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OS ESPAÇOS DA MEMÓRIA
Vila Madalena, sabe lá o que é isto?
Prof. Dr. Eduardo José Afonso*
Por mais primitiva que seja,toda a sociedade sedentária oferece aos seus
membros centros de reunião, ou melhor, lugares de encontro. A celebração
do culto, o arranjo dos mercados, as assembléias políticas e judiciárias,
fixam necessariamente a indicação de locais destinados a receber os homens
que querem ou devem participar dos actos (PIRENNE:1977,49)
A fotografia, no trabalho do historiador, é um documento. É dentro deste principio que
venho fotografando a Vila Madalena há mais de 35 anos. O que desejo é apresentar o que Ana
Mauad chama de imagens-documento.
A Vila Madalena tem tido destaque da mídia, cada vez maior, e se há 25 anos atrás,
quando ela aparecia como um bairro democrático, que recebia intelectuais, estudantes e
trabalhadores, todos vivendo naquele espaço harmoniosamente e , tecendo, ao mesmo tempo,
um teia cujos fios eram nós – incluo-me porque sou habitante da Vila há mais de 55 anos -, o
que dizer do aspecto que ela tem tomado nas últimas noticias sobre o “Carnaval na Vila
Madalena”?
Pois bem , a aparência que a Vila ganhou , ultimamente, de “terra de ninguém” ,
entristece muito a todos, principalmente os moradores deste espaço urbano que durante muito
* Possui graduação em Comunicação Social Publicidade e Propaganda pela Fundação Armando Álvares Penteado (1980), graduação em Curso de História pela Universidade de São Paulo (1984), graduação em Curso de
Licenciatura pela Universidade de São Paulo (1984) e mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo
(2004) e Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor assistente doutor
da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho “ - UNESP , Departamento de História, na cadeira de
História Moderna, Campus de Assis, Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Teoria
Antropológica. Atua no campo da História Moderna, História do Brasil Contemporâneo, História Social da
Cultura , História Oral e História da Arte.
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tempo foi destaque positivo na imprensa. Alguns moradores antigos, trabalhadores na industria
e no comércio, referiam-se `a Vila com orgulho, destacando a importância de serem habitantes
desse local. Alguns diziam: “Você está na Vila Madalena, sabe lá o que é isto?” Hoje, diante
dos últimos acontecimentos, o resgate do orgulho e da memória daqueles primeiros que
construíram este espaço é urgente!
Começo pelo identificação da história de meus antepassados, na “Vila dos Farrapos”,
apelido que a Vila ganhou nas primeiras décadas do século vinte , por tratar-se de bairro
periférico e pobre da capital de São Paulo.
Meus avós foram para o bairro em 1939. Meus parentes já estavam lá e já fotografavam
a Vila. Talvez querendo guardar as imagens que passavam a ser referencias e que ficariam no
lugar daquele espaço tão querido, deixado em Portugal , o qual nunca mais voltariam a ver.
Convivi, desde minha infância, com histórias de aldeias e vida de trabalho, parecia que o
espaço português se prolongava na Vila Madalena.
Como mostram depoimentos colhidos por mim, - referendando a importância do
trabalho com História Oral - a Vila era uma comunidade em que viviam, muitos tipos
humanos: portugueses , espanhóis, italianos , habitantes locais e visitantes de outros bairros.
Convivendo harmoniosamente , cada um procurava reproduzir naquele local seu espaço natal.
Para lá levavam suas lembranças e suas festas. Quermesses de Igreja, procissões, reuniões para
jogos e brincadeiras. Este espaço que tomou o lugar de suas aldeias deixadas ao longe, passou a
ser “os espaços de suas memórias”. Tanto nas casas quanto nas ruas quase tudo fazia lembrar
a arquitetura simples de uma aldeia européia.
Continuando o trabalho de registro das mudanças que já vinham sendo feitas por meus
familiares, passei a “documentar”, a partir de 1980, aspectos da Vila Madalena. Não só aqueles
que me eram mais próximos, mas todos os possíveis. Registrar a arquitetura e , principalmente,
os tipos humanos e suas manifestações , pois eram estes, que davam razão e vida ao bairro.
Documento, neste artigo, num universo de mais de 4000 fotografias, apenas, alguns
aspectos escolhidos por mim e que representam, como diz Ecléa Bosi, “Os Espaços da
Memória”. Resgatá-los como quer Ecléa é recompor os buracos deixados diante de tanto que já
foi destruído.
