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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
David Budeus Franco
Formação Cultural: arte e cultura convertidas em instrumentos da
preparação para o trabalho
Mestrado – Educação: História, Política, Sociedade
SÃO PAULO
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
David Budeus Franco
Formação Cultural: arte e cultura convertidas em instrumentos da
preparação para o trabalho
Mestrado – Educação: História, Política, Sociedade
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), como requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Educação: História, Política, Sociedade,
sob orientação do Prof. Dr. Carlos Antônio
Giovinazzo Jr.
SÃO PAULO
2014
Banca Examinadora:
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
Agradecimentos
Certamente, uma infinidade de pessoas e situações é corresponsável pela
realização deste trabalho. Como já dizia João Cabral de Mello Neto “Um galo sozinho
não tece uma manhã:/ Ele sempre precisará de outros galos./ De um que apanhe esse
grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo”. Assim também foi a composição
desta pesquisa, feita por meio de vários “galos” que a tornaram possível.
Provavelmente, no entanto, poderei cometer injustiças, na medida em que à memória
me escapem pessoas. Portanto, desde já peço desculpas aos que aqui não estiverem
presentes. Sendo assim, agradeço:
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior),
pela concessão de bolsa de estudos, sem a qual, dificilmente, seria possível a realização
deste projeto.
Às Professoras Drª Maria Cecília Sanches e Drª Helenice Ciampi que,
gentilmente, aceitaram o convite para a banca de qualificação desta dissertação,
contribuindo sobremaneira com sugestões para o desenvolvimento do presente trabalho.
Ao meu orientador, Dr. Carlos Antonio Giovinazzo Jr., pelas sugestões,
conversas, confiança e acurada avaliação de todas as fases deste trabalho, desde o
projeto inicial.
A todos os demais professores do Programa de Estudos Pós-graduados em
Educação: História, Política e Sociedade, pelas contribuições e debates realizados no
decorrer do período de realização deste trabalho.
Às escolas, especialmente aos membros da direção, que me receberam em suas
dependências, permitiram minhas visitas e cederam a documentação necessária para a
composição do presente estudo.
Aos amigos e companheiros de jornada, desde o início, Cilene, Karen, Janaína,
Jussara e Neusely, com quem dividi angústias, descobertas e alegrias e que, certamente,
enriqueceram o trajeto. Além destes, também: Júlia, Raquel, Sandra e Silvia, por no
final do ciclo, compartilharem experiências e desafios naturais do processo de
desenvolvimento das atividades afeitas à pós-graduação.
À Betinha, pelo trabalho e atenção, já que em todas as ocasiões se mostrou
disponível para ajudar no que fosse necessário.
Aos meus queridos pais, Francisco e Erika, que com sua generosidade peculiar
souberam em todos os momentos, compreender e incentivar novos passos rumo à
conclusão de mais esta etapa.
Aos meus irmãos, Larissa e Lucas, por terem torcido em meu favor e destinado a
mim palavras de estímulo e confiança.
A todos os demais mestres, amigos e companheiros de todos os lugares em que
passei, pelos exemplos, conversas, alegrias, enfim, experiências que, em grande medida,
compõem o que sou.
Eles tem códigos e decretos.
Eles tem prisões e fortalezas.
(sem contar seus reformatórios!)
Eles tem carcereiros e juízes
que fazem o que mandam por trinta dinheiros.
Sim, e para que?
Será que eles pensam que nós, como eles,
seremos destruídos?
Seu fim será breve e eles hão de notar
que nada poderá ajudá-los.
Eles têm jornais e impressoras
para nos combater e amordaçar.
(sem contar seus estadistas!)
Eles tem professores e sacerdotes
que fazem o que mandam por trinta dinheiros.
Sim, e para que?
Será que precisam a verdade temer?
Seu fim será breve e eles hão de notar
que nada poderá ajudá-los.
Eles tem tanques e canhões,
granadas e metralhadoras
(sem contar seus cassetetes!)
Eles tem policia e soldados,
que por pouco dinheiro estão prontos a tudo.
Sim, e para que?
Terão inimigos tão fortes?
Eles pensam que podem parar,
a sua queda, na queda, impedir.
Um dia, e será para breve
verão que nada poderá ajudá-los.
E de novo bem alto gritarão: Parem!
Pois nem dinheiro nem canhões
poderão mais salvá-los.
(Bertolt Brecht)
SUMÁRIO
LISTA DE QUADROS viii
RESUMO ix
ABSTRACT x
INTRODUÇÃO 12
Os Caminhos da Pesquisa 12
Capítulo 1 – Do ensino secundário à educação artística: esquadrinhando as
recomendações para a formação cultural no contexto do capitalismo tardio.
16
1.1 O Ensino Médio ante as reformas dos anos 1990 16
1.2 As predicações sobre a educação artística e o ensino de artes 21
Capítulo 2 – Modernidade, Escola e Formação Cultural. 33
2.1 A Escola e a Modernidade 34
2.2 A formação cultural (bildung) 40
2.3 Cultura, Formação e Indivíduo 46
2.4 Pseudoformação: a conversão da formação cultural em formação
técnica.
48
Capítulo 3 – Documentos, ações e expectativas das escolas diante dos
desafios surgidos na contemporaneidade.
55
3.1 Problema de Pesquisa 55
3.2 O método 56
3.3 As Escolas 58
3.4 Os Resultados Encontrados 60
3.4.1 Os documentos da Escola Estadual (Escola E) 61
3.4.2 Os documentos da Escola Privada (Escola P) 72
CONSIDERAÇÕES FINAIS 82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 87
ANEXOS 90
ANEXO 1: Matriz Curricular para o Ensino Médio 2012 Escola E 91
ANEXO 2: Matriz Curricular para o Ensino Médio 2012 Escola P 93
ANEXO 3: Portaria da SEE/MG que confere à Escola P a possibilidade de
ministrar cursos técnicos de canto e instrumental.
94
ix
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Articulação entre pergunta, objetivo e hipótese ------------------------------- 55
x
FRANCO, David Budeus. 2014. Formação Cultural: arte e cultura convertidas em
instrumentos da preparação para o trabalho. Dissertação de Mestrado. Programa de
Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política e Sociedade, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
RESUMO
Este trabalho trata da formação cultural oferecida por duas escolas, uma da rede
estadual de educação de Minas Gerais e outra da rede privada. O objetivo essencial da
pesquisa foi o de identificar e analisar como são definidas as tarefas e funções da escola
tendo como referência a valorização das atividades culturais e artísticas, além de,
identificar e analisar o modo como são produzidos diagnósticos, definidos objetivos
educacionais e propostas de ações para o equacionamento dos problemas enfrentados
pela escola referentes à formação cultural. As hipóteses da pesquisa são expressas nos
seguintes termos: a) há, nos documentos analisados, a crescente tendência de destacar a
necessidade de a escola incorporar conteúdos relacionados às atividades culturais como
forma de adequar a escola ao contexto em que está situada; e b) ainda que as mudanças
sejam evidentes e que as atividades culturais nas escolas tenham um sério propósito,
predomina a formação voltada para o trabalho. A fim de verificar as hipóteses, este
trabalho lançou mão de análises de diversos documentos produzidos em diferentes
esferas, desde a internacional, passando pela nacional e estadual, até atingir a local, isto
é, os documentos produzidos pelas próprias escolas. Os resultados da pesquisa foram
produzidos no cotejamento das informações extraídas dos diversos documentos
analisados. Os dados, em grande medida, confirmaram as hipóteses iniciais deste
trabalho. Amparada na Teoria Crítica da Sociedade, principalmente em Herbert
Marcuse, Max Horkheimer e Theodor Adorno, este estudo evidencia a proximidade
entre o mundo do trabalho e as recentes tentativas de incrementar atividades culturais e
artísticas nas escolas, isso como expressão da transformação de tais atividades em
fatores fundamentais para a melhoria da qualidade da educação na contemporaneidade.
Palavras-chave: Formação Cultural (bildung), Teoria Crítica da Sociedade, Educação
Artística, Trabalho, Juventude.
xi
FRANCO, David Budeus. 2014. Formation: art and culture converted on tools of
preparation to work. Thesis on Master degree. Programa de Estudos Pós-graduados em
Educação: História, Política e Sociedade, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo.
ABSTRACT
This study treats about formation offered by two schools, one from public system of
Minas Gerais’s State and one from private system. The central objective from this
research was to identify and to analyze how are defined tasks and the functions of
school, based on appreciation on cultural and artistic activities, beyond this, to identify
and to analyze how are produced diagnosis, defined educational objectives and actions
to equalize the educational daily troubles regarding on formation. The hypotheses of
this research are uttered by: a) on analyzed documents there are an increasing tendency
on school sphere to incorporate subjects related to cultural activities like a way to adapt
school to historical context; and b) even if the changes are visible and cultural activities
in schools has a serious propositions, predominates the formation directed to work. In
order to verify these hypotheses, this work made an analysis on several documents
made in a very different scope; first of all documents made on international scope, after
others made on national scope, after what was time of state sphere, and, finally, on local
sphere, wherein the documents was produced by schools. The results from this work
were constructed by comparison through information extracted from analysis on distinct
documents. The results obtained, largely, confirmed the initial hypotheses from this
research. Based on Critical Theory, especially on Herbert Marcuse, on Theodor Adorno
and on Max Horkheimer, this study shows the relationship among work’s world and the
fresh attempts to step up artistic and cultural activities at schools, these like an
expression of transformation of the same activities in support to improve quality of
contemporary education.
Keywords: Formation (bildung), Critical Theory, Artistic Education, Work, Youth.
12
INTRODUÇÃO
Os Caminhos da Pesquisa
Esta pesquisa surgiu da necessidade pessoal de tentar encontrar respostas a
questões que me perseguiram, e ainda perseguem, desde a graduação. Foi quando, pela
primeira vez, propus buscar a expressão da cultura dentro da escola, ocasião em que
dividi angústias, encantos, satisfações e ainda mais questionamentos com uma querida
amiga (Karina Padial Garcia), com quem desenvolvi o Trabalho de Conclusão de Curso
intitulado A Escol(h)a do Hip Hop.
Nesse trabalho pude acompanhar, em quatro escolas (uma da periferia da Zona
Leste de São Paulo, uma de Diadema, uma de Lagoinha e outra de Barueri), as
atividades realizadas por arte-educadores ligados ao movimento Hip-Hop. Nem todas as
instituições eram escolas formais, como a Casa do Hip Hop de Diadema, que se
configurava mais como um lugar de apoio à educação; todavia, à época todas elas
estavam incluídas num projeto da Secretaria da Juventude, vinculada ao governo do
estado de São Paulo. Infelizmente, o projeto de Hip-Hop nas escolas paulistas foi
extinto, razão pela qual não pude dar continuidade a este estudo.
Os meninos e meninas assistidos por esse projeto sempre aguardavam
ansiosamente pelo momento em que poderiam ter contato com o Hip-Hop, considerado
pelos professores, diretores e arte-educadores um meio para levar cultura à juventude
pobre de regiões marginalizadas do estado de São Paulo.
O trabalho desenvolvido, cujo projeto previa abordar dez casos, visitou seis e
apenas quatro foram incluídos no projeto final; possibilitou uma série de experiências e
questões, parte das quais engendraram a ideia central desta dissertação. No entanto,
outros elementos fizeram parte do delineamento do tema, como os primeiros contatos,
também na graduação, com as propostas de interpretação da sociedade que faz a teoria
crítica. Isto é, depois do trabalho de conclusão de curso realizado na graduação,
somaram-se as primeiras noções de conceitos da teoria crítica e a imensa necessidade de
compreender melhor de que forma, efetivamente, a cultura contribui para a formação
dos jovens.
13
Assim, a juventude é o propósito desta pesquisa, todavia não mais aquela que
está inserida no movimento urbano, cuja referência em grande medida é o Hip-Hop.
Partiu-se para outro tipo de situação: saindo do eixo São Paulo e Rio de Janeiro, todo o
restante do país, especialmente as cidades do interior, carecem enormemente do que
comumente se entende por cultura (teatros, musicais, shows, espetáculos circenses,
cinemas, principalmente os não hollywoodianos, saraus, literatura, entre outros).
Mesmo ante essa realidade, quando se fala em juventude, especialmente sobre a
sua formação, apresenta-se, frequentemente, a qualidade da educação brasileira como
entrave. Vale dizer que a juventude também está presente em grande número no interior
do país – e não só nos grandes centros urbanos. Como nos jovens, muitas vezes, é
depositada grande expectativa de realização no futuro, como seria possível superar o
obstáculo que representa a ausência de qualidade no Ensino Médio, já que este é
destinado aos jovens?
A cisão existente entre individuo e sociedade, portanto entre sujeito e objeto,
também se faz presente na vida escolar e nos momentos de aprendizagem dos jovens,
ainda que ignorem esse fato. Sendo a escola uma das expressões da realidade social e,
também, das relações entre os inúmeros grupos que compõem a sociedade, a análise de
seu cotidiano revela também as contradições presentes na própria organização social.
Tendo isso em mente, observou-se a quantidade de manifestações – de pessoas e de
grupos organizados – em torno da melhoria da qualidade na educação básica,
especialmente no Brasil. São notórios os discursos que depositam na educação amplas
responsabilidades, principalmente, no que se refere a resolução dos problemas gerados
pela desigualdade social. Seria, portanto, tarefa da educação tornar a sociedade mais
equânime no que diz respeito à distribuição de renda. Para além disso, todavia, também
parece ser consenso público que a educação carece de qualidade.
Embora não haja um entendimento comum quanto ao que, de fato, quer dizer
qualidade na educação, parece ser maior esse consenso quando se considera que a atual
organização da educação é ineficaz para a formação de mão de obra. Em outras
palavras, o sistema educacional brasileiro, na atualidade, não consegue formar
profissionais, pelo menos em número suficiente, que possam ocupar cargos exigidos
pelo mercado de trabalho.
Ante a essa situação, diversos segmentos da sociedade, por diferentes razões,
pressionam os agentes competentes em benefício de uma melhor qualidade na educação.
A resposta que tem sido dada, amiúde, é que apoiada numa educação que promova o
14
contato com a Educação Artística e o com o ensino de Artes, a melhoria da qualidade na
formação de jovens tem maiores condições de se sustentar.
A partir disso, baseando-se nos conceitos frankfurtianos, especialmente o de
formação cultural (bildung), questões foram levantadas e deram origem a esta
investigação. Diante de todas essas questões, a cidade natal do autor deste trabalho
tornou-se abrigo para a pesquisa. A cidade de Uberaba, interior de Minas Gerais, serviu
de referência para compreender melhor de que forma as recomendações educacionais,
apresentadas em documentos produzidos em âmbito internacional, nacional, estadual e
local, convergem. Essa tarefa foi possível graças análise de vasta documentação,
inclusive produzida no âmbito de duas escolas (uma pública e outra privada), o que
permitiu desvelar como é definido o seu papel na atual configuração da sociedade,
especialmente no que se refere ao Ensino Médio.
Assim, definiu-se como campo empírico uma escola privada e outra da rede
estadual de Minas Gerais, localizadas no mesmo bairro e distantes entre si cerca de 1,2
Km, de modo que se pudesse fazer os devidos cotejamentos entre as duas realidades
escolares distintas. A fonte principal de informações são documentos de ambas as
escolas e aqueles produzidos em âmbito internacional, nacional e estadual. No que se
referem aos documentos produzidos pelas escolas, foi possível o acesso às matrizes
curriculares, aos regimentos escolares e aos projetos políticos pedagógicos que, se não
orientaram as práticas escolares, pelo menos é uma confissão de intenções que cada
escola apresenta.
Além desses, analisou-se o Roteiro para a Educação Artística (da UNESCO) e o
documento Educação Artística e Cultural nas Escolas da Europa, da Agência de
Execução relativa à Educação, ao Audiovisual e à Cultura (EACEA P9 Eurydice)1. Mais
ainda, foram também objetos de análise: os PCNEM (Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio), os PCNEM+ (Parâmetros Curriculares Nacionais
Ensino Médio: Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares
Nacionais/Linguagens, códigos e suas tecnologias), ambos assinados pelo MEC
(Ministério da Educação) e, por fim, o Reinventado o Ensino Médio, da Secretaria de
Estado de Educação de Minas Gerais.
1 Eurydice é um organismo ligado à “EU Education, Audiovisual and Culture Executive Agency” –
sediado em Bruxelas – responsável por fornecer informações e análises sobre os sistemas e as políticas
educacionais dos países membros da União Europeia, além de, Macedônia, Islândia, Montenegro, Sérvia,
Turquia, Liechtenstein, Noruega e Suíça.
15
Na sequência, é possível observar a maneira por meio da qual se organizaram os
capítulos deste trabalho.
No primeiro capítulo, trata-se, de saída, da contextualização da história recente
da educação brasileira, levando em conta o que se entende por Ensino Médio e seu
papel na formação do jovem brasileiro da contemporaneidade. Em seguida, empreende-
se uma análise acerca das predicações presentes nos documentos produzidos nas esferas
internacional, nacional e estadual.
No segundo capítulo, é realizada uma reflexão em torno da problemática do
indivíduo e de sua formação no âmbito escolar na contemporaneidade. Mais do que
isso, também figura neste momento do texto a análise da modernidade e das
consequências do capitalismo tardio na formação cultural do indivíduo, considerando
também o embate entre este e a sociedade.
No terceiro capítulo, apresenta-se o problema de pesquisa, hipóteses e objetivos,
além do método; abordam-se, também, os desdobramentos locais, isto é, nas duas
escolas estudadas, das “receitas” oferecidas pelos documentos analisados no primeiro
capítulo. Mais ainda, baseando-se nos documentos produzidos pelas escolas e nas
visitas feitas durante a pesquisa, busca-se analisar de que forma ocorrem aproximações
e distanciamentos em relação às predicações ofertadas nos documentos produzidos nas
outras distintas esferas.
Finalmente, têm-se as Considerações Finais, cujo propósito se assenta na
tentativa de fazer uma análise geral do trabalho realizado, apontando para interpretações
possíveis, além dos seus próprios limites, além das possibilidades de pesquisa que este
trabalho engendra.
16
Capítulo 1 – Do ensino secundário à educação artística: esquadrinhando as
recomendações para a formação cultural no contexto do capitalismo tardio
1.1 O Ensino Médio ante as reformas dos anos 1990
O Ensino Médio, dentro do sistema educacional brasileiro, corresponde à etapa
final de escolarização básica e, por isso mesmo, é a porta de saída de jovens que, a partir
da conclusão desta fase, tem como possibilidade dar continuidade aos estudos ou entrar
para o mercado de trabalho. Todavia, as indefinições sobre suas finalidades ou acerca
do que deveria realizar são uma constante na história da educação brasileira. As próprias
mudanças na nomenclatura desse nível de ensino demonstram as incertezas que desde
há muito acompanham o que hoje se conhece por Ensino Médio. Vale lembrar que este
já foi liceu, depois, colegial, clássico ou científico e, por último, escola de 2º grau.
As alterações, no entanto, não se restringem nas várias nomenclaturas, isso
porque o Brasil dos anos 1940 e 1950, cuja maioria da população era rural,
transformou-se enormemente. De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística) de 2011, a população urbana, que na década de 1940 era de
cerca de 30%, em 2010 já correspondia a, aproximadamente, 84%. Assim, é bom dizer
que, além de outras providências, o meio urbano teve, no período suprarreferido, de
adequar sua infraestrutura para receber um público cada vez maior. É claro que a
pressão exercida nas cidades, por uma população cada vez mais urbana, refletiu-se
também no oferecimento de acesso à educação.
São comuns as interpretações de que a educação do passado contava com maior
qualidade, o que provavelmente deve ter sua cota de verdade. Contudo, deve-se dizer
também que a própria superseleção de que eram alvo os alunos, apenas permitia a uma
classe privilegiada frequentar a escola, especialmente do ponto de vista econômico.
Equivale dizer que, os colegiais dos anos 1960, por exemplo, eram frequentados apenas
pelos os filhos de famílias abastadas que, não raras vezes, se dirigiam à universidade.
17
Se nos reportarmos aos anos 50, 60 e começo dos 70 [do século XX],
a função central das escolas públicas de ensino médio regular, não-
profissionalizante, era principalmente a de preparar, para as
universidades, jovens de uma elite cultural, originários da elite
econômica e de classes médias em ascensão. Eram escolas altamente
seletivas, com exigentes exames de ingresso, que filtravam uma "nata
da nata", uma vez que mesmo para o acesso ao antigo ginásio, que
hoje corresponderia à passagem para a quinta série do ensino
fundamental, havia exame de admissão. Durante um bom tempo, em
São Paulo e em outros estados brasileiros, para poder chegar ao
ginásio, os jovens candidatos se preparavam durante um ano num
"curso de admissão", um quinto ano extra oferecido na mesma escola
e, quatro anos depois, precisavam vencer a barreira de acesso para o
colegial, clássico ou científico, dependendo do tipo de escola superior
almejada. Para o pelotão da frente dessa corrida de obstáculos iniciada
no ensino fundamental, o vestibular da universidade pública era mais
uma etapa natural. Não há hoje escolas semelhantes às escolas
públicas daquela época, nem mesmo as poucas escolas privadas que
continuam selecionando alunos de alto desempenho. (MENEZES,
2001, p.201-02)
A discussão sobre para que serve o Ensino Médio, ou qual é a sua função social,
é tão antiga quanto à própria existência deste como parte integrante do que se chama
hoje educação básica. Fazendo um parêntesis histórico, quando a burguesia ainda estava
em ascensão, Fernandez Enguita (1989) assinala quais eram algumas das posições desta
burguesia em relação ao oferecimento de educação para o que viria a ser a classe
trabalhadora. Alguns temiam a perda de controle, uma vez que o excesso à ilustração
poderia causar a não acomodação daqueles que ocupariam as mais baixas posições na
hierarquia social. De outro lado, havia aqueles que percebiam na educação (oferecidas
com sérias restrições de acesso ao conhecimento) uma grande possibilidade de
treinamento para o trabalho. Todavia, na visão de muitos pensadores da época, como
Locke, a educação deveria oferecer aos membros da classe trabalhadora apenas o
conhecimento de suas funções, sem alimentar ambições indesejáveis. E foi a opção de
instruir, entretanto não demasiadamente, que fora adotada para a educação que deveria
ser dada às crianças do povo. Com as primeiras experiências nessa direção, os
industriais começaram a perceber que os funcionários originários da escola eram mais
disciplinados e obedientes e, muitas vezes, mais eficientes que aqueles que não haviam
frequentado a instituição.
O acento deslocou-se então da educação religiosa e, em geral, do
doutrinamento ideológico, para a disciplina material, para a
organização da experiência escolar de forma que gerasse nos jovens os
18
hábitos, as formas de comportamento, as disposições e os traços de
caráter mais adequados para a indústria. (FERNANDEZ ENGUITA,
1989, p. 114)
Portanto, o que era uma possibilidade, algo desejável, passou a ser reivindicação
por parte dos empresários. Ainda de acordo com Fernandez Enguita (1989), eram
evidentes as ações dos industriais em mostrar uma imagem de eficiência, de modo que,
também as escolas, passam a ser operadas como se fossem e desejassem a mesma
eficiência das empresas. Com algumas citações de referências do pensamento presente
no campo educacional estadunidense do início do século XX, o autor demonstra a
“invasão” da lógica taylorista, amplamente empregada nas indústrias, no ambiente
escolar.
O deslocamento das demandas da sociedade para as exigências da
indústria em termos de mão de obra não era acidental, nem devido
simplesmente à maior facilidade de buscar exemplos na indústria, em
comparação com a família, ou a maior facilidade de medir a
capacidade de somar que a estatura moral. (FERNANDEZ
ENGUITA, 1989, p. 126)
Fechando este parêntesis, é necessário apontar que as discussões introduzidas
acima não parecem fazer parte de um passado longínquo como se possa supor. Embora
as anotações de Fernandez Enguita se refiram, em grande medida, ao período em que a
burguesia se afirmou como classe dominante, as discussões hodiernas continuam
prestando contas com as mesmas determinações. Quer dizer, em que medida a educação
e, mais especificamente o Ensino Médio, deve se prestar ao papel de preparação para o
trabalho?
