 214 o estabelecimento em lei de um plano nacional de educação, com
duração decenal, no qual devem ser definidas “diretrizes, objetivos, metas e estratégias” que
conduzam, entre outras finalidades, a “erradicação do analfabetismo”.
21
Essas considerações mostram que o analfabetismo vai se tornando, progressivamente,
um problema mais grave na vida das pessoas e das sociedades contemporâneas, como
previam estudiosos da área, a exemplo de Souza (1999):
Como a simples alfabetização pode ser atualmente considerada insuficiente para
atender as necessidades mínimas de educação de um indivíduo, o fato de ser
analfabeto daqui a uma ou duas décadas poderá ser qualitativamente pior do que
atualmente. Analogicamente, é possível afirmar que o peso do baixo nível
educacional será muito mais grave no futuro. Se não forem revertidas as condições
de propagação da população com baixo nível educacional através das gerações,
fração significativa da população se encontrará em uma situação de pobreza
educacional nas próximas décadas (Ibid., p 17).
Analisando o analfabetismo na população de 15 anos ou mais de idade no último
século, conforme mostra a Tabela 1, dois pontos aparentemente contraditórios chamam a
atenção. Em números relativos, há uma redução extraordinária do analfabetismo ao longo do
século XX, cujas taxas caíram de 65,3% em 1900 para 13,6% no ano 2000. Entretanto, a
quantidade de pessoas analfabetas cresceu a cada decênio até o censo de 1980, começando a
diminuir a partir do censo de 1991, conforme é demonstrado, também, na Figura 1, construída
com dados da Tabela 1.
A esse respeito, Ferraro (2009), em estudo sobre a trajetória do analfabetismo no
Brasil, no período de 1872 a 2000, analisando as taxas de analfabetismo e seus números
absolutos, considera que há “meias verdades” nas afirmações sobre a redução do
analfabetismo no Brasil.
Em sua análise, Ferraro (2009, p. 85) afirma que trata do analfabetismo absoluto7
porque: ‘‘Saber ler e escrever é a única característica educacional da população que foi
investigada em todos os censos brasileiros, sem exceção”. Decorre daí sua importância em
estudos históricos sobre a educação brasileira.
Do mesmo modo, a análise aborda a população de 5 anos ou mais de idade porque é
nessa faixa etária que, também, o analfabetismo foi apurado em todos os censos brasileiros.
Outros indicadores educacionais e outras faixas etárias só foram incluídos a partir do censo de
1940, quando o IBGE passou a assumir os recenseamentos. Ferraro ainda esclarece que
desconsiderou, em sua análise, o censo de 1900 devido às suas deficiências, especialmente, na
parte referente à escolarização (FERRARO, 2009, p. 88-91).
7 Estado ou condição das pessoas que não sabem ler e escrever, segundo conceito usado pelo IBGE.
22
Tabela 1 - Analfabetismo na faixa de 15 anos ou mais de idade - Brasil – 1900/20008
Ano
População de 15 anos ou mais
Total (1)
Analfabeta (1)
Taxa de
Analfabetismo
(%)
1900 9.728 6.348 65,3
1920 17.564 11.409 65,0
1940 23.648 13.269 56,1
1950 30.188 15.272 50,6
1960 40.233 15.964 39,7
1970 53.633 18.100 33,8
1980 74.600 19.356 26,0
1991 94.891 18.682 19,7
2000 119.533 16.295 13,6
Fonte: IBGE. Censos demográficos.
Nota: (1) Em milhares.
Trabalhando com as faixas etárias de “5 anos ou mais” e “10 anos ou mais” de idade,
Ferraro (2009, p. 86) mostra que, de 1872 até 1890, início da República, houve “[...]
estabilidade da taxa nacional de analfabetismo em nível extremamente elevado, situada entre
82% e 83% para as crianças de 5 anos ou mais [de idade]”.
Prosseguindo a análise, Ferraro observa que essas altas taxas começaram a declinar a
partir da última década do século XIX, dando início ao movimento de queda contínua das
taxas de analfabetismo no Brasil. Entretanto, até 1980, o número de pessoas analfabetas
cresceu gradativamente, provocando equívocos nas afirmações sobre a diminuição do
analfabetismo no País:
Dizer que o analfabetismo caiu continuamente a partir do final do século XIX não é
mais do que uma meia verdade. Essa meia verdade constitui o seguinte: em termos
percentuais, mesmo que muito lentamente, a taxa de analfabetismo efetivamente
veio diminuindo de censo a censo, a contar da última década do século XIX até o
ano 2000. Em números absolutos, porém, o analfabetismo conheceu, por mais de um
século, exatamente o movimento inverso: aumentou. Com efeito, [...], do Censo de
1872 até o Censo de 1980 o contingente ou o número absoluto de não-alfabetizados
(as) entre pessoas de 5 anos ou mais aumentou 4,5 vezes, passando sucessivamente
de 7,3 milhões em 1872, para 10,1 milhões em 1890 [...], até atingir o ponto máximo
de 32,7 milhões em 1980. (FERRARO, 2009, p. 101).
8 A periodicidade dos censos passou de 20 para 10 anos, a partir de 1940, quando o IBGE assumiu sua
realização. Em decorrência de problemas político-governamentais, o censo de 1990 só foi realizado em 1991.
23
Portanto, os estudos de Ferraro confirmam as observações apontadas a respeito dos
dados sobre o analfabetismo na população de 15 anos ou mais de idade.
Figura 1 – Crescimento absoluto (●) e taxa de crescimento (■) da população analfabeta com 15 anos ou
mais de idade no Brasil, no período de 1900 a 2000.
Entre outras consequências, o analfabetismo contribuiu para enquadrar o Brasil, no
último decênio do século XX, nas piores posições em desenvolvimento humano, conforme
mostra a Tabela 2 (BRASIL, 2012a). Entre os 100 países participantes da pesquisa, o Brasil
encontrava-se na 73ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com 13,6% de
analfabetismo na faixa etária de 15 anos ou mais de idade, enquanto os países localizados até
a 21a posição em IDH apresentavam taxa de 0% de analfabetismo.
Essa posição ocupada pelo Brasil agrava o problema quando se consideram os avanços
científicos e tecnológicos e a sofisticação dos meios de informação e comunicação
incorporados aos processos produtivos e à vida cotidiana da sociedade. Avanços que exigem
de toda a população, nas cidades e no campo, nas regiões mais e menos desenvolvidas
economicamente, o domínio de conhecimentos e habilidades básicas, adquiridos nos
processos de escolarização, considerados indispensáveis à formação e ao exercício da
cidadania.
6.348
11.409 13.269
15.272 15.964
18.100 19.356 18.682
16.295
65,3 65
56,1 50,6
39,7
33,8
26
19,7
13,6
0
10
20
30
40
50
60
70
0
5.000
10.000
15.000
20.000
25.000
1900 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000
Ta
xa
de
an
alf
ab
etis
mo
(%
)
Po
pu
laçã
o a
na
lfa
bet
a
ANO
População analfabeta (N) Taxa de analfabetismo (%)
24
Tabela 2 – Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e Taxa de Analfabetismo da População de 15 anos ou
mais – 2000
País
IDH
Posição
Taxa de
Analfabetismo
(%)
Noruega 0,942 1º 0,0
Austrália 0,939 5º 0,0
Áustria 0,926 15º 0,0
Espanha 0,913 21º 0,0
Portugal 0,880 28º 7,8
Argentina 0,844 34º 3,2
Chile 0,831 38º 4,2
Costa Rica 0,820 43º 4,4
Trinidad e Tobago 0,805 50º 1,7
México 0,796 54º 8,8
Colômbia 0,772 68° 8,4
Brasil9 0,757 73° 13,6
Peru 0,747 82º 10,1
Equador 0,732 93º 8,4
Cabo Verde 0,715 100º 26,2 Fonte: PNUD e UNESCO.
Com o aceleramento desse quadro no final do século XX, o Brasil entra no século XXI
mantendo o analfabetismo em níveis ainda muito elevados. Conforme mostram os dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada em 2005 (BRASIL, 2006a),
a taxa nacional de analfabetismo da população de 15 anos ou mais de idade decresceu menos
de 2 pontos percentuais, passando dos 13,6%, registrados pelo censo de 2000, para 11%.
Do mesmo modo, outros itens se mantêm, mostrando que houve poucas alterações no
quadro do analfabetismo no Brasil, a exemplo da acentuada desigualdade entre as regiões
geográficas. A Tabela 3 mostra que as taxas mais baixas na mesma faixa etária foram
registradas nas regiões Sul com 5,9%, Sudeste com 6,5% e Centro Oeste com 8,9%, enquanto
a região Norte registrou 11,5% e o Nordeste, mantendo uma tendência histórica, registrou
21,9%.
A PNAD/2005 revelou que também continuam elevadas as disparidades entre os
meios urbano e rural, como se verifica na mesma tabela. Enquanto no meio urbano, o
analfabetismo na população com 15 anos ou mais de idade caiu para 8,4%, no meio rural
foram registrados 25%.
9 Grifos meus.
25
Tabela 3 - Taxas de analfabetismo e analfabetismo funcional das pessoas com 15 anos ou mais de idade, por
situação de domicílio, nas grandes regiões brasileiras – 200510
Brasil/
Regiões
Analfabetismo % Analfabetismo Funcional %
Total Urbano Rural Total Urbano Rural
Brasil 11,0 08,4 25,0 23,5 19,3 45,8
Norte 11,5 08,9 20,5 27,1 21,9 43,7
Nordeste 21,9 16,4 36,4 36,3 28,5 56,7
Sudeste 6,5 5,7 17,2 17,5 15,8 38,4
Sul 5,9 5,1 9,8 18,0 15,6 29,5
Centro-oeste 8,9 07,9 15,4 21,4 18,9 36,8
O problema assume maior gravidade quando se aplica, na análise, o conceito de
analfabetismo funcional, mais adequado à realidade contemporânea. Comparando os dois
indicadores, observa-se na Tabela 3 que a taxa nacional de analfabetismo da população de 15
anos ou mais de idade eleva-se dos 11% de analfabetismo absoluto para 23,5% de
analfabetismo funcional. Assim, considerando o segundo parâmetro adotado pelo IBGE,
quase ¼ da população brasileira com 15 anos ou mais de idade, no ano de 2005, não era
alfabetizada.
As reflexões desenvolvidas até o momento, já sugerem, entre outras suposições, a
necessidade de serem intensificados estudos sobre a relação entre pobreza e analfabetismo,
produzindo conhecimentos que fundamentem a definição de políticas públicas que associem
os programas de combate ao analfabetismo com programas sociais, capazes de elevar a
qualidade de vida das camadas mais pobres da população.
Focando a Região Nordeste, que continua apresentando os índices mais elevados de
analfabetismo entre as regiões brasileiras, a PNAD/2005 mostra que o estado de Alagoas,
onde foi desenvolvida esta pesquisa, continua na liderança do problema, com 29,3% de
analfabetismo e 42,1% de analfabetismo funcional, atingindo o percentual alarmante de
60,4% no meio rural (Tabela 4).
É importante ressaltar que o conceito de analfabetismo funcional começou a ser
adotado pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura
(UNESCO11
) somente no final da década de 70, ao considerar “[...] alfabetizada
10
Tabela construída com dados da PNAD/2005 (BRASIL, 2006a). 11
United Nations Educational, Scientific and Cultural
26
funcionalmente, a pessoa capaz de utilizar a leitura, a escrita e habilidades matemáticas para
fazer frente às demandas de seu contexto social e utilizá-las para continuar aprendendo e se
desenvolvendo ao longo da vida” (INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, AÇÃO
EDUCATIVA, 2001, p. 3).
Tabela 4 - Taxas de analfabetismo e analfabetismo funcional das pessoas com 15 anos ou mais de idade, por
situação de domicílio, na região Nordeste – 200512
Brasil /
Nordeste
Analfabetismo (%) Analfabetismo Funcional (%)
Total Urbano Rural Total Urbano Rural
Brasil 11,0 08,4 25,0 23,5 19,3 45,8
Nordeste 21,9 16,4 36,4 36,3 28,5 56,7
Alagoas 29,3 22,1 44,0 42,1 33,3 60,4
Piauí 27,4 18,5 42,9 41,8 30,3 62,2
Maranhão 23,0 17,3 35,1 40,5 31,7 59,1
Paraíba 25,2 20,8 41,7 38,3 32,9 58,3
Ceará 22,6 17,7 38,4 35,6 29,0 57,1
Sergipe 19,7 15,4 39,6 34,1 28,8 58,6
Bahia 18,8 12,7 31,6 35,6 26,1 55,6
Pernambuco 20,5 15,5 38,0 32,4 25,9 55,1
R. G. Norte 21,5 17.4 32,6 32,3 27,1 46,4
Entretanto, o Brasil só passou a utilizar esse conceito cerca de 20 anos após sua
adoção pela UNESCO, quando o IBGE, na década de 1990, começou a levantar índices de
analfabetismo funcional, utilizando como referência o número de anos de estudo concluídos
pelas pessoas. Segundo esse critério, são consideradas analfabetas funcionais as pessoas com
menos de quatro anos de estudo bem sucedidos. Supunha-se, portanto, que somente com o
primeiro segmento do ensino de 1º grau concluído (atual ensino fundamental), uma pessoa
estaria alfabetizada.
Passados mais de 20 anos, o IBGE continua utilizando a mesma “medida” para
considerar uma pessoa “alfabetizada funcionalmente”. Medida seguramente obsoleta frente às
12
Tabela construída com dados da PNAD 2005 (BRASIL, 2006a).
27
mudanças na vida das sociedades humanas, no contexto de crescente globalização mundial, o
que amplia a gravidade do problema do analfabetismo.
A literatura que estuda o analfabetismo no Brasil, por meio da análise das políticas
educacionais (ANDRADE e DI PIERRO, 2007; FERRARO, 2009; FREIRE, 1993;
HADDAD e DI PIERRO, 2000; KLEIMAN, 2001; SÁ, 2002, entre outros), aponta uma
diversidade de fatores que contribuem para sua manutenção. Mostram que, além de não
disponibilizarem condições necessárias e suficientes à ação escolar, entre outros aspectos, têm
se caracterizado pela oferta de uma educação desvinculada da vida cotidiana das camadas
populares, que ignora suas necessidades pessoais e os interesses coletivos da sociedade, em
especial, das camadas mais pobres da classe trabalhadora.
Os problemas decorrentes dessas políticas instalam-se na base do sistema educacional,
ou seja, no interior das unidades escolares, onde são desenvolvidas as práticas educativas que
devem concretizar a escolarização da população. Nesse espaço particular, situam-se
problemas relacionados aos conteúdos curriculares, à formação, remuneração e prática
docente dos professores, à gestão da escola, às condições materiais dos espaços físicos
escolares, à relação da escola com os estudantes e suas famílias, entre outros.
Estudos que abordam, mais especificamente, a educação de jovens e adultos, apontam
uma diversidade de fatores que têm contribuído para o fracasso de programas de
alfabetização, conforme passou a ser considerado em análises críticas sobre o problema.
Kleiman (2001), por exemplo, referindo-se aos programas nacionais de alfabetização
de jovens e adultos, promovidos pelo Estado brasileiro desde as primeiras décadas do século
XX, destaca a concepção negativa sobre a capacidade cognitiva do adulto, que fundamentava
esses programas, e sua repercussão, até o presente, na prática dos professores:
Muitos são os fatores que podem ser mencionados como causas de tantas tentativas
fracassadas. Nas décadas de 30 e 40, colocava-se abertamente o ônus do fracasso no
próprio adulto, até nos meios educacionais. O adulto que não sabia ler nem escrever
era considerado deficiente e incapaz de aprender. Em círculos acadêmicos, ou entre
especialistas, essa visão deixou de ser aceita já no início da década de 50, graças aos
trabalhos de educadores e de psicólogos que trouxeram evidências importantes
contra essa concepção. Entretanto, esse preconceito não sumiu do imaginário
nacional e continua influenciando o trabalho de muitos professores, os quais, assim
justificam o fracasso de seus alunos. Mais recentemente, fatores sociais e políticos
são apontados como relevantes para explicar o fracasso da alfabetização de adultos.
(Ibid., p. 17).
Observa-se, nessa linha de análise, um deslocamento do fracasso escolar da vítima (o
educando) para o processo de escolarização (políticas públicas e ações escolares). A mudança
28
de direção altera radicalmente a compreensão do problema, no sentido da identificação de
fatores responsáveis pela sua manutenção e da formulação de proposições capazes de
contribuir para sua superação.
Sem desconsiderar estudos existentes na área, a exemplo de alguns que serão
abordados a seguir, o quadro apresentado suscita a necessidade de novos estudos sobre o
analfabetismo no Brasil, que diversifiquem, ampliem e aprofundem o conhecimento sobre o
problema, de modo a fundamentar a definição e execução de políticas educacionais que
garantam o seu combate e efetivem, pelo menos, a escolarização básica da população
brasileira, conforme as demandas e necessidades da sociedade e as imposições constitucionais
do País. Sem esquecer que a eficácia das políticas educacionais exige, do Estado, a adoção de
outras políticas sociais que possibilitem a elevação das condições de vida das camadas
populares, capazes de lhes possibilitar, entre outros direitos, frequentar a escola na idade
apropriada.
2. No campo, o problema do analfabetismo piora
As estatísticas do IBGE sobre o analfabetismo por domicílio registram, como visto
anteriormente, índices bem mais elevados nas populações do campo. A disparidade nas taxas
entre cidade e campo, associadas aos indicadores educacionais de evasão, reprovação,
repetência, distorção idade-série, entre outros, denuncia a inadequação das políticas de
educação do campo, no âmbito de um quadro social mais amplo13
.
Há estudos que são unânimes em afirmar que desde o período da colonização
brasileira as ações destinadas à educação das populações campesinas priorizaram os interesses
dos grupos economicamente dominantes, em detrimento das demandas gerais da sociedade e
dos interesses dos próprios destinatários.
Neste sentido, Leite (1999, p. 14) afirma: “A educação rural no Brasil, por motivos
socioculturais, sempre foi relegada a planos inferiores e teve, por retaguarda ideológica, o
elitismo acentuado do processo educacional aqui instalado pelos jesuítas e a interpretação
político-ideológica da oligarquia rural”.
13
Cf. Brandão (1990); Leite (1999); Sá, 2002; Brasil (2004a); Damasceno e Bezerra (2004); Andrade e Di Pierro
(2007); Pessoa (2007).
29
Pessoa (2007), em estudo sobre a educação do campo no Brasil, aponta a inadequação
do sistema de ensino como uma das causas do problema, na medida em que se transpõe para o
campo a “escola pensada e praticada na cidade”, apontando, como consequência, a incidência
maior do analfabetismo nas áreas rurais:
(...) Uma consequência direta, entre outras, é uma incidência muito maior do
analfabetismo na zona rural que nas cidades. Segundo a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, de
2004, a taxa de analfabetismo entre os brasileiros com mais de 15 anos é de 11,6%,
com 8,9% entre a população urbana contra 27,2% entre a população rural (Ibid., p.
29-30).
Damasceno e Bezerra (2004), por meio de uma análise de pesquisas que estudam as
condições gerais de ensino e aprendizagem nas escolas do campo, verificaram que esses
trabalhos, embora constatem a inadequação do tipo de escolarização destinada às populações
campesinas, destacam a importância da educação escolar para essas populações:
Apesar de reconhecerem que a escola pública rural é limitada e precária, tanto as
populações rurais pesquisadas como os estudiosos consideram que essa instituição
tem papel fundamental na divulgação do saber universal para a população rural,
devendo, por isso, ser avaliada e, sobretudo, ter sua função sócio-pedagógica e
conteúdos curriculares redefinidos para que de fato venha a atender aos reais
interesses dos grupos sociais a que se destina. (Ibid., p. 79).
Em documento publicado pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2004a), no qual são
apresentados subsídios para definição de uma política educacional para o campo, o Grupo
Permanente de Trabalho de Educação do Campo (GPT), reconhecendo a desigualdade
histórica na oferta de educação para as populações rurais, também atribui o estado atual da
área à origem elitista da educação brasileira, direcionando a análise para os fatores localizados
nos espaços escolares:
(...) Esse panorama condicionou a evolução da educação escolar brasileira e nos
deixou como herança um quadro de precariedade no funcionamento da escola do
campo: em relação aos elementos humanos disponíveis para o trabalho pedagógico,
a infraestrutura e os espaços físicos inadequados, as escolas mal distribuídas
geograficamente, a falta de condições de trabalho, salários defasados, ausência de
uma formação inicial e continuada adequada ao exercício docente no campo e uma
organização curricular descontextualizada da vida dos povos do campo. (Ibid., p. 7)
Caracterização semelhante é apresentada por Andrade e Di Pierro (2007) em trabalho
que, embora tenha o objetivo de analisar o Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária (PRONERA), traz uma síntese histórica de ações destinadas à educação das
30
populações do campo, abordando programas promovidos pelo Estado e iniciativas de
organizações da sociedade civil.
Sobre ações mais recentes, Andrade e Di Pierro (2007) constataram que os programas
analisados não chegavam a configurar uma política universal de educação para o campo, dada
a fragmentação, falta de coerência, abrangência limitada, além de disparidades nas suas
orientações:
Perspectivas compensatórias de educação, que não questionam as desigualdades
sócio-territoriais, convivem com projetos educativos que aspiram fortalecer os
movimentos dos trabalhadores rurais para transformar as relações sociais no campo
e também as relações campo/cidade. Há projetos descontextualizados que tendem a
desenraizar o homem do campo e propostas que respeitam o modo de vida e a
cultura da população que aí vive e trabalha. Há quem privilegie a formação de mão-
de-obra para o mercado em resposta às necessidades da agricultura moderna, e quem
se proponha a formar sujeitos sociais engajados em processos de mudança
econômica, cultural e política. Há quem inscreva como objetivo educar com mais
qualidade dentro do modelo escolar urbano e quem reconhece a especificidade do
campo. Há programas que pensam a educação para o campo e programas que se
propõem a pensar a educação com os sujeitos do campo (ANDRADE, DI PIERRO
2007, p. 78).
Entre as contribuições que esses estudos oferecem para a compreensão do
analfabetismo e da alfabetização na realidade brasileira, destaco a necessidade que eles
sugerem de se intensificarem as pesquisas sobre a educação das populações do campo, tendo
em vista especificidades que precisam ser consideradas no seu atendimento escolar.
Neste sentido, convém ressaltar, também, o Art. 28 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (nº 9394/1996), o qual estabelece que: “Na oferta da educação básica para a
população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação
às peculiaridades da vida rural e de cada região [...]”, incluindo conteúdos curriculares,
metodologias e até um calendário escolar apropriado. Entretanto, parece que essas
determinações são pouco consideradas pelos sistemas de ensino.
Quanto às pesquisas, suponho que é necessário se investigarem as repercussões na
vida das populações campesinas provocadas por mudanças na estrutura socioeconômica das
áreas rurais, em especial o avanço da agroindústria, a diversificação e mecanização da
produção, a difusão dos meios de comunicação e informação, entre outras, que vêm
ampliando e intensificando, no campo, exigências da cultura letrada14
, conforme já vem sendo
constatado há décadas por estudiosos da área (MARTINS, 1978, 2005; SÁ, 2002;
WHITAKER, 1992; WHITAKER, ANTUNIASSI, 1993; entre outros).
14
A cultura letrada está sendo considerada, neste trabalho, como aquela que é desenvolvida na prática social com
base nos conhecimentos sistematizados que têm, na escola, o locus privilegiado de seu acesso.
31
3. Formação de professores: uma visão crítica
A formação profissional dos docentes constitui-se, desde o advento da escola
moderna, num dos fatores relevantes do debate sobre a função da educação escolar, a
qualidade do ensino e o próprio desenvolvimento da carreira profissional do professor
(TARDIF, LESSARD, 2005, 2008).
A inclusão do tema, neste estudo, responde ao propósito de análise das relações entre
as representações de professores-alfabetizadores e sua formação docente.
Inicio a abordagem do tema desenvolvendo uma reflexão apoiada em autores filiados a
uma linha de pensamento progressista (FELDMANN, 2004, 2009; FREIRE, 1979, 1981,
2007; GARCIA, 1999; TARDIF, LESSARD, 2005, outros), destacando, nas produções
consultadas, pontos que considero mais pertinentes aos objetivos deste trabalho.
Dou destaque à produção de Freire, em cuja obra construiu um pensamento
pedagógico que expressa uma teoria da educação, situada no campo do pensamento crítico-
dialético. De sua obra, selecionei textos que abordam sua concepção de educação, prática
pedagógica e formação docente.
Examino, também, estudos de Tardif e Lessard, especialmente, sobre
profissionalização do professor e perspectivas de análise do trabalho docente.
Para situar a formação do professor na realidade brasileira, examino, na legislação,
como o Estado conceitua o trabalhador da educação, além de conceber e normatizar a
formação docente. Por fim, analiso a formação do professor para atuar na educação de jovens
e adultos, ressaltando a especificidade da formação do professor-alfabetizador.
3.1 A formação docente na visão de pensadores progressistas
Paulo Freire afirma que “Não há docência sem discência”, nomeando o primeiro
capítulo de seu último livro publicado em vida – Pedagogia da autonomia (FREIRE, 2007,
p. 21). Nele, expõe uma série de exigências que, ao serem consideradas fundamentais ao
exercício da prática educativa crítica, constituem-se em saberes indispensáveis à formação
docente.
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Iniciando a discussão do primeiro tema, o autor diz que “[...] ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (Ibid., p.
22, grifos do autor). Anuncia, assim, uma concepção de educação que entende o ato
pedagógico como processo de conhecimento, o professor e o aluno como sujeitos produtores
de conhecimento e a relação pedagógica, necessariamente, uma relação democrática.
Essa concepção, cujas bases conceituais já se encontram em sua primeira obra -
Educação como prática da liberdade (FREIRE, 1979) - contrapõe-se à pedagogia
tradicional, que o autor denomina de educação bancária, porque considera o ensino um ato
estrito de transmissão de conhecimento, o professor, o detentor do saber e o aluno, o ser
passivo a quem cabe absorver os conteúdos transmitidos pelo professor (grifos meus).
Nessa primeira obra, Paulo Freire apresenta uma análise da pedagogia tradicional, ao
desenvolver uma crítica radical à escola brasileira. Intensifica sua análise no livro Pedagogia
do oprimido (FREIRE, 1981), escrito no exílio após o golpe militar de 1964 no Brasil, ao
mesmo tempo em que aprofunda sua concepção crítica de educação, denominando-a de
concepção problematizadora, que vai sendo revista e ampliada ao longo das suas obras, até
o final de sua vida, em 1997 (grifos meus).
Ao criticar a escola brasileira pelo ensino de conteúdos desconectados da realidade
social, econômica, política e cultural, pelas práticas pedagógicas autoritárias, conservadoras e
discriminatórias, pelos métodos de ensino arcaicos, desvinculados da pesquisa, da produção
de conhecimentos, afeitos à verbosidade e à memorização mecânica, dentre outras
características, Freire propõe uma educação contextualizada, que possibilite o
desenvolvimento da consciência crítica das camadas oprimidas, na perspectiva da sua
emancipação.
A concepção bancária, ao privilegiar a memorização mecânica como meio de
aprendizagem, em resposta à transferência de conhecimentos como meio de ensino, poda a
curiosidade e freia a criatividade do educando e do educador, impede o desenvolvimento da
autonomia de ensinar, estudar e aprender. Nesse processo pedagógico, a função do professor é
depositar, nos alunos, os “conteúdos que são retalhos da realidade, desconectados da
totalidade em que se engendram e em cuja visão eles ganhariam significação” (Ibid., p. 65).
Aos alunos cabe, paciente e disciplinadamente, receber os conteúdos, memorizá-los e repeti-
los em exercícios e provas, que definem sua ascensão na carreira escolar.
Na concepção pedagógica crítica, o ato de aprender, em interação com o ato de
ensinar, constitui um processo vivenciado por sujeitos cognoscentes, no qual “Quem ensina
aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”. Nesse processo, afirma Freire: “[...]
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quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender, tanto mais se constrói e
desenvolve [...] a curiosidade epistemológica, sem a qual não alcançamos o conhecimento
cabal do objeto” (FREIRE, 2007, p. 24-25).
Ao revelar a dimensão epistemológica e democrática do processo pedagógico, as
reflexões acima mostram a interconexão entre o ato de ensinar e o ato de aprender, ancorando
a afirmação do autor:
Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que,
historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim,
socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam
que era possível – depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos, métodos de
ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na
experiência realmente fundante de aprender (FREIRE, 2007, p. 23-24).
Convém ressaltar que a democratização da relação pedagógica, segundo a concepção
pedagógica freireana, não anula o papel do professor na direção do processo pedagógico. Pelo
contrário, redimensiona e amplia sua responsabilidade, exigindo-lhe competência para exercer
a ação docente, com a autoridade que o papel lhe confere, por meio de conhecimentos e
habilidades necessárias à prática pedagógica, conforme afirma o autor:
Especificamente humana, a educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é
artística, é moral, serve-se de meios, de técnicas, envolve frustrações, medos,
desejos. Exige de mim, como professor, uma competência geral, um saber de sua
natureza e saberes especiais ligados à minha atividade docente (Ibid., p. 70).
Reforçando sua posição sobre a exigência da competência técnica do professor, que
não deixa de ser política, dirigindo-se especificamente ao professor-alfabetizador, Freire
indaga: “Como alfabetizar sem conhecimentos precisos sobre a aquisição da linguagem, sobre
linguagem e ideologia? Sobre técnicas e métodos do ensino da leitura e da escrita?” (Ibid., p.
81).
À competência técnica, que implica rigorosidade metódica, o autor associa a dimensão
afetiva da prática pedagógica, exigida na formação do professor, consequentemente, em sua
ação docente:
Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do
exercício da criticidade que implica a promoção da curiosidade ingênua à
curiosidade epistemológica, e de outro, sem o reconhecimento do valor das
emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou adivinhação (Ibid., p. 45).
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A reflexão sobre a prática é um dos princípios fundamentais da formação docente
recorrente no pensamento freireano. Em suas primeiras obras, Freire aborda a questão por
meio do conceito de práxis, entendida como movimento de ação e reflexão, correspondente ao
“quefazer” exercido exclusivamente pelos seres humanos: “[...] se os homens são seres do
quefazer é exatamente porque seu fazer é ação e reflexão. É práxis. [...] é teoria e prática”.
Assim sendo, toda prática exige uma teoria que a ilumine, do contrário, o fazer humano
poderá reduzir-se a um verbalismo ou a um ativismo (FREIRE, 1981, p. 145).
O autor retoma, em outros textos ao longo de sua obra, o princípio da reflexão sobre a
prática como exigência da prática pedagógica crítica: “A prática pedagógica crítica,
implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar
sobre o fazer” (FREIRE, 2007, p. 38)15
. Portanto, se o pensar certo é uma condição para a
prática pedagógica crítica e se a prática pedagógica crítica requer uma reflexão crítica, então,
esses devem ser conteúdos indispensáveis à formação docente.
Essa posição é compartilhada por Feldmann, em artigo que defende uma formação
docente com qualidade social e compromisso político, apontada como tendência em pesquisas
recentes na área:
As recentes investigações nacionais e internacionais sobre a formação de professores
apontam a necessidade de se tomar a prática pedagógica como fonte de estudo e
construção de conhecimento sobre os problemas educacionais, ao mesmo tempo em
que se evidencia a inadequação do modelo racionalista-instrumentista em dar
resposta às dificuldades e angústias vividas pelos professores no cotidiano escolar,
embora seja esse o paradigma mais presente em nossas escolas. (FELDMANN,
2009, p. 75).
Tardif e Lessard (2005) também entendem o trabalho docente como uma profissão
que, associada a outros requisitos necessários ao seu exercício, exige formação específica.
No estudo que desenvolvem a esse respeito, criticam as visões normativas e
moralizantes, prevalecentes nas pesquisas sobre o trabalho docente e optam por desenvolver
uma análise que privilegia o fazer cotidiano dos professores em seus locais de trabalho,
abordando suas atividades materiais e simbólicas, numa visão de totalidade.
Os autores entendem que, do ponto de vista sociológico, assim como todo trabalho
humano socializado, é possível analisar o trabalho do professor em função de determinadas
dimensões. Na análise que realizam, abordam o trabalho docente como atividade, status e
experiência, ressaltando que, na prática, essas dimensões se mantêm interligadas. Entretanto,
15
Para Freire, o pensar certo se contrapõe ao pensar ingênuo. Exige a rigorosidade metódica que caracteriza a
curiosidade epistemológica (FREIRE, 2007, p. 38).
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no plano teórico da análise, exigem distinção sem, contudo, perderem-se de vista as conexões
entre elas (TARDIF, LESSARD, 2005, p. 48-49).
Uma análise que aborde a dimensão do trabalho docente como atividade, em seus
aspectos organizacionais e dinâmicos, foca o ensino como núcleo central do trabalho do
professor. Nesse sentido, ensinar no contexto escolar “[...] é agir na classe e na escola em
função da aprendizagem e da socialização dos alunos, atuando sobre sua capacidade de
aprender, para educá-los e instruí-los com a ajuda de programas, métodos, livros, exercícios,
normas, etc.” (Ibid., p. 49).
Considerar a atividade docente como um trabalho implica, necessariamente, entendê-
la como uma atividade profissional exercida por profissionais especializados. Atividade que
requer formação específica, com vistas ao cumprimento dos fins e objetivos inerentes à sua
função precípua: a escolarização. Desse ponto de vista, a análise da atividade docente pode ter
como foco as estruturas organizacionais, que condicionam seu desenvolvimento, ou seus
aspectos dinâmicos que, na prática, são interligados, na medida em que o trabalho docente
desenvolve-se num ambiente organizado - a escola.
Sendo uma atividade profissional a ser exercida por profissionais especializados, o
trabalho docente confere ao professor um status, expresso numa identidade profissional que o
distingue no interior da organização do trabalho e no espaço da organização social.
Tardif e Lessard (2005, p. 50 ) supõem que “[...] o status dos professores, tanto no
plano normativo quanto no das funções cotidianas que eles precisam exercer, atualmente
parece por demais fragilizado e como que sacudido por expectativas, necessidades, pressões
antagônicas.” Nesse contexto, entendem esses autores que a identidade docente, além de se
apresentar muito heterogênea, destaca mais o professor do que a instituição escolar.
Decorrente dessa tendência, ou como consequência dela, a construção da identidade docente
vem, progressivamente, se tornando uma tarefa mais do professor do que da instituição
escolar.
Essas suposições mostram-se relevantes nas reflexões sobre a formação docente em
função da qualificação da escolarização oferecida à população, tanto quanto sobre a
organização e luta dos profissionais da educação, em prol da sua valorização enquanto
categoria de trabalhadores, conforme dispõe a Constituição do País e a legislação pertinente.
A terceira dimensão, que os autores citados se dispuseram a examinar em sua análise,
é a docência como experiência, que pode ser abordada sob dois ângulos. No primeiro, a
experiência é compreendida como “[...] um processo de aprendizagem espontânea, que
permite ao trabalhador adquirir certezas quanto ao modo de controlar fatos e situações do
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trabalho que se repetem. Essas certezas correspondem a crenças e hábitos cuja pertinência
vem da repetição de situações e de fatos” (Ibid., p.51).
A visão de experiência, como meio de aquisição de conhecimentos advindos da prática
cotidiana no trabalho docente, corresponde ao que a maioria dos professores entende como
competência profissional. A ela, os professores opõem a visão sobre a aquisição de
conhecimentos nos processos de formação, predominante na fala da maioria ao se referir à
relação teoria-prática, expressa na afirmação: “na prática, a teoria é outra”.
Com essa expressão, os professores pretendem, por um lado, justificar os
procedimentos que adotam nas suas práticas pedagógicas, aprendidos no fazer cotidiano da
escola e, especialmente, da sala de aula. Por outro lado, revelam a rejeição ou a falta de crença
na eficácia dos conhecimentos e habilidades ensinados nos cursos de formação, os quais
denominam de “conhecimentos teóricos”, em oposição aos “saberes práticos” construídos nas
práticas escolares cotidianas.
Dentre os diferentes sentidos, que a expressão “na prática, a teoria é outra” sugere,
está implícita uma crítica à dissociação entre teoria e prática nos cursos e em outras atividades
de formação, levando os professores a supervalorizarem os saberes produzidos na prática e a
desqualificarem os conhecimentos sistematizados, presentes nos livros e no discurso dos
professores formadores.
