os entes silenciosos da sociedade israelita segundo o
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Pedro Evaristo Conceição Santos
Os Entes Silenciosos da Sociedade Israelita Segundo o Deuteronômio
Cópia Corrigida
São Paulo
2016
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
PROGRAMA: ESTUDOS JUDAICOS E ÁRABES
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS JUDAICOS
Pedro Evaristo Conceição Santos
Os Entes Silenciosos da Sociedade Israelita Segundo o Deuteronômio
Cópia Corrigida
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Estudos Judaicos e Árabes do
Departamento de Letras Orientais da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutor.
Orientador: Professor Doutor Reginaldo Gomes de Araújo
São Paulo
2016
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial desse trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação da Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humandas da Universidade de São Paulo
S237p
Santos, Pedro Evaristo Conceição
Os entes silenciosos da sociedade israelita segundo o Deuteronômio / Pedro Evaristo
Conceição Santos – 2016.
236 f.
Orientador: Prof. Dr. Reginaldo Gomes de Araújo
Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, USP, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Departamento de Letras Orientais, Programa: Estudos Judaicos e Árabes,
Área de Concentração: Estudos Judaicos. 236 f.
1. Estudo Judaicos. 2. Bíblia Hebraica. 3. Literatura - Deuteronômio. 4. Sociedade Israelita.
I. Araújo, Reginaldo Gomes de (orient.). II. Título. III. USP.
Banca Examinadora
Presidente: Prof. Dr. Reginaldo Gomes de Araújo (USP)
Titular: Prof. Dr. Moacir Aparecido Amâncio (USP)
Titular: Prof. Dr. Grabriel Steinberg Schvartzman (USP)
Titular: Prof. Dr. Rodrigo Franklin de Sousa (MACKENZIE – Externo)
Titular: Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira (METODISTA – Externo)
Agradecimentos
À minha esposa, Digna Santos, e a meu filho, Nathan Santos, pela sua paciência e apoio, dando os
incentivos nos momentos em que precisei. São os amores de minha vida.
Ao Professor Doutor Reginaldo Gomes de Araújo, um agradecimento muito especial pelo seu trabalho
minucioso e paciente de leitura, correções e indicação de literatura necessária à pesquisa.
À CAPES, pela bolsa de estudos que propiciou o necessário aporte financeiro para os congressos,
compra de livros e manutenção no trabalho de pesquisa.
Aos professores que estiveram envolvidos na qualificação, pelas sugestões proveitosas, as quais
ficarão marcadas como contribuição ao meu trabalho de pesquisa.
Aos professores que ministraram as disciplinas em sala de aula, em especial à Professora Suzana
Chwarts que, além das aulas, foi minha tutora no estágio.
À equipe de funcionários que me ajudaram na parte burocrática da Instituição.
E ao Deus de Israel por sua bondade, expressa através de cada agradecimento acima.
Abreviações
AEC Antes da Era Comum
ANE The Ancient Near East – an anthology of texts and pictures
ARA Bíblia Almeida Revista e Atualizada
ATP Antigo Testamento Poliglota – Hebraico, Grego, Português, Inglês
BDB The New Brown – Driver – Briggs – Gesenius Hebrew and English
Lexicon.
BEG Bíblia de Estudo de Genebra
BH Bíblia Hebraica
BHQ Bíblia Hebraica Quinta: Deuteronômio
BJ Bíblia de Jerusalém, nova edição – revista e ampliada
BP Bíblia do Peregrino
BW7 Bible Works 7
CBI Comentario Biblico Iberoamericano.
DCH The Dictionary of Classic Hebrew
DTMAT Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento
EBC The Expositor’s Bible Commentary.
GGL-BW7 Gingrich Greek Lexicon no BW7
HALOT The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament
HHL-BW7 Holladay Hebrew Lexicon no BW7
ITC International Theological Commentary
JPSTC The JPS Torah Commentary
NAC The New American Commentary
NCBC The New Century Bible Commentary
OTC Old Testament Commentaries
TDNT Theological Dictionary of the New Testament
TDOT Theological Dictionary of the Old Testament
TWOT Theological Wordbook of the Old Testament
WBC Word Biblical Commentary
Resumo
Esta pesquisa tem como objeto “Os Entes Silenciosos da Sociedade Israelita segundo o
Deuteronômio”. E com quê esse objeto tem a ver? A pesquisa será desenvolvida a partir do
livro de Deuteronômio e mirará àqueles que estão em silêncio dentro do livro. São eles: o
pobre, a viúva, o órfão, o estrangeiro, o levita, o escravo e a escrava.
No desenvolvimento da pesquisa, notou-se que todos eles poderiam ser colocados sob a
nomenclatura de “pobre”. E, de fato, todos eles são pobres. Mas o redator emprega as palavras
para “pobre” para designar um “homem” que, mesmo que estando em situação econômica
degradada, ele ainda é livre, e, em determinado momento de sua vida, pode até optar por se
tornar um escravo de um irmão. Também, percebeu-se que há quatro personagens que, quase
sempre, aparecem juntos. Esses são aqueles que são chamados pelas palavras: viúva, órfão,
estrangeiro e levita.
Diante disso, a pesquisa foi desenvolvida da seguinte forma: o capítulo inicial, onde se faz o
levantamento das palavras que ocorrem dentro do Deuteronômio, e no qual se faz algumas
observações iniciais.
O segundo capítulo buscará entender as palavras para pobre que ocorrem dentro do
Deuteronômio. Notar-se-á aqui que elas apontam para um irmão israelita e que legislação será
feita para que o “tu/vós”, a quem se dirige o redator do livro, aja em obediência a fala de seu
Deus e seja benigno com o seu irmão empobrecido. O capítulo termina com um tratamento de
Moisés como um personagem que foi identificado com os Entes Silenciosos do Israel antigo.
O terceiro capítulo será desenvolvido com os Entes Silenciosos que aparecem, comumente,
juntos. Eles são considerados “estrangeiros” por sua condição de desarraigamento. Eles não
possuem propriedade. Mas existem dentro da propriedade do “tu/vós”. A pesquisa também
desenvolverá um entendimento do dízimo do terceiro ano.
O quarto capítulo trata dos escravos e escravas. A legislação deuteronômica fará uma
distinção entre os escravos e escravas que são de Israel e os que não o são. O ano da
libertação dos empobrecidos e dos escravizados será tratado, em sua segunda parte, pois, a
primeira fora tratada no capítulo 2.
Palavras-chave: Pobre, Viúva, Órfão, Levita, Estrangeiro, Escravo, Escrava.
Abstract
This research has the object "The Silent Beings of Israeli society according to Deuteronomy."
And what this object has to do? The research will be developed from the book of
Deuteronomy and will target those who are silent inside the book. They are: the poor, the
widow, the orphan, the stranger, the Levite, the male and female slaves.
In developing the survey, it was noted that all of them could be placed under the nomenclature
of "poor." And indeed, they are all poor. But the writer uses the words to "poor" to mean a
"man" that even being in degraded economic situation, he is still free, and at one point in your
life, he can even chooses to become a slave of a brother. Also, it was noted that there are four
personages that almost always appear together. These are those who are called by the words:
widow, orphan, the stranger, and Levite.
Therefore, the research was carried out as follows: the first chapter, where it is the lifting of
words that occur within the Deuteronomy, and which makes some opening remarks.
The second chapter will seek to understand the words to poor occurring within the
Deuteronomy. It will be noted here that they point to an Israeli brother and that legislation
will be made so that the "thou / you", to whom is the book's editor, act in obedience to the
speech of their God and be charitable with your impoverished brother. The chapter concludes
with a treatment of Moses as a man who was identified with the Silent Beings of ancient
Israel.
The third chapter will be developed with the Silent Beings that appear commonly together.
