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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIAFaculdade de Direito
Prática e Atualização do Direito I - Direito Achado na Rua
Davi Reis Salles Pirajá
Fernanda Brandão de Souza
ÉTICA E MERCADO
Brasília,Janeiro de 2013
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Davi Reis Salles Pirajá
Fernanda Brandão de Souza
ÉTICA E MERCARDO
Artigo científico apresentado para aprovação na disciplina Direito Achado na Rua, constante no Programa de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Orientação: Professor Alexandre Bernadino Costa
Brasília,Janeiro de 2013
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RESUMO
Por meio de uma retrospectiva histórica, o presente artigo visa, num primeiro
momento, expor a influência da ética ao longo do desenvolvimento capitalista. As ideias de
Benjamin Franklin, Max Weber e Michael J. Sandel serão então trazidas para ilustrar de que
forma se deu essa interação e como, adiante, os princípios morais foram deixados de lado em
prol da supremacia do poder econômico, que invadiu e colonizou os diversos sistemas que
compõem a vida humana. Finalmente, far-se-á a proposta de um debate acerca dessa
interferência do capital nos demais âmbitos da vida; até que ponto seria ela aceitável ou
mesmo imprescindível para o desenvolvimento social?
Palavras-chave: ética. mercado. capitalismo. espírito capitalista. lucro. aventureiros
capitalistas. especuladores. preço da vida. colonização de sistemas.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO (5)
2. A PRESENÇA DA ÉTICA NO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA: O
“ESPÍRITO CAPITALISTA” (5)
3. O TRIUNFO DO MERCADO (7)
3.1. A CRISE IMOBILIÁRIA DE 2008 (9)
4. “O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA” (10)
4.1. DESIGUALDADES QUANTITATIVAS E QUALITATIVAS (11)
4.2. O PREÇO DA VIDA (12)
5. CONCLUSÃO (13)
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1. INTRODUÇÃO
O capitalismo, como hoje se compreende, assume perspectivas surpreendentes em
termos de inovação, readaptação, invasão e até prescrição de comportamentos. Tudo tem um
preço, eis a proposta moderna de expansão do campo do economicamente possível para os
demais âmbitos da vida. Em uma sociedade em que tudo parece estar à venda e em que a
reconfiguração do sistema econômico ocorre em função do fortalecimento de uma cúpula
financeira, e não do equilíbrio das relações sociais, é viável uma discussão que ofereça uma
nova forma de se refletir acerca da atual conjuntura capitalista.
Tal debate pode ser formulado por meio de aspectos múltiplos. Tomando o sujeito
como ponto de partida, pode-se fazer uma análise sob a perspectiva da sociedade ou do
indivíduo. Pensar o capitalismo dentro da sociedade, uma questão já bem desenvolvida pelas
ciências humanas em geral, rememora de imediato o quadro corrente e visível de
desigualdade material. O indivíduo, por outro lado, é um objeto mais abstrato; essa esfera
mais subjetiva, ainda que também apresente um segmento social, permite observar como a
supervalorização do capital influenciou e alterou as relações interpessoais, de modo que os
interesses particulares passaram a se permutar mediante a comum necessidade de ter e
comprar.
Adotando-se um olhar ético – o termo, embora demasiado abrangente, aqui
denotará os critérios escolhidos consensualmente por um determinado grupo a fim de
padronizar e valorar as condutas humanas, então legitimadas como certas ou erradas -, far-se-
á um exame sobre o modo como a economia influencia as relações sociais e até que ponto
essa interferência é possível ou necessária. Ademais, sabendo-se que a organização das
sociedades, organicamente individualizada e escalonada, afasta-se claramente das propostas
democráticas almejadas por ideias e discursos; haverá necessidade, em primeiro lugar, de
ponderar em que sentido e com qual dimensão uma intervenção ética se faz e se fez
historicamente consistente dentro das circunstâncias apontadas.
2. A PRESENÇA DA ÉTICA NO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA: O
“ESPÍRITO CAPITALISTA”
Benjamin Franklin, considerado um dos principais pensadores que contribuíram
para a fundamentação do capitalismo moderno, traça uma série de atitudes morais deveriam
interferir no comportamento do “homem econômico”. Atitudes essas que muitas vezes
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encontram sua justificação dentro do utilitarismo. Princípios como tempo é dinheiro, crédito é
dinheiro, o dinheiro é de natureza procriativa e o bom pagador é dono da bolsa alheia fazem
parte dessa ética Frankliana. Alguns desses preceitos vivem até hoje, outros estão defasados;
todos, invariavelmente, favoreceram a criação daquilo que chamaremos de “espírito
capitalista”.