No caso brasileiro, ao analisar as reformas propostas para o Ensino Médio nos
anos 1990, é possível observar uma grande polarização e brusca separação no que se
refere à divisão entre ensino propedêutico e profissionalizante ou técnico. Vale dizer
que, entre os objetivos da política governamental em ambas “modalidades” de
educação, o que parece prevalecer é a manutenção do modelo econômico-social.
Não se trata de negar a importância do domínio do conhecimento
técnico e tecnológico ou de suas bases científicas ou de criticar a
criação de facilidade de acesso da população a tais conhecimentos,
mas, sim, de criticar a valorização desse domínio a partir de um olhar
que nos parece restritivo, por três razões: a) pela ênfase da formação
19
no domínio da técnica e a tecnologia, em detrimento de outras esferas;
b) pela pouca ênfase conferida ao exame dos contextos políticos,
econômicos, sociais e culturais na produção do conhecimento
científico e tecnológico; c) por tomar como referência o mercado e a
visão economicista de mundo. Tal visão transparece em expressões e
termos tais como formação por competência, empreendedorismo,
autogestão, abundantemente empregados nos discursos reformistas do
governo FHC e retomados de forma amenizada no governo Lula.
(FERRETTI, 2011, p. 791)
Portanto, o que é tarefa inarredável do Ensino Médio é avaliar a necessidade de
nova organização de sua estrutura, sem, no entanto, deixar de observar as funções
sociais desta fase de escolarização. Ou seja, a situação não é tão simples como tornar a
escola o berçário de mão de obra e, assim, transformar toda a educação em simples
repositório de trabalhadores, ao sabor do mercado. A discussão, sem dúvida, passa pela
questão do trabalho, mas não pode se deter nela.
A última fase da escolarização básica agora atinge um grupo de pessoas muito
maior do que no passado. E não é só isso, com a ampliação do acesso a esse nível de
estudos, veio também toda a diversidade que é própria da sociedade em geral.
Pressionada pela nova configuração econômica e social, a escola
abriu-se para um público crescente e novo, mas ainda não encontrou
sua nova efetiva natureza. Em outras palavras, a demografia escolar
tem refletido mudanças sociais e econômicas, e o ensino médio
especialmente tem vivido essas alterações de forma exponencial, ao
receber um público novo e crescente, para o qual a escola precisa se
adequar em escala e qualidade. [...] Para a escola assumir sua
dimensão humanista mais ampla, não aceitando um triste papel de
depósito de mão de obra ociosa, ela precisa garantir, para todos os
alunos e com especial atenção à maioria que chega a uma escola não
frequentada por seus pais, condições para que desenvolvam confiança
e autoestima, valores humanos, interesses culturais, autonomia
econômica e consciência social. Se isso já parece tarefa difícil, é
preciso acrescentar que o novo desafio se sobrepõe ao antigo, pois a
escola, ao aceitar essa nova dimensão de seu trabalho, em princípio
não deveria desguarnecer todas as funções que exercia, algumas das
quais precisa manter e aperfeiçoar. Não basta concordar com esses
objetivos, é preciso identificar os pontos de partida para se construir
essa nova escola, assim como é preciso conhecer melhor os obstáculos
que dificultam sua implementação, para determinar as formas de
contorná-los ou os meios para superá-los. (MENEZES, 2001, p. 203-
04)
20
Sendo assim, vale frisar que a sociedade do capitalismo tardio parece carecer
“apenas” de mão de obra qualificada, de modo que os novos trabalhadores formados
pela escola devem ser os novos “dentes” da engrenagem econômica, bastando substituir
os braços que ocupam determinado posto. A questão, porém, é que, ainda que falte
muito a ser conquistado para a superação, se é que isso é possível, houve avanços no
que se refere à função da escola e do Ensino Médio. Até as reformas dos anos 1990, o
objetivo da escola era também oferecer condições para que o egresso pudesse se colocar
no mercado de trabalho, porém também o era a formação humanística e a possibilidade
de oferecer o convício social. Tudo isso foi reduzido a uma formação economicista, ou
seja, a educação é concebida como mero elemento de sustentação do modo de produção.
As reformas foram necessárias porque o próprio capitalismo sofreu
transformações, o ensino propedêutico já não mais é suficiente para as demandas de
especialização profissional que o atual estágio de desenvolvimento econômico-social
exige. A necessidade de formação rápida e minimamente especializada impôs alterações
nas relações que existiam entre ensino médio regular e ensino técnico. Sobre isso, temos
que:
No bojo das reformas educacionais dos anos de 1990, aquela que
visou o ensino médio e técnico ganhou relevância especial. O enfoque
privilegiado adveio de diversos fatores, entre os quais destacamos a
preocupação de agências internacionais com um nível de ensino
considerado estratégico para o tipo de desenvolvimento econômico e
social previsto para os países periféricos. De fato, desde o final da
década de 1980, estudos do Banco Mundial vinham focalizando nosso
ensino médio e técnico, divulgando dados detalhados quanto à
valorizada relação “custo/benefício” referente aos investimentos na
área, bem como severas críticas à estrutura e funcionamento daqueles
cursos, com sugestões bastante específicas no tocante ao
redirecionamento dos gastos públicos. (ZIBAS & FERRETTI, 2005,
p. 182)
A separação entre ensino médio e ensino técnico, a modularização, a
obrigatoriedade dos alunos, na modalidade concomitante, de
frequentarem dois cursos simultaneamente, a diminuição da duração
dos cursos técnicos, obrigando a restrição dos conteúdos tratados nos
AET [antigos cursos técnicos], ou sua compactação, aliados à precária
escolarização da população atendida constituíram-se, em seu conjunto,
em forte limitação ao desenvolvimento de cursos de qualidade.
(FERRETTI, 2011, p. 795)
Nesse amplo contexto, todavia, ainda surgem, frequentemente, as questões que
se referem à qualidade do ensino, ou seja, com a universalização do ensino médio e com
21
as reformas que advieram, os problemas de qualidade dos cursos se apresentam e
também as propostas de como superá-los. A crise de qualidade do ensino no Brasil
parece não ser um problema apenas do país, senão também uma preocupação de
organismos internacionais ligados à educação, muitos dos quais apostam na educação
artística ou no ensino das artes como única maneira capaz de conferir maior qualidade
em todas as estâncias da educação básica, inclusive no ensino médio.
1.2 As predicações sobre a educação artística e o ensino de artes
A educação em âmbito mundial parece padecer de um mal comum, a
necessidade de ampliar a qualidade de seus cursos, principalmente aqueles que
conduzem os alunos ao mercado de trabalho ou à continuidade de estudos. Pelo menos,
essa é uma questão que aparece recorrentemente nos mais diversos debates espalhados
pelo mundo. Assim, trata-se neste tópico de observar algumas considerações acerca da
educação artística e do ensino médio em alguns documentos, são eles: Roteiro para a
Educação Artística (UNESCO, 2006), Educação artística e cultural nas escolas da
Europa (Agência de Execução relativa à Educação, ao Audiovisual e à Cultura –
EACEA P9 Eurydice, 2009), Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio:
Linguagens, códigos e suas tecnologias (MEC, 2000), Parâmetros Curriculares
Nacionais Ensino Médio: Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros
Curriculares Nacionais/Linguagens, códigos e suas tecnologias (MEC, 2002) e
Reinventando o Ensino Médio (SEE/MG, 2013).
O documento assinado pela UNESCO (2006), apresentado sob a forma de
roteiro, afirma que a educação artística é uma saída para a melhoria da qualidade da
educação em geral, tenda a criatividade e a consciência cultural papéis preponderantes
na construção de um novo modelo da relação ensino-aprendizagem.
Baseado nos debates realizados no decurso e após a Conferência
Mundial sobre Educação Artística, que se realizou de 6 a 9 de Março
em Lisboa, Portugal, o presente “Roteiro para a Educação Artística”
propõe-se explorar o papel da Educação Artística na satisfação da
necessidade de criatividade e de consciência cultural no século XXI,
incidindo especialmente sobre as estratégias necessárias à introdução
ou promoção da Educação Artística no contexto de aprendizagem.
Este documento foi concebido de forma a promover um entendimento
22
comum entre todas as partes interessadas sobre a importância da
Educação Artística e o seu papel essencial na melhoria da qualidade
da educação. (UNSECO, 2006, p. 4)
Vale também salientar que o documento apresenta a educação artística como um
fator capaz de ocupar as lacunas existentes na educação, todavia não discute o porquê
desses vazios; ao contrário, induz à instrumentalização da educação, na medida em que
assevera ser a educação artística aquela capaz de promover a manutenção do modo de
produção capitalista no século XXI. Além disso, embora reconheça diferenças entre os
países, não manifesta, o próprio documento que predica a capacidade crítica, nenhum
exame mais aprofundado no que se refere às condições histórico-sociais que
conduziram a educação ao patamar atual.
Todos os seres humanos têm potencial criativo. A arte proporciona
uma envolvente e uma prática incomparáveis, em que o educando
participa ativamente em experiências, processos e desenvolvimentos
criativos. Estudos mostram que a iniciação dos educandos nos
processos artísticos, desde que se incorporem na educação elementos
da sua própria cultura, permite cultivar em cada indivíduo o sentido de
criatividade e iniciativa, uma imaginação fértil, inteligência emocional
e uma “bússola” moral, capacidade de reflexão crítica, sentido de
autonomia e liberdade de pensamento e ação. Além disso, a educação
na arte e pela arte estimula o desenvolvimento cognitivo e pode tornar
aquilo que os educandos aprendem e a forma como aprendem, mais
relevante face às necessidades das sociedades modernas em que
vivem. [...] A Educação Artística contribui para uma educação que
integra as faculdades físicas, intelectuais e criativas e possibilita
relações mais dinâmicas e frutíferas entre educação, cultura e arte. (...)
A Educação Artística é também um meio à disposição das nações para
a preparação dos recursos humanos necessários ao aproveitamento do
seu valioso capital cultural. É essencial tirar o melhor partido desses
recursos e desse capital se os países quiserem desenvolver indústrias e
empresas culturais (criativas) fortes e sustentáveis. Tais indústrias têm
potencial suficiente para desempenhar um papel fundamental na
promoção do desenvolvimento socioeconômico de muitos países
menos desenvolvidos. (UNESCO, 2006, p. 6-7)
Quer dizer, a formação cultural que pode provir do contato com as artes,
potencialmente oferecida aos alunos, tem um único objetivo, a manutenção do
desenvolvimento econômico do capitalismo tardio. Sobre a tão perseguida qualidade,
diz a organização:
De acordo com o Quadro de Ação de Dacar, são exigidos muitos
fatores como pré-requisitos de uma educação de qualidade. A
23
aprendizagem na arte e pela arte (Educação Artística e Arte na
Educação) pode reforçar pelo menos quatro destes fatores:
aprendizagem ativa; um currículo localmente relevante que suscita o
interesse e o entusiasmo dos educandos; respeito pelas e participação
nas comunidades e culturas locais; e professores preparados e
motivados. (UNESCO, 2006, p. 8)
Mais ainda, segundo o documento, elementos e aspectos da cultura, em muitos
países, são perdidos pela não valorização destes em meios escolares, contudo, não
propõe reflexões em torno da padronização, cada vez mais imposta pelo sistema
econômico vigente. Desse modo, o roteiro também serve para a propagação ideológica
do sistema capitalista, contando meias verdades e, portanto, tratando de falsear a
realidade.
Nesta configuração, entende-se que além de ter de ser necessariamente útil,
pedagogicamente a educação artística conta com três dimensões, a saber:
[...] (1) o estudante adquire conhecimentos interagindo com o objeto
ou a representação de arte, com o artista e com o seu (a sua)
professor(a); (2) o estudante adquire conhecimentos através da sua
própria prática artística; (3) o estudante adquire conhecimentos pela
investigação e pelo estudo (de uma forma de arte e da relação entre
arte e história). (UNESCO, 2006, p. 11)
O desenvolvimento das capacidades criativas e da consciência cultural
para o século XXI através da Educação Artística requer tomadas de
decisão informadas. Para que os decisores aceitem e aprovem a
passagem à prática da Educação Artística e da Arte na Educação, é
necessário demonstrar a sua utilidade. (UNESCO, 2006, p. 16)
Em suma, depreende-se que a escola e educação ideais aos parâmetros
apresentados pela entidade multilateral são aquelas que se coloquem à serviço da
produção de mercadorias e, em última análise, que ofertem trabalhadores criativos e
adaptáveis ao mercado de trabalho.
Continuando a análise, passa-se ao documento Educação Artística e Cultural
nas Escolas da Europa, da Agência de Execução relativa à Educação, ao Audiovisual e
à Cultura (EACEA P9 Eurydice). Eurydice é a unidade portuguesa do organismo ligado
à EU Education, Audiovisual and Culture Executive Agency – sediado em Bruxelas –
responsável por fornecer informações e análises sobre os sistemas e as políticas
educacionais dos países membros da União Europeia, além de, Macedônia, Islândia,
24
Montenegro, Sérvia, Turquia, Liechtenstein, Noruega e Suíça. Entre outros objetivos, o
documento supracitado tem por objetivo divulgar práticas de países integrantes do
grupo e compará-las. É bom dizer que em toda sua extensão não há sequer uma
referência ao modo de produção capitalista, o que aparece por meio de códigos
eufemísticos como competição e economia do conhecimento. Diante disso, o
documento justifica a necessidade da educação baseada no contato com a arte e a
cultura, pelo fato de que as crianças deverão ter um futuro bastante incerto.
A educação nos países europeus é objeto de várias exigências
contraditórias que influenciam a organização e o conteúdo da
educação artística. A globalização crescente trouxe consigo benefícios
e desafios, nomeadamente os decorrentes do aumento da concorrência
internacional, da migração e do multiculturalismo, dos avanços na
tecnologia e do desenvolvimento da economia do conhecimento. O
sistema educativo pode ser encarado como um meio para preparar as
crianças para o seu lugar num mundo cada vez mais incerto. As
escolas têm um papel a desempenhar, ajudando os jovens a
desenvolver um sentimento de autoconfiança, tanto como indivíduos
como enquanto membros de vários grupos na sociedade. Existe
também uma reconhecida necessidade de incentivar os jovens a
desenvolverem um amplo conjunto de competências e interesses, de
modo a identificar e promover o seu potencial e a encorajar a
criatividade. Esta evolução coloca uma série de desafios à educação
artística, como evidenciam os debates em curso no âmbito das
políticas e da investigação. (EACEA P9 EURYDICE, 2009, p.7)
É claro, que a realidade europeia e, do grupo que compõe esse projeto, é bastante
particular, por isso é bom que se diga que não se está tentando neste trabalho comparar
as realidades brasileira e europeia, senão a tentativa de perceber traços das políticas
educacionais que são convergentes. Embora se reconheça os limites da educação
artística, o documento frisa a importância dessa “modalidade” de ensino na formação
cultural dos alunos, ainda que com vistas à alimentar o sistema capitalista, por meio da
criatividade e inovação.
Existem pressões crescentes sobre a educação artística para que
cumpra vários objetivos, para além de ensinar as matérias relativas às
artes. Os sistemas educativos reconhecem cada vez mais a importância
de desenvolver a criatividade das crianças e de contribuir para a sua
educação cultural, mas a forma como se espera que as artes
contribuam, através de disciplinas individuais ou trabalhando com
outras áreas curriculares não é, necessariamente, evidente. Taggart et
al. (2004) concluíram que quase todos os 21 países/Estados do seu
estudo internacional tinham objetivos semelhantes para o currículo
artístico, nomeadamente: desenvolver competências artísticas,
25
conhecimento e compreensão, participando numa série de formas
artísticas; aumentar a compreensão cultural; partilhar experiências
artísticas; e permitir aos alunos tornarem-se consumidores de arte e
intervenientes informados nesse domínio. Contudo, além destes
resultados artísticos, esperavam-se resultados pessoais e
sociais/culturais (como confiança e autoestima, expressão individual,
trabalho de equipa, compreensão intercultural e participação cultural)
da educação artística na maioria dos países. Em particular, é evidente
um novo enfoque na criatividade (muitas vezes no que respeita à sua
importância na inovação) e na educação cultural (no que respeita à
identidade individual e à promoção da compreensão intercultural) nos
objetivos da educação artística. Neste contexto, surgem dúvidas
quanto à capacidade de o currículo artístico poder cumprir objetivos
tão diversos e abrangentes. (EACEA P9 EURYDICE, 2009, p.9)
Embora não esteja claramente assinalado, o documento apresenta o
entendimento que a educação artística é fundamental para o século XXI na medida em
que a comissão europeia identifica nesta a capacidade de ofertar diversas possibilidades
de formação não presentes numa educação que prescinda da educação artística. Há,
além da defesa da educação artística nas escolas, sugestões de como organizar o
currículo das artes, recomendações de práticas educacionais e para a formação de
professores. A questão do trabalho aqui aparece menos claramente do que no
documento proposto pela UNESCO (2006), todavia este último tem grande influência
na construção do documento europeu, conforme pode ser visto nos excertos a seguir:
O papel da educação artística na formação de competências dos jovens
para o século XXI tem sido amplamente reconhecido a nível europeu.
A Comissão Europeia propôs uma Agenda Europeia para a Cultura,
que foi subscrita pelo Conselho da União Europeia em 2007. Esta
agenda reconhece o valor da educação artística no desenvolvimento da
criatividade. Além disso, o quadro estratégico da UE para a
cooperação europeia no domínio da educação e da formação ao longo
da próxima década realça claramente a importância de competências
essenciais, transversais, incluindo a sensibilidade cultural e a
criatividade. (EACEA P9 EURYDICE, 2009, p.5)
As organizações internacionais demonstraram, nos últimos anos, um
crescente interesse na educação artística, o que resultou numa
evolução política decisiva que constitui o pano de fundo deste estudo.
A UNESCO tem sido um motor do desenvolvimento de iniciativas
políticas na educação e na cultura ao longo da última década. Em
1999, o Diretor-Geral da UNESCO apelou a todas as partes
interessadas no domínio da educação artística e cultural para que
envidassem todos os esforços necessários para atribuir ao ensino das
artes um lugar especial na educação de todas as crianças, desde o
ensino pré-escolar até ao último ano do ensino secundário (UNESCO
1999). Este apelo foi seguido de uma conferência mundial em Lisboa
que assinalou o culminar de uma colaboração internacional de cinco
26
anos, entre a UNESCO e os seus parceiros, no domínio da educação
artística. A conferência afirmou a necessidade de cimentar a
importância da educação artística em todas as sociedades, e deu o
impulso que permitiu a elaboração da obra The wow factor: global
research compendium on the impact of the arts in education (Bamford
2006) e do Roteiro para a educação artística (UNESCO 2006). O
roteiro visava proporcionar argumentos e orientação para reforçar a
educação artística. O documento defende que a educação artística
ajuda a: salvaguardar o direito humano à educação e à participação
cultural; desenvolver capacidades individuais; melhorar a qualidade
da educação; e promover a expressão da diversidade cultural.
(EACEA P9 EURYDICE, 2009, p.7)
Ainda que tergiversando, o documento em questão anuncia a manutenção do
sistema capitalista, por meio da educação artística, cujo fim é o trabalho, além de uma
formação individual ampla, todavia com olhos voltados à inovação e a criatividade
competitiva no trabalho. Desse modo, a formação criativa e inovadora para as
exigências do século XXI reduzir-se-ia à forma capitalista de produção, inclusive a
formação de subjetividades. Diante desse fato, é possível vislumbrar que a escola ideal
para o documento europeu, também é aquela que garante a manutenção do status quo.
Dando prosseguimento às apreciações, apresentam-se os Parâmetros
Curriculares Nacionais Ensino Médio (PCNEM), cujo objetivo é trazer as mesmas
discussões acima realizadas para o âmbito nacional, observando de que modo as
questões relativas à educação artística, nomeada pelo documento do Ministério da
Educação como Arte, aparecem no caso brasileiro. A busca pela qualidade dos cursos
do ensino médio aparece no PCNEM como algo a ser conquistado, a preocupação é
aparente. Sobre esta fase da educação básica, diz o documento:
As propostas de mudanças qualitativas para o processo de ensino-
aprendizagem no nível médio indicam a sistematização de um
conjunto de disposições e atitudes com o pesquisar, selecionar
informações, analisar, sintetizar, argumentar, negociar significados,
cooperar, de forma que o aluno possa participar do mundo social,
incluindo-se aí a cidadania, o trabalho e a continuidade dos estudos.
(MEC, 2000, p.5)
Depois de fazer uma definição bastante ampla do nível médio, ao tratar a arte, no
âmbito da área de Linguagens, códigos e suas tecnologias, o documento destaca a
importância da arte na formação do indivíduo. Quer dizer, na parte destinada à arte,
busca-se estabelecer que a linguagem artística é capaz de oferecer leituras diferenciadas
27
de determinado período histórico, observando a estética, o conteúdo e a forma por meio
das quais se apresentam as obras artísticas. Dessa forma, parece ser objetivo do
documento reiterar a importância da arte na formação cultural do estudante, dando a ela
peso e importância semelhantes à Língua Portuguesa, por exemplo. Todavia, o trabalho
aparece como, mais uma vez, o fim de toda a proposta pedagógica que inclui o ensino
de arte no ensino médio.
Conhecer arte no Ensino Médio significa os alunos apropriarem-se de
saberes culturais e estéticos inseridos nas práticas de produção e
apreciação artísticas, fundamentais para a formação e o desempenho
social do cidadão. Na escola de Ensino Médio, continuar a promover o
desenvolvimento cultural e estético dos alunos com qualidade, no
âmbito da Educação Básica, pode favorecer-lhes o interesse por novas
possibilidades de aprendizado, de ações, de trabalho com a arte ao
longo da vida. (MEC, 2000, p. 46)
Também se faz presente no conteúdo argumentativo dessa proposta o resgate
histórico do que foi o ensino de arte em décadas anteriores, no sistema educacional
brasileiro. Junto a isso busca detalhar a luta pela incorporação da arte pela Lei de
Diretrizes e Bases de 1996 como disciplina a ser ministrada no nível médio de ensino.
Em grupo, lutou-se para que a Arte se tornasse presente nos currículos
das escolas de Educação Básica no Brasil e fizesse parte da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, Lei nº 9.3 94
(Art.26, Parágrafo 2). E continuou-se estudando e atuando para que a
arte se tornasse um conhecimento cada vez mais fortalecido na
educação, com qualidade e no mesmo patamar de igualdade com os
demais conhecimentos humanos presentes na escola básica.
Mobilizados pela necessidade de construção coletiva de uma história
contemporânea de aprendizagem de diversas linguagens artísticas,
desenvolvidas na disciplina Arte de nossas escolas de Educação
Básica, dentre elas a de Ensino Médio, são urgentes, então, muitos
estudos, pesquisas, discussões, mudanças profundas nos valores,
conceitos e práticas que sustentem a presença da Arte, de suas
linguagens, de seus modos de conhecer contemporâneos em nossas
escolas. (MEC, 2000, p. 47-48)
A finalidade do estudo de arte está bem caracterizada no texto: ele estaria
voltado para a formação do indivíduo como ser crítico, capaz de fazer arte e
compreendê-la. Além disso, há a necessidade de justificar o estudo da arte e, por isso
mesmo, instrumentalizá-lo e torná-lo utilitário. Em outras palavras, o estudo de arte no
ensino médio deverá dotar o aluno de, para usar os termos presentes no texto,
28
“competências” para que ele faça cotejamentos com a sua realidade e produza a partir
daí, o que pode ser visto nos excertos:
O intuito do processo de ensino e aprendizagem de Arte é, assim, o de
capacitar os estudantes a humanizarem-se melhor como cidadãos
inteligentes, sensíveis, estéticos, reflexivos, criativos e responsáveis,
no coletivo, por melhores qualidades culturais na vida dos grupos e
das cidades, com ética e respeito pela diversidade. Neste âmbito,
dentre as competências gerais em Arte no Ensino Médio propomos
que os alunos aprendam, de modo sensível-cognitivo e
predominantemente, as competências arroladas neste texto: realizar
produções artísticas e compreendê-las; apreciar produtos de arte e
compreendê-los; analisar manifestações artísticas, conhecendo-as e
compreendendo-as em sua diversidade histórico-cultural. (...) Nas
aulas de Arte, os alunos do Ensino Médio, ao darem continuidade ao
seu aprendizado de fazer produtos em linguagens artísticas, podem
aperfeiçoar seus modos de elaborar ideias e emoções, de maneira
sensível, imaginativa, estética tornando-as presentes em seus trabalhos
de música, artes visuais, dança, teatro, artes audiovisuais. A partir das
culturas vividas com essas linguagens no seu meio sociocultural e
integrando outros estudos, pesquisas, confrontando opiniões,
refletindo sobre seus trabalhos artísticos, os alunos vão adquirindo
competências que se estendem para outras produções ao longo de sua
vida com a arte. (MEC, 2000, p. 50-51)
Os Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio: Orientações Educacionais
Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais/Linguagens, códigos e suas
tecnologias, também conhecidos como PCNEM+, reafirmam e, muitas vezes, tornam
mais claras as declarações feitas no PCNEM. A começar pela questão de ser ou não o
ensino médio um repositório de mão de obra no mercado de trabalho, passando pela
própria necessidade de se dar conta de aspectos que prestam contas às questões relativas
ao acesso e à qualidade, conforme pode ser observado:
A reformulação do ensino médio no Brasil, estabelecida pela Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, regulamentada em
1998 pelas Diretrizes do Conselho Nacional de Educação e pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais, procurou atender a uma
reconhecida necessidade de atualização da educação brasileira.
