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http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
OS POVOS INDÍGENAS, AS NOVASTERRITORIALIDADES E A REDEFINIÇÃO DO
ESPAÇO LOCAL NO ESTADO DE RORAIMA/BRASIL
Josinaldo Barboza Bezerra
Universidade Estadual de Roraima
barbozajb@gmail.com
Patrícia Moreira Herksedek
Universidade Estadual de Roraima
pattyherk@hotmail.com
Elizangela Santos Basto
Rede Municipal de Ensino de Boa Vista/RR
eli2013bv@gmail.com
INTRODUÇÃO
O Estado de Roraima está situado no extremo norte do Brasil, possui fronteira
no plano internacional com a República Cooperativa da Guiana e a República Bolivariana da
Venezuela. Nos limites internos, o Estado possui divisas com o Amazonas e Pará, apresenta
características geográficas distribuídas entre áreas de floresta tropical (floresta amazônica),
onde predomina o clima equatorial, e áreas de savanas (regionalmente chamadas de
lavrados), marcadas pelo clima tropical.
O Estado é composto predominantemente por populações de origem migratória
recente, vindos especialmente do Nordeste e com forte presença de agricultores oriundos
da região sul. Segundo dados do IBGE (2013) Roraima possui 488.072 habitantes. Destes
308.996 moram na Capital Boa Vista, que corresponde a 63,30% do total da população do
Estado. Dados o censo do IBGE (2010) dão contam que Roraima tem 49.637 autodeclarados
indígenas. Isto corresponde a 11% da população, sendo o Estado proporcionalmente de
população indígena País. Os autodeclarados indígenas em Roraima correspondem a 6,1% do
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total da população indígena nacional.
Os dados do IBGE apresentam divergência em relação aos dados apontados pelo
Conselho Indígena de Roraima – CIR/RR, que já em 2009 contabilizavam aproximadamente
53.167 indígenas no Estado. Essa diferença é compreensível, considerando que o IBGE parte
do critério da autodeclaração e muitos indígenas das áreas urbanas se identificarem como
pertencentes a outros grupos éticos e não se sentem indígenas (BEZERRA e COSTA 2010).
Em Roraima predominam os indígenas descendentes do caribe, distribuídos nas
etnias Macuxi, Taurepang, Ingarikó, Patamona, Waiwai e Waimiri-Atroari, apesar da presença
da etnia de origem Arwak como no caso dos Wapixanas, e ainda os de origem Ianomâmis
que constituem um tronco próprio de base cultural e linguística (BEZERRA e COSTA, 2011).
Os primeiros habitantes indígenas chegaram a região do rio Branco antes dos
colonizadores europeus, que só adentram a região no século XVIII. O processo de
colonização de Roraima teve início com as missões religiosas e a busca das drogas do
sertão, partindo das margens dos rios em direção ao lavrado e desencadeando inúmeros
conflitos com os povos indígenas. Conflitos estes que ainda se reproduz enfrentamento
entre índios e não índios na disputa da terra em Roraima e faz surgir novas territorialidades
ou reconfiguração das já existentes, interferindo na produção do espaço local.
Neste entendimento, o presente artigo tem como objetivo analisar o surgimento
de novas territorialidades e o reordenamento do espaço local na terra indígena Canaunim.
Comunidade habitada por indígenas das etnias Makuxi e Wapixana, situada no Município do
Bomfim – Estado de Roraima/Brasil, cuja área foi homologada como terra indígena pelo
Governo Federal em 1996, por força do Decreto nº 15, da Presidência da República.
A redefinição das territorialidades que atuam e determinam as mutações no
espaço local, com consequência nem sempre previsíveis, justificam a realização do estudo
sobre a temática em debate. Parte-se do método dialético na busca de compreender a
relação de forças convergentes e divergentes na disputa do território e na formação dos
novos modelos que atuam na comunidade de forma explicita ou camuflada.
Não se tem a pretensão de construir verdades prontas e acabadas, mas,
sobretudo, instigar o debate e a reflexão sobre as questões indígenas que afloram na
proporção do avanço das forças capitalistas em direção as terras tradicionalmente ocupadas
pelos povos indígenas.
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O PROCESSO DE COLONIZAÇÃO NA REGIÃO DO RIO BRANCO E OS POVOS INDÍGENAS
A realidade que permeia o cotidiano dos espaços locais é decorrente de forças
que tiveram início no passado e se confrontam com as forças do presente projetando as
tendências do futuro. Tendências estas, nem sempre perceptíveis por aqueles que
participam da construção das estruturas espaciais (BEZERRA e BEZERRA, 2012).
Compreender as bases da colonização na Região do Rio Banco, área que
atualmente compõe o Estado de Roraima, é importante para pensar a trajetória das
territorialidades fundamentadas na cultura capitalista, frente às formas de organização dos
povos indígenas, assentadas na cultura do espaço coletivo e desprovidas de sentimento de
propriedade individual.
Não se pode perder de vista, que a colonização da Região do Rio Branco se
constituiu como resultado do avanço das forças portuguesas pelo interior da Amazônia,
fixando as estratégias de exploração econômica e domínio militar no contexto do sáculo
XVIII.
Os portugueses, após expulsarem os franceses da região de São Luiz no
Maranhão em 1615, partiram em direção a Amazônia instituído a partir de 1916 a politica de
estratégica militar para consolidar o domino português sobre as terras da Amazônia, que
inspirava os aventureiros em busca da lenda do El-Dourado.
Encontrar viabilidade econômica e garantir o domínio exclusivo da Cora
Portuguesa constituíam os grandes desafios na Amazônia, haja vista que a região era
cobiçada pelos ingleses, holandeses franceses e espanhóis, além dos conflitos com diversos
povos indígenas que resistiram à chegada dos invasores.