Neste ponto, é fundamental o entendimento de que o capitalismo moderno
surgiria, segundo Max Weber, acompanhado de um “espírito”. Este seria então o elemento
possuidor do caráter ético que orienta as atitudes a serem seguidas pelo mercado.
A peculiaridade desta filosofia da avareza parece ser o ideal de um
homem honesto, do crédito reconhecido e, acima de tudo, a ideia do dever de um
indivíduo com relação ao aumento de seu capital, que é tomado como fim em si
mesmo. Na verdade, o que é aqui pregado não é uma simples técnica de vida, mas
sim uma ética peculiar, cuja infração não é tratada como uma tolice, mas como um
esquecimento do dever. Esta é a essência do problema. O que é aqui preconizado
não é mero bom senso comercial – o que não seria nada original – mas sim um
ethos. Esta é a qualidade que nos interessa. (WEBER, 1987, p.31).
Assim sendo, a atuação do indivíduo no mercado não é moralmente neutra; há um
fundo ético que norteia essas relações. No caso de Franklin, esse norte é uma ética
tipicamente utilitarista; por exemplo, a honestidade é útil porque assegura o crédito. Essa ética
também enxerga o trabalho como vocação, isto é, a obtenção honesta de dinheiro pelo fruto
do trabalho como fim em si.
A ênfase aqui não se dá, entretanto, na doutrina do aumento do capital como fim
último da vida, mas na ética que regula a obtenção desse capital. Ou seja, mesmo sendo o
dinheiro o foco do pensamento de Franklin, o trabalho é invalidado se feito fora da legalidade,
desrespeitando a frugalidade, a laboriosidade e a honestidade. A ética no capitalismo,
portanto, apresenta um destaque valorativo e surge como reguladora dos agentes, impedindo a
atuação de “aventureiros capitalistas”.
[...] essa espécie de empreendedor, o aventureiro capitalista, existe em
todo o mundo. Suas atividades, exceto as de caráter comercial, creditício ou
bancário, eram de caráter puramente irracional e especulativo, ou, quando muito,
orientados para a apropriação pela força, principalmente do botim obtido, seja
através da contínua exploração fiscal dos súditos. (WEBER, 1987, p.7).
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É possível, assim, compreender em que sentido e com qual importância surge tal
espírito. Não foi o sistema capitalista que deu a ambição ao homem, a ânsia por lucro sempre
existiu. A proposta ética vem em contra-mão a essa ambição, como regulador dessa ânsia, de
modo a manter o capitalismo vivo e, para tanto, se faz necessário eliminar os chamados
“aventureiros” que o corrompem, que não agem de forma ética, e que são “o oponente mais
importante contra o qual o espírito do capitalismo – no sentido de um estilo de vida normativo
baseado e revestido de uma ética – teve de lutar.” (WEBER, 1987, p.37).
[...] se o capitalismo não pode, como aprendemos com Franklin,
utilizar-se de homens de negócio que pareçam absolutamente inescrupulosos em
suas relações com outrem, menos ainda pode fazer uso do trabalho daqueles que
praticam a doutrina de liberium arbitrium indisciplinado. Assim, a diferença não
repousa no grau de desenvolvimento de qualquer impulso de ganhar dinheiro, a
arica sacra frames é tão velha quanto a história do homem. Veremos, pois, que
aqueles que se submeteram a ela sem reservas, num impulso incontrolado – como o
capitão do mar holandês que por lucro passaria pelo inferno, mesmo que nele
queimasse suas velas – não são absolutamente os representantes daquela atitude
mental da qual deriva o espírito capitalista especificamente moderno. (WEBER,
1987, p.36).
É visível, contudo, que, embora o capitalismo tenha apresentado em seus
primórdios a tentativa de subtrair tais tipos de comportamentos imorais, houve uma crescente
decadência ética ao longo do desenvolvimento capitalista-burguês. Princípios que antes
regulavam as atividades econômicas foram abandonados, abrindo espaço para a atuação
desses novos aventureiros, que passaram a ser também denominados especuladores modernos.