They are considered "foreign" by their uprooting condition. They have no property. But they
are within the grounds of "thou / you." The research also develop an understanding of the tithe
of the third year.
The fourth chapter deals with the male and female slaves. The Deuteronomic legislation will
make a distinction between male and female slaves who are of Israel and those who are not.
The year of the liberation of impoverished and enslaved will be treated in its second part,
because the first had been treated in Chapter 2.
Keywords: Poor, Widow, Orphan, Levite, Foreign, Male Slave, Female Slave.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 16
1. OS ENTES SILENCIOSOS NO LIVRO DE DEUTERONÔMIO: A DISTRIBUIÇÃO
DOS VOCÁBULOS 25
1.1. A distribuição das palavras 28
1.1.1. Deuteronômio 1 a 11 29
1.1.2. Deuteronômio 12 a 26 29
1.1.3. Deuteronômio 27 a 34 29
1.1.4. Observações da distribuição das palavras 30
1.2. Entes Silenciosos falantes? 33
1.2.1. O ywIle, lëwî, e a fala do redator para ele 33
1.2.1.1. O lëwî fala para abençoar 33
1.2.1.2. O lëwî fala para amaldiçoar 35
1.2.1.3. Os sacerdotes levitas “falam” 36
1.2.2. O db,[,, `ebed (e a hm'a', ´ämâ) 37
1.2.3. O yni[', `änî, e o !wOyb.a,, ´ebyôn 38
1.2.3.1. O clamor do `änî e do ´ebyôn 38
1.2.3.2. A bênção do `änî 39
1.2.4. Algumas observações 39
2. OS ENTES SILENCIOSOS CARACTERIZADOS POR SUA “POBREZA” 43
2.1. O !wOyb.a, [´ebyôn] e yni[' [`änî ] 44
2.1.1. O !wOyb.a,, ´ebyôn 45
2.1.1.1. Um termo geral para referir-se a uma pessoa dentro de determinada
condição econômica, a condição de pobreza. 45
2.1.1.2. Elementos filológicos 49
2.1.1.2.1. A etimologia de !wOyb.a, (´ebyôn) 49
2.1.1.2.2. Comparação com o Targum 50
2.1.1.2.3. Comparação com a Septuaginta (LXX) 51
2.1.1.3. Algumas notas 51
2.1.2. O yni[' (`änî) 52
2.1.2.1. Elementos filológicos 52
2.1.2.1.1. A etimologia de yni[' (`änî) 52
2.1.2.1.2. Comparação com o Targum 54
2.1.2.1.3. Comparação com a Septuaginta (LXX) 54
2.1.2.2. O yni[', `änî (15,11; 24,12.14.15) – o Ente Silencioso em aflição 56
2.1.2.3. O !wOyb.a, e yn[' (´ebyôn e `änî) como sinônimos em Deuteronômio – uma
exegese de Deuteronômio 24 57
2.1.2.3.1. Tradução sugerida para Deuteronômio 24,10-15 57
2.1.2.3.2. O Sitz im leben de Deuteronômio 24 60
2.1.2.3.3. Análise de Deuteronômio 24,10-15 61
2.1.2.3.3.1. Primeiro caso: a situação de um homem que penhora sua capa pessoal
por um empréstimo (Deuteronômio 24,10-13) 62
2.1.2.3.3.2. A situação de um homem que trabalha por sua sobrevivência
(Deuteronômio 24,14-15) 65
2.2. O !joÝq': o Ente Silencioso pobre na porta da justiça (1,17) 70
2.2.1. Observações iniciais 70
2.2.2. Elementos filológicos 72
2.2.2.1. !joÝq', q¹‰œn 72
2.2.2.1.1. A etimologia da palavra !joÝq', q¹‰œn 72
2.2.2.1.2. Comparação com o Targum 73
2.2.2.1.3. Comparação com a Septuaginta 73
2.2.2.2. ld", däl (“pobre”) 74
2.2.2.2.1. A etimologia da palavra ld", däl 74
2.2.2.2.2. Comparação com o Targum 75
2.2.2.2.3. Comparação com a Septuaginta 75
2.2.3. Análise do texto de Deuteronômio 1,17 76
2.2.3.1. Tradução de Deuteronômio 1,16.17 e dos textos paralelos em Êxodo 23,2.3
e Levítico 19,15 76
2.2.3.2. Análise dos textos 79
2.2.3.2.1. O contexto de Deuteronômio 1,16.17 79
2.2.3.2.2. O texto próprio: os juízes instruídos 81
2.2.3.2.2.1. Uma observação inicial 81
2.2.3.2.2.2. Elementos na análise do texto 81
2.2.3.2.3. Os textos paralelos em Êxodo e Levítico 86
2.2.3.2.3.1. Êxodo 23,3: a testemunha deve ser verdadeira 86
2.2.3.2.3.2. Levítico 19,15: outro desafio aos juízes 90
2.3. hJ'(miv. [šümi††â]: a quebra da dívida do ´ebyôn – o ´ebyôn livre da dívida
(Deuteronômio 15) 94
2.3.1. A importância de Deuteronômio 15 94
2.3.2. A base redacional sobre o “tu/vós” 95
2.3.3. A estrutura literária de Deuteronômio 15: Os blocos literários de Deuteronômio
15 96
2.3.4. O sitz im leben de Deuteronômio 15 99
2.3.5. O benefício da šümi††â para o pobre em Deuteronômio 15 – tradução e análise
do capítulo 101
2.3.5.1. A introdução (Deuteronômio 15.1) 101
2.3.5.1.1. Tradução 101
2.3.5.1.2. O ano do cancelamento – o centro do capítulo 102
2.3.5.2. O ´ebyôn: o Ba`al e seu empréstimo ao ’ebyôn – seu irmão e seu próximo
(Deuteronômio 15,2-6) 104
2.3.5.2.1. Tradução (Deuteronômio 15,2-6) 105
2.3.5.2.2. O que caracteriza o evento da šümi††â? 107
2.3.5.2.2.1. É um evento oficialmente proclamado (Deuteronômio 15,2) 107
2.3.5.2.2.1.1. Uma explicação necessária: O que um Ba`al (“credor”) deve fazer
com as dívidas de um emprestador? 107
2.3.5.2.2.1.2. A mão do Ba`al 108
2.3.5.2.2.2. Inclusão e exclusão na šümi††â (Deuteronômio 15,3.4) 108
2.3.5.2.2.2.1. O yrIßk.n" [nokrî] 108
2.3.5.2.2.2.2. Uma comunidade ideal – sem ´ebyôn 109
2.3.5.2.2.2.3. Deuteronômio e seu sistema de recompensas 111
2.3.5.2.2.2.3.1. “O Deus de Israel te abençoará em tudo o que fizeres”
(Deuteronômio 7,13; 15,4.6.10.18; 28,8; 30,16). 113
2.3.5.2.2.2.3.2. “... prolongareis os vossos dias” (Deuteronômio 4,40; 5,16.33; 6,2;
11,9.21; 17,20; 22,7; 25,15; 30,20; 32,47). 114
2.3.5.2.2.2.3.3. “para que te vá bem” ou “para que bem vos suceda”
(Deuteronômio 4,40; 5,16.29.33; 6,3.18.24; 12,25.28; 19,13; 22,7; 305.9 ). 115
2.3.5.2.2.2.3.4. “para que vivais” (Deuteronômio 4,1; 5,33; 8,11). 115
2.3.5.2.2.2.3.5. “para que entreis e possuais a terra” (Deuteronômio 4,1; 8,1;
11,8). 115
2.3.5.2.3. O imperativo da obediência para não ter ´ebyôn (Deuteronômio 15,5.6)
116
2.3.5.3. O clã e seu cuidado com o irmão empobrecido (Deuteronômio 15,7-11) 117
2.3.5.3.1. Tradução 117
2.3.5.3.2. Solidariedade com o irmão empobrecido 119
2.3.5.3.2.1. Uma hipótese possível (15,7) 119
2.3.5.3.2.2. Coração generoso em lugar do duro (15,8.9) 120
2.3.5.3.2.3. Uma contradição em Deuteronômio 15? 122
2.4. Moisés – um modelo de `änî (um wn"[' no meio de ~ywIån"[])? 124
2.4.1. O texto – Números 12,1-3 125
2.4.1.1. Tradução 125
2.4.1.2. O contexto 126
2.4.2. O evento envolvia incialmente uma crítica contra a mulher de Moisés. 128
2.4.3. A caracterização de Moisés como `änî 132
2.4.3.1. Moisés é chamado de hä´îš. 132
2.4.3.2. Um homem distinto – o mais `änäw que todos os homens. 134
3. OS ENTES SILENCIOSOS EM BLOCO 143
3.1. O Ente Silencioso desprovido do amparo do cônjuge e filhos: a viúva [hn"m'l.a;,
´almänâ] 145
3.1.1. Algumas observações iniciais 146
3.1.2. Elementos filológicos 149
3.1.2.1. A etimologia de hn"m'l.a; (´almänâ) 149
3.1.2.2. Comparação com o Targum 150
3.1.2.3. Comparação com a Septuaginta 150
3.1.3. Uma ´iššâ ´almänâ, em meio aos Entes Silenciosos 150
3.1.3.1. Em todas as ocorrências de ´almänâ, em suas versões em Aramaico e
Grego, as palavras empregadas são também substantivos: a ´almänâ nomeia a mulher.