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O reconhecimento da importância do trabalho com História Oral
No ano de 1986, apresentei minha reflexão sobre memória e história, através de uma
exposição fotográfica, sobre a Vila Madalena, no CAPH Centro de Apoio a Pesquisa Histórica
da USP e já naquela ocasião me apropriava da noção de “espaços da memória” de Pierre Nora,
mesmo antes do lançamento do seu segundo livro, da obra magistral “Os Espaços da
Memória”.
Cumpria uma exigência de minhas expectativas, que era unir História , Memória e
Oralidade. Buscava nas lembranças dos primeiros habitantes da Vila Madalena, não só o que
viveram, mas como viveram naquele espaço. Procurava, já que muito havia sido destruído pela
sanha da especulação, os espaços da memória. Aquilo que Nora destacava como sendo os
lugares das lembranças.
Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos,
só é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica. Mesmo um
lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma
associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual.
Mesmo um minuto de silêncio, que parece o extremo de uma significação simbólica,
é, ao mesmo tempo, um corte material de uma unidade temporal e serve,
periodicamente, a um lembrete concentrado de lembrar. Os três aspectos coexistem
sempre (...). É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese , pois
garante ao mesmo tempo a cristalização da lembrança e sua transmissão; mas
simbólica por definição visto que caracteriza por um acontecimento ou uma
experiência vivida por pequeno número uma maioria que deles não participou
(NORA :1993, 21-22)
A exposição que contava com elementos materiais – documentos cedidos por
depoentes - e fotos de lugares significativos, aqueles que ainda davam sentido ao depoimento
colhido por mim , eram referências, na vida daqueles que voluntariamente haviam deixado seus
afazeres para lembrar momentos importantes de sua vida. Tudo isto compunha um quadro
destacado por Nora.
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Lembro-me bem, por ocasião da abertura da exposição, que contou com a presença e
palestra da profa. Eclea Bosi e seu esposo Alfredo Bosi, que , muito feliz com minha iniciativa,
fez-me prometer que não deixaria aquele empreendimento, apenas para aquele momento. Disse
ela: Continue....Continue.....Precisamos muito de iniciativas como as suas. Apoiado pela profa.
Maria de Lourdes Monaco Janotti, a amiga Dilú, contei com todo o apoio para continuar a
estudar e a me aprofundar nas discussões que envolvessem aquela que era a grande preocupação
da profa. Eclea.
Em seu livro, “Memória e Sociedade”, Lembranças de velhos, Eclea lançava um
desafio, não só para aqueles que se dedicavam à Psicologia Social, mas, também aos
Sociólogos, Antropólogos e , principalmente, aos Historiadores. A grande pergunta era : A
Sociedade Industrial, tem memória ? Conclamava a todos , o resgate da noção de memória
através do trabalho com os idosos .
Sintetizando a proposta de Ecléa, Marilena Chauí, na apresentação de seu livro, recorda
que temos de lutar pelo velho – termo, que naquele momento não era considerado pejorativo -
“O velho não tem armas”. E destacava,
A função social do velho é lembrar e aconselhar, unir o começo e o fim, ligando o que
foi e o por vir. Mas a sociedade capitalista - destaca - impede a lembrança, usa o
braço servil do velho e recusa seus conselhos. Sociedade que, diria Espinosa, não
merece o nome de Cidade, mas de servidão, solidão e barbárie”, a sociedade desarma
o velho monopolizando mecanismos pelos quais oprime a velhice, destrói os apoios da
memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa.(BOSI, 1983:XVIII)
Conclui Chauí perguntando : “O que é ser velho?. Em nossa sociedade, ser velho é lutar
para continuar sendo homem”(BOSI,1983:XVIII).
Pois bem, estas palavras sobre o velho e sua condição na sociedade capitalista fizeram
com que eu respeitasse o pedido da profa. Ecléa. Desde então dedico-me à luta - cumprindo o
ofício de Historiador, já que o tempo é o nosso ingrediente, e a memória está indelevelmente
ligada a ele - pelo resgate da importância e a valorização da memória em nosso trabalho.
Dedico-me à História Oral desde este período e sei que, ao contrário do que querem os puristas,
as escolhas de objetos de pesquisas são pessoais e , portanto, carregam consigo “vontades” e
porque não dizer, caminhos a percorrer , que fugindo da objetividade arranham a subjetividade.
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Esta, tão combatida no trabalho da ciência . A questão se coloca, aqui, também. A ciência,
feita pelos homens, é isenta da participação deles?