Atualização necessária tanto para impulsionar uma democratização
social e cultural mais efetiva, pela ampliação da parcela da juventude
que completa a educação básica, como para responder a desafios
impostos por processos globais, que têm excluído da vida econômica
os trabalhadores não qualificados, por conta da formação exigida de
todos os partícipes do sistema de produção e de serviços. A expansão
exponencial do ensino médio brasileiro é outra razão pela qual esse
nível de escolarização demanda transformações de qualidade, para
adequar-se à promoção humana de seu público atual, diferente daquele
29
de há trinta anos, quando suas antigas diretrizes foram elaboradas.
(MEC, 2002, p. 7-8)
No texto do PCNEM+ aparecem mais claramente as justificativas de porque o
ensino médio teve de ser reformulado, fazendo isso por meio de comparações entre o
que era o antigo ensino médio e o que propõe o novo. Segundo o documento, no modelo
que foi substituído havia uma divisão clara entre o que nomeou ensino médio pré-
universitário, aquele que por meio de disciplinas compartimentadas pretendia oferecer
ao estudante uma formação suficiente para que este pudesse dar continuidade aos
estudos, e o que se destinava, exclusivamente, à formação para a atividade produtiva.
Na linha argumentativa do documento, o novo ensino médio, pós-reforma, tem como
princípio formar o cidadão para a vida, de modo que o sujeito possa se colocar na
sociedade moderna; para isso, contempla a formação integral e mais abrangente do
indivíduo. Mais ainda, o documento reconhece que as mudanças se fizeram necessárias
por pressões econômicas, embora não as critique.
O novo ensino médio, nos termos da lei, de sua regulamentação e
encaminhamento, deixa, portanto, de ser apenas preparatório para o
ensino superior ou estritamente profissionalizante, para assumir a
responsabilidade de completar a educação básica. Em qualquer de
suas modalidades, isso significa preparar para a vida, qualificar para a
cidadania e capacitar para o aprendizado permanente, seja no eventual
prosseguimento dos estudos, seja no mundo do trabalho. As
transformações de caráter econômico, social ou cultural que levaram à
modificação dessa escola, no Brasil e no mundo, não tornaram o
conhecimento humano menos disciplinar em qualquer das três áreas
em que o novo ensino médio foi organizado. (MEC, 2002, p. 8)
Sobre as disciplinas curriculares, há a tentativa de organizar três áreas de
conhecimento que devem se articular, buscando com isso conferir mais sentido para o
conhecimento escolar. São elas: linguagens, códigos e suas tecnologias; ciências da
natureza, matemática e suas tecnologias; e ciências humanas e suas tecnologias.
Especificamente sobre arte, o documento apresenta as mesmas vinculações que os
anteriores já analisados, na medida em que associa o contato com expressões artísticas
com posterior aplicação prática:
Trata-se aqui de integrar à arte o uso das novas tecnologias da
comunicação e de informação (NTCI), analisando as possibilidades de
30
criação, apreciação e documentação que os novos meios oferecem.
Para isso, cabe estimular o aluno a refletir sobre a produção de
poéticas que se valem de meios como rádio, vídeo, gravador,
instrumentos acústicos, eletrônicos, filmadoras, telas informáticas,
assim como outras tecnologias integrantes das artes visuais,
audiovisuais, música, dança e teatro. (MEC, 2002, p. 187)
É bom dizer que todo o conteúdo construído para orientar as práticas pedagógicas
parece ter sido fortemente influenciado pelo que defende a UNESCO, haja vista a
referência clara à entidade no texto que contém as propostas, conforme o seguinte
excerto:
São quatro os saberes propostos pela UNESCO (Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) que funcionam
como pilares da educação nas sociedades contemporâneas: aprender a
conhecer; aprender a fazer; aprender a viver com os outros; aprender a
ser. São saberes cuja conquista ultrapassa a mera aquisição de
informação, uma vez que abarcam a formação humana e social do
indivíduo. Objetivos tão amplos certamente não serão atingidos com
um ensino conteudista e fragmentado. Por isso, o conhecimento que se
quer proporcionar ou construir deve ser reflexivo e crítico nas três
áreas propostas pelos PCNEM e no estrato que as transcende: a
cultura, termo aqui empregado em sentido amplo. Esse conhecimento
deve ser encarado não só como produto da ação humana mas também
como instrumento de análise, transformação e criação de uma
realidade concreta. (MEC, 2002, p. 23)
O Estado de Minas Gerais publicou, recentemente, um documento intitulado
Reinventando o Ensino Médio. O próprio título é algo revelador, já que, a partir dele,
presume-se que alterações são propostas para o nível médio da educação básica.
Publicado em 2013, a proposta já conta com um projeto piloto, experiência que
antecede a universalização do projeto no estado em 2014. Abertamente, o documento
propõe a reformulação do ensino médio para que atenda as necessidades, inclusive
econômicas e de mão de obra, da sociedade coeva, colocando, definitivamente, esta
etapa da educação básica a serviço do mercado. Sobre isso, assevera:
As mudanças de grande amplitude que caracterizam a sociedade
contemporânea vêm causando um impacto de proporções inéditas no
campo educacional. O aumento crescente da demanda por mais
escolaridade, a busca urgente por novas formações, a necessidade de
estruturas e percursos curriculares dotados de flexibilidade, os novos
papéis exigidos do professor, a chegada de mercado e recursos
pedagógicos tecnologicamente avançados, a evidente limitação das
31
metodologias mais ortodoxas, somados a tantos outros fatores,
constituem um desafio para quaisquer sociedades, particularmente
para as instituições que nelas estão mais estritamente associadas à
educação. (...) Embora o projeto iluminista clássico do acesso
generalizado à educação permaneça inteiramente procedente, a
questão do conhecimento ganha, nos nossos dias, importância e
gravidade suplementares, uma vez que assistimos a uma aproximação
crescente entre mundo do trabalho e mundo do conhecimento.
Profissões, mesmo antigas, quando não deixam de existir, são
agudamente transformadas pelo quantum de conhecimento mais
formal que exigem. Tudo isto confere ao conhecimento um lugar
inédito, bem como traz para os que são, de algum modo, responsáveis
pela gestão da educação, responsabilidades adicionais. (...) A
adequada aproximação entre educação, empregabilidade e cidadania é
uma exigência a ser cumprida por quaisquer políticas educacionais
compatíveis com a contemporaneidade. Reformas educacionais, não
importa o seu escopo ou amplitude, devem levar em conta cada um
destes fatores e, sobretudo, a articulação entre eles. Em vista desse
cenário, cuja complexidade não é possível exagerar, a Secretaria de
Estado de Educação entendeu como urgente um exame mais alentado
do sistema educacional sob sua responsabilidade, particularmente o
Ensino Médio, nas três séries que o integram. (SEE/MG, 2013, p. 5-6)
O Reinventando o Ensino Médio não apresenta nenhuma descrição mais
detalhada de qual seria o papel da arte na formação dos jovens frequentadores do ensino
médio. Contudo reitera diversas vezes o papel de promover a colocação no mercado de
trabalho que deve ter essa etapa da educação básica. Mais do que isso, afirma que a
função deste projeto é apenas promover o ingresso dos jovens no mundo do trabalho, de
modo que se insiram em suas comunidades, conforme pode ser observado:
Assim, podemos dizer que o Reinventando o Ensino Médio resulta de
múltiplos fatores e permite ampliar um repertório de informações e
desenvolvimento de habilidades compostas por uma pluralidade de
conhecimentos teórico-práticos, capazes de consolidar a formação de
jovens, ressignificando-lhes a aprendizagem, preparando-os para o
mundo do trabalho, pautando-se para tal em princípios de
interdisciplinaridade, contextualização, transdisciplinaridade,
democratização, privilegiando a pertinência e a relevância social,
ética, estética tornando esse jovem partícipe de sua história, capaz de
alterar e intervir positivamente na sociedade e, principalmente, na
comunidade em que estiver inserido. (SEE/MG, 2013, p.22)
Para dar conta da empregabilidade a que se refere o documento, o governo do
estado tratou de desenvolver “áreas de empregabilidade”, divididas em: recreação
cultural; produção cultural; reciclagem; turismo; comunicação aplicada, meio ambiente
32
e recursos naturais; tecnologia da informação; gestão pública; estudos avançados:
linguagens; estudos avançados: ciências; estudos avançados: humanidades e artes; lazer,
empreendedorismo e gestão; desenvolvimento de habilidades cognitivas; vida e bem
estar; webdesign; desenvolvimento agrícola e sustentabilidade; e saúde – familiar e
coletiva. A partir delas, cada escola de ensino médio do sistema estadual deverá
escolher, dessa divisão, duas ou três áreas, então, receberá a estrutura curricular
correspondente.
Guardadas as devidas proporções e diferenças, todos os documentos citados
neste capítulo apresentam formulações que indicam o fato da educação estar subsumida
aos interesses relacionados ao desenvolvimento e manutenção do sistema capitalista ou
à ampliação do mercado de trabalho. Dessa perspectiva, as escolas não passam de
verdadeiras reservas de mão de obra para a engrenagem do sistema produtivo, ainda que
seja considerada importante a formação cultural do estudante.
Diante do exposto, caminha-se, na sequência, para a análise teórica, à luz dos
conceitos cunhados pelos autores da Escola de Frankfurt, para melhor delinear as
circunstâncias que engendram a tendência de submissão da educação à lógica do
trabalho e, portanto, do capital.
33
Capítulo 2 – Modernidade, Escola e Formação Cultural
Ao realizar o levantamento bibliográfico para esta pesquisa observou-se que
outros pesquisadores haviam caminhado na tentativa de melhor compreender sob que
circunstâncias ocorre a formação cultural. Todavia, a grande maioria dos trabalhos
aponta para outras direções que não são tratadas nesta pesquisa. Para concretizar o
trabalho de levantamento bibliográfico, priorizou-se a busca no banco de teses da
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), da PUC-SP
(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), da FEUSP (Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo), além do sistema Scielo de buscas de artigos publicados nos
mais diversos periódicos. Nesses ambientes virtuais utilizou-se os descritores: projeto
político pedagógico (PPP); formação cultural (bildung); arte e educação; educação e
trabalho; ensino médio; e educação artística. Posteriormente, a seleção dos trabalhos
aconteceu, especificamente, pela leitura dos resumos de cada trabalho e pela
identificação da base teórica utilizada pelos autores. Isto porque bildung, conceito
central dessa investigação, atende diferentes perspectivas, entre as quais a de Antoine
Berman, a de Friedrich Nietzsche, além daquela proposta pela Escola de Frankfurt.
Assim, o descritor Projeto Político Pedagógico (PPP) indicou muitos trabalhos
que, em sua maioria, analisam o quadro geral de produção dos PPP, levando em conta
as condições de sua produção, ou seja, se foram construídos coletivamente ou impostos
pela direção. Quer dizer, as tensões oriundas da construção destes aparecem nas
pesquisas. Outros trabalhos, entre teses, dissertações e artigos, tratavam de políticas
para a educação e da formação da subjetividade do indivíduo que passa pela escola. É
claro que esta proposta tem como finalidade também contribuir para a melhor
compreensão de como a subjetividade do indivíduo é construída, contudo não se trata
do objeto aqui estudado e, portanto, não é analisada detidamente.
De todos os trabalhos a que se teve acesso, observou-se que, no que se refere à
formação cultural do indivíduo jovem que frequenta o ensino médio, a produção da
PUC-SP é a mais significativa, isso em termos quantitativos, sem, no entanto, desprezar
os aspectos da qualidade que também estão presentes. Razão pela qual, tornaram-se
referência na composição desta pesquisa. Vale lembrar que esta pesquisa contou com o
levantamento de dados por meio de documentos produzidos em distintos âmbitos; tanto
34
em esfera internacional, bem como nos domínios nacional, estadual e local. Além disso,
a visita a campo aconteceu, no sentido de observar as instalações físicas de cada uma
das escolas analisadas.
2.1 A Escola e a Modernidade
A modernidade gerou pressões de todas as ordens a partir da disputa que se
impôs entre sociedade e indivíduo. Pessoas de todas as origens são rotuladas e avaliadas
por meio de indicadores que funcionam como uma espécie de termômetro capaz de
inferir possibilidades no futuro que se avizinha. A manutenção do funcionamento da
sociedade depende, fundamentalmente, de que as futuras gerações estejam
absolutamente adaptadas para serem “dentes” da engrenagem macroeconômica. O preço
dessa integração parece cobrar caro do indivíduo que, nessas circunstâncias, tem o
desenvolvimento de seu eu e de sua subjetividade prejudicado em prol da sustentação
do modelo de sociedade vigente.
(...) penso que atualmente a sociedade premia em geral uma não-
individuação; uma atitude colaboracionista. Paralelamente a isso
acontece aquele enfraquecimento da formação do eu, que de há muito
é conhecida da psicologia como “fraqueza do eu”. Por fim, é preciso
lembrar também que o próprio indivíduo, e, portanto, a pessoa
individualizada que insiste estritamente no interesse próprio, e que,
num certo sentido considera a si mesma como fim último, também é
bastante problemática. Se hoje o indivíduo desaparece – não tem jeito,
sou um velho hegeliano –, então também é verdade que o indivíduo
colhe o que ele mesmo semeou. (ADORNO, 2011, p. 153)
De outra parte, é possível verificar considerações acerca da situação e do
desempenho da educação em todos os níveis, sobretudo a da educação básica. Nos
últimos anos, especialmente no Brasil, a educação tem ganhado, cada vez mais, espaço
nas discussões, visto que ela está supostamente imersa num processo acentuado de
crise. De fato, é a qualidade da educação que se faz presente nos discursos das
autoridades, todavia o termo “qualidade” parece não ser suficiente para melhor
descrever, ou especificar, o que realmente se busca com as análises feitas sobre as
funções efetivas da educação. Frequentemente pesquisas apontam a educação básica
como elemento que não tem se mostrado capaz de formar novos quadros, pelo menos
35
em número suficiente, para ocupar os postos de trabalho disponibilizados pelo mercado.
Como pode ser visto no excerto a seguir:
Por sua vez, na chamada era da sociedade da informação e do
conhecimento, pergunta-se sobre o futuro da escola de nível médio
diante das novas formas de provisão e modalidades de aprendizagem.
A difusão da informação é tão rápida e disponível para a maioria da
população que talvez não existam nem instituições nem profissionais
capazes de desempenhar mais eficazmente essa tarefa do que as novas
tecnologias da informação e comunicação. [...] a ampliação das
modalidades de informação e comunicação está fragilizando o papel
da escola e o caráter formativo da profissão docente e que a escola já
não responde sequer à formação requerida pelo mercado de trabalho.
O jovem está acuado pela incerteza do mundo do trabalho, o que o
leva a uma atitude imediatista em suas expectativas em relação à
escola. (KRAWCZYK, 2011, p. 690-91)
Isto é, a referida “qualidade” é, na verdade, a manifestação da preocupação com
a manutenção do sistema econômico vigente. Quer isso dizer: a crise no campo
educacional ocorreria exatamente porque não está formando quadros capazes de ocupar
os cargos que as modernas relações de trabalho impõem como condição para o
progresso material da sociedade contemporânea. Assim, pergunta-se: que tipo de
indivíduo é necessário para a manutenção e reprodução do sistema econômico no
momento atual? Para Pineau (2008), a escola e a modernidade compõem uma relação
mutualística, quer dizer, ambos são interdependentes entre si. A discussão ganha corpo
quando o autor assinala que a instituição escolar, de certo modo, perdeu vigor, uma vez
que tem enfrentado fortes crises. Embora isso pareça corresponder à atualidade, por
outra via, a escola se apresenta como se nunca estivesse sido tão necessária ou, pelo
menos, jamais tenha recebido tanta responsabilidade no que se refere às garantias de um
futuro melhor para as próximas gerações. A questão que se impõe é: a escola é capaz de,
efetivamente, garantir o futuro de alguém? Parece que não, todavia sem ela as incertezas
são maiores. O que fazer? Abolir a escola? Transformá-la?
Pineau (2008) ainda faz menção ao sujeito cartesiano e a formação de suas
certezas por meio das disciplinas escolares; a maior diferença, talvez, entre esse sujeito
e aqueles que são formados na contemporaneidade reside justamente na capacidade de
elaborar certezas. A sociedade hodierna ganhou contornos que jamais foram
experimentados em qualquer outro momento da história humana. Nela as
transformações ocorrem muito rapidamente e junto com as mudanças se vão também as
certezas, que dão lugar a “idade das angústias”, conforme Marcuse (2010).
36
Com o declínio da consciência, com o controle da informação, com a
absorção do indivíduo na comunicação em massa, o conhecimento é
administrado e condicionado. O indivíduo não sabe realmente o que se
passa; a máquina esmagadora de educação e entretenimento une-o a
todos os outros indivíduos, num estado de anestesia do qual todas as
ideias nocivas tendem a ser excluídas. E como o conhecimento da
verdade completa dificilmente conduz à felicidade, essa anestesia
geral torna os indivíduos felizes. Se a ansiedade é mais do que um
mal-estar geral, se é uma condição, um estado existencial, então esta
chamada “idade de angústia” distingue-se pelo grau em que a
ansiedade desapareceu de qualquer forma de expressão. (MARCUSE,
2010, p. 102)
A instituição escolar, enquanto organização, não consegue acompanhar, e nem
tem incentivos para fazê-lo, os rápidos e irrefreáveis rearranjos provocados pelas
constantes mudanças nas relações sociais e nas formas de sociabilidade (cabe perguntar
se realmente isso é algo com o que os educadores deveriam se preocupar). Uma das
frases símbolo da Modernidade parece cada vez mais distante – “Penso, logo existo”,
cunhada por René Descartes – e cada dia ter menos sentido na sociedade atual, pois
quanto menos capacitado para pensar, mais apto à adaptação o indivíduo se encontra.
Diante de questões como essa, acirram-se os conflitos entre sociedade e indivíduo. A
instrução que forneceria ao homem os elementos essenciais para fazer parte da
sociedade permanece presente na escola, sem, contudo, parecer gozar da mesma
eficiência de outrora.
A cisão entre indivíduo e sociedade permeia a história humana desde há muito,
todavia ganhou grande projeção e atenção de diversos estudiosos a partir das
considerações de Freud, especialmente em O Mal-estar na civilização. O pai da
psicanálise descreve a relação que o indivíduo estabelece com a civilização, assinalando
que a repressão dos instintos humanos, condição fundamental para a civilização, se faz
pela compensação, mecanismo presente na economia psíquica, ofertada pela própria
sociedade, que é a segurança. Quer dizer, na condição de indivíduo subjugado às
circunstâncias da natureza, o homem não gozaria da mesma segurança de que dispõe
quando se organiza em grupo; por esta razão se dá a repressão dos instintos humanos.
Ainda assim, Freud afirma ser esta uma situação irreconciliável, como se pode ver no
excerto a seguir:
Assim também as duas premências, a que se volta para a felicidade
pessoal e a que se dirige para a união com os outros seres humanos,
37
devem lutar entre si em todo indivíduo, e assim também os dois
processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de
colocar-se numa oposição hostil um para com o outro e disputar-se
mutuamente a posse do terreno. Contudo, essa luta entre o indivíduo e
a sociedade não constitui um derivado da contradição –
provavelmente irreconciliável – entre os instintos primevos de Eros e
da morte. (FREUD, 2002, p. 106)
A lógica ambivalente da constituição do sujeito moderno, representada pela luta
entre indivíduo e sociedade, talvez tenha conduzido o homem, parcialmente, da sua
animalidade para a “desejável” civilização, para a racionalidade moderna. Contudo,
fundamental é perguntar pela educação e pelas formas a partir das quais lida com as
incertezas geradas pelo sistema capitalista contemporâneo. A era da angústia produzida
pela impotência diante dos poderes que os indivíduos não têm nenhuma influência
substituiu, definitivamente, a das certezas. Mais do que isso, os esforços da
“civilização” para exercer domínio e incutir no indivíduo as regras sociais, para que ele
mesmo possa sentir-se parte do corpo social, já não são mais suficientes para surtir os
efeitos esperados; ou seja, o modelo sob o qual se erigiu a escola não tem oferecido os
“produtos” necessários à adequada manutenção da sociedade permeada pelas incertezas
(Freitas, 2009).
Sobre a função da escola diante das relações sociais e de toda a sociedade
moderna, Adorno (2011) assevera que o desejável seria que também a escola, como a
família, realizasse esforços no sentido de fortalecer o ego do indivíduo, ao que se soma
o incentivo à resistência. Além disso, o ideal seria que ações desse tipo estivessem
voltadas para todos os níveis de educação, inclusive a educação infantil. Isso porque,
ainda segundo Adorno (2011), a sociedade moderna impõe a adaptação forçada, já que
uma série abundante de práticas, senão todas, convergem para que a adaptação ocorra.
Por essa razão, também, o autor indica a necessidade de educação política, no sentido de
que as ações e as relações de força e poder, aparentemente corriqueiras e normais, sejam
postas à prova.
Afinada com essa interpretação – de que a escola se encontra em descompasso
com a realidade social mais ampla –, Luiz Carlos de Freitas (2009) discorre sobre esse
momento de insegurança pelo qual passa a sociedade e, por consequência, a escola:
Com a flexibilização da produção e da força de trabalho (que, no dizer
de Bauman, não gera exército de reserva apenas, mas de fato uma
população redundante que está sendo encarcerada como infratora da
ordem, sem possibilidade de trabalho), com a financeirização do
38
capital e a virtualização do fluxo de capital em redes flexíveis de
agregação de valor (que precarizam o trabalho humano), a
característica de nosso tempo passa a ser a insegurança, a ausência de
previsibilidade do futuro – que algumas teses pós-modernas captam e
louvam ingenuamente como “incerteza”, retirando do debate a própria
discussão sobre as novas formas de produção da vida material. Neste
processo, somos jogados em correntes de competição, obrigados a
“lançar os dados todos os dias” e seguir o resultado do dia na
expectativa do dia seguinte. Eventuais valores favoráveis obtidos no
jogo do dia devem ser vistos com cuidado, pois no dia seguinte podem
acontecer resultados desfavoráveis e os valores desfavoráveis de um
dia não devem ser vistos como definitivos, pois podem ser favoráveis
no dia seguinte (Bauman, 2001). Como afirma Peters, por precaução,
esteja preparado para o pior. A tônica passa a ser a insegurança, que
acirra a competição (colocando as pessoas de forma fragmentada e
isolada no espaço, ainda que conectadas por nós (“rizomáticos”),
acelera todos os tempos até a instantaneidade da extraterritorialização
do celular, vulnerabiliza resistências, externaliza custos e maximiza
lucros. Nesse clima, não há futuro, há o agora. (FREITAS, 2009,
p.140-41)
Ou seja, a escola está inserida numa realidade absolutamente caracterizada pelo
imediatismo, difundida pelas próprias práticas sociais e, também, pela chamada
indústria cultural. No arranjo social em que se encontra a sociedade contemporânea é
fundamental compreender de que forma determinadas ações operam e, principalmente,
quais impactos engendram na conformação das consciências. Assim, parece ser
imprescindível melhor salientar as relações estreitas entre indústria cultural e a escola na
era da insegurança.
