pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo … · coletados, podemos perceber que o serviço...
Post on 05-Dec-2018
213 Views
Preview:
TRANSCRIPT
-
1
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA
DE SO PAULO
MESTRADO EM SERVIO SOCIAL
MAIRA GOULARDINS GOMES
Famlia e Violncia Domstica contra Crianas e
Adolescentes: um desafio para a Poltica de Assistncia Social
So Paulo
2013
-
2
MAIRA GOULARDINS GOMES
Famlia e Violncia Domstica contra Crianas e
Adolescentes: um desafio para a Poltica de Assistncia Social
So Paulo
2013
-
3
MAIRA GOULARDINS GOMES
Famlia e Violncia Domstica contra Crianas e
Adolescentes: um desafio para a Poltica de Assistncia
Social.
Dissertao apresentada Banca Examinadora da
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como
exigncia parcial para obteno do ttulo de MESTRE em
Servio Social, sob a orientao da Profa. Dra. Marta Silva
Campos
So Paulo
2013
-
4
BANCA EXAMINADORA:
-
5
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Jos Roberto e Rosa Maria, minha irm, Marlia, e ao meu namorado,
Luciano, pelo apoio incondicional e por TUDO que fazem por mim todos os dias.
minha Tia Vera, amiga e parceira da minha construo pessoal e profissional.
Aos meus amigos, tanto os de perto quanto os de perto do corao, que tanto me incentivam
para buscar meus sonhos.
s minhas colegas do CREAS de So Joo da Boa Vista SP, parceiras de todas as horas e
guerreiras na luta contra a violncia e a favor da construo de uma cultura de paz para todas
as famlias.
Aos colegas do Conselho Tutelar de So Joo da Boa Vista SP, por partilharem da mesma
batalha diria, para que crianas e adolescentes tenham uma vida sem violncia.
CAPES, que me proporcionou a realizao do sonho de cursar e concluir meu Mestrado.
s amigas do Programa de Ps Graduao em Servio Social: Aline Lima, Amanda Machado
dos Santos, Edna Lima e Nina Garcia. Obrigada pela parceria nesta fase da minha caminhada!
Aos professores do Programa de Ps Graduao em Servio Social, pela alegria do convvio,
do aprendizado, da discusso e do conhecimento crtico. Adorei ter aulas com os autores que
conheci durante minha formao e minha trajetria profissional. Isso no tem preo!
Aos professores que participaram de meu Exame de Qualificao: Ademir Alves da Silva e
Viviane Guerra. Possibilitaram-me novas ideias e discusses pertinentes a respeito da
temtica em pauta.
minha orientadora, Dra. Marta Silva Campos, pelo conhecimento, humildade,
disponibilidade e carinho.
-
6
Onde reina a violncia, o nico recurso a violncia.
Onde vivem os homens, o auxlio s pode vir dos
homens.
Bertold Brecht
-
7
RESUMO
GOMES, Maira Goulardins. Famlia e Violncia Domstica Contra Crianas e
Adolescentes: um desafio para Poltica de Assistncia Social. 2013.
A VDCA uma realidade presente em nosso pas e, para seu enfrentamento, necessitamos de
aes interdisciplinares e intersetoriais, objetivando o rompimento do ciclo perverso
intergeracional perpetuado por ela. O SUAS, atravs da Tipificao Nacional dos Servios
Socioassistenciais, prope um servio que tem como pblico alvo situaes de violao de
direitos e abarca, entre sua demanda, a VDCA: o PAEFI. Partimos da hiptese de que a
Poltica de Assistncia Social sozinha no dar conta da complexidade do fenmeno em
pauta. Para verific-la, estabelecemos como objetivo geral analisar a operacionalizao do
PAEFI no atendimento s famlias nas quais existe a problemtica da VDCA, no municpio de
So Joo da Boa Vista SP. Para a realizao da referida anlise, apropriamos-nos dos
seguintes objetivos especficos: identificar o papel que a famlia ocupa nos dias atuais dentro
da Poltica de Assistncia Social, atravs de um pequeno resgate histrico; definir a VDCA,
apresentando suas modalidades, sintomatologia, caractersticas familiares e consequncias;
analisar a estrutura, o processo de trabalho e o produto das aes realizadas pelo PAEFI, em
termos de eficincia e eficcia. O processo terico-metodolgico foi construdo baseado em
um resgate histrico da perspectiva da famlia, considerando tambm a contextualizao da
VDCA e das polticas pblicas de atendimento a este fenmeno. A pesquisa foi realizada no
CREAS de So Joo da Boa Vista, com as famlias atendidas no ano de 2011, que
vivenciaram situaes de violao de direitos, atravs da ocorrncia da VDCA, atravs da
anlise de dados coletados e tambm de observaes realizadas no acompanhamento direto da
implantao e contexto do PAEFI. O estudo aponta que o servio previsto para atendimento
da problemtica da VDCA, enquanto Poltica de Assistncia Social, sozinho, no capaz de
romper o referido fenmeno e que o servio PAEFI, da maneira como atualmente
executado, no est sendo efetivo e eficaz no alcance de seus objetivos. A partir dos dados
coletados, podemos perceber que o servio PAEFI executado com recursos humanos
insuficientes e no capacitados. O pblico alvo no est bem definido na prtica e as
notificaes no atendem nem maioria das vtimas de VDCA. No existe nenhum tipo de
ao preventiva e sensibilizao da rede socioassistencial e da populao quanto a esta
problemtica. A qualidade dos registros deixa a desejar, no existe planejamento das aes, o
perodo de acompanhamento insuficiente segundo a literatura, a adeso no atingida em
todos os seus nveis, embora a metodologia de trabalho proposta pelo PAEFI deste municpio
consiga ser seguida, na maioria das situaes. As famlias acompanhadas continuam
vitimizando suas crianas e/ou adolescentes, mesmo frequentando o PAEFI; poucas
apresentam mudanas em seu padro de relacionamento e aprendizagem de contedos
referentes violncia, o que mostra que o servio no est sendo efetivo.
Palavras-chave: Famlia; Violncia Domstica contra Crianas e Adolescentes; Poltica de
Assistncia Social; SUAS; PAEFI e Proteo Social Especial de Mdia Complexidade.
-
8
ABSTRACT
GOMES, Maira Goulardins. Family and Domestic Violence Against Children and
Adolescents: a Challenge for Social Policy. 2013.
The VDCA- Domestic Violence against Children and Adolescents - is a present reality in our
country and for its resolution, we need interdisciplinary and intersectoral actions, aiming to
break the intergenerational vicious cycle perpetuated by it. The SUAS Unified Social
Assistance System - por extenso, through the National Typification Services
Scioassistenciais proposes a service's target audience situations of violation of rights and
includes among its demand, VDCA: the PAEFI - Protection Service and Specialized Care to
Families and Individuals. The assumption is that the Social Assistance Policy alone will not
account for the complexity of the phenomenon in question. To check it out, set aimed at
analyzing the operationalization of PAEFI in caring for families in which there is the problem
of VDCA, in the city of So Joo da Boa Vista So Paulo, Brazil. To make such analysis,
we appropriate the following specific objectives: to identify the role that the family occupies
today within the Social Assistance Policy, through a short historical review; define VDCA
presenting its modalities, symptomatology and family characteristics consequences; analyze
the structure, working process and the product of actions taken by PAEFI in terms of
effectiveness and efficiency. The theoretical and methodological process was built based on a
historical perspective of the family, also considering the context of public policy and VDCA
service to this phenomenon. The survey was conducted in CREAS - Reference Center
Specialized Social Assistance located in So Joo da Boa Vista, the families met in 2012,
who experienced rights violations through the occurrence of VDCA, by analyzing collected
data and also by observations made in direct monitoring of and deployment of context PAEFI.
The study indicates that the services provided to meet the problem of VDCA within Social
Assistance Policy alone cant break the above phenomenon and the service PAEFI, the way
has been executed, didnt proved to be effective and efficient in order to achieve its
objectives.. From the data collected, we can see that the service PAEFI runs with insufficient
human resources and not trained. The targeted audience is not well defined in practice and
notifications do not meet even the most victims of VDCA. There is no type of preventive
action and awareness of the social assistance network and the public regarding this issue. The
quality of the records is weak, there is no action planning, follow-up period is insufficient
according to the literature, compliance is not achieved at all levels, although work
methodology proposed by PAEFI in this city can be followed in most situations. Even
attending the PAEFI and with the professional follow-up, families continue victimizing their
children and / or adolescents: few changes in their present relationship pattern and learning
content related to violence, shows that the service is not being effective.
Keywords: Family, Domestic Violence against Children and Adolescents; Social Assistance
Policy; SUAS; PAEFI and Special Social Protection of Medium Complexity.