150
3.1.3.2. Em Deuteronômio, a ´almänâ aparece sempre sozinha – sem filhos, sem
família e sem marido. 151
3.1.3.3. A ´almänâ é produto de tempos de dificuldades econômicas. 151
3.1.3.4. Era proibido tomar a roupa da ´almänâ em um processo judicial (24,17).
153
3.1.3.5. Ela se encontrava nos “teus portões”. 153
3.2. O Ente Silencioso desprovido da proteção do pai: o órfão [~Aty"]. 156
3.2.1. Observações iniciais 156
3.2.2. Elementos filológicos 158
3.2.2.1. A etimologia 158
3.2.2.2. Traduções para o Aramaico e o Grego 159
3.2.3. O yätôm dentro do Deuteronômio 159
3.3. O Ente Silencioso desprovido da proteção de sua terra ou pátria: o estrangeiro [rGe
/Gër] 162
3.3.1. Observações 162
3.3.2. Elementos filológicos 163
3.3.2.1. A etimologia 163
3.3.2.2. Tradução para o Aramaico 165
3.3.2.3. Tradução para a LXX 167
3.3.3. O Gër dentro de Deuteronômio 168
3.3.4. Outros termos para indicar o estrangeiro 169
3.3.4.1. yrIk.nO (Deuteronômio 17,15 [nokrî]) 169
3.3.4.2. O rz" [zär] 171
3.4. O Ente Silencioso desprovido de herança: o levita [ywIle / lëwî] 172
3.4.1. Observações 173
3.4.2. Etimologia 173
3.4.3. Traduções para o Aramaico e Septuaginta 174
3.4.3.1. Targum 174
3.4.3.2. Septuaginta 175
3.4.4. Análise textual 175
3.4.4.1. O lëwî como Ente Silencioso específico 175
3.4.4.2. O lëwî como membro da classe sacerdotal 179
3.4.4.2.1. O motivo dessa especificação 179
3.4.4.2.2. A caracterização dos “sacerdotes levitas” 180
3.4.4.3. O lëwî como uma tribo em Israel 182
3.4.4.4. O lëwî como um cuidador da arca da aliança 184
3.5. O Dízimo do terceiro ano (Deuteronômio 26,12-15) 185
3.5.1. Tradução 185
3.5.2. O contexto 187
3.5.3. Estrutura e análise de Deuteronômio 26,12-15 189
3.5.3.1. Estrutura da perícope de Deuteronômio 26,12-16 189
3.5.3.2. Análise: O que é o dízimo do terceiro ano? 189
3.5.3.2.1. A voz do redator 189
3.5.3.2.2. A confissão de obediência do “tu” 190
3.5.3.2.2.1. O sagrado não pertence ao dono (26,13) 190
3.5.3.2.2.2. Os elementos de exclusão (26,14) 191
3.5.3.2.2.2.1. O luto 191
3.5.3.2.2.2.2. A impureza 192
3.5.3.2.2.2.3. O morto 193
3.5.3.2.2.3. A contrapartida divina: a conclusão sem hT'ª[;w>, “e agora” (26,15) 194
3.5.4. O Dízimo do terceiro ano – uma antecipação a Deuteronômio 26,12-15:
14,28.29 195
3.5.4.1. Tradução 195
3.5.4.2. O contexto 196
3.5.4.3. Análise de Deuteronômio 14,28.29 197
3.5.4.3.1. Como identificar o dízimo para a doação aos Entes Silenciosos 197
3.5.4.3.2. Os destinatários do dízimo postado “nos portões” 198
3.5.4.4. O dízimo em Deuteronômio tem meta básica socorrer os Entes Silenciosos?
199
4. OS ENTES SILENCIOSOS COMO PROPRIEDADE 204
4.1. Algumas notas iniciais 204
4.1.1. O db,[,,`ebed, e a hm'a', ´ämâ, como patrimônio 204
4.1.2. As aparições do `ebed e da ´ämâ em Deuteronômio 205
4.1.3. Outros Entes Silenciosos associados com o `ebed e a ´ämâ 205
4.2. Usos específicos da palavra db,[,,`ebed, e hm'a', ´ämâ, em Deuteronômio 206
4.2.1. O db,[,,`ebed, e hm'a', ´ämâ, como parte dos bens do clã 206
4.2.2. O `ebed como um representante oficial 208
4.2.3. Israel como `ebed 209
4.2.4. O `ebed (ou a ´ämâ) israelita feito `ebed (ou a ´ämâ) para sempre 210
4.3. O `ebed e a ´ämâ na šümi††â: Liberdade ou escravidão permanente? O dilema do
`ebed e da ´ämâ em Deuteronômio 15,12-18 211
4.3.1. Tradução 211
4.3.2. db,[, [`ebed] e hm'a' [´ämâ]: O irmão (ou a irmã) que se vendeu como escravo
(Deuteronômio 15,12-18) 214
4.3.2.1. Venda voluntária (15,12) 214
4.3.2.2. Liberalidade na saída 215
4.3.2.2.1. Saída com suporte (15,13) 215
4.3.2.2.2. Bênção para abençoar (15,14) 216
4.3.2.2.3. Liberdade baseada na memória (15,15) 216
4.3.2.3. A recusa em sair 217
4.3.2.3.1. A recusa em sair tem que ser voluntária (15,16) 217
4.3.2.3.2. A recusa tem que ser oficializada (15,17) 217
4.3.2.4. Obediência para a prosperidade (15,18) 218
4.4. A hm'a' e a hx'p.vi -šipHäh 219
CONSIDERAÇÕES FINAIS 222
REFERÊNCIAS 228
16
INTRODUÇÃO
A primeira ocorrência de um dos vocábulos se referindo a um pobre, seguindo a ordem1 dos
livros na BH, aparece dentro do livro de Êxodo 22,25 (Hebraico v. 24), yni[' [`änî]. A última
referência a ele está dentro do livro de Eclesiastes 9,16.2 Aqui a tradução da palavra “pobre”
é de uma palavra aramaica normalmente usada para traduzir o texto Hebraico para o
Aramaico, o Targum, das palavras yni[' [`änî] e !wOyb.a, [´ebyôn], como apontará, mais adiante,
esta pesquisa.3 Essa palavra é !Kes.mi [misKën],
4 “pobre”.