A região do Rio Branco ingressou no projeto colonial do século XVIII português
por meio da exploração das drogas dos sertões (especiarias), capturas de índios para o
trabalho escravo e criação do Forte de São Joaquim em 1775, na confluência dos rios
Uirariquera e Tacutu. O forte destinava-se fazer frente às invasões dos ingleses, holandeses,
franceses e espanhóis, alguns deles já haviam chegado à região antes mesmo dos
portugueses (VIEIRA, 2007).
A falta de colonos na Região do Rio Banco agravava ainda mais a vulnerabilidade
territorial de Portugal, que buscou submeter os indígenas, pela força ou pelas missões
religiosas, aos interesses coloniais portugueses. As missões religiosas cumpriram papel
fundamental do projeto de dominação, que através do cristianismo foram substituindo a
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base cultural indígena pelos valores culturais e econômicos dos colonizadores.
As ordens religiosas foram distribuídas as margens dos rios e serviram de apoio
direto ao projeto colonial do século XVIII. A criação dos aldeamentos indígenas além de
facilitar a exploração da mão-de-obra indígena no extrativismo das drogas do sertão,
também exercia papel indispensáveis na proteção das terras ocupadas contras as invasões
estrangeiras.
Segundo Farage (1991) a Região do Rio Branco no século XVIII assumiu dois
papéis bem definidos, quais sejam: abastecimento de mão-de-obra escrava indígena ao
mercado do Pará e proteger a colônia contra as ameaças de invasão dos espanhóis e
holandeses.
Os indígenas eram capturados para o trabalho escravo através das tropas de
resgates que adentravam não apenas no rio Branco, mais também em seus tributários,
tornando-se prática corriqueira nessa região da Amazônia.
As mazelas as comunidades indígenas decorrentes do contato com os
colonizadores não advinham apenas da submissão ao trabalho escravo, doenças até então
desconhecido na região provocaram verdadeiros extermínios, sendo este o caso do
sarampo se espalho ao longo do rio Negro (FARAGE, 1991).
Santos A. (2010), ao relacionar as etnias indígenas que ocupavam o vale do Rio
Branco, destaca pelo menos 22 dois grupos distintos, sendo eles: Amaribá; Aoaqui; Aracapi;
Arina; Aruak; Atoari; Aturahi; Baraúna; Caripuna; Karib; Chapero; Crichaná; Guachuró;
Guayacá; Guimare; Guaribo; Irimissana; Ingarikó; Jaricuna; Jawapery; Kirishana e Macuxi.
Porém, relatos dão conta que a região da Bacia do Rio Branco, na época da
chegada dos colonizadores, possuía a aproximadamente 45 etnias indígenas, sendo que
atualmente correspondem apenas 08 grupos.
A mercantilização dos índios e o trabalho forçado ocasionavam a instabilidade
dos aldeamentos e até mesmo rebeliões contra os maus tratos. Santos A. (2010, p. 173)
afirma que “[...] os índios eram tratados como animais de trabalho: desrespeitados,
discriminados, seviciados e explorados até os últimos alento de suas vidas.”
Por volta de 1780 a 1781 ocorreram diversas revoltas indígenas nos
aldeamentos que estes foram completamente destruídos, restando apenas o povoamento
religioso de Nossa Senhora do Carmo que não aderiu ao levante (FARAGE, 1991).
Portugal se via diante do desafio de ampliar as áreas de ocupação na Região do
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Rio Branco, como estratégia de garantir o domínio territorial com base no Tradado de Madri
de 1750. Segundo as regras do Tratado a posse era requisito para o reconhecimento do
direito sobre as terras ocupadas, instituído o chamado princípio do jus possidendi.
Todo o processo de Colonização na Região do Rio Branco esteve dependente de
forma direta do contato com o rio, de forma que as margens foram às primeiras áreas a
serem ocupadas pelos colonizadores que depois avançaram para as áreas de lavrado com a
implantação das fazendas nacionais. Assim, as atividades de pecuária, já cogitada pelos
portugueses, tiveram início no final do século XVIII no alto rio Branco, com a fundação das
primeiras fazendas estatais, também chamadas de Fazendas Reais (CIRINO, 2008).
As Fazendas foram implantadas entre o rio Branco e Uraricoera, no caso da
Fazenda de São Bento; nas proximidades do Forte de São Joaquim foi criada a Fazenda São
José. Entre os rios Uraricoera e Tacutu a Fazenda São Marcos (IBGE, 2009).
As fazendas foram criadas pelo militar Manoel Lobo D’Almada com o objetivo de
fortalecer o domínio português na região do rio Branco e suprir o mercado ao longo do rio
Negro e Amazonas.
Com a criação das fazendas nacionais diversos indígenas foram recrutados para
trabalhar nas atividades da pecuária, enquanto outros se refugiavam em espaços afastados
do contato com os colonizadores, como afirma Santos A. (2010, p. 175/176) “Após
emboscada e mataram mais dois soldados, os insurretos fugiram para as serras deixando
todos os povoados em total abandono.
Farage (1991) relata a escala de prioridade dos abastecimentos de mão de obra
indígena, sendo primeiro destinados ao suprimento das necessidades das fazendas
nacionais, seguindo dos aldeamentos religiosos, das próprias tropas e por último os
agricultores individuais que possuíam licença para aquisição de mão de obra escrava
indígena.
Barbosa (1993, p. 129) ao discorrer sobre a relação entre as fazendas nacionais e
as comunidades indígenas afirma que:
Estimular a permanência do branco e tentar ‘civilizar’ uma quantidade
significativa de índios talvez fosse o processo mais indicado de fixação
espontânea dos núcleos populacionais e nas fazendas recém-criadas. A reação
esperada pelo poder central não coincidiu com as ações reais na região. [...] Na
verdade, as fazendas não se tornaram centros de atração, mas centros de
concentração de mão-de-obra indígena.