A exclusão do princípio ético trouxe, então, a necessidade de novos instrumentos
que regulassem o sistema. Nesse contexto, emerge o Estado como nova força moderadora do
mercado; o capitalismo deixa de ser um sistema autopolível por seus agentes e heterointegra
sua regulamentação nas mãos do governo. Se, por um lado, num aspecto positivo, observa-se
que a segurança do sistema deixa de depender da imprevisibilidade do caráter moral de um
indivíduo, passando a ser organizada de modo padronizado; por outro, a atuação do próprio
governo acaba se mostrando constantemente manipulada por esses mesmos especuladores
modernos. A ruptura entre a ética e o capitalismo, portanto, levou a uma decadência de todo o
sistema, dando origem a Era do triunfalismo do mercado.
3. O TRIUNFO DO MERCADO
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A Era do Mercado se dá precisamente com a ascensão desse novo ator, o
“aventureiro capitalista moderno”. Este, que pertencera outrora a um cenário de guerras,
expedições marítimas e colonizações de novos espaços geográficos – fatores que favoreceram
as oportunidades clandestinas de obtenção de lucro -, passou a ter de atuar diretamente no
sistema financeiro. Prerrogativas, como a cor, a nacionalidade e os títulos, deixaram de ser tão
relevantes para o empresariado do século XX; pois, a partir desse momento, a regra que
deveria prevalecer era simples: quanto mais dinheiro, mais poder; quanto mais poder, mais
dinheiro. Os especuladores modernos se reinventaram em grupos bastante interligados,
procurando monopolizar todo o processo de produção e excluindo, portanto, concorrências
válidas e necessárias. Com ações coordenadas e um sistema autorenovável, a área de atuação
deixa de ser a guerra ou a exploração de países recém-colonizados; torna-se, então, o mercado
imobiliário, a bolsa de valores, os bancos, todos sob a doutrina do liberium arbitrium
indisciplinado.
O governo, como exposto, foi legitimado o regulador das atividades econômicas
e, destarte, estaria também responsável por impedir as atividades de tais grupos especulativos.
De fato, durante o período do Welfare State houve o Estado forte - que assumia suas
responsabilidades, tentando privilegiar o social, criando regras que voltassem sua atenção
mais para o público do que para o privado; a função do governo estava em garantir o Bem-
estar social, e o sistema financeiro seria um instrumento para atingir esse fim. Entretanto, esse
mesmo ideal propiciou o surgimento de governos fascistas e totalitaristas, como os de Stalin e
de Hitler, fazendo com que o poder estatal perdesse força em momentos ulteriores, tendo de
dividir espaço com o privado.
A retirada do Estado do caminho dos especuladores é o que dá início ao
triunfalismo capitalista do século XX. Nessa nova conjuntura econômica, tanto o Estado
quanto a ética deixam de regrar a ação do mercado e passam, inversamente, a servi-lo. Ronald
Reagen e Margaret Thatcher, em 1980, “proclamam sua convicção de que os mercados é que
detinham a chave da prosperidade e da verdade”. (SANDEL, 2012, p.12). Tony Blair e Bill
Clinton reforçam essa mesma ideia em discurso na Casa Branca, afirmando que os mercados
constituem o principal meio para a consecução do bem comum. (SANDEL, 2012, p.12). É
perceptível, assim, que temas originariamente tratados pela ética – “verdade” e “bem comum”
– migram para o Estado econômico; a decadência dos princípios morais, nesse período, é tão
alarmante que eles não apenas perdem seu espaço de interferência no mercado, como passam
igualmente a ser estipulados por ele.
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3.1. A CRISE IMOBILIÁRIA DE 2008
A mistificação do mercado como autorregulador e determinador do bem comum
permaneceu bastante forte na cultura política americana. O esgotamento do sistema só
começou a se revelar com a bolha imobiliária de 2008, quando a liberdade econômica nas
mãos de agentes inconsequentes formou um ciclo de falência múltipla que nem mesmo o
próprio sistema era capaz de interromper. Em meio a um quadro de globalização sem
precedentes, a crise afetou a balança de pagamento de todos os países e, diferentemente do
Crash de 30, não teve seus principais efeitos sobre a cúpula financeira, mas sim sobre o
cidadão comum.
Embora os efeitos desse colapso tenham sido, ao menos parcialmente,
controlados, muitos dos responsáveis pela situação continuam impunes, persistindo em suas
apostas em títulos imobiliários e derivativos. Isso se dá justamente pela invasão da economia
na esfera política; o governo e o mercado estão de tal forma entrelaçados que a falência do
mercado é a inevitável falência do governo; os mesmos especuladores que promoveram a
crise têm influência ou representação direta dentro das decisões políticas e, assim, acabam
sendo impropriamente protegidos pelo Estado.