-
9
LISTA DE GRFICOS
GRFICO 1 - Violncia Intra e Extrafamiliar atendida pelo PAEFI no ano de 2011 ............ 82
GRFICO 2 VDCA por sexo atendida no PAEFI no ano de 2011 ..................................... 83
GRFICO 3 VDCA por sexo e faixa etria das vtimas atendidas pelo PAEFI, no ano de
2011 ......................................................................................................................................... 90
GRFICO 4 Escolaridade das vtimas de VDCA atendidas pelo PAEFI, no ano de 2011.. 91
GRFICO 5 Faixa etria das autoras de VDCA de famlias atendidas pelo PAEFI, no ano
de 2011 .................................................................................................................................... 91
GRFICO 6 Faixa etria dos autores de VDCA de famlias atendidas pelo PAEFI, no ano
de 2011 .................................................................................................................................... 92
GRFICO 7 Renda Familiar das famlias das vtimas de VDCA atendidas pelo PAEFI, no
ano de 2011 .............................................................................................................................. 93
GRFICO 8 Insero das famlias atendidas de vtimas de VDCA atendidas pelo PAEFI,
em 2011, em Programas Socioassistenciais. ........................................................................... 94
GRFICO 9 Situao familiar no trmino do acompanhamento das famlias das vtimas de
VDCA atendidas pelo PAEFI, no ano de 2011 ....................................................................... 95
-
10
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 Tipo de direito violado e sua distribuio por gnero (Sipia) ........................... 37
TABELA 2 - Modalidade de VDCA - Incidncia Pesquisada Brasil................................... 38
TABELA 3 - Porte dos municpios e capacidade de atendimento .......................................... 66
TABELA 4 - Composio da equipe tcnica .......................................................................... 67
TABELA 5 Tipo de Violncia atendida pelo PAEFI, no ano de 2011 ................................ 81
TABELA 6 - Faixa Etria e Sexo das vtimas de Violncia Intrafamiliar atendidas pelo
PAEFI, no ano de 2011........................................................................................................... 83
TABELA 7 - Faixa Etria e Sexo das vtimas de Violncia Intrafamiliar atendidas pelo
PAEFI, no ano de 2011........................................................................................................... 84
TABELA 8 - Autores de Violncia Intrafamiliar atendida pelo PAEFI, no ano de 2011 ....... 85
TABELA 9 Equipe Tcnica que executou o PAEFI, durante o ano de 2011, no CREAS
lcus da pesquisa ..................................................................................................................... 86
TABELA 10 - Equipe de Referncia do CREAS, de acordo com o porte do municpio,
segundo o MDS ....................................................................................................................... 87
TABELA 11 Famlias e vtimas de Violncia Fsica encaminhadas ao PAEFI, no ano de
2011 adeso e no adeso ..................................................................................................... 89
TABELA 12 Critrios para incluso das famlias em Programas Socioassistenciais .......... 94
-
11
LISTA DE SIGLAS
ABTH Associao Brasileira Terra dos Homens
ABRAPIA Associao Brasileira Multiprofissional de Proteo a Infncia e Adolescncia
APAE Associao de Pais e Amigos dos Excepcionais
CPI Comisso Parlamentar de Inqurito
CRAS Centro de Referncia da Assistncia Social
CREAS Centro de Referncia Especializado da Assistncia Social
ECA Estatuto da Criana e do Adolescente
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
LACRI Laboratrio da Criana, Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo
LOAS Lei Orgnica da Assistncia Social
MDS Ministrio do Desenvolvimento Social
MPAS Ministrio de Previdncia e Assistncia Social
OMS Organizao Mundial de Sade
ONG Organizao no governamental
PAEFI Servio de Proteo e Atendimento Especializado a Famlias e Indivduos
PAF Plano de Atendimento Familiar
PBF Programa Bolsa Famlia
PETI Programa de Enfrentamento do Trabalho Infantil
PNAS Poltica Nacional de Assistncia Social
SAGI Secretaria de Avaliao e Gesto da Informao
SEADE Fundao Sistema Estadual de Anlise de Dados e Estatsticas
SEAS Secretria de Assistncia Social
SGD Sistema de Garantia de Direitos - formado pelas Delegacias, Conselhos
Tutelares, Poder Judicirio, Ministrio Pblico, Defensoria Pblica e Centros
de Defesa
SIPIA Sistema de Informao para Infncia e Adolescncia, da Secretaria de Direitos
Humanos do Governo Federal
SUAS Sistema nico da Assistncia Social
UNICEF Fundo das Naes Unidas para a Infncia
VDCA Violncia Domstica contra Crianas e Adolescentes
-
12
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................ 14
1 FAMLIA: ONTEM, HOJE E SEMPRE? ............................................................ 18
1.1 Famlia: sntese de sua construo histrica .............................................................. 18
1.1.1 Origens e mudanas remotas...................................................................................... 18
1.2 Famlia: Transformaes recentes ............................................................................. 23
1.3 Famlia e Poltica de Assistncia Social: qual o foco ................................................ 29
2 VIOLNCIA DOMSTICA CONTRA CRIANAS E ADOLESCENTES:
UMA REALIDADE SEM RETOQUES .............................................................................. 36
2.1 Modalidades, sintomatologia, caractersticas familiares e consequncias ................. 40
2.1.1 Violncia Sexual ........................................................................................................ 41
2.1.2 Violncia Fsica ......................................................................................................... 43
2.1.3 Violncia Psicolgica ................................................................................................. 46
2.1.4 Violncia Presencial ................................................................................................... 48
2.1.5 Violncia Fatal ........................................................................................................... 49
2.1.6 Negligncia ................................................................................................................ 49
2.2 Violncia Fsica: educa-se atravs da violncia? ....................................................... 51
2.3 Interveno profissional em situaes de VDCA: qual o caminho possvel? ......... 58
3 O ATENDIMENTO QUESTO DA VIOLNCIA DOMSTICA CONTRA
CRIANAS E ADOLESCENTES NO BRASIL ................................................................ 61
3.1 Iniciando o trabalho: primeiras formas de institucionalizao do atendimento
Violncia Domstica contra Crianas e Adolescentes ............................................................ 61
3.2 Vinculao Poltica Nacional de Assistncia Social e ateno gradativa a projetos e
programas de atendimento a VDCA ........................................................................................ 64
3.2.1 CREAS: a casa lugar em que o atendimento VDCA deve acontecer ............... 64
3.2.2 Relaes entre o CREAS e os Programas e Diretrizes Especficos de Atendimento a
Crianas e Adolescentes Vtimas de VDCA: antes do PAEFI ................................................ 68
3.3 O PAEFI: previso de funcionamento e possibilidades de atendimento s situaes de
violao de direitos em todo o territrio nacional ................................................................... 70
3.3.1 Caracterizao geral ................................................................................................... 70
3.3.2 O atendimento especfico a vtimas de VDCA e suas famlias ................................. 72
-
13
3.4 O PAEFI real: conhecendo e analisando o servio desenvolvido pelo CREAS de So
Joo da Boa Vista SP ............................................................................................................ 75
3.5 Respostas da Pesquisa-Base para a Anlise do Trabalho realizado, no mbito da
VDCA, pelo CREAS lcus da pesquisa: estamos alcanando o resultado esperado? ............ 79
3.5.1 Metodologia utilizada ................................................................................................ 79
3.5.2 A pesquisa: achados e anlise .................................................................................... 81
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................... 102
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................. 105
ANEXOS.............................................................................................................................. 110
-
14
INTRODUO
O interesse pelo estudo da problemtica da Violncia Domstica contra Crianas e
Adolescentes surgiu nesta pesquisadora, desde a poca da faculdade, mas cresceu a partir de
2005, quando iniciei minha trajetria profissional, no Programa Sentinela em So Joo da Boa
Vista SP, onde trabalhamos por um ano e seis meses.
Em 2009, com a implantao, no municpio, do Centro de Referncia Especializado da
Assistncia Social, fui a assistente social escolhida para trabalhar nesse equipamento,
tornando-me responsvel pela execuo dos servios socioassistenciais previstos na Proteo
Social Especial de Mdia Complexidade.
Inicialmente, o CREAS atendia a crianas e adolescentes vtimas de abuso e
explorao sexual e suas famlias. Com a implantao do PAEFI, em novembro de 2010,
ampliou-se o atendimento a todos os tipos de VDCA: fsica, sexual, psicolgica e negligncia.
O PAEFI prev o trabalho com as crianas e adolescentes vtimas e suas famlias,
objetivando o rompimento do ciclo da violncia e o fortalecimento de vnculos familiares e
comunitrios, atravs de acompanhamento familiar.
Considerando minha prtica profissional, percebo que o PAEFI trabalha
cotidianamente com situaes de VDCA, ocorridas no presente ou no passado. Crianas e
adolescentes, com sintomas e consequncias de situaes especficas, que envolvem: risco de
revitimizao e morte, questes familiares peculiares e que necessitam de aes efetivas e
eficazes que possibilitem o rompimento do ciclo intergeracional da violncia e a construo
de novos padres de relacionamento familiar, voltados para o fortalecimento de laos e
vnculos, proteo e cuidado entre todos os seus membros. Criamos estratgias e buscamos
aplic-las, avali-las e recri-las a partir da prtica.
As famlias acompanhadas apresentam dificuldades de adeso ao servio e tambm de
seguimento das orientaes tcnicas, pois as situaes de violncia esto fortemente
enraizadas no prprio ncleo familiar. Romper com as mesmas significa desconstruir
dinmicas instaladas e existentes h muitas geraes, significa romper com uma cultura
familiar.
So tantos meninos e meninas vitimizados pela famlia que, muitas vezes, tambm ela
deve ser considerada vtima. So: Marias, Joos, Joss, Evelyns, Marianas, Antnios,
-
15
Nathlias, que se apresentam com seus direitos violados e que no tm sua situao
solucionada, pois as aes direcionadas nem sempre alcanam os resultados esperados.
So quebra-cabeas com partes perdidas que, muitas vezes, no sero encontradas.
Avaliando minha prtica profissional, percebo que o servio PAEFI executado com
diversas limitaes, prejudicando o alcance de suas finalidades.
A equipe interdisciplinar incompleta e reduzida, o que prejudica o acompanhamento
sistemtico das famlias atendidas e a maioria dos tcnicos no tem acesso capacitao
profissional referente problemtica da VDCA, comprometendo o pleno entendimento da
complexidade do fenmeno. Alm das questes referentes a recursos humanos e ao
conhecimento terico dos processos de trabalho, o alto ndice de demanda tambm cria
obstculos eficcia das aes desenvolvidas.
Considero, ainda, a dificuldade das famlias em usufruir do servio oferecido. As que
so encaminhadas, seja pelo SGD, por outros servios pertencentes a outras polticas pblicas
(Sade, Educao, entre outras) e/ou por procura espontnea, muitas vezes, no conseguem
vislumbrar a necessidade do acompanhamento oferecido. At mesmo boicotam todas as aes
direcionadas a elas, no seguindo orientaes, faltando aos atendimentos agendados, no
permitindo visitas domiciliares e at no aderindo ao prprio PAEFI.
A teoria me coloca que a VDCA traz muitas consequncias para a vida de suas vtimas
e que uma das alternativas para romper seu ciclo perverso e estabelecer novos padres de
relacionamento familiar atravs do desenvolvimento de aes interdisciplinares e
intersetoriais, sistemticas e continuadas.
Na prtica profissional, surgem inquietaes que me questionam: o trabalho realizado
pelo PAEFI pode romper o ciclo da violncia nas famlias? A poltica de Assistncia Social
com seus equipamentos suficiente para o atendimento das famlias nas quais existe a
problemtica da VDCA? Quais so as aes direcionadas s famlias em que a VDCA
acontece? E a eficincia e a eficcia?
Considerando esta realidade, delimitei, como objetivo geral, analisar a
operacionalizao do PAEFI no atendimento s famlias nas quais existe a problemtica da
VDCA, no municpio de So Joo da Boa Vista SP.