A análise do trabalho como experiência pode incidir, também, sobre “[...] a
intensidade e a significação de uma única situação vivida por um indivíduo” (TARDIF e
LESSARD, 2005, p.51). No contexto do trabalho docente, esse tipo de experiência consiste
em situações únicas vividas por um professor enquanto sujeito individual, por exemplo, na
sua relação com os alunos. Trata-se de experiências singulares que podem marcar
profundamente a vida profissional do professor:
Os docentes dizem muitas vezes: nas primeiras vezes que você entra numa sala de
aula, você sabe se foi feito para essa profissão; essa experiência é única, mas ela
tem valor de confirmação e de justificação. Trata-se, de qualquer modo, de uma
experiência de identidade que não pertence ao saber teórico ou prático, mas da
vivência, e onde se misturam intimamente aspectos pessoais e profissionais:
sentimento de controle, descoberta de si no trabalho, etc. (Ibid., p. 52, grifos do
autor).
Em relação às duas visões sobre a dimensão do trabalho docente como experiência, os
autores alertam para a tendência que elas encerram de “[...] privilegiar uma concepção
estritamente individualista, ou mesmo, ‘psicologizante’ da experiência”. Em contraposição,
apelam para o pensamento de outros autores que defendem o caráter social do trabalho
37
docente, mesmo quando uma experiência é vivenciada individualmente por um único
professor, posto que, como ator social, ele “[...] partilha o mesmo universo de trabalho, com
todos os seus desafios e condições” (Ibid., p.52-53).
Ao consultar o pensamento de outros autores contemporâneos, que se dedicam ao
estudo da formação de professores numa perspectiva crítica, observo que há um consenso
quanto à defesa da profissionalização da função docente, tanto do ponto de vista da exigência
de competência profissional, quanto da organização da carreira, no seio de uma concepção de
totalidade, que entende o trabalho docente como trabalho humano socializado, desenvolvido
em contextos sociais, econômicos, políticos e culturais determinados.
Feldmann (2004), por exemplo, compreendendo a formação docente como dimensão
da identidade pessoal e profissional do professor, ressalta a necessidade de revisão da
concepção de formação, de modo que assegure sua vinculação com contextos e relações
sociais, enfatizando a necessidade da reflexão, pelos professores, das práticas e teorias do seu
fazer pedagógico:
A formação docente, entendida como dimensão de reconstrução permanente da
identidade pessoal e profissional, não pode mais ser vista como um processo de
acumulação de conhecimentos dispostos de forma estática (cursos, teorias, livros,
técnicas). Este processo deve estar vinculado à concepção e à análise dos contextos e
relações sociais que produzem um conjunto de valores, saberes e atitudes, os quais
imprimem significados ao saber educativo. Por essa razão, torna-se fundamental a
valorização de paradigmas de formação que desencadeiem nos professores a
reflexividade crítica sobre as suas práticas e teorias (FELDMANN, 2004, p. 75).
Garcia (1999), em estudo no qual discute a conceituação da formação de professores,
sua formação inicial e seu desenvolvimento profissional, ressalta, entre outros aspectos, o
caráter sistemático e organizado da ação docente e sua vinculação com a qualidade da
educação. Entende que, sendo a docência uma profissão, os profissionais que a exercem
precisam dominar, adequadamente, a ciência, a técnica e a arte de ensinar, ou seja, precisam
possuir competência profissional para “[...] intervir profissionalmente no desenvolvimento do
seu ensino, do currículo e da escola, com o objetivo de melhorar a qualidade da educação que
os alunos recebem” (Ibid, p. 26).
As ideias aqui expostas, representando uma pequena parcela do pensamento crítico
contemporâneo no campo dos estudos sobre formação docente, dão contribuição significativa
nas reflexões que desenvolvo ao longo deste trabalho, especialmente, na análise do
38
pensamento e da prática pedagógica dos professores-alfabetizadores, ou seja, na análise de
suas representações sobre o analfabetismo e a alfabetização – objeto de estudo deste trabalho.
3.2. A formação de professores na legislação nacional16
No Brasil, a profissão de professor, atualmente em vigor, tem seu primeiro marco
regulatório na Constituição Federal (BRASIL, 2011), no Art. 206, com a fixação dos
princípios a serem observados no ensino, especificamente, nos incisos: “V. valorização dos
profissionais da educação escolar [...]” e “VIII. piso salarial profissional nacional para os
profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal”.
No Parágrafo Único do mesmo artigo, a Constituição determina que a lei disponha
“[...] sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da educação básica e
sobre a fixação de prazo para a adequação ou elaboração de seus planos de carreira no âmbito
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Desse modo, a atividade educacional escolar é legalmente reconhecida como trabalho
e profissão e o trabalhador, que a exerce, como profissional investido de direitos, dentre os
quais, o de ter sua profissão valorizada, incluindo a definição de piso salarial profissional,
unificado em âmbito nacional.
Essas prerrogativas são fundamentais para os profissionais da educação, pois
representam conquista de parte das reivindicações históricas da categoria, ao fixarem
princípios que, obrigatoriamente, devem reger sua normatização e regulamentação em leis e
atos complementares, legitimando e legalizando suas lutas.
Assim, em cumprimento à Constituição Federal, são fixadas na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) - Título VI, artigos 61 a 67 - as disposições que
regulamentam a composição, a formação e a valorização dos profissionais da educação
escolar no Brasil (BRASIL, 1996)17
.
Inicialmente, a LDB define, no Art. 61, as categorias de profissionais da educação
escolar básica, condicionando-as à formação em cursos reconhecidos e ao efetivo exercício
16
Todos os grifos na totalidade do texto desta seção são meus. 17
Cf. Anexo A – Extrato da LDB - Lei nº 9394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
com alterações introduzidas por outros instrumentos legais.
39
em funções do magistério, estabelecendo, no Art. 62, a exigência da formação de acordo
com os níveis e etapas da educação básica, conforme síntese apresentada a seguir:
Professores habilitados em cursos de nível superior de licenciatura plena, para a
docência na educação infantil e nos ensinos fundamental e médio; “[...] admitida
como formação mínima para exercício do magistério na educação infantil e nas quatro
primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio na modalidade
normal” (Art. 61, inciso I; Art. 62, caput).
Trabalhadores em educação habilitados em administração, planejamento, inspeção,
supervisão e orientação educacional, em curso de Pedagogia e os com títulos de
mestrado ou doutorado nas mesmas áreas (Art. 61, inciso II; Art. 64).
Trabalhadores em educação com diploma de curso técnico ou superior em área
pedagógica “[...] que queiram se dedicar à educação básica” (Art. 61, inciso III e Art.
63, inciso II).
Analisando as disposições acima, julgo que alguns pontos merecem considerações.
Primeiramente, ressalto que a Constituição Federal estabelece uma categoria ampla para
abrigar os profissionais que desempenham atividades escolares, denominando-a de
“profissionais da educação escolar”.
Entretanto, a Constituição transfere para lei complementar a definição das “categorias
de trabalhadores” a serem considerados “profissionais da educação básica” sem, contudo,
conceituar essa expressão, nem delimitar sua composição. Provavelmente, essa lacuna
suscitou a exclusão, na regulamentação da LDB, de grupos de trabalhadores em educação que
desempenham outras atividades escolares, tradicionalmente denominadas de atividades
técnicas e administrativas.
Diferentemente da LDB, o documento do MEC intitulado: Conselho Escolar e
valorização dos trabalhadores em educação (BRASIL, 2006b) inclui, na categoria de
trabalhadores em educação, todos os segmentos da escola que desempenham atividades
escolares, distinguindo-as por meio de elementos que caracterizam a identidade profissional
de cada segmento:
É na articulação dialética das duas vertentes [...] – campo do conhecimento ao qual
se vincula e [sic] forma social de atuação – que se estabelece a identidade de cada
um dos sujeitos sociais individuais que compõem o grupo de trabalhadores em
educação. Devido a ela, também, podemos caracterizar, no âmbito dos
trabalhadores em educação, um subgrupo que pode ser designado de profissionais da
educação, composto por professores e pelos assim chamados gestores e
‘especialistas’ que, juntamente com os servidores técnico-administrativos (também
40
designados como ‘funcionários da escola’) integram o conjunto aqui focalizado
[trabalhadores em educação] (Ibid., p. 12).
Assim, estendendo a análise ao texto da LDB, que dispõe sobre os Profissionais da
Educação, observo que ela apresenta imprecisões e ambiguidades tanto na definição e
denominação dos segmentos de trabalhadores em educação, quanto na explicitação de suas
funções, além de outras questões pertinentes.
Ao estabelecer a composição da categoria profissionais da educação escolar básica,
a LDB, da forma como os cita, escalona dois segmentos: professores e trabalhadores em
educação (Art. 61). No primeiro, inclui apenas o docente, para o qual é exigida habilitação
específica para a docência. No segundo segmento são incluídos dois grupos, porém, sem
denominações profissionais explícitas: 1) os trabalhadores portadores de diploma de
pedagogia com habilitações específicas, juntamente com os portadores de títulos de mestrado
e doutorado nas mesmas áreas; e 2) os portadores de diploma em curso técnico ou superior em
área pedagógica ou afim.
Apenas em relação ao primeiro grupo, a LDB dá indícios de denominação
profissional, quando especifica as habilitações desse segmento - administração, planejamento,
inspeção, supervisão e orientação educacional - e quando se refere aos “Especialistas em
Educação” (Art. 67, § 2º). Neste aspecto, a LDB em vigor recupera a figura do “especialista
em educação”, introduzida na educação brasileira com a Lei 5.692/1971, por ela revogada.
Ainda mais obscura é a situação dos “portadores de diploma em curso técnico ou
superior em área pedagógica ou afim”. A denominação desses profissionais não fica clara
nem mesmo quando a Lei estabelece no inciso II do Art. 63, entre os cursos a serem mantidos
pelos Institutos Superiores de Educação, “programas de formação pedagógica para portadores
de diplomas de educação superior que queiram se dedicar à educação básica”. Não há, no
texto da LDB, nenhum esclarecimento sobre o que significa “[...] se dedicar à educação
básica;” que pudesse suscitar a que profissional a Lei está se referindo.
Parece-me relevante destacar, ainda, a imprecisão que se verifica ao se sobreporem os
“profissionais da educação” à categoria maior dos “trabalhadores em educação”, na qual se
incluem os primeiros. Do mesmo modo, aponto como equívoco, apresentar o segmento de
professores diferenciando-o da categoria “trabalhadores em educação”, como se dela não
fizessem parte, conforme se observa no Art. 61.
41
Quanto às funções atribuídas aos profissionais da educação, a docência figura, no
texto da LDB, como função exclusiva dos professores ou docentes. Função que, também, é
citada como exercício do magistério, conforme se verifica no caput do Art. 62.
Entretanto, nos três parágrafos do mesmo artigo, a referência a profissionais do
magistério parece aplicar-se a outros segmentos, além do professor. Suposição que se
confirma na redação dos dois parágrafos do art. 67, que trata da “valorização dos profissionais
da educação”, ao fixar como “[...] funções de magistério as exercidas por professores e
especialistas em educação [...] incluídas além da docência, as de direção de unidade escolar e
as de coordenação e assessoramento pedagógico”.
Imprecisão maior se observa na definição de funções dos dois segmentos classificados
como “trabalhadores em educação”. No primeiro, a Lei permite entrever suas funções na
exigência das habilitações específicas (administração, planejamento, inspeção, supervisão e
orientação educacional), que se confirma no segundo parágrafo do Art. 67. Entretanto, não há
indícios em relação ao segundo grupo, mesmo quando são definidos, no Art. 63, os cursos e
programas de formação a serem mantidos pelos Institutos Superiores de Educação, conforme
já apontado anteriormente: “II – programas de formação pedagógica para portadores de
diploma de educação superior que queiram se dedicar à educação básica”. A que funções
corresponde a expressão: “se dedicar à educação básica”? A Lei não esclarece.
Quanto à formação dos profissionais da educação básica, a LDB estabelece suas
normas no Parágrafo Único do Art. 61 e nos artigos 62, 63, 64, 65 e 66.
Inicialmente, são estabelecidos os fundamentos a serem observados na formação,
conforme síntese a seguir:
sólida formação básica, definida como aquela que proporcione “fundamentos
científicos e sociais” relativos às competências de trabalho dos referidos
profissionais;
associação entre teoria e prática, por meio de “estágios supervisionados e
capacitação em serviço”.
“aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de
ensino e em outras atividades”.
Analisando os fundamentos citados, entendo que alguns pontos suscitam
questionamentos imediatos. A Lei, acertadamente, exige “sólida formação básica” e “a
associação entre teoria e prática” na formação dos profissionais da educação, entretanto,
limita a associação entre teoria e prática a estágios e capacitação em serviço, quando os
42
estudos sobre essa questão apontam a exigência de que a relação teoria-prática atravesse os
currículos de formação desde o início dos cursos, quer sejam de formação inicial ou
continuada, tanto nas atividades de estudo desenvolvidas nas agências formadoras, quanto em
atividades de estágio em unidades do sistema escolar.
No terceiro ponto, a Lei não esclarece que tipo de “formação e experiências
anteriores” e que “outras atividades” devem ser aproveitadas na formação dos profissionais da
educação, deixando um espaço considerável para improvisações e arranjos inadequados.
Inicialmente, ao anunciar os fundamentos, a LDB estabelece a necessária vinculação
da formação com as “especificidades do exercício” profissional do magistério e com os
“objetivos das diferentes etapas e modalidades da educação básica” (Art. 61, Parágrafo
Único).
Neste sentido, entendo que, embora a Lei estabeleça essa vinculação, a formação dos
profissionais da educação, parece-me, deve ter como ponto de partida a concepção de
educação estabelecida para a formação do cidadão brasileiro, conforme anunciada nos seus
dois primeiros artigos.
O Art. 1º anuncia uma concepção de educação ampla e abrangente, entendida como
processo de formação do humano que ocorre em diversos contextos e espaços sociais: a
família, o trabalho, instituições de ensino e pesquisa, movimentos sociais e organizações da
sociedade civil, incluindo as manifestações culturais.
A essas primeiras disposições, segue-se a finalidade da educação nacional: “A
educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Art. 2º).
É importante destacar que a LDB, fiel à Constituição Federal, fixa a preparação do
educando para o exercício da cidadania como fundamento e finalidade da educação, nela
incluída a educação escolar. Portanto, a formação para a cidadania estende-se a todos os
níveis e modalidades de educação e de ensino, independentemente, da idade da pessoa.
Ressalto, ainda, que, embora cite no objetivo geral da educação “o pleno
desenvolvimento do educando” e “sua qualificação para o trabalho”, é importante entender
que esses são requisitos indissociáveis à formação para o exercício da cidadania.
Dessas definições gerais decorre o objetivo da educação básica, à qual a Lei atribui a
função de assegurar ao educando “a formação comum indispensável para o exercício da
cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Art. 22).
43
Os objetivos específicos das etapas e modalidades da educação básica constituem-se
de definições relacionadas ao desenvolvimento do educando, por meio de conhecimentos,
habilidades e atitudes, visando à concretização do objetivo geral desse nível de educação,
fixados no texto da LBD nos seguintes dispositivos: educação infantil (Art. 29), ensino
fundamental (Art. 32), ensino médio (Art. 35), educação profissional (Art. 36), educação de
jovens e adultos (Art. 37), educação especial (Art. 58) e educação indígena (Art. 78).
Além de exigir vinculação da formação com as atividades profissionais e os objetivos
da educação básica, a LDB estabelece as seguintes modalidades de formação: formação
inicial, formação continuada e capacitação para os profissionais do magistério público,
priorizando o ensino presencial na formação inicial e atribuindo a promoção da formação, em
suas três modalidades, a todos os níveis da administração pública.
A Lei fixa, também, a experiência docente como “pré-requisito para o exercício
profissional de quaisquer outras funções de magistério”, as quais são definidas no parágrafo
1º do Art. 67 da seguinte forma:
[...] são consideradas funções do magistério as exercidas por professores e
especialistas em educação no desempenho de atividades educativas, quando
exercidas em estabelecimento de educação básica em seus diversos níveis e
modalidades, incluídas, além do exercício da docência, as de direção de unidade
escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico.
Sobre a valorização dos profissionais da educação (Art. 67), a LDB determina que
conste dos “estatutos e dos planos de carreira do magistério público”, incluindo “ingresso
exclusivamente por concurso público”, “aperfeiçoamento profissional continuado” mediante
licença remunerada, “piso salarial profissional”, “progressão funcional”, período remunerado
para estudo, planejamento e avaliação e “condições adequadas de trabalho”.
Em síntese, observo que, apesar das imprecisões apontadas ao longo da análise
realizada, as disposições da LDB sobre os profissionais da educação básica se aproximam das
concepções predominantes no pensamento educacional progressista. Tendência que vem se
constituindo, especialmente, desde a década de 1970, em contraposição às correntes
educacionais conservadoras em suas variadas versões, especialmente a concepção pedagógica
tecnicista, que predominou nas políticas educacionais dos governos autoritários, nas décadas
de 1960 a 1990, no Brasil e em toda a América Latina e Caribe, conforme constatam diversos
estudos sobre a questão.
44
A normatização dos cursos de formação dos profissionais da educação básica é
estabelecida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio de atos normativos
(pareceres e resoluções) em cumprimento à Constituição Federal, à LDB e a outras leis e
decretos.
A Resolução CNE/CP nº 1/2002 (BRASIL, 2002c), decorrente dos Pareceres CNE/CP
nº 009/2001 (BRASIL, 2002a) e nº 27/2001 (BRASIL, 2002b), é o instrumento que estabelece
as diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores da educação básica, em
cursos de nível superior de licenciatura plena, para atuarem em todas as etapas da educação
infantil, do ensino fundamental e do ensino médio.
São diretrizes gerais constituídas de princípios, fundamentos e procedimentos, que as
instituições de ensino superior devem aplicar na organização e funcionamento dos cursos.
Além das diretrizes curriculares gerais, o CNE instituiu diretrizes específicas para o curso de
Pedagogia (Parecer 05/2005 (BRASIL, 2005a); Parecer 3/2006 (BRASIL, 2006c); Resolução
CNE/CP nº 1/2006 (BRASIL, 2006d) e para as licenciaturas diversas (Letras, Matemática,
Geografia, História e outras) em resoluções específicas.
Conforme estabelece a legislação, o curso de Pedagogia forma professores para atuar
na educação infantil, nos anos iniciais do ensino fundamental (de crianças, jovens e adultos) e
no curso normal de nível médio, enquanto as licenciaturas diversas formam os professores
que assumem a docência nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio.
A formação de professores para a educação infantil e os anos iniciais do ensino
fundamental, de acordo com a LDB, pode ser realizada em curso normal em nível médio,
cujas diretrizes constam do Parecer CNE/CEB nº 1/1999 (BRASIL, 1999a) e da Resolução
CNE/CEB Nº 2/1999 (BRASIL, 1999b), embora seja concedida às unidades da Federação
autonomia para adotar ou não essa possibilidade.
Entre as diretrizes gerais a serem observadas na organização de todos os cursos de
nível superior de formação de professores para a educação básica, destaco as competências
fixadas na Resolução CNE/CP nº 1/2002 (BRASIL, 2002c), por representarem a concepção
norteadora da formação.
As competências a serem consideradas na construção do projeto pedagógico dos
cursos de formação dos docentes, relacionadas no Art. 6º da citada resolução, referem-se:
ao comprometimento com valores inspirados na sociedade democrática;
à compreensão do papel social da escola;
45
ao domínio dos conteúdos a serem socializados, seus significados em diferentes
contextos e sua articulação interdisciplinar;
ao domínio do conhecimento pedagógico;
ao conhecimento de processos de investigação que possibilitem o aperfeiçoamento
da prática pedagógica e ao gerenciamento do próprio desenvolvimento
profissional.
Essas competências, conforme estabelece o parágrafo 2º do referido Artigo, deverão
ser contextualizadas e complementadas com competências específicas das etapas e
modalidades de ensino e das áreas de conhecimento.
3.3. A formação do professor de Educação de Jovens e Adultos (EJA)
Numa discussão sobre a formação de professores para a docência na educação de
jovens e adultos é importante observar, inicialmente, os dispositivos da LDB (Lei 9394/1996)
que definem o atendimento escolar a esse contingente, fixando normas para garantir sua
efetivação.
No Art. 37, a Lei estabelece a oferta de EJA para as pessoas que “não tiveram acesso
ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria”, devendo ser
consideradas “as características do alunado, seus interesses, condições de vida e trabalho”.
Para isso, determina que o Poder Público estimule “o acesso e a permanência do trabalhador
na escola”.
Neste sentido, é de fundamental importância iniciar a reflexão ressaltando que a
existência da educação de jovens e adultos como modalidade da educação básica revela o
descumprimento, pelo Estado e a sociedade, de um direito de cidadania que deveria ter se
efetivado no período de vida denominada pela legislação de “idade própria”, ou seja, dos seis
aos 17 anos, incluindo os nove anos do ensino fundamental mais, no mínimo, três anos do
ensino médio.
Constata-se, portanto, que os jovens e adultos que não receberam a educação básica na
idade apropriada têm o “exercício da cidadania” comprometido, visto ser a escolarização meio
para sua formação, conforme reconhece a Constituição e a legislação complementar.
46
Entretanto, a própria Constituição Federal (BRASIL, 2011), mesmo reconhecendo o
direito que têm os jovens e adultos de acesso à educação básica, por esta lhes ter sido
expropriada na “idade própria”, não a considera prioridade, ao fixar em seu Art. 211, § 5º18
,
no dispositivo que regulamenta a organização dos sistemas de ensino, que: “A educação
básica pública atenderá prioritariamente ao ensino regular.” (Grifo meu).
Tratar da formação do professor de EJA requer, inicialmente, destacar o Parecer
CNE/CEB nº 11/2000 (BRASIL, 2000a) e a Resolução CNE/CEB nº 1/2000 (BRASIL,
2000b), que instituem as Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos. Fruto
de um processo de construção democrática, as diretrizes foram discutidas em diferentes
eventos, com diversos interlocutores comprometidos com a educação das camadas populares.
O Parecer 11/2000 faz uma ampla abordagem da EJA no Brasil, incluindo, entre
outros pontos, um apanhado histórico de suas bases legais até o momento de sua elaboração.
Em relação à formação do professor para a EJA, o parecer defende uma formação qualificada,
que considere as especificidades dos segmentos atendidos por essa modalidade de educação:
Com maior razão, pode-se dizer que o preparo de um docente voltado para a EJA
deve incluir, além das exigências formativas para todo e qualquer professor, aquelas
relativas à complexidade diferencial dessa modalidade de ensino. Assim, esse
profissional do magistério deve estar preparado para agir empaticamente com essa
parcela de estudantes e estabelecer o exercício do diálogo. Jamais um professor
aligeirado ou motivado apenas pela boa vontade ou por um voluntariado idealista e,
sim, um docente que se nutra do geral e, também, das especificidades que a
habilitação, como formação sistemática, requer (BRASIL, 2000a, p. 56).
A seguir, comento trabalhos de autores que desenvolvem estudos nessa área,
merecendo destaque aqueles que abordam a relação da formação docente com a visão dos
professores sobre a educação em geral e, particularmente, sobre a escolarização.
Analisando a concepção freireana de alfabetização crítica, Giroux (1990) relaciona
dois pontos que se apresentam relevantes na reflexão sobre a formação de professores. O
autor aponta a necessidade de se conhecer o pensamento que dá suporte à prática dos
professores em sua ação docente, aliado à compreensão das condições de ensino que lhes são
disponibilizadas pelo Estado e a sociedade:
A tarefa de uma teoria da alfabetização crítica é alargar nossa concepção a respeito
de como os professores produzem, mantêm e legitimam ativamente o significado e a
experiência nas salas de aula. Ademais, uma teoria da alfabetização crítica obriga
18
Esse parágrafo foi incluído na Constituição Federal (1988) pela Emenda Constitucional no 53, de 2006.
(JUSBRASIL, 2012).
47
uma compreensão mais profunda de como as condições mais amplas do Estado e da
sociedade produzem, negociam, transformam e se abatem sobre as condições de
ensino, de tal modo que possibilitam ou impossibilitam que os professores ajam de
modo crítico e transformador (GIROUX, 1990, p. 14-15).
Conhecer o pensamento dos professores sobre “sua experiência em sala de aula” tem
importância fundamental para os gestores que definem, planejam e desenvolvem ações de
formação docente, considerando que o professor age nos processos de ensino conforme o que
ele acredita que funciona na aprendizagem do aluno, mesmo que não funcione.
Ignorar, nos processos de formação, o pensamento, as concepções, as representações
do professor sobre o ensino e a aprendizagem parece resultar na desconfiança e no descrédito,
por parte dos professores, da aplicabilidade e eficácia dos conhecimentos obtidos nos cursos e
outras atividades de formação, sobrepondo, a eles, sua própria prática como única fonte de
aprendizagem.
Em estudo, no qual investiga “Os processos de construção de conhecimento e
significados culturais do professor e as contradições entre o saber especializado e o saber
cotidiano”, Penin (1994), identifica e explora, por meio da análise do discurso de uma
professora primária19
, sua crença na eficácia da prática no seu processo de aprendizagem
sobre o ensino. Do mesmo modo, identifica o descrédito da professora sobre os cursos de
formação, vistos como teóricos, na medida em que “não consideram a realidade” da escola e
dos alunos.
Aprofundando a análise, a autora constata que, ao justificar sua afirmação sobre o
distanciamento dos cursos em relação à realidade, a professora refere-se, principalmente, à
situação socioeconômica dos alunos, pelas carências e dificuldades dela decorrentes que,
segundo sua visão, interferem nos processos de ensino.
Partindo dessas reflexões, Penin (1994, p. 105), sugere que os cursos de formação de
professores “tratem a ‘pobreza’ dos alunos de baixa renda não só nos seus aspectos teóricos,
mas, sobretudo, por meio de uma real aproximação da mesma [...]”.
Em sequência, a autora sugere que o tratamento teórico-didático da situação
socioeconômica dos alunos ocorra nos cursos de formação inicial e continuada, quanto na
formação em serviço no interior da escola, justificando sua sugestão nos seguintes termos:
[...] sendo sentida e trabalhada em termos teóricos a ‘realidade’ sociocultural dos
alunos, então é possível passar para o verdadeiro fazer profissional docente:
19
A expressão “professora primária” é utilizada referindo-se à professora que exerce a docência na educação
infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental, conforme acepção constante de legislação anterior.
48
ensinar esses alunos. A impossibilidade de os alunos comprarem determinados
materiais ou de se vestirem de determinada forma não pode apresentar-se como
problema ou empecilho ao seu ensino: ela constitui dado de realidade. Como tal, é
com base nela que todo o ensino deve ser pensado, o que implicará ações
adequadas da escola e do professor (PENIN, 1994, p. 105-106. Grifos da autora).
Ressalto os estudos de Penin como extremamente pertinentes às reflexões que
desenvolvo neste trabalho, especificamente, por tratar do problema do analfabetismo na
população jovem e adulta, reconhecidamente, um contingente das camadas economicamente
mais pobres da sociedade.
Na mesma direção, aponto estudo de Possani (2007) sobre exclusão escolar de jovens
e adultos no Brasil que, analisando a prática docente frente às mudanças atuais na sociedade,
considera necessária uma revisão do papel do professor, enfatizando seu caráter profissional.
A autora citada destaca, na ação docente, a função do professor na construção do
conhecimento, vinculando o ensino à realidade e aos saberes do educando:
Trata-se de ressignificar o seu papel, recuperar a sua imagem de educador, sem
perder a dimensão da profissão enquanto conquista de direitos trabalhistas e de
espaço para a sua formação. Devolver-lhe o papel de profissional da educação a
serviço da construção de conhecimentos, onde essa construção seja feita
coletivamente e a partir da realidade e dos saberes dos alunos (POSSANI, 2007, p.
83).
No prefácio de um livro sobre formação de alfabetizadores de jovens e adultos (SÁ,
2007), analisando condições de oferta de escolarização para jovens e adultos, por meio de
programas de alfabetização oferecidos no Brasil, aponto a improvisação dos professores
alfabetizadores como um dos fatores contributivos para o insucesso desses programas:
Focando-se a análise nos programas e projetos nacionais de alfabetização,
desenvolvidos, em sua maioria, à margem dos sistemas de ensino, constata-se, além
da precariedade das condições gerais, a improvisação de professores, ao admitirem o
acesso de pessoas sem formação mínima exigida para o magistério, com baixos
níveis de escolaridade, sem vínculo empregatício, remuneradas por meio de
artifícios como bolsas de trabalho, bolsas de estágio e bolsas de monitoria, em
geral, com valores inferiores a um salário mínimo (SÁ, 2007, p. 11. Grifos da
autora).
Desse modo, é evidente a posição dos estudiosos da Educação de Jovens e Adultos
sobre a necessidade de garantir, para os professores dessa modalidade de ensino, uma
formação profissional competente, que leve em consideração as especificidades desse
segmento populacional.
49
CAPÍTULO 2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS E
DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA DE CAMPO
1. Orientação teórico-metodológica
Com o objetivo de analisar representações de professoras-alfabetizadoras de
camponeses quilombolas jovens e adultos sobre analfabetismo e alfabetização, estabelecendo
relação com o contexto sociocultural, sua formação docente e suas práticas pedagógicas,
procurei fundamentar este estudo numa abordagem crítico-dialética. Para isso, consultei
trabalhos de diversas áreas de conhecimento relacionadas aos temas abordados, mais
especificamente, das áreas de filosofia, sociologia, antropologia, história e educação.
Na análise das representações das professoras, dei prioridade ao pensamento de Henri
Lefebvre, escolhendo, como referências básicas, duas de suas obras (LEFEBVRE, 1991,
2006). Consultei, também, estudos de Sônia Penin (PENIN, 1989, 1994) e de outros autores
(ALMEIDA NETO, 2002; CARDOSO, 2007) fundamentados em Lefebvre.
Segundo Lefebvre (2006), as representações são o intermédio entre o vivido (ações) e
o concebido (ideias), é o terceiro termo que se interpõe entre os outros dois. Desse modo, o
fenômeno ou o objeto representado pelo sujeito cognoscente está, ao mesmo tempo, presente
e ausente na representação, ou seja, o representado está presente em sua própria ausência.
Porém, as representações podem, por meio de deslocamentos e manipulações, substituir o
representado.
Para que se compreendam as representações dos sujeitos sobre a realidade é necessário
conhecer sua vida cotidiana. É nesse espaço que os sujeitos constroem suas representações,
com dados provenientes de suas vivências pessoais e de seu grupo social, associados às
concepções que formulam sobre as questões que buscam conhecer.
As representações são, segundo essa concepção, um nível de conhecimento que, ao
serem construídas por sujeitos movidos pela curiosidade e o desejo de explicar e compreender
a realidade, podem conter tanto o germe da manutenção, quanto o da transformação.
Por isso, Lefebvre adverte sobre a necessidade de se distinguir representação de
ideologia, concebida como falseamento da realidade, esclarecendo que “... as representações
não são nem falsas nem verdadeiras, senão, ao mesmo tempo, falsas e verdadeiras:
50
verdadeiras como respostas a problemas ‘reais’ e, falsas, como dissimuladoras das finalidades
‘reais’ (LEFEBVRE, 2006, p. 68, tradução minha)”.
Assim, somente uma análise rigorosa da origem e desenvolvimento das representações
possibilitará o desvelamento de sua natureza, de seu poder e de seus efeitos sobre as ações dos
sujeitos que as constroem.
Segundo essa concepção, me parece possível inferir que as representações construídas
pelos professores sobre o analfabetismo, mantendo interface com a alfabetização, podem ser
simultaneamente falsas (ao dissimularem ou ocultarem fatores que contribuem para o
analfabetismo) e verdadeiras (na medida em que busquem explicações, justificativas e
prováveis meios para compreender e resolver o analfabetismo, um problema real).
Portanto, suponho que as representações das professoras-alfabetizadoras de Muquém
sobre analfabetismo e alfabetização, construídas com dados de suas vivências pessoais e de
seu grupo social, associadas às concepções que elaboram sobre as questões que representam,
explicam, justificam, esclarecerem, ocultam e dissimulam a realidade, tanto encerram
possibilidades de manutenção, quanto apontam perspectivas de mudança.
2. Desenvolvimento da pesquisa de campo
A pesquisa de campo deste estudo foi desenvolvida em duas fases. Na primeira, fiz
uma delimitação geral do campo mais amplo da pesquisa, compreendendo o município de
União dos Palmares. Na segunda fase, instalei-me na comunidade de Muquém, onde realizei a
investigação etnográfica.
A primeira fase foi iniciada em fevereiro de 2010, quando fiz os primeiros contatos
com autoridades e funcionários da Secretaria Municipal de Educação. Por meio de audiências
e conversas informais, entrevistas20
, questionário21
e consulta em documentos, obtive dados
sobre o atendimento escolar aos jovens e adultos no sistema municipal de educação e sobre o
Programa Brasil Alfabetizado (PBA)22
.
20
Cf. Apêndice A– Roteiro de entrevistas com a gestora local do PBA e Apêndice B - Roteiro de entrevista com
as coordenadoras de turma do PBA. 21
Cf. Apêndice C - Questionário aplicado à Coordenadora de EJA do Município de União dos Palmares. 22
Esses dados foram complementados com informações obtidas com professores, por meio de entrevistas e
conversas informais, e com alfabetizandos, em conversas informais durante as visitas às classes de alfabetização.
51
Algumas dificuldades foram enfrentadas nos primeiros contatos, decorrentes de
mudanças na equipe dirigente da secretaria de educação, que retardaram as visitas em,
aproximadamente, uma semana. Entretanto, dispus do acompanhamento de coordenadoras do
PBA e de transporte motorizado na realização das referidas visitas.
As visitas às áreas rurais deram continuidade à primeira fase, após aceitação, por parte
das autoridades educacionais do Município, da realização da pesquisa.
Visitei 18 classes de alfabetização de jovens e adultos, situadas em variados espaços
rurais: no único distrito do município, em duas fazendas de plantio de cana-de-açúcar e
criação de gado, em dois sítios de camponeses e num povoado quilombola. Essas visitas me
proporcionaram uma visão geral do contexto e do atendimento escolar à população do campo,
conforme a descrição constante do relatório de visita23
.
A maioria dessas visitas ocorreu no período noturno, no horário de funcionamento das
classes. Excetuou-se o distrito rural, onde fiz três visitas, duas delas iniciadas no período
diurno e que se estenderam até à noite, quando, além de uma classe diurna, visitei outras
classes noturnas e entrevistei professores. O mesmo ocorreu na visita aos sítios que, além de
se localizarem distantes da cidade, eram de difícil acesso. Nesses, comecei pela visita noturna
às duas classes existentes naquela localidade, onde pernoitei e, no dia seguinte, entrevistei os
dois professores.
Nas classes visitadas, observei: as instalações físicas (condições de funcionamento das
salas de aula), os alfabetizandos (número, idade, sexo, e outros) e os professores (opiniões
sobre o trabalho, material didático, e outros). Observei, também, o ambiente físico (condições
de acesso; equipamentos públicos, meios de comunicação, meios de vida dos moradores, entre
outros).
Complementando o reconhecimento do campo de pesquisa, por meio de entrevista
semiestruturada, entrevistei dez professores, escolhidos, aleatoriamente, entre os dezoito das
classes visitadas. Essas entrevistas me permitiram obter um conhecimento geral sobre os
professores que assumem a docência nas classes de alfabetização de jovens e adultos24
.
Tomando como foco da investigação o objetivo geral definido para este estudo, parti
das questões seguintes para elaborar o roteiro usado nas entrevistas semiestruturadas25
,
realizadas com os professores:
23
Cf. Apêndice D - Relatório de visitas a classes de alfabetização de jovens e adultos em áreas rurais do
município de União dos Palmares - AL. 24
Cf. Apêndice E - Caracterização dos professores entrevistados. 25
Cf. Apêndice F - Roteiro de Entrevista com Professores-Alfabetizadores.
52
O que os professores entendem por analfabetismo?
A que atribuem o analfabetismo?
Veem repercussões do analfabetismo na vida das pessoas e da sociedade?
O que entendem por alfabetização?
Como agem em sala de aula na prática de alfabetização?
Para coletar informações sobre escolaridade, formação e experiência profissional dos
professores, entre outras, fiz uso de um formulário26
.
A 2ª fase da pesquisa foi iniciada na segunda quinzena do mês de março (2010), após
a conclusão da primeira fase, com a elaboração de relatórios, escolha da comunidade para a
pesquisa etnográfica e realização de novos contatos em função dessa nova fase.
Escolhida a comunidade quilombola de Muquém, onde me instalei. Hospedei-me na
residência de uma família nativa pelo tempo total de três semanas, em períodos diferentes.