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Fazenda passou a ser o ponto de recrutamento indígena, sendo eu a
rentabilidade econômica da região propiciou ocupação imediata pelos portugueses na
busca de proteger o território e suas fronteiras. Com o povoamento, devido a pecuária, a
região do rio branco tornou-se uma importante fonte de economia na época, ampliando
ainda mais os vínculos com os indígenas. Contudo, o autoritarismo deixado pela herança da
política colonialista Pombalina oferecia maus tratos aos índios e os afastavam dos
aldeamentos. A atividade pecuária sustentava a economia na região, mas o fator humano
para desempenhar o papel de proteção não estava estabelecido.
A atividade pecuária foi fundamental para o cumprimento da geopolítica de
ocupação da região do Rio Branco, seja no final da colonização ou no contexto do Brasil
independente. De fato a efetivação da “pata do Boi” consolidou a colonização desse
território (FREITAS, 1986), ganhando destaque com o fornecimento de produtos da pecuária
para região de Barcelos, no Amazonas – durante o período de produção da borracha no final
do século XIX e início do século XX.
Neste sentido, são os ensinamentos de Frank e Cirino (2010, p. 17):
Apesar de algumas iniciativas pontuais anteriores, esta expansão somente se
efetivou a partir de 1870, desencadeada pelo crescimento explosivo da demanda
de carne ‘verde’ no mercado de Manaus, em consequência do ‘boom de caucho’,
entre 1870 e 1920, que repercutiu nas savanas de Roraima [...].
A economia da borracha foi importante fator para expansão da pecuária em
Roraima. Quando a as atividades de produção e exploração das seringueiras entram em
crise em decorrência da produção de seringueiras na Região da Malásia a economia da
região do rio Branco foi duramente afetada. Isto provocou efeito dominó na economia
Amazônica, eis que a queda do comércio da borracha brasileira levou a redução do
consumo de carne no mercado Amazonense. Pode-se afirmar que este foi um dos primeiro
efeitos da globalização na economia regional da Amazônia, ainda que não recebesse essa
denominação à época.
O cultivo da pecuária extensiva na região do rio Banco não foi capaz de garantir
ao Brasil o domínio das terras situadas na fronteira com a antiga Guiana Inglesa, que se
estendia além do rio Tacutú. A disputa na bacia do Tacutu ficou conhecida como a questão
do Pirara, quando o Brasil e a Inglaterra submeteram o litígio ao juízo arbitral representado
pelo Rei da Itália. Ao final, o Brasil perdeu cerca de 20.000km² para a Guiana Inglesa em
1904 (BARBOSA, 1993).
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Porem, isto não reduz a importância da pecuária para consolidação do projeto
colonial, inclusive no contexto do Brasil independente. A partir da decadência da pecuária as
atividades econômicas da bacia do rio Branco foram direcionadas à explosão de diamante
nas áreas de serras. Os garimpos foram implantados próximos ou dentro às comunidades
indígenas e os impactos foram tão intensos quanto a expansão pecuária.
A exploração mineral nas terras indígenas gerou na redução dos recursos
naturais disponíveis, dos quais dependiam os índios para sobrevivência. Situação que sofreu
agravamento na década de 80 do século XX, com a exploração do ouro na região dos índios
Ianomâmis.
Os conflitos entre índios e não índios ganharam destaques em decorrência das
novas ocupações através da expansão da agricultura irrigada e das demarcações de terras, a
exemplo da terra indígena Raposa Serra do Sol.
Neste cenário, fica evidenciado que a ocupação do extremo norte do país não se
deu de forma pacífica e homogênea. A ocupação econômica das terras e a chegada de
novos habitantes têm gerado na ampliação dos ritmos de exploração dos recursos naturais
e alterado as características de organização cultural dos indígenas na região, exigindo novas
reflexões.
TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADES EM RORAIMA
O estudo do território no quadro do pensamento geográfico recebe significados
que abrangem a ideia de domínio e controle, sendo a área onde ocorrem as relações entre
os agentes sociais e econômicos. Conjecturas a respeito do tema permeiam, além da
Geografia, os campos da Ciência Política e Antropologia. Embora o conceito de território
possua elementos norteadores, que em regra aparece em várias definições, este assume
significados distintos para sociedade ou grupo que o define (SAQUET, 2010).
As relações de poder que atuam na produção do espaço são historicamente
estabelecidas conforme as peculiaridades de cada sociedade. “As questões do controle, do
“ordenamento” e da gestão do espaço têm sido sempre centrais nas discussões sobre
território” (HAESBAERT, 2011, p. 52). Assim, as concepções de território se associam com as
relações sociais, a natureza e as formas de propriedade dentro da articulação teórica.
O território unido à sociedade e a soberania são os elementos formadores do
estado-nação que tem como característica principal a propriedade territorial. “A sociedade
que consideramos, seja grande ou pequena, desejará sempre manter sobretudo a posse do
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território sobre o qual e graças ao qual ela vive. Quando esta sociedade se organiza com
esse objetivo, ela se transforma em Estado” (RATZEL, 1990 apud SAQUET, 2010, p.30). O
Estado então somente surge a partir da dominação e apropriação do solo e dos recursos
nele presentes, fatores que visam também garantir sua manutenção.
Nesta perspectiva, o território é então delimitado por suas fronteiras físicas com
outras nações e comandado por um poder político que garanta seu progresso e
legitimidade. Logo, a ideia de apropriação remete a organização e interação dos agentes
sociais com a natureza atribuindo aos territórios um caráter de produto espacial.
Pode-se, portanto aceitar como regra que uma grande parte dos progressos da
civilização são obtidos mediante um desfrute mais perspicaz das condições
naturais, e que neste sentido esses progressos estabelecem uma relação mais
estreita entre povo e território. Pode-se dizer ainda, em um sentido mais geral,
que a civilização traz consigo o fortalecimento de uma ligação mais íntima entre
a comunidade e o solo que a recebe. (RATZEL, 1990 apud SAQUET, 2010, p. 30)
As relações de poder conferem corpo ao território simultaneamente com as
manifestações dos grupos sociais que o habitam. O resultado das ações políticas e sociais
decorrentes da apropriação de uma porção do espaço, este enquanto ambiente, refletem as
oportunidades e desafios propostos pelas características da realidade local.