Para alcanar bons resultados quanto a essa proposta, foram definidos como objetivos
especficos: identificar o papel que a famlia ocupa nos dias atuais dentro da Poltica de
Assistncia Social, atravs de um pequeno resgate histrico; definir a VDCA, apresentando
suas modalidades, sintomatologia, caractersticas familiares e consequncias; analisar a
-
16
estrutura, o processo de trabalho e o produto das aes realizadas pelo PAEFI, em termos de
eficincia e eficcia.
Como universo da pesquisa, tomei o CREAS de So Joo da Boa Vista SP, que
executa o servio PAEFI. Trabalhei com os dados referentes s sessenta e duas famlias, com
vitimizao no mbito da VDCA, atendidas no ano de 2011, identificando as modalidades
notificadas, por sexo e faixa etria das vtimas. Tracei, tambm, o perfil dos autores, por sexo
e modalidade praticada. A anlise do servio prestado foi realizada tanto a partir da
caracterizao da estrutura institucional disponvel e do conhecimento do processo de trabalho
adotado, como da visualizao do produto das aes, frente natureza das demandas. A
ponderao foi feita mediante indicadores estabelecidos de seu grau de resolutividade.
Para apresentar os elementos tericos e empricos essenciais ao desenvolvimento da
anlise e aprofundamento do tema, o texto est dividido em quatro partes bsicas.
No primeiro captulo, destinado aos estudos da famlia, assumo uma perspectiva
histrica, tratando da anlise sobre seu surgimento e estabelecimento ao longo dos tempos at
os dias atuais. Da derivo as questes referentes aos primeiros modelos familiares, forma
como a criana passou a fazer parte da famlia, ao surgimento de modelos tericos e
diferentes concepes atuais sobre a mesma, que so aspectos essenciais, para compreenso
da situao e das possibilidades atuais de trabalho com famlias.
Abordo, paralelamente, as formas como a Poltica de Assistncia Social focaliza a
famlia na atualidade e quais as consequncias da viso, hoje dominante, em relao aos
servios propostos como bsicos para o atendimento da demanda de proteo social pblica
em geral.
No segundo captulo, estudo a VDCA, apresentando, com base na reviso
bibliogrfica disponvel, suas modalidades, sintomatologias apresentadas, caractersticas
familiares e consequncias. Trabalho, ainda, a questo da aceitao da violncia fsica como
forma de educar e a necessidade de interveno profissional para que o ciclo violento seja
rompido.
No terceiro e ltimo, realizo uma retomada histrica do atendimento VDCA no
Brasil, situando o PAEFI, como o servio atualmente previsto pela Poltica Nacional de
Assistncia Social para acompanhamento da demanda pertinente a essa rea, salientando a
necessidade do seu avano para um atendimento realmente especializado. Apresento tambm
um PAEFI real, espao em que trabalho como profissional, valendo-me,
metodologicamente, tanto da anlise de dados coletados especificamente para a pesquisa-base
-
17
de elaborao desta Dissertao, como das observaes realizadas no acompanhamento direto
de sua implantao e contexto.
Enfim, o mais importante metodologicamente dizer de onde falo. A partir da
execuo do PAEFI. De dentro, da linha de frente.
Lido com a dvida e a insegurana profissional, que vem com a ausncia de uma
poltica de capacitao tcnico-operativa: a bsica, a especial e a continuada. E que faz mais
falta quando se opera e se decide num servio novo, integrante de um sistema recente, em
plena construo de seus padres.
Trabalho cotidianamente com famlias que vivenciam os vrios tipos de violncia e
visualizo as carncias existentes nas polticas pblicas que prejudicam o alcance de objetivos
estabelecidos. Tento equilibrar extremos: alto ndice de demanda e necessidade emergente de
acompanhamentos sistemticos. Luto diariamente para reconstruir direitos.
Conheo o que previsto pela normatizao, como ela realmente se estabeleceu na
prtica; sigo suas mudanas e imagino outras, sem muito pessimismo, mas em carter de
urgncia.
Apresento, portanto, neste estudo, os conhecimentos que utilizo para embasar minha
prtica profissional e o resultado da pesquisa realizada, porque acredito que, quanto mais os
profissionais estiverem capacitados, os servios preparados e o SUAS fortalecido, mais
crianas e adolescentes conseguiro viver em lares com formas de relacionamento diferentes
daquelas que permitem sua vitimizao constante.
-
18
1 FAMLIA: ONTEM, HOJE E SEMPRE?
1.1 Famlia: sntese de sua construo histrica
Estamos no sculo XXI, no ano de 2013.
Para aprofundar a compreenso da temtica da famlia, entretanto, necessrio recuar
no tempo. Deparamos-nos com diversas opinies, algumas de tericos, e outras do prprio
senso comum, defendendo a ideia de que a famlia deixou de existir ou, ento que ela, para se
manter, deve sempre buscar o enquadramento em um modelo: o nuclear burgus (formado por
pai, me e filhos), considerado ideal para formao de indivduos saudveis.
1.1.1 Origens e mudanas remotas
Para realizao deste estudo, trabalhamos com autores que realizam um resgate
histrico do surgimento da famlia.
Segundo Therborn (2006), devemos considerar que ela a instituio social mais
antiga e mais disseminada de todas.
Engels (2010) que, em livro publicado em 1884, ocupou-se de seu surgimento e de
sua evoluo, relacionada origem da propriedade privada e do Estado, traz que ela se
organizou a partir de um modelo bastante divergente da famlia nuclear.
At 1860, a histria da famlia era contada a partir da religio, que considerava o
patriarcalismo sua forma de organizao mais antiga. Essa histria tinha influncia romana,
visto que foram eles os inventores da denominao famlia, para definir um grupo de pessoas
em que o homem dominava a mulher, os filhos e os escravos, tendo poder de vida e de morte
sobre todos eles.
A partir de 1861, com o trabalho de autores como Bachofen, Mac Lennan, Lubbock e
Morgan citados por Engels (2010) que se basearam em obras da literatura, em relatos
jurdicos e em pesquisa de tribos indgenas, foi constatado que, primitivamente, o parentesco
era reconhecido somente por linhagem materna, visto que s era possvel reconhecer a
-
19
maternidade, pois as mulheres se relacionavam com parceiros diversos. Existiam trs estados
de relacionamento: a poligamia, a poliandria e a monogamia. Os estados se modificam
medida que o homem aprimora sua relao com a produo material.
Ele relata, ainda, que a famlia se desenvolveu ao longo de trs perodos histricos: 1)
selvagem, em que o homem coletava o que est pronto na natureza para seu sustento); 2)
barbrie, a partir do comeo da prtica da agricultura e da pecuria, com aumento da produo
e do trabalho humano e 3) civilizao, caracterizada pela introduo da escrita, da fundio,
da complexificao do trabalho humano, da indstria e da arte.
Correspondendo a estes trs perodos, desenvolveram-se os modelos familiares:
famlia consangunea: relaciona-se entre si, no ocorrendo incesto entre pais e filhos; famlia
panaluana: irmos no podem mais relacionar-se sexualmente, estabelece-se a relao de
parentesco entre sobrinhos e primos, os matrimnios so realizados por grupos, surgem as
gens, o parentesco continua determinado pela linhagem materna e comeam a surgir as
proibies em relao ao casamento consanguneo, devido ao estabelecimento da ordem
social e religiosa; famlia sindismica: inicia-se o matrimnio por pares, a fidelidade cobra-
da somente da mulher, o parentesco continua determinado pela linhagem materna e j existe a
diviso sexual do trabalho como primeira forma dessa diviso. Com a unio de homens e
mulheres como casais, ressaltada a figura do pai e o surgimento de riquezas pertencentes
famlia.
As mudanas introduzidas pela famlia sindismica possibilitaram o surgimento da
famlia monogmica, que , segundo Engels, caracterstica da civilizao: a mulher e os filhos
passam a ser propriedade do homem, que deve acumular cada vez mais bens e riquezas (fora
de trabalho, meios de produo, escravos etc). A monogamia tem como objetivos o domnio
do homem na famlia e a procriao de filhos cuja paternidade seja indiscutvel, para herdar
os bens e as riquezas adquiridos. Inicia-se um novo perodo, caracterizado pela unio de um
casal com filhos, que passam a ter seu parentesco identificado atravs da linhagem paterna.
Esse modelo de famlia baseia-se no predomnio do homem-pai, dos laos conjugais
fortalecidos e da dedicao total da mulher ao marido, aos filhos, ao lar e aos cuidados com
a famlia. A mulher a responsvel pela casa e o homem pelo cultivo e criao de animais. A
monogamia exige castidade e fidelidade feminina, enquanto o homem no tem a mesma
obrigao. Inicia-se a explorao de um sexo pelo outro, com a justificativa do amor, do
cuidado e da proteo. A monogamia trao fundamental da nova famlia leva superao
de um modelo de organizao familiar primitivo, que tem como fundamento o grupo mais
amplo e torna a famlia um grupo menor e mais restrito.
-
20
A primeira diviso do trabalho a que se fez entre o homem e a mulher para a
procriao dos filhos... O primeiro antagonismo de classes que apareceu na histria
coincide como desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher na
monogamia; e a primeira opresso de classes, com a opresso do sexo feminino pelo
masculino. A monogamia foi um grande progresso histrico, mas, ao mesmo tempo,
iniciou, juntamente com a escravido e as riquezas privadas, aquele perodo, que
dura at nossos dias, no qual cada progresso simultaneamente um retrocesso
relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam s custas da dor e da
represso de outros. a forma celular da sociedade civilizada... (ENGELS, 2011,
p.87)
A monogamia no fruto de amor ou de dedicao familiar, mas sim de condies
econmicas que objetivam a concentrao e a transmisso de riquezas para membros das
mesmas famlias: o homem domina a mulher e a famlia individual vista como unidade
econmica da sociedade (ENGELS, 2011, p. 221). Ela, juntamente com a produo mercantil,
a diviso social do trabalho e as trocas entre os indivduos, vem marcar o pleno
desenvolvimento da civilizao.
Engels (2011) assinala que a evoluo das organizaes familiares acompanhou a
evoluo da economia, que caminhou de uma economia domstica praticada de modo
comunista (propriedade comum fruto de trabalho pessoal e coletivo) para a propriedade
privada dos meios de produo (riquezas distribudas nas mos de poucos).