Apesar das críticas de muitos historiadores e cientistas que não reconhecem a validade
dos depoimentos no trabalho do historiador, ranço positivista que perdura, devemos lembrar que
a história escrita, antes de o sê-la , foi uma história oral. Heródoto quando resolveu recolher
fatos que precisavam ser guardados, iniciou seu trabalho com a recolha de depoimentos e
lembranças. Portanto, como dissemos, a História, antes de ser escrita é oral.
Ocorre que mesmo sendo considerado incerto, como destaca Durval de Albuquerque -
em sua obra História, “A Arte de Inventar o Passado” – a memória e a oralidade têm sido
consideradas ingredientes importantes para fins determinados. Por exemplo. No século XIX,
quando da Unificação Alemã, estudiosos, como os Irmãos Grimm, foram garimpar na Oralidade
, as histórias que fundamentariam a ideologia do novo Estado. Naquele momento, era
necessário ir buscar, na raiz, o “Pensar Alemão” e mais ainda, contar com o apoio daqueles que,
em sua experiência com a natureza e na relação desta com sua vida do campo, criavam contos e
lendas. Eram os contos de Fadas, que trariam , sempre, também, uma moral da História. É
lógico que estas histórias foram adaptadas para um fim específico.
O Estado precisa categorizar as “realidades sociais” para ter controle sobre elas. “Ao
Estado incomoda a fugacidade, o nomadismo e o incontrolável das oralidades, a equivocidade
da voz” (ALBUQUERQUE JR:2007, 23). Como sabemos a produção oral, nos anos 30 do
século passado, o registro da oralidade que era entregue aos folcloristas e etnógrafos, passou
para as mãos dos eruditos da academia. “Profissionais da escrita, estes eruditos procuraram
encontrar a essência de cada povo, de cada nação.(...) Cultura popular que enunciavam no
mesmo movimento que a inventavam”(ALBUQUERQUE JR:2007, 26), e a categorizavam
[grifo meu].
Nos anos 50, buscava-se a “cultura popular” para extrair dela rastros de “revolução”. O
povo perdia sua caracterização inicial, deixava, agora, de ser visto como destaca Albuquerque,
como tradicionalista, como costumeiro, como passadista, como último reduto da alma
nacional, do espírito regional, do caráter local, para ser visto como portador de falas
dissidentes, de interpretações alternativas da cultura e da sociedade, como portador
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de uma inconsciente experiência libertária, contestatória, rebelde (ALBUQUERQUE
JR:2007,32).
Intelectuais orgânicos sempre cumpriram , muito bem, seu papel. Atentemos, portanto,
para o nosso trabalho. Se defendemos o resgate da importância da memória e da história, na
busca da valorização da oralidade, que o façamos como coadjutores e não como protagonistas.
Transcrever um depoimento, sacralizar uma fala, um gesto, um olhar. É muito delicado.
Pensemos em nosso trabalho com cuidado, não esqueçamos da valorização, daquele que fala,
sente e nos transmite sua vida. Este é o principal
Diante destas considerações, pensemos, portanto no trabalho do historiador, no futuro.
Como será constituído? De que maneira o historiador trilhará seu caminho, como exercerá seu
ofício?
Estas perguntas são angustias que tomaram conta de meu espírito, quando refletia sobre
o futuro. Se hoje, precisamos resgatar o depoimento de pessoas que viveram a história e que
tem muito a nos contar - praticando o exercício do rememorar, e isto é muito importante para o
trabalho de resgate da auto-estima do cidadão idoso, e para o trabalho do historiador , como no
caso da Vila Madalena - como será no futuro?
Pois bem, atrevo-me a pensar no trabalho do historiador e no exercício de resgate da
memória e da oralidade no futuro. Tomo o hoje como parâmetro. Peço emprestado as idéias de
François Hartog que nos explica que :
“Nessa progressiva invasão do horizonte por um presente cada vez mais inchado,
hipertrofiado, é bem claro que o papel motriz foi desempenhado pelo desenvolvimento
rápido e pelas exigências cada vez maiores de uma sociedade de consumo, na qual as
inovações tecnológicas e a busca de benefícios cada vez mais rápidos tornam
obsoletas as coisas e os homens, cada vez mais depressa. Produtividade, flexibilidade,
mobilidade tornam-se as palavras-chave dos novos administradores3. Se o tempo é,
há muito, uma mercadoria, o consumo atual valoriza o efêmero.”