Em que pese existência de definição do território como base física do
Estado-Nação, admite-se no presente ensaio outra visão conceitual desta categoria de
análise. Neste sentido, compreende-se território como espaço apropriado pelas forças
econômicas de produção e disputa das classes sociais, sejam elas indígenas ou não
indígenas. Tal conceito é entende-se possível de aplicação considerando a diversidade de
ocupação espacial de Roraima (BEZERRA e COSTA, 2010).
A história de Roraima é caracterizada por diversos acontecimentos de ordem
política e econômica que levaram a configuração atual. Grupos indígenas disputam o
domínio territorial sobre espaços em que foram expulsos no passado em decorrência da
ocupação colonial. A ocupação deste território, como já abordado anteriormente, ocorreu a
partir do estabelecimento de aldeamentos indígenas nas proximidades dos rios Uraricoera,
Tacutu e Branco (SOUZA, A. 1969). Como as condições impostas aos índios pelos
portugueses lhes eram demasiadamente severas, tais aldeamentos foram abandonados.
Uma nova tentativa de se construir aldeias para a efetivação da colonização do território
resultou na revolta dos indígenas denominada “Revolta da Praia de Sangue” (BARROSO,
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2009). Os índios não toleravam submeter-se aos colonizadores e isso repercutia em
confrontos.
Assim, o processo de formação dos territórios distintos territórios em Roraima
passou por fases de conflitos pelas ameaças de invasão de espanhóis, ingleses, holandeses,
franceses, portugueses e/ou indígenas inimigos.
Dos estados que integram a Amazônia brasileira, Roraima sobressai-se pela sua
localização geográfica e por apresentar uma diversidade paisagística com florestas e
lavrados (savanas). O estado abriga diferentes etnias (Wapixana,Yanomani, Taurepang,
Macuxi, Patamona, Wai-Wai, Ingaricó, Ye’cuana, Waimiri-Atroari) e cada etnia disputa a
construção espacial de seu território, as vezes atuando em conjunto com outros grupos
indígenas, as vezes agindo de forma isolada. De toda a área do estado de Roraima
(224.298,980km²), 45,18% consiste em terras indígenas que no total somam trinta e duas,
demarcadas em áreas contínuas ou ilhas (IBGE, 2009).
As áreas das terras indígenas são demarcadas pela Fundação Nacional do
Índio/FUNAI (Art. 1, Decreto nº 1.775/96), órgão federal de assistência ao índio. Conforme
previsto no Art. 231 da Constituição Federal Brasileira de 1988.
A identificação, delimitação e homologação dos espaços ocupados pelos povos
indígenas lhes garantem, pelo menos no papel, a posse e o direito sob as terras
tradicionalmente por eles ocupadas, com direito a usufruto ainda que relativizado pelo
Supremo Tribunal Federal no julgamento da terra indígena Raposa Serra do Sol. Assim, as
terras indígenas constituem-se em territórios essenciais à sobrevivência das comunidades,
pois essas dependem do usufruto de seus recursos.
Designa-se por território uma porção da natureza e, portanto, do espaço sobre o
qual uma determinada sociedade reivindica e garante a todos ou a parte de seus
membros direitos estáveis de acesso, de controle e de uso com respeito à
totalidade ou parte dos recursos que aí se encontram e que ela deseja e é capaz
de explorar. (GODELIER, 1984 apud HAESBAERT, 2012, p.56)
Tradicionalmente a sociedade indígena depende das condições físicas dos
ambientes onde se situam. Daí a importância da manutenção de seus territórios para a
preservação da identidade, cultura e modos de vida. A história dos povos indígenas quanto
à requisição de seus direitos é marcada pelas conquistas das terras decorrentes de séculos
de lutas e embates com as forças produtivas e especulativas do capital.
A demarcação das terras indígenas é uma questão comumente geradora de
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conflitos, pois é considerada, aos olhos do capital, como atraso ao desenvolvimento
econômico, sob justificativa que as áreas identificadas como reservas compõem fazendas e
propriedades particulares.
Os povos indígenas são dependentes diretamente das terras. “A ligação do
território com a natureza é explícita e, nessa ligação, o território se torna, antes de mais
nada, uma fonte de recursos, ‘meios materiais de existência.’” (HAESBAERT, 2011, p. 47).
Tal embate leva ao entendimento de que o território não é apenas uma área
vinculada ao estado-nação. Para Souza, M. (1995, p. 81) “os territórios são construídos e
desconstruídos nas mais diversas escalas espaciais e temporais”. Isto não implicar dizer que
ocorra sobreposição de território. O que poderá ocorrer é a sobreposição de
territorialidade, jamais de território. A base territorial é qualificada por relações sociais, de
dominação e poder que implicam na derivada territorialidade, constituída como produto da
coletividade (RAFFESTIN, 1993).
Dentro da análise do território, as territorialidades possuem gêneses na
geografia política, embora também sejam abordadas nas demais ciências sociais. A
princípio, constitui-se territorialidade a síntese das relações dinâmicas no espaço apropriado
que conferem corpo ao território.
Não há território sem uma trama de relações sociais; o território é um lugar
substantivado por essas relações ou territorialidades e é constituído histórica e
geograficamente. Nesta trama, há interações entre a Terra e o território, o que
indica uma proposição múltipla considerando, principalmente, as relações
economia-política-natureza. (SAQUET, 2010, p. 81)
A organização do espaço em territórios, definidos como campos de influencia
decorrentes do comportamento dos seus ocupantes estabelece as territorialidades. As
ações dos agentes, as relações de poder e as relações sociedade-natureza caracterizam
historicamente o território, como espaço apropriado e deste não podem ser dissociadas.
As interações sociais estão na base da efetivação do território em diferentes
dimensões, como fatores determinantes da territorialização e no aspecto em que lhe
atribuem identidade. Há, portanto, uma apropriação simbólica, econômica, cultural e
política idiossincrática determinada pelas ações cotidianas dos diversos grupos sociais sobre
o espaço de vida.