A presena essencial da monogamia, no modelo detectado por Engels (2011), ser
retomada por Aris (2011) em 1981, em perspectiva terica distante do autor, introduzindo
uma discusso de bastante interesse para este trabalho: o lugar da criana na famlia.
Diz ele que, com o estabelecimento da monogamia como nova forma de
relacionamento familiar, entre os sculos XV e XVIII, inicia-se para a famlia um movimento
de assumir-se como lugar afetivo e modificar suas relaes internas com a criana, processo
esse que ir finalizar-se entre o fim do sculo XVIII e incio do sculo XIX.
O autor escreve, com base na situao da Frana, e afirma que tais mudanas
ocorreram de maneira profunda, embora tenham se instalado lentamente.
At o sculo XV, crianas, a partir de sete anos, eram entregues por seus pais a outras
famlias, pois l aprendiam tudo o que era necessrio para viver. Esse fenmeno era comum a
todas as classes sociais, pois os pais, segundo o autor, acreditavam que seriam mais bem
servidos pelas crianas de outra famlia, que no a sua.
As crianas eram iniciadas nos servios domsticos e tinham como tarefas: arrumar
camas, servir a mesa, acompanhar o mestre, etc. A entrega dos filhos a famlias estranhas era
considerada um estgio, um perodo necessrio para a aprendizagem. Essa aprendizagem,
-
21
adquirida atravs do servio domstico, consistia em conhecimentos, experincias e valores
morais, referentes vida cotidiana e direcionados a todas as crianas, que eram partcipes do
mundo dos adultos.
De modo geral, a transmisso dos conhecimentos de uma gerao a outra era
garantida pela participao familiar das crianas na vida dos adultos... As cenas
cotidianas constantemente reuniam crianas e adultos ocupados em seus ofcios...
Em toda a parte onde se jogava ou brincava, mesmo nas tavernas mal-afamadas, as
crianas se misturavam aos adultos. Dessa maneira elas aprendiam a viver, atravs
do contato de cada dia (ARIS, 2011, p. 230-231).
Dentro da linha de anlise do autor, a famlia, anteriormente ao sculo XV, tinha um
carter social e moral, e no se preocupava com o estabelecimento de vnculos afetivos. Os
filhos que saam para a aprendizagem nem sempre retornavam para a famlia, mas eram
importantes, pois os pais consideravam que estes fariam algo pelo bem comum da sociedade
(ARIS, 2011, p. 231).
A partir do sculo XV, a aprendizagem, atravs do contato cotidiano, passa a ser
substituda pela incluso escolar, como uma tentativa de afastar as crianas do mundo adulto,
com o objetivo de preservar as caractersticas peculiares desta fase de desenvolvimento e
como uma preocupao dos pais, buscando estabelecer contatos mais prximos com seus
filhos. Assim, a famlia aproxima-se e concentra-se em torno da criana, surgindo o
sentimento de famlia e o sentimento da infncia.
No sculo XVII, com a responsabilizao dos pais pela educao e proximidade com
os filhos, inicia-se o estabelecimento de vnculos afetivos entre os membros do grupo
familiar, o que possibilita a organizao dos pais para ter os filhos cada vez mais prximos.
Esse fenmeno comprova uma transformao considervel da famlia: esta se
concentrou na criana, e sua vida confundiu-se com as relaes cada vez mais
sentimentais dos pais e dos filhos. No ser surpresa para ns descobrir que esse
fenmeno situa-se no mesmo perodo em que vimos emergir e desenvolver uma
iconografia da famlia em torno do casal e das crianas (ARIS, 2011, p. 233).
Cabe ressaltar que a escolarizao no atingiu imediatamente a todas as famlias, cujas
crianas continuaram a ser educadas segundo a antiga prtica da aprendizagem. A maioria das
meninas era educada em casa e os meninos, se fossem de classe mdia, iam para escola; se
fossem da nobreza ou artesos, eram educados conforme as antigas prticas de aprendizagem.
At meados do sculo XVIII, a escola cresceu e alcanou a credibilidade necessria
para que a maioria das crianas fosse includa. Esse fato marca o estabelecimento da
-
22
civilizao moderna, de base escolar, que se institui e se consolida a partir da escolarizao
dos indivduos.
As mudanas vislumbradas na famlia trazem novos desafios, entre eles, a questo da
predileo pelo filho mais velho ou pelo escolhido, objetivando a transmisso e preservao
do patrimnio familiar. Essa situao perdurou at o final do sculo XVIII, quando por conta
da instaurao de um novo cdigo civil e de uma mudana nos padres morais da sociedade,
estabeleceram-se direitos iguais entre todos os filhos.
Outro fato importante na sinalizao da vinculao afetiva dos pais para com os filhos,
foi a passagem dos bebs para a residncia dos pais. Os recm-nascidos eram entregues,
primeiramente, para cuidados de amas de leite, a fim de serem amamentados. Esta entrega
ocasionava alto ndice de mortalidade infantil, pois a higiene e os cuidados dispensados aos
bebs eram bastante precarizados. Em meados do sculo XVIII, os bebs continuavam sendo
amamentados pelas amas, mas permaneciam residindo com seus familiares, o que sinalizava
mudanas na qualidade dos vnculos (ARIS, 2011).
Com a difuso da medicina, nas ltimas dcadas do sculo XVIII, surgiu a
preocupao dos mdicos pelos cuidados com a primeira infncia, devido ao alto ndice de
mortes. A partir da, publicaes, guias e dicionrios sobre como cuidar dos bebs, continham
orientaes, inclusive, relacionadas higiene, objetivando orientar as famlias. A doutrina
mdica e os conselhos educativos possibilitaram a alimentao dos bebs por leite animal, o
que permitiu a vigncia dos cuidados familiares, ocasionando o trmino da prtica das amas
de leite (DONZELOT, 1980).
A famlia tambm se modifica no sentido de que, primeiramente, as relaes
estabelecidas na casa eram todas pblicas, sem nenhuma intimidade para os membros do
grupo familiar. No existia separao entre a vida profissional, privada e social. Tudo
acontecia no coletivo, na vida em sociedade: vivia-se em salas, lugar em que tudo se
realizava.
No sculo XVIII, a famlia comeou a se separar da sociedade e a limitar a casa como
um espao de vida particular, passando a ter os cmodos diferenciados (quarto, sala, cozinha,
banheiro etc.) e possibilitando o surgimento da intimidade, da discrio e o estabelecimento
do isolamento do grupo familiar.
No sculo XVIII, processa-se a separao entre famlia e sociedade (entre pblico e
privado) enfatizando-se a intimidade familiar, que tem suas marcas inclusive na
arquitetura da casa, que passa a ter cmodos com separaes para assegurar a
privacidade dos indivduos na prpria famlia. Essa apontada como uma das
maiores mudanas na vida cotidiana da famlia (GUEIROS, 2002, p. 206).
-
23
1.2 Famlia: Transformaes recentes
As modificaes que possibilitaram o surgimento da famlia moderna, a partir da
medieval e da predominante no sculo XVII, no atingiram todas as camadas sociais
concomitantemente. Foi um processo lento e gradual, que alcanou universalidade somente
em meados do sculo XIX.
As revolues polticas, sociais e econmicas, ocorridas a partir do sculo XVIII,
possibilitaram a industrializao, o surgimento do Estado e a consolidao da burguesia.
Essas transformaes ocasionam o xodo rural na direo das cidades, com mudanas
de parte da populao para a cidade para trabalharem nas fbricas, modificando, assim, a
forma de viver de toda sociedade.
A famlia que, primeiramente, vivia em agrupamentos, passa a tornar-se cada vez mais
intimista, vivendo agora em pequenos grupos. Surge, assim, no sculo XIX, a famlia nuclear
burguesa, formada por pai, me e filhos: o modelo ideal. Viver com poucos membros
possibilitava maior mobilidade, o que era prioritrio no sistema industrial.
Segundo Gueiros (2002), na segunda metade do sculo XIX, a modernizao e o
movimento feminista possibilitaram novas mudanas na famlia: o casamento por escolha dos
parceiros, com base no amor romntico, com separao entre sexo e amor; questiona-se o
patriarcalismo e modificam-se os papis do homem e da mulher no casamento.
Apontando no mesmo sentido, Parsons (1980), na dcada de 1950, analisando a
sociedade dos EUA, identifica uma famlia constituda por poucos membros e com relaes
mais distantes da famlia extensa, apresentando um processo de mudanas profundas: grande
proporo de divrcios, mudanas na antiga moralidade e diminuio das taxas de natalidade.
O autor coloca que nas sociedades primitivas havia grande influncia e participao dos
membros da famlia extensa no grupo familiar e que, atualmente, o Estado, as igrejas, as
empresas, as universidades e as associaes profissionais, tm exercido esta influncia.
Parsons (1980) relata que uma grande variedade de funes exercidas pela famlia
foram transferidas para outras estruturas da sociedade, o que a transforma em uma agncia
especializada. Isto representa um declnio de algumas caractersticas que tradicionalmente
eram associadas s famlias e o surgimento de um novo tipo de estrutura familiar associado a
uma estrutura social geral, onde a sociedade depende dessa famlia exclusiva para
realizao de funes vitais.
-
24
No modelo apresentado por Parsons (1980), a famlia uma unidade solidria e a
forma como estabelece seus vnculos, influenciada pelo sistema ocupacional. As
necessidades antes eram satisfeitas no grupo familiar, agora acontecem em outros canais,
inclusive no mercado. O homem o nico membro que participa do sistema produtivo, que
possui um papel ocupacional, acessando funes geradoras de posio e de renda para a
famlia. A mulher possui funes no ambiente domstico como esposa, me e administradora
da casa.
O referido autor conceitua a famlia e seu funcionamento, a partir de uma conexo
interrelacional, tendo esta como funes bsicas: a socializao primria dos filhos e a
estabilizao das personalidades adultas de ambos os sexos.
Parsons (1980) apresenta uma famlia especializada a servio do capital, com
insero social rasa, com funes pr-determinadas para homens e mulheres e como um
modelo ideal a ser seguido. Ele reapresenta a famlia nuclear burguesa, como um modelo
encontrado nos EUA, buscando generaliz-lo e normaliz-lo para os pases do Ocidente
capitalista, no considerando outros arranjos familiares j existentes como outras
possibilidades de convivncia em famlia.