Durante minha convivência com a comunidade, observei sua vida cotidiana e
participei de algumas atividades, realizei entrevistas e conversas informais com lideranças
comunitárias, artesãos, jovens e outras pessoas, com a finalidade de obter informações sobre o
contexto socioeconômico, político e cultural da comunidade.
Para conhecer a prática docente das professoras de Muquém, realizei observações em
duas classes de alfabetização de jovens e adultos, que funcionaram, initerruptamente, durante
o desenvolvimento da pesquisa. As observações totalizaram dez horas em cada classe.
Quando fiz a primeira visita ao Muquém havia três classes, porém, uma foi desativada
pela coordenação do Programa, em decorrência do número insuficiente de alfabetizandos. Por
esse motivo, essa classe não foi incluída na pesquisa.
Selecionei, para observar a prática das professoras, os seguintes aspectos: composição
da classe (número de alfabetizandos, idade, sexo e outras características), assuntos e
conteúdos da aula, procedimentos pedagógicos, interação dos alfabetizandos com as
atividades pedagógicas, relacionamento entre professora e alfabetizandos, conversas dos
alfabetizandos durante a aula, outros.
Em momentos alternados com minha estada em Muquém, procurei ampliar o
conhecimento do contexto local e obter novos dados, vivenciando o cotidiano da cidade de
União dos Palmares, por meio de visitas a órgãos públicos (Secretaria de Educação, Secretaria
de Cultura, representação da Fundação Palmares, unidade do IBGE), ao Parque Memorial
26
Cf. Apêndice G - Formulário de Coleta de dados dos Professores-Alfabetizadores.
53
Quilombo dos Palmares na Serra da Barriga, ao museu Casa Jorge de Lima, onde estão sendo
depositados os achados das escavações arqueológicas na Serra da Barriga, à igreja matriz da
cidade, à estação ferroviária e ao mercado de artesanato. Realizei compras em feiras de rua,
mercados públicos, lojas e em outros estabelecimentos comerciais; utilizei serviços bancários
e frequentei restaurantes e salões de beleza da cidade.
O registro dos dados da pesquisa foi feito em cadernos de campo, fotografias e vídeos,
os quais serviram de base para a elaboração dos relatórios e desta tese na sua totalidade.
Na citação das falas das pessoas entrevistadas, procurei manter a linguagem por elas
utilizada, efetuando o mínimo de correção ortográfica e gramatical, quando entendi que isso
facilitaria a compreensão de seus depoimentos. Entretanto, para preservar a identidade das
pessoas citadas, adotei pseudônimos. A divulgação das fotos que ilustram este trabalho foi
devidamente autorizada pelas pessoas fotografadas ou seus responsáveis.
54
CAPÍTULO 3. O CONTEXTO DA PESQUISA
1. O município de União dos Palmares
Irmão do quilombo:
Eu sou,
Fortalecido por tua coragem de luta,
Sou mais resistente que mil generais,
Sou mais negro que a África inteira,
Mais potente que uma manada de
búfalos
No cio.
Preto Cosme não morreu.
Juro!
(CORREIA, 1993)
1.1. Do Quilombo à União dos Palmares
Figura 2 – Lagoa Encantada dos Negros - Serra da Barriga, “[...] onde os quilombolas repousavam, saciavam
a sede, afiavam suas armas e ferramentas [...].” À direita, vê-se a Gameleira Sagrada (Irôco) – árvore
primordial trazida da África – que, segundo a lenda, tem mais de 300 anos. (Foto: Reneude Sá).
55
O território que hoje é ocupado pelo Estado de Alagoas, até 1817, integrava a
Capitania de Pernambuco. Em terras dessa capitania, onde se localiza, atualmente, o
município de União dos Palmares - numa região montanhosa, coberta por uma floresta
tropical inóspita, de vegetação alta e densa, repleta de onças, chacais, serpentes e outros
animais selvagens - por volta do ano de 1580, um grupo de negros, fugidos de um engenho de
açúcar, após muitos dias de exaustiva caminhada, instalou-se no topo de uma das serras – a
Serra da Barriga - dando origem ao núcleo primitivo do Quilombo dos Palmares (FREITAS,
1978).27
Nascia, assim, a República Independente do Quilombo dos Palmares, símbolo da
resistência negra à escravidão e do anseio de liberdade, tendo, entre seus diversos heróis,
homens e mulheres, como Ganga Zumba, Dandara, Aqualtune, Acotirene e, seu líder maior,
Zumbi. No entanto, somente em 1996, o governo brasileiro o reconheceu como Herói
Nacional.
Considerado o maior quilombo da diáspora negro-africana no Brasil, O Quilombo dos
Palmares resistiu, por aproximadamente 100 anos, às muitas investidas da Coroa portuguesa
para destruí-lo. Intento alcançado em 1694, em uma batalha sangrenta, quando, pela primeira
vez, se usou canhão na guerra contra Palmares. A esse respeito, Freitas assim se posiciona:
Na história das revoltas escravas brasileiras, a de Palmares ocupa lugar ímpar. Não
foi apenas a primeira, mas, também, a de maior envergadura. No decurso de quase
um século, os escravos da então capitania de Pernambuco resistiram às investidas
das expedições continuamente enviadas por uma das maiores potências coloniais do
mundo. Projeta-se como o acontecimento dominante da história pernambucana na
segunda metade do século XVII e como um dos mais sérios problemas que a
administração colonial lusitana teve de enfrentar no Brasil (FREITAS, 1978, p. 12).
Embora haja divergências entre historiadores sobre ser, o Quilombo dos Palmares,
uma democracia, Freitas (1978, p. 47)28
, por exemplo, afirma: “Havia entre os palmarinos
igualdade civil e política”. O quilombo se compunha de povoações, relativamente autônomas.
Cada povoação era comandada por um chefe, “escolhido pelos méritos de força, inteligência e
destreza”. Havia um conselho que se reunia para resolver questões gerais, que afetavam o
conjunto do Quilombo. “As decisões sobre os problemas cruciais eram tomadas por uma
assembleia”, constituída por todos os habitantes adultos do quilombo. Entretanto, as normas
que regiam a vida social do Quilombo estabelecia a punição com pena de morte: roubo,
adultério, homicídio e deserção.
27
Para aprofundamento do assunto, ver também: Carneiro (1966); Gomes (2005); Moura (1983; 2001). 28
A síntese que apresento sobre o modo de vida dos quilombolas de Palmares tem como referência esse autor.
56
Os palmarinos, segundo o autor citado, produziam os alimentos de que necessitavam
para seu consumo. Plantavam milho, feijão, mandioca, cana-de-açúcar, batata e legumes.
Mantinham pomares com grande variedade de árvores frutíferas. Criavam porcos e galinhas e
praticavam a pesca e a caça, destinados à alimentação.
Da palmeira, existente em abundância na região, que deu origem ao seu nome e ao do
quilombo, colhiam frutos, dos quais extraíam um óleo e uma manteiga comestíveis, um óleo
combustível para iluminação, comiam a polpa e, ainda, fabricavam um vinho. Com suas
palhas teciam esteiras, cestos e abanos e cobriam as casas. Das cascas da mesma palmeira
fabricavam cachimbos.
Não havia propriedade individual da terra, ela pertencia a todo o povoamento e seu
cultivo era feito de modo coletivo.
A Serra da Barriga que abrigou a capital do Quilombo, denominada, na época, de
Cerca Real dos Macacos, levou quase três séculos, após a destruição do Quilombo, para ser
tombada em 1985, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
como Conjunto Histórico Paisagístico, o qual foi transformado, em 2006, em Parque
Memorial Quilombo dos Palmares.
Nas palavras de Rios (2008, p. 58):
Palmares não é apenas o primeiro parque temático cultural afro-brasileiro. É também
o primeiro complexo cultural-histórico com uma arquitetura inspirada na
africanidade, erguido em todo o continente americano, cujos países foram o centro
da diáspora que se estabeleceu a partir da escravidão. A história do Quilombo e os
seus personagens está presente no Memorial, ao lado das manifestações de fé e da
cultura afro-brasileira, no simbolismo de que a história ali vivida transcendeu aos
mais de 300 anos da morte de Zumbi.
1.2. Caracterização socioeconômica do Município
O Estado de Alagoas, localizado na porção centro-oriental do Nordeste brasileiro,
possui uma área de 27.767,66 km2, onde vivem cerca de 3.120.494 habitantes, segundo dados
do Censo Demográfico de 2010 (BRASIL, 2012b).
O IBGE divide o território alagoano, para fins de planejamento, em três mesorregiões
geográficas: Sertão, Agreste e Leste, que são subdivididas em microrregiões. Na mesorregião
Leste, encontra-se a microrregião Serrana dos Quilombos, da qual faz parte o município de
União dos Palmares.
57
O município, que dista 83 km da cidade de Maceió (capital do Estado), faz parte da
Área Piloto da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e da Área de Proteção Ambiental de
Murici. Em seu território está localizado, também, o Sítio Arqueológico da Serra da Barriga.
Predomina o clima quente subsumido, com excedente hídrico no inverno e déficit no verão.
As médias térmicas mensais vão de 22o
C, em julho e agosto, a 25,5o
C, em janeiro e fevereiro
(LIMA, 2006).
A cidade de União dos Palmares tem despertado para a vocação turística, destacando-
se como atrativos (UNIÃO DOS PALMARES, s/d.): a) o fato de ali ter nascido o poeta Jorge
de Lima (1895-1953), vinculado à Segunda Geração do Modernismo; b) exposição de
artefatos arqueológicos encontrados em escavações da Serra da Barriga; c) grupos de música e
dança afro (capoeira, coco-de-roda e guerreiro); d) artesanato de barro confeccionado por
remanescentes quilombolas (uma das suas maiores expressões); e) Parque Memorial
Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, principalmente, após esta ter sido reconhecida
como Patrimônio Histórico, Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.
Dados do IBGE (BRASIL, 2012c) indicam que o Município de União dos Palmares,
em 2010, tinha uma população estimada em 62.400 habitantes (sendo 76,4% na área urbana e
23,6% na área rural), representando 2,0 % da população total do Estado, ocupando uma área
de 420, 258 km2. Apresentava, portanto, uma alta concentração demográfica de 148,48
hab/km2.
O município tem como base de sua economia a agricultura que, segundo Carvalho
(2006), está marcada pela combinação dos canaviais, pastos para pecuárias (avicultura,
suinocultura e bovinocultura de corte e leiteira) e uma produção agrícola diversificada
(banana, abacaxi, feijão, milho, mandioca, batata-doce, laranja e manga) que sofre as
consequências de vários problemas decorrentes da ausência do poder público na atenção às
comunidades das áreas rurais. Dentre esses problemas, destacam-se: falta de assistência
técnica e orientação sobre comercialização dos produtos, carência de assistência por parte de
órgãos governamentais de financiamento, péssimas condições das estradas vicinais, além do
total descaso com o bem estar da população, no que diz respeito aos seus direitos básicos
garantidos pela Constituição Federal. A essa realidade deve ser atribuída a causa da grande
migração rural que, segundo Carvalho (2006, p. 340), “em uma década, transferiu um terço de
sua população para a cidade”, agravando os problemas já enfrentados pela população da
periferia da área urbana. A maior parte desses migrantes encontra, como única alternativa de
renda, emprego temporário no corte da cana-de-açúcar em fazendas da região e, na
58
entressafra, a migração para outros estados, como Mato Grosso e Minas Gerais, onde vão
realizar as mesmas tarefas.
Alguns indicadores socioeconômicos compilados por Carvalho (2006, p. 340-341)
traduzem a realidade do município. Dados de 2002 indicam que o setor da economia que mais
gera renda para o município é o setor de serviços, seguido da agricultura e da indústria
(indústria sucroalcooleira, complexo avícola e laticínios). Para Tenório (2006, p. 339),
destaca-se, também, a produção artesanal do município: “cerâmica produzida, principalmente,
pela comunidade quilombola do Muquém e as cestarias, trançados e brinquedos populares”.
Dados de 2006 (CARVALHO, 2006, p. 341) mostram que 52,8% das famílias do
município de União dos Palmares eram classificadas como “pobres” e o perfil do eleitorado
indicava que 53,9% não tinham “instrução”, enquanto 30,9% haviam concluído o 1º grau
(ensino fundamental), 14%, o 2º grau (ensino médio) e, apenas, 1,3% declararam ter
concluído um curso superior.
1.3. Atendimento escolar aos jovens e adultos
No contexto de um quadro socioeconômico extremamente precário, marcado por
desigualdades profundas, que penalizam a maioria da população alagoana, o analfabetismo se
apresenta como um dos problemas mais sérios que, ao mesmo tempo em que reflete esse
quadro, contribui para seu agravamento.
O Censo Demográfico de 2010 registrou, na população de 15 anos ou mais de idade,
537.538 pessoas que “não sabem ler nem escrever” no estado de Alagoas. Representando
24,3% desse contingente populacional, essa é a taxa mais elevada de analfabetismo do País,
nessa faixa etária.
De um modo geral, sem subestimar as questões socioeconômicas, as políticas
educacionais contribuem para os baixos níveis de escolaridade da população alagoana.
Em União dos Palmares, o atendimento escolar à população jovem e adulta, que não
teve “acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria”
(Lei 5.692/1996) é feito por meio de cursos presenciais, oferecidos no turno noturno, de
acordo com a Resolução do Conselho Municipal de Educação nº 002/2008 (UNIÃO DOS
PALMARES, 2008a).
59
A alfabetização inicial para jovens e adultos é oferecida exclusivamente pelo
Programa Brasil Alfabetizado, mantido pelo Governo Federal, o qual funciona com uma
administração autônoma, mas que deveria manter relação com a Secretaria Municipal de
Educação.
Dados obtidos em um questionário, respondido por um representante da Secretaria
Municipal de Educação, mostram um quadro crítico no atendimento de EJA pela rede
municipal de ensino, conforme se observa a seguir. Calculados sobre a matrícula total, os
indicadores registram:
Desistência – 70%
Evasão – 10%
Aprovação – 15%
Reprovação – 5%
A principal causa, apontada no questionário citado, que contribui para esse alto índice
de desistência é o trabalho:
Muitos dos nossos alunos são cortadores de cana e agricultores e dependem dos
períodos de safra para garantir seu sustento. Diante deste fato ocorre a migração dos
mesmos para outros estados, em busca de trabalho, fazendo com que os mesmos
desistam ou evadam das escolas.
Entretanto, embora constate que a maioria dos alunos é constituída de camponeses e
trabalhadores rurais, o Município ainda não adota um calendário, nem outras medidas, para
adequar o atendimento escolar às condições de vida dos jovens e adultos, conforme estabelece
a legislação educacional.
1.4. O Programa Brasil Alfabetizado e seu funcionamento no Município
O Programa Brasil Alfabetizado (PBA) foi criado pelo Governo Federal, no segundo
semestre de 2003 (BRASIL, 2004b). Seus objetivos, conforme estabelece a Resolução nº
12/2009, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), são: “I - contribuir
para superar o analfabetismo no Brasil, promovendo o acesso à educação como direito de
todos [...] e II - colaborar com a universalização do ensino fundamental [...]”. (BRASIL,
2009).
60
Financiado com recurso do FNDE, o PBA mantém uma estrutura organizacional que
envolve diversos órgãos da administração pública, aos quais são atribuídas responsabilidades
no planejamento, execução e avaliação do referido programa.
No nível federal, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (SECADI/MEC) e o FNDE atuam na formulação e financiamento do Programa,
enquanto a Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA),
na condição de órgão consultivo, presta-lhe assessoramento e acompanha suas ações. Os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios, denominados de Entes Executores (EEx),
assumem a execução das ações estabelecidas pelos entes federais, com vistas ao alcance dos
objetivos do PBA.
Todas as ações de execução, desde a elaboração de um Plano Plurianual de
Alfabetização até o controle de frequência dos alfabetizandos, são estabelecidas em uma
resolução do FNDE, renovada anualmente, que fixa, também, o período de início e conclusão
das aulas daquele ano29
.
Embora se vincule aos órgãos educacionais nos três níveis da administração pública, o
PBA tem uma estrutura autônoma, que se manifesta desde a dotação e administração dos
recursos financeiros, a constituição do corpo de pessoal, até o acompanhamento e controle de
suas ações.
Nos municípios, o Programa é administrado por um gestor local, indicado pela
administração municipal, que seleciona coordenadores de turmas e alfabetizadores, entre
pessoas que tenham, no mínimo, formação de nível médio, devendo dar prioridade a
professores das redes públicas.
Não é estabelecido vínculo empregatício e a remuneração do trabalho consiste no
pagamento de uma “bolsa”, fixada em Resolução FNDE. No ano de 2010, quando o salário
mínimo era de R$ 510,00, o valor mensal da bolsa era de R$ 250,00 para o alfabetizador de
uma turma (aumentando para R$ 275,00, quando houvesse, na turma, alfabetizandos com
necessidades especiais) e R$ 500,00 para o coordenador de turmas.
Somente a partir do ano 2007, foram incluídos nas ações para financiamento do
Programa: material didático, merenda, transporte escolar e aquisição de óculos.
Em União dos Palmares, o PBA funciona desde 2003, quando matriculou 780
alfabetizandos, em 39 turmas. No período 2009-2010, o Município registrou uma matrícula
29
A Resolução FNDE nº 12/2009 (BRASIL, 2009), em seu art. 9º fixa o seguinte prazo limite para execução do
PBA 2009: 30/11/2009 até 31/10/2010.
61
de, aproximadamente, 3.800 alfabetizandos, distribuídos em 85 turmas na área urbana e 95 na
área rural.
O programa funciona em diversos espaços físicos, desde salas de escolas municipais e
de sedes de entidades sociais, galpões de fazenda, garagens e salas de residências de
professores e até alpendres e terreiros de casas na área rural. A maioria desses locais apresenta
condições inadequadas para atividades escolares, especialmente as salas improvisadas em
prédios não escolares: espaço físico limitado, má iluminação, especialmente, no horário
noturno, pouca ventilação, além da falta ou inadequação de assentos e quadros de giz.
Durante o período de realização da pesquisa de campo deste trabalho, estava em
execução o projeto30
referente ao período 2009-2010, que tinha sido iniciado em novembro de
2009, com previsão de encerramento em agosto ou setembro de 2010.
A execução desse projeto, segundo a gestão local, estava tendo problemas em
decorrência de atraso na liberação dos recursos financeiros para aquisição de merenda,
material didático e outras ações que vinham afetando o funcionamento das classes, e
provocando seu abandono pelos alfabetizandos. Do mesmo modo, mudanças na administração
da Secretaria Municipal de Educação estavam agravando a situação.
As consequências desse quadro se refletiam nas salas de aula, conforme observei nas
visitas realizadas às classes na área rural31
. Os professores e alunos se queixavam da falta de
merenda e material didático. Muitos professores declararam que, para tentar manter os
alfabetizandos nas classes, compravam, com seus próprios recursos, cadernos e lápis. Em
alguns dias da semana distribuíam, também, lanche. Não distribuíam todos os dias porque
seus recursos financeiros não eram suficientes. Os alfabetizandos, principalmente, os idosos
com dificuldade de visão, queixavam-se da demora na realização dos exames oftalmológicos
e distribuição de óculos, conforme previa o Programa.
A dimensão pedagógica do projeto de alfabetização se expressa no plano pedagógico
distribuído com os professores, na programação dos encontros de formação docente e no
acompanhamento das coordenadoras de turma e na prática das professoras em sala de aula.
O plano pedagógico, denominado de Planejamento Mensal, consiste em uma planilha, na qual
constam o tema gerador, a ser trabalhado no período de um mês, e o detalhamento de
conteúdos e sugestões de atividades, distribuídos nas disciplinas: Português, Matemática e
30
A gestão local denomina de projeto cada curso de alfabetização que, segundo regulamentação do FNDE, pode
ter duração de 6 (seis) meses com, no mínimo, 240 horas/aula; 7 (sete) meses com, no mínimo, 280 horas/aula ou
8 (oito) meses, com 320 horas/aula, no mínimo. 31
Cf. Apêndice D - Relatório de Visita a Classes de Alfabetização de Jovens e Adultos em Áreas Rurais do
Município de União dos Palmares – AL.
62
Ciências da Natureza e da Sociedade. Consta, também, da planilha, um calendário de datas
comemorativas. Parte dos temas geradores refere-se a eventos citados nesse calendário32
. Os
conteúdos e a maioria das atividades provêm do livro didático (VÓVIO E MANSUTTI, 2008)
adotado pelo Programa.
A formação dos alfabetizadores é dividida em formação inicial, planejada para o
início de cada projeto (curso de alfabetização) e formação continuada, a ser realizada,
mensalmente, durante o período de execução do projeto.
Na programação da formação inicial do projeto 2009/201033
, prevista para ser
realizada em dez dias, constam dez blocos temáticos, incluindo, desde temas referentes à
história e legislação da EJA, até conteúdos de português e matemática, tratados na
alfabetização de jovens e adultos.
A formação continuada, programada para o mesmo projeto34
, prevê a realização de
nove encontros mensais. Cada encontro inclui: a) a realização de uma palestra sobre o tema
gerador, a ser trabalhado pelos alfabetizadores com os alfabetizandos, naquele mês; b) o
planejamento das atividades sobre o referido tema e c) orientações para o uso adequado do
livro didático.
Durante o período da pesquisa, observei um encontro pedagógico, no qual foi tratado o
tema ÁGUA. A palestra foi proferida por uma técnica da área de meio ambiente, da Secretaria
Municipal de Educação. Para tratar o tema, além da legislação pertinente, a palestrante
abordou a situação da bacia hidrográfica do rio Mundaú, que corta o município, utilizando
uma exposição e projeção de fotos. No decorrer de sua exposição oral, tentou interagir com os
professores, fazendo perguntas sobre o assunto e mostrando-se disponível para ouvi-los,
porém, ninguém se dispôs a falar.
O encontro transcorreu num clima muito conturbado. Teve início com mais de uma
hora de atraso e, apesar da qualidade do trabalho apresentado, as condições mostraram-se
inadequadas para mobilizar a atenção dos professores, estimulando-os a participarem da
atividade.
Aliado ao estado da sala (que estava sendo usada para depósito de material de
construção), o número de professores pareceu-me excessivo, para aquele evento. Muitos deles
passaram, a maior parte do tempo, inquietos e conversando, provocando um burburinho no
32
Por exemplo: No planejamento do período 01/03 a 01/04/2010, o tema gerador foi: Mulher Contemporânea.
No calendário, consta a data comemorativa: 08/03 – Dia Internacional da Mulher. 33
Cf. Anexo B - Programa Brasil Alfabetizado – Formação Inicial. 34
Cf. Anexo C - Programa Brasil Alfabetizado – Formação Continuada.
63
ambiente, ampliado pelo choro persistente de crianças pequenas que acompanhavam suas
mães-professoras.
Ao se aproximar o horário previsto para o encerramento, aumentou a inquietação da
maioria dos professores, que procurava as coordenadoras, pedindo o planejamento e querendo
entregar-lhes as fichas de controle de frequência dos alfabetizandos. Instalou-se uma confusão
generalizada, levando a palestrante a encerrar os trabalhos sem concluir a palestra. Assim,
foram recolhidas as fichas de frequência e distribuída a planilha do planejamento pedagógico,
sem que as coordenadoras de turma orientassem os professores nas atividades pedagógicas,
conforme consta da programação dos encontros.
Após o encerramento, alguns professores me falaram que os encontros sempre
ocorriam daquele modo muito confuso e barulhento. Uns atribuíam à falta de condições da
sala, outros apontaram o atraso no início das atividades, levando a uma redução do tempo de
exposição, provocando correrias no final, fazendo com que muitos professores se
inquietassem e saíssem antes do encerramento do encontro. Esclareceram-me que essa atitude
ocorre porque os professores que moram nos sítios e fazendas dependem de transporte
motorizado para se locomoverem até a cidade. Para muitos locais, o transporte faz uma única
viagem de ida e volta por dia, com horário marcado. E acrescentaram que: “quando a pessoa
perde o transporte, tem que dormir na rua [cidade] e só voltar pra casa no dia seguinte”.
De um modo geral, os problemas registrados no funcionamento do PBA em União dos
Palmares, assim como em outras localidades do País, que produzem resultados que atestam o
fracasso desses programas, entre eles, o abandono das classes pelos alfabetizandos e os baixos
níveis de aproveitamento, são comuns nesse tipo de política de alfabetização de jovens e
adultos, conforme foi discutido no primeiro capítulo deste trabalho.
64
2. O Muquém e sua comunidade35
Figura 3 – Residência de um artesão na comunidade de Muquém – março/2010. (Foto: Reneude Sá)
Se a mão livre do negro tocar na argila
O que é que vai nascer?
Vai nascer pote pra gente beber
Nasce panela pra gente comer
Nasce vasilha, nasce parede
Nasce estatuinha bonita de se ver.
Lobo, Gianfrancesco Guarnieri, 1998.
35
Localizei poucos estudos sobre o Muquém e sua comunidade (SANTOS, 2008; MOURA, 2009; CAMPOS,
s/d.). Esta constatação foi confirmada por um professor de história, da equipe da Secretaria Municipal de
Educação de União dos Palmares.
65
2.1. Origem e meios de vida
O Muquém é um pequeno povoado rural, pertencente ao município de União dos
Palmares. Situado a 4 km da cidade sede do município, o Muquém é habitado por uma
“comunidade remanescente de quilombo”, conforme certificação emitida em 2005 pela
Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura, publicada no Diário
Oficial da União (BRASIL, 2005b). Sua população, no período da pesquisa, era estimada em,
aproximadamente, 507 pessoas, distribuídas entre 123 famílias36
.
As pessoas declaram-se integrantes de uma única família que, segundo uma das
versões relatadas por uma pessoa entrevistada, formou-se a partir de um casal, cujo cônjuge
era “um negro fugido da Serra da Barriga, depois da destruição do Quilombo”, que se casou
com uma jovem da região. O negro chamava-se Muquém, originando-se daí o nome do
povoado.
A suposição de que todos fazem parte da mesma família é reforçada pelo uso do
sobrenome Nunes, usado por quase todos os moradores.
O sentimento de pertencimento a uma mesma família se expressa no modo de vida
comunal, pautado em valores como a solidariedade. Até o modo de partilhar o espaço físico,
sem separação por cercas entre as parcelas pertencentes a cada família, caracteriza o modo de
organização coletiva da comunidade.
Até meados do século passado, a comunidade de Muquém era referência na região
pela produção artesanal de cerâmica utilitária, atividade tipicamente feminina, que era
repassada de mãe para filha, desde a infância, num movimento histórico natural. Os homens
participavam com a apanha de lenha para queima das peças e na comercialização dos
produtos nas feiras da região. Em depoimentos, mulheres da própria comunidade informaram:
“A gente aprendia fazer as louça brincando, vendo as mães fazer. A tradição do barro era um
costume natural, que passava de mãe pra filha. Toda mulher de Muquém sabia trabalhar no
barro. Hoje isso mudou”.
A produção de cerâmica artesanal era o principal meio de vida da comunidade, ao lado
do trabalho dos homens na agricultura e na pesca no rio Mundaú, às margens do qual se
localiza o povoado e do qual se retiravam o barro para o artesanato. As mulheres fabricavam,
36
Informações fornecidas verbalmente pela presidente da Associação de Moradores de Muquém.
66
em grande quantidade, todo tipo de peças, que denominavam de “louça”, usadas na cozinha e
na mesa: panelas, potes, jarras, chaleiras, cuscuzeiros, pratos, tigelas, aribés37
e outras.
Explicando o desaparecimento da procura de utensílios de cerâmica, uma das senhoras
entrevistadas afirmou: “Com a modernização, aos poucos, foram aparecendo vasilhas de
alumínio, de vidro, de louça branca e de plástico, e o barro foi sumindo da cozinha e da
mesa”.
Hoje, restam apenas duas senhoras que ainda resistem, fabricando panelas de barro
para vender: “São mulheres da cidade que compram as panelas de barro como folclore, pra
dizer assim pras visitas – ‘Olhe, eu vou fazer uma feijoada lá em casa na panela de barro’.
Tem, também, uns restaurantes que compra” (moradora entrevistada).
Há, aproximadamente, dez anos, o Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e Pequenas
Empresas (Sebrae) implantou um projeto em Muquém para incentivar a produção de cerâmica
decorativa, com o objetivo de atrair o turismo para o povoado, gerando renda para a
comunidade. Foi construído um barracão para reunir todos os artesãos no mesmo local, com
salas individuais para cada artesão confeccionar suas peças e uma área de exposição coletiva
destinada às vendas.
O projeto não teve o sucesso esperado, segundo a presidente da Associação, “porque
as pessoas são desunidas”. Apenas uma artesã, a única cujos trabalhos foram projetados fora
dos limites da comunidade e até fora do país, mantém seu “ateliê” no barracão. Outros
artesãos, incluindo homens que passaram a fazer peças decorativas, trabalham em suas
próprias residências, mas se queixam da falta de apoio dos órgãos públicos.
Destacam-se, dentre as peças de cerâmica produzidas atualmente, miniaturas das
“louças” que eram fabricadas anteriormente para uso doméstico – panelinhas, potinhos,
jarrinhas e outras, que os artesãos passaram a denominar de souvenir, termo introduzido no
universo vocabular da comunidade, provavelmente, com a intervenção de órgãos públicos e
privados ligados à área de turismo.
A perda do mercado de cerâmica utilitária como fonte de renda da comunidade
provocou mudanças em seus meios de vida. No presente, a comunidade busca garantir sua
existência através da agricultura de subsistência, criação de animais domésticos para
consumo, ocupações subalternas na agroindústria canavieira, em declínio na região, e das
aposentadorias rurais das pessoas idosas.
37
“a.ri.bé sf. Frigideira grande, de barro, usada na região do rio São Francisco ( MICHAELIS, 1998, p. 212).
67
Com a escassez do trabalho assalariado na região, os homens migram,
temporariamente, para cortar cana nos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e
Paraná. Os casados deixam suas mulheres e filhos desamparados, aguardando envio de algum
dinheiro para sua manutenção. Entre os solteiros, muitos deixam suas namoradas e noivas
aguardando sua volta com dinheiro para realizarem o sonho de casar e constituir uma família.
Em diversos depoimentos, são relatadas as condições extremamente precárias dessa
migração, desde o transporte clandestino dos trabalhadores, financiado pelos proprietários de
usinas e fazendas de plantação de cana dos estados de destino, até casos de regime de trabalho
semiescravo. Dificilmente, esse tipo de trabalho é registrado, conforme assegura a legislação
trabalhista do País.
Apesar de condições tão adversas, a maioria das pessoas entrevistadas considera que
vale a pena os homens correrem os riscos das migrações, pois há casos de trabalhadores que
conseguem retornar com “um bom dinheiro”. Mas há, também, relato de casos de
trabalhadores que não suportaram o regime exaustivo e as condições precárias de trabalho,
adoeceram, não receberam assistência dos empregadores, penalizando suas famílias, que se
viram obrigadas a enviar-lhes, por outros migrantes que se dirigiram para o mesmo local,
alimentos e dinheiro destinado à passagem de volta para casa38
.
A migração é citada, por alguns professores entrevistados, como uma das causas do
abandono das classes de alfabetização pelos homens adultos.
2.2. Habitação
Neste item, decidi descrever a casa, na qual me hospedei, como exemplo da habitação
no Muquém com seu movimento cotidiano.
A casa da família que me hospedou era de alvenaria, coberta de telha canal, sem
estuque. Tinha uma pequena área na entrada e seis cômodos também pequenos - uma sala de
visita, três dormitórios, uma copa-cozinha e um banheiro com pia, bacia sanitária e chuveiro.
A casa ficava na parte dianteira de um pequeno lote de terra, constituído de uma área
destinada ao plantio de roça e criação de pequenos animais para o consumo doméstico
(suínos, caprinos, ovinos, galináceos, etc.).
38
Durante minha estada na comunidade de Muquém, a professora Anita e sua família estavam angariando
recursos financeiros para pagar a passagem de volta para um de seus irmãos, que se encontrava doente, num
estado do Sudeste.
68
Como todas as demais casas do povoado, a casa de D. Severina e de seu Amaro é bem
conservada – paredes, portas e janelas com pintura nova; terreiros limpos, com plantas
ornamentais e muitas fruteiras. Ao lado da casa de alvenaria, há uma pequena casa de taipa,
coberta de telha, com uma porta e uma janela na parte da frente e outra porta na parte traseira.
Logo nos primeiros dias de minha estada no Muquém, observei que D. Severina pouco
usava a cozinha da casa de alvenaria. Além disso, nas horas de refeição, ela levava a porção
de comida para eu me servir dentro da casa, mas ninguém me acompanhava em nenhuma
refeição. No segundo dia, no horário do almoço, me aproximei da casinha de barro e vi que
toda a família estava sentada em círculo no chão, ao lado do fogão de lenha, com os pratos no
colo, comendo. Afastei-me e depois, conversando com D. Severina, pedi para ver a casinha
por dentro.
A casinha tem dois cômodos – uma pequena sala com cadeiras, um pote grande com a
boca coberta e alguns apetrechos de roça pelo chão. Nas paredes – imagens de santos, fotos
envelhecidas, cartazes eleitorais de políticos, rede e outros instrumentos de pesca, gaiolas de
pássaros, chapéus de palha surrados, roupas de trabalho, etc. O segundo cômodo é uma
pequena cozinha, onde há um fogão de lenha muito rústico, construído de paus e de barro,
potes de água, jiraus com panelas empretecidas pelo uso, pratos e outros utensílios de barro,
plástico e louça.
D. Severina me explicou que é ali que ela gosta de fazer as coisas de casa. Era numa
casa como aquela que todas as famílias do Muquém moravam até quando o governo mandou
fazer as casas de alvenaria há, aproximadamente, 25 anos, por causa da doença de Chagas. A
secretaria de saúde, de tempos em tempos, tenta que derrubem aquelas casinhas, mas o povo
não concorda.
Além da casinha de taipa, no terreiro atrás da casa de alvenaria há um espaço coberto,
onde são colocadas as galinhas para chocar ovos que darão pintos. Um pouco afastado, tem
um chiqueiro para engordar porcos. As galinhas são criadas soltas. À tardinha, elas se
recolhem para dormir na copa de uma mangueira, que fica ao lado da chocadeira.
2.3. Alimentação
A base da alimentação das famílias do Muquém continua sendo feijão, arroz e farinha,
complementada com uma variedade de carne, prioritariamente, bovina. O consumo de
69
legumes, verduras e frutas era eventual, limitando-se aos produtos cultivados na região,
conforme as épocas de safra, dependentes dos períodos de chuva, tais como: abóbora, maxixe,
quiabo, batata doce, inhame, macaxeira, milho, melancia, banana, laranja, manga, mamão,
jaca, etc. Entretanto, constatei que outros alimentos que há, aproximadamente, cinco décadas
eram estranhos aos hábitos das populações rurais nordestinas, passaram a fazer parte da dieta
cotidiana da comunidade do Muquém. Entre eles, uma variedade de legumes e verduras, tais
como: batata inglesa, cenoura, chuchu, tomate, pimentão, alface, repolho, outras, e de frutas
provenientes de outros centros produtores do Sul e Sudeste, tais como: maçã, pera, uvas,
melão, etc. Da mesma forma, produtos industrializados: mortadelas, salsichas, linguiças,
molhos, margarinas e refrigerantes, entre outros, também são consumidos pelas famílias,
conforme as condições financeiras de cada uma.
Mesmo assim, antigos hábitos alimentares são mantidos, mesclando-se com hábitos
mais modernos. Em uma das conversas com D. Severina ela me disse - “De vez em quando eu
faço quarenta39
porque os meninos gostam muito. Eles comem com mortadela frita e
refrigerante”, e me explicou: “quarenta é comida de pobre. A gente faz com fubá de milho,
água e sal. Bota a água com o sal pra ferver, joga o fubá dentro de uma vez, mexendo ligeiro.
Hoje, eu boto margarina na água pra ficar mais gostoso. Aí tira do fogo e quebra ele todinho
com a colher. Não deixa nem um bolinho. Quando fica algum bolinho, as meninas reclamam.
Antigamente a gente fazia quarenta quando não tinha outra coisa pra comer, hoje a gente faz
porque gosta”.
Em outra ocasião, D. Severina, respondendo a uma indagação minha, falou que o café
usado em sua casa é Seu Amaro quem torra e explicou o processo - “é feito como
antigamente: bota um tacho de barro no fogo, bota o açúcar pra derreter, depois joga os grãos
de café e mexe até dá o ponto. Aí espalha ele na mesa do fogão, que já tá forrada de cinza.