As forças sociais efetivam o território, o processo social, no (e com o) espaço
geográfico, centrado na territorialidade cotidiana dos indivíduos e emanando
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dela, em diferentes centralidades, temporalidades e territorialidades, que
condicionam nossa vida cotidiana. Formam-se territórios heterogêneos e
sobrepostos fundados em desigualdades e diferenças. Cristalizam-se
territorialidades e interesses predominantemente econômicos e/ou políticos
e/ou culturais que dão uma certa forma e determinados conteúdos ao território
e aos territórios. (SAQUET, 2010, p.128)
Como uma articulação, a territorialidade envolve as expressões humanas e suas
representações na sociedade. Ao mesmo tempo também se constitui de sistemas opostos e
vinculados que se afetam mutuamente. Deste modo, o uso da terra é vinculado a ações
politicas, econômicas e culturais que manifestadas pelo desejo de viver no espaço consolida
a configuração territorial.
Especificamente, as áreas geográficas do estado de Roraima abrigam pessoas
oriundas de várias partes do país e estrangeiros, além da população indígena já
estabelecida. De algum modo, existem tentativas por parte destes grupos de manutenção
dos rituais e tradições das regiões de origem. As relações inerentes à existência humana são
todas “relações de poder, visto que há interação entre os atores que procuram modificar
tanto as relações com a natureza como as relações sociais” (RAFFESTIN, 1993, p. 158-159).
A territorialidade presente na produção do espaço possui múltiplas expressões
cada uma com suas particularidades. Assim, em Roraima, devido a posição geográfica e a
baixa densidade demográfica essa multiplicidade aflora perceptivelmente. Nos campos
político, econômico e cultural os agentes sociais manifestam suas ideologias e saberes
históricos coletivamente criados, na expectativa de manter suas identidades territoriais. As
demonstrações culturais presentes no estado, por exemplo, atualmente constituem-se uma
amálgama de identidades regionalistas, estrangeiras e indígenas.
O contraste de relações presentes nas territorialidades “se originam num
sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo em vias de atingir a maior autonomia
possível, compatível com os recursos do sistema” (RAFFESTIN, 1993, p. 160).
Neste entendimento, os territórios, além de instrumentos de dominação, são
apropriados pela dinâmica das ações dos agentes sociais que os constituem, podendo
sofrer interferência em decorrência das características naturais. As relações estabelecidas
nos territórios evidenciam as territorialidades e seu caráter humano conservador de poder.
As territorialidades para que se exerçam em sua plenitude necessitam de uma
base física, ainda que as vezes possam ocorrerem em espaços imateriais. Ademais, não se
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pode perder de vista que a territorialidade é condição de existência do território, que
constitui uma relação historicamente construída entre as velhas e as novas forças de poder.
AS NOVAS TERRITORIALIDADES E O REORDENAMENTO NO ESPAÇO LOCAL NA TERRA INDÍGENA CANAUNIM – ESTADO DE RORAIMA/BRASIL
O Estado de Roraima possui 32 terras indígenas demarcadas, que corresponde a
45,18% da extensão física territorial. Apresenta população de aproximadamente 38 mil
indígenas distribuídas ente oito etnias distintas (IBGE, 2009). Dentre as 32 terras indígenas,
inclui-se a comunidade indígena do Canaunim, situada no Município do Bomfim, cujo
Município possui divisas com a República Cooperativa da Guiana.
A terra indígena do Canaunim foi demarcada por força do Decreto da
Presidência da República, de 15 de fevereiro de 1996, e abrange área de superfície de
11.182,4372 ha (onze mil, cento e oitenta e dois hectares, quarenta e três ares e setenta e
dois centiares) e perímetro de 50.479,64 metros (cinquenta mil, quatrocentos e setenta e
nove metros e sessenta e quatro centímetros) – (IBGE, 2009).
A comunidade do Canunim está situada na faixa de fronteira de que trata a
norma do inciso II do art. 20 da Constituição Federal de 1988, conforme definição contida no
próprio decreto de demarcação datado de 15 de fevereiro de 1996. A área é habitada por
índios das etnias Wapixana e Makuxi, sendo esta última a principal etnia numericamente do
Estado de Roraima.
Segundo dados de IBGE (2010), a etnia Wapixana é originária do tronco
linguístico Arwak, tendo sido contabilizados 10.572 indivíduos, já os Makuxis são de origem
Carib. A etnia Wapixana ocupa base territorial tanto do Brasil como da República
Cooperativa da Guiana, sendo a fronteira política entre os dois países, até certo ponto, de
pouca relevância dos indígenas na região.
Os Makuxis por sua vez constitui a principal etnia do Estado de Roraima estão
situados tanto no Brasil como na Venezuela. Em Roraima, a ocupação dos Makuxis ocorre de
forma descontinua, porém estão presentes tanto nas áreas de serra como nas regiões de
lavrados. Neste sentido, são as palavras de Santos A. (2010, A. p. 91/92):
Até o ano de 1905, os índios Macuxi e os Jaicuna dominavam a região dos altos
da Serra de Pacaraima (Pacaraima), enquanto os Wapixana dominavam as
fraldas da mesma serra Nessa época[....]. Sua ocupação foi, aos poucos, se
tornando muito extensa. Do Leste da Serra de Pacaraima (Pacaraima), desceram
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para as terras altas das cabeciras do Maú, de onde avançaram para regiões do
rio Tacutu, Serra do Cuano-Cuano, rio Majari (Amajari) e Oeste da ilha de Maracá.
Essa expansão territorial dos Makuxi, em direção as terras ocupadas pelos
Wapixana, constituíram motivos de diversas disputas entre as duas etnias. Assim, a
convivência entre eles não era tão amistosa como se pode imaginar, e os registros históricos
dão conta que os dois grupos eram rivais entre si.