Therborn (2006) coloca que, no sculo XX, a famlia apresentou mudanas em todo o
mundo: a eroso do patriarcado, a instalao mundial do controle da natalidade, o declnio
natural de algumas populaes, o sexo e o casamento com novos modelos, influenciados
pela revoluo sexual e pela parceria informal.
O patriarcado, segundo Therborn (2006), tem uma histria de declnio no sculo XX,
influenciado por diversos fenmenos ocorridos em todo o mundo, entre eles, o avano da
tecnologia. A Declarao dos Direitos Humanos (1968) vem selar esse declnio, pois coloca
fim aos poderes e privilgios especiais de pais e maridos, atravs da proclamao da
igualdade de gnero, que ocasiona rupturas em todas as partes do planeta.
O casamento apresentou momentos de crescimento e outros, de declnio. Esse
fenmeno foi, primeiramente, estimulado pela industrializao e pelo desenvolvimento
econmico, que ocorreu em todo o mundo. Com as crises econmicas, ele apresentou
momentos de declnio, chegando novamente a um alto patamar em alguns continentes do
globo, aps a nova estabilizao do modelo econmico vigente.
A fecundidade tambm no aconteceu de forma estvel: declinou em ondas
internacionais, influenciada tambm pelas crises econmicas e apresentou momentos de
crescimento, aps a estabilidade da economia.
-
25
Therborn (2006), comparando as 03 (trs) variveis tratadas aqui, encontra aspectos
comuns: mudanas padronizadas pelo sistema familiar, ocorridas em tempos desiguais e no
sincronizadas em ondas sistemticas ocorridas em todo o globo. Concluindo que as mudanas
familiares no sculo XX no foram evolucionrias nem unilineares.
Consideramos que o que diferencia a famlia que vivenciamos hoje a no
existncia de um modelo ideal, como foi anteriormente, a famlia nuclear burguesa.
Embora a famlia continue sendo objeto de profundas idealizaes, a realidade das
mudanas em curso abalam de tal maneira o modelo idealizado que se torna difcil
sustentar a idia de um modelo adequando. No se sabe mais, de antemo, o que
adequado ou inadequado relativamente famlia...Enfim, a famlia contempornea
comporta uma enorme elasticidade (SARTI, 2005, p. 25).
Como resultado de diversas mudanas, convivemos, na atualidade, com uma
multiplicidade de formas de convvio em grupo, envolvendo diversos membros, que se unem
por laos de consanguinidade, de afeto, de convivncia ou, at mesmo, de obrigaes mtuas,
e esta unio considerada famlia.
A famlia pode ser pensada como um grupo de pessoas que so unidas por laos de
consanguinidade, de aliana e de afinidade. Esses laos so constitudos por
representaes prticas e relaes que implicam obrigaes mtuas. Por sua vez,
estas obrigaes so organizadas de acordo com a faixa etria, as relaes de
gerao e de gnero, que definem o status da pessoa dentro do sistema de relaes
familiares (BRASIL, 2006, p. 24).
A famlia hoje aceita formar-se, reformar-se e reorganizar-se novamente, se esta
situao for necessria. Trata-se de uma construo histrica, que muda ao longo do tempo,
influenciada por questes sociais, econmicas, polticas, tecnolgicas, jurdicas e culturais, e
que no precisa seguir necessariamente um modelo. Surge uma enorme diversidade de
arranjos familiares, gerando famlias sem modelos, nem tradicionalismos. Este rompimento
com o modelo nuclear no significa o fim da famlia, mas que, mesmo com modificaes, ela
continua ocupando um lugar de destaque, visto que o lcus potencialmente produtor de
sociabilidades, de ligaes afetivas, de relaes de cuidado e de vivncias cotidianas.
Entendemos por famlia a clula do organismo social que fundamenta uma
sociedade. Locus nascendi das histrias pessoais, a instncia predominantemente
responsvel pela sobrevivncia de seus componentes; lugar de pertencimento, de
questionamentos; instituio responsvel pela socializao, pela introjeo de
valores e pela formao de identidade; espao privado que se relaciona com o
espao pblico (LOSACCO, 2005, p. 64-65).
-
26
Convivemos com famlias que so diferentes, so dinmicas, no seguem modelos
prconcebidos e exercem suas funes de cuidado e socializao, independente de seu arranjo
ou de seu formato. Elas possuem seus significados, suas crenas, seus mitos, suas regras, seus
valores, suas obrigaes, seus limites, seus direitos e seus papis e continuam existindo,
dentro de suas particularidades e de sua universalidade.
Considerando que a famlia se modifica e se influencia por aspectos socioculturais,
econmicos e histricos, sabemos que, desde o seu surgimento, ela apresentou modificaes
em sua organizao, em seu funcionamento, na diviso de papis, nas relaes de gnero, no
lugar que os filhos ocupam e nas formas de vinculao entre seus membros.
Quanto ao Brasil, nas Constituies Federais, temos que a famlia, o Estado e a
sociedade so os responsveis pelo cuidado e bem estar de seus membros. A Constituio
Federal de 1988 mantm esta focalizao, reforando que a famlia, considerada base da
sociedade, deve ter proteo social do Estado. A lei a define como a comunidade formada
pelos pais ou um deles e seus descendentes, sem necessidade de casamento e, ainda, considera
o homem e a mulher com os mesmos direitos e deveres e todos os filhos iguais, sendo eles
biolgicos ou adotivos, conforme art. 5 e 226 a 230 da citada Constituio (BRASIL,
1988).
Fonseca (2004), comentando as dificuldades culturais relacionadas acelerada
transio da famlia, especialmente a partir dos anos da dcada de 1960, afirma que as pessoas
cujas famlias se diferenciavam do modelo tido como ideal, eram vitimizadas atravs de
julgamentos morais, que as consideravam ineficazes por serem diferentes, no limite,
incompetentes. Tal modelo era considerado inerente raa humana e necessrio para o
desenvolvimento sadio de toda e qualquer pessoa.
Atualmente, observa-se, em certos setores da sociedade, o discurso da famlia como
algo que se encontra em grande desordem, pois passou por mudanas que a levaram
fragmentao em diversos arranjos familiares, diferentes do modelo anteriormente
considerado ideal: a famlia nuclear burguesa. Cabe, entretanto, considerar que os referidos
arranjos familiares devem ser respeitados e reconhecidos como potencialmente capazes de
cuidar, proteger e socializar seus membros, pois a famlia capaz de cumprir suas funes
independentemente da forma como se organiza.
Alm da diversidade de arranjos familiares, as transformaes societrias
influenciaram outras mudanas nos ncleos familiares como: casamentos embasados na
escolha mtua dos parceiros, separao entre sexualidade e reproduo, novas tecnologias
reprodutivas, presena cada vez mais forte da mulher no mercado de trabalho, unio entre
-
27
pessoas do mesmo sexo, famlias monoparentais, adoo por homossexuais e constantes
rompimentos de laos conjugais.
A famlia est em constante transformao e evoluo a partir da relao recproca
de influncias e trocas que estabelece com o contexto. As mudanas nas
configuraes familiares esto diretamente relacionadas ao avano cientfico e
tecnolgico bem como s alteraes vividas no contexto poltico, jurdico,
econmico, cultural e social no qual a famlia est inserida (BRASIL, 2006, p. 29).
Tais mudanas no ocorreram de forma linear, igualitria, massiva e homognea, em
todos os espaos do planeta, por isso no podemos deixar de considerar a historicidade, a
temporalidade e a cultura, como componentes essenciais. Consideramos que a famlia uma
construo social, histrica e cultural, e tais aspectos influenciam em sua diversidade, criando
muitas variaes decorrentes da cultura, da religio, das classes sociais, dos valores, das
normas, da economia e das condies de vida (sociais, emocionais, econmicas, territoriais
etc).
Na verdade, famlia uma construo scio-cultural que se transforma, agregando
elementos novos, que se libera de outros e que altera no tempo e no espao os seus
modelos e atitudes, fatores que contribuem para o que se chama de definies de
famlia (TERRA DOS HOMENS, 2002, p. 06).
Podemos perceber que a famlia, na contemporaneidade, vem se libertando de
tradies histricas e culturais, como o modelo nuclear e est se desenvolvendo de maneira
mais espontnea, tendo, como marca disto, a diversidade na composio dos grupos
familiares.
A famlia, hoje, possui uma gama inesgotvel de variaes e defini-la pode levar ao
erro de excluir outras formas de organizao familiar existentes. Famlia hoje diversidade,
so famlias.
A famlia o espao indispensvel para a garantia da sobrevivncia e da proteo
integral dos filhos e demais membros, independentemente do arranjo familiar ou da
forma como vem se estruturando. a famlia que propicia os aportes afetivos e,
sobretudo, materiais necessrios ao desenvolvimento e bem estar dos seus
componentes. Ela desempenha um papel decisivo na educao formal e informal,
onde se aprofundam os laos de solidariedade. tambm em seu interior que se
constroem as marcas entre as geraes e so observados valores culturais (GOMES
e PEREIRA, 2005, p. 32).
A famlia, independente de sua forma de organizao, nica para cada indivduo. Ela
importante para o desenvolvimento da identidade do ser social, visto que considerada a
-
28
matriz do processo civilizatrio. a influncia mais poderosa para o desenvolvimento da
personalidade e do carter das pessoas (SZYMANSKI, 2000).
A partir da convivncia cotidiana, a famlia estabelece seus vnculos e compartilha um
modo de vida. A aceitao dentro do grupo familiar se faz importante para que seus membros,
depois, possam pertencer a outros grupos.
As mudanas j identificadas e apontadas por Therborn (2006), em termos mundiais,
para a famlia contempornea, vm, entretanto, ocorrendo tambm no Brasil. Segundo dados
do Censo 2000, sua estrutura e composio esto se diferenciando: o pas apresenta
crescimento no nmero de divrcios, diminuio dos ndices de casamentos formais, reduo
do nmero de filhos que passam a ser gerados a partir do desejo de t-los, aumento das
famlias monoparentais e, tambm, dos conflitos intergeracionais.
Do ponto de vista que interessa a este trabalho, indispensvel ressaltar que, apesar
dessas transformaes, no Brasil, a famlia continua mantendo sua forte responsabilidade de
cuidado, de proteo e de socializao de seus membros.