A indústria cultural extrai da chamada alta cultura e também da cultura popular
elementos e os introduz em outro âmbito, cujo único objetivo é a venda no mercado.
Aquilo que é repetidamente apresentado como novo, sem realmente o ser, tem a função
de garantir lucro, ou seja, deve ser comercializável. Nesse sentido, a indústria cultural
opera de forma a transformar a arte e a cultura em mercadorias e a padronizar gostos,
hábitos e disposições. Esses produtos são apresentados como novidades, todavia estão
permeados daquilo que já foi testado. Assim, são reproduzidas as chamadas fórmulas de
sucesso. Sobre isso, escreveu Adorno:
O que na indústria cultural se apresenta como um progresso, o
insistentemente novo que ela oferece, permanece, em todos os seus
ramos, a mudança de indumentária de um sempre semelhante; em toda
parte a mudança encobre um esqueleto no qual houve tão poucas
mudanças como na própria motivação do lucro desde que ela ganhou
ascendência sobre a cultura. (ADORNO, 1978, p. 289)
39
É neste cenário que a UNESCO, em 2006, realizou em Lisboa – Portugal a “I
Conferência Mundial de Educação Artística”, a partir da qual publica, no mesmo ano, o
“Roteiro para a Educação Artística”; documento que elege tal prática como fundamental
para a “melhoria da qualidade da educação”, o que aparece justificado nos seguintes
termos:
Estudos mostraram que a iniciação dos educandos nos processos
artísticos, desde que se incorporem na educação elementos da sua
própria cultura, permite cultivar em cada indivíduo o sentido de
criatividade e iniciativa, uma imaginação fértil, inteligência emocional
e uma “bússola” moral, capacidade de reflexão crítica, sentido de
autonomia e liberdade de pensamento e ação. Além disso, a educação
na arte e pela arte estimula o desenvolvimento cognitivo e pode tornar
aquilo que os educandos e a forma como aprendem, mais relevante
face às necessidades das sociedades modernas em que vivem.
(UNESCO, 2006, p. 6)
Vale lembrar que a ação educativa é o reflexo da tradição, ou seja, as práticas
escolares são, por excelência, o resultado de acúmulo progressivo de tradições; “(...) la
tradición es contenido y método de la educacion” (GIMENO SACRISTÁN, 1999, p.
91). Todavia, não se trata de adotar uma postura conservadora, e sim reconhecer que
não há educação sem observação da tradição; não é possível caminhar adiante sem antes
olhar para o passado e para a herança cultural de que a sociedade dispõe. A educação é,
portanto, a mediadora de toda a cultura. Diante disso, é possível perceber inúmeros
esforços na direção de repensar a prática, isto é, o modo de fazer e de apresentar a
herança cultural aos alunos. Em outras palavras, a educação, especialmente a escolar,
guarda em si mesma duas potencialidades antagônicas e complementares. Há uma que
tende à conservação do status quo, portanto à reprodução das desigualdades; e há outra
que tende à negação ou à tentativa de promover questionamentos em relação à realidade
vivida. Tudo isso permite assinalar que é exatamente essa a razão pela qual uma mesma
preocupação, a educação, pode despertar visões e procedimentos tão antagônicos. Sobre
as que figuram no trecho citado – do documento assinado pela UNESCO (2006) –, a
primeira propõe que a educação seja, efetivamente, libertadora, no sentido de promover
o esclarecimento; enquanto a segunda proposta postula ser a educação apenas um
instrumento, um meio, para o trabalho.
De forma geral, o documento proposto pela UNESCO é a materialização de um
ideal de formação do indivíduo que substituiu outros anteriores. Da Antiguidade grega à
Idade Média, o ideal de formação do indivíduo deveria prestar contas com a ética. A
40
partir do período Moderno, especialmente no Século das Luzes, a formação política
torna-se o ideal, na medida em que ofereceria ao indivíduo as melhores condições de
inserção na sociedade. No entanto, esses modelos parecem superados, uma vez que o
que prevalece na contemporaneidade é o ideal de formação cultural (Severino, 2006),
muito embora esta não se realize, predominando o que Adorno (1966) denomina de
pseudocultura, conceito explorado mais adiante.
Na atualidade, a educação, nos discursos das mais variadas origens, é tida como
aquela capaz de oferecer um salvo-conduto para o futuro, seja ele de qual ordem for,
apesar de que não seja raro ouvir pronunciamentos e considerações acerca da crise pela
qual passa a educação em qualquer âmbito considerado, porém, em especial, a educação
básica. No Brasil, por exemplo, discussões tentam estabelecer diretrizes com vistas a
melhorar a qualidade da educação no país, e como justificativa sempre se apresenta a
ausência de mão de obra qualificada para o trabalho, discussão presente também no
excerto:
A educação, como processo pedagógico sistematizado de intervenção
na dinâmica da vida social, é considerada hoje objeto priorizado de
estudos científicos com vistas à definição de políticas estratégicas para
o desenvolvimento integral das sociedades. Ela é entendida como
mediação básica da vida social de todas as comunidades humanas.
Esta reavaliação, que levou à sua revalorização, não pode, no entanto,
fundar-se apenas na sua operacionalidade para a eficácia funcional do
sistema socioeconômico, como muitas vezes tendem a vê-la as
organizações oficiais, grandes economistas e outros especialistas que
focam a questão sob a perspectiva da teoria do capital humano.
(SEVERINO, 2000, p.65)
A formação cultural tornou-se um discurso performativo e ressonante nos fóruns
de discussão que pretendem propor soluções para melhorar a qualidade da educação.
Por essa razão, parece ser necessário melhor analisar o conceito de formação cultural.
Para tanto, a Escola de Frankfurt se apresenta como um aporte teórico necessário.
2.2 A formação cultural (bildung)
Para discutir as questões acerca da formação cultural são importantes as
contribuições da Escola de Frankfurt. Ao falar em formação cultural (bildung), Adorno
se refere à formação da personalidade integral do indivíduo e, mais do que isso, a
formação é a expressão subjetiva da cultura. A formação cultural a qual Adorno (1966)
41
se refere em Teoria da La Seudocultura acontece na tensão entre a subjetivação da
cultura, por meio da educação (que não se limita a esfera formal), e a própria realidade
objetiva em que o sujeito está inserido. Portanto, a formação cultural é fruto da ação
subjetiva na objetividade, que é formada e transformada por tal ação. Para Adorno
(1966), o conceito de formação tem sua origem junto ao surgimento e desenvolvimento
da noção burguesa de igualdade, justiça e liberdade, promessas estas, vale lembrar, que
não se cumpriram sob o capitalismo, especialmente na atualidade. A formação, por
conseguinte, traz consigo a inarredável presença da liberdade, sob a qual a
espontaneidade é permitida e absolutamente desejável. Sem essa noção, junto com a de
criatividade, a formação não pode acontecer; no entanto, não é possível se manifestar
completamente sem a sombra da coerção, algo indesejado, porém indissociável, do
modo de produção capitalista. De outra parte, o conceito de ideologia é fundamental
para compreender melhor como poderia acontecer a formação cultural. Temos que:
Quanto mais os bens culturais assim elaborados forem
proporcionalmente ajustados aos homens, tanto mais estes se
convencem de ter encontrado neles o mundo que lhes é próprio. (...)
Para resumir numa só frase a tendência inata da ideologia da cultura
de massa, seria necessário representá-la numa paródia da frase:
“Converte-te naquilo que és”, como duplicação e super-ratificação da
situação já existente, o que destruiria toda perspectiva de
transcendência e de crítica. (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p.
202)
No tocante à formação, Marcuse (1982), em A Ideologia da Sociedade
Industrial, faz reflexões acerca da necessidade da experiência como condição formativa
para o sujeito, ao mesmo tempo em que esclarece que a formação não deve ser
considerada na sua dimensão unicamente psicológica e sim como fruto das relações
objetivas. Ou seja, não é possível pensar em formação sem levar em conta as relações
sociais de dominação sob as quais a sociedade contemporânea se erigiu.
Em vista dessas características, a consciência poderá ser chamada
disposição, propensão ou faculdade. Não é, contudo, a disposição ou
faculdade de um indivíduo entre outros, mas, em sentido estrito, uma
disposição geral que é comum, em diversos graus, aos membros
individuais de um grupo, classe, sociedade. Nessas bases, a distinção
entre consciência verdadeira e falsa se torna significativa. Aquela
sintetizaria os dados da experiência em conceitos que refletem a
sociedade em questão nos fatos em questão tão plena e
adequadamente quanto possível. Essa definição "sociológica" não é
sugerida em razão de qualquer preconceito a favor da Sociologia, mas
42
por causa da invasão da sociedade nos dados da experiência.
Consequentemente, a repressão da sociedade na formação de
conceitos é equivalente a um confinamento acadêmico da experiência,
uma restrição do significado. (Marcuse, 1982, p. 195)
A formação cultural, portanto, é fruto da relação com a realidade objetiva. No
entanto, se esta é permeada pela ideologia, é claro que fica comprometida, uma vez que
a ideologia se caracteriza pela falsa consciência acerca da realidade objetiva. Por isso
mesmo, Adorno (1966) apresenta o conceito de pseudoformação, a correspondência
direta com a “pseudorrealidade”, que, logo, engendra a “pseudo-individuação”. Esse
autor assevera que uma falsa apreensão da realidade ou da cultura, portanto, a
pseudoformação, é muito mais danosa para o indivíduo do que a ausência dela, já que
promove uma falsa sensação de conhecimento, o que incapacita o indivíduo para a
experiência cultural. Para exemplificar isso, o autor destaca uma pesquisa que fora
realizada entre um grupo ouvintes de rádio e um grupo que presenciava execuções
musicais. Verificou-se que havia uma enorme diferença no que diz respeito à
compreensão da obra e à experiência relatada. Quer dizer, aqueles que tiveram o rádio
como mediador do fenômeno cultural não percebiam na música nada de excepcional,
enquanto que os outros (aqueles que presenciaram a execução) tinham conceitos
bastante melhor formulados.
Cuando el campo de fuerzas que llamamos formación se congela en
categorias fijadas, ya sean las de espíritu o de naturaleza, las de
soberania o de acomodación, cada una de ellas, aislada, se pone en
contradicción con lo que ella misma mienta, se presta a una ideología
y fomenta una formación regresiva o involución. (ADORNO, 1966,
p.237)
Portanto, a pseudoformação coloca o indivíduo, ainda mais, nos enclaves
definidos pela ideologia da sociedade do capitalismo tardio, de modo que este torna-se
mais uma parte da engrenagem econômica e do aparato que reproduz a manutenção das
desigualdades. Assim, temos que:
Quanto mais o todo é despojado de seus elementos espontâneos e
socialmente mediado e filtrado, quanto mais ele é “consciência”, tanto
mais se torna “cultura”. O processo material de produção se manifesta
finalmente como aquilo que era em sua origem, ao lado dos meios de
manutenção da vida, na relação de troca: como uma falsa consciência
das partes contratantes uma a respeito da outra, como ideologia.
Inversamente, contudo, a consciência torna-se cada vez mais um mero
43
momento de transição na montagem do todo. Hoje “ideologia”
significa sociedade enquanto aparência. (ADORNO, 2011, p. 95)
É a essa formação cultural que o documento da UNESCO faz referência, já que
ela seria capaz de solucionar os problemas de qualidade de educação que se apresentam
na contemporaneidade. Todavia, de saída, o documento sugere a sujeição da cultura à
ordem existente, à medida que propõe a educação voltada para a formação cultural
como um instrumento a serviço de tornar mais aptos e criativos os futuros
trabalhadores. Quer dizer, estabelece como parâmetro a submissão da cultura ao regime
do capital. Isso parece ser a subversão completa da noção de formação cultural do
indivíduo cuja essência é formar, por meio de experiências estéticas, o sujeito detentor
de uma personalidade desenvolvida. De acordo com o “Roteiro para a Educação
Artística”, ao contrário, a criatividade, a flexibilidade e a capacidade de adaptação às
mudanças geradas pela lógica do trabalho são as finalidades da educação assentada na
formação cultural, portanto, trata-se de uma formação voltada ao trabalho. O que pode
ser constatado no seguinte trecho:
As sociedades do século XXI necessitam de um cada vez maior
número de trabalhadores criativos, flexíveis, adaptáveis e inovadores,
e os sistemas educativos têm de evoluir de acordo com as novas
necessidades. A Educação Artística permite dotar os educandos destas
capacidades, habilitando-os a exprimir-se, avaliar criticamente o
mundo que os rodeia e participar ativamente nos vários aspectos da
existência humana. (UNESCO, 2006, p. 7)
Dessa forma, a ligação direta entre educação e trabalho se configura e se
estabelece claramente como objetivo central da proposta da instituição vinculada à
ONU (Organização das Nações Unidas). Na sociedade totalitária (assim definida pelos
autores frankfurtianos), em que tudo está vinculado à lógica da sujeição do trabalho ao
capital e, assim, todos os elementos da sociedade, inclusive o homem, tornam-se
ferramentas de expansão do aparato econômico, a reificação do indivíduo é quase
completa e progressiva. Parece não haver nenhuma classe social que escape a essa
lógica, tanto que Adorno (1966) assinala que a subjetividade dos indivíduos já não
apresenta grandes distinções entre si, independentemente da origem social,
principalmente, se se comparar as diferenças entre burguesia e proletariado no início do
desenvolvimento do modo de produção capitalista, quando a subjetividade da burguesia
era bastante mais desenvolvida, caso fosse comparada com a do proletariado, que era
44
excluído de toda a possibilidade de formação nos termos ensejados pela própria cultura
burguesa.
A cultura materialisticamente transparente não se tornou
materialisticamente mais honesta, apenas mais vulgar. Com a perda de
sua própria particularidade, perdeu também o sal da verdade, que
antigamente consistia em sua oposição a outras particularidades.
Colocá-la diante da responsabilidade que recusa é apenas afirmar a
sua pretensão de relevância cultural. Neutralizada e pré-fabricada, a
totalidade da cultura tradicional acaba sendo hoje aniquilada: através
de um processo inexorável, a sua herança, reclamada pelos russos com
ar virtuoso, tornou-se dispensável e supérflua em larga escala, um
refugo para o qual os mercadores da cultura de massas podem, então,
novamente, apontar com um sorriso irônico, já que eles a tratam
exatamente dessa forma. Quanto mais totalitária for a sociedade, tanto
mais reificado será também o espírito, e tanto mais paradoxal será o
seu intento de escapar por si mesmo da reificação. (ADORNO, 2011,
p. 101-02)
Mesmo assim, as atividades culturais voltadas à bildung parecem conter em si
mesmas a capacidade de oferecer algo mais, no que se refere à resistência e a
humanização do indivíduo. Como é destacado nos dois enxertos a seguir:
A Teoria Crítica trouxe inúmeras contribuições à análise das relações
entre poder e cultura na sociedade capitalista, ressaltando, de um lado,
sua função legitimadora, dominadora, mas do outro, acenando com a
possibilidade de reconstrução da noção de cultura enquanto força
política poderosa contra o processo de dominação. A aspiração ao
resgate da formação cultural fornece um grande potencial para o
pensamento educacional contemporâneo, entendendo a formação
enquanto apropriação subjetiva da cultura através do pensamento
crítico. (BANDEIRA, 2008, p.12)
Se a civilização fragmenta o indivíduo, a imaginação reivindica o
indivíduo total, se a realidade caracteriza-se pela não liberdade, a
fantasia nega a não liberdade. A fantasia ou imaginação encontra uma
expressão no sonho, mas concretiza-se na arte, na literatura e nos
mitos, que constituem meios pelos quais a linguagem do sonho ganha
uma dimensão ao mesmo tempo objetiva e subjetiva. Neles vêm à tona
tudo aquilo que o princípio de realidade reprimiu. (SILVA, 2005,
p.35)
Todavia, é necessário considerar as pressões exercidas pela racionalidade
tecnológica, pela sociedade que transforma o tempo livre em tempo administrado, pelos
processos sociais que levam à alienação e à reificação, em suma, pela sociedade
45
capitalista que integra a cultura à lógica da economia política e, por isso mesmo, está
corporificada no indivíduo.
Na sociedade do capitalismo tardio, que sempre aspirou representar o
apogeu do esclarecimento, os impulsos encontram-se longe da
satisfação de suas necessidades que são cotidianamente subordinadas
aos anseios do consumo. Se os homens no capitalismo podem igualar-
se entre si, pois as relações de mercado na maioria das vezes
dispensam saber suas origens sociais, e se esse fato possui uma
dimensão positiva se comparado com as rígidas estruturas sociais
feudais, por outro lado, são como consumidores que os indivíduos se
afastam do controle de suas potencialidades, já que são subsumidas ao
fetiche de objetos produzidos pelos próprios homens. (ZUIN, 1998,
p.57)
Mais ainda, Marcuse (1982) apresenta o que, de acordo com suas proposições, é
uma contradição insolúvel, um paradoxo, que se manifesta por meio de duas tendências
irreconciliáveis.
Essa situação ambígua envolve outra ambiguidade ainda mais
fundamental. A “Sociedade Unidimensional” oscila, do princípio ao
fim, entre duas hipóteses contraditórias: 1) a de que a sociedade
industrial desenvolvida seja capaz de sustar a transformação
qualitativa durante o futuro previsível; e 2) a de que existem forças e
tendências que podem romper essa contenção e fazer explodir a
sociedade. Não creio que possa ser dada uma resposta clara. Ambas as
tendências existem lado a lado – e até mesmo uma dentro da outra. A
primeira tendência é dominante, e quaisquer condições prévias para a
reversão, possivelmente existentes, estão sendo usadas para preveni-
la. Talvez um acidente possa alterar a situação, mas, a não ser que o
reconhecimento do que está sendo feito e do que está sendo impedido
subverta a consciência e o comportamento do homem, nem mesmo
uma catástrofe ocasionará uma transformação. (MARCUSE, 1982, p.
18)
É nessa sociedade chamada unidimensional que a cultura está submetida à lógica
do capital. O autor considera que na época atual a cultura está ligada a um efeito
harmonizador totalitário, em que o pluralismo não representa conflitos, apenas
indiferença. Marcuse (1982) ainda apresenta grande preocupação com o
empobrecimento da experiência. Isto é, se há declínio no que se refere às
experimentações, também haverá na formação cultural do indivíduo, portanto, menor
condição de se posicionar contrário às questões que dizem respeito à manutenção da
sociedade contemporânea do capitalismo tardio.
46
2.3 Cultura, Formação e Indivíduo
Cultura, formação e indivíduo são elementos indissociáveis para esta análise, ou
seja, a inter-relação estabelecida entre eles é de fundamental importância para melhor
explicitar as questões que se delineiam a partir do que se pretende compreender, a
formação cultural do indivíduo na sociedade do capitalismo tardio. Assim, o
entendimento dessas relações apresenta-se no “entrelaçamento do espírito com o
processo histórico da sociedade” (MARCUSE, 1997, p. 97).
Contudo, há diversificados conceitos que abarcam o termo cultura. Talvez, o
mais difundido seja aquele que deliberadamente aparta o mundo espiritual do processo
histórico-social em que a sociedade está inserida. Marcuse nomeia esse processo como
cultura afirmativa, pelo qual entende:
Cultura afirmativa é aquela cultura pertencente à época burguesa que
no curso de seu próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar
o mundo espiritual anímico, nos termos de uma esfera de valores
autônoma, em relação à civilização. Seu traço decisivo é a afirmação
de um mundo mais valioso, universalmente obrigatório,
incondicionalmente confirmado, eternamente melhor, que é
essencialmente diferente do mundo de fato da luta diária pela
existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si “a partir
do interior”, sem transformar aquela realidade de fato. Somente nessa
cultura as atividades e os objetos culturais adquirem sua solenidade
elevada tanto acima do cotidiano: sua recepção se converte em ato de
celebração e exaltação. (MARCUSE, 1997, p. 95-96)
Diante disso, a cultura, portanto, comporta-se como algo que paira sobre a
sociedade, e a responsabilidade de alcançar a esfera cultural passa a ser do indivíduo,
convertendo a cultura e a arte à inocuidade. Em outros termos, a realidade material
tende a não permitir as mesmas conquistas alcançadas por meio da cultura afirmativa,
todavia esta possibilita ao indivíduo a oportunidade de manter contato com, ainda que
virtualmente, com uma realidade “superior”. Dessa forma, de nada serve a arte e a
cultura para a contestação da ordem estabelecida, negando ao indivíduo, de certa forma,
a possibilidade de por meio das manifestações culturais, apropriar-se de elementos que
o levem à reflexão. A supressão da contradição manifesta na objetividade é exatamente
a proposta da cultura afirmativa, já que ela pretende reafirmar os valores correntes da
sociedade de base industrial.
47
Para Marcuse (2007), a arte não se apresenta necessariamente mais
bela do que a realidade, ao contrário, muitas vezes opõe-se à beleza,
evidenciando a frieza e crueldade da vida diária. [...] o potencial
transformador da arte reside justamente no seu distanciamento frente a
uma realidade opressora. Pois são as qualidades inerentes à arte: a
transcendência e o distanciamento, que estabelecem a ordem estética e
a manifestação do belo criando uma nova realidade, que mesmo
fictícia aponta as contradições entre o possível e o existente.
(AMARAL, 2012, p. 34-35)
Entende-se, portanto, que a cultura e a arte detêm, ainda que isso seja negado
sistematicamente, um conteúdo político; sendo assim, ocupam, no emaranhado de
relações econômico-político-sociais, um lugar de destaque e de peso nas determinações
da realidade objetiva.
A história da crítica cultural hegemônica no século XX foi a da
negação sistemática das ligações formativas entre a produção artística
e a realidade socio-histórica. É certo que esse século conheceu,
também por conta da expansão inédita dos meios de comunicação e de
reprodução e da própria pesquisa universitária, uma enorme variedade
de métodos e modas teóricas. Muitas delas até concordariam que o
social funciona como pano de fundo, mas a grande maioria rejeita a
ligação estruturante entre cultura e sociedade. Esse tipo de rejeição
tem um duplo efeito. Por uma via, funciona como uma forma de
elevar a esfera da cultura, colocando a produção de significados e
valores acima dos conflitos e interesses que regem a vida concreta.
Nesse processo de abstração, tudo se passa como se fosse possível
criticar a sociedade sem se imiscuir nela. Esse apartamento é
fundamental para que essa prática se equilibre em uma postura a um
só tempo crítica e conivente: considera a sociedade real do ponto de
vista de uma certa noção da ideologia vigente, o humanismo liberal.
Na maior parte das vezes faz um juízo dito estético das obras, seja
para elevá-las, seja para lamentar a esculhambação da sociedade da
cultura de massas. A alta cultura é vista em contraste com o mundo,
como uma realização do espírito ou como um repositório de valores
elevados. Uma vez que se propõe sempre neutra e apolítica, afinal seu
campo de ação é o das finalidades sem fins, essa crítica acaba
afirmando o modo de vida que pretende julgar. Tal procedimento
neutraliza o enorme potencial cognitivo da análise da cultura que é
consequência de sua capacidade única de ser uma materialização dos
significados e valores de um determinado momento da história social.
Essa materialização possibilita que estes sejam reconhecidos,
interpretados e efetivamente criticados. (CEVASCO, 2011)
O autor aponta exatamente para a condição política da alta cultura e da
importância que a estância cultural tem, principalmente, quando se leva em conta a
capacidade de representação dos significados sociais e objetivos de um dado momento
histórico.
48
A formação é indissociável da cultura exatamente porque ocorre nela. Quer
dizer, considerando que a individuação é a própria subjetivação da realidade objetiva,
por conseguinte, é no caldo das experiências vividas nos ambientes sociais realizados
pela sociedade contemporânea, que, efetivamente, o indivíduo vive a formação.