5
O quadro na página seguinte apresenta apenas as primeiras e as últimas ocorrências das
palavras que serão à base da pesquisa nesta tese sobre os Entes Silenciosos dentro do
Deuteronômio. O quadro tem o objetivo de mostrar que a BH tem ocorrências em quase todos
os livros presentes em sua coleção.
1 A ordem dos livros dentro da BH é diferente daquela presente nas Bíblias usadas por evangélicos e católicos. A
BH começa com Gênesis e termina com Crônicas. A BH segue a tríplice divisão: Torah, Profetas e Escritos. 2 Segundo a divisão da BH, os Escritos são a última divisão, não os livros proféticos, como nas Bíblias cristãs.
Na divisão da BH, segundo as versões cristãs, o último livro onde aparece uma palavra para designar um pobre é
Zacarias 7,10. Aqui aparece a palavra “pobre” como tradução de yni[', [`änî]. Apenas para observar, a palavra `änî
abre e fecha as aparições de vocábulos para “pobre” nas Bíblias cristãs. Na BH, a palavra que fecha é uma
palavra aramaica [misKën] usada para traduzir `änî em diversos textos do Targum. 3 Essa constatação estará presente dentro da análise das palavras `änî e ´ebyôn dentro do segundo capítulo desta
pesquisa. 4 Essa palavra aparece antes, em Eclesiastes 4,13, onde qualifica a palavra “jovem” [dl,y<ï / yeºled]. Todavia, no
versículo seguinte (4,14), a palavra usada para qualificar a condição de nascimento do yeºled é vr" [räš], “pobre”:
“Mais vale um jovem pobre [!Kes.mi] e sábio do que um rei velho e insensato que não aceita conselho (4,13).
Mesmo que ele tenha saído da prisão para reinar e mesmo que tenha nascido mendigo [vr"] para exercer sua
realeza (4,14)” (BJ). 5 O sistema de transliteração seguido por esta pesquisa segue a transliteração “BHT – Transliterated Hebrew
OT” do BW7.
17
Palavras hebraicas Primeira ocorrência Última ocorrência
yni[', `änî, “pobre”, “aflito”
Êxodo 22,24
(Hebraico)
Eclesiastes 6,8
!wOyb.a,, ´ebyôn, “pobre”, “necessitado”
Êxodo 23,6
Ester 9,22
rGe, Gër, “estrangeiro residente”
Gênesis 15,13
2 Crônicas 30,25
~wOty", yätôm, “órfão”
Êxodo 22,21
Lamentações 5,3
hn"m'l.a;, ´almänâ, “viúva”
Gênesis 38,11
Lamentações 5,3
ywIle, lëwî, “levita”
Gênesis 29,34
2 Crônicas 35,11
db,[,, ±`ebed, “servo”, “escravo”
Gênesis 9,25
2 Crônicas 36,20
hm'a', ´ämâ, “serva”, “escrava”
Gênesis 21,10
Rute 3,9
!joq', qä†ön, “pequeno”, “insignificante”
Gênesis 1,166
2 Crônicas 34,30
Depois do alistamento dessas palavras, deve-se fazer uma pergunta: Por que as pessoas
nomeadas por essas palavras são denominadas de “Entes Silenciosos” nesta tese? Na
6 Deve-se destacar que a palavra !joq' nem sempre é usada para qualificar uma pessoa em contraste com outra
qualificada pela palavra ldoG" (“grande” [Gädöl]). Porém, a dupla !joq' e ldoG" é empregada, em Gênesis 1,16, para
fazer contrastes entre luminares criados pelo Criador – o “grande” aparece em primeiro lugar e foi criado para o
domínio do dia; o “menor” aparece em segundo lugar e fora criado para o domínio da noite. Além disso, há o
contraste no tamanho de cada um, mesmo que antes os dois tenham sido chamados de “os grande luminares”
[~yli_doG>h; troßaoM.h; / hammü´öröt haGGüdölîm].
18
dissertação de Mestrado, desenvolvida a partir de Deuteronômio 26,1-11, percebeu-se, na
confissão encontrada nesse texto, a declaração que o confessor deveria ser generoso com o
“estrangeiro” [rGe, Gër] e o “levita”. Na unidade seguinte, iniciada em 26,12, são apresentados
o levita, a viúva [hn"m'l.a;, ´almänâ], o estrangeiro [rGe, Gër] e o órfão [~wOty", yätôm] como
beneficiários de um tipo de dízimo, o dízimo do terceiro ano. Assim, surgiu o interesse em
pesquisar esse grupo de pessoas, membros da comunidade israelita, com o acréscimo das
palavras para designar o pobre [yni[', `änî; !wOyb.a,, ´ebyôn] e aqueles que estavam na condição
de escravidão [db,[,, ±`ebed; hm'a', ´ämâ].
Nessas duas unidades do Deuteronômio (26,1-11 e 26,12-19), notou-se que esses Entes
Silenciosos vivem à margem da comunidade, por um lado, quando são vistos da perspectiva
econômica, por sua condição de dependência de pessoas dentro da comunidade em que
vivem. Por outro lado, eles não estão à margem da comunidade porque a sua presença é
notada, forçando seus vizinhos a agirem para que eles não pratiquem um ato desumano contra
um membro em seu contexto, e, principalmente, impedindo que eles se esqueçam da bondade
do Deus de Israel que, ao longo de sua história, tem-lhes tratado com expressiva bondade.
Dessa perspectiva, tratar os Entes Silenciosos com favor é uma espécie de retribuição à sua
Divindade.
A denominação de “Ente Silencioso” ou “Entes Silenciosos” pode ser justificada da seguinte
maneira. O livro não fala diretamente a eles, mas se dirige àqueles que podem ser incluídos no
“tu” ou “vós” a quem o orador fala. O livro inteiro é constituído de discursos que formam o
diálogo entre o orador e o “tu” e o “vós”. Quem são estes que são tratados pelos pronomes
pessoais “tu” e “vós”? Pelo emprego dos pronomes pessoais “tu/vós”, ele é do sexo masculino
com idade suficiente para ser considerado de maior idade para agir com liberdade em favor
dos Entes Silenciosos e também tem capacidade de levar outros a fazerem o mesmo. Assim,
ele não somente é um homem livre, como também tem capacidade de influência. Dessa
forma, pode-se dizer que o “tu/vós” é líder de sua casa e também lidera o seu clã. Está dentro
de sua responsabilidade e capacidade agir para benefício de seu clã e daquele que é um Ente
Silencioso.7
7 Segundo Crüsemann, o “tu/vós” de Deuteronômio pode ser identificado com o “povo da terra” de Judá (1 Reis
11,14.18 [‘#r<a'’h' ~[;Û/`am hä´äºrec]), os quais “são os homens livres proprietários de terras em Judá” (2008, p.
299). Para ele, o Código Deuteronômico “tomou forma nas circunstâncias em que o`am hä´äºrec judaíta tinha
tomado o poder diretamente. A lei dá forma e legitimidade de fato a esta soberania popular” (p. 301). Weinfeld,
19
A estruturação do livro de Deuteronômio em cima de discursos dirigidos ao “tu/vós”
demonstra que o livro não foi direcionado a nenhum governante, como alguém que deva
atender o Ente Silencioso. Ele mirava o povo, “tu/vós, colocando seu foco no homem livre e
com condições de suprir as necessidades do Ente Silencioso. Ele fala ao “tu” ou ao “vós”
porque são estes que podem fazer a diferença. Ele fala ao indivíduo e, ao mesmo tempo, à
comunidade.