Podemos dizer que, na realidade, a famlia vem sendo pressionada a aumentar sua
ateno a essa tarefa, pois o Estado financia hoje apenas o que mais necessrio, deixando de
disponibilizar recursos para implantao e funcionamento de servios de cobertura universal
na resposta s demandas da populao. Servios e benefcios passam a ser focalizados e
privatizados, tornando-se responsabilidade da sociedade civil.
A partir do aumento da influncia da poltica neoliberal, nos anos de 1990, a
desresponsabilizao do Estado, nesse sentido, foi crescente.
Na outra ponta, acentuou-se a cultura da responsabilizao dos indivduos e famlias
por seu prprio bem-estar, proposta que se torna, entretanto, cada vez mais invivel com o
impacto da competitividade capitalista sobre a sociabilidade geral. No mbito pblico e
privado, incluindo as prprias organizaes familiares, o individualismo se instaura de forma
a corroer os vnculos e a solidariedade do cuidado, enfatizando a independncia e a realizao
individual.
Neste quadro de transformaes societrias na contemporaneidade, a anlise do
desenvolvimento das polticas pblicas e, particularmente, do lugar mutante que a famlia
vem ocupando nelas, so tratadas a seguir para permitir a compreenso do impacto das
relaes assim travadas na rea da VDCA, objeto do texto.
-
29
1.3 Famlia e Poltica de Assistncia Social : qual o foco?
As polticas pblicas, a partir dos anos 1990, tm declarado adotar como foco o
fortalecimento da famlia, descobrindo e desenvolvendo potencialidades individuais e
coletivas, com o objetivo de que ela se responsabilize pelo que o Estado vem se
desresponsabilizando (MIOTO et al, 2007).
A famlia contempornea continua mantendo sua responsabilidade de cuidado, de
proteo e de socializao de seus membros, mas, no Brasil, segundo dados do Censo 2000,
vem se diferenciando: apresenta crescimento no nmero de divrcios, diminuio dos ndices
de casamentos formais, reduo do nmero de filhos que passam a ser gerados a partir do
desejo de t-los, aumento das famlias monoparentais e, tambm, dos conflitos
intergeracionais. Mudanas apontadas, tambm, por Therborn (2006), identificadas em todo o
globo terrestre.
Segundo Campos (2012), dados recentes do Brasil (IBGE, CENSO-2010, in O
ESTADO DE SO PAULO), confirmam o levantado no ano 2000: 55% dos domiclios
compostos por casal com filhos, embora seja esta uma taxa em declnio, pois a cifra de 2000
foi de 63%. Cresceram, verdade, situaes que, no mdio e longo prazo, faro
provavelmente erodir essa taxa de casais com filhos por domiclio: a unio consensual (sem
formalizao religiosa ou civil) cresceu de 28.6% do total em 2000, para 36,4%,
majoritariamente declarada por pessoas sem religio e disseminando-se mais pelo territrio,
sem vincular-se, como anteriormente, a estratos mais pobres. A queda de casados no civil e no
religioso caiu de 49,4% a 42,9%. A mudana no nmero de divorciados no ano foi de 1,7% a
3.1% em 2010.
Em termos de agrupamentos por domiclio, registram-se, nos vinculados por
parentesco, 16,3% dos casais com filhos, habitando com enteados, conformao que o IBGE
denomina famlias reconstitudas 1.
Trabalhando na contagem da populao por domiclios, o Instituto registra 15,4%
deles (8,3 milhes de famlias2) com mais de um ncleo e abrigando agregados, que ele
1 a primeira vez que o IBGE faz a contagem desagregada de enteados.
2 O Relatrio trabalha com a ideia de famlias secundrias, que vivem como agregadas de uma famlia
principal. O arranjo em parte devido falta de renda, pois 1/5 das secundrias no a tm e tambm por certas
situaes como as das filhas-mulheres com referncia famlia principal, solteiras ou separadas, com filhos;
tambm por vontade prpria. O fato est sendo considerado sinal do grande dficit habitacional, em estudo
pelo Ministrio das Cidades. Note-se a nomenclatura dada a esses agrupamentos como famlias.
-
30
chama de famlias conviventes (distribudas dentro do pas, com vantagem na Regio Norte,
seguida da Nordeste). Dado em ascenso em relao a 2000, quando era de 13,9%.
Os resultados sobre a taxa de fecundidade so bastante eloquentes. Enquanto a mdia
nacional, de 1,86 filhos por mulher, projetada em 2011, est abaixo da taxa de reposio da
populao, e indica, se mantida ou ultrapassada, a queda de crescimento geral a partir de
2030, os valores por faixas de renda apresentam muita variao: entre as mulheres em
famlias com renda per capita de at do salrio mnimo, tm 3,9 filhos em mdia. Em
relao instruo e renda da me, aquelas consideradas pobres e sem estudo, detm taxas
muito acima dos 2,1 calculados como necessrios reposio: so podemos dizer - celeiro
do crescimento vegetativo do pas. No grupo das mulheres com curso superior, a mdia de
filhos mais baixa: 1,14. Elas tambm tm filhos mais tarde, entre os 30 e 34 anos, contra os
20 a 24 das mais pobres e com menor escolaridade. No so as que sustentaro a queda
populacional.
Constatamos, tambm, a influncia da poltica neoliberal, que provoca mudanas nas
organizaes familiares, tanto em seu mbito privado, quanto pblico: os membros do grupo
familiar esto individualistas, buscando sua realizao pessoal independente da relao
vincular estabelecida; e o Estado, que tem a responsabilidade pela proteo social das
famlias, vem se desresponsabilizando e responsabilizando os indivduos e famlias por seu
prprio bem estar.
O Estado, hoje, financia apenas o que mais necessrio, descuidando-se dos servios
universais que passam a ser focalizados, privatizados e de responsabilidade da sociedade civil.
Neste quadro de transformaes societrias na contemporaneidade, vivemos um
momento de ausncia de polticas de proteo social populao, principalmente
direcionadas s camadas sociais de baixa renda, como resultado do retraimento do Estado, que
cria alternativas privatistas para solucionar a questo (GUEIROS, 2002).
Para que a famlia seja responsvel pela proteo social de seus membros,
indispensvel que ela possa ser amparada e tenha garantia de suporte para cumprir com as
funes que lhe so delegadas. necessrio que ela possa contar com polticas pblicas
suficientes que a auxiliem a ser protetiva, cuidadora e socializadora. As famlias precisam ser
cuidadas para poderem cuidar:
essencial mostrar que a capacidade da famlia para desempenhar plenamente suas
responsabilidades e funes fortemente interligada ao seu acesso aos direitos
universais de sade, educao e demais direitos sociais. Assim, uma famlia que
conta com orientao e assistncia para o acompanhamento de seus filhos, bem
como acesso a servios de qualidade nas reas da sade, da educao e da
-
31
assistncia social, tambm encontrar condies propcias para bem desempenhar as
suas funes afetivas e socializadora, bem como para compreender e superar suas
possveis vulnerabilidades (BRASIL, 2006, p. 27).
Percebemos, atualmente, que a complementariedade famlia Estado, cada vez mais
tnue e que as famlias vm sendo sobrecarregadas, pois no existem servios suficientes
oferecidos pelas polticas pblicas para auxili-las no cumprimento de seu papel social e
legal, de cuidado de todos os seus membros, independente do ciclo de vida.
Nesta anlise, a poltica de assistncia social brasileira oferecida pelo Estado, desde o
seu surgimento e ao longo do sculo XX, sempre teve um carter imediatista e sem recursos
financeiros suficientes. Sua histria marcada por aes fragmentadas, que possuem alvos
especficos e carter meramente assistencialista. Eram prticas eventuais, pontuais,
emergenciais e sem continuidade, marcadas pelo carter pontual e de favor.
apenas com a Constituio de 1988, que a Sade, a Educao desde a pr-escola e a
Assistncia Social, adquirem mais claramente carter de direito; nos dois primeiros citados,
universal. A Assistncia Social passa a integrar a Seguridade Social como poltica pblica,
junto Sade e Previdncia Social, compondo o sistema de proteo social brasileiro e
tornando-se poltica social no contributiva, um direito a quem dela necessitar (TEIXEIRA,
2009).
Em 1990, foi institudo o ECA, que garante criana e ao adolescente, em vrios
artigos, o acesso s polticas sociais. Em 1993, foi aprovada a LOAS, que prev a
universalizao dos direitos sociais, de forma descentralizada e participativa, a fim de garantir
a autonomia das esferas do governo, afirmando tambm a responsabilizao do Estado com a
proteo social s famlias, no sentido da garantia do atendimento s suas necessidades
bsicas. A LOAS vem fortalecer a incluso da Assistncia Social no campo dos direitos,
como poltica pblica de responsabilidade estatal (COUTO, YASBEK e SILVA E SILVA,
2010).
No Brasil, a partir da Constituio Federal e da Lei Orgnica de Assistncia Social
(LOAS), a Poltica de Assistncia Social passou a ser concebida como poltica
pblica inserida no mbito da seguridade social. Nestas bases, ela passou a ser
compreendida como direito do cidado e dever do Estado e representou um avano
significativo na construo de direitos coletivos e da proteo social, principalmente
para a grande maioria das famlias que no tem condies de garantir as condies
mnimas de sobrevivncia sem a interveno do Estado. No entanto, como poltica
social, deve ser compreendida como uma unidade complexa e contraditria, que
expressa tanto os interesses das lutas dos movimentos sociais por direitos quanto as
necessidades do desenvolvimento do capital (MIOTO, SILVA e SILVA, 2007, p.
05).
-
32
Cabe ressaltar que a famlia sempre esteve presente no cenrio das polticas sociais. Os
governos brasileiros, conforme cita PEREIRA (2010), sempre se beneficiaram da
participao autonomizada e voluntarista da famlia na proviso do bem-estar de seus
membros e, conforme o iderio neoliberal que vem regendo nossa economia, a sociedade e a
famlia devem partilhar, com o Estado, responsabilidades que antes pertenciam ao poder
pblico. De acordo com as referidas orientaes, o que vm mudando so as exigncias
relacionadas famlia, que passa a ser responsvel pelo cuidado e proteo de seus membros.
Esta mesma famlia vem passando por diversas modificaes, ao longo dos anos, e necessita
de cuidados mltiplos, para poder cuidar. Para a famlia prevenir, proteger, promover e
incluir seus membros necessrio em primeiro lugar, garantir condies de sustentabilidade
para tal. (TEIXEIRA, 2009, p. 259).