Quando ele tá frio, fica duro como um beiju, então a gente limpa a cinza, quebra ele todinho
em pedaço e pisa no pilão. Depois peneira, junta ele com um pouco de café de pacote
(industrializado) e guarda numa lata bem tampada. Tá pronto pra usar”. Perguntei por que
juntar com café de pacote e ela respondeu que “antigamente não misturava, mas agora a gente
mistura pro café não ficar muito forte, porque a médica disse que café forte faz mal pra
saúde.”
Continuando a conversa, D. Severina me explicou como o café é preparado – “bota
água no fogo numa chaleira, quando ela tá fervendo, bota o café e o açúcar, mexe bem, tira do
39
Investiguei com D. Sônia e com outros moradores do Muquém, mas não encontrei explicação para a
denominação “quarenta”, dada ao prato citado.
70
fogo e deixa ele assentar, o pó fica todinho no fundo da chaleira, aí pode botar na xicra e
tomar.” Ela comentou que uma das suas noras lhe deu um coador de café, mas ela não se
acostumou com “essa novidade” – “o café não fica com o mesmo gosto do que a gente faz
sem coador”.
Logo no meu primeiro dia na casa de D. Severina, comecei a observar, atenta e
curiosamente, tudo à minha volta - o espaço físico interno e externo à casa, o movimento das
pessoas da família e de outras moradores do povoado, que transitavam nos caminhos em
frente e ao lado da casa. Foi assim que presenciei hábitos, costumes e fatos que,
aparentemente, deixaram de existir com a aproximação das comunidades camponesas com a
“vida moderna”, tipificada como urbana.
Nos primeiros dias no Muquém, tive a sensação de estar vivendo diversos tempos
históricos ao mesmo tempo - o velho e o novo, o arcaico e o moderno se entrecruzando,
convivendo em harmonia, sem conflitos aparentes.
Minha rotina começava ao me acordar, aproximadamente, às 6h da manhã, seguindo o
costume da família. Após cuidar de minha higiene pessoal, antes de tomar o café da manhã,
normalmente, eu saia ao terreiro da casa para observar o movimento das pessoas.
No primeiro dia, presenciei D. Severina, Seu Amaro e Tonho varrendo o terreiro em
redor da casa com vassouras de mato. Observei que não havia lixo proveniente de produtos
industrializados, mas apenas folhas de árvores, que eles juntavam e lançavam nas áreas do
terreno reservadas ao plantio de roça durante o inverno. Em seguida, vi D. Severina pegar
uma cuia com milho e chamar as galinhas, imitando o cacarejar das mesmas. As aves corriam
e pulavam em sua volta, enquanto ela jogava o milho. No meio das galinhas e aves menores,
um galo vistoso e altivo se destacava – era o tradicional “pai do terreiro”, cuja função é cobrir
as galinhas para fertilizá-las. D. Severina explicou que num terreiro não pode ter mais de um
galo. Se botar mais de um, eles brigam, disputando o “posto”, até um dos dois morrer.
D. Severina mantém o modo antigo de criação livre. Durante o dia as aves circulam
pelo terreiro comendo vegetais, insetos rasteiros e outras coisas. Por esse motivo, algumas
donas de casa, quando pretendem abater uma dessas aves para consumo, confinam-na num
chiqueiro próprio, por um tempo determinado, para engordar a ave e “limpar” a carne. A ave é
alimentada apenas com alimentos limpos, principalmente, com milho e sobras de comida
caseira.
Nesse sistema de criação, a reprodução das aves também é feita de forma livre. As
galinhas são cobertas pelo galo “pai do terreiro”, que as fecunda. Os ovos postos por essas
galinhas são colocados para “chocar” por uma delas, sobre um ninho de capim ou outras
71
folhas, localizado num espaço coberto e fechado, normalmente um chiqueiro apropriado, para
evitar que sejam depredados por outros animais, como a raposa, por exemplo. A galinha
“choca” só se ausenta do ninho para se alimentar.
Ao entardecer, quando começa a escurecer, as aves se dirigem ao poleiro, onde
dormem em segurança, sem risco de serem atacadas por algum predador. Normalmente, é
escolhida uma árvore alta para poleiro. Na casa de D. Severina o poleiro é uma mangueira
localizada no terreiro, na qual foram escorados alguns paus para facilitar o acesso das aves.
Durante o inverno, quando são feitos os plantios de roça, para evitar que a destruam,
as aves são confinadas no chiqueiro, à exceção das galinhas que estão com pintos novos.
Essas são amarradas por um barbante forte a uma árvore no terreiro da casa. Desta forma, os
pintinhos podem circular livremente em volta da galinha-mãe e se alimentarem de sementes,
ervas e insetos encontradas no chão.
Presenciei esse evento quando retornei ao Muquém, após o primeiro período de minha
estada na comunidade. Ao chegar, surpreendi-me com a mudança: nos espaços das roças,
antes secos, onde as galinhas ficavam soltas, havia crescido milho, feijão e mandioca.
A família mantém outro hábito tradicional na criação e consumo de animais
domésticos. Observei, logo no segundo dia de minha permanência na casa, uma porca grande
confinada em um chiqueiro, na parte traseira da casa. D. Severina me explicou que sempre
tem um porco ou uma porca engordando no chiqueiro. Ela compra o animal ainda filhote e vai
alimentando com ração e sobras de comida doméstica. Quando ele atinge a idade adulta e está
gordo, ela manda abater. O abate é feito por homens do povoado que adquiriram essa
habilidade e fazem dela uma fonte de renda.
A maior parte da carne e do toucinho é vendida aos vizinhos, o restante fica em casa,
juntamente com as vísceras do animal. Uma parte da carne de casa é conservada no
refrigerador; a outra parte, as vísceras e o toucinho são conservados no sal para serem
consumidos assados na brasa. Todos em casa gostam muito desse alimento.
D. Severina me disse que aquela porca, que eu vi no chiqueiro, estava quase no “ponto
de matar”. A parte da carne a ser vendida já estava toda encomendada pelos vizinhos,
discriminando: “dois quilo dum quarto traseiro é pra fulana, três quilo dum quarto dianteiro é
pra sicrano...” Esse costume é comum na comunidade, funciona como um intercâmbio
comercial informal, de modo que sempre há uma família abatendo e fornecendo carne de
porco para outras famílias. No meu retorno, observei, também, que a porca não estava mais no
chiqueiro. Havia sido abatida. Ainda provei de um pedaço de toucinho assado na brasa, que
D. Severina me ofereceu.
72
2.4. Espiritualidade e práticas religiosas
Apesar da ancestralidade negra africana, a comunidade de Muquém se declara
católica, cultua os santos e pratica rituais dessa religião, embora algumas pessoas informem,
discretamente, que existem, entre seus integrantes, “rezadeiras” e pessoas que “botam mesa
branca”.
A reação dessas pessoas revela um silenciamento diante de perguntas referentes a
tradições religiosas de origem africana. Postura explicada com o seguinte depoimento do
mestre de capoeira, quando perguntado se havia, no Muquém, algum grupo religioso ligado a
tradições africanas:
Lá não. Mas tem pessoas que trabalham... Que prestam serviço de Candomblé.
Existem pessoas... Eu conheço pessoas que trabalham... Agora, eles não têm terreiro
de Candomblé. Não existe isso. Até porque, eu acho que a repressão foi muito
grande, desde aquele quebra de 1912... Que houve aquele quebra em Maceió40
, que
as pessoas que trabalhavam no Candomblé ficaram muito afastadas, com medo...
Né?
Em Alagoas, a fratura criada por esse acontecimento, reforçada historicamente pelo
processo de desqualificação da cultura africana, no seio da exploração e aniquilamento da
população afrodescendente, associadas à ação pastoral da Igreja Católica, parece ter
favorecido o surgimento de uma ambiguidade na formação e prática religiosas dessa
população. Neste sentido, a fala do mestre é, também, ilustrativa da postura geral da
comunidade de Muquém:
Agora, eu pergunto: “E se no Muquém tivesse um terreiro de Candomblé? Será que
as pessoas que trabalham, que são ligadas à igreja católica, será que iam aceitar
como se aquilo ali pertencesse à igreja? Acho que não. Acho que não porque os
costumes são diferentes.
Em outro trecho de seu depoimento, o mestre de capoeira, rechaçando a fala da
presidente da associação de moradores de Muquém, refere-se a uma relação entre as práticas
artístico-culturais de origem africana com a dimensão religiosa, embora sua fala não chegue a
esclarecer essa relação:
40
O depoente refere-se ao episódio ocorrido em 1912, no estado de Alagoas, conhecido como “Operação
Xangô” ou “Quebra de 1912”, que promoveu, em Maceió e municípios vizinhos, a invasão e destruição dos
terreiros de cultos afro-brasileiro, denominados de Terreiros de Xangô (RAFAEL, 2004, 2010).
73
Eu sou mestre de capoeira e trabalho no Muquém há 24 anos. Ensino capoeira. Por
isso que eu digo que ela [presidente da Associação do Muquém]41
, se confundiu um
pouquinho, porque quando a senhora perguntou a ela se há no Muquém alguma
manifestação ligada à religião afro, ou seja, africana, ela esqueceu que nós temos lá
a capoeira e, também, a dança afro, o reggae...
A convivência com a família que me acolheu, possibilitou-me o conhecimento de
determinadas práticas que, parece-me, a comunidade reserva para as pessoas que vão
ganhando sua confiança. Assim foi, quando conversando com D. Severina e as meninas, eu
lhes perguntei se havia alguma prática religiosa na comunidade. Diante da resposta
afirmativa, eu indaguei se tinha relação com alguma tradição africana. A resposta veio rápida
em coro – “não! A gente é católica. O padre de União [dos Palmares] vem sempre rezar missa
aqui no Muquém”. Esperei outra ocasião, que julguei oportuna, e insisti no assunto,
perguntando se havia algum rezador ou curador na comunidade. Indagaram se eu estava
sentindo alguma coisa e se eu acreditava nisso. Então me falaram de uma prima delas que
herdou o dom da avó, que “era uma rezadeira fina. Curou muita gente, inclusive Tonho, de
uma fraqueza na cabeça”, que preocupava muito a família.
2.5. Práticas de preservação da cultura e transmissão de saberes
Os sentidos de ensinar e aprender na comunidade de Muquém estão presentes em suas
práticas cotidianas, no fazer de cada atividade, misturados com o viver, como me explicou
uma artesã: “aqui, uma filha aprende com a mãe, vendo a mãe fazer o pote, a quartinha...”.
Embora a modernidade se mostre nos telhados, pelas antenas parabólicas, nas mãos
das pessoas, pelos aparelhos celulares, nas faixas que anunciam: “1º DESFILE UNIÃO
FASHION WEEK CLOTHES, no Chimbra’s Bar”, as mães continuam ensinando as filhas a
pescar com puçá no Rio Mundaú, a criar galinhas no terreiro e engordar porcos no quintal,
como se fazia há 300 anos no quilombo.
Entre as atividades educativas da comunidade de Muquém, identifiquei a ação de um
mestre de capoeira, que, segundo seu depoimento, luta pela recuperação, difusão e
preservação de práticas culturais afro-brasileiras, herança dos ancestrais quilombolas que
habitaram o Quilombo dos Palmares.
41
Referência ao depoimento da presidente da Associação do Muquém, entrevistada antes do mestre de capoeira.
74
Figura 4 – Aula de capoeira infantil na comunidade de Muquém – maio/2010. (Foto: Reneude Sá)
Assim, escolhi uma aula de capoeira do Mestre Nei, desenvolvida com crianças, para
analisar os modos de ensinar na Comunidade de Muquém. Pretendo, com a descrição e
análise dessa aula, mostrar como, por meio de uma prática educativa não institucional42
, um
representante do movimento negro local busca contribuir para a formação e fortalecimento de
uma identidade étnico-racial de uma comunidade negra, a partir da educação das crianças.
No depoimento a seguir, o Mestre Nei revela como o ensino de capoeira na
comunidade de Muquém insere-se nesse propósito mais amplo:
Nas minhas aulas de capoeira, que eu dou lá [no Muquém], eu prego muito isso pras
crianças. Já começo a ensinar a eles historicamente. Já falo muito sobre a Serra da
Barriga... Eu, também, sou cantor. A gente tem músicas sobre a Serra da Barriga,
que falamos muito sobre a história de Zumbi e o extermínio do Quilombo [dos
Palmares]. (...) e a gente já passa isso em forma de história, conversando com eles,
informando, dizendo pra eles que eles são remanescentes do Quilombo [dos
Palmares] e que Zumbi foi o maior líder negro das Américas. Foi o cara que lutou
pela liberdade dos negros. Já é uma conscientização das crianças, porque tem muitas
pessoas adultas que vai morrer e não vai acreditar nem sequer que eles são
descendentes de africanos. Existem pessoas que pensam dessa forma, mas as
42
Embora, segundo informação do mestre, as aulas de capoeira integrem um projeto da Prefeitura de União dos
Palmares - “pegando carona na Lei 10.639/1993” (BRASIL, 2012d) - essa ação vem sendo desenvolvida por ele,
voluntariamente, desde o ano de 1987, sob sua inteira responsabilidade.
75
crianças... Nós temos que trabalhar muito as crianças porque nós tamos preparando
elas pro futuro, pra que amanhã elas possam ter orgulho de dizer: eu sou
descendente de africanos, eu sou remanescente de quilombo legítimo. Tenho
orgulho de ser negro.
A esse respeito, Cabengele Munanga (2008), em estudo sobre mestiçagem e
identidade no Brasil, discutindo as dificuldades enfrentadas pelos movimentos sociais para
mobilizar seus membros e avançar em suas lutas, afirma a necessidade de construção de uma
nova consciência pelos grupos em questão, que passa pela definição de uma identidade
própria ou “personalidade coletiva”, esclarecendo:
Essa identidade, que é sempre um processo e não um produto acabado, não será
construída no vazio, pois seus constitutivos são escolhidos entre os elementos
comuns aos membros dos grupos (...). No que diz respeito aos movimentos negros
contemporâneos, eles tentam construir uma identidade a partir das peculiaridades de
seu grupo: seu passado histórico como herdeiros dos escravizados africanos. Sua
situação como membros de grupo estigmatizado, racializado e excluídos das
posições de comando na sociedade cuja construção contou com seu trabalho
gratuito, como membros de grupo étnico-racial que teve sua humanidade negada e a
cultura inferiorizada. Essa identidade passa por sua cor, ou seja, pela recuperação de
sua negritude, física e culturalmente (MUNANGA, 2008, p. 14).
O mestre Nei dá aulas de capoeira, uma vez por semana, a crianças de 3 a 12
anos de idade que frequentam a escola municipal do Muquém. Para jovens e adultos, além de
capoeira, o mestre ministra aulas de dança-afro, maculelê, coco-de-roda e outras práticas
artístico-culturais.
No dia anterior à observação da aula de capoeira infantil, entrevistei o mestre em uma
sala na Secretaria de Cultura do município, onde ele ocupa o cargo de assessor de cultura. Na
ocasião, me informou que é compositor e cantor de reggae, tem um programa na rádio local,
faz shows com sua banda de reggae, integra o movimento negro e participa de diversos
eventos relacionados à defesa da cultura negra. No depoimento a seguir, o entrevistado, que
informa ter concluído o ensino médio, fala da sua origem:
Eu nasci na Serra da Barriga. Eu nasci na Serra... Fui um garoto que veio do corte da
cana. Eu cortei cana até os 16 anos. Cortei cana, limpei mato... Aos sábados, eu
vinha praqui pra cidade [União dos Palmares]. Vendia picolé, pegava carreto... Eu
fui um cara trabalhador, né? Comecei a estudar pra ver se me dava uma qualidade de
vida melhor. Graças a Deus, melhorou. Hoje eu não corto mais cana.
Ao final da entrevista, indagado se eu poderia assistir a uma de suas aulas na
comunidade de Muquém, o Mestre convidou-me, então, para assistir à aula de capoeira, que
ministraria no dia seguinte para crianças que frequentam a escola municipal do povoado.
76
As aulas de capoeira são ministradas no espaço físico da escola, mas, conforme
informação do mestre, não há nenhuma ligação com a escolarização das crianças. A
professora apenas cede o local e libera os alunos, uma vez por semana, para que ele possa
ministrar a aula de capoeira.
Segundo seu entendimento, a escola deveria valorizar o ensino da capoeira,
relacionando-o à formação escolar das crianças. Justifica sua posição, argumentando que é
importante e necessário que as crianças cresçam valorizando a cultura de seus ancestrais,
reconhecendo e se orgulhando de sua descendência africana, aceitando sua etnia e
combatendo a discriminação étnico-racial.
A seguir, descrevo analisando a aula que observei. Para maior clareza, organizei o
relato em quatro fases interligadas, obedecendo à sequência dos acontecimentos, segundo
minha percepção:
1ª fase - Aquecendo o corpo
O mestre iniciou a aula correndo em círculo com as crianças, prosseguindo com uma
série de exercícios de alongamento (pernas, braços, tronco e pescoço), realizados
coletivamente. Ao todo, 16 crianças compareceram à aula, que teve duração de,
aproximadamente, 90 minutos. Mantendo as crianças em círculo, cada movimento era
intercalado com caminhadas ágeis e ritmadas.
Ao longo da aula, mantendo-se atento a cada criança, ele ia orientando e corrigindo,
individualmente, aquelas que não executavam os movimentos adequadamente. Sua fala era
firme, sem ser ríspida ou impaciente. Aos acertos, elogiava – “Legal! Ok! Isso!” À distração e
inadequação, reclamava – “Presta atenção! Tá errado! Faça de novo!” Demonstrava
familiaridade com as crianças, dirigindo-se a cada uma pelo nome próprio.
Além de orientar verbalmente, o mestre demonstrava, com seu próprio corpo, cada
movimento que ensinava. Quando alguma criança demorava a entender uma orientação ou a
executar um movimento, ele se aproximava e movimentava o corpo da criança, ensinando-a
como fazer. Repetia cada orientação tantas vezes quantas ele considerava necessárias.
Durante toda a aula, as crianças mostraram-se ativas, alegres e envolvidas com as
atividades, interagindo intensamente com o mestre, mesmo conversando e rindo a maior parte
do tempo, principalmente as crianças menores.
77
Inicialmente, minha presença pareceu dispersar a atenção das crianças, levando o
mestre a adverti-las – “Prestem atenção que vocês estão sendo gravados. Vamos fazer tudo
direitinho.” Porém, passados alguns minutos, “esqueceram-se de mim”, ignorando minha
presença. Assim, pude acompanhar toda a atividade sem intervir, fotografando e filmando.
Apenas no final, agradeci e pedi que posassem com o mestre para uma foto, que lhe enviei,
posteriormente.
2ª fase - Exercitando os movimentos iniciais do jogo
Após os exercícios de alongamento, mantendo as crianças em círculo, o mestre pediu a
todas que se levantassem e, coletivamente, repetissem os movimentos iniciais do jogo de
capoeira, à medida que ele as orientava, executando os movimentos junto com elas.
Em seguida, mandou as crianças sentarem no chão, mantendo-se em círculo.
Chamando uma a uma, foi orientando, passo-a-passo, uma sequência de movimentos,
enquanto as outras observavam. Além de ensinar os movimentos, na sequência seguinte, o
mestre perguntava e mandava que todos repetissem o nome de cada movimento:
A bênção – A criança, posicionada de frente para o mestre, erguia a perna direita
esticada, tocando a perna direita do mestre, que simulava ser o parceiro com quem ela
vai jogar.
Ginga – a criança começa a balançar o corpo para frente e para trás, alternando pernas
e braços, num molejo cadenciado. O mestre orientava – “Pé direito pra frente, mão
esquerda pra trás. Troca. Cabeça erguida. Olhar pra frente, altivo. Nunca para o chão.”
Em frente à criança, ele ia demonstrando os movimentos, enquanto corrigia e
incentivava – “Continua. Não para de gingar. Olha pra mim. Ergue o corpo, levanta a
cabeça”.
AU estrela – a criança saltava para um lado, da esquerda para a direita. Apoiando a
mão direita no chão, lançava o corpo para cima na mesma direção e aterrissava sem
cair. Repetia o movimento de volta, da direita para a esquerda, sempre sob a
orientação do mestre.
Cada criança exercitou, individualmente, esses movimentos básicos por diversas
vezes, mostrando desempenhos variados. Umas ficavam mais atentas, outras menos; umas
78
demonstravam mais habilidade que outras, porém, a atenção do mestre pareceu ser a mesma
para todas as crianças.
3ª fase - Jogando o jogo
Em seguida, mantendo as crianças sentadas no chão em círculo, o mestre as orientou a
baterem palmas cadenciadamente, a fim de acompanharem o jogo, que seria realizado por
duplas. As crianças começaram a bater palmas distraidamente, sem cadenciarem as batidas.
Distração que levou o mestre a mandá-las treinar por alguns minutos, antes de iniciar o jogo.
Chamando a primeira dupla, ele mandou se cumprimentarem, apertando as mãos. Em
seguida, mandou se benzerem, fazendo o sinal da cruz (da religião católica) e se afastarem,
posicionando-se para iniciar o jogo, que seguiu a sequência exercitada na fase anterior.
Enquanto as duplas se revezavam, as outras crianças batiam palmas, marcando a
cadência do jogo. O mestre, sempre atento a todas as crianças, orientava e incentivava os
jogadores, corrigia seus movimentos e, ao mesmo tempo, comandava a ação das demais
crianças na roda.
4ª fase - Exibição do mestre e despedida
Depois que todas as crianças participaram do jogo, o mestre disse para permaneceram no
círculo, sentadas no chão. Em seguida, as crianças passaram a cantar animadamente várias
melodias puxadas pelo mestre. Entre elas, “Marinheiro Só”43
foi uma das mais cantadas.
Enquanto as crianças cantavam e batiam palmas, o mestre, no centro da roda, como
num ritual, fez uma rápida demonstração do jogo de capoeira. As crianças atentas aplaudiram
animadamente durante toda a exibição.
Para finalizar, ele mandou se posicionarem de pé mantendo-se em círculo, juntarem as
pernas, colocarem a mão direita sobre o peito e o braço esquerdo dobrado para trás, sobre as
43
Cf. Anexo D – Letra da música Marinheiro Só.
79
costas. Então, iniciou a recitação da oração do Pai Nosso (da religião católica). Elas entoaram
a reza em alto e bom-tom, recitando a oração de memória.
Depois, o mestre perguntou se faltava cantar alguma música e as crianças responderam
em coro: o “Hino de Zumbi” 44
.
Todas participaram do canto do hino, entoando, animadamente, seu estribilho:
Zumbi, Zumbi, teu grito de liberdade foi tão grande,
Que ecoou pelo Brasil, mais tarde libertou teus semelhantes.
A seguir, o mestre bradou em tom bem alto a saudação repetida por duas vezes:
“SALVE A CAPOEIRA”! As crianças responderam em coro: “SALVE”!
Finalmente, em fila, uma a uma, as crianças cumprimentaram o mestre, tocando sua
mão direita com o punho fechado e inclinando o corpo em reverência. Quando a última
criança cumpriu o ritual, espontaneamente, todas correram e se abraçaram ao mestre, gritando
e rindo contentes.
Embora não caiba discutir, neste trabalho, concepções e modalidades de capoeira,
registro, a título de esclarecimento, que o mestre entrevistado pratica e ensina a linhagem
tradicional de capoeira identificada como Capoeira Angola45
.
Mesmo não sendo uma atividade institucional, a referida prática tem uma
sistematização claramente observável. Sua organização obedece a normas, regras, distribuição
de tempo e outros critérios, associados a procedimentos metodológicos e a técnicas
específicas da capoeira, com passos bem delimitados e movimentos bem marcados.
No desenvolvimento da aula, pude observar claramente, uma concepção de ensino e
aprendizagem constituindo uma ação pedagógica na qual esses dois atos se articulam, tendo,
na oralidade e na demonstração prática, seu meio de comunicação por excelência46
.
O processo pedagógico é desenvolvido segundo um movimento simultâneo teoria-
prática, que associa a orientação do mestre com o exercício desempenhado pelos educandos,
sob sua observação atenta.
É notável a simultaneidade entre ensino-aprendizagem-avaliação, quando o mestre
registra, oralmente, no processo, a aprendizagem avaliada como adequada e corrige aquela
que considera inadequada. Assume, nessa dinâmica, uma postura pedagógica positiva de
44
Cf. Anexo E- Letra do Hino do Município de União dos Palmares. 45
Cf. Araújo (2004). 46
A análise pedagógica da aula de capoeira foi fundamentada no pensamento freireano, especialmente no livro
Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (FREIRE, 1997).
80
incentivo à aprendizagem, mesmo quando se mostra rigoroso na correção da aprendizagem e
na exigência da disciplina comportamental das crianças.
Observa-se, também, um movimento de ensino e aprendizagem que articula ação
individual com ação coletiva. Mesmo quando cada criança executa, individualmente, os
passos ensinados pelo mestre, a aprendizagem mostra se processar coletivamente, na medida
em que todas as outras crianças, sentadas na roda, observam e acompanham a ação dos
colegas que se encontram no centro.
Todas as ações, mesmo na fase de exercício individual, são executadas por todas as
crianças e toda ação individual é seguida coletivamente na sua execução, ou seja, todas as
crianças acompanham, simultaneamente, a ação individual de cada uma delas.
Observa-se, ainda, na prática de ensino da capoeira, a presença de diversos sentidos
que parecem se associar numa rede simbólica: preservação de uma prática cultural ancestral;
valorização de um povo historicamente explorado, discriminado e desumanizado; formação e
afirmação de uma identidade étnico-racial; associação de uma prática artístico-cultural com
uma dimensão espiritual, relacionada a um sentido sagrado.
Em síntese, a prática de ensino da capoeira em Muquém parece expressar uma
concepção ampla de educação como processo cultural, no sentido mais completo de formação
do humano. (BRANDÃO, 1989).
2.5. Atendimento escolar
A oferta de educação escolar no povoado do Muquém limita-se ao 1º segmento do
ensino fundamental (1ª a 5ª série) em duas classes multisseriadas. O povoado dispõe de uma
única escola, administrada pela Secretaria de Educação do Município. O prédio compõe-se de
uma sala de aula, um banheiro coletivo, a cozinha e uma área coberta, mas todos se encontram
em péssimo estado de conservação.
Para dar continuidade aos estudos, os educandos do Muquém necessitam se deslocar
até a cidade, onde estão localizadas as escolas que oferecem o segundo segmento do ensino
fundamental e o ensino médio.
81
Figura 5 – Escola municipal no povoado de Muquém. Maio/2010. (Foto: Reneude Sá).
A maioria dos adultos não é alfabetizada. A oferta de alfabetização para esse
contingente limita-se a projetos temporários, a exemplo do PBA que, no início desta pesquisa,
mantinha três classes na comunidade.
Nas observações das classes de alfabetização de jovens e adultos, constatei as mesmas
precariedades observadas em outros espaços rurais visitados. Além do que, essas classes
apresentavam um dos graves problemas que têm caracterizado, historicamente, os programas
de alfabetização de jovens e adultos no Brasil, que é seu abandono pelos alfabetizandos,
registrado nas estatísticas educacionais como “evasão escolar”.
Durante minha permanência na comunidade, uma das classes foi desativada porque os
alfabetizandos pararam de frequentá-la. As explicações das coordenadoras e professoras para
o abandono das classes parecem contraditórias: ora o abandono é atribuído à “falta de
interesse e à dificuldade de aprendizagem”, principalmente, dos adultos idosos; ora são
apontados o cansaço e a escassez de tempo, gerados pelo trabalho a que estão sujeitos os
alfabetizandos por serem pobres, como impeditivo da frequência às aulas. Raramente, são
82
citados fatores relacionados às políticas educacionais que, também, contribuem para o
analfabetismo.
Curiosamente, a situação de escolaridade dos jovens aponta na direção de mudança
dessa realidade. Diversas moças e rapazes têm o ensino médio concluído e pretendem fazer
curso universitário. Os mais citados foram: Direito, Letras, Administração, Enfermagem,
outros. Entretanto, a maioria dos jovens entrevistados acha que a falta de condições
financeiras dificulta a concretização de seu “sonho”.
83
CAPÍTULO 4 - REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORAS-ALFABETIZADORAS
SOBRE ANALFABETISMO E ALFABETIZAÇÃO
Na análise das representações, procurei observar influências da vida cotidiana da
comunidade e dos processos de formação docente na construção das representações das
professoras, além de prováveis repercussões em suas práticas de alfabetização.
As representações das professoras sobre analfabetismo e alfabetização vão-se revelando
no decorrer de um discurso proferido em diversos momentos, aparentemente, construído com
fragmentos de conhecimentos e informações adquiridos em ações de formação, no livro
didático distribuído pelo PBA, em prováveis leituras de outros textos sobre o assunto, em
conversas com outras professoras, em saberes e crenças sedimentadas no imaginário coletivo,
especialmente, sobre os temas foco da investigação – analfabetismo e alfabetização - e em
suas práticas pedagógicas no exercício docente.
1. Professora Anita
Meu primeiro contato com a professora Anita deu-se no dia 11 de março de 2010,
quando visitei sua classe pela primeira vez. Foi uma “visita-surpresa”, acompanhada da
coordenadora do PBA, que me esclareceu agir sempre desse modo a fim de “evitar que os
professores se preparassem para mostrar uma realidade que não existia47
”.
No momento dessa visita, havia oito alfabetizandos jovens e adultos e algumas
crianças que acompanhavam seus pais. A coordenadora apresentou-me, dizendo que eu estava
fazendo uma pesquisa e, em seguida, cedeu-me a palavra. Cumprimentei a professora e os
educandos e pedi licença para explicar o motivo da minha visita.
47
Em entrevista, a administração do PBA explicou que aboliu o cronograma de visitas, no qual discriminava os
dias em que os coordenadores de turma visitavam cada classe. A medida foi adotada após perceberem haver
casos de simulação de funcionamento de classes por parte de professores que, não tendo alfabetizandos
frequentando-as, nos dias de visita colocavam um grupo de pessoas (parentes e vizinhos), para ocuparem a sala
de aula, fingindo serem alunos. Um caso mais grave foi identificado: uma professora que pagava R$ 1,00 (um
real) a cada jovem de uma área periférica da cidade, para fingir frequentar sua classe. Segundo depoimentos de
pessoas entrevistadas, esses professores agiam desse modo para não perderem a bolsa paga pelo PBA, que era de
R$ 250,00 mensais. Atitude atribuída “à falta de profissionalismo, compromisso e responsabilidade de
professores que tiveram acesso ao Programa por meio de interferências políticas”.
84
Iniciei minha fala estabelecendo um diálogo com eles a respeito de educação e de
pesquisa. Comecei perguntando quem sabia ou já havia ouvido falar em pesquisa. No início,
os educandos mostravam-se inibidos, sorriam, desviavam o olhar de minha pessoa, mas não
emitiam qualquer opinião. Incentivei-os, lembrando que estávamos em um ano eleitoral e, em
anos assim, os noticiários de rádio e televisão falam muito em pesquisa. Eles se animaram e
começaram a falar das pesquisas de intenção de voto que haviam visto na TV. Citei outros
tipos de pesquisas, relacionadas com atividades agropecuárias, com as quais eles lidam no
campo. Interessaram-se, fazendo intervenções, dando exemplos e formulando questões.
A partir daí, passei a explicar o tipo de pesquisa que eu estava desenvolvendo, com a
finalidade de estudar o analfabetismo e a alfabetização das populações jovens e adultas do
campo. Nesse ponto, desencadeei uma reflexão sobre o direito que tem todo cidadão brasileiro
de frequentar escola desde a infância, e o dever do Estado em oferecer a escolarização, de
modo que todos tenham condições de concluir, pelo menos, o ensino fundamental.
Finalizei esclarecendo que esse era o motivo pelo qual eu estava visitando classes do
Programa Brasil Alfabetizado e esperava contar com a colaboração deles e das professoras
para realizar meu trabalho. Tanto a professora quanto os educandos manifestaram
disponibilidade para me ajudar.
Após essa primeira visita, minha convivência com a professora Anita estendeu-se pelo
período de duração da pesquisa de campo, em diversas situações: na escola, observando suas
aulas na classe de alfabetização de jovens e adultos, em visitas à classe infantil de 1ª a 4ª
série, nas entrevistas e conversas informais em outros espaços do povoado, na eleição da
diretoria da Associação de Moradores do Muquém e num encontro de formação do PBA, na
cidade de União dos Palmares.
1.1. Dados biográficos da professora
A professora Anita é uma jovem negra, franzina e de baixa estatura física. Na época
dessa pesquisa, estava com 28 anos de idade, era solteira e morava com os pais no Muquém.
Tinha o curso normal de nível médio concluído e, havia dois anos, estava assumindo a
docência numa classe infantil multisseriada, de 1ª a 4ª série do ensino fundamental, por meio
85
de um contrato temporário com a Prefeitura de União dos Palmares. Era remunerada com um
salário mínimo mensal48
, por quatro horas diárias de trabalho.
Em novembro do ano anterior (2009), assumiu, pela primeira vez, uma classe de
alfabetização de jovens e adultos, pelo Programa Brasil Alfabetizado. Por esse segundo
trabalho recebia uma bolsa no valor equivalente a meio salário mínimo mensal, como
alfabetizador voluntário49
sem vínculo empregatício. Antes de atuar na área de educação,
além de tarefas domésticas na residência dos pais, havia trabalhado no corte de cana e com
vendas de produtos diversos, em sua própria residência e numa lanchonete da cidade.
No início do período de convivência com a professora Anita, ela me pareceu uma
moça tímida, que se expressava com reservas, especialmente sobre seu trabalho. Mas, com o
passar do tempo, mesmo mantendo uma postura contida, ela foi se revelando uma pessoa
comunicativa. Tanto nas entrevistas, quanto nas conversas informais, aparentava estar à
vontade, falava com desenvoltura e fartamente sobre quaisquer questões que lhe fossem
propostas. Demonstrava senso de responsabilidade em relação à atividade docente que
desempenhava. Nos momentos em que permaneci em sua classe, observando suas aulas,
pareceu-me que ela mantinha um comportamento que lhe era habitual: calma e atenciosa com
os alunos, organizada e segura na exposição e orientação das atividades didáticas. Não percebi
que se incomodava com minha presença.
A família50
dela, como quase todas as famílias do Muquém, vive em condições
financeiras muito escassas. Mantém-se com os rendimentos do trabalho dos homens, jovens e
adultos, provenientes de atividades agrícolas, especialmente, no corte de cana-de-açúcar em
usinas e fazendas do próprio estado de Alagoas, mas, principalmente, de outras regiões do
país. Além do trabalho das duas filhas mais jovens, na área de educação, as mulheres
contribuem para o sustento da família com o desempenho de atividades temporárias: cultivo
de roça, pesca no rio que corta o povoado e criação de pequenos animais para consumo
doméstico, entre outras.
Para caracterizar com mais precisão as condições de vida de sua família, Anita relata a
situação de sua mãe que, aos 10 anos de idade, perdeu a mãe, que “morreu de parto” do 11º
filho. Desde então, sua mãe teve que cuidar dos dez irmãos mais novos até os 24 anos de
idade, quando se casou com o pai de Anita, um homem, também, muito pobre. Exemplifica a
48
O valor do salário mínimo no ano de 2010 era de R$ 510,00 (quinhentos e dez reais). 49
Denominação do professor-alfabetizador no Programa Brasil Alfabetizado. 50
Na comunidade de Muquém, a família compreende a família ampliada que inclui os pais, os filhos solteiros,
os filhos casados, netos, bisnetos, etc. Essa compreensão reflete-se num sentimento comunitário que une todos
numa grande família, desde sua origem secular.
86
pobreza da mãe, relacionando-a com a impossibilidade de estudar: “[...] ela nunca pôde
estudar, por isso ficou analfabeta”. Destaca, ainda, com muita ênfase, o fato de a mãe, “até a
juventude, nunca ter podido comprar uma roupa nova”.
Essas questões parecem marcar fortemente a visão de Anita a respeito das condições
de vida, não só de sua família, mas de toda a comunidade de Muquém. Refletindo sobre sua
própria situação, ela afirma que estudou com muita dificuldade até concluir o curso normal
médio. Em sua fala, destaca, enfaticamente, a questão da roupa:
Quando eu iniciei a escola eram duas roupas para passar uma semana. Não tinha
condições de ter outra roupa. Quando eu fiz a 5ª série, minha mãe me deu um peru
que eu criei até ele ficar bonitinho e vendi para comprar uma roupa. Eu andei dois
meses com uma roupa só, até conseguir comprar outra. Chegava da escola (gastava
uma hora e meia quando vinha cansada), lavava a roupa e vestia no outro dia essa
mesma [roupa]. Tinha uma de vestir em casa, bem velhinha.