(HARTOG:2013,148)
Estas palavras de Hartog nos permitem pensar que, num mundo em que o futuro é
incerto e impensado, o que vale é o presente. A felicidade está no presente. Se o presente é o
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que importa, nem é preciso buscar no passado explicações para o presente, nem tão pouco para
o futuro. O futuro se faz no presente.
Hartog, colabora com nosso raciocínio e nos empresta idéias que nos permitem refletir
sobre nossa existência no século XXI. Nos incita também a pensar nossa relação com o grande
oráculo, este do qual nos alimentamos diariamente. A Mídia.
“A Mídia , cujo extraordinário desenvolvimento acompanhou esse movimento que é,
em sentido próprio, sua razão de ser, faz a mesma coisa. Na corrida cada vez mais
acelerada para o ao vivo, ela produz, consome, recicla cada vez mais palavras e
imagens e comprime o tempo: um assunto, ou seja, um minuto e meio para trinta
anos de história.” (HARTOG,148:2013)
Como compreender este mecanismo da pós-modernidade e nos compreender dentro dele?
Temos, hoje, a impressão de que o tempo está passando mais rápido. Existem teorias,
inclusive, que referendam esta idéia. Que a Terra estaria girando mais rápido; que a conjunção
atual dos planetas faz o tempo passar mais rápido, etc,etc,etc. Ocorre que o relógio, invenção
humana para medir o tempo, baseado na rotação da Terra, continua a marcar as mesmas horas.
Um dia não tem 12 ou 18 horas. Continua tendo 24 horas.
Então, o que está acontecendo com o tempo? Exatamente por ser uma mercadoria, ele ,
também, no mundo do consumo é vendável. É por isto, por exemplo, que ficamos tanto tempo
em frente ao computador, respondendo a reflexos condicionados, sendo dirigidos a milhares de
“caminhos”, chamados sites e, quando percebemos, o tempo, que achamos estar passando
rápido, foi “roubado de nós”, ou ainda, vendido a nós com a exposição de milhões de produtos,
idéias, fatos, imagens, etc,etc,etc.
Numa sociedade do efêmero, do consumismo e do descartável, onde, vagarosamente,
vamos nos acostumando a jogar fora, tudo que está “obsoleto” – no mundo da informação, a
obsolescência é programada, como nós, e é por isto que consumimos , hoje, mais do que nunca,
uns aos outros - , as relações humanas passaram, também, a ser descartáveis. Pergunto: Qual é
o lugar da História? Onde se encontra a memória?
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Numa sociedade como esta, qual será, no futuro – por mais que não o aceitemos -, o
lugar do idoso? Aquele que em muitas sociedades já foi considerado o Guardião da Memória.
Que importância terá, por exemplo, o Historiador?
Se hoje o aposentado não tem valor porque deixou de ser produtivo e não serve mais, ou
como dizem os administradores, “não agrega valor” , a não ser como consumidor, quando tem
renda. Onde estaremos nós e como seremos vistos no futuro? Se nunca se valoriza o idoso
por aquilo que viveu e pelo que tem a nos oferecer como sujeito da história , o que teremos nós
a oferecer `aqueles que virão depois?
Pensemos a condição do idoso hoje.
O idoso somente é valorizado enquanto consumidor. Se consumir está dentro dos
padrões do que se chama terceira idade, ou como querem os “politicamente corretos” “
MELHOR IDADE. então , sim ele é valorizado enquanto tal. Nos clubes de terceira idade,
como elemento que completa um grupo para viagens de turismo, por exemplo, e
principalmente, como refém da química, grande consumidor dos produtos que irão prolongar
sua vida. Seria esta a fonte da juventude?
Como lutar contra este modelo que apaga de nós as referencias, aquelas que nos
constituem humanos? Como lutar contra a categorização de tudo e todos? Queiramos nós ou
não, como diz Pierre Vidal-Naquet a luta está na valorização da memória, eu digo, e da
história.