A responsabilizao do Estado pela assistncia e proteo famlia, prevista na
Constituio Federal e fortalecida no Estatuto da Criana e do Adolescente e na LOAS, ocorre
contando com a participao da prpria famlia em sua proteo. Com isso, o Estado se retrai
e a garantia de direitos sociais, atravs de polticas pblicas universais, fica comprometida. As
polticas pblicas passam a ser focalizadas em quem mais necessita e o mercado torna-se o
responsvel pela proviso de bem-estar (MIOTO, 2010).
A Poltica de Assistncia Social se prope a trabalhar com famlias em um foco
diferenciado, utilizando-as como pblico privilegiado e parceiro da poltica, a partir de
1999, com a 1. Verso da PNAS, embora consideremos que a assistncia social sempre
contou com a famlia para desenvolver suas aes.
Considerando a conjuntura apresentada, aps 10 anos de promulgao da LOAS, na
IV Conferncia Nacional de Assistncia Social (Braslia DF, 2003), foi apontada como
deciso principal, a construo e implementao de um sistema nico e descentralizado da
assistncia social, o SUAS, requisito essencial para dar efetividade assistncia social como
poltica pblica e materializar suas diretrizes.
A assistncia social como poltica pblica de direitos de cidadania e dever do
Estado, (...) implica possibilidade de ampliar o alcance da cidadania e da proteo
social, para uma lgica contrria contributiva, e cidadania regulada, pela
incluso pelo critrio de cidadania, pelo direito vida, proteo social,
independente de contribuio, embora mantenha o critrio de necessidade . Todavia,
a implementao das mudanas legalmente regulamentadas percorre uma trajetria
de desafios, dificuldades e riscos de conservadorismos, mas tambm se podem
apontar muitos avanos ou tentativas de superar a tradio histrica da rea
(TEIXEIRA, 2009, p. 256).
-
33
Com o objetivo de construir o redesenho da poltica de assistncia social na
perspectiva do SUAS, foi reelaborada, em 2004, a PNAS, com contribuies do poder
pblico e da sociedade civil. Ela busca a materializao do que est previsto na LOAS e na
Constituio Federal de 1988: a assistncia social como poltica pblica, inserida no campo da
Seguridade Social e do Sistema de Proteo Social Brasileiro.
A PNAS-2004 vai explicitar e tornar claras as diretrizes para efetivao da
Assistncia Social como direito de cidadania e responsabilidade do Estado, apoiada
em um modelo de gesto compartilhada pautada no pacto federativo, no qual so
detalhadas as atribuies e competncias dos trs nveis de governo na proviso de
atenes socioassistenciais, em consonncia com o preconizado na LOAS e nas
Normas Operacionais (NOBs) (COUTO, YASBEK e RAICHELIS, 2010, p. 38).
A PNAS coloca a necessidade de articulao da assistncia social com outras polticas
pblicas, para enfrentamento das questes sociais e tem como objetivos:
Prover servios, programas, projetos e benefcios de proteo social bsica e ou
especial para famlias, indivduos e grupos que dela necessitem; contribuir com a
incluso e a equidade dos usurios e grupos especficos, ampliando o acesso aos
bens e servios scioassistenciais bsicos e especiais, em reas urbana e rural, e;
assegurar que as aes no mbito da Assistncia Social tenham centralidade na
famlia, e que garantam a convivncia familiar e comunitria (BRASIL, PNAS,
2004).
A referida poltica hierarquiza as protees sociais a serem oferecidas em: bsica e
especial. A proteo social bsica tem como objetivos prevenir situaes de risco, por meio
do desenvolvimento de potencialidades, aquisies e fortalecimento de vnculos familiares e
comunitrios. A proteo social especial ir trabalhar com indivduos e grupos que se
encontram em situao de alta vulnerabilidade pessoal e social, decorrentes do abandono,
privao, perda de vnculos, explorao, violncia, entre outras. (COUTO, YASBEK e
RAICHELIS, 2010, p. 43).
Ela est dividida em mdia complexidade (famlias e indivduos com seus direitos
violados, mas cujos vnculos familiar e comunitrio no foram rompidos) e alta complexidade
(famlias e indivduos com vnculos rompidos).
prevista, na PNAS, a criao de unidades pblicas estatais especficas para
atendimento s famlias: os CRAS, onde so desenvolvidas as aes referentes proteo
social bsica e os CREAS, que prestam ateno proteo social especial de mdia
complexidade.
-
34
Aps a aprovao da PNAS, em 2004, seguiu o processo de construo e
regulamentao do SUAS, em 2005.
A implantao do SUAS vem reafirmar o que j est proposto na LOAS: um sistema
descentralizado e participativo, com a primazia do papel do Estado como principal agente
construtor e implementador das bases operacionais necessrias realizao dos servios
socioassistenciais.
O referido sistema considera a precedncia da gesto pblica da poltica e tem como
eixos: o alcance de direitos socioassistenciais pelos usurios; a matricialidade sociofamiliar; a
territorializao; a descentralizao poltico-administrativa; o financiamento partilhado entre
os entes federados; o fortalecimento da relao democrtica entre Estado e sociedade civil; a
valorizao e o compromisso com a presena do controle social; a participao
popular/cidado usurio; a qualificao de recursos humanos; a informao, o monitoramento,
a avaliao e a sistematizao de resultados.
O SUAS est voltado articulao em todo o territrio nacional das
responsabilidades, vnculos e hierarquia, do sistema de servios, benefcios e aes
de assistncia social, de carter permanente ou eventual, executados e providos por
pessoas jurdicas de direito pblico sob o critrio de universalidade e de ao em
rede hierarquizada e em articulao com iniciativas da sociedade civil (COUTO et
al., 2010, p. 38).
O SUAS regula e organiza os elementos essenciais da PNAS, implantando servios
voltados para o fortalecimento das famlias, com o propsito de proteg-las e apoi-las, mais
uma vez usando-as como instrumento de proteo social.
O SUAS prope aes na Poltica de Assistncia Social, que se aproximem do
cotidiano das famlias; conheam as realidades e os riscos a que esto expostas e desvendem
as possibilidades/limites no embate com as expresses da questo social.
A proposta dos servios sugeridos pelo Sistema nico que trabalhem com as
famlias, como sujeitos de direito, reconhecendo as diferenas, respeitando as diversidades,
superando preconceitos, conhecendo a realidade social, desmistificando a ideologia de famlia
como ncleo natural e padronizado, entendendo fragilidades e reconhecendo sua luta pela
sobrevivncia, objetivando superar as aes fragmentadas, segmentadas e setorizadas.
Segundo Campos e Mioto (2005), em nosso pas, h uma forte tendncia familista
nas polticas sociais e o SUAS partilha desta perspectiva: temos, na famlia e no mercado, as
duas maneiras de satisfazer s necessidades dos indivduos. O Estado deve interferir,
temporariamente, quando a famlia e/ou o mercado no cumprem seu papel.
http://portal.controlesocialdesarandi.com.br/2011/08/reveja-quais-sao-os-eixos-estruturantes-do-suas-e-os-seus-principios-organizativos/##http://portal.controlesocialdesarandi.com.br/2011/08/reveja-quais-sao-os-eixos-estruturantes-do-suas-e-os-seus-principios-organizativos/##http://portal.controlesocialdesarandi.com.br/2011/08/reveja-quais-sao-os-eixos-estruturantes-do-suas-e-os-seus-principios-organizativos/##
-
35
Ressaltamos, ainda, que o SUAS mescla essa tendncia familista com outra vigente na
atualidade: a tendncia protetiva que afirma que a famlia tem condies de cuidar e proteger
desde que tenha sua proteo assegurada atravs das polticas pblicas. Assim, trabalhamos
com uma nova proposta, um novo modelo de assistncia social fundado no mix
pblico/privado na proviso social (TEIXEIRA, 2009, p. 256). E:
As famlias sofrem as repercusses das contradies da sociedade capitalista e as
imposies do neoliberalismo s polticas pblicas estatais. O processo de
concentrao de renda, o aumento da pobreza e o acirramento das desigualdades
sociais aumentaram a situao de vulnerabilidade das famlias, o que exige
estratgias mais complexas entre seus membros para garantir a satisfao de suas
necessidades bsicas mais urgentes para a sua sobrevivncia. Essa situao no
permite que as famlias se reproduzam e se protejam com dignidade. Portanto, a
capacidade de cuidado e de proteo dos grupos familiares com os seus membros,
depende diretamente, da proteo que eles receberam ou no do Estado, mas
tambm dos valores culturais e princpios ticos que os norteiam (MIOTO, SILVA e
SILVA, 2007, p. 07).
Constatamos que o novo sistema, que est sendo implementado na poltica de
assistncia social, objetiva implantar servios que protejam a famlia e a auxiliem na proteo
de seus membros. A Tipificao Nacional dos Servios Socioassistenciais (2009) vem para
estabelecer quais servios socioassistenciais devem ser desenvolvidos pela proteo social
bsica e quais pela proteo social especial, em todo o territrio nacional.
Conforme previsto na PNAS, a normatizao supracitada mantm a tendncia
familista/protetiva da Poltica de Assistncia Social, utilizando-se da famlia como parceira na
execuo e nos resultados a serem alcanados pelos servios.
Considerando que este estudo tem como tema Famlia e VDCA como um desafio para
a Poltica de Assistncia Social, nosso foco ser o servio da Proteo Social Especial de
Mdia Complexidade que tem, entre seu pblico alvo, crianas e adolescentes vtimas de
VDCA e suas famlias: o PAEFI.
Para tratar desta temtica, faz-se necessrio o aprofundamento em relao definio
de VDCA, suas modalidades, sintomatologia, caractersticas familiares e consequncias. o
que faremos a seguir.
-
36
2 VIOLNCIA DOMSTICA CONTRA CRIANAS E
ADOLESCENTES: UMA REALIDADE SEM RETOQUES
Para realizarmos este estudo, partiremos do pressuposto de que a violncia um
problema do presente e do passado, pois, segundo muitos estudos, no existe nenhuma
sociedade na qual ela no tenha ocorrido.
Segundo Minayo (1994), desde sempre, o homem se preocupa em entender o
fenmeno da violncia a fim de preveni-la e elimin-la da vida social.
A autora define que se trata de um complexo e dinmico fenmeno biopsicossocial,
mas seu espao de criao e desenvolvimento a vida em sociedade.