Suponho que, na compreensão da professora, a sociedade constitui-se de pessoas ricas
e pobres, brancas e negras, boas e más. Essa divisão aparece em sua fala como um fato
natural e, como tal, seu sentimento em relação a essa realidade é de lamentação. Em nenhum
momento, ela expressou alguma crítica, contestação ou intenção de combate a essa situação.
As pessoas podem mudar suas condições de vida, mas com muito esforço, sorte e ajuda
divina.
A sua formação docente foi realizada no Curso Normal de nível médio, onde ela
aprendeu apenas a “ensinar a crianças”. Não se recorda de ter ouvido falar, nesse curso, em
educação de jovens e adultos.
Quando assumiu a classe de alfabetização de jovens e adultos no Muquém, já
trabalhava com uma classe de crianças na escola municipal. Com o tempo, foi entendendo que
deveria tratar os adultos, em sala de aula, diferentemente do modo como tratava as crianças,
porque “Se falar com eles dando ordem, repreendendo, contrariando, eles abandonam a
classe”.
Segundo seu entendimento, os encontros de formação e o acompanhamento
pedagógico do PBA ajudam pouco no seu trabalho em sala de aula, na alfabetização dos
jovens e adultos. Do mesmo modo, considera o livro didático do programa “muito adiantado”.
Para usá-lo, ela adapta as atividades a fim de “alcançar o nível dos alunos”51
.
51
Cf. Apêndice H - Uma aula da professora Anita.
87
1.2. Relação da professora com a questão étnico-racial
A família da professora Anita habita o Muquém há muitas gerações. Ela acredita ter,
assim como a maioria das famílias do povoado, uma descendência histórica dos negros que
viveram no Quilombo dos Palmares há mais de 300 anos, simbolizados na figura de Zumbi,
líder da resistência negra à escravidão.
Entretanto, a professora revela que até pouco tempo, antes de a comunidade ser
reconhecida, pelo Ministério da Cultura, como remanescente de quilombo, os habitantes de
Muquém não gostavam de ser identificados como descendentes dos negros do Quilombo,
conforme revela o depoimento a seguir:
[...] porque as pessoas eram muito discriminadas, desvalorizadas e até perseguidas,
principalmente pelos moradores da cidade. Agora, todo mundo está interessado no
Muquém, na história de Muquém, no artesanato, na cultura... Todo mundo quer tirar
vantagem do Muquém: os políticos, as pessoas da cidade, os professores, os
estudantes de universidade... Agora sim, os moradores de Muquém podem se
orgulhar de ser negros, de ser descendentes de quilombo.
A fala de Anita parece expressar um olhar crítico para as questões étnico-raciais, ao
destacar as relações discriminatórias sofridas historicamente pela comunidade, e apontar os
riscos que ela corre, após seu reconhecimento como remanescente de quilombo, de ser
explorada por pessoas não comprometidas com suas causas.
Ao mesmo tempo, a professora ressalta, em sua fala, um dado positivo ao apontar uma
mudança na representação dos moradores de Muquém sobre si próprios – o orgulho “de ser
negros, de ser descendente de quilombo” 52
.
Com o objetivo de examinar melhor a relação da professora Anita com a questão
étnico-racial, que envolve a comunidade de Muquém, perguntei-lhe se ela se considerava
descendente do povo negro, trazido escravizado de países da África para o Brasil.
A professora respondeu: “Isso é o que eu passo para todo mundo”, referindo-se aos
alunos de suas duas classes, mas, na sequência da fala, ela menciona uma situação de conflito
52
Essa representação parece estar em processo de construção coletiva, liderado por representantes comunitários
e do movimento negro local. Aparentemente, os habitantes de Muquém aderiram a esse movimento, conforme
observei em entrevistas e conversas informais com professores, artesãos, donas de casa, jovens e outras pessoas
que veem, na nova condição de comunidade quilombola formalmente reconhecida, oportunidades de melhoria de
suas condições de vida.
88
entre as crianças: “Nós temos alunos mestiços. Se brigar vai logo xingar. Se é branco, se é
negro, vai logo xingando. É uma xingação só! [Xinga] de branquelo e de negro”.
Insistindo na questão anterior, perguntei se ela havia estudado a história do Quilombo
dos Palmares nas escolas que frequentou. Anita afirmou que no ensino fundamental “era
contada a história, tinha trabalho e visitas à Serra [da Barriga]”. Mas, no curso normal, não.
Então, indaguei se ela participava do movimento negro local. Respondeu-me dizendo
que nunca tinha ido às comemorações do Dia da Consciência Negra, mas, quando foi a
primeira vez, no ano passado, “amou”. Sua resposta sugere que, provavelmente, a professora
tenha pouco envolvimento com essas questões.
Em relação à sua ação docente, não presenciei nenhuma abordagem da questão étnico-
racial na classe de alfabetização de adultos, durante o período de observação. Porém, em
entrevista revelou-me que pretendia, no Dia da Consciência Negra daquele ano (20 de
novembro de 2010), levar as crianças para conhecerem a Serra da Barriga, porque “eles nunca
estiveram lá”. Pensava em pedir à irmã, dirigente da escola, para providenciar um transporte.
Essas considerações ganham relevância ao se tomar conhecimento da existência de
uma política educacional destinada às comunidades quilombolas, com o propósito de
assegurar, na escolarização de seus habitantes, o tratamento de questões específicas,
relacionadas às populações negras no Brasil, conforme estabelece o objetivo do programa de
Educação Quilombola do MEC:
Fortalecer os sistemas municipais, estaduais e do Distrito Federal de Educação,
envolvendo o apoio à coordenação local na melhoria de infraestrutura, formação
continuada de professores que atuam nas comunidades remanescentes de quilombos,
visando à valorização dos valores étnico-raciais na escola e proporcionando
instrumentos teóricos e conceituais necessários para compreender e refletir
criticamente sobre a educação básica oferecida nas comunidades remanescentes de
quilombos (BRASIL, 2012e, p. 1).
Conforme se verifica na transcrição acima, além da melhoria da infraestrutura das
escolas e da formação de professores, inclui-se, entre as ações da Educação Quilombola, a
produção de material didático específico para apoiar o trabalho docente.
Portanto, é estranho que uma escola municipal, sediada numa comunidade quilombola,
não esteja, aparentemente, sendo atendida por essa política, conforme constatei nas
observações que realizei. Entretanto, tomei conhecimento de um documento impresso,
produzido pela secretaria de educação do município, para orientar as escolas na inclusão e no
tratamento de “conteúdos programáticos relativos ao estudo da história do município e da raça
negra, na sua formação sócio-política e cultural”. (UNIÃO DOS PALMARES, 2008b).
89
1.3. A classe de alfabetização da professora Anita
Figura 6 – Sala de aula no Muquém, onde se observa a presença de crianças acompanhando os pais-
alfabetizandos – maio/2010. (Foto: Reneude Sá).
A classe de alfabetização de jovens e adultos, dirigida pela professora Anita, funcionava
na única sala da escola municipal do Muquém, onde ela também trabalhava com a classe de
crianças no turno da tarde.
Além da sala de aula, localizada do lado direito do prédio, a escola dispunha de uma
pequena cozinha com depósito de merenda e um gabinete sanitário, situados do outro lado,
separados por uma área coberta, aberta na frente e na parte de trás. O estado de deterioração
do prédio (paredes, telhado, piso e instalações elétricas e hidráulicas) indicava que,
provavelmente, ele não recebia manutenção há muito tempo. Só havia iluminação noturna no
interior da sala de aula; a área interna e a parte externa da escola ficavam totalmente no
escuro. O mobiliário, também, apresentava falta de manutenção (bancas e armários
quebrados).
90
A matrícula inicial da classe de alfabetização de adultos, em novembro de 2009, era de
20 alunos. Em março de 2010, quando fiz minha primeira observação, havia apenas oito
alunos (duas senhoras idosas, três senhoras mais jovens, duas moças jovens e um senhor de,
aproximadamente, 50 anos de idade) frequentando as aulas. Em maio, quando retornei para
dar continuidade às minhas observações, a frequência variava de 4 a 5 alunos por noite.
Durante o período em que acompanhei a classe, observei a presença de crianças na sala
(Figura 5). Elas estavam acompanhando suas mães (ou pai) porque não havia quem cuidasse
delas em suas casas enquanto frequentavam a aula. Essa questão figura, entre os problemas
apontados pela professora Anita, como responsável pelo abandono das classes de
alfabetização pelas mulheres.
1.4. Representações sobre analfabetismo
As entrevistas com a professora Anita foram intermediadas com as observações em
sua classe de alfabetização de adultos. Tive oportunidade, ainda, de observar uma aula na sua
classe multisseriada, de crianças de 1ª a 4ª série, que funcionava à tarde, na mesma sala de
aula onde, à noite, funcionava a classe de alfabetização de jovens e adultos.
Assim, foi possível, na identificação e análise das representações da professora sobre
analfabetismo e alfabetização, observar, na sua constituição, o cruzamento de sua vivência
com sua interpretação da prática vivida. Ou, tomando como fundamento o pensamento de
Lefebvre (2006), identificar, na construção das representações da professora sobre os
fenômenos estudados, a intermediação entre o vivido e o concebido.
Esse procedimento metodológico me possibilitou, também, observar as repercussões
das representações da professora sobre sua prática alfabetizadora, conforme a descrição que
fiz da última aula que observei em sua classe de alfabetização de jovens e adultos53
.
Assim, comecei a investigar a concepção de analfabetismo e alfabetização da
professora Anita por meio de uma entrevista, pedindo para ela falar sobre analfabetismo: o
que ela conhecia e entendia sobre o assunto e se o considerava um problema54
. Sua reação
inicial foi reticente. Ficou um pouco em silêncio, depois começou a falar, afirmando ser
53
Cf. Apêndice H - Uma aula da professora Anita. 54
Foram realizadas duas entrevistas semiestruturadas com a Professora Anita, além de conversas informais e de
observações em sala de aula e em outros contextos e situações.
91
“muito alta a taxa de analfabetismo na comunidade de Muquém”, atribuindo-a aos próprios
adultos que “não querem estudar”:
A taxa de analfabetismo aqui é muito alta. Quando vem projeto pra cá, eles
[analfabetos] nunca querem estudar; ficam dois ou três meses e param, aí não
aprenderam nada. Quando um consegue ser alfabetizado é uma benção! Se todos
viessem, aqui não teria pessoas que não são alfabetizadas, todo mundo saberia de
algo. Pelo menos, assinar seu nome, porque tem uma quantia muito alta [de pessoas
analfabetas]. Tem até adolescente que não é alfabetizado.
A professora Anita repetiu várias vezes que “a taxa de analfabetismo é muito alta”
referindo-se, também, ao Estado de Alagoas e ao Brasil, porém, ela usa o termo “taxa” como
sinônimo de quantidade de pessoas.
Do mesmo modo, continuou repetindo que “os adultos não querem estudar”, razão
pela qual continuam analfabetos, aumentando as taxas de analfabetismo. Entretanto, em
algumas falas, ela procura justificar o comportamento dos adultos idosos, afirmando que “eles
não querem estudar porque acham que não conseguem mais aprender”. Ela refuta essa crença,
afirmando: “[...] mas eles aprendem” e dá, como exemplo, sua mãe que, na época da pesquisa,
frequentava a classe de alfabetização sob sua direção pedagógica:
Eu tenho o exemplo de minha mãe, que nunca pegou num lápis e, hoje, ela consegue
ler umas palavrinhas! Ela consegue movimentar a mão direita! Ela está na etapa de
cobrir, mas ela ainda não tira do quadro, mas se fizer uma pergunta para ela, ela
responde, mas ela não vai saber passar para o caderno. Ela conhece números, mas aí
[se mostrar os numerais no quadro], ela não vai falar se conhece ou não, ela fica
naquela dúvida...
Este discurso, construído com referências da prática da professora em sala de aula,
além da intenção de mostrar sua crença na capacidade de aprendizagem dos adultos, revela
uma compreensão sobre a relação entre processos sistematizados de aprendizagem e saber
popular: “Ela conhece números, mas aí [se mostrar os numerais no quadro], ela não vai falar
se conhece ou não, ela fica naquela dúvida...”. Começa a revelar, também, uma concepção de
alfabetização, por exemplo, nas afirmações sobre as habilidades da mãe: “Ela está na etapa de
cobrir, mas ela ainda não tira do quadro [...]”.
Prosseguindo na busca de identificar as representações da professora sobre
analfabetismo, perguntei se ela sabia o que era analfabetismo funcional. Após um instante em
silêncio, ela falou com uma expressão de dúvida: “Funcional? Eu acho que é o analfabetismo
92
que não funciona”. Então me indagou: “É isso?” Eu lhe respondi: “Não será o contrário?” Ela:
“Ah! É a alfabetização que não funciona”.
Esse entendimento vai aparecer em reflexões posteriores, nas quais a professora trata
de dificuldades enfrentadas pelas pessoas que têm domínio limitado da leitura e da escrita.
Continuei instigando a professora a refletir mais sobre o que ela supunha que contribui
para o analfabetismo. A pobreza, como causa do analfabetismo, é recorrente em seu discurso,
porém, quase sempre, rivalizando com a falta de vontade das pessoas para estudar: “A maioria
chega na velhice analfabeta porque teve uma vida de pobre e não tinha condições de ir para a
escola, ou porque simplesmente não quis”.
Na perspectiva de compreensão das representações que a professora Anita construiu
sobre o analfabetismo, convém ressaltar que, no depoimento acima, ela estabelece a relação
entre a falta de condições para as pessoas frequentarem a escola e a pobreza.
Do mesmo modo, é importante assinalar que a professora Anita apoia seu discurso em
situações e fatos de seu cotidiano, ocorridos, em sua maioria, com pessoas de sua família,
vizinhos e alunos. Esse me parece ser um recurso usado como estatuto de verdade para
confirmar suas crenças e suposições.
Em um trecho de outro depoimento, no qual a professora insiste na tese da pobreza
como causa do analfabetismo, refletindo sobre a situação de sua família, ela cita a irmã mais
nova: “Minha irmã está com 19 anos. Ela já não pegou mais esse ritmo de muita pobreza.
Quando ela nasceu, já tínhamos umas coisinhas”. Aqui, ela aparenta abandonar ou, pelo
menos, pôr em dúvida a tese do “querer”, concluindo: “Eu acho que é isso [a pobreza] que faz
com que as pessoas fiquem adultas não alfabetizadas”.
Estendendo a reflexão ao conjunto da comunidade, a professora Anita continua
atribuindo o analfabetismo aos mesmos fatores, porém, reforça a justificativa do “querer”,
visto que a tese da “pobreza” parece tornar-se incompatível com a nova situação do Muquém
após seu reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo que, na sua
concepção, tornou “todo mundo bem rico”, possibilitando-lhes a frequência à escola:
Muita gente não tinha condições, era pobreza demais [no Muquém]! Mas, hoje,
todos têm como ir pra uma escola. Só não vão os que não querem participar, não
querem ir pra escola, mesmo que o professor mande. Hoje, todo mundo é bem rico
(sic), graças a Deus! Hoje, nós temos ajuda de tudo quanto é lugar55
.
55
A entrevistada refere-se às mudanças ocorridas no povoado de Muquém após a comunidade receber o
reconhecimento de “comunidade remanescente de quilombo”, em 2005.
93
Entretanto, com o desenvolvimento das entrevistas, parece-me que a professora Anita
vai pondo em dúvida a certeza na crença do “querer” das pessoas como fator que contribui
para o analfabetismo, à medida que, além de experiências vividas, ela vai sacando da memória
informações adquiridas, provavelmente, em leituras, conversas e outras fontes.
Ampliando o questionamento sobre possíveis causas do analfabetismo, perguntei à
professora Anita porque os adultos abandonam as classes de alfabetização. Ela iniciou suas
reflexões citando um problema vivenciado em sua classe que, embora se mostre contraditório
com uma afirmação anterior: “[...] hoje, todos têm como ir pra uma escola; só não vão os que
não querem participar, não querem ir pra escola [...]”, relaciona-se com a situação de pobreza
da comunidade:
Algumas [mulheres] não querem [frequentar as aulas] para não deixar os filhos em
casa sozinhos. Eu perdi cinco mães de família, todas com filho novo. Andou comigo
[frequentou aula] três meses, depois não andou mais porque o menino toda noite
ficava chorando e ela não podia trazer. Se pudesse trazer os filhos, deixar quietinhos
no cantinho, trazer um brinquedinho e eles ficassem no canto brincando caladinho,
aí ela vinha com eles.
Avançando na reflexão, a professora aponta outro problema relacionado à questão
social, provocado pelo declínio da produção sucroalcooleira no Nordeste, que é a migração
temporária dos homens para outras regiões do país a fim de trabalharem no corte de cana-de-
açúcar e, em menor escala, em outras ocupações. Desse modo, a migração aparece como
causa do abandono das classes pelos homens:
As classes [de alfabetização] daqui têm mais mulher do que homem. A minha tinha
mais homem, só que foram viajar pra trabalhar. Vão viajar para ter condições
melhores. [Vão] pra Minas, São Paulo... Vão cortar cana e uns pra outros trabalhos.
Eu tenho dois [alfabetizandos] em São Paulo, que estão trabalhando nos abatedouros
e três em Minas, que estão no corte de cana. Os de São Paulo vão passar dois ou três
anos e os de Minas passam de oito meses a um ano.
Com a intenção de explorar essa questão, pergunto-lhe se os migrantes conseguem
voltar com algum dinheiro dessas viagens. A resposta da professora, além de ser afirmativa,
indica vantagens decorrentes da migração, embora ressalte o fato de as mulheres ficarem sem
seus maridos:
94
Conseguem [ganhar dinheiro]. Meu irmão todo ano viaja. Ele passou por muitas
dificuldades, mas o ano passado ele comprou essa moto56
e está construindo a casa
dele. Ele está namorando. Eu e ele somos solteiros. Essas casas novatas que temos
aqui são todas de pessoas que vão trabalhar fora. Nem uma mãe de família que
estuda comigo está com o seu marido, porque eles estão viajando.
Pergunto-lhe, então, se há casos de maridos que não retornam, abandonando a família.
A professora afirmou que isso não ocorria, mas apontou a ausência dos maridos como causa
do abandono das classes pelas mulheres, problema citado anteriormente em outro
depoimento:
Todo mundo volta. Mas, a gente perde muito aluno por causa disso. Eu tenho três ou
quatro [maridos] que a mãe não vem [à aula] para não deixar o menino sozinho.
Quando os maridos estavam aqui, elas deixavam os meninos com o pai e vinham pra
aula. Agora, elas não podem vir mais. Por isso, também, tem tão pouco aluno na
classe.
Os depoimentos seguintes começam a apontar questões relacionadas às políticas
públicas que, mesmo não demonstrando ter consciência dessa dimensão, a professora Anita vê
os aspectos que ela vai apontando como problemas que interferem nos processos de
escolarização. Por exemplo, na fala a seguir, para explicar o esvaziamento de sua classe de
alfabetização, ela cita a falta de iluminação, que favorece a presença de animais no pátio da
escola, onde funcionava a referida classe:
Se tivesse luz e não tivesse esses cachorros aqui todo santo dia, a sala estava cheia.
Aqui é muito escuro e tem muito sapo, tem dia que tem tanto sapo aqui que Deus me
livre! Então, eu acho que evadiram por causa disso57
.
No depoimento seguinte, a professora Anita, pondo em suspeita a justificativa do
“querer” para explicar porque as pessoas não se escolarizam, cita a falta de escolas e de
professores em determinados locais, como prováveis motivos que levam as pessoas a não
estudarem:
Eu já ouvi falar que tem pessoas que não estudam não é porque não querem, e sim
pela falta de oportunidade. Por exemplo, tem locais que não têm escolas. Tem locais
de tribos que não tinha professor e aí levaram e colocaram lá professores de outros
cantos.
56
O irmão da professora é um rapaz de, aproximadamente, 25 anos de idade, que estava nos observando,
encostado na moto, enquanto eu a entrevistava. 57
A falta de iluminação e a presença dos animais, citadas pela professora, foram constatadas por mim, desde a
primeira visita até o final das observações, em maio/2010. Durante esse período, usei uma lanterna para me
dirigir à escola e para me movimentar na área interna e ao seu redor.
95
Na continuação do depoimento anterior, a professora cita, novamente, fatos
relacionados ao seu contexto local para exemplificar suas afirmações:
Eu me lembro de que aqui [no Muquém] quando eu era menina, também não tinha
professores. Só colocaram professor aqui quando eu já tinha mais de 7 anos [de
idade]58
. A escola que tinha aqui ficava lá na pista, e as pessoas não iam pra aula por
medo, porque antigamente era só mato.
A distância das escolas em relação à moradia dos alunos, acompanhada de riscos no
deslocamento, apareceu na fala da professora, também, como fatores dificultadores da
escolarização. A resposta da professora associa uma questão de política educacional a um
problema de segurança pública. Entretanto, ela acredita que as dificuldades não se limitem a
esses fatores:
Daqui, de onde a gente mora [para a cidade], dá uns 30 minutos a pé, mas as pessoas
não iam por causa disso, que tinha muito maloqueiro que ficavam atocaiando e
faziam medo. Isso foi dificultando mais [a frequência à escola]. Eu acredito que isso
acontece em vários cantos. Tem a distância e tem o medo de pessoas más. Mas, eu
acredito que não seja só isso (silêncio).
Seguindo seu modo de refletir, a professora cita um caso real, ocorrido na
comunidade, que ressalta o problema de segurança pública na localidade, interferindo na
escolarização da população:
Teve um mês aqui que foi massacrante! Mataram um rapaz no centro de Muquém.
Foi tanto que as meninas [outras professores do PBA] passaram mais de uma
semana largando cedo por medo. Teve muito tiro lá para os lados da pista. Na sala
da menina da pista evadiram muitos, ela disse. Não sei se já voltaram... Tinha um
homem do carro preto dando tiro para tudo quanto é lugar. E como eles moram
distantes da casa dela59
, evadiram muitos. Eu perguntei: “Por que vocês não colocam
a aula à tarde?” É fácil, mas eles não vão à tarde. Nem de manhã porque as mães, de
manhã, tem o café, tem as crianças. E à tarde, também, não vão porque tem que
fazer a janta. Só têm tempo à noite.
Continuei inquirindo a professora sobre a questão do abandono das classes pelos
adultos. Suas reflexões evoluíram para fatores relacionados à política de alfabetização em
vigor, referentes ao fornecimento de material escolar e de merenda:
58
A entrevistada estava com 28 anos de idade no período da pesquisa. 59
A classe da professora a que a entrevistada se refere funciona num salão anexo à residência da mesma.
96
O abandono é mais porque quando o projeto chega, vem dizendo que tem
materiais... Esse mesmo, o que é que prometia? Prometia tudo: ah! Porque vêm os
livros, material didático completo - caderno, lápis, tudo; vem merenda... Depois,
vem a coordenadora duas vezes no mês pra dizer que não tem nada disso. Todos os
projetos do Brasil Alfabetizado dizia que tinha merenda todos os dias. Aí, eles
[alfabetizandos] me perguntavam: “Ô professora, tem merenda hoje?” Eu digo:
“Não chegou merenda”. Toda vez que eu vejo a coordenadora, ela fala que não tem
recurso para comprar, que não tem dinheiro. Quando a gente começou60
, eu comprei
R$ 10,00 de caderno.
Perguntei à professora com que dinheiro ela comprou os cadernos. Ela me respondeu
que comprou com seu dinheiro61
. Comprou, também, merenda, embora não pudesse oferecê-
la todos os dias da semana:
[Compro] com meu dinheiro. Eu comprei tudo pra todo mundo e a gente iniciou as
aulas. Eu perguntei em que dias eles queriam a merenda e eles responderam que
queriam todos os dias. Eu disse que eu não podia. Que eu só poderia dar [merenda]
um dia na semana. Sempre quando terminou [os projetos anteriores] com todo
mundo [com todos os alunos que iniciaram] é porque tinha merenda, tinha materiais,
tinha tudo. As meninas (outras professoras) que iniciaram aqui tinham tudo. Esse
ano eu não sei o que aconteceu que não tem nada.
O depoimento acima sugere que a informação da professora, sobre sua impossibilidade
de fornecer merenda aos alunos todos os dias, dá suporte à sua crença, ou suposição, de que
os alunos abandonam a classe porque não recebem material escolar e merenda.
Consequentemente, se tiverem esses benefícios, eles permanecerão na classe até o final do
curso: “Sempre quando terminou [os projetos anteriores] com todo mundo [os alunos que
iniciaram] é porque tinha merenda, tinha materiais, tinha tudo”.
No processo de investigação das representações da professora Anita, procurei
examinar, também, seus conhecimentos e opiniões sobre repercussões e consequências do
analfabetismo na vida das pessoas e da sociedade. Em seus depoimentos, predominaram
dificuldades enfrentadas pelas pessoas em situações práticas da vida cotidiana, que requerem
o uso de habilidades de leitura e escrita, às vezes, de cálculos.
As situações mais citadas, embora sejam recorrentes em depoimentos de outros
professores em contextos onde predomina a cultura letrada (compras, transporte, localização
de endereços, outras) mantêm relação explícita com a realidade local, ou seja, com o contexto
mais próximo de vivência da professora: a cidade de União dos Palmares e o povoado de
Muquém. O depoimento seguinte exemplifica essa afirmação:
60
O projeto a que a entrevistada se refere tem duração de 8 meses. Na ocasião daquela entrevista (março/2010),
já haviam se passado 4 meses de aula. 61
Essa atitude é comum entre os professores, conforme depoimento de integrantes da administração do PBA no
Município.
97
Quando uma pessoa tem que ir guiada até um local e não sabe onde fica o local ou a
rua onde a pessoa tem que ir, se não sabe ler, ela pode até ir de taxi62
, mas é muito
caro. Aí, é assim: nos cantos que a pessoa vai, mas não sabe, vamos supor que ela
vai fazer uma visita no colégio Rocha Cavalcanti [na cidade de União dos Palmares]
e não sabe onde fica, então ela pode perguntar pra alguém de onde fica próximo. Se
a pessoa não sabe ler, às vezes ela consegue encontrar, mas é difícil. A outra
[pessoa] explica, diz que fica na rua tal, próximo da loja tal, mas a pessoa não sabe
ler, ela pode não encontrar... É difícil pra ela encontrar. Se soubesse ler, era fácil -
lia o nome da rua, o nome da loja e encontrava.
União dos Palmares, no contexto do Estado de Alagoas, é uma cidade de porte médio
que, no período desta pesquisa, dispunha de cinco agências bancárias. Entre outros
atendimentos, a rede bancária é utilizada para pagamento de benefícios provenientes de
programas sociais e proventos de aposentadorias de idosos.
Por isso é comum pessoas não alfabetizadas, geralmente, provenientes dos sítios e de
outras localidades da área rural, solicitarem ajuda a outras, supostamente, moradores da
cidade, para operarem os equipamentos bancários. Esse quadro favorece a ocorrência
frequente de casos em que pessoas, principalmente, idosas, são lesadas por outras que,
simulando ajudá-las, roubam-lhes seus parcos recursos.
Por sua recorrência, esses eventos ganharam ampla repercussão local, passando a fazer
parte das conversas cotidianas dos segmentos populares da cidade e do campo. É nesse
contexto, que se situam vários depoimentos da professora Anita, relacionados a dificuldades
das pessoas analfabetas, como o que se segue:
Eu já vi pessoas, no banco, que não são alfabetizadas, passando muita dificuldade.
Eu, uma vez, vi uma menina de lá de União falar bem assim, pra uma senhora do
sítio que pediu ajuda a ela: “Você é burra? Não tá vendo os números?” E a mulher
respondeu: “Eu não sei ler não, moça. Só tô te perguntando quanto é esse [número]”.
Muita gente já passou por isso aqui.
Solicitei à professora que refletisse, agora, sobre consequências ou repercussões do
analfabetismo sobre a sociedade. Sua primeira fala, nesse sentido, estabelecendo uma
comparação do Brasil com os Estados Unidos, ressalta a questão do emprego:
Se no Brasil tivesse uma taxa de analfabetismo baixa, o Brasil seria quase como os
Estados Unidos. Haveria mais oportunidade de emprego. Quem não sabe ler, hoje,
não tem emprego. Até para trabalhar como empregada doméstica tem que ter o
básico, mas tem pessoas que não sabem escrever nem seu próprio nome.
62
A entrevistada cita o transporte de táxi porque a cidade de União dos Palmares dispõe desse serviço.
98
A fala da professora, mesmo expondo um dado da realidade contemporânea, parece
mesclada de resquícios da concepção conhecida como “entusiasmo pela educação”, que
atribuía à educação o poder de solucionar os problemas do Brasil, visto que seu principal
problema era a ignorância do povo.
Essa concepção, que começou a ganhar força a partir do fim da primeira guerra
mundial, entre políticos ocupantes do aparelho de Estado, reforçou, também, “[...] o
preconceito contra o analfabeto, como elemento incapaz, responsável pelo escasso progresso
do País e pela impossibilidade de o Brasil participar do conjunto ‘das nações de cultura’
(PAIVA, 1987, p. 28)”. Ou seja, o Brasil não atingia o status de país desenvolvido em
consequência do analfabetismo.
Examinando ainda, o depoimento acima, observo que, mesmo abordando o
analfabetismo no âmbito da sociedade, a professora Anita volta o foco de sua reflexão para a
dimensão individual.
Retomando a mesma questão em outro momento, a professora entrevistada repetiu
outros aspectos mencionados anteriormente, reforçando representações já identificadas,
conforme se observa no depoimento seguinte:
A taxa de pessoas não alfabetizadas é alta demais! Se não fosse tão alta, o Brasil
teria muitas conquistas. Ele tem, mas seria mais ainda. Ele não tem tanto recurso.
Agora é que ele está pensando em buscar as pessoas [para alfabetizar] com os
projetos que vem [do governo federal]. É tão bonito quando passa aquelas pessoas
na televisão que, depois de velhas, aprenderam a escrever o nome, pelo menos o
primeiro nome. Minha tia já faz o nome dela completo.
Nesse depoimento, além da referência à intenção do Estado em alfabetizar as pessoas,
reportando-se a projetos de alfabetização, provavelmente, ao PBA, a fala da professora Anita,
ao reportar-se à beleza de ver “[...] pessoas na televisão que, depois de velhas, aprenderam a
escrever o nome, pelo menos, o primeiro nome [...]63
”, parece resultar do fracasso dos
programas de alfabetização de adultos, registrados em ações desse tipo, desde as primeiras
campanhas nacionais, empreendidos no Brasil ao longo de sua história (FERRARO, 2009;
PAIVA, 1987).
63
No período da pesquisa, estavam sendo divulgados, amplamente, pela mídia brasileira, mensagens e imagens
sobre o Programa Brasil Alfabetizado.
99
1.5. Representações sobre alfabetização
Na investigação das representações da professora Anita sobre alfabetização, parti de
um depoimento no qual ela, falando sobre seus alunos da classe de alfabetização de jovens e
adultos, ressaltou, como dificuldade pedagógica, a heterogeneidade da turma. Afirmou que
tinha alunos que já eram alfabetizados, junto com alunos analfabetos, explicando essa
configuração com o seguinte relato:
Tem a Renata que parou na 3ª ou 4ª série. Ela sabe escrever seu nome todo, mas não
sabe escrever mais nada. Temos muitas pessoas assim. Os meninos que eu tinha, a
maioria sabia de alguma coisinha: escrever o nome, ler umas palavrinhas e outros,
não. Eu coloco o textinho [no quadro de giz] e leio duas vezes, depois eu soletro.
Ali, eles não sabem, mas eles gravam e vão seguindo meu dedo. Quando eu
pergunto: “que palavra é essa?” eles dizem: “Eu esqueci, professora”. Eu digo
sempre para eles pegarem as letras e ir soletrando em casa para ter uma noção:
“pesquise e recorte palavras em revista e cole no caderno, palavras com isso e
aquilo”. Eu não sei se é falta de atenção, ou se ainda não deu para eles conseguir
aprender aquilo (pausa). Eu não sei o que está acontecendo (pausa).
Nesse depoimento, as representações da professora sobre analfabetismo e
alfabetização começam a aparecer no relato de habilidades de leitura e escrita, demonstradas
por alguns alunos, assim como na inabilidade de outros, em relação aos mesmos aspectos:
“Ela sabe escrever seu nome todo, mas não sabe escrever mais nada”; “Os meninos que eu
tinha, a maioria sabia de alguma coisinha: escrever o nome, ler umas palavrinhas e outros,
não”.
Do mesmo modo, as representações da professora são mostradas no relato de
procedimentos pedagógicos utilizados por ela na perspectiva de promover a aprendizagem dos
alunos: “Eu coloco o textinho e leio duas vezes, depois eu soletro. Ali, eles não sabem, mas
eles gravam e vão seguindo meu dedo”.
É notável, na finalização do referido depoimento, a preocupação da professora em
descobrir por que os alunos não estão conseguindo aprender. Levanta hipóteses sobre
prováveis causas: “falta de atenção dos alunos” e, me parece que, insuficiência de tempo para
a aprendizagem: “[...] ainda não deu pra eles conseguir [...]”, então, ela acaba concluindo,
com um semblante, ao mesmo tempo, de dúvida e desânimo: “Eu não sei o que está
acontecendo”.
Na mesma entrevista, solicitei à professora Anita que continuasse falando sobre a
prática de alfabetização de adultos. Ela passou a relatar um procedimento pedagógico de
100
alfabetização, invocando sua vivência no cotidiano de sua classe de jovens e adultos,
conforme constatei em observação64
:
Quando eu iniciei foi com a, e, i, o, u. Aí, [um aluno falou]: “Ô Anita, eu já vi essa
letra, só que eu não sei o que é... Ela parece uma xícara, mas eu não sei o nome
dela”. Eu perguntei: “Que letra é essa?” Eles responderam: “É uma xícara.” Eu
disse: “Você está vendo uma xícara, mas não é uma xícara, é a letra a”. Olhem pra
mim: “Essa é a letra a”. Falem [junto] comigo: “a”. Vejam: “A xícara pode ter o
formato do a, mas isso não é uma xícara, é a letra a.” Isso já aconteceu, também,
com os pequenos.
Ao final desse relato, perguntei-lhe: “Então, você ensina primeiro as vogais? O que
você ensina depois”? Ela me olhou com o semblante espantado, provavelmente, estranhando
minha pergunta e me respondeu:
Sim. Depois, passo para as consoantes e ensino a juntar as letras: “b com a se lê o
que?” Eles [respondem] “ba!”. Eu [pergunto]: Têm certeza? Um aluno [responde]:
“Eu tenho, se a senhora falou que é ba, é porque é ba”. Agora, que está no fim, a
gente pula para algo mais alto. Mas tem pessoas que não aprendem... Eu não sei por
quê... Não sei se eu ensino de um modo errado ou se é porque [elas] não querem
aprender...
O depoimento dá continuidade ao relato da técnica de ensino da leitura, começado no
depoimento anterior. Porém, continua a angústia pedagógica da professora Anita com a
aprendizagem dos alunos, ou melhor, com a não aprendizagem: “Mas tem pessoas que não
aprendem...”. Persistem, também, suas dúvidas sobre as causas do problema: “Eu não sei por
quê...”. Repete hipóteses levantadas em outros depoimentos: “[elas] não querem aprender”.
Surge uma nova hipótese. Esta, relacionada à sua prática pedagógica, pondo-a em dúvida:
“Não sei se eu ensino de um modo errado [...]”.
Em outro momento, perguntei à professora Anita se ela havia aprendido a alfabetizar
adultos no curso normal. Ela me respondeu que não. No curso, aprendeu como alfabetizar
crianças. Perguntei se ela achava que havia diferença entre alfabetizar criança e alfabetizar
adulto. Sua resposta foi afirmativa e, sem nenhuma indagação, explicou-me, com um relato
muito extenso, como ela se relacionava na sala de aula com os adultos, fazendo comparação
com o tratamento dispensado às crianças:
64
Cf. Apêndice H – Uma aula da Professora Anita.
101
Eu não vou estar aqui gritando com uma pessoa mais velha do que eu! Se eu disser:
“Isso está errado”, com um tom mais alto, eles não voltam mais. Você tem que
sempre ir brincando e rindo, se não for assim, no outro dia você não tem nenhum. E
com os pequenos, às vezes, a professora fala em um tom mais alto. Tem uns
[adultos] que levantam e saem. Quando voltam, eu pergunto: “Foi pra onde?” Eles
dizem: “Fui lá fora fazer xixi”. Eu não digo nem que peçam licença! Se eu falar isso,
no outro dia, eles não vêm. Isso eu não faço de jeito nenhum! Sempre é brincando
com eles.