Em outros termos, a consciência é determinada pelo ser social que, por sua vez,
é determinado pelas condições objetivas que estruturam a sociedade. Então, a formação
do indivíduo é, mais uma vez, a apreensão subjetiva da materialidade a qual está
submetido. A partir disso, é imperativo pensar quem é esse indivíduo, ou seja, qual é,
para usar os termos de Horkheimer e Adorno, a unidade fundamental, no que se refere à
formação.
A vida humana é, essencialmente e não por mera casualidade,
convivência. Com esta afirmação, põe-se em dúvida o conceito do
indivíduo como unidade social fundamental. Se o homem, na própria
base de sua existência, é para os outros, que são os seus semelhantes, e
se unicamente por eles o é, então a sua definição última não é a de
uma indivisibilidade e unicidade primárias, mas, outrossim, a de uma
participação e comunicação necessárias com os outros. Mesmo antes
de ser indivíduo o homem é um dos semelhantes, relaciona-se com os
outros antes de se referir explicitamente ao eu; é um momento das
relações em que vive, antes de poder chegar, finalmente, à
autodeterminação. (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p.47)
Com estas considerações parece ser possível visualizar a formação cultural do
indivíduo. Os autores destacam que o indivíduo só o é frente ao outro, portanto, em
relação a um outro elemento fora dele mesmo. E como a base da vida humana é a
convivência, a formação cultural do indivíduo somente tem sentido se se consentir que a
formação é, ao mesmo tempo, individual e social.
Assim, a formação cultural não é um valor em si, e sim um valor relacional, quer
dizer, realiza-se na medida em que se concretiza a relação entre o individual e a
totalidade.
2.4 Pseudoformação: a conversão da formação cultural em formação técnica
Para se entender a formação enquanto possibilidade e fenômeno de uma
determinada sociedade e momento histórico, parece ser indispensável a compreensão do
seu “par”, a pseudoformação. Como destacado no tópico anterior, a formação somente é
49
considerada, de acordo com os autores da Teoria Crítica da Sociedade, quando atinge a
sociedade em geral e não somente determinados grupos ou classes sociais. Deve-se
levar em conta que por formação cultural entende-se: formação técnica, intelectual,
moral, política, da personalidade, em suma, da pessoa em sua totalidade.
À formação cultural (Bildung) precisa corresponder a urbanidade, e o
lugar geométrico da mesma é a linguagem. Ninguém pode ser
recriminado por ser do campo, mas ninguém deveria também
transformar este fato em um mérito, insistindo em permanecer assim.
Quem não conseguiu emancipar-se da província, posiciona-se de um
modo extraterritorial em relação à formação cultural. A obrigação de
se desprovincianizar, em vez de imitar ingenuamente o que é
considerado culto, deveria constituir uma meta importante para a
consciência daqueles que pretendem ensinar alguém. A divergência
persistente entre a cidade e o campo, a não-formação cultural do
agrário, cujas tradições são declinantes e irrecuperáveis, é uma das
figuras em que a barbárie se perpetua. Não se trata de requintes da
elegância do espírito e da linguagem. O indivíduo só se emancipa
quando se liberta do imediatismo de relações que de maneira alguma
são naturais, mas constituem meramente resíduos de um
desenvolvimento histórico já superado, de um morto que nem ao
menos sabe de si mesmo que está morto. (ADORNO, 2011a, p. 67/68)
Embora seja imprescindível à formação cultural o mergulho em aspectos mais
profundos, sobretudo presentes no próprio indivíduo, a formação implica subjetivação
de experiências. No entanto, se estas não acontecem, então, a própria formação fica
comprometida.
A subjetivação não se desenvolve mais a partir da cultura como
outrora, porque a experiência, no limite, foi suprimida. (...) a história
individual é substituída pela mudança contínua do indivíduo que deve
se adaptar a cada nova situação, abandonando o que sabia
anteriormente. É mais adaptável o que não tem princípios e
convicções, o que percebe as regras existentes em cada situação e as
utiliza a seu favor para atingir os seus objetivos, nem sempre
racionais. (CROCHÍK, 2011, p. 18)
Então, a vida sob o capitalismo tardio é condição impeditiva para que a
subjetivação de experiências aconteça plenamente, uma vez que a velocidade das
transformações impõe essa situação:
A vida na sociedade de base tecnológica passou a ser um constante
“rito de iniciação” porque, a todo instante, os indivíduos são
chamados a ingressar em um mundo que se apresenta como novo.
Parece não haver um momento em que a integração é concluída, pois,
50
ela precisa ser realizada o tempo todo, ou seja, os indivíduos estão
sempre ocupados com a ratificação da ordem estabelecida; isso
garante sua perpetuação e confere aos membros da sociedade o direito
de pertencer a ela. (GIOVINAZZO-JÚNIOR, 2003, p.72)
Se a formação não é possível por conta das exigências econômicas do sistema
capitalista, é exatamente a pseudoformação que assume este lugar. Uma vez que, a
realidade econômica gera e é alimentada pela pseudoformação, conforme pode se
observado nos excertos a seguir:
A pseudoformação avança enquanto uma “espécie de espírito objetivo
negativo” (ADORNO, 1971, p. 234), conforme as forças produtivas
do capitalismo se desenvolvem, apresentando-se como o principal tipo
de formação possível na atualidade e segundo a qual tudo deve
conformar-se para não ser empecilho ao progresso. (BATISTA, 2008,
p. 32)
E também em:
A semiformação [pseudoformação] seria a forma social da
subjetividade determinada nos termos do capital. É meio para o
capital, e simultaneamente, como expressão de uma contradição,
sujeito gerador e transformador do capital. Adorno, ao contrário do
resignado pessimismo equivocadamente associado a sua obra,
apresenta uma alternativa prática real para a tendência à totalização
social dominante, ao revelar a construção objetiva da formação social
presente. (MAAR, 2003, p. 467)
Ao discorrer sobre formação e pseudoformação no tópico anterior, fez-se clara a
posição dos autores frankfurtianos sobre o que é formação cultural. Tendo isso em
consideração, vale dizer que na contemporaneidade, maciçamente entra-se em contato
com práticas educacionais, muitas vezes baseadas em formulações como a supracitada
da UNESCO. Assim, trata-se de uma maneira completamente diferente de conceber a
formação cultural daquela propugnada pela teoria crítica da sociedade. Embora, muitas
vezes, haja boa intenção em realizar propostas que tornem a cultura mais presente na
formação do indivíduo, parte do esforço se esvai quando a cultura se torna meio para
atingir a formação ensejada pelo mercado de trabalho, isto é, quando ações culturais são
empregadas de modo a tornar as pessoas ainda mais aptas e flexíveis às regras impostas
pela economia. É bom destacar que tornar a formação cultural um caminho para o
51
trabalho é supervalorizar a formação técnica. Claro que esta integra a formação cultural,
no entanto, uma não pode ser reduzida a outra.
O mágico está para o cirurgião como o pintor está para o operador de
câmera. O pintor observa, no seu trabalho, uma distância natural para
aquilo que é dado, o operador de câmera, ao contrário, penetra
profundamente no tecido da realidade dada. As imagens que cada um
obtém diferenciam-se enormemente. A do pintor é total, a do operador
de câmera é multiplamente fragmentada, cujas partes se juntam
segundo uma nova lei. Dessa forma, a apresentação cinematográfica
da realidade possui um significado incomparavelmente maior para o
homem atual, pois fornece o aspecto livre de aparelho da realidade,
que ele tem o direito de exigir da obra de arte, baseada justamente na
penetração mais intensiva da realidade como o aparato. (BENJAMIN,
2012, p.89)
A metáfora presente no excerto acima é bastante significativa no que se refere à
capacidade que possui de projetar imagens exemplificadoras da formação técnica em
comparação à formação cultural. A primeira, representada na figura do operador de
câmera, faz referência ao homem contemporâneo, cuja fragmentação, se não o impede,
pelo menos dificulta a percepção do cenário em que está inserido e, por conseguinte,
também das relações que promovem esse simulacro. Já o pintor, que tem a capacidade
de ver globalmente, representa a segunda, a formação cultural, efetivamente.
Sob o capitalismo tardio, o que se apresenta é a abstração do processo objetivo,
o apagamento das relações de dominação no circuito da produção. Então, se a formação
está voltada à técnica é claro que bem de perto se tem o trabalho como objetivo a ser
alcançado subsequentemente. E o conceito de trabalho também deve ser observado de
uma perspectiva dialética. Por isso mesmo, nessa atividade também se observa a
contradição, inerente ao modo de produção capitalista. Ou seja, se o trabalho aliena o
homem, é por meio dele também que o homem pode expressar-se completamente,
enquanto sujeito. O que está expresso nos seguintes excertos:
O processo de alienação afeta a todas as camadas da sociedade,
deformando mesmo as funções “naturais” do homem. Os sentidos, as
fontes primárias de liberdade e de felicidade segundo Feuerbach, são
reduzidos a um “sentido de posse”. (MARCUSE, 2004, p. 241)
Longe de ser uma mera atividade econômica, o trabalho é a “atividade
existencial” do homem, sua “atividade livre, consciente” – não um
meio de conservação da sua vida, mas um meio de desenvolvimento
da sua “natureza universal”. (MARCUSE, 2004, p. 238)
52
De acordo com a leitura que Marcuse (2004) faz da obra de Marx, para este
último o trabalho é sempre fator de alienação do sujeito, ao mesmo tempo em que
também constitui o homem. Em outros termos, o trabalho aumenta o fosso entre o
indivíduo e a sociedade, todavia sem o trabalho, compreendido aqui como
exteriorização, o indivíduo não se constitui completamente.
Marx chegava mesmo a descrever a autorrealização do homem em
termos de unidade entre o pensamento e o ser. Entretanto, o problema,
tomado na sua totalidade, não é mais um problema filosófico, porque
a autorrealização do homem requer agora a abolição do modo vigente
do trabalho, não podendo a filosofia produzir este resultado.
(MARCUSE, 2004, p. 239)
O que Marcuse (2004) destaca é que o trabalho alienado deve ser abolido para
que o homem tenha a chance de autorrealização, mas a realização permitida é fruto do
processo de divisão social do trabalho imposto pela organização capitalista.
É a chave de leitura colocada por Marx que é adotada pela própria UNESCO, ao
produzir o documento que sugere mudanças na educação, isto é, a percepção de que o
trabalho faz parte da realidade objetiva da vida social do homem. Reproduzindo a
ideologia burguesa, o órgão internacional justifica a eleição da Educação Artística como
fundamental para o século XXI baseado nos fenômenos objetivos que estão a serviço do
capital. Diante disso, é possível perceber que, efetivamente, não há qualquer
preocupação com a formação do indivíduo e sim com a manutenção do modo de
produção vigente. Por essa razão, além de reiterar a alienação, tanto na educação quanto
no trabalho, o documento proposto pela UNESCO, valida a pseudoformação como
elemento sem o qual a sociedade capitalista corre riscos de degradação. Ou o
documento produzido pela entidade internacional expressa ingenuidade ou reproduz
deliberadamente a ideologia burguesa. Pois não questiona a situação diagnosticada,
fazendo apenas constatações e propondo medidas compensatórias que seriam capazes de
promover a manutenção do status quo. Parece mais acertado observar a situação a partir
da proposta (presente na segunda parte do texto, intitulado “Desenvolver as capacidades
individuais”, assinado pela UNESCO), principalmente considerando o seguinte trecho
do Roteiro para a Educação Artística:
Estas capacidades são particularmente importantes para enfrentar os
desafios que se levantam à sociedade do século XXI. As
transformações sociais que afetam as estruturas familiares, por
53
exemplo, fazem com que as crianças sejam frequentemente privadas
da atenção dos progenitores. Acresce que, devido à falta de
comunicação e de construção de relações na sua vida familiar, as
crianças passam amiudadas vezes por uma série de problemas
emocionais e sociais. Além disso, torna-se cada vez mais difícil a
transmissão de tradições culturais e práticas artísticas no ambiente
familiar, em especial nas áreas urbanas. (UNESCO, 2006, p. 7)
Embora não seja a única responsável pela formação cultural do indivíduo, parece
cada vez mais ser a educação formal condição sine qua non para a formação na
contemporaneidade. E por isso mesmo é importante observar a influência que o sistema
capitalista exerce na “fabricação” dos indivíduos.
Também na educação há novas e importantes possibilidades, já
indicadas pelo sucesso da Universidade Aberta. Poderia haver uma
nova gama de sistemas de aprendizado formal, que as pessoas
poderiam usar em seu próprio tempo e no seu próprio ritmo. Isso será
especialmente relevante em um período no qual haverá novas
necessidades para uma educação disponível permanentemente.
Contudo, o que está acontecendo agora, nas instituições existentes, é
uma pressão constante de uma economia capitalista tardia e seus
governos para reduzir a educação tanto em absoluto quanto em
diversidade, excluindo deliberadamente um ensino que ofereça mais
do que uma preparação para o trabalho e para uma vida civil pré-
regulada. (WILLIAMS, 2011, p. 155)
Vale dizer que a própria sociedade, em qualquer âmbito ou área considerada,
atravessa um período absolutamente caracterizado pelo tecnicismo, a partir do qual se
tenta justificar qualquer escolha, desconsiderando a orientação ideológica desta; ao
contrário, procura-se dizer que a ideologia nada tem a ver com a questão, que ela não
existe. O que, sem sombra de dúvida, representa um enorme equívoco. Ao descrever a
racionalidade tecnológica (ou o tecnicismo) Adorno também teve oportunidade de
elaborar questões acerca da coisificação por que passa a sociedade atual, mais
especificamente sobre o fetichismo da técnica, como segue no excerto:
Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de
exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao “véu
tecnológico”. Os homens inclinam-se a considerar a técnica como algo
em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo
que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios – e a técnica é
um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana
– são fetichizados, porque os fins – uma vida humana digna –
encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas.
(ADORNO, 2011. p.132)
54
Isso também pode ser estendido, por exemplo, para os esforços da escolarização
em conferir formação técnica aos alunos. A valorização desta revela o controle que o
mundo administrado, para usar os termos de Adorno, exerce sobre o indivíduo, por
exemplo, no que se refere à heteronomia e à determinação dos desejos e necessidades
individuais. A própria técnica ensejada pela racionalidade tecnológica reafirma a
separação entre qualificação e desqualificação para o trabalho e, portanto, interfere
sobremaneira na educação. Apenas para ilustrar destaque-se a situação da própria
universidade – que leva adiante o trabalho da própria educação – e das Ciências que,
conforme descreve Boaventura de Souza Santos, foram submetidas aos interesses do
capital:
(...) a educação, que fora inicialmente transmissão da alta cultura,
formação do caráter, modo de aculturação e de socialização adequado
ao desempenho da direção da sociedade, passou a ser também
educação para o trabalho, ensino de conhecimentos utilitários, de
aptidões técnicas especializadas capazes de responder aos desafios do
desenvolvimento tecnológico no espaço da produção. Por seu lado, o
trabalho, que fora inicialmente desempenho de força física no
manuseio dos meios de produção, passou a ser também trabalho
intelectual, qualificado, produto de uma formação profissional mais ou
menos prolongada. A educação cindiu-se entre a cultura geral e a
formação profissional e o trabalho, entre o trabalho não qualificado e
o trabalho qualificado. (SANTOS, 2010, p.196)
A constituição histórica do vínculo entre educação e trabalho é desconsiderada e
em seu lugar surge a naturalização do social. A UNESCO, portanto reproduz a ideologia
vigente na sociedade: a própria formação cultural se converteu em instrumento do
capital, assim como o trabalho assalariado sempre o foi. Nessa sociedade, amplamente
marcada pelo autoritarismo, pela ausência de liberdade em todos os âmbitos não se pode
falar em criatividade de fato. As condições sociais, econômicas, políticas e culturais que
promovem a pseudoformação continuam as mesmas, logo os processos educacionais
estão marcados pela tendência de promoção da pseudocriatividade, o que está em
conexão com a manutenção da realidade objetiva do modo de produção capitalista em
estágio tardio.
55
Capítulo 3 – Documentos, ações e expectativas das escolas diante dos desafios
surgidos na contemporaneidade
3.1 Problema de Pesquisa
Diante do exposto sobre formação cultural, sobre a importância conferida para a
educação artística nos diversos documentos tratados no primeiro capítulo desta pesquisa
e, principalmente, sobre ao que se refere o reconhecimento do caráter educacional das
práticas culturais, definiu-se nos seguintes termos a pergunta de pesquisa: qual
diagnóstico e quais objetivos educacionais, ações previstas e estratégias são definidos
no projeto educacional para o Ensino Médio de duas escolas (uma pública e outra
privada), considerando os documentos oficiais produzidos no âmbito da própria escola?
O objetivo é identificar e analisar como são definidas as tarefas e funções da
escola tendo como referência a valorização das atividades culturais e artísticas e o modo
como são realizados diagnósticos, definidos objetivos educacionais e propostas de ações
para equacionamento dos problemas educacionais referentes à formação cultural.
Já a hipótese pode ser expressa nos seguintes termos: o Ensino Médio é a porta
de saída da educação básica no sistema educacional adotado no Brasil. Nas últimas
décadas, diversas e cumulativas responsabilidades têm sido atribuídas à escola. Entre
elas, é notória a presença da expectativa de que, completada a educação básica, o
egresso seja capaz de escolher os caminhos que vai trilhar em seu futuro.
Frequentemente, é nesse momento que o indivíduo define a carreira profissional e, por
conseguinte, o seu destino social. Por conta da valorização das atividades de cunho
cultural, como conteúdos a serem tratados na educação formal, as hipóteses testadas
são:
1) Verifica-se, nos documentos analisados, a crescente tendência de destacar a
necessidade de a escola incorporar conteúdos relacionados às atividades culturais como
forma de adequar a escola ao contexto em que está situada;
2) Ainda que as mudanças sejam evidentes e que as atividades culturais nas escolas
tenham um sério propósito, predomina a formação voltada para o trabalho.
56
3.2 O método
Neste item apresenta-se o método e os resultados da investigação, desde a
escolha das fontes de informação, passando pela seleção destas e, por fim, o instrumento
por meio do qual se realizou a coleta de dados. Vale ressaltar que este trabalho pretende
discutir as variações de concepção e de ações propostas, comparando, para isso,
documentos produzidos em diferentes âmbitos. Assim, segue abaixo um quadro
demonstrativo dos desdobramentos do problema de pesquisa:
Quadro 1 – Articulação entre pergunta, objetivo e hipótese Pergunta Objetivo Hipótese
Qual o diagnóstico e quais
objetivos educacionais, ações
previstas e estratégias são
definidos no projeto educacional
de duas escolas (uma pública e
outra privada), considerando os
documentos oficiais produzidos
no âmbito da própria escola?
Identificar e analisar como são
definidas as tarefas e funções da
escola tendo como referência a
valorização das atividades
culturais e artísticas.
Identificar e analisar o modo
como são realizados
diagnósticos, definidos objetivos
educacionais e propostas de
ações para equacionamento dos
problemas educacionais
referentes à formação cultural.
Verifica-se, nos documentos
analisados, a crescente tendência
de destacar a necessidade de a
escola incorporar conteúdos
relacionados às atividades
culturais como forma de adequar
a escola ao contexto em que está
situada;
Ainda que as mudanças sejam
evidentes e que as atividades
culturais nas escolas tenham um
sério propósito, predomina a
formação voltada para o
trabalho.
Ante os propósitos desta pesquisa definiu-se a investigação documental como a
mais adequada, isso porque a intenção é verificar como as escolas estudadas se
posicionam frente à realidade do mundo do capitalismo tardio e diante das vicissitudes
que dele emerge. Quer dizer, os documentos pareceram o material mais adequado para
capturar as intenções e estratégias de cada escola frente ao modelo de sociedade coevo.
Ainda que os documentos não retratem, fidedignamente, o que de fato ocorre no
cotidiano das práticas educativas de cada escola, eles são elementos bastante capazes de
oferecer a “leitura” que as instituições fazem de seu papel na formação cultural de seus
alunos.
Por isso, a primeira etapa foi visitar os espaços que se pretendia estudar e
conversar com os diretores ou responsáveis que pudessem autorizar a pesquisa e,
portanto, o acesso aos documentos. Para isso, em cada escola, foi apresentado,
detalhadamente, o projeto de pesquisa. Compartilhado isso, os diretores aceitaram
colaborar, embora no caso da escola pública tenha sido um pouco mais difícil.
57
Nessa escola, os primeiros contatos foram com o vice-diretor, no cargo havia
cerca de três anos; só então, marcou-se encontro com a diretora, no cargo havia pouco
mais de um ano, que, titubeante, aceitou. Durante a conversa, que ocorreu a portas
fechadas, estavam presentes: a diretora, o vice-diretor, a secretária de ambos e o
pesquisador. O que ficou bastante claro, inclusive por meio de pedido expresso de todos
os membros presentes à reunião, é que a escola não deveria ser identificada em hipótese
alguma. Isso, durante a apresentação da pesquisa, já havia sido garantido, entretanto,
tive de asseverar veementemente que não haveria a menor possibilidade de o anonimato
da escola ser quebrado. Julga-se essa situação ser decorrência do medo de retaliações e
de avaliações feitas, reiteradamente, pela Secretaria de Educação do Estado de Minas
Gerais. Temiam que, por meio do resultado da pesquisa, qualquer que fosse, a escola
poderia sofrer mudanças de alguma natureza. Depois de me comprometer a não revelar
onde foram realizadas as buscas de informações, a direção permitiu o acesso à
documentação de que dispunham. Nesse encontro marcamos nova data, cerca de quinze
dias depois, para que pudesse voltar à cidade e à escola para pegar alguns documentos,
todavia, para a minha surpresa, as coisas foram ainda mais complicadas do que na
reunião. A desconfiança pairava nas salas, secretaria e biblioteca, onde estavam
acomodados os documentos. Além disso, os funcionários diziam não saber da existência
desse ou daquele documento ou não sabia onde e nem quem o havia guardado; isso
repetidas vezes em que estive lá.
O vice-diretor, quem parece ter apoiado a ideia de pesquisar a escola desde o
início, algumas vezes, quando suas atribuições lho permitiam, tentava ajudar, pedindo
aos funcionários mais velhos de casa do que ele, que achassem os documentos
solicitados; e assim, com a interferência dele, conseguiu-se alguns documentos
importantes.
Na escola privada, a grande dificuldade foi marcar entrevista com o diretor, na
qual pudesse expor a ele as intenções do projeto e pedir sua autorização. No cargo desde
1979, o diretor acumula diversas funções, além das que lhe cabem legalmente; ele é
bastante ocupado com os rumos pedagógicos que a escola assume. Embora haja
discussões com os coordenadores e estes com os seus colegas de área, o diretor está a
par de tudo o que acontece no que se refere à condução pedagógica da escola. Ao
encontrá-lo, expliquei do que se tratava a visita e o que pretendia a pesquisa; ele logo
autorizou o acesso aos documentos e permitiu, inclusive, que fosse dito o nome da
escola na pesquisa. Ao que respondi dizendo que uma das regras da pesquisa é que a
58
escola não poderia ser identificada. Daí então, disse que falaria com os setores
responsáveis pelos documentos, determinando que o pesquisador poderia ter acesso a
eles; para isso pediu, cerca de uma semana. E assim se encerrou a primeira parte da
busca pelas informações.
O início da segunda etapa ocorreu justamente quando retornei à cidade, na data
aprazada por ambas as escolas, para a busca pelos documentos. Os funcionários das
duas escolas pareciam desconfiados, contudo os da escola pública, efetivamente,
colaboraram na busca pelos documentos quando estávamos acompanhados do vice-
diretor; na escola privada os responsáveis pelos documentos advertiram sobre a
importância dos documentos e que se tratava de uma exceção permitir que alguém sair
com os documentos em mãos. É bom dizer que para reunir todos os documentos foram
necessárias algumas visitas, visto que alguém sempre não estava presente naquele dia
para o atendimento ou havia se esquecido de procurar um dos documentos listados, ou,
no caso da escola pública, não se fazia a menor ideia de onde poderia estar determinado
arquivo.