Santos A. (2010, p. 92) ao discorre sobre os índios Makuxis afirma que:
[...] por muitos anos, continuou inimiga dos Wapixana. Vez ou outra, cinco índios
dessa etnia costumavam aparecer na Fortaleza de São Joaquim. Contudo,
somente dois desses ficaram permanentemente na povoação de Santa Maria e
fizeram parte da fundação de um novo aldeamento destinado a substituir a
primitiva povoação de S. Felipe.
Na atualidade, verifica-se que as rivalidades do passado foram superadas e não
se tem registro atualmente de conflitos entre as duas etnias decorrentes de questões
étnicas. Isto possibilita a convivência reativamente harmônica entre os dois grupos
indígenas na terra do Canauami, no Estado de Roraima.
As duas etnias citadas acima, no processo de ocupação territorial da região que
compõe o Estado de Roraima, podem ser apontadas como antigas territorialidades que
conseguiram se afirmar no decurso do espaço-tempo, ainda que tenham implicado em
perdas substancia de territórios tradicionalmente ocupados pelos seus ancestrais.
No processo histórico de ocupação da Região do Rio Branco, aí compreendida o
conjunto espacial que integra atualmente toda a base territorial do Estado de Roraima,
pode-se apontar diversos tipos de territorialidades, cujas forças poderiam ser agrupadas em
duas classificações: as forças advindas dos povos indígenas, alguns já extintos, e as forças
oriundas dos colonizadores. Ambas classificadas como antigas territorialidades.
Os movimentos para demarcação das terras indígenas, aí incluída a terra
indígena do Cauanim, fizeram ressurgir das velhas territorialidades uma nova roupagem e
forças que podem ser chamadas de novas territorialidades, ainda que não exclusivas na
disputa do espaço local.
Santos M. (2012a, p. 70) afiram que: “ A produção do espaço é resultado da ação
dos homens agindo sobre o próprio espaço por meio dos objetos, naturais e artificiais.” No
caso das comunidades indígenas os elementos naturais prevalecem sobre os artificialmente
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construídos. Porém, o avanço do capitalismo muitas vezes caminha na contramão dos
interesses das comunidades locais, o que gera a necessidade da demarcação das terras
indígenas. Essa nova conjuntara de força, se por um lado possibilita maior autonomia das
comunidades indígenas frente ao embate com os grupos não índios, por outro, intensifica a
dicotomia entre os processos de ocupação tradicional e as novas vertentes de organização
social.
No caso da Terra Indígena do Cauanim é facilmente perceptível o avanço de
forças capitalistas em direção aos limites internos da área demarcada. No trajeto até a
comunidade indígena, partindo-se da BR 432 que interliga a BR 401 a Cidade de Cantá,
nota-se a existência de propriedades completamente demarcadas por cercas, sem qualquer
utilização produtiva. A ocupação dessas terras destina-se exclusivamente a especulação
fundiária a serviço do capital e pressionam as comunidades indígenas em espaços cada vez
mais confinados.
Harvey (2013, p.73) ao analisar a renda sobre a terra e acumulação especulativa
afirma que: “O poder do monopólio que se acumula para os proprietários de terra mediante
a apropriação privada da terra é a base da renda como uma forma de mais-valor. No
entanto, o poder que esse privilégio confere não seria nada não fosse o fato de a terra ser
uma condição de produção em geral necessária.”
Se a terra é importante no contexto da economia capitalista, quando dispõe de
elevado grau de evolução técnica-cientifica e diversos equipamentos produtivos, o que dizer
das comunidades indígenas que encontram na terra sua única fonte se subsistência e
reprodução cultural da comunidade? Assim, cria uma relação inseparável entre o homem e
a natureza. “A separação entre o ‘humano’ e o ‘natural’ é encarada como uma separação
dentro de uma unidade, porque a ‘vida física mental do homem está interconectada com a
natureza não tem sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o
homem é parte da natureza” (Marx, 2010 apud Harvey, 2013, p. 160).
Neste sentido, são os ensinamentos de Santos M. (2012a, p. 30/31) quando fala
sobre a integralidade espacial como dados de um mesmo conjunto entre objetos sociais e
naturais: “O espaço deve ser considerado como um conjunto indissociável, de que
participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos
sociais, e, de outro, a vida que os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em movimento.”
Os movimentos sociais que dão impulso a dinâmica local na comunidade indígena do
Canaunim têm suas bases em rituais simbólicos advindos de períodos anteriores a própria
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chegada dos europeus na região do rio Branco. Contudo, vem sofrendo diversas pressões
de forças capitalistas que vão aos poucos minando as formas de organização do espaço
local fundados no valor da posse coletiva das terras.
As diferentes pressões sobre as terras demarcadas resultam em novos desafios
a Comunidade Indígena do Cauanim. Pressões estas aparentemente não perceptíveis aos
olhos da sociedade local. A comunidade indígena vem passando por um processo de
reordenamento do espaço local.
Em visita a comunidade, verifica-se claramente a presença de áreas demarcadas
com aparente objetivo de isolamento territorial da família. Ainda que se possa falar na
continuidade dos espaços públicos, fica claro que estes são cada vez mais reduzidos, em
partes determinados pelas práticas capitalistas de organização social. Um processo
aparentemente pouco percebido no dia a dia da comunidade, mas que na verdade essas
práticas vão se enraizando e tendem a alterar completamente o modo de vida e organização
social dos indígenas.
As residências apresentam espaços claramente demarcados, muitas delas com
cercas que lembram os muros das cidades, em evidencia das mudanças introduzias na
comunidade. Também é possível observar existência de horta em ambientes cercados e
próximo da residência, comprovando a visão de apropriação individual da terra.
Uma das primeiras formas de infiltração da cultura capitalista, de forma quase
imperceptível, na comunidade do Canaunim ocorre através do funcionamento da Escola
Estadual Tuxaua Luiz Cadete. Ainda que haja uma preocupação para que os professores
sejam prioritariamente profissionais com certa identidade cultural com os indígenas, isto
não é suficiente para afastar os elementos claros da cultura capitalistas.