O livro fala da situação do Ente Silencioso ao “tu/vós” para que estes demonstrem empatia ao
sofrimento dele. O orador não fala diretamente ao Ente Silencioso, mas fala sobre ele a
outros. O sujeito de quem se fala, o Ente Silencioso, passa a ser o conteúdo do discurso do
orador ao “tu/vós”, mas ele mesmo não é o receptor da fala do orador. A razão para isso é que
esta pesquisa entenderá que, a partir do momento em que pessoa entra na classe de um Ente
Silencioso, ela passa a ser alguém dependente das ações beneficentes de outros. Portanto,
entrar na condição de um Ente Silencioso implica em cair na dependência de outros e, nesse
momento, ele passa a ser silente porque outro passa a falar por ele. Por isso, os outros,
“tu/vós”, estão em condições de ajudar àquele que chegam a ser compreendido como um Ente
Silencioso porque estão em situação muito melhor.
O terceiro motivo para esta pesquisa denominá-los de Entes Silenciosos é porque eles não
falam de sua condição de Entes Silenciosos, pois tal condição não precisa ser explicada nem
demonstrada. As pessoas que estão nesse estado falam através de sua própria situação, pois é
autoevidente. Já que os Entes Silenciosos não tem poder de ação, o orador fala a quem tem tal
poder para falar e agir pelos Entes Silenciosos.
O quarto motivo é que os Entes Silenciosos tratados em Deuteronômio não são elevados à
posição de perseguidos por causa de sua fé, sua opção política, ou mesmo por mera maldade
do perseguidor, como alguns salmos apresentam a condição do `änî e o ´ebyôn (apenas para
exemplo: Salmo 9,17-20;8 10,1-18
9; 12,5; 22,26; 35,10-17). Em Deuteronômio, eles são
pessoas comuns, vivem no meio de sua comunidade, e ela não pode negar o direito deles à
vida.
por sua vez, afirma que “embora em alguns casos o intercâmbio de tratamento singular e plural possa indicar a
existência de diferentes camadas, em geral, a alternância reflete variações estilísticas introduzidas pelo mesmo
autor” (1991, p. 16). Mitchell defende a tese que a presença do singular e plural dentro do livro de Deuteronômio
representa a diversidade de autoria dentro do livro (1899, p. 66, 73, 82, 83). 8 Aqui se deve atentar para o paralelo entre o ´ebyôn / `ánäwîm (9,18) e Dak [%D ;, 9,9.12; “oprimido, miserável”
(HHL-BW7). 9 Nesse salmo se vê o paralelo entre Dak, yätôm e `änî (10,2.12.14.17.18).
20
Em suma, eles são Entes Silenciosos porque eles não têm voz. Daí o orador, cujo conteúdo foi
registrado pelo redator em Deuteronômio, assumiu a posição de “voz dos Entes Silenciosos”.
Mas ao fazer isso, ele o faz com o intuito de que cada um dos que constituem o “tu/vós” a
quem ele se dirige seja também uma voz em favor dos Entes Silenciosos. Nos textos
relacionados a eles, há o orador que fala ao “tu/vós” sobre o “ele”, o Ente Silencioso. Essa
terceira pessoa passa a ser o conteúdo do discurso.
O quadro anterior mostrou que esta pesquisa não tratará apenas daqueles que são chamados
por algumas das palavras traduzidas por “pobre” nas versões em Português da BH, e que,
nessas linhas, as duas palavras que aparecem em Deuteronômio foram as palavras
apresentadas [yni[', `änî; !wOyb.a,, ´ebyôn]. A pesquisa tratará também sobre o estrangeiro [rGe,
Gër], o órfão [~wOty", yätôm], a viúva [hn"m'l.a;, ´almänâ], o servo [db,[,, ‘ebed], a serva [hm'a',
’amah], e até o levita [ywIle, lëwî]. Todos esses estão sob a temática dos Entes Silenciosos.
Entretanto, os Entes Silenciosos tratados nesta pesquisa são aqueles que estão dentro do livro
de Deuteronômio e em textos paralelos em outros livros da BH, particularmente do
Pentateuco.
A perspectiva da pobreza dentro do Deuteronômio é fundamental para o conceito de
generosidade. Pois, ao dar ao “pobre”, o “tu/vós” estava sendo generoso com o Deus de quem
ele já tinha recebido generosidade. Isso faz indissociável que a fé de Israel era fundamentada
na relação humana e divina sem precedentes nos outros lugares do mundo bíblico. Noutra
forma de dizer, a fé no Deus de Israel era demonstrada no profundo relacionamento do
homem com seu Deus.
Por se tratar do livro de Deuteronômio, menciona-se aqui que ele experimentou, através de
sua história, vários períodos redacionais.10
Aqueles, normalmente aceitos, variam, de modo
geral, em três ou quatro períodos, dependendo do autor a que se consulta.11
Ao longo deste
período que pode ir desde o século oitavo AEC até o tempo do sacerdote Esdras, no período
do pós-exílio, o escrito lida com assuntos relacionados com os Entes Silenciosos e também
com seus relacionamentos com seu próximo. E aqui, a palavra “próximo” é uma referência
10
Para mais detalhe sobre a questão redacional do livro de Deuteronômio, notar: NASCIMENTO & SANTOS,
2014, p. 23-38. 11
Para citar alguns, ver KRAMER, Pedro. Origem e legislação do Deuteronômio – programa de uma sociedade
sem empobrecidos. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 16-39. VON RAD, Gerhard. Deuteronomy, a commentary.
Philadelphia: The Westminster Press, 1966, p. 23-30. SANCHEZ, Edesio. Deuteronomio. Buenos aires: Kairos
Ediciones, 2002, p. 19-29.
21
àquele a quem o livro aponta – uma pessoa de seu relacionamento, alguém com quem se
convive dentro da comunidade, o qual pode ser um irmão, no sentido de um membro do clã,
ou irmão no sentido geral, um membro do povo de Israel.
No livro de Deuteronômio, encontra-se uma declaração que pode ser tida como relevante para
designar a questão dos Entes Silenciosos,12
ao menos de um grupo específico dentro desse
grupo. Essa se encontra em Deuteronômio 15,11: “Nunca deixará de haver pobres13
na terra; é
por isso que eu te ordeno: abre a mão em favor do teu irmão, do teu humilde e do teu pobre
em tua terra” (BJ). Tal afirmação demonstra a importância dos Entes Silenciosos para a
legislação do livro de Deuteronômio, e, também se pode dizer, da importância da legislação
deuteronômica para eles. Assim, há interação de interdependência14
de um para com outro. A
legislação a ser estabelecida coloca em relevo a condição pessoal de um grupo de pessoas
que, por sua condição socioeconômica vinha sendo desconsiderada pela comunidade ao seu
redor.
Por que trabalhar sobre os Entes Silenciosos em Deuteronômio? O tema não tem sido
abordado pela pesquisa bíblica na forma em que ele será tratado nesta pesquisa. Existe a tese
de doutorado de Schwantes sobre o pobre,15
onde ele trabalha as quatro palavras para “pobre”
dentro da BH: yni[', !wOyb.a,, vr', lD:, as quais são traduzidas em seu livro por
“encurvado/oprimido”, “pobre”, “pobre” e “fraco/pequeno/pouco”. Entretanto, sua pesquisa
se fixou nessas quatro palavras e como as pessoas por elas denominadas são tratadas na
Torah, nos Escritos e nos Profetas. O livro lançado em 2013 chama-se O direito dos pobres.