“Cada um possui uma memória, e é precisamente pela memória que se é um
individuo. Aos vinte anos, aos sessenta, aos oitenta, um individuo se identifica
consigo mesmo ao tomar como referencia seu passado, um passado do qual é o
único possuidor por mais que exista também na memória dos outros. ”(VIDAL-
NAQUET: 1996, 15)
Enfim, ,
“a memória faz variar o ponto de vista, distende conceitos
duros, solta o corpo ajustado, faz viver os mortos. A Memória inspira, recupera a
graça do tempo, devolve o entusiasmo pelo que era caro e se perdeu, redime o
sagrado. A memória devolve não simplesmente o passado, mas o que o passado
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prometia. A memória devolve o que o passado vislumbrou e o presente esqueceu. A
memória vigia os vencidos” José Moura Gonçalves filho. BOSI:2003,Contracapa)
É preciso, como quer Pierre Nora, que mantenhamos os “Espaços da Memória” . É a
luta pela manutenção deles que nos dará instrumentos para fazer frente a este mecanismo
negador da capacidade humana , esta que é a reflexão e o exercício da reminiscência. A
capacidade de recuperar algo que se possuía e que se perdeu.
Como diz Ecléa Bosi
“Há algo na disposição espacial que torna inteligível nossa posição no mundo, nossa
relação com outros seres, o valor do nosso trabalho, nossa ligação com a natureza.
Esse relacionamento cria vínculos que as mudanças abalam, mas que persistem em
nós como uma carência (...)
Destruída a parte de um bairro onde se prendiam lembranças da infância do seu
morador, algo de si morre junto com as paredes ruídas, os jardins cimentados. Mas a
tristeza do indivíduo não muda o curso das coisas : só o grupo pode resistir e
recompor traços de sua vida passada. Só a inteligência e o trabalho de um grupo(...)
podem reconquistar as coisas preciosas que se perderam, enquanto estas são
reconquistáveis. Quando não há essa resistência coletiva os indivíduos se dispersam e
são lançados longe, as raízes partidas. (...) À resistência muda das coisas, `a teimosia
das pedras, une-se a rebeldia da memória que as repõe em seu lugar antigo”
(BOSI,370:1983)
Como nos explica Maurice Halbwachs é impossível que nos compreendamos sem que
entendamos que fazemos parte de uma sociedade em que os valores fundados nos constituem
seres ligados a uma memória coletiva. Há uma memória individual, mas ela se faz, também
pelo que nos oferece a sociedade em que vivemos. É o que Halbwachs chama de “quadros
sociais da memória” . Num mundo onde o que vale é apenas o individualismo este é o
caminho para a valorização do trabalho, por exemplo , da História Oral.
Falar da importância do trabalho do historiador em captar as “vivencias”, não faz
sentido se elas não forem apresentadas como vivas. Destacar o mecanismo perverso da chamada
“Era da Informação”, não encontra eco, se não refletirmos nossa condição de reprodutores de
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modelos criados para nós. Buscar respostas para o exercício da memória no futuro não tem
significado algum se não nos lançarmos nesta cruzada pela valorização daquilo que é humano e
da relação deste particular, com a constituição de uma sociedade que continue a existir,
reforçando os “espaços da memória”, que como quer Nora, só será entendido quando percebido
como sendo um exercício de existência. Lutemos, hoje, pelo trabalho do Historiador, do
Sociólogo, do Antropólogo, que eles possam cumprir sua função no futuro e que tenham
espaço para valorizar o que é identidade.
Finalizando lembremos Hanna Arendt, em A Condição Humana. Suas reflexões nos
permitem pensar sobre estas questões prementes.
Estamos ameaçados de esquecer e um tal esquecimento – pondo inteiramente de lado
os conteúdos que se poderiam perder – significaria que, humanamente falando,
teríamos sido privados de uma dimensão/, a dimensão de profundidade na existência
humana. Pois memória e profundidade são o mesmo, ou antes a dimensão de
profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação
(ARENDT: 2007,335)
Tomemos, o exemplo do desrespeito pela memória dos habitantes e pelo espaço urbano,
“os espaços da memória” , ocorridos no Carnaval 2015 na Vila Madalena , e lutemos pela
valorização e o resgate desse elemento primordial pois
a desorganização do espaço, a ruptura brusca desse mapa afetivo, arranca dos
moradores o significado mais estável da vida em comum. Rouba as lembranças do
passado e o sentido das pedras da cidade. Mas rebelde, a evocação as repõe em seu
lugar antigo. E a cidade emerge cheia de alma, com sua memória política, sua
memória de trabalho, as vozes de suas igrejas e ruas, seus pregoes e cantigas, seus
assobiadores das madrugadas (BOSI:1983, 53)
Vila Madalena : Os Espaços da Memória
Aqui estão , como destaca Nora e Ecléa Bosi, os espaços da memória. Fotografias-
documento e depoimentos de antigos moradores que resgatam a “alma” da cidade, cidade esta
que ,como diz Marilena Chauí, “não merece este nome, mas o de servidão, solidão e barbárie”
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(BOSI:1983,XVIII), pois, ao desvalorizar a lembrança do idoso, e demolir os espaços da
memória, destrói aquilo que é mais caro ao ser humano , seu direito de existir.