Para demonstrar essa visão camuflada do capitalismo, basta citar a
obrigatoriedade de cumprimentos de horários de funcionamentos, sejam em relação à
carga horária diária, seja em relação ao cumprimento dos 200 dias letivos durante o ano.
A instituição de horário fixo é própria do sistema capitalista. Sistema em que os
trabalhadores são condicionados ao relógio e controlados em função do tempo, com foco a
avaliar a produtividade do individuo dentro da estrutura de produção econômica do capital.
Uma das características do capitalismo é a produção de riquezas a serviço de
poucos (BEZERRA e BEZERRA, 2012). Assim, a fixação de horário de funcionamento da
escola, que aparentemente é algo completamente desvinculado dos finis capitalistas,
constitui-se na verdade nas primeiras formas de incorporação dos valores e modos de
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organização capitalista, que nem todas as lideranças indígenas mais críticas tem se dado
conta.
Santos M. (2012b, p. 65) ao discorrer sobre os novos arranjos espaciais e as
conexões entre eles afirma: “[...] todos os espaços são espaços de produção e de consumo
[...]. Por outro lado, atingido um novo patamar da divisão internacional do trabalho, todos os
lugares dela participam, sejam na produção, seja no consumo.”
Nesta analise, deve-se considerar que as crianças indígenas estão sendo
formadas sobre outro projeto de organização social e sobre outra ótica de formação bem
distintas das gerações indígenas anteriores. Não se está a defender a ausência da escola na
comunidade indígena. Ao contrário, entende-se de fundamental importância o processo de
formação intelectual das crianças indígenas, porém há preocupação com práticas
capitalistas projetadas sobre a ótica não indígena.
Há de se considerar que mudanças significativas já ocorreram no perfil das
escolas indígenas em Roraima, porém não ao ponto de proporcional autonomia das
comunidades nos processos de decisão dos conteúdos e modos de funcionamento da
escola. Por outro viés, a escola tem como base a formação do individuo preparando-o para
o exercício de atividades individuais, ainda que dentro dos espaços indígenas, mas que,
sobretudo, criam expectativas de remuneração salarial pela retribuição dos serviços
prestados, como ocorre com os próprios professores indígenas que atuam na comunidade.
Santos M. (2012b, p. 63) ao discorrer sobre a desculturização dos espaços locais
alerta que:
Isso conduz, às vezes muito rapidamente, a uma terceira consequência
importante, isto é, à tendência a ‘desculturização’ da área, na medida que a
substituição das pessoas, a alteração dos equilíbrios sócias de poder, a
introdução de novas formas de fazer geram desequilíbrios dos quais resultam,
de um lado, a migração das lideranças locais tradicionais e a quebra de hábitos e
tradições, e, de outro lado, a mudança de formas de relacionamento produzidas
lentamente durante largo tempo e que vêem, de chofres, substituídas por novas
formas de relações cuja raiz é estranha e cuja adaptação ao lugar tem
fundamento puramente mercantilista.
O trabalho remunerado representa claramente estas novas formas mercantis de
que trata o autor, caracterizando o modo de infiltração capitalista na comunidade. O salário
é pago sobre uma ótica individual e considerando os dias trabalhados, ao contrário do
modelo tradicional de organização comunitário em que o trabalho era coletivo, sem a
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existência do aspecto privado de apropriação.
A nova configuração espacial que tem resultado na redefinição do espaço local,
também apresenta territorialidades aparentemente invisíveis, mas com forte poder de
influência na formação cultural das crianças e dos próprios adultos. Estas territorialidades
chegam à comunidade através das redes sociais e através da televisão, que necessitam
serem discutidos abertamente na escola, como forma de alertar para as diferenças de
contextos entre a realidade da comunidade e o mundo não indígena.
Não se pode imaginar que a comunidade indígena permaneça isolada no espaço
local, até porque isto seria impossível como afirma Santos M. (2012b, p. 30): “É por essa
razão que cada lugar constitui na verdade fração do espaço total, pois só esse espaço total é
o objeto da totalidade das relações exercidas dentro de uma sociedade.”
Em rápido passeio a comunidade, percebe-se a conexão do espaço local com as
demais áreas espaciais. Isto se comprova através da rede de energia e das antenas
receptoras de sinais de TV, ainda que exista apenas corrente de chegada e pouca ou
inexistência de corrente de saída. Diga-se de passagem, que as informações produzidas na
comunidade raramente não ouvidas ns centros urbanos de onde emanam as decisões do
capital.
Todos esses elementos que constituem, novas forças de interferência espaço
local, podem ser chamados de novas territorialidades e necessitam ser compreendidas para
que se possam monitorar sua atuação, sem perder a autonomia politica, econômica e
cultural do território, que justificou a demarcação da terra indígena do Cauanim.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No final do século XVII as preocupações com a posse do território na região do
Rio Branco, frente à vulnerabilidade geopolítica, levou o governo colonial a implantar o
modelo de ocupação conhecido como a pata do boi. Modelo este que consistia na criação
das fazendas nacionais na região de lavrado (savanas) e permitia a dispersão do gado por
vasta região de território, pressionando as comunidades indígenas a espaços confinados.
Estas comunidades se viram obrigadas fugirem para áreas de florestas e serras, em outros
casos fazerem o enfrentamento aos colonizadores ou servirem de mão de obra barata nas
fazendas.
Após séculos de lutas e exploração, as comunidades indígenas em Roraima
conseguiram se organizar iniciar o processo de reivindicação pela demarcação das terras
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tradicionalmente ocupadas pelas diferentes etnias. Neste contexto, inclui-se a terra indígena
Cauanim, demarcada em 1996 e destina-se a ocupação das etnias Wapixana e Makuxi. Está
localizada no Município do Bomfim que faz fronteira com a República Cooperativa da
Guiana.