O livro é formado por quatro capítulos. O primeiro trata dos conceitos por trás das quatro
palavras alistadas no parágrafo acima (p. 19-58); o segundo busca entender os pobres dentro
dos escritos legais (p. 59-94); o terceiro, ao que parece, é o centro do trabalho do Prof. Milton
por duas razões: a primeira é que o capítulo ocupa a maior parte do livro (p. 95-250), e, a
segunda, é que ele trata dos pobres dentro da literatura profética, onde há maior número de
12
Esta pesquisa estudará vários vocábulos para designar diferentes pessoas ou grupos de pessoas como “Entes
Silenciosos”, entre os quais está o !wOyb.a, [’ebyôn], cuja tradução usual é a palavra “pobre”. Porém, esta pesquisa
expressa o entendimento que a palavra hebraica tem sentido mais abrangente que sua forma comum de tradução
com o vocábulo “pobre”. 13
Um grupo específico dentro do que esta pesquisa denomina de “Entes Silenciosos”. Mas a esse conjunto, esta
pesquisa mostrará que ela tem pelo menos mais dois outros grupos de Entes Silenciosos. 14
O livro trata das questões relacionadas aos Entes Silenciosos porque eles eram presentes naquele momento no
meio do povo de Israel, segundo o Deuteronômio. Por outro lado, ao ser escrito, o Deuteronômio buscou
beneficiar os Entes Silenciosos, não se esquecendo deles no meio do povo. Isso quer dizer que era uma presença
significativa para ser notada. 15
SCHWANTES, Milton. O direito dos pobres. São Leopoldo: Oikos; São Bernardo do Campo: Editeo, 2013.
22
livros e mais conteúdo para ser tratado; o quarto busca entender os pobres dentro da
perspectiva dos livros de sabedoria (p. 251-328).
A pesquisa desenvolvida nesta tese trabalha com o Deuteronômio e com àqueles que
pertencem às camadas frágeis da sociedade deuteronômica, e não somente com os que são
chamados de “pobre”. Cuidar do Ente Silencioso, dentro do Deuteronômio, é valorizar o
próprio Deus de Israel e também a si mesmo por obedecer às leis propostas para o seu bem.
Dessa perspectiva, busca-se demonstrar que Deuteronômio fora escrito, não somente com a
finalidade de estabelecer um pacto com o povo que estava diante da possibilidade16
de entrar
na Terra da Promessa, como de estabelecer leis que regulamentariam vários relacionamentos a
serem vivenciados dentro da terra. Entre os quais está o relacionamento com os Entes
Silenciosos.17
Pode-se, então, dizer que o Deuteronômio tem uma vertente que olha para os Entes
Silenciosos no meio do povo, e, para protegê-los, leis foram desenvolvidas com o fim de
estabelecer a convivência salutar entre os que tinham posses e os que não as tinham. A
legislação formada por essas leis mostra que eles, mesmo em condição financeira
desfavorável, eram participantes importantes na aliança de Israel com seu Deus e, como tal,
precisavam ser protegidos.
O livro de Deuteronômio fora escrito sobre diferentes eixos redacionais. Um deles é a
colocação de um bloco histórico para registrar a saída do povo do Egito até sua entrada na
Terra da Promessa. O outro eixo é a escrita da šüma` como motivação para a vida dentro da
comunidade. Outro eixo é a escrita de elementos relacionados a Moisés, nos capítulos finais
do Deuteronômio.
É possível notar também que há um eixo maior, relacionado a leis que serviriam para reger a
vida do povo em sua comunidade. Estas leis estão escritas dentro do bloco denominado de
“Código Deuteronômico” (Deuteronômio 12-16). Dentro desse bloco, há leis destinadas à
proteção dos Entes Silenciosos na terra. A vida em comunidade implicava em novos
16
Não se busca com esta afirmação estabelecer uma proposta de data para o livro. Isso é apenas uma afirmação
baseada no que está dito em Deuteronômio 1,1-4, o qual pressupõe o povo nas planícies de Moabe, antes de sua
entrada na Terra da Promessa. 17
Crüsemann declara que as partes mais importantes do Código Deuteronômico têm origem antes o Exílio,
“especialmente da sua postura linguística predominante, incluindo suas implicações teológicas: O Deuteronômio
pressupõe a posse tranquila da terra por Israel, bem como de sua liberdade, e isso de forma uniforme” (2008, p.
296).
23
relacionamentos. Então as leis não somente os protegeriam, mas estabeleceriam princípios de
relacionamento para vivência dentro da comunidade.
Haja vista que o Deuteronômio foi escrito incluindo a perspectiva dos Entes Silenciosos, esta
pesquisa buscará responder três perguntas a serem feitas ao livro. A primeira é aquela que
pergunta sobre a natureza dos Entes Silenciosos dentro da comunidade abordada pelo
Deuteronômio: Quem são os Entes Silenciosos dentro do livro? Aqui se buscará o
entendimento por meio das diferentes palavras empregadas para identificar os diferentes Entes
Silenciosos dentro do Israel Antigo. Nas análises textuais, em cada capítulo, serão
consideradas as circunstâncias que geraram seus desenvolvimentos e em que ambiente elas
vieram a nascer.
A segunda pergunta busca conhecer a legislação criada para estabelecer a proteção dos menos
favorecidos dentro da sociedade israelita coberta pelo livro. Por que o Deuteronômio tem
preocupação especial com tais Entes Silenciosos? Aqui se buscará descrever tais leis e
mostrar a necessidade e natureza delas, bem como o fim a que elas foram destinadas. Neste
ponto, a exegese seguirá a seguinte metodologia: tradução do texto hebraico para o português,
com análises sintáticas das frases constituintes do texto; a busca de estabelecimento do
contexto social que gerou aquele texto onde está a lei; e, por último, a análise do texto por
meio de exegese. Em cada capítulo destinado ao grupo específico de Entes Silenciosos serão
analisados os textos do Deuteronômio pertinentes à legislação que beneficie os respectivos
grupos. A literatura do Deuteronômio vai mostrar que os Entes Silenciosos não devem ser
uma preocupação apenas da liderança, mas de toda a sociedade. Eles passam a ser
apresentados como um problema de todos, não de alguns.
A estruturação desta tese em seus capítulos demonstrará que os Entes Silenciosos, em
Deuteronômio, estão divididos em três grupos. O primeiro é aquele que trata das pessoas
chamadas pelas palavras para “pobre” [yni[' / !wOyb.a,]; o segundo grupo consiste daqueles que
não tem herança no povo de Israel e que vivem como peregrinos [rGe, Gër / ~wOty", yätôm /
hn"m'l.a;, ´almänâ / ywIle, lëwî]; por último, há o grupo daqueles que não têm liberdade [db,[,,
‘ebed / hm'a', ’amah]. Mesmo que se possa colocar todos sob o “guarda-chuva” das palavras
para “pobre”, não é isso que o Deuteronômio faz. Dentro daqueles que pertencem às camadas
inferiores da comunidade, aqui denominados de “Entes Silenciosos”, o Deuteronômio
24
distingue entre os que são chamados de “pobre” (normalmente um homem e com alguma
propriedade), dos que são sem herança, e dos que são sem liberdade.
Sempre que necessário, em cada capítulo, a pesquisa fará comparação com o texto da
Septuaginta e com o Targum, como parte das respostas às questões levantadas, tendo como
propósito notar como tais palavras foram traduzidas para essas versões, e, a partir disso,
entender melhor o vocábulo hebraico. A comparação com estas versões tem como finalidade
mostrar como os tradutores entenderam o texto Hebraico, e se as traduções feitas por eles
cooperam com o entendimento do texto. Esta pesquisa reconhece que essas versões vieram
em tempos posteriores ao que é tratado pelo texto da BH. Entretanto, seus tradutores
estiveram mais bem posicionados na aproximação com a produção do texto da BH.