Procissão de São Zenão 16.05.1954 - Esquina das Ruas Purpurina com Girassol.
Foto de Albino Pires. Acervo Eduardo José Afonso
Sr. José : .... e a gente ia daqui `a Teodoro Sampaio, tomar o bonde, amassar esse barro... Tinha dias que a gente
era obrigado , quando chovia, levar dois, dois pares de sapato, um no pé e outro na mão. Na Borba Gato, onde a
gente costumava tomar o bonde, tinha um barzinho que a gente deixava o sapato sujo, na volta, pegava o sujo e
levava o limpo na mão subindo a Fradique Coutinho. ( depoimento dado pelo senhor José Miguel Esteves, em
03/03/1986, na ocasião com 69 anos, filho de imigrantes portugueses. Chegou `a Vila Madalena em 1934)
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Fotografia tomada da esquina da rua Original com Harmonia, por Albino Pires, década de 1940.
Acervo Eduardo José Afonso
Dona Anna: ai, como era, é como eu falei pra você, a gente pensava que era bonito, mas no fim.... Tinha sé
aquelas casinhas pequenas, sem muro, algumas ainda punham uma cerca d’arame. Tinha poucas casas, uma vida ,
assim, muito, muito `a moda da aldeia, parecia uma aldeiazinha...
Depoimento dado pela senhora Anna Augusta Pires Paulo, em 20/03/1986, na ocasião com 73 anos, portuguesa
vinda da Aldeia de Santa Combinha, na Freguesia de Macedo de Cavaleiros, Trás-os-Montes, Portugual, em
fevereiro de 1939)
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Foto tomada em 1980 , por Eduardo José Afonso, da travessa que liga a rua Arapiraca `a Rua Fradique Coutinho.
Acervo Eduardo José Afonso
Dona Beatriz : Olha, chegamos de Portugal em 33, ficamos dois anos na Pompéia, na casa de minha tia e viemos
para a Vila Madalena, moramos na Rodésia. Meu pai comprou gado, passamos a ter vida de vaqueiros.. a gente
teve convivências com várias pessoas, conheceu gente... as famílias eram humildes.....
(Depoimento dado pela sra. Beatriz Cruz Esteves, em 03/03/1986, na ocasião, com 58 anos)
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Fotografia tomada , por Eduardo José Afonso, no ano de 1980, na Rua Fradique
Coutinho, numero 1200. Detalhe da menina que espreita atrás do poste.
Sr. Benedito: Cheguei aqui em 1964 e , sabe como é, pego amizade com a turma né, ainda, as pessoas aqui são
legais, então eu trabalho aqui, porque eu nunca encrenquei com ninguém, aqui, nunca, graças a Deus, sempre tive
muita amizade.....
(Depoimento dado em 15/03/1986, por Benedito Rodrigues, sorveteiro ambulante da Vila Madalena, cuja voz
ecoava por todas as ruas do bairro. “Ó o sorvete!” . Figura importante e típica da Vila)
Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE JR., Durval M. de. História. A Arte de inventar o passado.
Bauru:EDUSC,2007.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana, Rio de Janeiro:Forense-Universitária, 2007.
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BOLTANSKI, Luc ; CHIAPELLO, Ève. Le nouvel esprit Du capitalisme.
Paris:Gallimard,1999.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade : Lembranças de Velhos. São Paulo : T. A. Queiroz, 1983.
__________. O Tempo Vivo da Memória : Ensaio de Psicologia Social, Cotia:Ateliê Editorial,
2003.
HARTOG, François. Regimes de Historicidade : Presentismo e experiências do tempo. Belo
Horizonte:autentica, 2013. Pag. 148.
PIRENNE, Henri Pirenne. As cidades da Idade Média. Colecção Saber. Publicações Europa-
América, Lisboa, 1977.
VIDAL-NAQUET, Pierre. IN: Los judios, la memoria y el presente, Introducción, Fondo de
Cultura Económica, Argentina, 1996, pp.15-22.
NORA, Pierre. Between Memory and History : Les Lieux de Mémoire. Representations, nª26.
1989 pp.7-24 – University of Califórnia Press.
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