Na atualidade, a comunidade indígena do Cauanim vem passando por um
processo de reordenamento do espaço local, caracterizado pela criação de cercas em torno
da residência e separando os espaços destinados ao convivo coletivo. O próprio povoado
onde está situada a Escola Estadual Tuxaua Luiz Cadete já apresenta claros sinais de
formação de futuro núcleo urbano, bem como a presença de elementos da cultura
capitalista que interfere de forma direta na organização social da comunidade.
A escola, se por um lado representa a possibilidade de criação de um espaço de
discussão, por outro, é uma porta aberta as práticas capitalistas do modelo de consumo e
produção. Isto se verifica através da imposição de horários de funcionamento e da forma de
vinculação da relação de trabalho com os funcionários da escola.
A relação como os funcionários da escola ocorre claramente dentro ótica do
capital, com controle de frequência e remuneração privada dos funcionários. Estes, por sua
vez, estão submissos as ordens do diretor da escola que fica encarregado de enviar as faltas
dos dias não trabalhados em caso de ausência do professor. Não se está a dizer que deva
ser assim ou que deva ser ao contrário, o que se buscou neste caso foi analisar a infiltração
de praticas capitalistas na comunidade e o surgimento de noras territorialidade ou até
mesmo a redefinição das territorialidades já existentes de origem remota.
Cumpre destacar, que a comunidade indígena do Cauanim se divide com
extensas áreas de terras apropriadas pelo capital privado, cujas áreas se encontram
cercadas sem qualquer utilização produtiva e destina-se exclusivamente a especulação do
capital. Além do mais, não se pode perder de vista que a chegada da televisão na
comunidade poderá, no futuro próximo, promover uma verdadeira revolução cultural dos
indígenas, em especial, dos jovens e crianças que estão mais suscetíveis às influências do
modelo capitalista de consumo e organização social. Isto por si só, é suficiente a justificar a
necessidade de futuras pesquisas e debates sobre a questão em análise.
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OS POVOS INDÍGENAS, AS NOVAS TERRITORIALIDADES E A REDEFINIÇÃO DO ESPAÇO LOCAL NO ESTADO DE RORAIMA/BRASIL
EIXO 1 – Transformações territoriais em perspectiva histórica: processos, escalas e contradições
RESUMO
Parte dos povos indígenas que habitam o Estado de Roraima, situado no extremo norte do Brasil,
é descendente de origem caribenha e chegou à região antes dos colonizadores europeus no
século XVIII. O processo de colonização de Roraima teve início com as missões religiosas e a
busca das drogas do sertão, cuja ocupação foi estabelecendo suas bases fixas às margens dos
rios, áreas tradicionalmente ocupadas pelas comunidades indígenas. A relação de conflito e
exploração estabelecida pelo contato entre os europeus e os povos indígenas levou estes a
migrarem para regiões afastadas das margens dos rios, já que dificultava o acesso dos
colonizadores que dependiam diretamente da navegação fluvial. Desta forma, muitas
comunidades indígenas em Roraima conseguiram manter elementos culturais fundamentados na
posse coletiva das terras, através do sistema de cooperação entre seus membros. No final do
século XIX, as preocupações com a posse do território, frente à vulnerabilidade geopolítica da
região, levou o governo brasileiro a implantar o modelo de ocupação conhecido como a pata do
boi. Modelo este que consistia na criação das fazendas nacionais na região de lavrado (savanas)
que permitia a dispersão do gado por vasta região de território, pressionando as comunidades
indígenas a espaços confinados cada vez mais restritos. A estas comunidades restavam apenas
dois caminhos: ou servir de mão de obra barata nas fazendas ou migrarem para regiões de
florestas, incluindo as áreas de serras, que dificultava a chegada das atividades de pecuárias. O
esgotamento da ocupação e apropriação privada das áreas de lavrado tem levado a disputa pelas
terras em áreas tradicionalmente ocupadas pelas comunidades indígenas, fazendo surgir novas
territorialidades no espaço local. Estas novas territorialidades vão se infiltrando na comunidade de
forma camuflada, até fincarem suas raízes de bases capitalistas e aos poucos vão alterando a
estrutura organizacional das comunidades indígenas no processo aparentemente sem retorno e
incentivado pelas políticas custeadas pelo Governo Federal e Estadual. Neste entendimento, o
presente artigo tem como objetivo analisar o surgimento de novas territorialidades e o
reordenamento do espaço local na terra indígena Canaunim. Comunidade habitada por indígenas
das etnias Makuxi e Wapixana, situada no Município do Bomfim – Estado de Roraima/Brasil, cuja
área foi homologada como terra indígena pelo Governo Federal em 1996, por força do Decreto nº
15, da Presidência da República. A redefinição das territorialidades que atuam e determinam as
mutações no espaço local, com consequência nem sempre previsíveis, justificam a realização do
estudo sobre a temática em debate. O trabalho adota o método dialético na busca de
compreender a relação de forças convergentes e divergentes das territorialidades que atuam no
espaço local, em especial, o confronto entre as antigas formas de organização sócio espaciais e
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os novos modelos que atuam na comunidade de forma explicita ou camuflada. O método de
procedimento está fundamentado no estudo de caso, com visitas a comunidade, entrevistas e
observação direta. Dentre os resultados é possível destacar que o espaço local da comunidade
indígena Canaunim, no Município do Bomfim – Estado de Roraima/Brasil vem sofrendo profundas
modificações na organização interna. Mudanças que ganham força com a implantação de escolas
públicas estruturadas sobre a ótica não indígena. Passam a instituírem horários de funcionamento
e frequência obrigatória, alterando de forma brusca a liberdade indígena, que tradicionalmente
não esteve condicionada a horários e nem aos valores capitalistas de organização social. Surge
ainda às primeiras formas de propriedades privadas, fundamentadas nos interesses individuais em
detrimento dos interesses coletivos.
Palavras-chave: territorialidades; espaço-local; terra indígena Canaunim
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