Invariavelmente a essa forçada manutenção do mercado, dada por suas raízes
políticas, a crise financeira abalou seguramente a crença na eficiência do sistema e, como
afirmado por Sandel, generalizou a impressão de que “os mercados haviam se desvinculado
da moral e de que se precisava reestabelecer esse vínculo”. (SANDEL, 2012, p.12). O ponto
crucial passa a ser, portanto, o porquê dessa insatisfação generalizada e o motivo pelo qual a
ética passa a ser vista como solução para os problemas que promovem esse descontentamento.
A análise da crise sob uma perspectiva ética revela, até no mais superficial dos
estudos, que a ruptura entre a moral e o mercado abriu espaço para a atuação indiscriminada
da ganância. Apresenta-se esta como uma conclusão lógica ao se fazer uma retrospectiva de
tudo o que foi dito até aqui: as ideias de Weber acerca da importância do princípio ético para
conter a ânsia por lucro; a ética de Franklin, cujo objetivo era impedir a ação do aventureiro
capitalista; a ruptura dessa ética com as atividades econômicas; o surgimento de novos
especuladores; a ineficiência do Estado em conter a atuação de tais atores. Toda essa
conjuntura implicaria, destarte, numa inevitável quebra do capitalismo moderno, uma vez que
este esteve constantemente entregue à ganancia humana.
Esse diagnóstico, entretanto, não abrange por completo a crise ética que
impulsionou o colapso em 2008. A questão, quando mais bem examinada , revela um caráter
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muito mais complexo, que envolve o alastramento das práticas mercantis para os múltiplos
espaços e subsistemas autônomos. Nestes termos, esclarece Sandel: “A mudança mais
decisiva ocorrida nas três últimas décadas não foi o aumento da ganância, mas a extensão dos
mercados, e dos valores de mercado, a esferas da vida com as quais não têm nada a ver.”
(2012, p.12).
O autor assim expõe o grande problema da atualidade, que se resume à invasão
do mercado aos campos da política, da ética, da religião, da família, da sociedade, do direito.
Embora tais sistemas possuam seu viés econômico, eles precisam ainda manter certa
autonomia. O direito deve olhar a economia, assim como a economia deve olhar o direito; a
partir do momento, porém, em que ambos se resumem a um só, não se sabe mais o que entra
na esfera do direito e o que entra na esfera da economia; se um sistema coloniza o outro,
passamos a ter uma ambiguidade que se mostra extremamente prejudicial à sociedade. Por
exemplo, se aquilo que é tipicamente político é tratado como econômico, presencia-se uma
grande ameaça à democracia, uma vez que as decisões políticas passam a se pautar apenas
naquilo que é economicamente benéfico – e que na maioria das vezes coincide
exclusivamente com os interesses dos grandes grupos financeiros – e não nas necessidades da
população em geral.
Esse mesmo problema de fusão entre sistemas, os quais deveriam se relacionar
sem perder a identidade, ocorreu no âmbito da própria ética; no momento, como já foi visto,
em que o mercado passou a pensar o certo e o errado, o que era ou não verdadeiro. Quando a
economia domina todas as outras áreas do saber, sucede-se a lógica do dinheiro pelo dinheiro,
na qual nenhum argumento supera o do lucro.
Isso nos leva a considerar a necessidade de se repensar o mercado, ou talvez o
mundo, externamente à ótica do preço; como desvincular a economia das coisas que,
moralmente, não deveriam ser comerciáveis?
4. “O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA”
Para enfrentar essa situação, não basta invectivar a ganância; devemos
repensar o papel a ser desempenhado pelos mercados em nossa sociedade.
Precisamos de um debate público sobre o que significa manter os mercados no seu
devido lugar. Para que ocorra esse debate, precisamos analisar os limites morais do
mercado. Precisamos perguntar se não existem coisas que o dinheiro não pode
comprar. (SANDEL, 2012, pp.12 e13).
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Sandel propõe um debate que reestabeleça os limites morais do mercado – isto é,
até onde as finanças podem interferir naquilo que é tipicamente do indivíduo – e, para tanto,
tenta esclarecer primeiramente os efeitos que a colonização – exercida pela economia sobre os
demais sistemas – e a ganância trouxeram à sociedade e até onde elas prejudicam um
desenvolvimento saudável da humanidade.