Conforme se observa no depoimento acima, não há referência à prática pedagógica, ao
processo de ensino e aprendizagem. A professora limita-se a tratar de seu relacionamento com
os adultos na sala de aula pautado na tolerância como meio de evitar que eles abandonem a
classe.
No seu segundo depoimento sobre a mesma questão, a professora Anita, após
reafirmar que é diferente alfabetizar uma criança de alfabetizar um adulto, começa
justificando essa diferença apontando traços da prática pedagógica: “Porque com a criança
você está mais ali brincando, é mais com pintura. Eles [adultos] já não gostam de pintura, não
gostam de desenhar, querem que eu já traga feito.”
Entretanto, na evolução de sua fala, apesar de insistir que há diferença entre alfabetizar
uma criança e alfabetizar um adulto, a professora continua apontando seu modo de se
relacionar com os dois segmentos.
A diferença permanece na tolerância e no cuidado no trato com os adultos, evitando
contrariá-los, o que, segundo sua visão, os levaria a abandonar a classe. Entretanto, apesar de
afirmar que é necessário tratar os adultos como adultos, a professora infantiliza seu tratamento
com eles, coforme se vê no depoimento a seguir, muito longo, mas importante nesta análise:
Eu digo: “Vocês não são nenhuma criancinha, já são bem adultinhos”. Eu falo assim
com eles, num tom bem devagarinho. Às vezes eles dizem: “Professora, vem aqui.
Como é isso?” Eu digo: “Mas já está feito. Está perguntando o quê, se já está feito?
É assim mesmo, não está nada errado. Quando está errado, eu passo o X”. Eu vou
assim nesse método, o mesmo que eu faço com os meninos da tarde eu faço à noite,
só que eu não falo alto, não mando sentar, nada. E com os pequenos: “Vá sentar no
seu lugar! Está em pé por quê?”. Com os grandes, não. Se eles chegam e ligam o
som, eu peço para abaixar um pouquinho e digo: “Deixe só pra você ouvir, abaixe o
som e fique bem quietinho no seu lugar”. As meninas dizem: “Anita, é pra
descontrair! Deixa um pouquinho mais alto para nós ouvir, é ouvindo e
aprendendo”. Eu digo: “Não! Deixe baixo”. E quando tem dia que uma mãe traz a
filha, eu digo: “Fique quieta”. Ela já olha pra mim de cara feia. Se eu reclamar de
novo, no outro dia ela não vem.
Procurando explorar mais questões relacionadas às políticas educacionais, indaguei à
professora sobre material didático, planejamento e acompanhamento pedagógico às classes de
102
alfabetização. Sua primeira fala aponta inadequação do livro didático adotado pelo PBA, em
relação às possibilidades de aprendizagem dos alfabetizandos:
Ela [coordenadora] falou: “Vocês, quando forem usar o livro, vão seguindo o
planejamento65
”. Só que quando vamos seguir o planejamento... Vamos supor: tem a
página 80 [do livro] que é para estudar os números, só que os números são altos
demais, então eu não pego o livro [do PBA], pego outro livro e, às vezes, crio
números menores e na próxima aula eu pego o livro. É assim que eu vou. Eu tive
que parar já duas semanas com o livro porque eles não querem saber do livro, eles
só querem no quadro. Eu uso muito [o livro didático], mas eu uso uma semana sim e
uma semana não. Eu só pego pra mim e, aí, passo para o caderno com palavras
menores, números menores, leituras menores, tudo menor.
Insisto na questão do uso do livro. A professora Anita reforça sua visão sobre a
inadequação do material, porém, revela sua dificuldade no entendimento de perguntas que o
livro contém. Entretanto, diante dessa constatação, ela mostra uma atitude, segundo Paulo
Freire (2007), de humildade pedagógica, apontando a vontade de superar a falta do
conhecimento em questão:
Ele vem como se o aluno já fosse bem alfabetizado. Tem pergunta do livro que eu
não entendo e não vou passar para eles sem eu saber. Então, primeiro eu vou olhar o
que aquilo está significando... Quando eu estou com dúvida, eu digo pra eles:
amanhã eu trago a resposta.
Direcionando os questionamentos para o planejamento pedagógico, pergunto à
professora Anita como é feito o plano pedagógico e peço que ela me fale mais sobre ele.
Inicialmente ela informa que o planejamento “já vem pronto” e relata como ele é repassado
para as professoras:
Já vem pronto. Nós vamos pra reunião [encontro de formação] e elas
[coordenadoras] entregam o planejamento pra gente. Elas falam: “Esse planejamento
é para um mês”. Tem vez que falamos: “Mas, do planejamento passado, ficou uns
três assuntos”. Elas respondem: “Inclua nesse, se não deu para passar [no mês
anterior] pode passar pra esse [mês]. Você pega os três [assuntos] que faltaram,
inicia com os três e depois (...)”.
Perguntei-lhe, então, sobre os encontros de formação. Ela me explicou que são dois
encontros mensais, nos quais é realizada uma palestra sobre temas do plano pedagógico, a ser
trabalhado naquele mês. Em seguida, as coordenadoras distribuem o referido plano e orientam
sua execução.
65
A entrevistada refere-se a um plano que é distribuído com todos os professores durante os encontros de
capacitação.
103
Entretanto, em seguida, ela falou que os encontros não ocorrem exatamente como
deveriam ocorrer. Geralmente, começam atrasados, há muito barulho, a maioria dos
professores não presta atenção na palestra e, ao final, as coordenadoras apenas entregam o
plano às professoras. Às vezes, dão uma breve explicação e, em seguida, recolhem as fichas
de frequência dos alfabetizandos.
O relato da professora Anita correspondeu à situação observada por mim no encontro
que acompanhei, em abril/2010, realizado num salão da Secretaria Municipal de Educação.
Dando continuidade à busca de identificar as representações da professora Anita sobre
alfabetização, passei a questioná-la sobre o acompanhamento pedagógico, feito em sua classe.
Comecei perguntando-lhe em que consistia o acompanhamento pedagógico e qual sua
periodicidade. Ela respondeu: “Era pra ela [coordenadora] vir duas vezes no mês, só que ela
não vem porque diz que não tem carro disponível. Quando ela vem, fica aqui um instante,
conversa e vai embora”.
Perguntei-lhe, então, como ela imaginava que deveria ser o acompanhamento
pedagógico para ajudá-la no seu trabalho de alfabetização. Ela entende que a coordenadora
deve assistir às suas aulas, a fim de ver se ela está “acertando ou não” e observar o
comportamento dos alunos. Entretanto, voltou a ressaltar a falta de transporte para a
coordenadora visitar as classes, acrescentando, a essa dificuldade, o fato de a coordenadora ter
mais uma área para acompanhar66
:
Ela deve vir duas vezes no mês para assistir [a aula] e ver se tou acertando ou não.
Observar e ver o comportamento deles [alunos]. Tem dias que eles estão bem
comportados, agora tem dias que eles estão virados! E conversar com eles. Eu acho
que seria isso. Mas, ela não é só daqui. Ela é de dois ou três lugares. Aí, fica a
dificuldade porque não tem carro e ela mora distante. Ficou essa dificuldade dela vir
observar, porque isso sempre ocorreu da coordenadora vir (sic!).
66
De acordo com as normas do PBA (BRASIL, 2009) uma coordenadora pode acompanhar de uma a treze
turmas nas áreas rurais.
104
2. Professora Mariana
Conheci a professora Mariana no dia 09 de abril de 2010, durante um encontro de
formação de professores do PBA, realizado em um salão da Secretaria Municipal de
Educação de União dos Palmares.
Após ser apresentada a ela pela coordenadora pedagógica de sua área, falei sobre
minha pesquisa, a possibilidade de entrevistá-la e de observar sua classe de alfabetização de
jovens e adultos. Após concordar com minha solicitação, combinei com ela uma data para
minha primeira visita à sua classe.
Na data agendada - 19 de maio de 2010 - visitei a classe da professora Mariana.
Conforme procedi nas visitas às outras classes de alfabetização, apresentei-me aos alunos,
falei sobre o direito constitucional de acesso da população brasileira à educação, expus o
objetivo de minha pesquisa, esclareci o motivo da minha visita e solicitei a colaboração de
todos para o meu trabalho. Aprovada minha solicitação, os alunos se interessaram em saber
quando eu começaria as observações. Respondi que começaria após concluir meu
acompanhamento à classe da professora Anita.
2.1. Dados biográficos da professora
Mariana tinha 20 anos de idade na época desta pesquisa. Era uma jovem nativa, de
baixa estatura física, pele morena e cabelos crespos, que revelavam sua origem mestiça. Sua
mãe tinha pele branca, cabelos claros e crespos, enquanto seu pai tinha a pele negra, além de
outras características físicas marcantes da descendência africana. Morava com os pais, irmãos
e sobrinhos, numa casa grande, localizada à margem de uma das vias de acesso ao centro de
Muquém.
Durante nossa convivência, mostrou-se uma jovem alegre, expansiva, responsável e
muito dinâmica. Qualidades que ela estendia para a sala de aula e que, me parece, conferiam-
lhe autoridade e respeito dos educandos e de suas famílias.
Nas conversas que manteve comigo, nunca se referia a uma situação de pobreza
extrema, como ocorreu com a outra professora, participante desta pesquisa. Aparentemente,
sua família mantinha-se em melhores condições de vida.
105
A professora Mariana concluiu o curso normal de nível médio há dois anos e, há oito
meses assumiu uma classe de alfabetização de jovens e adultos. Sua experiência limitava-se à
docência de três meses, numa classe de educação infantil, substituindo uma professora.
Disse-me que não havia aprendido a alfabetizar jovens e adultos no curso normal: “[A
educação de adultos] não era tratado muito não... Não ouvia falar muito, pegava mais da
educação infantil à 4ª série”.
Mesmo tendo feito o curso normal médio, Mariana dominava mal a variante culta da
língua portuguesa, tanto escrita, quanto falada. Suas dificuldades eram de ordem ortográfica e
gramatical, assim como de construção do discurso, observadas em entrevistas, conversas
informais e em sua atuação na sala de aula.
Entretanto, seus depoimentos demonstram acuidade, curiosidade e criatividade na
abordagem de questões da vida cotidiana e, especialmente, em suas reflexões sobre as
questões educacionais tratadas nesta pesquisa.
Nesse sentido, além de mostrar empenho na atividade docente, Mariana demonstrou
interesse na aquisição de conhecimentos formais. Por diversas vezes, afirmou que gostava de
ensinar e achava necessário que o professor, para alfabetizar, além do curso normal, tivesse
um curso superior e até uma pós-graduação.
Disse-me que gostava de ler e de “inventar coisas novas” para as aulas serem mais
dinâmicas. Acreditava que se o professor não motivar os alunos, a aula “fica chata”, eles não
aprendem e abandonam a classe.
Embora a professora Mariana manifestasse o desejo de fazer um curso superior e
depois uma pós-graduação, até aquele momento, a continuidade de sua formação docente
sistematizada dava-se nos encontros de formação do PBA e no acompanhamento pedagógico
da coordenação do PBA, que ela considerava insuficiente e inadequado.
2.2. Relação da professora com a questão étnico-racial
A relação da professora Mariana com a questão étnico-racial parece que se dá pelo
sentimento de pertencimento a uma mesma família, descendente do Quilombo dos Palmares.
Mariana afirma, com muita ênfase na voz, orgulhar-se de ser descendente do
Quilombo dos Palmares, fazer parte da comunidade de Muquém e poder contribuir, como
professora, para ajudar as pessoas, conforme se observa, em seu depoimento:
106
Eu me vejo, também, uma descendente do Quilombo. Eu nasci aqui, fui criada aqui
e minha família, todos são: tios, primos, tem vô. Eu me sinto bem orgulhosa. Eu não
tenho vergonha de dizer que eu sou do Muquém. Porque tem pessoas que diz: “Ah!
Eu num sou do Muquém, não”. Eu não sou negra. Eu tenho orgulho de dizer: “Eu
moro no Muquém”. E eu fico orgulhosa! Eu não vou querer ter vergonha da pessoa
que eu sou. Eu sou eu mesmo e sou isso. As pessoas dizem: “Ah, sou do Muquém
não, o Muquém só tem negro”. Negro, mas de uma descendência boa e que se
orgulha [de ser negro]. Por que qual a pessoa que não se orgulha de ter nascido
numa comunidade dessa e ser bem valorizado? Eu fico bem orgulhosa de fazer parte
dessa comunidade e ajudar as outras pessoas a subir mais na vida, ter mais uma vida
adequada e saber ler e escrever ajuda mais.
Estendendo sua reflexão para a comunidade, como se vê no depoimento anterior,
Mariana afirma existir um sentimento de negação à descendência negra, por parte de outras
pessoas, ao dizerem que não são negras e não moram no Muquém, porque no “Muquém só
tem negro”. Ela rechaça essa posição, afirmando: “Negro, mas de uma descendência boa e
que se orgulha [de ser negro]”.
É temerário supor que Mariana reproduz, na sua fala, a discriminação disfarçada na
ideologia do “negro de alma branca”. Pela entonação de sua voz no momento da entrevista e a
análise do conjunto de seus depoimentos, parece-me mais provável que Mariana teve a
intenção de acentuar e reforçar o orgulho de descender dos negros do Quilombo dos Palmares.
Na sequência da entrevista, pergunto à professora Mariana se ela trata das questões
étnico-raciais na classe de alfabetização de jovens e adultos. Afirmando tratar do assunto,
presente no plano pedagógico do curso de alfabetização, ela reproduz uma situação de diálogo
na sala de aula, na qual o foco do debate entre os alfabetizandos é a história de Muquém:
A gente trata, quando vem [no planejamento do PBA] um assunto de história sobre
família e sobre essa identidade de cada um. Tem o Quilombo dos Palmares, o Dia da
Consciência Negra... A gente fala: “Por que é uma família só? E como foi a
libertação dos negros?” Aí, na sala de aula, a gente debate: “O Muquém é o quê? É
uma comunidade o quê? Tem história, né?” E todo mundo já sabe. Lá uns conta
cada novidade! Porque [é] um mais velho que o outro... Aí - “Não é isso”. Aí já - “O
Muquém faz parte disso por causa disso”. Aí vai, junta em uma história só, porque
cada um tem uma história diferente, dos antepassados que já se foram e que eles
sabem. Os antigos sabem mais do que os mais novos.
Parece-me relevante ressaltar que a professora aproveita, pedagogicamente, os temas
do programa do curso de alfabetização para introduzir o estudo de questões do contexto local.
Recurso pedagógico que presenciei, nas observações de suas aulas, ela usar com frequência.
107
2.3. A classe de alfabetização da professora Mariana
A classe de alfabetização da professora Mariana funcionava no Centro Social de
Muquém, chamado pelos moradores de “centrinho”, localizado ao lado da casa de seus pais,
com quem ela morava.
O prédio de alvenaria, coberto de telhas canal, foi construído e era mantido pelos
moradores com ajuda da paróquia de União dos Palmares. Medindo, aproximadamente, 10m2
de área, tinha um salão, uma pequena cozinha com despensa e um gabinete sanitário, em
estado médio de conservação.
Figura 7 – Sala de aula no Centro Comunitário de Muquém, decorada para evento religioso. Maio/2010.
(Foto: Reneude Sá).
Nesse espaço, eram desenvolvidas atividades assistenciais e práticas religiosas, como a
celebração de missa em alguns domingos do mês, novenas e terços. A classe de alfabetização
funcionava à noite.
108
O salão era amplo, com capacidade para, aproximadamente, 30 pessoas. Além da porta
de entrada, dispunha de uma porta de acesso à cozinha e janelas, que favoreciam a ventilação
do ambiente. Durante o período em que observei a classe, o salão estava organizado em dois
ambientes. De um lado, cinco bancos grandes de igreja e, do outro, dezesseis bancas escolares
do tipo universitário, dispostas em fileiras de quatro em quatro.
Na parte da frente, havia uma mesa grande, utilizada pela professora, durante as aulas,
para depositar o material escolar. Nas celebrações religiosas, virava altar. Na parede em
frente, bem no centro, havia uma grande cruz de madeira, ladeada à direita por um pequeno
oratório com uma imagem de Nossa Senhora, numa caixa de vidro. Do lado contrário, um
pequeno quadro de giz, medindo cerca de 1m x 80 cm, colocado na frente das bancas
escolares. No fundo da sala, havia alguns bancos de igreja, depositados uns sobre os outros.
Provavelmente, para serem usados em eventos com maior número de pessoas.
Minhas observações ocorreram no mês de maio, denominado, pela igreja católica, de
mês mariano, por ser dedicado a Maria, mãe de Jesus. Assim, em sua homenagem, o salão
permaneceu decorado com flores artificiais, fitas e outros adereços. Todas as noites, antes da
aula, a professora e os alunos rezavam o terço, conduzido por sua mãe, Dona Silvana, uma
senhora muito dinâmica, que me pareceu ocupar um lugar de liderança junto aos moradores
daquela área de Muquém.
Nos eventos festivos, tanto relacionados às atividades religiosas, quanto às escolares,
era Dona Silvana que, também, assumia sua organização, tomando as providências
necessárias, como a preparação de bolos e outros pratos, em sua residência, que ficava ao lado
do “centrinho”.
Obtive essas informações por meio do relato dos alunos, mas, tive oportunidade de
presenciar a ação de Dona Silvana na festinha que a turma promoveu na minha despedida, na
última noite de observação.
O quadro de controle das turmas rurais registrava o total de 20 alfabetizandos na classe
da professora Mariana67
. Entretanto, a professora informou que, além de não comparecerem
todos no início das aulas, parte deles abandonou a classe por diversos motivos.
Durante o período de minhas observações, 13 alfabetizandos frequentaram as aulas
regularmente: um senhor com, aproximadamente, 53 anos de idade; oito mulheres adultas, na
67
Cf. BRASIL (2009). A matrícula inicial nas classes de alfabetização de jovens e adultos nas áreas rurais, de
acordo com as normas vigentes no período da pesquisa, era de, no mínimo 7 e, no máximo, 25 alfabetizandos.
Nos quadros de controle da gestão local do PBA em União dos Palmares, o número de alfabetizandos
matriculados por classe varia de 17 a 25, nas 95 turmas das áreas rurais.
109
faixa etária de 25 a 48 anos de idade; dois rapazes, um com 27 e outro com 37 anos e dois
adolescentes com 14 e 15 anos de idade, respectivamente.
Guardada a interferência ou repercussão da minha presença na sala de aula, como
pessoa estranha ao ambiente, durante o período de uma semana em que acompanhei,
diariamente, a classe da professora Mariana, observei uma interação pedagógica positiva entre
a professora e os alfabetizandos68
.
Todas as noites, ela levava a aula preparada. Seguindo a programação pedagógica do
PBA, adaptava os conteúdos, abordando situações cotidianas e variava as atividades de modo
a envolver os educandos. Eles interagiam participando atentamente, demonstrando satisfação
em estarem ali, com exceção dos dois adolescentes, que pareciam não fazer parte daquela
turma, mesmo com o empenho pedagógico da professora Mariana para engajá-los nas
atividades69
.
Quase sempre, ao começar a aula, algum aluno perguntava – “E aí, professora, que
temos hoje?” Eu interpretava essa pergunta como uma manifestação de interesse e
curiosidade, expressão do que se poderia denominar de “motivação” do aluno para a atividade
pedagógica.
A professora respondia com ar de satisfação. Às vezes, dizia que esperassem a
surpresa e dava início às atividades da noite.
Mantinha-se em constante movimento na sala de aula. Após anunciar o assunto ou
tema da noite e orientar a atividade a ser realizada, normalmente em grupo, ela passava a
circular entre os grupos, olhando o trabalho, explicando, corrigindo, incentivando. Não
presenciei nenhum momento de apatia, nenhuma atitude de impaciência ou indelicadeza com
algum aluno ou desvalorização de seus trabalhos.
As aulas começavam e terminavam sempre no horário marcado e, havia dias em que
se estendiam um pouco mais. Não vi, em nenhum momento, algum aluno insistindo para que
a professora encerrasse a aula antes do horário.
68
Cf. Apêndice I - Uma aula da professora Mariana. 69
Cf. Apêndice I - O caso de Breno e Daniel.
110
2.5. Representações sobre analfabetismo
Seguindo o caminho metodológico escolhido para a pesquisa, busquei conhecer as
representações da professora Mariana por meio de entrevistas, conversas informais e da
observação de sua prática docente na classe de alfabetização de jovens e adultos.
Realizei uma entrevista formal com a professora após alguns dias de observação de
sua classe, dando continuidade na noite daquele mesmo dia. Portanto, já havia uma
aproximação que, me parece, facilitou nossa comunicação. Suponho que isso tenha
contribuído para que ela se mostrasse à vontade, embora, no início, me parecesse estar um
pouco apreensiva.
Após informar o objetivo da entrevista, lembrando que eu já havia tratado do assunto
na primeira visita à sua classe, pedi para Mariana falar sobre o analfabetismo. Ela começou a
falar indecisa, com um discurso fragmentado e confuso, citando vários aspectos relacionados
à questão:
Analfabetismo? Assim, eu já ouvi falar assim, muito, que uns eles têm problemas
tanto na visão quanto na escrita, desde pequenos... E muito assim de analfabetismo,
os alunos, eles, não é muito que tem, mas é a maioria, né? Que tem dificuldade de
quando era pequeno não estudar prá ajudar as famílias. E, muito, o governo ajuda e
pouco também ajuda no alfabetismo (sic!). Aí, tem muitos programas e, também,
pouco ajuda no alfabetismo (sic!). Tem muitos programas que dá acesso... Né? Pros
professores ensinar. Porque pra ter trabalho tem que ter, saber o quê? Assinar. Né?
A assinatura. E eu acho assim muito lindo um adulto, um jovem, um idoso já saber
ler, assinar, quando vai arrumar um emprego, assinar uma certidão... Porque, qual é
o adulto que gostaria de ir lá num canto assim... “Eita! Sabe fazer o nome!” Por aqui
existem muitos [analfabetos]. Principalmente tem dificuldade o pessoal do campo,
que não pode sair à noite pra rua70
. Às vezes aqui não tem carro. As condições não
ajuda muito.
Conforme se observa nesse primeiro depoimento, Mariana começa apontando fatores
relacionados a questões de ordem social, que ela considera dificultadores da escolarização
(problema de visão, seguido do trabalho infantil, por necessidade de ajuda à família). Aponta,
também, questões relacionadas a políticas públicas, referindo-se, indiretamente, à ausência de
escolas no campo, ao citar a falta de transporte para deslocamento das pessoas para a cidade, a
fim de frequentarem escola. Numa linguagem ambígua, cita, ainda, o governo e programas (?)
que ajudam e não ajudam no “alfabetismo”.
70
Referência à cidade de União dos Palmares.
111
A professora Mariana ressalta, no mesmo depoimento, a existência “por aqui” de
muitos analfabetos, referindo-se, suponho, ao município de União dos Palmares, e não apenas
ao Muquém. Por fim, cita a necessidade da alfabetização para acesso a emprego (trabalho).
Retomando, em outra fala, a questão da escolarização no campo, Mariana supõe que o
analfabetismo seja maior no meio rural, voltando a apontar a falta de escola e de transporte:
Eu acho que [o analfabetismo] deve ser assim mais no meio rural, devido o que eu já
contei que é muita dificuldade dum aluno, um adulto! Ele tem vontade de estudar,
mas só que não tem condições de sair do sítio bem longe pra vir prá União [dos
Palmares], pra cidade. Fica muito... O que corrompe (sic!) é, acho assim, a distância
e que não tem transporte em muitos sítios.
Pergunto-lhe se ela acha que existem outros fatores que possam contribuir para as
pessoas chegarem analfabetas à idade adulta. Novamente, Mariana retoma questões citadas
anteriormente (trabalho infantil), mas, aponta um aspecto de ordem pedagógica, que se refere
às relações em sala de aula entre colegas e entre professor e alunos. Atribui a dificuldade de
aprendizagem de alguns alunos a traumas provocados por tratamento depreciativo por parte
do professor e de colegas:
Tem aluno que não... Que tem problema de falar porque tem medo de chegar na sala
de aula e errar. Às vezes, acontece da pessoa errar e tem alunos, colegas, que fica
mangando e, assim, o aluno fica traumatizado numa coisa. Aí não vai mais para o
colégio porque ficou traumatizado. Às vezes, pode pegar uma professora que diz:
“Não, não é assim não, você é burro”. Porque muitas professoras fazem. Né?
Chamar o aluno de burro, aí o aluno fica descontagiado (sic!) e aí ele não vai mais
para o colégio porque foi chamado de burro. De burro assim na frente [da turma] e
assim não aprende. Aí o aluno fica com trauma e leva isso até a vida adulta.
Dando continuidade à exploração das representações da professora Mariana, peço que
ela continue refletindo sobre questões relacionadas à escola e ao ensino, que ela supõe ou
acredita que possam contribuir para o analfabetismo. Mariana pensa um pouco e passa a falar
das condições físicas dos ambientes escolares, relatando, sem identificar explicitamente, a
situação real das salas de aula do PBA, que eu havia constatado nas visitas que fiz às classes
das áreas rurais do município71
.
Assim, salas inadequadas que o aluno não tem (?). Tem que ser uma sala bem
organizada, com uma estrutura bem legal. Em vários sítios tem gente que ensina na
sua própria casa, em uma salinha apertada e com um bocado de zuada, aí o aluno
não interage bem com a professora. Quando chove e tem pingueira no colégio... E
quando vai ensinar numa casa de farinha... Aí, fica ruim do professor e aluno se
71
Cf. Apêndice D - Relatório de visitas a classes de alfabetização de jovens e adultos em áreas rurais do
município de União dos Palmares - AL.
112
relacionar com tantas desavenças (sic!) na sala de aula, no cotidiano, na estrutura da
sala. O aluno tem que estar numa sala bem equipada para poder desenvolver um
trabalho bom... Se reunir junto [com colegas]. Aí não pode, numa sala
pequenininha!.... Como é que um grupo vai falar, vai debater junto se ficar perto um
do outro? Aí fica difícil dos alunos, dos colegas e dos professores se relacionar. Aí,
fica difícil do professor ensinar... E o aluno de aprender... Né?
No depoimento acima, Mariana aponta a inadequação e as más condições das salas de
aula improvisadas, relacionando-as às atividades pedagógicas. Seu discurso, embora
fragmentado, permeado de reticências e palavras estranhas ao sentido que ela, supostamente,
pretende dar (“Aí... Fica ruim do professor e aluno se relacionar com tantas desavenças (sic!)
na sala de aula, no cotidiano, na estrutura da sala”), mostra como as situações citadas
interferem na prática pedagógica (“em uma salinha apertada e com um bocado de zuada, aí o
aluno não interage bem com a professora”), comprometendo o ensino e a aprendizagem (“Aí,
fica difícil do professor ensinar... E o aluno de aprender...”).
Então, convido Mariana a pensar sobre as repercussões ou consequências do
analfabetismo, perguntando-lhe se a condição de analfabeto traz alguma dificuldade para a
vida de uma pessoa. Mariana começa apontando, novamente, a dificuldade de acesso a
emprego. Para exemplificar, relata uma matéria que ela viu na televisão, tratando do caso de
um homem que, tendo sido aprovado num concurso para um cargo de vigia, não pôde assumir
o emprego porque não sabia ler e escrever:
A dificuldade, assim como eu falei, de arrumar um emprego. Porque o emprego
requer você ter sua carteira de identidade, a sua assinatura... E ali a pessoa não vai
poder conseguir aquele objetivo que ele quer - trabalhar numa coisa melhor para
ajudar sua família. Que nem teve um caso que passou na televisão: um homem, ele
fez um concurso e passou, ele não sabia ler e nem escrever, ele ganhou em um dos
primeiros colocados para trabalhar de vigia. Aí não pôde ir porque não sabia assinar
o nome e nem ler, mas passou no concurso.
Questiono como o homem do seu exemplo conseguiu ser aprovado numa prova
escrita, se não sabia ler e escrever. Ela deduz que “a prova era de colocar X” e explica como a
pessoa agiu para conseguir resolver as questões sem saber ler.
Na sua explicação, conforme observei no acompanhamento à sua sala de aula, Mariana
recorre a situações conhecidas, semelhantes às práticas vivenciadas no seu cotidiano docente:
“Ele queria ler, por exemplo, a palavra para. E fazia: pê-a-erre-a, mas não conseguia ler,
nem decifrar a palavra. Aí ele tentou, mas só que não sabia ler e nem escrever o próprio nome
para poder ficar nesse trabalho”. Então, conclui, reafirmando uma de suas hipóteses
113
explicativas sobre repercussões do analfabetismo na vida das pessoas: “Aí, uma das
consequências é essa de arrumar um emprego”.
Ainda em relação a emprego, Mariana ressalta problemas e consequências decorrentes
da falta de domínio da leitura e da escrita, no exercício de trabalhos que exigem essas
habilidades. Cita, como exemplo, a empregada doméstica, que necessita, no seu trabalho,
fazer lista de feira, realizar compras, preparar receitas, atender ao telefone e anotar recados,
entre outras atividades. Quando a empregada não sabe ler e escrever corre o risco de perder o
emprego, conforme ela declara, supondo a reação da patroa: “Não, você não sabe ler, então eu
não vou querer você na minha casa”.
Continuando suas reflexões, assim como a professora Anita, Mariana cita outras
situações, comuns no cotidiano de um contexto letrado, que mostram as dificuldades sofridas
por pessoas não alfabetizadas: identificação do destino e itinerário de transportes coletivos no
meio urbano, especialmente para pessoas do meio rural; identificação de preço, composição,
validade e outras informações constantes das embalagens de produtos vendidos em
supermercados e em outros estabelecimentos comerciais; compra e administração de
medicamentos, alertando que se a pessoa não sabe ler a receita e a bula, põe em risco sua
saúde e de outras pessoas.
Peço à professora Mariana que pense sobre repercussões do analfabetismo e da
alfabetização na vida das pessoas no campo. Considerando, na sua reflexão, a relação campo-
cidade, ela entende que, as atividades do campo não requerem que as pessoas saibam ler e
escrever, mas elas precisam dessas habilidades quando vão resolver coisas na cidade. Ela cita,
em um trecho de seu depoimento, a venda de produtos agrícolas:
Eles [camponeses] botam uma roça aqui [no meio rural] e já vai pra cidade. Botar o
quê? Botar sua venda lá. Pra quê? Vender mais mercadoria. Prá não só vender aqui,
porque aqui não vende muito e lá na cidade... não... tem muitas pessoas e já compra
aquilo que ele tá vendendo. Aí, já é mais um meio de sobrevivência para ele.
Em outro trecho, a professora Mariana cita, como exemplo, um aluno de sua classe de
alfabetização que, apesar de ter problema de visão, se esforça para se alfabetizar porque sente
necessidade de “saber mais” para “melhorar a vida”. Ela reproduz o pensamento do aluno,
ressaltando conhecimentos de operações matemáticas aplicados à atividade de venda:
114
Ele diz que tenta ler, ele quer aprender a ler, mas a visão dele não ajuda, fica muito
ruim dele... Ele fica mais na frente do quadro e diz: “Eu não sei ler, mas eu estou
aprendendo porque é bom pra mim [...]. Quando chego em casa, eu boto pra ler
porque eu vou melhorar a minha vida. [...]Tiro um tempinho do trabalho, saio e fico
estudando, lendo alguma coisa prá mim saber mais do que eu já sei.” Aí, ele trabalha
em casa, na roça. Ele vai e planta e depois de plantar, ele vai vender na cidade. Ele
disse assim prá mim: “Eu não sabia matemática, agora eu sei. Quando eu quero
vender uma coisa... Eu quero vender 1 kg por R$1,00, eu já sei dá o troco”. E ele
não sabia. Agora, ele já dá troco. Por exemplo, se ele vendeu uma coisa por R$ 1,50
e ele recebeu R$ 2,00, ele diz: “já vou dar uma [moeda] de 50 [centavos]. Eu aprendi
isso”. Ele vai passando a entender melhor como o estudo é bom pra ele.
A professora destaca, ainda, nas repercussões do analfabetismo, a discriminação que
as pessoas do campo sofrem por parte dos moradores da cidade, por serem analfabetas. Ela
entende que, de posse de conhecimentos sistematizados, as pessoas do campo serão
valorizadas, consequentemente, não serão discriminadas - o conhecimento das letras eliminará
a desigualdade social:
O pessoal do campo precisa e muito [se alfabetizar]! Porque assim, eles conhecendo
mais, eles se sentem mais valorizados e se sentem mais como assim... Todos iguais.
Porque tem gente [da cidade] que diz: “Não, você mora no sítio, você não é igual a
mim, você é muito diferente. Você vive assim... Coisa de porco (sic). Eu não, já vivo
numa cidade, um lugar mais limpo e você num sítio bem velho, que não tem muito
valor”. Muitas pessoas dos sítios são discriminadas pelo pessoal da zona urbana! Aí
eles ficam assim meio diferentes, mas todos têm que ter a mesma semelhança e o
mesmo direito, tanto do sítio quanto da cidade.
2.5. Representações sobre Alfabetização
Aproveito a fala anterior da professora para dar continuidade à reflexão sobre o tema
da alfabetização, observando que, quando falamos de analfabetismo, estamos falando,
também, da necessidade de conhecimentos escolares. Pergunto-lhe, então, se no Brasil todas
as pessoas precisam estudar.
A resposta da professora Mariana, conforme se vê no depoimento abaixo, aponta, mais
uma vez, a necessidade da alfabetização para acesso a emprego. Entretanto, mesmo referindo-
se ao País, sua visão volta-se para a questão individual:
Precisa! Porque assim, o Brasil ganha mais oportunidade de aumentar mais os
empregos e aumentar mais a renda para as pessoas, porque cada pessoa que vai se
alfabetizando, está aumentando o mercado de trabalho. Por exemplo: se eu já leio, se
já sou alfabetizada, já sou formada, eu posso abrir um negócio e vou dar
oportunidade àquelas pessoas que está se alfabetizando para elas entrar no mercado
de trabalho. Vai crescendo cada vez mais. Quando uma pessoa se alfabetiza, vai
115
crescendo cada vez mais o Brasil todo, não só o Nordeste, como o sul e outros
[outras regiões].
O depoimento da professora me leva a supor que, no seu pensamento, o problema da
desigualdade social, que gera a necessidade de emprego, advém da carência de escolarização
(alfabetização) das pessoas, a qual produz a dificuldade de acesso ao emprego. Assim sendo, a
solução da desigualdade social parece estar na promoção da escolarização, que possibilitará às
pessoas, não só terem acesso ao emprego, como gerarem empregos para outras pessoas que
vão se alfabetizando, “aumentando o mercado de trabalho”. Conclusão de sua reflexão:
“Quando uma pessoa se alfabetiza, vai crescendo cada vez mais o Brasil todo.”
Estendendo a reflexão para processos de alfabetização, Mariana afirma que alfabetizar
pessoas do campo deve ser diferente de alfabetizar pessoas da cidade. Interpretando sua fala,
ela entende que é necessário relacionar o conteúdo do estudo com situações do contexto local
dos alfabetizandos. Para justificar sua posição, ela cita um exemplo, usando a questão do
saneamento básico, simulando, inclusive, uma problematização no tratamento do tema, que
parece dar indícios de criticidade no trato da questão:
Porque é assim: na cidade você trabalha de acordo com o que ele vive na cidade. Se
for trabalhar sobre higiene, na cidade você vai trabalhar que na cidade já tem
higiene, [por exemplo,] como é que a higiene é tratada. Já, no campo, vai ser
totalmente diferente porque já no campo não tem higiene e saneamento básico, é
lixo a céu aberto. Aí já tem uma maneira diferente de trabalhar com eles. Aqui [na
cidade] é uma coisa e no campo já é outra. Aí vai dificultando a relação de trabalhar
com os dois juntos. Temos que ver a parte do campo e a parte da cidade e ver qual a
solução: ”Por que não tem [saneamento no campo]?”... “[Por que] tem na cidade e
não tem no campo?”
O discurso de Mariana parece ser construído com fragmentos de textos da formação
docente e do livro didático adotado pelo PBA, mesclado de traços da ideologia que valoriza a
cidade como lugar ideal, onde há melhores condições de vida, e desqualifica o campo, como
lugar atrasado. Além disso, nesse depoimento, a realidade parece se misturar com a fantasia72
.