O terceiro passo correspondeu ao ajuste da pesquisa aos documentos a que se
teve acesso. Melhor dizendo, de início, além de analisar como as escolas entendem o
seu papel nessa sociedade, pretendia-se também verificar as mudanças desse
entendimento num período de vinte anos, entre 1992 e 2012. No entanto, por conta da
ausência de documentos que pudessem dar suporte à investigação, optou-se por realizar
apenas a primeira parte da intenção de pesquisa. Isso acertado, o passo seguinte foi
reunir os documentos produzidos nas escolas, portanto em âmbito local, aos produzidos
em esfera estadual, nacional e internacional, haja vista a necessidade de melhor
compreender as circunstâncias nas quais a educação contemporânea, o ensino médio e a
educação artística estão mergulhados. Depois do que passamos às análises documentais
propriamente ditas.
3.3 As Escolas
Para a realização desta pesquisa foi fundamental o acesso aos documentos de
duas escolas, ambas situadas na cidade de Uberaba-MG, no bairro Abadia, um dos mais
populosos do lugar. Distantes entre si poucas quadras, as escolas (uma da rede estadual
de ensino e outra privada), ao permitirem o acesso aos seus documentos, contribuíram
sobremaneira com o andamento da pesquisa e as análises realizadas. Sem dúvida, não
59
obstante, são escolas bastante diferentes, no que se refere à infraestrutura e ao público
que atendem. Por isso, faz-se necessária uma melhor apresentação desses espaços.
A escola estadual (doravante denominada Escola E) que é objeto de estudo desta
pesquisa foi fundada em 1966 e atende a 1194 alunos, dos quais 759 estão matriculados
no Ensino Médio e 435 no Ensino Fundamental. Para atender aos alunos, a Escola E
conta com um professor de artes, 10 de Língua Portuguesa, quatro de Língua
Estrangeira, três de Educação Física, quatro de História, cinco de Geografia, um de
Filosofia, um de Sociologia, cinco de Biologia, três de Física, três de Química e seis de
Matemática, totalizando 46 professores. A Escola E está edificada num amplo terreno
que abriga cerca de 30 salas, entre salas administrativas, da diretoria e biblioteca, além
do refeitório e duas quadras poliesportivas.
A Escola E, em seu Regimento Escolar se apresenta por meio dos seguintes
termos:
A Escola E, oferece o Ensino Fundamental organizado em regime
anual para os quatro anos finais e Ensino Médio. Oferece ainda,
Projetos autorizados pela SEE, como Projeto de Tempo Integral,
Projeto de Aprofundamento e Formação Inicial para o Trabalho. A
demanda do Ensino Fundamental e Ensino Médio são compostos por
alunos residentes no bairro e de bairros vizinhos. (REGIMENTO
ESCOLAR DA ESCOLA E, 2012, p. 2)
A escola privada (doravante denominada Escola P), que também é objeto de
estudo desta pesquisa, foi fundada em 1954 e hoje é uma espécie de escola modelo do
sistema CNEC (Campanha Nacional das Escolas da Comunidade), composto de
aproximadamente 180 unidades espalhadas pelo Brasil. A Escola P atende desde a
educação infantil até o ensino médio e conta com, aproximadamente, 2500 alunos. Está
edificada em três blocos distintos: um reservado à educação infantil, às piscinas e à
gráfica da rede CNEC, outro destinado ao Ensino Fundamental e Médio (há cerca de
100 salas, incluindo as da administração, diretoria e de produção de material didático),
com uma quadra poliesportiva e um ginásio; e um terceiro, que abriga um teatro com
capacidade para, aproximadamente, 1500 expectadores. Todos os blocos estão
localizados proximamente, bastando atravessar a rua para acessar os distintos
ambientes. Ao definir-se em documento próprio, o Regimento Escolar, a Escola P se
apresenta como:
60
A Campanha Nacional de Escolas da Comunidade – CNEC – ex-
Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, criada em 29 de julho
de 1943, em Recife-PE, reconhecida de Utilidade Pública pelo
Decreto nº 36.505, de 30 de novembro de 1954, com sede e foro na
cidade de João Pessoa, no estado da Paraíba, e atuação em todo o
território nacional, é pessoa jurídica de direito privado, sem fins
lucrativos, constituída sob forma de associação civil (REGIMENTO
ESCOLAR DA ESCOLA P, 2011, p. 2).
A preocupação e a relação da escola P com a comunidade que atende estão
presentes desde o início. Vale lembrar que a CNEC tinha como forte propósito, à época,
se instalar em localidades em que não havia a presença do Estado, portanto, a proposta
era fundar escolas, especialmente, de ensino secundário. Na década de 1950, quando foi
fundada, e nos anos 1960 o bairro Abadia, onde funciona, era periférico. As pessoas se
referiam à instituição como a escola da Coréia, em referência à guerra da Coréia e à
violência presente nas cercanias da escola. Sobre a importância da comunidade na
construção da instituição temos que:
O Colégio foi criado inicialmente sob a denominação de Ginásio
Escola P, integrado na ex-Campanha Nacional de Educandários
Gratuitos. A data de sua fundação ocorreu em sessão solene, no salão
nobre da Associação Comercial e Industrial de Uberaba, no dia 11 de
junho de 1953, e sua aula inaugural foi ministrada no dia 16 de março
de 1954. O Ginásio funcionava somente no período noturno e ocupava
as instalações cedidas pelo governo do estado de Minas Gerais no
Grupo Escolar Brasil (...) Com esforço conjunto dos seus dirigentes e
professores, houve grande afluência de alunos para o Educandário que
se viu na contingência de ampliar suas instalações. Como as salas
cedidas, a título precário, tornaram-se insuficientes para o atendimento
de todos, pensou-se na construção da sede própria, o que foi feito com
a ajuda da comunidade, do Conselho Federal da CNEC e dos
Governos do Estado e do Município. Em 1963 suas instalações foram
transferidas para a sede própria (...) (REGIMENTO ESCOLAR
ESCOLA P, 2011, p. 1)
3.4 Os resultados encontrados
Em cada documento produzido pelas escolas, buscou-se averiguar o que cada
instituição entende no que diz respeito: a) ao objetivo a ser cumprido pela educação
oferecida; b) aos projetos e propostas de ações para a realização da tarefa de ensino-
61
aprendizagem; c) aos objetivos da formação cultural e/ou artística; d) aos objetivos da
escola.
3.4.1 Os documentos da Escola Estadual (Escola E)
Antes de começar, propriamente, a apresentação e depois a discussão desses
documentos, é bom destacar que, com o objetivo de proteger a identidade da escola,
toda vez que o nome dela aparece nos documentos, nos trechos que foram trazidos para
este trabalho, a designação foi substituída por Escola E.
O Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola E, denominado de Plano de
Desenvolvimento Pedagógico Institucional (PDPI) parece ser o marco referencial, no
que diz respeito à documentação de que dispomos, para todos os outros documentos,
exceção feita ao Regimento Escolar. Isto é, o PDPI, cuja confecção data de 2004, foi
elaborado para nortear as práticas escolares por dez anos, entre 2005 e 2014, logo segue
em vigor. Assim, todos os demais documentos, de alguma forma, parecem estar
relacionados ou ter o PDPI como ponto de partida. Sobre este documento temos que:
Para tanto, partimos da concepção de que “O projeto político-
pedagógico da escola (PPP) – aqui denominado: Plano de
Desenvolvimento Pedagógico Institucional (PDPI) – pode ser
inicialmente entendido como um processo de mudança e de
antecipação do futuro, que estabelece princípios, diretrizes e propostas
de ação para melhor organizar, sistematizar e significar as atividades
desenvolvidas pela escola como um todo. Sua dimensão político-
pedagógica caracteriza uma construção ativa e participativa dos
diversos segmentos escolares – alunos e alunas, pais e mães,
professores e professoras, funcionários, direção e toda a comunidade
escolar. Ao desenvolvê-lo, as pessoas ressignificam as suas
experiências, refletem as suas práticas, resgatam, reafirmam e
atualizam os seus valores na troca com os valores de outras pessoas,
explicitam os seus sonhos e utopias, demonstram os seus saberes, dão
sentido aos seus projetos individuais e coletivos, reafirmam as suas
identidades, estabelecem novas relações de convivência e indicam um
horizonte de novos caminhos, possibilidades e propostas de ação.
Decidem o seu futuro. Este movimento visa à promoção da
transformação necessária e desejada pelo coletivo escolar e
comunitário. Nesse sentido, o projeto político-pedagógico é práxis, ou
seja, ação humana transformadora, resultado de um planejamento
dialógico, resistência e alternativa ao projeto de escola e de sociedade
burocrático, centralizado e descendente. Ele é movimento de ação-
reflexão-ação, que enfatiza o grau de influência que as decisões
tomadas na escola exercem nos demais níveis educacionais.” (Padilha,
2003). Dando continuidade às nossas reflexões, entendemos também,
que a Proposta Pedagógica da escola (PP) é a alma do PPP ou PDPI.
62
Sendo assim, a Proposta Pedagógica (PP) deve estar nele incluída, já
que, de fato, é ela que operacionaliza os seus objetivos e as suas metas
e, mais propriamente, a ação didático-pedagógica da escola. (PDPI
ESCOLA E, 2004, p. 11-12)
Embora o documento enfatize o caráter coletivo no processo de sua construção,
traz uma citação significativa em suas linhas, atribuída à Padilha. Fato este que atesta a
contradição presente no próprio documento, haja vista que Paulo Roberto Padilha é
pesquisador e diretor pedagógico do Instituto Paulo Freire, localizado na cidade de São
Paulo; portanto, não é e nunca foi membro da Escola E. Ressaltado isso, o que parece
ter sido decisivo na construção desse documento e, por conseguinte de todos os outros
que dele derivam, é o fato de que a escola, possivelmente percebendo a quantidade de
desafios se avolumarem, realizou o que chamou de “Leitura da Realidade”. Esta
consistiu na observação detida de problemas e dificuldades da própria escola, com
especial atenção à percepção que a comunidade tinha a respeito dos obstáculos a
enfrentar. Sobre isso, diz o documento:
A leitura da realidade pode ser categorizada como um processo de
identificação ou de autorretrato da escola, ou de conhecimento da
realidade escolar, realizado com base na observação participante
(sócio-antropológica), no qual há uma interação constante entre
pesquisador e objeto pesquisado. Ela caracteriza-se por considerar
aspectos relacionados à dimensão cotidiana da escola – o seu universo
educativo e os seus indicadores de desempenho – e da comunidade
que faz parte de sua área de abrangência, enfatizando as suas
diferentes dimensões. Neste trabalho, privilegiou-se as seguintes
modalidades de leitura de realidade escolar:
- Leitura do Entorno da Escola através do que se convencionou
chamar “Festa da Escola Cidadã”;
- Leitura da Realidade através do Universo Escolar.
- Leitura da Realidade através dos Indicadores Escolares. (PDPI
ESCOLA E, 2004, p. 15)
O marco referencial, como é tratado pelo documento, construído a partir da
“leitura da realidade” conferiu à escola a possibilidade de reunir informações que teriam
ajudado a escola a se organizar, baseada nas aspirações e carências da comunidade que
atende. Todavia, o processo de como foi captado os dados não está descrito no
documento.
Ao optar por realizarmos a “Festa da Escola Cidadã”, enquanto
primeiro momento ou primeira estratégia de “Leitura da Realidade da
63
Escola”, nos propusemos a levantar dados da realidade onde a escola
está inserida – do seu entorno – de uma forma mais coerente com a
nossa concepção de educação, para, a partir daí, iniciarmos, de certa
forma, a construção do Marco Referencial. Isto porque, ao
sistematizarmos as atividades da festa e ao orientarmos o nosso olhar
para as dimensões: ambiental, política, cultural, econômica, social e
organizacional do entorno da escola, estivemos dialogando com esta
realidade e tentando captar nela quais os valores dos sujeitos que ali
vivem e que participaram da festa/leitura do mundo, quais seus
compromissos, visão de mundo, seus sonhos e utopias. Desse modo, o
significado da festa entendida, a princípio, como um primeiro
caminho para a "leitura da realidade", aos poucos foi sendo
aperfeiçoado e organizado, servindo como matriz para a realização das
sínteses necessárias para que a escola construísse o seu Marco
Referencial. (PDPI ESCOLA E, 2004, p. 15-16)
Depois de realizadas as etapas para, efetivamente, ter condição de fazer a sua
“leitura da realidade”, culminando no marco referencial, o documento busca esclarecer
a importância deste como ponto de partida a partir do qual a escola poderia se organizar.
Para justificar todo o processo de busca por dados e a tentativa de resolver alguns de
seus problemas, o documento e, portanto, a escola, lança mão das observações da
UNESCO, conforme pode ser verificado:
Após a “Leitura da Realidade”, que se realizou em três momentos
distintos e complementares, quais sejam: - Leitura do Entorno da
Escola através da “Festa da Escola Cidadã”; - Leitura da Realidade
através do Universo Escolar; e - Leitura da Realidade através dos
Indicadores Escolares; em processo concomitante, o coletivo da escola
dedicou-se a revisão do Marco Referencial do seu Plano de
Desenvolvimento Pedagógico Institucional, uma vez, que já o tem
explicitado na sua filosofia de trabalho, ou seja, na proposta da
“escola do aprenda a ser”.[...] Desse modo, a partir das próprias
condições da escola e dos pressupostos acima enunciados, a Escola E
toma como referência para reflexão e revisão do seu Marco
Referencial os princípios e fundamentos da “escola do aprenda a
ser”, definida no início dos anos 1980 – baseados nas recomendações
do relatório de “Edgar Faure” para a UNESCO, em 1972, ao elaborar
um balanço crítico da educação naquele momento –, portanto, bem
antes dos atuais “pilares da educação para o Século XXI” serem
explicitados no relatório de “Jacques Delors” para a UNESCO em
1999, e que, ao longo desses 20 (vinte) anos vem orientando toda a
reflexão e prática da escola. Como o Marco Referencial representa o
alicerce e a base política e filosófica que dará sustentação ao Plano de
Desenvolvimento Pedagógico Institucional – PDPI – e a Proposta
Pedagógica da Escola – PP – sequer podemos pensar, na perspectiva
de uma escola que se propõe cidadã, em não realizá-lo
processualmente. (PDPI ESCOLA E, 2004, p. 39-40)
64
Mais adiante, quando a escola estabelece os seus compromissos e, portanto,
também a sua função social frente à sociedade que integra, faz a defesa de que a escola
deve ser útil ao processo de desenvolvimento engendrado pelo capitalismo tardio,
conforme o excerto:
Tomando por referência, recente trabalho de pesquisa realizada por
César Benjamim, através da Fundação Carlos Chagas de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ – publicado em 2002
sob o título: “O Brasil é um sonho” – [texto utilizado na construção do
Marco Referencial] e concordando com ele, os entrevistados durante a
construção deste Plano, apontam cinco compromissos com os quais o
Projeto Nacional deverá se comprometer. São eles:
1 – O compromisso com a soberania buscando conferir ao Brasil a
autonomia que nunca teve;
2 – O compromisso com a solidariedade valorizando mais as
pessoas do que as coisas; precisamos garantir para todos: moradia
digna, comida necessária, escola de boa qualidade, assistência à saúde
e direito à vida e ao trabalho;
3 – Compromisso com o desenvolvimento valorizando nossas
terras, recursos naturais, fábricas, cientistas, intelectuais e
trabalhadores para multiplicar nossas oportunidades. E colocando os
bancos para servir à nação;
4 – Compromisso com a vida em todas as suas formas
reinventando um novo tipo de desenvolvimento, que se preocupe,
antes de mais nada, com o ser humano e com a natureza, que é a fonte
da nossa vida;
5 – Compromisso com a verdadeira democracia procurando
desenvolver um novo sistema político, construído de baixo para cima,
baseado na participação de todos. Aprendendo a respeitar e conviver
com as diferenças, para ampliarmos nossa visão e horizontes. (PDPI
ESCOLA E, 2004, p. 42-43 – grifos meus)
Quer dizer, os compromissos que a escola define como seus são absolutamente
contraditórios, por exemplo, como é possível reinventar um novo tipo de
desenvolvimento colocando os bancos escolares para servir a nação? Além disso, a
questão da qualidade se apresenta, contudo, não está expresso o que é essa referida
qualidade. Embora não esteja declarado, a noção que se tem de como ofertar educação
está amplamente influenciada pela forma apresentada pelo MEC, além da UNESCO
conforme já apresentado, ou seja, habilidades, competências e interdisciplinaridade são
palavras recorrentes em todo o texto.
Já o documento intitulado Proposta Pedagógica (PP), traz, de saída, uma
referência a uma conhecida pedagoga da cidade, cujo nome é Maria de Lourdes Melo
Prais, mais conhecida por Dedê Prais. Ela foi a primeira diretora da escola, desde a sua
fundação em 1966 até 1989. Depois disso, tornou-se secretaria municipal de educação
65
na gestão 1993-1996. Segundo consta, é em sua gestão que foram criadas as bases
pedagógicas em que a escola se sustenta até os dias atuais. Como uma espécie de
epígrafe, o documento apresenta, sem dizer de onde foi extraída, a seguinte mensagem
atribuída à pedagoga:
O que caracteriza a “Escola do Aprenda a Ser” é a formação do ser de
humanidade plena, ou seja, a preocupação com a oferta de condições
propícias para o desenvolvimento do aluno em todas as suas
dimensões. Assumindo-se como permanente aprendiz e autor de sua
própria construção, o aluno se desenvolve como ser de conhecimento
(leitor e intérprete arguto da realidade); como ser de competências
(autor e ator criativo de alternativas face às diferentes demandas de
transformações sociais); ser de convivência solidária (humanizador
das relações interpessoais, ambientais e culturais); enfim, ser de
humanidade plena (eticamente atuante na construção de uma
sociedade mais digna, justa, amorosa e feliz). (PP ESCOLA E, 2012,
p. 1)
Depois disso, o documento começa a explicar a necessidade de construção da
proposta pedagógica, como orientadora das práticas escolares e da redefinição de
propostas curriculares, de metodologias de trabalho, da relação professor-aluno, da
avaliação, da organização do espaço e tempo escolares, da gestão, enfim, tudo o que é a
realidade do dia-a-dia da escola deve, de acordo com a introdução do documento, estar
contido nele. Todavia, as explanações em torno do entendimento que tem da educação e
do papel da escola na sociedade moderna não ficam suficientemente claras. Trata-se
também da formação do indivíduo e do que nomeia saberes culturais, o que tampouco
esclarece. É o que pode ser observado no seguinte excerto:
Essa [a redefinição do currículo de acordo com as exigências dos
“novos tempos” e com as demandas socioculturais] foi uma razão
suficientemente forte para que a Escola E, ao pensar na reconstrução
de suas Propostas Curriculares estivesse, em última análise,
preocupada com a função social da escola, com a qualidade da
formação humana que é típica dessa instituição e com os mecanismos
pelos quais se estima que tal função se realize. Assim, ao entender por
educação, o processo global de formação humana, onde o sujeito é
considerado na sua totalidade, e não apenas na sua dimensão
cognitiva, o coletivo dessa escola entende, também, que a formação é
um processo que envolve muito mais do que apenas a dimensão
intelectual do indivíduo. Ela afeta a emoção, o espírito, o corpo, as
estruturas de raciocínio. Logo, ao construir suas Propostas
Curriculares, os seus profissionais não se limitaram ao levantamento
de uma lista de conteúdos explícitos a serem transmitidos, mas
passaram a enxergar a escola como espaço de cultura viva, o que
acabou por alargar a compreensão que tinham dos saberes escolares, a
66
serem trabalhados. Nesta perspectiva, passaram a considerar os
saberes escolares como saberes culturais, englobando conceitos,
lógicas, habilidades, valores, crenças, sentimentos, atitudes, interesses,
condutas, símbolos, rituais. (PP ESCOLA E, 2012, p. 2-3 – grifos
meus)
Na sua Proposta Pedagógica a Escola E também não define muito nitidamente a
que o seu currículo se dedica, como no trecho a seguir:
Nesse sentido, os educadores da Escola E, ao elaborarem suas
propostas curriculares (Base Nacional Comum e Parte Diversificada)
para os níveis de ensino que oferece, tiveram o cuidado de buscar as
correlações entre os conteúdos das áreas de conhecimento e o universo
de valores, a identidade da escola e modos de vida dos alunos,
professores e dos demais participantes do ambiente escolar,
identificados pelas “leituras da realidade”. Com este procedimento
buscou-se articular conhecimentos e valores indispensáveis à vida
cidadã. Além disso, procurou-se identificar o que é fundamental para
aprender em cada conteúdo, e o que é mais importante aprender para
os alunos desta escola. A escola procurará, entretanto, enriquecer e
complementar a Base Nacional Comum, introduzindo projetos e
atividades do interesse de sua comunidade. (PP ESCOLA E, 2012, p.
4 – grifos meus)
É bom dizer que, não apenas nesse documento, mas de maneira geral, há uma
confusão bastante evidente do que se entende por arte, educação artística e práticas
culturais, e isso também é parte das discussões deste trabalho. Todavia, é evidente que a
arte é uma expressão da cultura e, portanto, ambos os termos não são sinônimos. A
indefinição de conceitos ou a falta de clareza acerca deles, engendram vários problemas,
inclusive no que se refere ao entendimento da função da educação artística no interior
da escola. Como pode ser visto em:
O ensino da música faz parte do ensino de arte, tanto no ensino
fundamental quanto no ensino médio, cabendo ao professor de arte,
incluir em seu planejamento, obrigatoriamente, o ensino da música ao
lado das outras manifestações culturais que devem ser trabalhadas,
conforme CBC. [Conteúdo Básico Comum] [...] O ensino da temática
história e cultura afro-brasileira e indígena no ensino fundamental e
médio é regulamentado por lei e a inclusão da temática história e
cultura afro-brasileira e indígena será contemplada em todo o
currículo escolar, e em especial, nas áreas de educação artística e da
literatura e história brasileira. (PP ESCOLA E, 2012, p. 7 – grifos
meus)
67
Na parte em que pretende discutir a Proposta Metodológica, a escola se
manifesta contrária ao que nomeia “alunos-esponja”, aqueles que apenas absorvem os
conteúdos dados pelos professores. Para isso, considera ser a interdisciplinaridade, os
eixos temáticos, a formação de habilidades e competências e as atividades significativas
(isto é, atividades que façam sentido e sejam pensadas a partir da realidade do aluno,
que pertençam de alguma forma ao cotidiano do aluno, em suma, que lhes sejam
familiares) o caminho para tornar o aluno participante, ativo na sua própria formação.
No entanto, não define de modo consistente como se articulariam essas propostas na
construção de um novo marco educacional.
Ainda no sentido de resguardar a sua identidade com os princípios da
“Escola do Aprenda a Ser” enquanto definidores de uma forma de
convivência democrática e cidadã, os educadores da Escola E se
dispuseram a decidir, com autonomia, o como trabalhar a “formação
da humanidade plena” e o como articular o seu trabalho educativo ao
projeto de sociedade que desejam instituir, a partir das necessidades
detectadas pelas evidências levantadas através da “leitura da
realidade”. Neste sentido, os educadores da escola foram unânimes em
optar por trabalhar com seus alunos, sob a forma do diálogo e através
de eixos temáticos e/ou projetos em abordagens disciplinares e/ou
interdisciplinares contextualizadas, priorizando a “formação
totalizadora que incorpora atividades intelectuais, manuais,
corpóreas, lúdicas, sociais e afetivas no cotidiano pedagógico,
congregando o que, na vida, não se separa, formando pessoas
autônomas, autênticas, solidárias, democráticas, cidadãs.” [trecho
atribuído a Dedê Prais] (PP ESCOLA E, 2012, p. 8)
Quanto aos princípios que norteiam as atividades da escola, são eles:
- Educar para a formação da humanidade plena (em todas as
dimensões);
- Educar para a “cidadania ativa”;
- Educar para pensar globalmente;
-Educar para a identidade terrena como condição humana essencial;
- Educar para a consciência planetária. Compreender que somos
interdependentes. A Terra é uma só nação e nós, os terráqueos, os seus
cidadãos;
- Educar para a ética do gênero humano, não para a ética instrumental
e utilitária do mercado;
- Educar para a simplicidade e para a quietude. Nossa vidas precisam
ser guiadas por novos valores: solidariedade, não-consumismo, paz,
saber escutar, saber viver juntos, compartir, descobrir e fazer juntos;
- Educar para os princípios éticos da autonomia, da responsabilidade,
da solidariedade e do respeito ao bem comum;
- Educar para os princípios políticos dos direitos e deveres da
cidadania, para o exercício da criticidade e do respeito à ordem
democrática;
68
- Educar para os princípios estéticos da sensibilidade, da criatividade e
da diversidade de manifestações artísticas e culturais;
- Educar para que exista sempre o compromisso de continuar
aprendendo. (PP ESCOLA E, 2012, p. 11/12 – grifos meus)
Avaliando esse documento isoladamente, certamente não seria possível capturar
algumas contradições presentes na escola E. Os grifos da citação acima indicam
algumas delas, principalmente, se compararmos a outros documentos. De que maneira
realmente estaria tratando o não consumismo, por exemplo, apregoado pela proposta?