Deve-se considerar que Deuteronômio foi estruturado com discursos atribuídos a Moisés nas
planícies de Moabe, às vésperas da entrada do povo de Israel na Terra de Canaã. Esses
discursos são dirigidos ao “tu/vós” com quem o orador dialoga. Discursos são constituídos de
palavras. O titulo hebraico atribuído ao livro vem da primeira frase do Deuteronômio: “Estas
são as palavras”. Com isso, “o título judaico dá importante dica quanto ao caráter literário do
Deuteronômio” (CONSTABLE, 2015, p. 1).
Em Deuteronômio, o discurso é uma forma de diálogo em que o orador mantém proximidade
com os seus ouvintes. Dentro desses discursos narrativos é que o Deuteronômio vai tomando
sua forma, mostrando que a legislação deuteronômica se estabeleceu num contexto dialogal,
onde as leis, principalmente as casuísticas, foram dadas numa estrutura narrativa.18
Essas
histórias casuísticas ganhavam a memória da audiência pela forma como elas eram
apresentadas, pois tinham as condições necessárias para fazer parte da memória do povo e,
assim, poderem ser repetidas no contexto de vida de cada pessoa. Isso demonstrava a
sensibilidade do orador que, ao colocar a legislação dentro de uma estrutura narrativa,
buscava que o “tu/vós” guardasse e repartisse com outros que haviam ouvido. A legislação
não era apenas para os que sabiam ler. A legislação era para todo o povo de Israel.
18
Bartor, em seu artigo “Reading Biblical Law as Narrative”, mostra que a Lei como Narrativa deve ser vista
como uma história, pois para ele, “Lei é uma arena em que histórias humanas são apresentadas. Ela descreve
situações e eventos concretos e faz uso de pessoas reais em estabelecer normas obrigatórias e a formação de
políticas desejáveis” (2012, p. 292, 293). Bartor diz ainda que “A narrativa é um modo de pensamento, uma
ferramenta cognitiva que nos permite atribuir significado às ações e eventos, e, portanto, serve como um meio
mais importante para o reconhecimento do mundo, da humanidade, e da realidade humana” (2012, p. 299).
Sendo assim, ela fazia parte da cosmovisão do orador e do ouvinte, fazendo com que seu uso fosse um
instrumento de valor para o ensino e a aprendizagem, pois tanto o orador quanto seus ouvintes estavam dentro de
uma área comum de diálogo.
25
1. OS ENTES SILENCIOSOS NO LIVRO DE DEUTERONÔMIO: A
DISTRIBUIÇÃO DOS VOCÁBULOS
A literatura bíblica está construída a partir dos elementos que são disponíveis em seu tempo
de escrita com o fim de ser parte de seu tecido literário: o homem e Deus, homem e mulher,
rico e pobre, homem e natureza, paz e guerra, filho e filha, mãe e pai, amigo e inimigo, e
outros. Com o livro de Deuteronômio não é diferente. Seu eixo principal é Deus e o homem.
Porém, pode-se afirmar que a ênfase do livro é colocada sobre os relacionamentos humanos.
O livro inteiro foi escrito considerando este tripé: o orador, tu/vós e ele (ou eles, ela, elas).
Mas quando o foco é o homem, vários relacionamentos são percebidos. O tu/vós se relaciona
com ele (a) / eles (as): Deus, o próximo/irmão, bens, terra. Entre os relacionamentos homem-
homem está aquele que existe da comunidade do tu/vós com os que são envolvidos pela ideia
básica desta tese, os Entes Silenciosos.
O livro de Deuteronômio apresenta um grupo significativo de palavras para se referir a
diferentes pessoas dentro da condição de Ente Silencioso. Entretanto, isso não quer dizer que
o livro apresente todas as palavras usadas na BH para apontar uma pessoa nessa condição. A
razão para isso é que as palavras não empregadas no livro são palavras já contempladas, em
seus significados básicos, pelos vocábulos que o livro emprega. Por essa razão, deve-se
considerar a riqueza vocabular que fora empregada dentro desse livro para revelar o interesse
do orador/legislador19
com essa classe de pessoas dentro da sociedade israelita de então.
Dentro dos escritos legais, o Código da Aliança determina que o órfão e a viúva não sejam
sujeitos a opressão (Êxodo 22,21 [22]). Mas é o livro de Deuteronômio que concentra atenção
particular sobre aqueles que se encontram dentro de um limite social, de tal forma que podem
ser considerados fracos quando vistos da perspectiva econômica (RINGGREN, 1990, p. 480).
E, por isso, também são sem voz dentro da sociedade em que vivem, necessitando que outro
ou outros fale ou falem por eles.
Deuteronômio está interessado no homem israelita e nos seus múltiplos relacionamentos, e,
nalguns textos, o livro mostra interesse naqueles que são denominados Entes Silenciosos. São
eles: a viúva, o órfão, o estrangeiro, o escravo, a escrava, e, em certos casos, também o
19
No corpo da pesquisa se empregará os termos “legislador”, “redator” ou “orador” intercambiavelmente, por
entender que o livro é produto de várias atividades de redação.
26
levita.20
O livro tem “preocupação com a justiça social” (SCHNIEDEWIND, 2011, p. 134-3-
135). Essa justiça é feita, na perspectiva do Deuteronômio, pelo homem a seu
“irmão/próximo”.21
Além desses termos, o orador empregou outros vocábulos para referir-se a eles como sendo
“fracos”. Ele trata o Ente Silencioso com o sentido de necessitado, e também como Ente
Silencioso no sentido de oprimido ou humilhado. Essa riqueza de vocábulos mostrará a
criatividade da redação do próprio livro. Apesar de ele ser sem voz, daí a ideia de ele ser
silencioso, o mesmo Ente Silencioso, por sua vez, fala por meio da voz do orador, o qual sai
em seu interesse para lhe prover meios de proteção dentro do contexto em que vive,
enriquecendo, com isso, a legislação contida no livro de Deuteronômio em sua redação
canônica.22
Ao notar que as palavras relacionadas aos Entes Silenciosos aparecem nos três conjuntos
literários que compõem o livro (Deuteronômio 1-11, 12-26, 27-34),23
percebe-se, com isso,
que a preocupação com as pessoas desse grupo era uma constante ao longo do
desenvolvimento do livro.24
Esta pesquisa, porém, não está afirmando que todas as palavras
aparecem em cada bloco, mas que as palavras relacionadas aos Entes Silenciosos, no todo, ou
em parte delas, aparecem em cada um dos três conjuntos literários que formam o livro de
Deuteronômio.
Portanto, afirma-se que o propósito deste capítulo é o estudo dos vocábulos que compõem o
conjunto denominado de “Entes Silenciosos”, e que aparecem dentro do livro de
Deuteronômio. Aqui a pesquisa buscará suas ocorrências e significação dentro do livro, de
20
O livro de Deuteronômio desenvolve ou trata de assuntos que não foram abordados em códigos anteriores,
particularmente como aquele encontrado no código existente em Êxodo 19-23. 21
Estas duas palavras (irmão [xa' / ´äH] e próximo [[;re / rëa`]) são empregadas no Deuteronômio, nalguns
textos, para indicar o beneficiário das ações do tu/vós, e se referem a algum Ente Silencioso (Deuteronômio
1,16; 15,2.7). 22
Entende-se por redação canônica a forma em que o livro se encontra hoje na BH, a redação final do livro na
forma como ele chegou até hoje. 23
Essa divisão é baseada na própria constituição do livro que parece abordar conteúdos diferentes, mas bem
relacionados e estreitamente entrelaçados de forma a dar sentido único ao livro. 24
Há diferentes modos de dividir o livro de Deuteronômio de acordo com seu período redacional. Nesta pesquisa
é pressuposto que o livro seja dividido em três etapas redacionais, segundo o esboço por capítulos apresentado
neste parágrafo. Esta é apenas uma forma simples de dividir o livro. Mas esta pesquisa reconhece a
complexidade do assunto para se trabalhar aqui, cuja competência foge de seu alcance. Craig, em seu comentário
sobre o livro de Deuteronômio (1976, p. 67-69), divide o livro em seis partes: Introdução ao Deuteronômio (1,1-
5); O discurso de Moisés: Prólogo histórico (1,6-4,43); O discurso de Moisés: A Lei (4,44-26,19), subdividido
nos capítulos 5-11, denominados de “Os Mandamentos Básicos”, e nos capítulos 12-26 que trazem o que ele
chama de “Legislação Específica”; O discurso de Moisés: bênçãos e maldições (27,1-28,69); O discurso de
Moisés: ordens de conclusão (29,1-30,20); A continuidade da Aliança de Moisés a Josué (31,1-34,12).