72
Durante minha permanência no município, na fase de campo da pesquisa, observei maior incidência do
problema de saneamento básico na cidade e no distrito rural. Situação bem visível nas margens do rio Mundaú,
que atravessa o município, para onde são canalizados os esgotos residenciais e de pequenas indústrias. Do
mesmo modo, observei a presença de grandes quantidades de lixo (proveniente de produtos industrializados)
disperso pelas ruas da cidade e do único distrito do Município, com maior presença nas áreas populares. Nas
localidades rurais, especialmente, nas de menor aglomerado humano, observei um quadro diferente em relação à
presença de lixo. Mesmo no Muquém, onde a comunidade se aglomera em uma área limitada, próxima à cidade,
pouco vi lixo disperso. Ao contrário, observei as donas de casa varrendo os terreiros de suas casas e queimando e
enterrando o lixo.
116
Decido explorar mais a dimensão pedagógica nas representações da professora
Mariana. Aproveitando a fala anterior, pergunto-lhe como o alfabetizador pode tratar de
temas, como o problema do saneamento básico, no processo de alfabetização.
Respondendo à questão que lhe dirigi, a professora relata, no depoimento transcrito a
seguir, trechos de aulas vivenciadas em sua classe, nos quais ela mostra como tratou do tema
do lixo por meio de debate e de atividades realizadas com os alunos, porém não explicita
como relaciona essa abordagem com o ensino da leitura e da escrita:
Ele deve tratar assim, cautelosamente (sic). Porque se já não tem um saneamento
básico, assim de lixo: “Vamos fazer uma coleta, vamos reciclar”. Trabalhando sobre
a reciclagem: “Como devemos reciclar o plástico, o vidro? Devemos reciclar e
mandar para uma fábrica que possa pegar cada um? Ou, senão, queimar?” Porque
[mandar para a fábrica] fica menos poluição para o campo e, para a fábrica, vai ter
mais emprego e renda. [...] Aí vamos fazer isso, vamos falar da reciclagem e o
professor fala como cada aluno faz a sua maneira de higiene na sua casa. [...] Aí, o
professor vai e, diariamente, é feito com o aluno, fazendo as perguntas e como
trabalhar: “Vamos fazer um trabalho de reciclagem, vamos fazer um painel, fazer
uns objetos com a garrafa pet, para não jogar ela [no lixo]. Vamos fazer um desenho,
criar uma árvore”73
. E, com isso, vai interagindo mais com os alunos [...]. Aí, eles
falam: “Eu vou fazer para botar em casa. Já que é prá não ficar no meu terreiro, eu
faço em casa e já fica com uma reciclagem pra ficar menos poluição”.
Insisto no exame da questão pedagógica, perguntando à professora Mariana como ela
trabalha aqueles temas, e outros que estão no plano pedagógico do PBA, ensinando os
alfabetizandos a ler e escrever. Ela introduz, no relato do processo pedagógico, um modo de
proceder na abordagem de uma palavra, extraída do texto que está sendo usado no debate de
um tema, com a finalidade de ensinar a leitura:
Quando eu estou ensinando sobre a higiene e a reciclagem? Eu uso um texto do
cotidiano. Aí a gente vamos indo debatendo e depois a gente vamos focar essa
palavra. “O que essa palavra quer dizer?” Vamos separar ela [em sílabas], vamos
debater o que eles entendem sobre ela. Aí, naquele texto, eles vão tendo mais
conhecimento, não só ficar na cabeça de cada um entregar. Cada um [recebe] o texto
xerocado e ali eles vai debatendo e vai tendo mais conhecimento [...].
Prosseguindo na exploração do tema da alfabetização nas representações da professora
Mariana, pergunto se ela vê diferença entre alfabetizar uma criança e alfabetizar um adulto.
Ela afirma que sim, justificando: “A criança não tem muito conhecimento como já tem um
adulto” e continua seu depoimento, exemplificando como proceder pedagogicamente com um
e com outro:
73
A professora realiza em sala de aula, com os alfabetizandos, essas atividades práticas, conforme presenciei em
minhas observações. Cf. Apêndice I - Uma aula da professora Mariana.
117
Por exemplo, com a criança eu vou pegar brinquedos e vou contar quantos tem, já
com o adulto tem que ser um objeto mais do dia-a-dia deles. Como por exemplo: se
ele trabalha na roça, eu pergunto: “O que você mais planta, o que você mais vende?”
E aí ele vai dizer de acordo com o que ele planta e vende. Com criança não é assim.
Só dá pra perguntar quantos anos eles têm, por exemplo, e pedir para eles contar nos
dedos. Com o adulto já é uma coisa mais avançada, é diferente.
118
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões desenvolvidas na abordagem dos temas sobre analfabetismo e formação
de professores (capítulo 1) e a descrição e análise do contexto onde foi desenvolvida a
pesquisa empírica (capítulo 3), à luz de uma orientação teórico-metodológica de cunho
crítico-dialética (capítulo 2), representaram um esforço na busca de construir uma base de
conhecimento que me possibilitasse compreender as representações de professoras-
alfabetizadoras sobre analfabetismo e alfabetização.
A busca dessa compreensão foi empreendida por meio da análise do pensamento e da
prática de duas professoras (capítulo 4), olhadas enquanto categoria profissional específica,
componente de uma camada subalterna da classe trabalhadora, situada na estrutura
socioeconômica capitalista, que caracteriza a sociedade brasileira.
Esse procedimento me leva a supor que as representações das referidas professoras
superam o limite individual, com possibilidades de se constituírem em referência das
representações de seus pares, enquanto categoria socioprofissional.
Uma primeira consideração de âmbito geral, partindo de depoimentos dos diversos
sujeitos envolvidos nesta pesquisa, diz respeito a uma provável influência, nas representações
coletivas sobre analfabetismo e alfabetização, de concepções tradicionais de educação e
alfabetização, que fundamentaram, no Brasil, as primeiras campanhas nacionais de
alfabetização de jovens e adultos e que ainda permanecem no imaginário de professores,
fundamentando sua prática pedagógica. (KLEIMAN, 2001; FERRARO, 2009).
A concepção mais difundida no Brasil entende a alfabetização como a habilidade de
ler e escrever, no sentido de o sujeito ser capaz de decifrar e grafar o código linguístico.
Consequentemente, alfabetizar compreende a aplicação, pelo professor, de uma técnica de
ensinar a leitura e escrita. Portanto, alfabetizar consiste em ensinar os alunos a ler e escrever
por meio de: memorização e traçado das letras do alfabeto (com distinção entre consoantes e
vogais), seguida, sucessivamente, da formação de sílabas pela junção de consoantes e vogais,
de palavras pela junção de sílabas, de frases pela junção de palavras, evoluindo para a
formação de textos pela reunião de frases.
Em decorrência dessa concepção de alfabetização, analfabetismo significa exatamente
o seu inverso – o não domínio da leitura e da escrita. Analfabeto, portanto, é a pessoa que não
sabe ler e escrever.
119
O IBGE, no último recenseamento (2010), considerou “alfabetizada a pessoa capaz
de ler e escrever um bilhete simples no idioma que conhecesse” e, “analfabeta a pessoa que
aprendeu a ler e escrever, mas que esqueceu devido a ter passado por um processo de
alfabetização que não se consolidou e a que apenas assinava o próprio nome” (BRASIL,
2012e, p. 35. Grifos meus). Essas informações foram coletadas por meio de declaração verbal
do recenseado. Pergunto: e as pessoas “analfabetas” que nunca tiveram passagem por
processos de alfabetização? E as que não assinam o próprio nome? Como foram computadas
no censo?
Assim, observo que o IBGE continua usando a concepção de alfabetização adotada
desde os primeiros censos, para investigar a escolarização da população brasileira, em
especial, o estado de alfabetização e de analfabetismo. Fato que, certamente, tem contribuído
para sedimentar essa concepção no imaginário da população em geral, ajudando a consolidá-
la como senso comum.
Entre os professores, mesmo os que participam de cursos e outras ações formativas e
neles são postos em contato com outras concepções e práticas alfabetizadoras, há aqueles que
parecem continuar acreditando na concepção tradicional como saber irrefutável e utilizando
técnicas, dela decorrentes, como eficazes, a despeito de, em sua prática cotidiana de sala de
aula, verem poucos resultados em sua aplicação.
Essas considerações apoiam-se, também, no estudo que realizei no mestrado, no qual
investiguei a visão de camponeses sobre conhecimentos letrados e escolarização (SÁ, 2002).
Não só os professores, mas, os camponeses não alfabetizados também citavam, detalhando
passo a passo, a técnica de ensino da leitura e da escrita referida anteriormente, mesmo não
conseguindo justificar, quando questionados porque não aprendiam, se o professor usava
aquele modo de ensinar. Os professores apegavam-se tanto àquele procedimento, que
substituíam o livro didático, distribuído pelo programa de alfabetização, por uma carta de
ABC74
, comprada com seus próprios recursos.
A análise das representações das professoras que participaram do presente estudo
indica uma provável influência da concepção tradicional de alfabetização, apontada nas
considerações acima.
Em síntese, os resultados deste estudo apontam, na construção das representações das
professoras sobre alfabetização e analfabetismo: a presença de saberes cotidianos, crenças
sobre modos de conhecer, ensinar e aprender, sedimentadas no imaginário coletivo;
74
Pequena cartilha que, normalmente, traz o alfabeto, a formação de sílabas, frases e pequenos textos. Durante a
pesquisa, encontrei cartas de ABC à venda em feiras de rua e em mercadinhos.
120
fragmentos de conhecimentos formais, adquiridos, provavelmente, em cursos e outras ações
de formação docente, em leituras de material específico da área, por exemplo, o livro didático
utilizado nas classes de alfabetização; saberes desenvolvidos em e sobre sua própria prática
pedagógica no exercício da alfabetização; troca de experiências com seus pares em diversas
situações, entre outras fontes de conhecimento.
Por meio de suas representações, as professores buscam explicações e justificativas
que respondam a suas inquietações em sala de aula. Ora suas representações evidenciam o
ocultamento de questões relacionadas à prática docente, que podem estar contribuindo para o
problema do analfabetismo, ora desvelam questões que anunciam possibilidades de mudança.
Entre as considerações conclusivas, o estudo aponta a importância de se priorizar,
nas ações de formação docente, um princípio fundamental, defendido por Paulo Freire desde
seus primeiros estudos na década de 1950, a reflexão crítica sobre a prática, possibilitando,
aos professores, reverem suas concepções e reorientarem suas práticas pedagógicas.
121
REFERÊNCIAS
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ensino de história: memórias de professores. 2002. 310f. Tese (de Doutorado) – Faculdade
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como práxis educativa. 2004. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da
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BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB nº
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BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP
009/2001. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação
Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Publicada no Diário
Oficial da União, de 18/01/2002a, Seção 1, p. 31.
122
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP nº
27/2001. Dá nova redação ao item 3.6, alínea c, do Parecer CNE/CP 9/2001, que dispõe sobre
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em
nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 18 jan. 2002b. Seção 1, p. 31.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução
CNE/CP 1/2002. 18 de fev. 2002. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de
Professores da Educação Básica em nível superior, em curso de licenciatura de graduação
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abr. 2002. Seção 1, p. 31. Republicada por ter saído com incorreção do original no D.O.U. de
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BRASIL. Ministério da Educação. Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo.
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BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 10.880, 09 jun. 2004. Institui o
Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar - PNATE e o Programa de Apoio aos
Sistemas de Ensino para Atendimento à Educação de Jovens e Adultos, dispõe sobre o
repasse de recursos financeiros do Programa Brasil Alfabetizado, altera o art. 4o da Lei
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128
APÊNDICE A - ROTEIRO DE ENTREVISTA COM A GESTORA LOCAL DO PBA
NO MUNICÍPIO DE UNIÃO DOS PALMARES
1. Como você vê o analfabetismo no Brasil?
2. Dê sua opinião sobre o fato de muitos jovens e adultos, que frequentaram classes de
alfabetização por diversas vezes, não terem aprendido nem a ler e escrever pequenos
textos.
3. Como você avalia o índice elevado de abandono das classes de alfabetização pelos
educandos de jovens e adultos?
4. Segundo seu entendimento, o que facilita e o que dificulta a alfabetização dos jovens e
adultos?
5. Como você avalia a importância da alfabetização para as camadas populares residentes em
cidades e no campo, considerando os contextos e as relações sociais, econômicas, políticas
e culturais contemporâneas?
6. Qual sua opinião sobre os programas nacionais de alfabetização de jovens e adultos no
Brasil? Exemplos: Mobral, Alfabetização Solidária e outros.
7. Quais os fatores que você considera favoráveis ao sucesso de programas de alfabetização
de jovens e adultos?
8. A que você atribui o fracasso dos programas de alfabetização de jovens e adultos no
Brasil?
9. Fale sobre o Programa Brasil Alfabetizado, enquanto uma política nacional de
educação/alfabetização de jovens e adultos, refletindo sobre sua organização e
funcionamento no município de União dos Palmares, sob os seguintes aspectos:
a) Estrutura, organização administrativa e recursos financeiros.
129
b) Relação com o Sistema Municipal de Educação.
c) Concepções pedagógicas sobre alfabetização e material pedagógico.
d) Assistência à saúde oftalmológica dos alfabetizandos.
e) Condições físicas e materiais dos locais e salas de alfabetização.
f) Seleção, formação profissional, situação funcional e remuneração dos professores.
g) Acompanhamento e avaliação das práticas pedagógicas.
h) Acompanhamento dos resultados de aprendizagem dos alfabetizandos.
i) Especificidades na aplicação do Programa nas áreas rurais.
10. Há quanto tempo o Programa Brasil Alfabetizado funciona em União dos Palmares?
11. Quantos jovens e adultos foram atendidos nesse período? Quais os índices de abandono e
de aproveitamento?
12. O que você acha que precisa mudar no programa para que haja melhor aproveitamento?
130
APÊNDICE B - ROTEIRO DE ENTREVISTA COM COORDENADORAS DE TURMA
DO PBA
ANALFABETISMO – CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS INDIVIDUAIS E SOCIAIS
1. Como você vê o analfabetismo no Brasil?
2. Como você vê a situação do analfabetismo no Nordeste, em Alagoas e em União dos
Palmares?
3. Você conhece as taxas de analfabetismo absoluto e funcional?
4. Situação nas áreas urbanas e rurais.
5. Fale sobre os analfabetos jovens e adultos (situação socioeconômica e cultural).
6. Dê sua opinião sobre as causas do fracasso escolar na alfabetização de jovens e adultos.
7. Fale sobre necessidades de conhecimentos escolares por parte das populações residentes
nas cidades e no campo (relacionados à vida cotidiana nas práticas de trabalho, nas
práticas sociais, nas relações interpessoais e outras)
ALFABETIZAÇÃO – PROCESSOS E RELAÇÃO COM A SOCIEDADE
1. Fale sobre a importância da alfabetização para as camadas populares residentes em
cidades e no campo, considerando os contextos e as relações sociais, econômicas, políticas
e culturais atuais.
2. Em sua opinião, todas as pessoas no Brasil precisam ser alfabetizadas (pessoas residentes
em grandes médias e pequenas cidades; pessoas que moram em fazendas, sítios, nas
florestas, em praias de pescadores e outros espaços do campo)? Fale sobre isso.
131
PROFESSOR ALFABETIZADOR/ PRÁTICA ALFABETIZADORA
1. O que você entende sobre concepções e práticas de alfabetização?
2. Você acha que deve haver diferença entre alfabetizar uma pessoa da cidade e
alfabetizar uma pessoa do campo? Fale sobe isso.
3. Há diferença entre alfabetizar uma criança e alfabetizar uma pessoa adulta?
4. Fale sobre a formação profissional, condições de trabalho, salários e outros fatores que
você considera necessários para o professor alfabetizador desempenhar sua função na
alfabetização dos jovens e adultos.
5. Fale sobre as condições físicas e materiais das salas de aula, os horários de aula e
outros fatores que você considera necessários ao funcionamento de uma classe de
alfabetização de jovens e adultos.
6. Dê sua opinião sobre o abandono das classes de alfabetização pelos alfabetizandos
jovens e adultos.
7. Por que existem jovens e adultos que frequentaram classes de alfabetização por
diversas vezes e não aprenderam nem a ler e escrever pequenos textos?
8. Segundo seu entendimento, o que facilita e o que dificulta a alfabetização dos jovens e
adultos?
9. Você considera necessário o acompanhamento pedagógico às classes de alfabetização
de jovens e adultos?
10. Como deve ser esse acompanhamento?
132
APÊNDICE C - QUESTIONÁRIO - COORDENADORA DE EJA
ATENDIMENTO ESCOLAR NO ENSINO FUNDAMENTAL PARA JOVENS E
ADULTOS NO MUNICÍPIO DE UNIÃO DOS PALMARES - ESTADO DE ALAGOAS
Conforme estabelece a Resolução no 002/2008, do Conselho Municipal de Educação
de União dos Palmares, Estado de Alagoas, que regulamenta a Educação de Jovens e
Adultos (EJA) no Município, o atendimento escolar aos jovens e adultos, maiores de 15 anos
de idade, no Ensino Fundamental é organizado em dois segmentos. O primeiro segmento
(correspondente ao período do 1º ao 5º ano do ensino fundamental regular), com duração
total de 600h, constitui-se de três etapas, e o segundo (correspondente ao período do 6º ao 9º
ano do ensino fundamental regular) também com duração de 600h e três etapas.
1. Para ingressar na 1ª. Etapa de EJA o educando já deve dominar a alfabetização inicial? Ou
essa iniciação é feita no início da 1ª Etapa?
2. Como é feito o ingresso na EJA dos educandos provenientes das classes do Programa
Brasil Alfabetizado?
3. Existem outros programas de alfabetização no Município, além do Brasil Alfabetizado?
Quais são e que órgãos ou entidades os administram?
A Resolução faz referências ao uso da avaliação em situações de acesso, avaliação no
processo e avanço para reclassificação dos educandos nas etapas da EJA.
4. Existe uma resolução específica que regulamente a avaliação do ensino e da aprendizagem
para todos os níveis e modalidades de ensino, oferecidos pelo Município, inclusive a EJA?
5. Como está regulamentada a avaliação do ensino e da aprendizagem?
133
6. Como é realizada, na prática docente, a avaliação da aprendizagem dos educandos de
EJA?
7. Há avaliação da prática pedagógica docente? Como é feita?
8. No Art. 7º, a Resolução fixa a carga horária mínima da EJA (ensino fundamental) em
1.600 horas para cada etapa, totalizando 3.200 horas. Qual a duração de cada etapa, em
número de dias, semestres e anos letivos?
A Resolução estabelece no Art. 9º, os princípios a serem seguidos pelas unidades escolares,
na organização e funcionamento da EJA: flexibilidade com adequação às necessidades dos
educandos, podendo ser oferecida na forma presencial e à distância. Na elaboração das
propostas pedagógicas, as unidades escolares deverão observar a articulação da “base
comum com os aspectos da vida cidadã” e “os princípios pedagógicos da
interdisciplinaridade e contextualização dos conhecimentos...”.
9. Há definição do número de educandos para as turmas de EJA na forma presencial? Qual a
quantidade mínima e a máxima?
10. Qual a idade média dos educandos de EJA?
11. Quais as principais ocupações dos educandos de EJA?
12. Qual a proporção de homens e mulheres nas classes de EJA?
13. As unidades escolares têm autonomia para definir os horários de funcionamento das
classes de EJA para atender às necessidades dos educandos?
14. As unidades escolares organizam o calendário de EJA de modo a adequá-lo aos períodos
de plantio e colheita na agricultura e de outras atividades em outras áreas de trabalho dos
educandos?
15. O Município oferece a EJA na forma à distância? Como está organizada e como funciona?
134
16. Quais os materiais didáticos utilizados nas aulas de EJA, tanto presenciais como à
distância?
17. De que modo, na prática, os professores desenvolvem a articulação de conhecimentos com
a vida cotidiana dos educandos, a interdisciplinaridade e a contextualização de
conhecimentos?
A Resolução estabelece, no Art. 5º, que os professores que atuam na EJA tenham habilitação
adequada e preparação específica para essa modalidade de ensino, atribuindo à Prefeitura a
responsabilidade na formação dos seus docentes.
18. Que cursos de formação inicial são exigidos do professor de EJA?
19. Que atividades de formação continuada são oferecidas pela Prefeitura aos professores de
EJA? Como funcionam essas atividades, com que periodicidade e duração?
20. Todos os professores que atuam na EJA são do Quadro Funcional da Prefeitura?
21. O professor de EJA pode assumir mais de uma turma?
22. Qual é a carga horária semanal do professor de EJA por turma?
23. Qual o valor bruto do salário mensal de um professor de EJA que tenha uma turma e
esteja em início de carreira? E daqueles que estão no final da carreira?
No Art. 22, a Resolução atribui à Secretaria Municipal de Educação a responsabilidade da
supervisão, acompanhamento, inspeção e avaliação da EJA no Município.
24. Que profissionais do quadro da Secretaria assumem essas atividades?
25. Como essas atividades são desenvolvidas?
26. Existe coordenador pedagógico nas unidades escolares? Que atividades eles assumem?
135
27. Como é feito o planejamento de aulas e de outras atividades da EJA?
28. A Secretaria faz o controle estatístico da EJA? (matrícula, evasão, repetência, aprovação,
reprovação, etc.)
29. Quais os percentuais de aprovação, reprovação, desistência, evasão e repetência na EJA?
30. Em que etapa da EJA o número de desistentes e reprovados é maior?
31. A que fatores a Secretaria atribui a reprovação e a desistência (evasão)?
136
APÊNDICE D - RELATÓRIO DE VISITAS A CLASSES DE ALFABETIZAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS EM ÁREAS RURAIS DO MUNICÍPIO DE UNIÃO DOS
PALMARES
1. Distrito Rocha Cavalcanti
Realizei três visitas ao distrito Rocha Cavalcanti nos dias 11, 15 e 19 de março de
2010. Localizado a 7 km da sede do Município, à margem do rio Mundaú é o único distrito de
União dos Palmares. Anteriormente denominado Barra do Canhoto, a prefeitura mudou seu
nome para distrito Rocha Cavalcanti, porém, a população continua chamando-o Barra do
Canhoto.
A sede do Distrito compõe-se de um aglomerado de casas residenciais, pequenos
estabelecimentos comerciais e alguns equipamentos públicos. Na rua principal, há uma
estação desativada da linha ferroviária que ligava o Estado de Alagoas a Pernambuco. Essa
linha está em processo de recuperação, integrando o projeto federal da Ferrovia
Transnordestina.
Entre os equipamentos públicos, há uma escola municipal que oferece ensino
fundamental completo, uma creche e um posto de saúde. Na mesma rua há uma capela, onde
são celebradas missas, novenas e outros rituais da Igreja Católica. Durante uma de minhas
visitas ao distrito, no período da Semana Santa, observei e registrei em fotografia uma
procissão alusiva à “Via Sacra de Jesus Cristo”.
As habitações são construções modestas, porém, em sua quase totalidade dispõem de
antenas parabólicas, que captam com exclusividade a programação televisiva transmitida
diretamente do Rio de Janeiro e de São Paulo.
O Distrito dispõe de energia elétrica, serviço de telefonia fixa e água encanada, porém
não conta com serviço de telefonia móvel, não tem acesso à Internet, nem rede de esgoto. Os
dejetos domésticos são lançados diretamente no rio Mundaú, que o banha.
Os meios de vida da população são muito precários, limitando-se a atividades braçais
nas fazendas e usinas da região, alguns poucos empregos permanentes e temporários em
órgãos públicos municipais e pequenos serviços avulsos. Desta forma, é compreensível a
ansiedade das pessoas com a reativação da rede ferroviária, na expectativa da criação de
novos postos de trabalho, especialmente para os homens.
137
Segundo depoimentos das pessoas com as quais conversei, o Distrito oferece poucas
opções de lazer, limitando-se a bares, em frente dos quais rapazes da cidade estacionam
automóveis com caixas de som potentes, instaladas nos porta-malas. Em alto volume,
reproduzem músicas sertanejas, axé music e similares, atraindo as mocinhas do distrito, que
acompanham o som dançando com os rapazes em volta dos carros, conforme observei em
uma de minhas visitas.
A televisão parece ser o único veículo que estabelece conexão da população com o
“mundo moderno”. Para as pessoas que não dispõem de aparelho de TV em seus domicílios, a
prefeitura instalou um “aparelho público” numa praça ao lado da estação ferroviária. O
aparelho de, aproximadamente, 20 polegadas, é mantido numa caixa gradeada de varões de
ferro, sob um pedestal de alvenaria. Informações de depoentes locais dão conta de que são as
pessoas dos sítios que compõem a audiência da “televisão da praça”, quando vêm à sede do
Distrito para resolver alguma coisa.
A área do Distrito, além da sede, compõe-se de fazendas de-cana-de-açúcar e criação
de gado e de algumas pequenas propriedades rurais, normalmente pequenos sítios.
O distrito Rocha Cavalcanti, no período da pesquisa, contava com 12 classes de
alfabetização de jovens e adultos vinculadas ao Programa Brasil Alfabetizado. Visitei todas as
classes, acompanhada da coordenadora local do Programa, e entrevistei cinco dos doze
professores.
De um modo geral, as condições físicas das classes são muito precárias, com exceção
das três que funcionam na escola municipal, sob a responsabilidade de três professoras. O
prédio da escola, situado na rua principal do Distrito, é uma construção de alvenaria, bem
conservada e com uma área suficiente para o número de estudantes atendidos. Dispunha de
mobiliário e equipamentos escolares adequados e em bom estado de conservação, os quais
aparentavam terem sido adquiridos recentemente. Além de outros ambientes, as salas de aula
eram amplas, ventiladas e bem iluminadas.
Outras três classes, que funcionam também no período noturno, apresentam condições
físicas medianas. Duas delas funcionavam no prédio de uma creche. Diferentemente da
escola, a creche, também localizada na rua central do distrito, funcionava em um prédio
adaptado. As salas, decoradas com motivos infantis, eram de tamanho razoável, porém, muito
estreitas. O quadro de giz, as bancas escolares e a mesa da professora estavam, relativamente,
conservados, porém, parte deles necessitava de reparos.
A terceira classe, instalada no prédio de uma associação comunitária, localizada na
sede do Distrito, funcionava no período da tarde. A sala era ampla, bem ventilada e com boa
138
iluminação natural. O quadro de giz, as bancas escolares e a mesa da professora apresentavam
estado razoável de conservação, embora, também carecessem de manutenção.
As outras seis classes do distrito Rocha Cavalcanti dispunham das piores condições
físicas. Dessas, duas localizavam-se na sede do Distrito; uma funcionava na garagem da
residência da professora. O espaço físico era muito pequeno e a ventilação muito precária,
provocando um calor insuportável! Essa classe era constituída exclusivamente de mulheres,
donas-de-casa que desejam se alfabetizar, mas que alegavam não dispor de tempo no período
noturno.
Por isto, escolheram o horário das 13h às 15h. Conforme me falaram as alfabetizandas,
esse horário lhes permitia cuidarem da casa, prepararem e servirem o almoço aos maridos e
filhos e frequentarem as aulas na parte da tarde. E, ainda, retornavam para suas casas com
tempo para lavarem as louças do almoço, prepararem e servirem o jantar, cuidarem de outros
afazeres domésticos e acompanharem as novelas na televisão.
A outra classe funciona no turno noturno e também era improvisada na sala da
residência do professor. O espaço era muito pequeno e comportava, no máximo, cinco
pessoas, incluindo o professor. Dispunha de um quadro de giz muito pequeno. Não tinha
cadeiras escolares. Os alfabetizandos sentavam-se no sofá e em cadeiras sem suporte.
Escreviam com o caderno apoiado no colo.
Outras três classes, instaladas em pequenas salas do galpão da fazenda, funcionavam
no período noturno. Os quadros de giz eram muito pequenos e as cadeiras escolares
desconfortáveis e mal conservadas.
A décima segunda classe, instalada num galpão de uma fazenda produtora de cana-de-
açúcar, funcionava no período noturno. As condições da sala eram muito ruins! Embora fosse
ampla, a iluminação era insuficiente. Dispunha de uma lâmpada muito fraca, posicionada no
centro da sala, o que obrigava os alfabetizandos a se apertarem embaixo dessa lâmpada a fim
de enxergarem melhor. O quadro de giz, pintado de verde sobre a parede da sala, estava muito
desgastado, obrigando o professor a escrever nos espaços entre os inúmeros buracos.
Os alfabetizandos aproveitaram minha visita, acompanhada da coordenadora
pedagógica, para reclamar da má iluminação da sala, do atraso no envio da merenda e na falta
de encaminhamento deles ao médico para realizarem exames oftalmológicos e receberem
óculos, conforme consta nas ações do Programa Brasil Alfabetizado.
139
2. Sítios Duas Barras e Água Fria
Visitei os sítios Duas Barras e Água Fria nos dias 17 e 18 de março de 2010. Situados
no topo de uma serra a, aproximadamente, 10 km do município de União dos Palmares, o
primeiro localiza-se nesse município e o segundo no município de Santana do Mundaú. Os
referidos sítios constituem-se de extensas áreas de terras subdivididas em pequenas
propriedades familiares.
Embora localizadas em municípios diferentes, as duas classes de alfabetização do
Programa Brasil Alfabetizado (PBA), ficam próximas, distando, aproximadamente, 1 km uma
da outra. Ambas são administradas pela gerência do PBA, sediada na cidade de União dos
Palmares.
O acesso à serra, saindo da cidade de União dos Palmares, é feito pela rodovia federal
BR-104 até sua base. A subida é efetuada por uma estrada de terra muito precária, estreita e
acidentada, por onde é possível passar apenas um veículo motorizado. Quando ocorre de dois
veículos trafegarem em direções opostas, um deles precisa retornar de marcha à ré até
encontrar um espaço para dar passagem ao outro.
A paisagem na Serra difere das áreas planas, onde ainda se avistam vastos canaviais ao
lado de terras inóspitas, destruídas por cinco séculos de exploração predatória da monocultura
da cana-de-açúcar, introduzida no Brasil desde a colonização portuguesa.
Ao lado de grandes latifúndios, subsistem pequenos sítios familiares, onde a pobreza
apresenta melhores condições de vida, comparada à situação pobreza extrema, beirando a
miséria, das famílias que sobrevivem do trabalho braçal nas fazendas de cana-de-açúcar e de
criação de gado bovino.
Na Serra, as terras aparentam ter maior fertilidade. Correntes de água brotam de suas
encostas, molhando o chão, formando lagoas, alimentando uma vegetação diversificada.
Árvores remanescentes da Mata Atlântica se intercalam com jaqueiras e mangueiras que dão
frutos anos a fio, ao lado de culturas temporárias, especialmente, uma variedade grande de
bananas e laranjas, base da renda familiar dos sitiantes, ao lado de plantios de mandioca,
inhame, batata-doce, feijão e milho, cultivados para consumo doméstico e comercialização
nas feiras da região.
Mesmo no verão, o clima na serra é mais ameno do que nas áreas planas do
Município. À noite, a temperatura cai um pouco, chegando a fazer frio, porém o céu é limpo,
podendo-se observar as estrelas e outros astros e se identificar constelações com facilidade.
140
Dada a distância e a dificuldade de transporte para a serra75
, precisei hospedar-me na
residência da professora Rose, responsável pela classe do sítio Duas Barras. Ela mora com os
pais e dois irmãos pequenos, num pequeno lote de terra que garante à família viver “uma vida
de pobre, mas uma vida decente, com comida na mesa, sem ter que morrer na palha da cana”,
conforme palavras do seu pai.
Sua família mostrou-se bem acolhedora. Como é comum nas pessoas do campo, o
casal e os filhos me trataram com muita atenção. Receberam-me para jantar com uma mesa
farta e variada - macaxeira e banana comprida cozida, galinha guisada, doce de banana e bolo,
mas tinha, também, uma sacola de pão e refrigerante. Suponho que pensam que "pessoas da
cidade" não podem passar sem essas coisas. Com jeito, disse-lhes que preferia os alimentos
naturais, produzidos por eles no sítio. Mostraram-se surpresos, mas demonstraram aprovação.
Até poucos anos atrás, a família da professora vivia agregada em propriedade alheia.
Com muito trabalho e sacrifício, conseguiu adquirir uma parcela de terra, situar roça e
construir uma casa de alvenaria que, embora ainda necessite de acabamento, é mostrada com
muito orgulho e contentamento. A casa tem alpendre em todo seu contorno e dispõe de
cômodos suficientes para toda a família, inclusive com banheiro e bacia sanitária, apesar de
não dispor de água encanada.
Rose, a filha mais velha, com 22 anos de idade, conseguiu concluir o ensino médio e
desejava cursar o ensino superior. Assim afirmava: “Quero fazer Pedagogia porque adoro
ensinar! Quero ser professora!” Mas ela considera muito difícil realizar seu sonho porque a
UFAL76
, mesmo tendo unidades no interior que oferecem o curso de Pedagogia, estas ficam
distantes e a família não tem condições de pagar hospedagem. Nos municípios mais
próximos, onde também é oferecido o curso, as instituições de ensino são particulares,
portanto, pagas.
Como os poucos jovens do lugar, que conseguiram cursar o ensino médio, Rose disse
que estudou com muita dificuldade e sacrifício, decorrentes tanto das más condições de vida
de sua família, quanto da falta de escola de ensino fundamental completo e de ensino médio,
na área rural.
75
O único transporte motorizado regular é o caminhão que transporta as crianças e jovens para as escolas na
cidade de União dos Palmares, porém. Ele faz apenas uma viagem por dia. Seu proprietário, embora more na
cidade, dorme na serra durante a semana. Pela manhã, ele transporta as crianças da serra para a cidade, onde
permanece até o final da tarde, quando leva as crianças de volta para suas residências na serra. 76
Universidade Federal de Alagoas.
141
Os irmãos menores da professora frequentavam uma escola municipal, mas,
provavelmente, não concluirão o ensino fundamental. Seus pais e parentes adultos são todos
analfabetos. Naquele momento, frequentavam a classe de alfabetização na qual ela leciona.
A classe do Sítio Água Fria era dirigida por um rapaz de 21 anos, que tinha o ensino
médio concluído, mas não tinha formação docente. Também vivia com os pais e irmãos numa
parcela de terra própria. A agricultura e a criação de animais domésticos eram o principal
meio de vida de sua família que, pela qualidade da moradia e outros aspectos significativos,
aparentava condições melhores de vida, quando comparadas à situação de outras famílias
camponesas da área rural.
A família do professor Jack mantinha uma casa na cidade de União dos Palmares, para
onde mandavam os filhos a fim de darem continuidade à escolarização e a usavam, também,
para se hospedarem em dias de feira, nas festas e em outros eventos da cidade.
Mesmo tendo uma melhor condição de vida, comparando com os familiares da
professora Rose, os pais e outros parentes adultos de Jack eram todos analfabetos e, naquele
momento, também frequentavam a classe de alfabetização dirigida por ele.
Jack, diferentemente de outros jovens da área rural, tinha uma moto para seu
transporte próprio77
. Na entrevista, mostrou-se desinibido, comunicando-se com facilidade e
com fluência verbal ao expor suas opiniões a respeito dos temas tratados. Desejava cursar
medicina veterinária na UFAL, com o objetivo de montar uma clínica em União dos
Palmares, para dar atendimento a animais domésticos de estimação (cães, gatos, outros).
Supunha ser rentável essa atividade, uma vez que não existia esse serviço na cidade.
A oferta de escolarização na serra, assim como em toda a área rural do município de
União dos Palmares, limita-se ao primeiro segmento do ensino fundamental, em escolas
municipais. Para concluir esse nível de ensino e cursar o ensino médio, as crianças e jovens
precisam se deslocar da área rural para a Cidade – sede do município.
Além das dificuldades das famílias camponesas para liberar seus filhos do trabalho por
boa parte do dia, as condições de deslocamento para a cidade são muito precárias. A
Prefeitura disponibiliza um pequeno caminhão antigo, adaptado com cobertura de lona e com
tábuas colocadas na carroceria, as quais servem de assento para os educandos. Esse caminhão,
de propriedade do marido de uma das coordenadoras do PBA, é alugado pela Prefeitura. Foi
nesse transporte que me desloquei para as visitas às classes situadas na Serra.
77
Foi nessa moto que ele me transportou da residência da professora Rose para sua residência, na ocasião em
que visitei sua classe de alfabetização.