Seria resistência ou resignação? Trata-se de promoção de alternativas históricas ou
consumismo ou de reafirmar a ética do individualismo (cada um deve fazer sua parte
isoladamente)?
Quando assinala a educação para a “humanidade plena”, negando textualmente a
educação instrumental e utilitarista para o mercado, o documento entra em conflito com
o que a escola chama de Projeto de Enriquecimento Curricular (PEC), conforme se
pretende mostrar a seguir. Este denomina os grupos formados para a execução dos
projetos de GDP (Grupo de Desenvolvimento Profissional). Além disso, justifica-se a
importância do PEC, nos seguintes termos:
Um novo olhar sob a formação dos jovens tem delineado alguns
princípios que nortearão o processo educativo no ensino médio.
Devemos considerar que a maioria desses jovens pertence à classe
trabalhadora, filhos de pais assalariados, cabendo, portanto, o desafio
de criar uma proposta de educação que desenvolva métodos de pensar
e de compreender as determinações da vida social e produtiva. E
ainda, como sujeito dessa realidade poder apropriar-se dela para
transformá-la. Além disso, a globalização e a internacionalização dos
mercados econômicos imprimem uma nova ordem que implica numa
reestruturação da organização da vida social, produtiva nos aspectos
que marcam a identidade do ser humano como sujeito da sociedade.
(PEC ESCOLA E, 2012, p. 1)
Ora, ambos os documentos, tanto a proposta pedagógica quanto o projeto de
enriquecimento curricular, datam de 2012; e há enormes divergências, senão as maiores
possíveis, entre eles. Isto porque, conforme trecho supracitado, o que parece estar
havendo é a reestruturação da própria educação para atender as mudanças no sistema
econômico. Em outras palavras, a adequação da escola para que os alunos, que são, em
sua maioria, da classe trabalhadora, sejam mais bem preparados para serem absorvidos
pelo mercado de trabalho.
69
Embora a consciência crítica e questionadora tenha se apresentado seguidamente
nos documentos, quando o projeto de enriquecimento curricular ganha corpo, ela sequer
se apresenta solidamente, a não ser por meio de novas tentativas de se fazer crer que a
“criticidade”, efetivamente, faz parte do cotidiano. Em um dos projetos, apenas como
exemplo, intitulado “EnvolVerde: reflita essa ideia”, a água aparece como tema. Dentre
os aspectos selecionados para o projeto está a visita aos rios que abastecem a cidade, a
discussão dos usos da água na indústria, na agropecuária, na geração de energia elétrica,
na navegação, entre outros. O projeto é bastante interessante, na medida em que dispõe
de boas chances de ampliar os conhecimentos dos alunos em torno dos usos da água,
enquanto elemento fundamental para a manutenção da vida. Todavia, não há nenhuma
referência, em todo o projeto, de crítica, por exemplo, ao sistema capitalista, que, sem
dúvida, pressiona o uso da água em muitas situações. O texto do PEC traz as seguintes
considerações:
Reconhecendo a importância da água para a vida de todos os seres do
planeta, e a iminente diminuição da mesma a cada dia, devido a
problemas como: assoreamento dos rios, poluição, desperdício, foi
escolhido esse tema visando sensibilizar e conscientizar o aluno (este
um transmissor de conhecimentos para toda a comunidade), atentando
para o uso racional da água e da preservação do meio-ambiente, como
forma de garantir uma fonte futura. Saber sobre a necessidade de se
economizar água. (PEC ESCOLA E, 2012, p. 4)
Dando sequência à análise de documentos da Escola E, temos pela frente o
Regimento Escolar. Neste se expressam a preocupação em promover a democracia, a
liberdade e a integração com a comunidade, que devem participar de forma ativa no
processo educacional dos alunos. Mais ainda, a qualidade do ensino e a competência
dos professores, enaltecidas, aparecem de forma recorrente no documento. Isto aparece
como uma espécie de defesa prévia a qualquer crítica. Além disso, aprimorar, como o
documento se refere, a pessoa humana, desenvolvendo sua autonomia intelectual, o
pensamento crítico e a formação ética e ampliar as condições de inserção no mundo do
trabalho também se fazem presente no texto do documento. A expectativa demonstrada
é que esse conjunto de elementos deve proporcionar aos alunos convivência, em paz e
harmônica, com as “diferentes culturas”, valorizando a vida, a natureza, a saúde, a paz e
a dignidade humana, conforme pode ser visto nos seguintes trechos:
70
Art. 1º - A Escola E, considerando os princípios e fins da Educação
Nacional/Estadual e a Política Educacional do Município, é
compromissada com: I – a democracia, a liberdade de expressão e a
interação entre elementos que a compõem; II – a integração
comunidade/escola, com a abertura à sua participação ativa no
processo educacional dos alunos; III – com a renovação contínua do
processo de busca do seu próprio aperfeiçoamento; IV – a realidade
sócio-econômica-política e cultural do aluno; V – a formação
continuada dos profissionais para a melhoria da qualidade do ensino
oferecido; VI – o dinamismo dos profissionais que são competentes e
comprometidos com a formação global do aluno. (...)
Art. 3º - O Ensino Médio é ministrado, tendo como finalidades: I –
consolidar e aprofundar os conhecimentos adquiridos no Ensino
Fundamental; II – garantir a compreensão dos fundamentos científicos
e tecnológicos dos processos produtivos por intermédio do ensino
contextualizado de cada área do conhecimento; III – aprimorar a
pessoa humana, desenvolvendo sua autonomia intelectual, seu
pensamento crítico e sua formação ética.
Art. 4º - As atividades planejadas devem oportunizar o
desenvolvimento, no aluno, de capacidades que o levem a ser sujeito
de sua própria formação e lhe possibilitem: I – apropriar-se de
conhecimentos, informações, conceitos científicos, tecnológicos para
construir o seu conhecimento; II – desenvolver seu espírito crítico e a
sua criatividade; III – trabalhar em equipe; IV – relacionar-se e
conviver harmonicamente com diferentes culturas; V – posicionar-se
eticamente perante as diversas situações com que se deparar; VI –
exercer liderança positiva e democrática; VII – optar sempre por
caminhos, soluções e alternativas que valorizem a vida, a natureza, a
saúde, a paz e a dignidade humana em todos os seus aspectos; VII –
ampliar suas condições de inserção no mundo do trabalho, como
empregado ou por conta própria. (RE ESCOLA E, 2012, p. 4-5)
No Regimento Escolar, a preocupação com a formação para o trabalho ganha
bastante força e é mais enfática de que em todos os outros documentos a que se teve
acesso. Em contrapartida, não há referência à arte ou educação artística como
mecanismo facilitador de aprendizagem para o trabalho. Apenas há um breve
comentário, quando o documento se dedica a descrever como se organiza o currículo do
Ensino Médio, como pode ser visto em:
Art. 69º - O currículo do Ensino Médio, etapa final de uma educação
de caráter geral, contempla conteúdos e estratégias de aprendizagem,
visando a capacitar o aluno para a vida em sociedade, a atividade
produtiva e experiências subjetivas.
Art. 70º - O currículo do Ensino Médio, desenvolvido nesta escola,
tem como fundamentos: I – as Diretrizes Curriculares Nacionais do
Ensino Médio, conjunto de definições doutrinárias sobre princípios,
fundamentos e procedimentos a serem observados na organização
pedagógica e curricular, tendo em vista o vínculo da educação com o
mundo do trabalho e a prática social, consolidando a preparação para
o exercício da cidadania e propiciando preparação básica para o
71
trabalho; II – os Parâmetros Curriculares Nacionais que: a) servirão de
estímulo e apoio à reflexão sobre a prática do professor, o
planejamento de suas aulas e o desenvolvimento do currículo escolar;
b) buscam dar significado ao conhecimento escolar, mediante a
contextualização e evitar a compartimentalização, mediante a
interdisciplinaridade. III – conteúdos básicos comuns – CBC. (RE
ESCOLA E, 2012, p. 21)
Além disso, o documento traz a descrição da organização e funcionamento
administrativo da escola e das atribuições de cada membro da comunidade escolar, as
formas de ingresso, condições para a matrícula, como se dá o modo de avaliação e o
regime disciplinar que orienta a prática escolar.
Em outro documento, o Plano de Intervenção Pedagógica (PIP) – 2012, a escola
apresenta uma série de problemas a serem enfrentados, entre eles: o baixo índice de
rendimento escolar, a falta de interesse/envolvimento por parte dos alunos e de suas
famílias e o abandono escolar (alunos não frequentam a escola). Contudo, os resultados
que se deseja alcançar não estão muito claros. Diante desse cenário o documento
propõe: intensificar e tornar mais atraente o aprendizado; ativar projeto de leitura na
biblioteca e nas áreas verdes da escola; incentivar a comunicação de alunos com colegas
de outras escolas, por meio de cartas (para alunos do 9º ano do EF e para os da 3ª série
do EM); desenvolver projeto de interpretação cênica de obras literárias; criar olimpíadas
internas de Língua Portuguesa e Matemática e incentivar a participação nas olimpíadas
nacionais de Matemática e Língua Portuguesa; intensificar parceria com universidades
locais; instalar dinâmicas que permitam o oferecimento de aulas de reforço/monitoria
para as disciplinas em que se apresentem as maiores dificuldades; realizar,
bimestralmente, reuniões de pais e mestres, diretor escolar e pedagogos para a entrega
dos resultados bimestrais; discutir com os alunos os resultados e incentivá-los a superar
as dificuldades; realizar atendimento individualizado às famílias e promover a Escola de
Pais, através da qual se pretende oferecer encontros em que os pais aprendam a lidar
com os filhos adolescentes.
Além disso, a escola entende que precisa: ampliar relacionamento entre Escola e
Promotoria de Justiça; promover palestras; estabelecer um efetivo controle de
frequência diária por professores e vice-diretores; valorizar, por meio de pontos
bimestrais, a assiduidade dos alunos; criar a coordenação de área; reestruturar a
elaboração dos planos anuais e bimestrais, observando os PCNs (Parâmetros
72
Curriculares Nacionais) e o CBC (Currículo Básico Comum); e realizar reuniões
periódicas para acompanhamento da aplicação do planejamento e troca de experiências.
O PIP, portanto, é um documento que busca elencar circunstâncias problemáticas que se
repetem na escola para tentar resolvê-los, ainda que não demonstre muita clareza no que
se refere aos resultados que determinadas ações deveriam ter.
3.4.2 Os documentos da Escola Privada (Escola P)
Assim como no caso anterior, designar-se-á por Escola P, sempre que nos
excertos trazidos de documentos constar o nome da escola privada. Em seu Regimento a
Escola P apresenta como fim a educação voltada para a liberdade, tolerância, pluralismo
de ideias e concepções pedagógicas, valorização do profissional da educação escolar,
garantia de qualidade, valorização da experiência extraescolar e a vinculação entre a
educação escolar, o trabalho e as práticas sociais, estão entre os princípios nos quais se
assentam as práticas educacionais, como pode ser visto no seguinte excerto:
Art. 1º - A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por
finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 2º - O ensino é ministrado com base nos seguintes princípios: I –
igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II –
liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o
pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas; IV – respeito à liberdade e apreço à
tolerância; V – valorização do profissional da educação escolar; VI –
garantia de padrão de qualidade; VII – valorização da experiência
extraescolar; e VIII – vinculação entre educação escolar, o trabalho e
as práticas sociais. (RE ESCOLA P, 2011, p. 2)
Especificamente sobre o ensino médio, o documento assevera que essa etapa da
educação básica deve dar conta de: o aprimoramento do educando como pessoa
humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico; a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para
continuar aprendendo, de modo a ser capaz de adaptar-se com flexibilidade às novas
condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores, conforme transcrito a seguir:
Art. 7º - O Ensino Médio, etapa final da educação básica com duração
mínima de 03 anos, tem como finalidades: I – a consolidação e o
aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino
73
fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II – a
preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para
continuar aprendendo, de modo a ser capaz de adaptar-se com
flexibilidade às novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento
posteriores; III – o aprimoramento do educando como pessoa humana,
incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia
intelectual e do pensamento crítico; e IV – a compreensão dos
fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos,
relacionando a teoria com a prática no ensino de cada disciplina. (RE
ESCOLA P, 2011, p. 3)
Sobre a proposta curricular, o documento apresenta como configura o seu
currículo, observando as exigências legais, entre as quais, aquelas listadas nos
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN.
Art. 34º - A proposta curricular terá uma Base Nacional Comum,
obrigatória em âmbito nacional, e uma Parte Diversificada, que será
estabelecida pelo Colégio devendo ser atendidas as necessidades e
peculiaridades locais e as diferenças individuais do aluno. (...)
Art. 36º - O programa de cada conteúdo curricular são elaborados
pelos professores em parceria com a Supervisão Pedagógica,
Coordenadorias de Ensino e Disciplinas e deverão se adequar ao
objetivo proposto pelo Colégio e aos fins estabelecidos em Lei
(Parâmetros Curriculares Nacionais). (RE ESCOLA P, 2011, p. 8)
Além disso, o documento apresenta a descrição da organização e funcionamento
administrativo da escola e das atribuições de cada membro da comunidade escolar. O
documento também trata das formas de ingresso, das condições para a matrícula, de
como se dá o modo de avaliação e do regime disciplinar que orienta a prática escolar.
Mais ainda, aborda o oferecimento de monitoria para os alunos, cuja finalidade é
auxiliar nas atividades técnico-pedagógicas das disciplinas. Esse trabalho é
desenvolvido por pessoal contratado pela escola, auxiliando os alunos em suas
dificuldades nos diversos conteúdos. Quanto à infraestrutura, a biblioteca, a audioteca e
a videoteca têm como objetivo auxiliar no desenvolvimento do currículo, dos programas
específicos e das atividades escolares em geral, constituindo uma fonte de informação,
leitura e pesquisa para toda a comunidade da escola.
Em sua Proposta Pedagógica de 2000, a Escola P se apresenta primeiro por meio
de sua história, tentando estabelecer relações de sua prática pedagógica atual com o
acúmulo de experiências que teve desde sua fundação. Destacam-se ainda as razões
pelas quais surgiu: para atender, à época, as classes menos favorecidas e média,
incapazes de arcar com os altos custos da educação em colégios particulares. A Escola P
74
teve como objetivo no início o curso secundário voltado para a colocação de seus
egressos na universidade.
É bom lembrar que Uberaba, na década de 1950 tornou-se um importante
referencial universitário para toda a região, já que abrigava diversos cursos e faculdades,
como: Faculdade de Odontologia do Triângulo Mineiro, fundada em 1947; Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras Santo Tomás de Aquino (FISTA), fundada em 1948;
Faculdade de Direito do Triângulo Mineiro (1951); Faculdade de Medicina do
Triângulo Mineiro (1954); Escola de Engenharia do Triângulo Mineiro (1956). Sobre
isso, temos que:
Segundo dados do IBGE, Uberaba tinha, em 1940, exatos 58.984
habitantes. Até 1950, a cidade ganhou outros 10.450 moradores e a
população chegou a 69.434 habitantes. Entre 1950 e 1960, com as
faculdades implantadas por Mário Palmério, já em funcionamento, o
índice de crescimento foi bem superior e Uberaba já contava com
87.581 moradores. (AIDAR, 2007)
Diante disso, a Escola P assevera:
Inevitavelmente, os pressupostos da prática pedagógica do Colégio
deitam raízes em sua história e convém explicitá-la. Nasceu o Colégio
em 1954, em Uberaba, como uma proposta de dar acesso à
universidade pública a camadas da comunidade que não dispunham de
meios para acessar o ensino superior em Uberaba e região, de vez que,
à época, como cidade e região universitárias só preenchiam os bancos
universitários os alunos oriundos dos grandes centros nos quais a
permissão de um ensino secundário particular qualificado viabilizava
o acesso à universidade ou, no caso isolado de um colégio particular
de Uberaba, de alto custo, no qual só ingressavam alunos que bem
podiam pagar e, em menor proporção do que aqueles oriundos de
outras cidades, também ingressavam na universidade, tornando difícil,
para não dizer impossível a continuidade do ensino superior de alunos
de camadas populares. Desse modo, o Colégio nasceu, ofertando curso
secundário noturno, com uma vocação inicial nítida para permitir que
alunos oriundos da classe média e de classes menos favorecidas, com
baixo custo, pudesse ingressar na universidade. (PP ESCOLA P, 2000,
p. 2)
Ainda que confessamente dirigida à formação para universidade, a Escola P em
sua Proposta Pedagógica de 2000 ratifica o seu plano de formação para além do
vestibular, indicando estar preocupada também com a formação, digamos integral, do
aluno egresso do ensino médio. Quer dizer, ao pronunciar que a universidade e o que ela
deseja receber em suas dependências norteiam a prática pedagógica da escola, também
75
indica a incorporação de princípios que vão além da preparação para o Ensino Supeior,
embora, não se pode deixar de mencionar que o trabalho, de alguma forma, também é o
alvo dessa formação integral. Isso pode ser verificado no seguinte trecho:
Ao longo das décadas de 1960, 70, 80 e 90, o Colégio formou-se, na
comunidade uberabense, como um educandário que, de mãos dadas
com a universidade brasileira buscava a formação do perfil do aluno
que esta universidade definia e desejava. Esconder essa história e
deixar de levar em conta o quanto ela contribuiu para o delineamento
do perfil da instituição é escamotear a realidade e falseá-la com um
discurso burlesco. Assim, é fundamental apresentar o Colégio em duas
dimensões: como Casa de Instrução e como Casa de Educação. Essa
dicotomia pode, à primeira vista, assustar, quantos, incautos, tenham
uma visão redutora do Colégio como mero fabricante de cérebros para
os vestibulares ou para a universidade. (...) Como Casa de Instrução, a
Escola P não esconde sua vocação de instituição de ensino voltada
para a continuidade dos estudos no ensino superior. Para tanto, seu
desenho curricular atende aos anseios dos perfis que a universidade
brasileira quer e demanda, e diga-se, todas as universidades com os
variados perfis que elas solicitam. Nesse sentido, há um intenso
intercâmbio com as universidades brasileiras para o estudo do perfil
do jovem universitário que a universidade solicita e que ela deseja ver
ser entregue a ela pela escola de ensino médio. O desenho curricular,
por óbvio, não se ajusta aos anseios do portal de acesso da
universidade, o vestibular, mas está direcionado, no ensino médio,
para a consecução das habilidades que a universidade requer de seus
universitários. Há, pois, uma distinção entre o desenho curricular do
ensino médio que o Colégio define e vivencia com vistas a adequar o
perfil de seu aluno ao perfil demandado pela universidade e o perfil de
um desenho curricular voltado para vencer o obstáculo chamado
vestibular. São coisas diferentes, e, às vezes, antagônicas. (PP
ESCOLA P, 2000, p. 3-4)
Quando o documento se refere ao seu desenho curricular, a Escola P demonstra
que se trata de um processo de acumulação de experiências e, portanto, não bastaria,
para que de fato ocorresse algo de novo, incluir a proposta num plano de intenções.
Assim, reconhece as limitações, inclusive no que se refere à qualificação de
profissionais. Embora haja uma preocupação expressa no regimento escolar com a
colocação profissional, não se estabeleceu, neste documento, qualquer utilização das
artes com o propósito de ampliar as capacidades para o trabalho, ao contrário, aqui se
fala de ampliação das potencialidades do ser humano, como podemos ver nos
fragmentos:
A inserção das Artes Plásticas, da Educação Musical e do Teatro no
desenho curricular, conquanto se faça com timidez assumida, decorre
76
da inexistência de uma prática anterior do Colégio na vivência desse
elemento curricular importante. Com efeito, as Artes, dentro do
desenho curricular, ofertando-se opcionalmente ao aluno, têm
dimensão de expressão artística no estrito senso que essa atividade
exige. O incremento de salas de aula para a iniciação musical, para as
artes plásticas e as ainda tímidas incursões no teatro, já impõem a
aquisição de equipamentos e instrumentos, cujo crescimento
dependerão de, num processo ampliação, o Colégio adquirir memória
do que faz e de como fazê-lo bem. Assim, as artes plásticas, a
iniciação musical e o teatro já se inscrevem no desenho curricular
desde as primeiras séries da educação infantil até as séries terminais
do ensino médio. Certo está o Colégio de que a sua timidez em
ampliar, no desenho curricular, a participação das artes tem muito
mais a ver com a escassez temporária de recursos humanos docentes
que trabalhem as artes como forma concreta da expressão da
sensibilidade do que com uma suposta recusa dessa participação por
parte do Colégio. O Colégio, por outro lado, definiu claros caminhos a
serem seguidos num futuro próximo e, nesses caminhos, a inserção
das artes no desenho curricular é pressuposto inarredável para a plena
expansão de todas as potencialidades do ser humano. (PP ESCOLA P,
2000, p. 9-10)
Na Proposta Pedagógica, inclui-se no desenho curricular a presença
cada vez mais contínua e integral do aluno nos dois turnos das
atividades letivas do Colégio, quer usando recursos da biblioteca, quer
os elementos de intercâmbio através de sistemas informatizados de
comunicação, quer em atividades de artes, educação musical, teatro,
escolinhas de esportes e, fato novo, na participação, em pequenos
grupos comandados por professores de tempo integral para isso
treinados ao longo de dois anos em Educação para a Paz e em
Educação em Valores Humanos, de modo a que o aluno tenha a
possibilidade de, em pequenos grupos orientados, encontrar apoio às
suas necessidades acadêmicas, existenciais e outras que forem
demandas pelo grupo. (PP ESCOLA P, 2000, p. 11)
Na Proposta Pedagógica, produzida em 2005, que vige na atualidade propõe-se a
ruptura com uma cultura de reprovação e com uma educação elitista; compromete-se
com a aprendizagem do aluno e com uma educação de qualidade para todos; o espaço
exíguo aparece como obstáculo a ser superado para proporcionar melhores condições às
atividades esportivas, dança, teatro, artes, entre outros. Além disso, temos: o trabalho
em equipe é também uma dificuldade evidenciada; a ampliação da relação direta entre
professor e aluno é vista como prioridade; além da questão de organização do tempo
escolar, há uma visível preocupação com a participação da comunidade como um todo,
principalmente dos pais, na educação dos alunos. Sobre a proposta pedagógica e sua
função, a escola faz entender que somente a renovação permanente das escolas, no que
77
se refere à redefinição de missão, à busca de sua identidade e de seu verdadeiro papel na
sociedade, é capaz de “enfrentar” o mundo hodierno, conforme pode ser observado:
Passamos por um momento de profunda desestruturação de valores,
novos paradigmas, consumismo, desigualdades, injustiças etc. Os
interesses políticos, econômicos e tecnológicos prevalecem em
detrimento dos valores humanos e sociais. Há um excesso de
liberdades e informações sem limites. A crise econômica se sustenta
na violência, no preconceito e se reflete em famílias desestruturadas e
influenciadas por líderes e ídolos negativos. A globalização trouxe um
avanço tecnológico, a era da informatização. Mas esse
desenvolvimento sugere um aumento das desigualdades sociais,
oprimindo valores culturais de países em desenvolvimento, ou à
margem deste. A exclusão é muito grande. Os conflitos são muitos,
bem como as competições pela supremacia de determinados valores
culturais, religiosos, econômicos e sociais sobre outros. Nesse novo
mundo é necessária uma renovação permanente das escolas em termos
de redefinição de sua missão e busca de sua identidade e de seu
verdadeiro papel na sociedade. A nossa proposta pedagógica será uma
ação-reflexão-ação e nunca estará pronta e acabada. Ela será
constituída e vivenciada em todos os momentos e por todos os
envolvidos. (PP ESCOLA P, 2005, p. 3)
Ao propor como ação para si mesma: ampliar as situações de aprendizado do
aluno enquanto permanecer na escola; fazer a escola refletir sobre as condições
históricas, sociais, tecnológicas e culturais nas quais está inserida; tornar possíveis ao
egresso: dar continuidade aos estudos, a ascensão social por meio dos estudos, a
formação de valores, competências e habilidades que desenvolvam o aluno crítico,
agente transformador da sociedade, enfim, a escola evidencia a preocupação de
demarcar a que veio, ou seja, como é entendida a educação pela instituição, que se
define:
Como colégio cenecista, com uma proposta de educação comunitária,
a formação do cidadão que toma consciência dos problemas da
comunidade uberabense em que se localiza, ao mesmo tempo em que
aprende a ser parte da solução desses problemas é a destinação maior
do colégio. Assim, a inclusão social, as atividades extramuros tornam-
se fins de uma educação comunitária. Por outro lado, ofertando-se
como educação voltada para os anseios da comunidade o Colégio visa
à oferta de educação que permita ao seu egresso o acesso à
continuidade de educação em ensino superior em ambiente público,
uma vez que sua clientela é fundamentalmente constituída de alunos
que pretendem ascensão social através dos estudos. Por conta disso, a
educação de alunos que se destinam à universidade com uma
formação cívica que constitua em instrumento de mudança da
sociedade passa a ser a maior finalidade da educação na Escola P.