Adorno (1998) se refere questo da violncia, colocando que:
Ao mesmo tempo em que ela expressa relaes entre classes sociais, expressa
tambm relaes interpessoais (...) est presente nas relaes intersubjetivas que se
verificam entre homens e mulheres, entre adultos e crianas, entre profissionais de
categorias distintas. Seu resultado mais visvel a converso de sujeitos em objeto,
sua coisificao (ADORNO, 1998 apud GUERRA, 2001, p. 31).
Falar de violncia falar de desigualdade, de dominao, de relacionamento desigual,
de opresso, de crueldade.
Quando h o propsito de discutir Violncia Domstica contra Crianas e
Adolescentes, falamos da violncia que vitimiza seres em condio peculiar de
desenvolvimento, que faz desses sujeitos, objetos.
Tratando da VDCA, verificamos que esta modalidade de violncia faz vtimas,
crianas e adolescentes, no mundo e em nosso pas, e, infelizmente, est longe de ser
desprezvel.
Segundo estimativas do UNICEF (2005), ela atinge anualmente entre 500 (quinhentos)
milhes e 1.500 (hum mil e quinhentos) bilhes de crianas e adolescentes. Em pesquisa
realizada por esse rgo das Naes Unidas, em 2005 2006, 86% (oitenta e seis) das
crianas entre 02 (dois) e 14 (catorze) anos, que viviam em 37 (trinta e sete) pases, foram
vtimas de violncia fsica e psicolgica.
A OMS (2012) estima que 150 (cento e cinquenta) milhes de meninas e 73 (setenta e
trs) milhes de meninos so submetidos violncia sexual no mundo. Destes, de 14%
(catorze) a 56% (cinquenta e seis) das meninas e 25% (vinte e cinco) dos meninos, so
vtimas em seus prprios lares.
-
37
Em relao ocorrncia de violao de direitos no Brasil, segundo dados do SIPIA,
entre janeiro de 1999 e maio de 2004, 209.786 (duzentos e nove mil, setecentas e oitenta e
seis) crianas e adolescentes foram vtimas de situaes de violao de direitos, classificadas
segundo tabela abaixo:
TABELA 1 Tipo de direito violado e sua distribuio por gnero (Sipia)
T 1 - Tipo de direito violado e sua distribuio por gnero (Sipia)
Direito Violado Fatos Masculino Feminino
Convivncia familiar e comunitria 107700 55949 51751
Educao/Cultura/Esporte/Lazer 35282 20943 14339
Liberdade, Respeito, Dignidade 51595 25471 26124
Profissionaliao e Proteo no Trabalho 4773 3240 1533
Vida e Sade 10436 5815 4621
Total 209786 111418 98368
Fonte: Unicef (2005).
Tratando especificamente da incidncia da VDCA no Brasil, dados coletados pelo
LACRI (Laboratrio da Criana, Instituto de Psicologia, USP), entre 1996 e 2007, mostram
que 159.754 (cento e cinquenta e nove mil, setecentos e cinquenta e quatro mil) crianas e
adolescentes foram vtimas de violncia fsica, sexual, psicolgica, negligncia e fatal, em
171 (cento e setenta e um) municpios, de 24 (vinte e quatro) estados brasileiros.
-
38
TABELA 2 - Modalidade de VDCA - Incidncia Pesquisada - Brasil
Ano T 2 - Modalidade de VDCA - Incidncia Pesquisada - Brasil
Violncia Fsica Violncia
Sexual
Violncia
Psicolgica
Negligncia Violncia
Fatal
Total de casos
notificados
Qtd % Qtd % Qtd % Qtd % Qtd % Qtd %
1.996 525 44,0% 95 8,0% 0 0,0% 572 48,0% 0 0,0% 1.192 100,0%
1.997 1.240 60,1% 315 15,3% 53 2,6% 456 22,1% 0 0,0% 2.064 100,0%
1.998 2.804 22,2% 578 4,6% 2.105 16,7% 7.148 56,6% 0 0,0% 12.635 100,0%
1.999 2.620 39,3% 649 9,7% 893 13,4% 2.512 37,6% 0 0,0% 6.674 100,0%
2.000 4.330 38,9% 978 8,8% 1.493 13,4% 4.205 37,7% 135 1,2% 11.141 100,0%
2.001 6.675 32,9% 1.723 8,5% 3.893 19,2% 7.713 38,1% 257 1,3% 20.261 100,0%
2.002 5.721 35,8% 1.728 10,8% 2.685 16,8% 5.798 36,3% 42 0,3% 15.974 100,0%
2.003 6.497 31,3% 2.599 12,5% 2.952 14,2% 8.687 41,9% 22 0,1% 20.757 100,0%
2.004 6.066 31,0% 2.573 13,2% 3.097 15,8% 7.799 39,9% 17 0,1% 19.552 100,0%
2.005 5.109 26,5% 2.731 14,2% 3.633 18,9% 7.740 40,2% 32 0,2% 19.245 100,0%
2.006 4.954 26,7% 2.456 13,2% 3.501 18,9% 7.617 41,1% 17 0,1% 18.545 100,0%
2.007 2.940 25,1% 1.057 9,0% 2.285 19,5% 5.422 46,3% 10 0,1% 11.714 100,0%
Total 49.481 31,0% 17.482 10,9% 26.590 16,6% 65.669 41,1% 532 0,3% 159.754 100,0%
Fonte: LACRI/Ponta do Iceberg (2007).
Como podemos constatar, a partir dos dados coletados na reviso bibliogrfica, essas
modalidades de vitimizao causam dor e sofrimento, desde a antiguidade, tendo razes na
cultura e na histria de diferentes civilizaes. uma das faces da violncia que faz vtimas
na famlia: um espao que, segundo normas da sociedade, deveria proteg-las. um
fenmeno velado, que ocorre no ambiente privado dos lares, de maneira naturalizada e
banalizada e, enfim, como acontece na esfera privada, tem como uma de suas caractersticas o
sigilo.
VDCA representa:
todo ato ou omisso praticado por pais, parentes ou responsveis contra crianas
e/ou adolescentes que - sendo capaz de causar dano fsico, sexual e/ou psicolgico
vitima implica, de um lado, uma transgresso do poder/dever de proteo do
adulto e, de outro, uma coisificao da infncia, isto , uma negao do direito que
as crianas e adolescentes tm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condio
peculiar de desenvolvimento (AZEVEDO e GUERRA, 2001, p. 32-33).
Segundo Vecina (2006), a VDCA embasada em uma viso de infncia e de
relacionamento adulto/criana, construda ao longo dos tempos, atravs de relaes
-
39
assimtricas hierarquizadas de poder, com fins de dominao, de impossibilidade de proteo,
bem como de inexistncia de autonomia e submisso vontade do outro.
Azevedo e Guerra (2006) colocam que a VDCA ocorre intra-classes sociais,
interpessoal, um abuso de poder parental exercido pelo adulto responsvel e pode prolongar-
se por meses e anos, ocasionando consequncias fisico-psico-sociais, que sero levadas por
toda vida, caso as vtimas no sejam acolhidas, protegidas e cuidadas.
So crianas sem voz e sem vez, aprisionadas em uma relao assimtrica de poder,
em que s lhes restam a submisso vontade do outro e a renncia ao prprio
desejo. Vivem um drama que afeta seu desenvolvimento tanto fsico como
emocional, o que pode gerar indivduos com graves dificuldades de vinculao.
Alm disso, como consequncia surgem sequelas imediatas ou tardias, fsicas e
emocionais, traduzidas em sintomas como dificuldades escolares, de relacionamento
social, distrbios psicossomticos, at a invalidez ou a morte por homicdio ou
suicdio (SILVA, 2002, p. 73-74).
A vitimizao por VDCA deixa marcas profundas nas crianas e adolescentes,
prejudica o desenvolvimento e ensina que a violncia o nico padro possvel de
relacionamento existente, gerando, assim, um ciclo perverso, contnuo, inclusive
transgeracional.
Diante da desigualdade de poder o grande perdedor a prpria sociedade. Os
reflexos podem ser notados tanto no presente quanto no futuro. As vtimas acabam
assimilando valores desfigurados de respeito humano. A vulnerabilidade e a
fraqueza temporrias da criana, enquanto vtima, podem dar lugar formao de
pessoas que exeram o papel de agressoras dentro e fora do contexto familiar,
mediante mecanismos de introjeo e identificao com o que vitimiza. a
violncia dentro da famlia gerando a violncia social (SILVA, 2002, p. 77).
Sistematizando: a VDCA decorre da interao de fatores como: a realidade familiar, a
social, a econmica e a cultural. Ela dinmica, tem carter histrico e conflitivo e impe a
necessidade de compreend-la em sua totalidade. Interfere no desenvolvimento
biopsicossocial e geralmente se reproduz ao longo de vrias geraes.
A VDCA uma relao hierrquica de poder do adulto mais forte, sobre a criana
mais fraca, com fins de dominao, opresso e explorao.
Ela transforma diferentes em desiguais e crianas/adolescentes em coisas. uma
forma de violao de direitos de crianas e adolescentes que nega seus direitos fundamentais
como: a vida, a sade, a liberdade e a segurana (ABTH, 2003; AZEVEDO e GUERRA,
2006).
As famlias que praticam a VDCA em geral possuem caractersticas peculiares:
padres de violncia nas geraes passadas; hostilidade contra famlia de origem; padres
-
40
familiares rgidos, dominadores e controladores; confuses e inverses nos papis familiares;
competitividade e cimes; dificuldade em estabelecer vnculo e confiana; no possuem
informaes adequadas sobre cuidar e ser cuidado e supervalorizam castigos fsicos
(AZEVEDO e GUERRA, 2006).
As crianas e os adolescentes vitimizados pela violncia intrafamiliar vivem um
drama, uma tragdia humana, uma vez que a violncia parte das pessoas sobre as
quais eles depositam maior confiana. preciso ento conhec-los, ir ao seu
encontro, procurar desvendar as razes da situao geradora, enfrentar as foras que
determinam a sua permanncia, assumir todos os riscos para defend-los (ABTH,
2003, p. 07).
Para compreendermos a complexidade da VDCA, faz-se necessrio conhecer algumas
situaes desencadeantes, que so relacionadas, principalmente, forma como os
relacionamentos familiares se
top related