142
Durante a viagem, em conversa com o proprietário do caminhão, fui informada de que,
há nove anos, ele presta aquele serviço para a Prefeitura. Sabe da proibição do uso daquele
tipo de veículo no transporte de estudantes, mas justifica dizendo que outro tipo de viatura
não consegue transitar na Serra:
Só esse tipo de carro consegue rodar nessas estradas de terra [estreitas, esburacadas,
cheias de curvas e com subidas íngremes]. Ônibus não passa nessa estrada. Se tentar,
fica. Às vezes, a gente tem que se livrar da Federal78
, quando ela tá na BR [BR 104].
Outras vezes, a gente não consegue escapar dela, aí toma multa. No momento, tou
devendo duas multas de mais de R$ 500,00.
O senhor Silvério acrescentou que, todos os anos, durante o período do inverno, a
população da serra fica isolada porque as chuvas são intensas, os cursos d’água transbordam
inundando as áreas mais baixas e destroem as estradas; nenhum transporte motorizado
consegue transitar. Em alguns trechos, é possível transitar apenas a cavalo para resolver
alguma necessidade de extrema urgência.
Desse modo, durante o inverno, os estudantes dessa e de outras áreas rurais do
município em condições semelhantes, deixam de frequentar a escola.
A maioria das pessoas que habita a serra não é alfabetizada. Os adultos, com os quais
conversei nas classes visitadas, expressaram uma visão sobre a necessidade de escolarização
como “uma coisa muito importante para os pobres melhorarem de vida”. Por isso, dizem que
lutam e fazem todos os sacrifícios para os filhos estudarem.
Quando indagados em relação à sua condição de analfabetos, justificaram, ora como
dificuldade de frequentar escola na infância, em decorrência da pobreza, ora como
incapacidade cognitiva.
As classes de alfabetização de jovens e adultos do PBA, instaladas nos sítios Duas
Barras e Água Fria, funcionam nas residências das famílias dos professores. Ambas, embora
em locais diferentes, são improvisadas nos alpendres das respectivas casas. São áreas
cobertas, porém estreitas e abertas. Dispõem de um pequeno quadro de giz e de cadeiras e
bancos cedidos pelas famílias. Como os assentos não têm apoio, os alfabetizandos usam o
material didático sobre as pernas, inclusive os cadernos, no momento de escrever.
Os professores informaram que, pelas normas do PBA, ao aceitarem assumir uma
classe de alfabetização, tornam-se responsáveis por providenciar o local e o mobiliário
necessário ao seu funcionamento. A administração do Programa distribui livros, cadernos,
lápis, outros materiais e merenda. Informaram que o PBA também é responsável pela
78
Polícia Rodoviária Federal.
143
realização de exames oftalmológicos e pela distribuição de óculos para aqueles que
necessitarem. Entretanto, até aquele momento, isto não havia acontecido.
3. Fazenda Brejo do Vieira
Visitei a fazenda Brejo do Vieira, situada próxima à cidade de União dos Palmares, na
noite do dia 18/03/2010, acompanhada da coordenadora de turma, que informou haver duas
classes de alfabetização de jovens e adultos no local.
A primeira classe a ser visitada e que, segundo a coordenadora, funcionava numa
pequena escola municipal, encontrava-se fechada, quando lá chegamos, às 19h. Não havia
nenhuma pessoa no local para dar qualquer informação. A coordenadora disse não ter
conhecimento da suspensão das aulas, nem do motivo. O prédio da escola fica num local ermo
e mal iluminado, no meio de uma área de mato. Não visualizei nenhuma residência em suas
proximidades.
A segunda classe estava tendo aula quando chegamos. Havia quatro alunos.
Funcionava no terreiro da casa da professora. Havia um caminhão estacionado, delimitando o
espaço da “sala de aula” de um lado e, do outro, a calçada da casa, em plano mais elevado,
onde havia um pequeno quadro de giz apoiado numa cadeira. No espaço (muito estreito) entre
o caminhão e a calçada ficavam quatro cadeiras velhas, onde os alunos estavam sentados. A
professora escrevia no quadro, quando chegamos.
Após ser apresentada pela coordenadora, expliquei o motivo da minha visita para os
alunos e a professora, que ouviram atenciosos, porém sem emitirem comentários. Indagados
sobre como se sentiam tendo aulas naquele espaço, os alunos responderam que estava bom,
que a professora ensina bem e eles tinham esperança de aprender a ler e escrever.
144
APÊNDICE E – CARACTERIZAÇÃO DOS PROFESSORES ENTREVISTADOS
Na primeira fase da pesquisa de campo do projeto - Analfabetismo e Alfabetização:
representações de professores-alfabetizadores de camponeses quilombolas jovens e adultos -
foram entrevistados 10 professores, selecionados entre os 18 das classes visitadas nas áreas
rurais de União dos Palmares. No grupo, havia professores dos diferentes localidades das
áreas rurais que constituem o município: sede do único distrito rural, fazendas de plantação de
cana e criação de gado, povoados, pequenos sítios de propriedade de pequenos agricultores e
a comunidade quilombola, onde foi desenvolvido o estudo etnográfico desta pesquisa.
O grupo de professores compunha-se de nove mulheres e um homem. Todos exerciam
a docência em classes de alfabetização de jovens e adultos do Programa Brasil Alfabetizado,
único programa que oferecia alfabetização de jovens e adultos no município.
As mulheres, com exceção de uma delas, se declaravam “vocacionadas” para a
docência, tendo a profissão de professor como projeto de vida que lhes conferia prestígio
social. Uma minoria considerava a profissão mal remunerada.
O único professor do sexo masculino, que assumia uma classe na residência de sua
família num sítio distante da cidade, o fazia pela carência absoluta de outra pessoa no local
com escolaridade mínima para assumir a atividade de alfabetização. Com o ensino médio
concluído, seu desejo era cursar Veterinária na UFAL, em Maceió, a fim de abrir uma clínica
na cidade de União dos Palmares, para atendimento a animais domésticos de estimação.
O grupo tinha entre 20 a 47 anos de idade, sendo que a maioria estava na faixa etária
de 20 a 26 anos e todos eram nativos. A maioria nasceu nos locais onde residia e trabalhava.
Os demais nasceram na cidade de União dos Palmares e em cidades da redondeza, em
decorrência do deslocamento de suas mães para terem os filhos em maternidade.
A maioria (seis) tinha formação em curso normal de nível médio. A professora de
maior idade (47 anos) estava concluindo graduação em História e apenas uma, com ensino
fundamental, estava cursando o último ano do ensino médio. A maioria (seis) tinha
experiência em alfabetização de crianças, mas, apenas duas tinham em alfabetização de
jovens e adultos. Quatro não tinham nenhuma experiência docente.
Metade do grupo mantinha vínculo com a rede pública de ensino do município,
assumindo, em um turno, uma classe do primeiro segmento do ensino fundamental e, em
outro turno, normalmente à noite, uma classe de alfabetização de jovens e adultos79
.
79
Norma do Programa Brasil Alfabetizado a partir de 2010.
145
APÊNDICE F - ROTEIRO DE ENTREVISTA COM PROFESSORES-
ALFABETIZADORES
ANALFABETISMO
1. O que é o analfabetismo?
2. Você sabe o que é analfabetismo funcional?
3. Você sabe quais são as taxas de analfabetismo no Brasil e em Alagoas?
4. O que provoca o analfabetismo?
5. Por que existem jovens e adultos que frequentaram classes de alfabetização e não
aprenderam nem a ler e escrever?
6. Por que muitos jovens e adultos abandonam as classes de alfabetização?
7. O analfabetismo interfere na vida dessas pessoas?
8. O analfabetismo interfere na sociedade?
ALFABETIZAÇÃO
1. O que é alfabetização?
2. A alfabetização tem importância na vida das pessoas?
3. Todas as pessoas precisam ser alfabetizadas?
4. As pessoas que moram em cidades precisam se alfabetizar?
5. As pessoas do campo precisam se alfabetizar?
6. Há diferença entre alfabetizar uma criança e alfabetizar um adulto?
7. Há diferença entre alfabetizar uma pessoa do campo e alfabetizar uma pessoa da cidade?
8. Que formação precisa ter o professor para ser alfabetizador?
9. O professor-alfabetizador precisa de acompanhamento pedagógico?
146
APÊNDICE G - FORMULÁRIO DE COLETA DE DADOS DOS PROFESSORES-
ALFABETIZADORES
Data: _____/_____/_____
1. Identificação do (a) professor (a)
Nome: Pseudônimo:
Sexo: F ( ) M ( )
Idade: .......................
Local de nascimento (município/cidade): ........................................
.................................................................................. UF: ................
Residência:
E-mail: Fone:
2. Escolarização: Fundamental concluído ( ) Ensino Médio concluído ( ) Superior ( )
3. Formação profissional: Normal Médio ( ) Pedagogia ( ) outros cursos ( )
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
4. Experiência anterior de trabalho:
Instituição Curso/série Tempo serviço
5. Trabalho atual:
Instituição Curso/série Tempo serviço
6. Relação de trabalho: estatutário ( ) contrato temporário ( ) monitoria ou estágio ( )
Voluntário sem remuneração ( )
7. Salário mensal aproximado: Menos de 1 SM ( ) - 1 SM ( ) - Mais de 1 SM ( )80
80
Valor do Salário Mínimo (SM) no ano da pesquisa – R$ 510,00
147
APÊNDICE H - UMA AULA DA PROFESSORA ANITA
Figura 8 – Professora Anita durante uma aula na escola municipal de Muquém. Maio de 2010. (Foto:
Reneude Sá).
Decidi transcrever aqui a última aula que observei na classe de alfabetização de jovens
e adultos da professora Anita. Pretendo, com essa descrição, mostrar o que me pareceu ser a
dinâmica cotidiana da sua sala de aula, ressaltando elementos que, possivelmente, entram na
construção de suas representações sobre analfabetismo e alfabetização.
Por outro lado, busco identificar pontos que mostram repercussões das representações
da professora na sua prática pedagógica na alfabetização de jovens e adultos quilombolas.
Segue-se, portanto, a transcrição da aula da professora Anita.
No dia 21 de maio de 2010, como eu fazia habitualmente, jantei por volta das 18h.
Peguei minha bolsa que continha o gravador, a máquina fotográfica, o caderno de campo e
outros materiais. Chamei Toni, o filho da senhora que me hospedou, acendi a lanterna e
148
seguimos pelo caminho de terra que passava por dentro das roças até a escola. Mais ou menos
na metade do caminho, encontramos duas jovens que, também, se dirigiam ao mesmo local.
Seguimos conversando até chegar ao nosso destino. Aproximadamente, 1 km de caminhada.
Não havia iluminação na frente da escola, nem no pátio interno. Apenas a sala de aula
era iluminada. Toni me disse que havia muito tempo as lâmpadas haviam queimado e a
prefeitura não as substituíra.
Sentindo nossa presença, os cachorros, que sempre se encontravam no terreiro da
escola, correram em nossa direção, latindo e abanando seus rabos. Sempre aparecia algum
sapo-cururu que, incomodado com nossa chegada, saía pulando para dentro do mato. Com o
correr dos dias, eu acabei me acostumando com eles, que já não me assustavam mais.
Toni sentou-se no chão, recostando-se na parede do pátio junto à porta da sala, como
costumava fazer. Eu entrei na sala de aula e sentei. Havia três senhoras, uma jovem e algumas
crianças que acompanhavam suas mães. Não chegaram mais alunos até o final da aula. A
frequência média da turma, durante meu período de observação, era de oito alfabetizandos.
A professora Anita chegou logo após a minha entrada na sala. Eram 19h. Colocou
sobre a mesa os cadernos e outros materiais que trouxera nos braços. Olhou para as alunas,
sorriu timidamente e me cumprimentou: “Boa noite, professora!” Depois, dirigiu-se ao quadro
de giz e, em silêncio, escreveu:
Muquém, 21 de maio de 2010 – 6ª feira.
Vevisão da semana - sílabas estudadas
Percebendo o engano, apagou a palavra “vevisão” e escreveu corretamente – Revisão.
Ficou, um momento, olhando em silêncio para o quadro de giz. Sem se voltar para as alunas,
disse que sua letra estava feia. Apagou e escreveu novamente. Não satisfeita, apagou de novo
e reescreveu mais uma vez, completando o título:
Revisão da semana - sílabas estudadas: lha, lhe, lhi, lho, lhu
As alunas, que já estavam conversando quando eu entrei na sala, continuaram num
tom de voz baixo, falando uma de cada vez, abordando fatos variados de suas vidas cotidianas
e da comunidade. Em alguns momentos, falando em voz baixa, parecia que estavam pensando
alto:
149
“As mulheres da secretaria81
, que estiveram aqui ontem de manhã, mandaram as mães
se organizar para ir à prefeitura cobrar, do prefeito, o conserto da escola e a merenda, que esse
ano ainda não chegou.”
A conversa das alunas ia se intercalando com a fala da professora e a realização das
suas atividades. A professora não demonstrava se incomodar com aquilo. Quando o assunto
lhe interessava, ela participava da conversa. Apenas quando concluía a escrita no quadro de
giz, ela pedia para as alunas prestarem atenção na sua orientação, a fim de realizarem a
atividade82
.
Ao concluir a escrita do título da aula, a professora pediu que as alunas escrevessem,
em seus cadernos, as sílabas que ela registrou no quadro: lha, lhe, lhi, lho, lhu. Passados
alguns minutos, foi solicitando às alunas, uma a uma, que lessem as sílabas escritas. Apenas
uma aluna pronunciou corretamente. As demais leram: “la, le, li, lo, lu”. Então, a professora
leu corretamente cada sílaba e pediu que cada aluna repetisse, individualmente,
acompanhando-a.
Em seguida, escreveu no quadro a palavra “milho” e pediu para reconhecerem letra
por letra: “m – i – l – h – o”. As alunas, individualmente, tentaram identificá-las, mas poucas
conseguiram reconhecer alguma letra.
Nesse momento, as alunas falavam sobre a viagem que fariam ao Juazeiro do Padre
Cícero [no Ceará]. A professora entrou na conversa:
- “Eu, também, preciso ir ao Juazeiro este ano, porque preciso pagar uma promessa”.
Voltou-se para o quadro, pronunciou a palavra milho pausadamente e pediu às alunas
para repetirem em coro: mi-lho. E perguntou: “Qual o bicho que come milho”? Uma senhora
respondeu: “Nós mesmo come”. Não satisfeita, a professora insistiu: “Pra qual bicho a gente
compra milho pra dar”? As alunas: “cavalo, vaca, galinha...”. A professora: “Isso! Muito
bem”! Chamou uma aluna ao quadro: “Circule a sílaba lho na palavra milho”. A aluna não
81
No dia anterior, estiveram, em visita à escola, algumas técnicas da Secretaria Municipal de Educação de União
dos Palmares. 82
Presenciei essa dinâmica em todas as aulas que observei, mas, raramente, vi ou ouvi a professora repreender
algum aluno.
150
sabia o que significava “circular”, ela explicou, mostrando como fazer um círculo. A aluna
levou alguns segundos vacilando até identificar e circular a sílaba lho.
A conversa continuou:
- “Eu queria ir pra novena no centrinho83
, mas não fui porque vim pra aula”.
- “Sabia que o namorado da filha de Madalena tá aí”?
- “Ele foi cortar cana no Espírito Santo. Voltou com dinheiro”.
- “Dessa vez, eles casam”.
A professora escreveu no quadro a palavra abelha e pediu que lessem soletrando: a – b
– e – l – h – a. Como as alunas não conseguiam reconhecer as letras, a professora mudou a
atividade: “A palavra é abe....” As alunas completaram: lha. Chamou outra aluna para
circular a sílaba lha na palavra “abelha”, mostrando a sílaba isolada já circulada. Mesmo
assim, a aluna não conseguiu entender.
Uma aluna falou para outra que estava se queixando de um problema com o filho:
- “Deus toma conta de tudo. Quando tem uma necessidade, chama por Deus que ele
ajuda”.
- “Amanhã eu vou pescar no rio. Eu tenho mais ciúme do meu puçá84
do que do meu
marido.”
A professora escreveu outra palavra no quadro: orelhudo. Pediu às alunas para lerem.
Como elas não conseguiam, ela falou:
“Vou dar umas dicas: os animais têm isso muito grande”. Silêncio... “A gente,
também, chama esse nome com as pessoas”.
As alunas não conseguiam adivinhar. Então ela passou a soletrar: o-r-e-l-h-u-d-o.
“Agora, repitam de uma vez só: orelhudo”. Mesmo assim, as alunas diziam que não estavam
entendendo. Então, ela mesma leu a palavra e pediu para repetirem: orelhudo.
Enquanto a professora estava escrevendo outra atividade no quadro, as alunas
continuavam conversando:
83
Referência a um centro social localizado em uma das entradas do povoado Muquém. 84
Instrumento de pesca muito usado na região. É uma rede cônica, com um aro de arame na boca. Assemelha-se
a um coador de café.
151
- “Todo mundo tem medo do mês de São João [junho], de Santana [julho] e de
agosto”.
- “É por causa das chuvas”.
- “Quando chove muito, morre muita gente nesses meses85
”.
- “Minha menina foi enterrada no chão e a chuva levou ela com caixão e tudo”.
- “Essa minha menina dava surra nessas meninas tudinho daqui. Ela era bonita! Tinha
o cabelo escorrido”.
A professora concluiu a escrita do exercício, leu-o em voz alta e mandou as alunas
fazerem o que estava sendo pedido:
Atividade de Português (Revisão)
1º - Circule as sílabas lha, lhe, lhi, lho, lhu nas palavras:
Milhão
Abelha
Abelhuda
Agulha
Olho
Milho
Palhaço
Bilhete
Toalha
Palha
Orelhudo
Palhoça
A professora circulou a sílaba lhão na primeira palavra, mostrando às alunas como
deveriam fazer.
2º - Complete as palavras com as sílabas: lha – lhe – lhi – lho – lhu:
85
Um mês, aproximadamente, após a conclusão do meu trabalho de campo, deu-se uma tragédia nos estados de
Alagoas e Pernambuco, decorrente de grandes temporais que destruíram cidades, provocaram mortes e deixaram
milhares de pessoas desabrigadas. O município de União dos Palmares foi um dos mais atingidos, conforme
temiam as alunas. A tragédia foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação nacionais.
152
Pa______
Mi _____
Bi _____ te
Joe ____
Ore ___ do
Pa ____ ço
Abe ____
As alunas se inclinaram sobre o caderno no braço da banca, aparentando estarem
fazendo a atividade, mas a conversa continuava:
“No São João eu ia sair de casa, mas nem vou. Ia pra Branquinha86
”.
“Eu quero pagar um plano funerário.”
“Pois eu quero me enterrar na cova de vô.”
Após alguns minutos, a professora foi ao quadro e perguntou “como ficou” cada
palavra completada com as sílabas, à medida que ia apontando, com o dedo, algumas delas e
formulando perguntas para as alunas descobrirem:
Bi ___ te - “O que os namorados escrevem para suas namoradas”?
Pa ___ço - “Hoje tem marmelada? Olhe o nariz vermelho dele!”
Pa ____ - “O que os maridos de vocês vão cortar no canavial”?
Joe ____ - “De que Dona Maria se queixa que dói muito”?
Abe ____ - “Que bicho ferroa a gente e dói muito”?
As alunas continuaram tentando fazer o exercício no caderno, mas não pararam de
conversar:
- “Pai, hoje, foi botar fogo no forno pra queimar as panelas e estourou oito ovos da
minha galinha. Eu tive uma dó!”
– “E, por que a galinha foi botar ovo no forno?”
– Num sei, porque, antes, ela botava na minha cama”.
86
Município próximo a União dos Palmares.
153
- “Os maridos que vão cortar cana no Espírito Santo, quando assinam a carteira é bom
porque eles voltam e ficam três meses recebendo seguro desemprego.”
- “Eu já cortei muita cana.”
- “Eu também!” Disse a professora, que acabou entrando na conversa.
A professora aproximou-se de uma senhora (sua mãe), que estava tentando fazer o
exercício, pegou em sua mão e, conduzindo-a, foi traçando as letras lentamente. Depois,
dirigiu-se ao quadro. Em silêncio, fez o exercício, completando a escrita das palavras. Leu-as
em voz alta e pediu às alunas que repetissem com ela. Depois, encerrou a aula. Eram 21h.
Ao final, as alunas se dirigiram a mim, perguntando quanto tempo eu ainda iria
observar a classe, e me convidaram para vir ao encerramento do curso [previsto para o mês de
julho]. Lamentaram quando eu disse que aquela tinha sido minha última noite de observação
na classe delas.
Saímos todos juntos, conversando, até tomarmos, cada um, a direção de suas
moradias.
154
APÊNDICE I - UMA AULA DA PROFESSORA MARIANA
Figura 9 – Aula de alfabetização de jovens e adultos no Centro Comunitário de Muquém. Maio de 2010.
(Foto: Reneude Sá)
Durante o período de uma semana, em que observei a classe da professora Mariana,
fiquei hospedada na cidade de União dos Palmares a, aproximadamente, 4 km do povoado de
Muquém, para onde me deslocava todas as noites.
Como procedi durante todo o período de observação, no dia 25/05/2010, cheguei ao
Centrinho às 18h30min. A professora e os alunos, incluindo sua mãe, Dona Silvana, que
também participava da classe de alfabetização, estavam se preparando para começar a reza do
terço, em comemoração ao mês mariano.
A cerimônia começou com a leitura de um trecho do evangelho, realizada por D.
Silvana que, em seguida, convidou todos para “refletir sobre a palavra de Deus”. Ela ia
fazendo perguntas e os alunos, espontaneamente, iam respondendo. Naquela noite, ela exaltou
os efeitos da prática do terço, que vinha sendo rezado desde o início do mês: “O Espírito
155
Santo baixou em nossa classe. Até a semana passada, poucos alunos iam ao quadro. A maioria
ficava inibida, mas, a partir de 2ª feira, todos se modificaram, principalmente os alunos que
não gostavam de ir ao quadro.”
D. Silvana falou, ainda, por alguns minutos e, depois, incentivou os alunos a se
pronunciarem. Concordando com ela, alguns fizeram comentários reafirmando sua fala.
Outros relataram episódios ocorridos fora da sala de aula. Em seguida, recitaram o terço, com
D. Silvana falando a parte inicial das orações do Pai-Nosso e da Ave-Maria e os alunos
respondendo com a segunda parte. A cerimônia foi finalizada com a recitação da oração da
Salve-Rainha.
Concluído o terço, a professora deu início às atividades. Os 13 alunos, que
frequentavam regularmente as aulas, estavam presentes. Como de costume, havia várias
crianças na companhia das mães e outras maiores, que ficavam observando a aula, do mesmo
modo que alguns jovens, que não participavam da classe87
.
Mariana dirigiu-se ao quadro de giz e escreveu na parte superior: 25-05-10. Voltou-se
para a turma e disse que aquele era o Dia do Trabalhador Rural. Por isso, iria trabalhar um
assunto de Geografia: Animais e Plantação. Um aluno falou que no dia 1º de maio já tinham
estudado o dia do trabalhador. Por que tinha mais um dia? A professora explicou que foi
criado esse dia porque o trabalhador rural é muito importante para o Brasil. São os
trabalhadores rurais que plantam os alimentos e criam os animais para alimentar toda a
população. Então é para todos que moram na roça se orgulharem de ser trabalhador rural.
Feitos esses esclarecimentos, a professora comunicou aos alunos que havia preparado
uma aula especial para aquela noite. Fixou, no quadro de giz, uma folha de cartolina com uma
montagem feita por ela, e explicou que eles iriam seguir aquele modelo no trabalho de grupo
que realizariam, para ser apresentado na segunda parte da aula.
Na parte superior da folha, estava o título: 25 de maio dia dos trabalhadores rural
(sic!). Abaixo do título, a folha era dividida em duas colunas. Na primeira, o subtítulo:
Criação e ilustrações alusivas ao tema (colagem de folhas naturais, uma miniatura de um boi
em material plástico e desenhos com lápis de cor). Na segunda: Plantação, também, com
ilustrações de folhas naturais e desenhos, mostrando uma paisagem rural.
Mandou os alunos se organizarem em três grupos. Distribuiu, com cada grupo, uma
folha de cartolina com os referidos títulos e a divisão em duas colunas. A professora
87
Segundo a professora, alguns estavam ali por curiosidade, por conta de minha presença. Outros gostavam de
“olhar a aula”. Às vezes, ela mandava entrar e participar das atividades.
156
distribuiu, também, folhas de plantas naturais, lápis de cor, cola, fita adesiva e várias
miniaturas de animais (boi, cavalo, porco, outros) em material plástico.
Os alunos acolheram a atividade animadamente. Demonstrando familiaridade com
aquele procedimento didático, lançaram-se ao trabalho com empenho e alegria: conversavam
sobre o assunto, decidiam quem faria cada tarefa, escolhiam o material a ser colado na
cartolina, combinavam sua disposição.
Dos 13 alunos, apenas dois, mais jovens, não se juntaram aos grupos. Sentaram-se em
bancos no fundo da sala e ficaram folheando um livro didático. A professora insistiu,
animando-os a participarem do trabalho, mas eles não se moveram do lugar, onde
permaneceram por algum tempo, até que saíram da sala e não retornaram mais naquela noite.
Os alunos agiam de modo efetivamente coletivo, tanto nas decisões quanto no fazer.
Como a folha de cartolina era grande, dois grupos usaram a mesa para estendê-la e, os outros
dois, estenderam-na no piso. Debruçaram-se sobre ela e todos os componentes do grupo
trabalharam, ao mesmo tempo, colando as folhas e os bichinhos, pintando a paisagem,
retocando, etc. À medida que trabalhavam, alguns dramatizavam situações do seu cotidiano:
- “Vamos meus boizinhos, comer o capinzinho pra ficar gordinho!”
- “Lá vem a chuva! Vai molhar a terra pra gente plantar.”
Durante todo o processo, os alunos mantiveram-se concentrados na atividade,
raramente algum fazia um comentário estranho ao assunto da aula.
A professora circulava entre os grupos para observar o trabalho de cada um, fazia
comentários sobre o assunto, fazia alguma sugestão, apontava o modelo no quadro lembrando
que deviam segui-lo e elogiando o trabalho de cada grupo:
-“Muito bem! Está ótimo! Continuem assim! A apresentação vai ser linda!”
Após concluírem os painéis, os alunos perguntaram a ordem da apresentação e
retornaram às suas carteiras. O primeiro grupo foi à frente. Dois alunos ficaram segurando o
painel, enquanto os demais se postaram ao lado. Um senhor, que participava ativamente das
aulas, foi escolhido pelos pares como relator. Ele pegou o microfone88
e fez uma introdução:
88
O Centro Social dispunha de um pequeno sistema de autofalante, usado nas cerimônias religiosas e em outros
eventos, inclusive nas aulas de alfabetização.
157
Nós já tínhamos nosso dia, que é o dia 1º de maio, junto com todos os trabalhadores.
Esse ano nós já comemoramos ele. É um dia feriado. Mas, agora, nós temos um dia
só nosso – o dia do trabalhador rural. Ele foi deferido por lei, é um direito do
trabalhador rural. Algumas usinas aqui deram feriado hoje. Mas muitas fazendas não
deram. Essas não respeitam a lei.
Em seguida, passou a citar os elementos contidos nas cenas do painel. À medida que o
relator ia apontando para o painel, outros membros do grupo faziam comentários alusivos à
vida no campo e ao dia do trabalhador rural:
- “As pessoas da cidade dependem das pessoas da zona rural para se alimentarem, por
isso é muito importante ser trabalhador rural.”
- “O campo é muito lindo! Nós somos privilegiados de morar na zona rural.”
- “Devemos usar a água com cuidado porque ela pode se acabar”.
- “A água é muito importante para nossa vida”.
- “Sem água não tem nada: plantação, animais...”
Enquanto o grupo apresentava seu trabalho, os componentes dos outros dois grupos
assistiam atentos, aplaudindo efusivamente ao final da apresentação.
Os outros dois grupos seguiram a mesma dinâmica em suas apresentações. Concluídas
as apresentações, a professora, mostrando-se muito satisfeita, elogiou todos os grupos e
encerrou a aula, despedindo-se até a próxima.
O caso Breno e Daniel
Perguntei à professora Mariana por que os alunos Breno e Daniel não se engajavam na
turma. Durante uma semana de observação, os dois se mantinham alheios às atividades da
classe, apesar da relação cordial que ela mantinha com eles, associada ao seu esforço
pedagógico, que eu havia presenciado durante as aulas. Ela me falou que estava tendo
dificuldade para “motivar aqueles dois alunos que eram novatos”.
Breno, que estava com 15 anos de idade, e Daniel, com 14, eram irmãos. Mariana me
explicou que no final do ano (2009), quando começou o projeto de alfabetização que estava
158
em execução89
, recebeu Breno, vindo de uma escola municipal. Ao completar 15 anos, sem
ter “conseguido se alfabetizar”, ele foi dispensado do ensino regular e encaminhado para o
Brasil Alfabetizado. No início daquele ano letivo (março/2010), recebeu Daniel, atendendo a
um apelo desesperado da mãe do menino.
Daniel cursava a 4ª série do ensino regular, no turno diurno de uma escola municipal
na cidade de União dos Palmares. Nas palavras da professora Mariana: “Ele não estava bem
alfabetizado. Sabia escrever, tirava do quadro direitinho, mas não sabia ler”. Entretanto, ele
foi dispensado porque “estava fora da faixa etária”, tinha repetido algumas vezes.
A diretora orientou a mãe a matricular Daniel numa classe noturna do Programa Brasil
Alfabetizado, na mesma escola. A mãe recusou-se a seguir a orientação, insistindo com a
diretora para mantê-lo na classe regular diurna. Justificava sua insistência, alegando a
distância da escola em relação à sua residência no Muquém, a irregularidade do transporte
noturno e os riscos que a criança correria, em decorrência de perigos noturnos (consumo de
drogas, incidência frequente de roubos, assassinatos, entre outros). Mesmo assim, ela não
conseguiu fazer a diretora mudar sua decisão.
Daniel foi dispensado (expulso) da escola regular, juntando-se ao irmão na classe de
alfabetização de jovens e adultos. A mãe tinha esperança de que a professora Mariana, que já
tinha alfabetizado muita gente, conseguisse alfabetizar seus meninos, “pelo menos, assinar o
nome e ler alguma coisinha”, para não terem que “assinar com o dedo”.
89
Cada curso do Programa Brasil Alfabetizado, com duração de 6 meses, é denominado de projeto. O que estava
em desenvolvimento havia começado em novembro de 2009, com previsão de ser concluído em julho de 2010.
159
ANEXO A - EXTRATO DA LDB
LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996
Vide Adin 3324-7, de 2005 Vide Decreto nº 3.860, de 2001 Vide Lei nº 12.061, de 2009
Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
TÍTULO VI
Dos Profissionais da Educação
Art. 61. A formação de profissionais da educação, de modo a atender aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de ensino e às características de cada fase do desenvolvimento do educando, terá como fundamentos: (Regulamento)
I - a associação entre teorias e práticas, inclusive mediante a capacitação em serviço; II - aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de ensino e outras
atividades.
Art. 61. Consideram-se profissionais da educação escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos, são: (Redação dada pela Lei nº 12.014, de 2009)
I – professores habilitados em nível médio ou superior para a docência na educação infantil e nos ensinos fundamental e médio; (Redação dada pela Lei nº 12.014, de 2009)
II – trabalhadores em educação portadores de diploma de pedagogia, com habilitação em administração, planejamento, supervisão, inspeção e orientação educacional, bem como com títulos de mestrado ou doutorado nas mesmas áreas; (Redação dada pela Lei nº 12.014, de 2009)
III – trabalhadores em educação, portadores de diploma de curso técnico ou superior em área pedagógica ou afim. (Incluído pela Lei nº 12.014, de 2009)
Parágrafo único. A formação dos profissionais da educação, de modo a atender às especificidades do exercício de suas atividades, bem como aos objetivos das diferentes etapas e modalidades da educação básica, terá como fundamentos: (Incluído pela Lei nº 12.014, de 2009)
I – a presença de sólida formação básica, que propicie o conhecimento dos fundamentos científicos e sociais de suas competências de trabalho; (Incluído pela Lei nº 12.014, de 2009)
II – a associação entre teorias e práticas, mediante estágios supervisionados e capacitação em serviço; (Incluído pela Lei nº 12.014, de 2009)
III – o aproveitamento da formação e experiências anteriores, em instituições de ensino e em outras atividades. (Incluído pela Lei nº 12.014, de 2009)
Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro
160
primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal. (Regulamento)
§ 1º A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, em regime de colaboração, deverão promover a formação inicial, a continuada e a capacitação dos profissionais de magistério. (Incluído pela Lei nº 12.056, de 2009).
§ 2º A formação continuada e a capacitação dos profissionais de magistério poderão utilizar recursos e tecnologias de educação a distância. (Incluído pela Lei nº 12.056, de 2009).
§ 3º A formação inicial de profissionais de magistério dará preferência ao ensino presencial, subsidiariamente fazendo uso de recursos e tecnologias de educação a distância. (Incluído pela Lei nº 12.056, de 2009).
Art. 63. Os institutos superiores de educação manterão: (Regulamento)
I - cursos formadores de profissionais para a educação básica, inclusive o curso normal superior, destinado à formação de docentes para a educação infantil e para as primeiras séries do ensino fundamental;
II - programas de formação pedagógica para portadores de diplomas de educação superior que queiram se dedicar à educação básica;
III - programas de educação continuada para os profissionais de educação dos diversos níveis.
Art. 64. A formação de profissionais de educação para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica, será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional.
Art. 65. A formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no mínimo, trezentas horas.
Art. 66. A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado.
Parágrafo único. O notório saber, reconhecido por universidade com curso de doutorado em área afim, poderá suprir a exigência de título acadêmico.
Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público:
I - ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;
II - aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim;
III - piso salarial profissional;
IV - progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho;
V - período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho;
VI - condições adequadas de trabalho.
161
§ 1o A experiência docente é pré-requisito para o exercício profissional de quaisquer outras
funções de magistério, nos termos das normas de cada sistema de ensino.(Renumerado pela Lei nº 11.301, de 2006)
§ 2o Para os efeitos do disposto no § 5
o do art. 40 e no § 8
o do art. 201 da Constituição Federal,
são consideradas funções de magistério as exercidas por professores e especialistas em educação no desempenho de ativi1dades educativas, quando exercidas em estabelecimento de educação básica em seus diversos níveis e modalidades, incluídas, além do exercício da docência, as de direção de unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico. (Incluído pela Lei nº 11.301, de 2006)
162
ANEXO B – p.1/3
163
ANEXO B – p. 2/3 (cont.)
164
ANEXO B – p. 3/3 (cont.)
165
ANEXO C – p. 1/2 (continua)
166
ANEXO C – p. 2/2 (cont.)
167
ANEXO D – LETRA DA MÚSICA MARINHEIRO SÓ
Adaptação e Arranjo: Caetano Veloso 90
Eu não sou daqui, Marinheiro só
Eu não tenho amor,
Marinheiro só
Eu sou da Bahia
Marinheiro só
De São Salvador
Marinheiro só
Lá vem, lá vem
Marinheiro só
Como ele vem faceiro
Marinheiro só
Todo de branco
Marinheiro só
Com seu bonezinho
Marinheiro só
Ô, marinheiro, marinheiro
Marinheiro só
Ô, quem te ensinou a nadar
Marinheiro só
Ou foi o tombo do navio
Marinheiro só
Ou foi o balanço do mar
Marinheiro só
90
Cf. Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Philips; J. S.: Salvador, BA; São Paulo: Scatena, 1969. 1 disco sonoro.
Lado A, faixa 3.
168
ANEXO E- HINO DO MUNICÍPIO DE UNIÃO DOS PALMARES – AL
ZUMBI DOS PALMARES
Letra: João Armando Assunção
Melodia: Antônio de Almeida Soriano Filho
Eu vou contar uma historia sofrida,
Uma historia de séculos passados,
Que se passou lá na Serra da Barriga,
O grande “Quilombo dos Palmares”. (bis)
Zumbi, Zumbi, teu grito de liberdade foi tão grande,
Que ecoou pelo Brasil mais tarde libertou teus semelhantes.
Os negros refugiaram-se lá na serra,
E fundaram uma republica poderosa,
Vinte mil negros lutaram com afinco,
Pela liberdade gloriosa. (bis)
Zumbi, Zumbi, teu grito de liberdade foi tão grande,
Que ecoou pelo Brasil mais tarde libertou teus semelhantes.
De repente o sonho acabou,
Domingos Jorge velho chegou e destruiu,
O grande ‘Quilombo dos Palmares’,
Foi traído, tombou não resistiu.
Zumbi, Zumbi, teu grito de liberdade foi tão grande,
Que ecoou pelo Brasil mais tarde libertou teus semelhantes.
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