Respeitando e acolhendo a educação como um processo em que o
78
aluno aprende a aprender, aprenda a fazer com aquilo que aprendem,
aprenda a conviver com outros e aprenda o ser, o Colégio incluiu o
aprender a empreender e o aprender a mudar-se, através da
participação intra e extramuros das atividades do Colégio, que passa a
ser a maior destinação do Colégio. Abrir os muros do Colégio para a
participação da e na comunidade passa a ser ação imperativa do
Colégio. (PP ESCOLA P, 2005, p. 4 – grifos meus)
O trecho acima transcrito abriga e, de certa forma, traduz um conflito bastante
recorrente, pelo menos, em todos os textos analisados neste trabalho. Trata-se da
formação para o trabalho. Ainda que não diga abertamente, a ascensão social pretendida
pela comunidade que frequenta a escola nada mais é do que a conversão da formação
cultural em formação para o trabalho. O aprender a empreender parece ser o
desdobramento palpável das recomendações do MEC; ao mesmo tempo, há um esforço
por parte do documento em enaltecer e incentivar o contato da escola com a
comunidade, inclusive na solução dos problemas locais.
Entre objetivos de curto, médio e longo prazo, há os de: ampliar os recursos
instrucionais com vistas à sua informatização e virtualização, de modo a minimizar o
tempo “passivo” da relação entre professor e aluno; adequação do espaço físico para
expandir as atividades esportivas, dança, artes cênicas e no anfiteatro para apresentações
de pais, alunos, professores e ações com a comunidade; promover a Escola de Pais;
intensificar os projetos interdisciplinares e unificar ações pedagógicas; sensibilizar a
comunidade para o trabalho em equipe; ampliar o acompanhamento das atividades
extramuros; realizar atividades temáticas; ampliar o conforto dos alunos para que o
tempo integral que destinam estando na escola seja mais prazeroso; ampliar as relações
interpessoais de professores e funcionários para que aumentem as ações entre as
equipes. Quanto à organização do currículo a Escola P assevera:
No sentido mais amplo o Colégio realiza experiências para gerar
conhecimentos, e assim desenvolve projetos que atendem a temas
específicos, tais como: artes, educação física, ensino à distância, ações
cívicas de envolvimento com organizações comunitárias. O Colégio
tenta trabalhar mais com a cultura dos alunos, valorizando os seus
saberes, diversificando métodos de ensino, integrando o trabalho dos
professores através da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade.
(PP ESCOLA P, 2005, p. 8)
Mais uma vez, se faz presente a influência das prescrições na ONU, conforme
pode ser observado:
79
O Colégio também considera que a educação se fundamenta em
quatro pilares básicos essenciais, de acordo com o relatório de Jaques
Delors para a UNESCO, são eles: aprender a conhecer; aprender a
fazer; aprender a conviver; aprender a ser; e inclui o aprender a
empreender e o aprender a mudar. (PP ESCOLA P, 2005, p. 9)
Como proposta para a execução de suas intenções o documento afirma que serão
adotadas a contextualização, a interdisciplinaridade e a transversalidade para que o
currículo se articule adequadamente, mediante os pressupostos definidos. No que diz
respeito, especificamente, à colocação das artes no currículo, o documento traz:
A educação física, a filosofia, a língua inglesa, a música, as artes
plásticas, a dança e as artes cênicas se constituirão como disciplinas
curriculares distintas a serem trabalhadas no ensino, desde a educação
infantil até o ensino fundamental e médio, permitindo aos alunos a
aproximação de competências e habilidades escalonadas em níveis
que se iniciam na educação infantil de 4 (quatro) anos de idade até o
ensino médio, permitindo o acesso, no caso da educação musical, ao
conhecimento e manipulação de todos os instrumentos que constituem
os naipes de uma formação para participação em atividades próprias
da música popular brasileira, da música folclórica e da música erudita,
assim também como nas artes plásticas, iniciando-se com o desenho, a
pintura, a escultura sem contudo, desprezar os princípios da
interdisciplinaridade e da contextualização diária, mas, garantindo-
lhes uma carga horária específica, segundo nossa grade curricular. (PP
ESCOLA P, 2005, p. 15)
Embora as propostas estejam bastante claras no documento, evidencia-se que se
assemelha mais a uma carta de intenções e que, provavelmente, haverá, ao final do
processo, diferenças entre esta e o que de fato aconteceu.
De qualquer modo, é espantosa a semelhança entre as medidas recomendadas e
propostas por cada escola. Mais uma vez, parece fundamental considerar a distinta
origem de cada uma delas. Mesmo assim, nas três variáveis estabelecidas para esta
pesquisa – funções atribuídas à escola e à educação artística/formação cultural,
diagnósticos e propostas formuladas e definição das finalidades da educação – a
similaridade das descrições é visível. Há dois elementos comuns a todos os documentos
apresentados: todos se referem às funções da educação e foram produzidos no mesmo
período histórico. Este, mais do que qualquer coisa, pode ser a melhor chave de
interpretação para tamanha proximidade.
80
Vale acrescentar que, ainda que os documentos tratem sobre a organização do
espaço de educação de maneira bastante semelhante, no caso das escolas E e P, em
virtude das diferenças entre elas (de público e de infraestrutura física, por exemplo) as
práticas provavelmente também apresentam algumas diferenças, mesmo que conduzam
para a mesma finalidade.
Quanto às matrizes curriculares, isto é, o documento em que se prevê a
quantidade de horas-aula destinadas a cada área do conhecimento tratado no Ensino
Médio, realizou-se a análise do tempo destinado ao ensino de artes durante os três anos
do ciclo final da educação básica.
Na Escola E, em documento datado de 2012 (conforme pode ser visto no Anexo
1), é possível observar que cada ano do Ensino Médio tem 833,2 horas-aula, portanto,
ao final de três anos tem-se 2500 horas-aula. Dentre as quais, apenas 66,4 horas-aula,
durante a 1ª Série, são destinadas ao ensino de artes. Isso corresponde a 80 módulos-
aula, de 50 minutos cada, nos três anos.
Também em documento datado de 2012, a Escola P apresenta sua matriz
curricular da seguinte forma (conforme pode ser visto no Anexo 2): 3163,2 horas-aula
durante os três anos do Ensino Médio; 966,4 horas-aula nas duas primeiras séries e 1230
horas-aula na terceira série. Para o ensino de artes, que também só aparece previsto para
a 1ª série do ciclo final da educação básica, se destina apenas 33,2 horas-aula nos três
anos do ensino médio, logo 40 módulos-aula, cada um de 50 minutos.
Para escolas que apoiam boa parte de seus argumentos na aproximação de suas
práticas pedagógicas com o ensino de artes, as matrizes curriculares apresentam uma
tendência bastante diferente, uma vez que a quantidade de tempo destinada ao ensino
das artes é por demais reduzida. Todavia, em conversas com pessoas de ambas as
escolas, durante as visitas a campo, foi explicitado que esses documentos, as matrizes
curriculares, são uma exigência da Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais,
por conseguinte, eles são elementos balizadores da prática nas escolas. Quer dizer, a
SEE/MG autoriza ou não o funcionamento de um ano letivo mediante a apresentação
das matrizes curriculares às diretorias de ensino regionais num prazo determinado;
depois disso, porém, as escolas podem fazer os ajustes que julgarem necessários, desde
que o mínimo a ser executado no ano letivo corresponda ao que está presente na matriz
curricular de cada ano. Isso parece corresponder à verdade, na medida em que a Escola
P, por exemplo, recebeu uma certificação da secretaria estadual de educação
reconhecendo a excelência dos cursos de canto e de instrumentos musicais, haja vista a
81
autorização concedida à instituição de conferir aos alunos desses cursos a certificação
de técnico, conforme pode ser visto no Anexo 3.
O que as visitas às escolas revelaram é que, de fato, a abordagem quanto ao
ensino das artes, por vezes também chamada de Educação Artística, é bastante
diferente. Na escola E os recursos materiais são muito mais escassos do que na escola P,
razão, de saída, limitante no que se refere à possibilidade de aprendizagem, inclusive no
que se refere ao manuseio, por exemplo, de instrumentos musicais. Para a escola E, o
ensino de artes parece ser mais uma obrigação legal a cumprir, enquanto que na escola P
o ambiente, embora simples, está bastante melhor preparado para abrigar o ensino das
artes, seja por conta da melhor estrutura física, seja por conta de ter à disposição mais
recursos financeiros.
Certamente o espaço físico se configura, também, como vetor que possibilita ou
não determinadas práticas. No caso do ensino de artes essa assertiva parece se enquadrar
perfeitamente. A Escola P conta, desde a entrada, com um ambiente que desperta, no
mínimo, curiosidade. Cheio de mosaicos, afrescos, textos, poemas e cores, os alunos
experimentam no seu cotidiano elementos artísticos espalhados pelas dependências da
escola; sem contar com as intervenções de dança, teatro, leitura de poemas e
apresentações musicais que dominam o espaço, várias vezes durante o intervalo das
aulas.
Seja qual for o motivo que explique as diferenças, além do elemento financeiro,
a Escola E está edificada em um amplo espaço muito bem conservado, todavia, numa
estrutura bastante tradicional. Quer dizer, a não ser em momentos como, por exemplo,
os das feiras de ciências ou sessões de filmes, organizada pelos professores, os alunos
não têm oportunidade de lidar com outros elementos artísticos em seu dia a dia.
Assim, a Escola P demonstra maior empenho e condições de possibilitar aos
seus alunos amplo contato com as atividades artísticas. Principalmente quando destina à
comunidade da qual faz parte montagens de espetáculos que dificilmente seriam
sediados na cidade, como, por exemplo, os musicais: Cats, O Fantasma da Ópera e O
Rei Leão. Momento em que integra as atividades de música, canto, teatro e dança.
Ainda que o objetivo de formação cultural de ambas as escolas, ao final das
contas, sirvam a uma mesma estrutura econômica, é necessário dizer que as práticas são
bastante diferentes, sendo que a Escola P confere muito maior atenção às atividades
culturais do que a Escola E.
82
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa buscou-se melhor compreender qual é a função social
autoatribuída por duas escolas, uma da rede estadual de educação de Minas Gerais e
outra da rede privada, a partir de documentos produzidos nas próprias escolas. Quer
dizer, como cada instituição considera ser ideal o processo de formação cultural de seus
alunos na sociedade do capitalismo tardio.
As análises tomaram emprestados os conceitos cunhados pela Escola de
Frankfurt, principalmente os de Adorno, Horkheimer e Marcuse, de modo que se
pudesse observar a realidade perseguida por este projeto através das lentes de
interpretação da Teoria Crítica da Sociedade.
Objetivando o melhor entendimento das condições em que foram elaborados
esses documentos, partiu-se para uma reflexão, cujo suporte foi dado pelo contexto
histórico em que os documentos foram produzidos. Assim, é bom dizer que a cultura, de
acordo com os frankfurtianos, na sociedade industrial avançada é, muitas vezes,
apresentada como o “cimento” capaz de realizar a reconciliação entre indivíduo e
sociedade, visto que na sociedade do capitalismo tardio se aprofundou a cisão entre os
elementos supracitados. Todavia, a conciliação parece ser improvável nesse contexto.
Por cultura, entende-se, com Marcuse (1998), como processo de humanização e
esforço individual, e principalmente coletivo, para desenvolver as faculdades e
capacidades humanas que permitiriam a diminuição (ou extinção) da agressividade, da
violência, da miséria. Claro que a cultura, justamente por não ser neutra, se não produz
as condições para a eliminação da injustiça e da dominação, faz exatamente o contrário,
ou seja, ela pode ser fator de distinção social a serviço da dominação.
É neste “pano de fundo” que pode ser examinada a dinâmica social da sociedade
moderna. Sendo as escolas frutos da organização desta sociedade, elas funcionam como
uma espécie de recorte, ainda que tenha um contingente limitado de pessoas, do
momento atual da composição social em que elas estão inseridas.
Isso estabelecido, elaborou-se a pergunta que norteou todas as ações da pesquisa,
que se traduziu nos seguintes termos: qual o diagnóstico e quais objetivos educacionais,
83
ações previstas e estratégias são definidos no projeto educacional de duas escolas (uma
pública e outra privada), considerando os documentos oficiais produzidos no âmbito da
própria escola?
A partir do problema central, derivaram os objetivos e hipóteses. Os primeiros se
estruturaram nos seguintes termos: a) Identificar e analisar como são definidas as tarefas
e funções da escola tendo como referência a valorização das atividades culturais e
artísticas; e b) Identificar e analisar o modo como são realizados diagnósticos, definidos
objetivos educacionais e propostas de ações para equacionamento dos problemas
educacionais referentes à formação cultural.
No caso das hipóteses, temos: a) Verifica-se, nos documentos analisados, a
crescente tendência de destacar a necessidade de a escola incorporar conteúdos
relacionados às atividades culturais como forma de adequar a escola ao contexto em que
está situada; e b) Ainda que as mudanças sejam evidentes e que as atividades culturais
nas escolas tenham um sério propósito, predomina a formação voltada para o trabalho.
Durante o desenvolvimento deste projeto, antes de chegar à análise dos
documentos produzidos na esfera escolar, entendeu-se que seria necessária uma
avaliação, também via análise documental, dos domínios que circundam o ambiente
local, a fim de detectar tendências, convergências ou divergências. Além disso, fez-se
fundamental a contextualização das últimas reformas implantadas na educação básica
no Brasil, com especial atenção para o Ensino Médio, principal preocupação deste
trabalho.
Neste primeiro momento foi possível perceber que as reformas são decorrência
natural das exigências do modelo econômico vigente, isto é, na tentativa de preencher
novos postos de trabalho, surgidos da ultraespecialização engendrada pelo capitalismo
tardio, tentou-se, mais uma vez sem sucesso, estabelecer as “novas” funções do Ensino
Médio reformado. Entretanto, permanece a dicotomia entre ensino propedêutico e
técnico-profissionalizante.
As análises de documentos produzidos em diferentes instâncias, internacional,
nacional e estadual, confirmaram, em grande medida, a hipótese de que os dados
coletados tenderiam a expressar a prescrição de atividades culturais como forma de
solucionar o problema da qualidade da educação. Com exceção do documento assinado
pelo estado de Minas Gerais, Reinventando o Ensino Médio, que declaradamente
assevera ser o Ensino Médio o momento de profissionalização dos jovens, já que os
egressos desse ciclo devem estar preparados para o mercado de trabalho, todos os outros
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analisados tornam as atividades culturais em algo instrumental (meio para se alcançar
outra finalidade externa à lógica da própria arte), especialmente por meio da Educação
Artística ou ensino das Artes. Espera-se que, por meio do contato com as referidas
atividades culturais, o aluno torne-se mais apto às mudanças geradas pelas intempéries
do mercado de trabalho. Ou seja, a hipótese contida nesses documentos é a de que
promovendo ampla relação com as artes em geral os alunos tornar-se-ão mais flexíveis,
criativos e, portanto, adaptáveis, quase sem resistência, às mudanças periódicas do
capitalismo. Em outras palavras, os educadores devem estar atentos às necessidades
econômicas do sistema; não necessariamente, portanto, busca-se a melhor formação
cultural possível para os alunos que, por sua vez, não passam de apêndices do processo
produtivo que é orientado para o lucro.
Além disso, vale perguntar qual é a “cultura”, por meio do contato com as artes,
por exemplo, que se quer impingir nos alunos. É bom lembrar que não se está usando
como sinônimos a arte e cultura, no entanto, mas ainda assim, como a escola é uma
fotografia da realidade social, também as expressões artísticas o são da cultura.
Marcuse (1997) faz importantes reflexões sobre o caráter afirmativo ou negativo
da cultura. Quando se fala em atividades culturais, frequentemente, as pessoas
demonstram bastante respeito por elas: afinal, são atividades culturais e o que poderia
ser melhor do que isso? O respeito demasiado à cultura e a todas as suas expressões,
muitas vezes, conduzem-nos a uma espécie de percepção de algo como sagrado e
inquestionável. Como esses elementos da cultura, quase sempre, se travestem de valor
reivindicativo ou de reformista e, até mesmo, de revolucionário, questioná-los é um
verdadeiro sacrilégio.
No caso do caráter afirmativo da cultura, o que ocorre é o reforço dos valores
burgueses, enquanto que no caráter negativo da cultura, Marcuse afirma que este sim, é
aquele que propõe mudanças, uma vez que a própria negação da realidade objetiva
contém em si o potencial da transformação radical da experiência dos indivíduos com o
mundo social. Portanto, tomar as expressões da cultura, seja por meio da música, dança,
artes plásticas, teatro ou qualquer outra manifestação, como portadoras da possibilidade
de desvelamento da realidade é importante, no entanto, isso só terá algum efeito se a
própria cultura também for objeto de crítica.
Como a reconciliação, nessa sociedade, entre indivíduo e sociedade é impedida
de acontecer, acentua-se a cisão que caracteriza o espírito da sociedade contemporânea.
A fragmentação de que são vítimas os indivíduos traz consigo o que Adorno chamou
85
pseudoformação. Ou seja, como a formação cultural é a expressão subjetiva da própria
civilização e esta se encontra sob o jugo do capitalismo tardio, cuja sustentação ocorre
na ideologia da sociedade industrial, é claro que o indivíduo reflete essa mesma
situação. Vale dizer que, diante da organização social e da divisão do trabalho vigentes,
a formação cultural nos termos empregados pela Escola de Frankfurt é inexequível.
Verificou-se, ainda, que os documentos das duas escolas estudadas e a que essa
pesquisa teve acesso convergem em muitos pontos. O entendimento de ambas as
instituições indicam que para o aluno do Ensino Médio é dada uma formação que visa a
preencher as vagas solicitadas pelo mercado de trabalho. Pouco importa se o ingresso no
universo do trabalho vai acontecer imediatamente após o final da educação básica,
como parece ser a preocupação da Escola E, ou se vai acontecer depois, após qualquer
curso técnico, tecnólogo ou de graduação, como parece ser a preocupação da Escola P.
O fato é que, nos dois casos, a formação para o trabalho está no horizonte.
Desse modo, a segunda hipótese se confirma, já que, ainda que se reconheça
esforços no sentido de proporcionar aos alunos o mais amplo contato com atividades
culturais e que as mudanças são evidentes, tudo isso de uma forma ou de outra tem
como objetivo central o trabalho. É claro, também, que, no que se refere à Educação
Artística ou ao ensino das Artes, a Escola P o faz com muito mais destreza e seriedade
do que a Escola E, até mesmo por contar com melhores instalações e mais recursos
humanos e financeiros. Guardada as devidas proporções e diferenças, poder-se-ia dizer
que, por exemplo, a Orquestra Filarmônica da Escola P é bastante bem equipada e
treinada, garantindo boas apresentações, equivalentes a muitas profissionais.
Embora haja, verdadeiramente, um firme propósito de apostar nas artes como
mais uma possibilidade de formação dos seus alunos, ao contrário da Escola E que
parece ter incluído em suas atividades aquela chamada educação artística por força da
obrigatoriedade legal, assim como a “alma” a que se refere Marcuse (1997), a Escola P
e seu honesto propósito de conferir mais qualidade e melhor formação para os seus
alunos parece sucumbir. Não por desinteresse ou falta de vontade, mas sim porque
ações isoladas no contexto geral da educação e da sociedade hodierna tendem ao
fracasso, já que dificilmente fora do sistema há possibilidades de inserção na vida
social.
86
Mais ainda, a prescrição de ofertar maior contato dos alunos com as expressões
artísticas é bastante atual, conforme se pode constatar por meio das análises
documentais realizadas neste trabalho. Todavia, convém lembrar que como as
expressões da cultura são o microcosmo da própria cultura e esta, por sua vez, é
determinada pelas tendências sociais predominantes, isso equivale dizer que depositar
nas atividades culturais toda a responsabilidade de conferir qualidade à educação é uma
proposta bastante problemática. Adorno (2011) usa a experiência da educação alemã
para exemplificar o que ele chama falência da cultura, justificando que esse país foi o
lugar que experimentou as piores faces da barbárie que essa mesma cultura, tida na
contemporaneidade como o salvo-conduto para garantir melhor qualidade a educação,
produziu.
Feitas as análises, de fato, a formação cultural, de que tanto se fala na atualidade,
está, sem dúvida, submetida à lógica do capital e foi convertida em educação para o
trabalho. Ainda que haja contribuições dessas iniciativas no que tange à formação
cultural do indivíduo, sobretudo no que se refere ao posicionamento das escolas a esse
respeito, não se pretende esgotar as discussões sobre o tema. Em vez disso, essa
pesquisa serve como ponto de partida para outras discussões e diferentes estudos.
Apenas como sugestão, é possível, a partir das discussões aqui realizadas, perseguir o
entendimento de como as atividades culturais promovidas pelas escolas impactam o
indivíduo. Quer dizer, de que maneira, ainda que se saiba dos limites da formação
cultural nessa sociedade, o contato com as expressões artísticas e culturais ampliam a
experiência dos jovens do Ensino Médio.
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90
ANEXOS
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Anexo 1: Matriz Curricular para o Ensino Médio 2012 Escola E
92
93
Anexo 2: Matriz Curricular para o Ensino Médio 2012 Escola P
94
Anexo 3: Portaria da SEE/MG que confere à Escola P a possibilidade de ministrar
cursos técnicos de canto e instrumental
SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO
SUBSECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO BÁSICA
SUPERINTENDÊNCIA DE ORGANIZAÇÃO E ATENDIMENTO EDUCACIONAL
Atos assinados por Vera Lúcia Gonçalves Vidigal Maciel
PORTARIA n.º 338/2013
Nos termos do artigo 1° da Resolução SEE n.º 170, de 29 de janeiro de 2002, do artigo 24
da Resolução CEE n.º 449, de 1º de agosto de 2002, e considerando o Parecer CEE n.º 110,
de 08 de março de 2013, ficam reconhecidos os cursos Técnico em Canto e Técnico em
Instrumento Musical, ministrados pelo Instituto Musical Cenecista Odette Carvalho de
Camargos, situado na R. Felipe dos Santos, 286, B. Abadia, em Uberaba, pelo prazo de 05
(cinco) anos.
SRE – Uberaba
Publicada 19/03/2013
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