4.1. DESIGUALDADES QUANTITATIVAS E QUALITATIVAS
O problema da ganância, por ser mais consensual e antigo, apresenta uma
consequência clara: a desigualdade material. Uma sociedade sem limites financeiros ou
padrões que regulem as transações comerciais – circunstâncias que admitem ações
deliberadamente gananciosas – só seria possível ou justa se todos possuíssem igualdade de
oportunidades. A situação, contudo, é bastante distinta e, destarte, esse liberium arbitrium só
tende a aumentar a desigualdade quantitativa, isto é, poucas pessoas com muito dinheiro e
muitas pessoas com pouco.
O fenômeno da colonização, por outro lado, leva a um tipo diferente de
desigualdade, a qualitativa. Isso significa que, quando o mercado ultrapassa seus limites
clássicos, adentrando setores diversos e autônomos – como a saúde, a segurança, a qualidade
de vida, a educação -, estes passam a ter um preço. Logo, à medida que se estipulam custos
para direitos básicos de todo cidadão, aumenta-se ainda mais a desigualdade entre as pessoas
e, dessa vez, não de uma forma material, mas por meio de uma disparidade de oportunidades
de vida.
Ao longo da história, inúmeras revoluções, movimentos sociais e pensadores
idealizaram uma maneira de reduzir a desigualdade material entre as pessoas. A própria ideia
do socialismo, de certo modo, veio na esperança de criar um mundo mais igual. Esse
problema tem um papel importantíssimo na elaboração de políticas públicas e de metas
governamentais; alega-se, por exemplo, que uma sociedade mais justa é aquela em que a
diferença de rendimento entre os mais pobres e os mais ricos – medida pelo índice de Gini – é
a menor possível. As soluções formuladas para resolver tal complicação, todavia, são por
demasiado complexas, pois acabam ferindo algumas garantias individuais, como o direito à
propriedade. Além disso, uma reforma que traga todos a um patamar de total igualdade de
renda desestimularia a competição e propiciaria a formação de um Estado totalitário, como
ocorrido em regimes diversos do século XX.
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Nesse sentido, surge a proposta mais viável de uma política de combate direto à
desigualdade qualitativa - sem esquecer, no entanto, o problema da distribuição de dinheiro.
Isto é, se retirássemos o foco da renda per capita e estipulássemos os limites de atuação do
capital, criaríamos uma sociedade muito mais igualitária sem sequer tocar nas garantias
individuais. A introdução de padrões éticos dentro do mercado provocaria uma clara redução
no valor agregado do dinheiro, pois propiciaria um maior interesse em se discutir a influência
do espaço econômico. A ética vem nesse caso exatamente como a reflexão do certo e do
errado, questionando, por exemplo, se a privatização do sistema carcerário aumentaria os
casos de regressos positivos de ex-presidiários na cidade, ou se a educação de qualidade
realmente deveria ser taxada com um preço ou se esta deveria ser um direito comum, ou até
mesmo se o incentivo ao consumismo exacerbado não seria prejudicial para a constituição da
identidade do indivíduo.
Perguntas como essas deixaram de ser feitas a partir do momento em que o
mercado perdeu seus reguladores, primeiro se afastando da pergunta ética, “Isso é correto?”;
e, depois, ao romper com a pergunta do Estado forte, “Isso é interesse público?” Hoje, ao
contrário, o questionamento que se faz é o seguinte: “Quanto isso lucra?”.
4.2. O PREÇO DA VIDA
Frequentemente, indaga-se qual a rentabilidade de uma escola, de uma família ou
de um hospital; do mesmo modo, certa vez, alguém se perguntou quanto a vida de um negro
lucraria e descobriu que o proveito era imenso, tanto que traficantes negreiros fizeram
verdadeiras fortunas com esse comércio. Em outro momento, se percebeu que as guerras civis
africanas eram extremamente rentáveis; daí se fez, de um conflito de paus e pedras, uma
guerra em que ambos os lados foram dotados da mais forte artilharia. Recentemente, viu-se
nas casas americanas outro negócio bastante lucrativo, e os efeitos da crise imobiliária se
perpetuam até hoje.
O último relatório da EPA, a Agência Ambiental Norte-Americana, avaliou a vida
humana em US$ 9,1 milhões - um valor, inclusive, bastante alto diante dos US$ 3 milhões
normalmente utilizados por engenheiros, companhias aéreas e hospitais. Por mais assustador
que possa parecer, a vida humana é tarifada sim. A situação foi explicada na Folha de São
Paulo do seguinte modo:
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Embora muita gente considere um absurdo pôr um preço na vida de
uma pessoa, no mundo moderno é impossível deixar de fazê-lo. Sem essas cifras,
com tudo o que há de arbitrário nelas, uma série de questões triviais, como reformar
ou não a curva de autoestrada que mata 3 pessoas por ano, se tornariam indecidíveis.
Gostemos ou não, a vida tem preço. (SCHWARTSMAN, 2012).
Aquilo que parece ser inevitável para o autor da matéria só se faz assim,
entretanto, porque atualmente vivemos no paradigma do comercial. Nem mesmo na ética de
Franklin, tipicamente utilitarista, a vida entrou no mercado de troca. A reforma da curva de
autoestrada, no caso acima, não deveria ser avaliada de acordo com o preço da vida humana, e
sim como um direito de qualidade de infraestrutura a ser assegurado para toda a população.
A desigualdade qualitativa é, nesse sentido, característica marcante do século XXI
e, também, a principal vilã a ser combatida dentro da atual conjuntura. Se reduzida tal
disparidade, as implicações da diferença de renda se restringiriam à capacidade ou não de
compra de bens supérfluos. As distinções monetárias perderiam parte sua importância, uma
vez que os direitos fundamentais seriam invariavelmente garantidos a quaisquer cidadãos,
conferindo oportunidades semelhantes e mais justas a todos.
5. CONCLUSÃO
O fato de se defender a autonomia dos sistemas em relação à economia não
significa que a política, a saúde, a educação, o direito ou a família devam ser espaços
completamente independentes; essas áreas, pelo contrário, não conseguem sobreviver se não
se relacionarem com o espaço financeiro. Existe, destarte, uma grande diferença entre se
relacionar e se deixar colonizar; e a ética, finalmente, poderia ser compreendida nos dias
atuais como o limite entre esse dois tipos de interação.
A desigualdade qualitativa, gerada por esse processo de alastramento do espaço
comercial, tem se mostrado extremamente prejudicial para a sociedade como um todo, pois
desnivela direitos que deveriam ser automaticamente garantidos, privam grande parte da
população daquilo que se tem como necessidade básica ao ser humano. Os princípios morais
devem ser prioritariamente retomados a fim de reverter tal panorama, por meio da tarefa de
relembrar que o modo como se dão as relações sociais podem ser considerados de outra
forma, que não pela lógica do ganho; deve-se superar o argumento financeiro como único
determinante do certo e do errado numa situação concreta. Por que não colocar a saúde de
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uma pessoa ou a educação de uma criança ou a vida de um cidadão acima do desejo
desenfreado pelo lucro?
Vale ressaltar, contudo, que, primeiramente, o papel principal da ética era conter o
aventureiro capitalista, a atuação de agentes inescrupulosos, era regular a ânsia por lucro.
Embora o foco ético tenha se transformado, a ganância persiste, bem como a desigualdade
quantitativa; e estes, embora não sejam os problemas aos quais se recomenda dar prioridade
no momento, não devem ser esquecidos; os princípios morais não podem se eximir da antiga
responsabilidade de controlar a ganância dentro do capitalismo.
A ética como circunscrição do campo de atuação do mercado não pretende excluir
a relevância das políticas públicas voltadas para a desigualdade material, tampouco eliminar a
possiblidade de um Estado Forte que regule a economia. Na verdade, nessa questão, a moral
pode servir até para dar maior legitimidade e justificação para uma determinada interferência
jurídica ou governamental no mercado; o Estado poderia aparecer como um fator externo
controlando simultaneamente as relações econômicas. A ética, assim, vem a ser um
importante elemento indicador, uma instrução, de como se deve relacionar a economia com as
demais esferas da vida, quais instituições precisam ser protegidas da invasão monetária, como
evitar ações inescrupulosas de especuladores. Trata-se de uma orientação que além de ser
retomada, não deve ser novamente perdida ou desvalorizada, pois amplia o nosso campo de
visão, a possibilidade de se avaliar e discutir o mundo além da lógica do lucro.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NETTO, Menelick de Carvalho. A contribuição do direito administrativo enfocado da
ótica do administrado para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de
constitucionalidade das leis no Brasil: um pequeno exercício de teoria da constituição.
Brasília. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, vol.68, nº2, abr/jun 2002.
SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1ª Edição, 2012.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Biblioteca
Pioneira de Ciências Sociais, 5ª Edição, 1987.
VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 27ª Edição, 2005.
Capítulo 1, Objeto da Ética. SCHWARTSMAN, Hélio. O preço da vida. 2012. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/1137791-o-preco-da-vida.shtml>.
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