27
modo a se perceber que este viés literário vem a tornar-se um eixo para o livro, sem o qual ele
apresentaria notória pobreza. Como centro deste capítulo está a questão: Quem são os Entes
Silenciosos segundo o livro de Deuteronômio?
O que essa pergunta busca responder tem a ver com os vocabulários empregados no livro para
falar dos Entes Silenciosos. Essa questão será respondida, em primeiro lugar, por apresentar
onde se encontram os diferentes vocábulos que ocorrem dentro do livro. Depois este capítulo
buscará entender a condição de cada Ente Silencioso ao qual cada palavra se refere. As
pessoas que são indicadas por aquelas palavras e em quais partes do livro elas aparecem,
seguindo a tríplice divisão de Deuteronômio, bem como quais são as palavras para designar
cada elemento que constitui aquela classe de pessoas.
O grupo dos Entes Silenciosos tem, em seus variados vocábulos, distribuição desigual dentro
do livro de Deuteronômio. Isso será apresentado por situar as palavras nos lugares em que
elas aparecem dentro do livro. Esta pesquisa apresentará as que se referem aos Entes
Silenciosos, seguindo a divisão geral do Deuteronômio em suas três partes constituintes,
mostrando nos subpontos seguintes onde estão tais palavras que foram empregadas para
designar cada um daqueles que são denominados nesta pesquisa pela nomenclatura de Entes
Silenciosos. 25
25
As aparições dos vocábulos serão apresentadas de acordo com a ordem de menção deles em cada uma das
divisões literárias de Deuteronômio. Por isso, esta pesquisa não seguirá uma ordem padrão para cada bloco
literário do livro. É pretensão colocar aqui todas as ocorrências de cada um dos vocábulos com o fim de trazer,
ao final do capítulo, as conclusões parciais relativas a essas palavras de acordo com suas aparições dentro do
livro.
28
1.1. A distribuição das palavras
Vocábulos Deuteronômio 1-11 Deuteronômio 12-26 Deuteronômio 27-34
!wOyb.a,, ´ebyôn 15,4.7.9.11; 24,14
yni[', `änî 15,11; 24,12.14.15
rGE, Gër 1,16; 5,14;
10,18.19
14,21.29; 16,11.14;
23,8; 24,14.19.20.21;
26,11.12.13
27,19; 28,43; 31,12
hn"+m'l.a;,
´almänâ
10,18 14.29; 16,11.14;
24,19.20.21; 26,12.13
27,19
~Atßy",, yätôm 10,18 14.29; 16,11.14;
24,19.20.21; 26,12.13
27,19
ywIle, lëwî 12,12.18.19;
14,27.28.29; 16,11.14;
18,1.6.7; 21,5;
26,11.12.13
27,9.14; 31,9.24
db,[,,`ebed 12,12.18; 15,15.17;
16,11.14; 23,16; 24,22
hm'a', ´ämâ 12,12.18; 15,17;
16,11.14
!joÝq', qä†ön 1,17
29
1.1.1. Deuteronômio 1 a 11
Dentro desse bloco literário do livro de Deuteronômio há a aparição de “estrangeiro” (1,16;
5,14; 10,18.19 [rGe, Gër]), “pequeno” (1,17 [!joÝq', qä†ön]),26
“órfão” (10,18 [~Atßy", yätôm]),
“viúva” (10,18 [hn"+m'l.a;, ´almänâ]), “servo, escravo” [db,[,,`ebed], e “serva, escrava” [hm'a',
´ämâ]. Nessa primeira unidade literária do livro encontra-se a palavra !joÝq' (qä†ön). Ela tem
apenas essa ocorrência em todo o livro de Deuteronômio para designar um Ente Silencioso.27
1.1.2. Deuteronômio 12 a 26
Na segunda parte do livro, a qual é formada por aquele bloco de literatura que é chamado de
“Código Deuteronômico”, a primeira palavra encontrada é “levita” [ywIle, lëwî].28 Ela não
apareceu na primeira divisão do livro como também as palavras traduzidas por “pobre”.
Depois vem: “estrangeiro” [rGe, Gër], “órfão” [~Atßy", yätôm], “viúva” [hn"+m'l.a;, ´almänâ],
“pobre/necessitado” [!wOyb.a,, ´ebyôn], “pobre/aflito” [yni[', `änî],29 “servo/escravo” [db,[,],
“serva/escrava” [hm'a', ´ämâ].
1.1.3. Deuteronômio 27 a 34
O terceiro bloco literário do livro de Deuteronômio é aquele que apresenta poucas palavras
para se referir aos Entes Silenciosos. A razão para isso está na própria natureza do conteúdo
dessa seção. Ela se constitui das palavras de despedida de Moisés e, nessas, duas grandes
declamações poéticas – um cântico de Moisés e a bênção mosaica final (Deuteronômio 32 e
33), bem como da narrativa de sua morte (34). Assim, as palavras e suas aparições são:
26
Nesse versículo, a palavra “pequeno” faz contraste com a palavra “grande”. É notório que o assunto abordado
aqui está relacionando ao problema do poder econômico e a força que o “grande” poderia exercer para interferir
em um julgamento justo para os dois lados da questão, principalmente porque o que está sendo proibido é a
parcialidade do julgamento na justiça para beneficiar o “grande” ou o “poderoso” em detrimento dos direitos
daquele que é considerado “pequeno”. 27
Uma análise de textos paralelos para identificar o “pequeno” está presente no capítulo 2. Nesse capítulo, será
mostrado o relacionamento de qä†ön com o conjunto de palavras relacionado ao “pobre”, ´ebyôn/`änî. 28
A forma hebraica do substantivo traduzido por “Levi” e “levita” é a mesma [ywIle]. O contexto é quem vai
determinar a diferença para a tradução. Assim, em determinado contexto a palavra pode designar o filho de Jacó
que deu origem à tribo de Levi, noutro contexto ela apontará para um membro daquela tribo. Isso é apenas para
destacar dois exemplos. 29
Tanto a palavra !wOyb.a, quanto a yni[' concentram suas ocorrências em dois capítulos do livro de Deuteronômio,
capítulos 15 e 24.
30
“levita” (27,9.14; 31,9.24 [ywIle]); “estrangeiro” (27,19; 28,43; 31,12 [rGe]);30 “órfão” (27, 19
[~Atßy"]); “viúva” (27,19 [hn"+m'l.a;]).
1.1.4. Observações da distribuição das palavras
Dessa distribuição das palavras pelo livro de Deuteronômio, algumas observações são
apresentadas. A primeira é que não somente as referências estão concentradas em sua maior
parte no bloco denominado de Código Deuteronômico (Deuteronômio 12-26), como também
nesse bloco há o aparecimento de novas palavras para se dirigir aos Entes Silenciosos, tais
como ywIle, !wOyb.a,, yni[', db,[, e hm'a'. Deve-se mencionar que nos capítulos 1 a 11 aparece a
palavra !joq' para apontar um Ente Silencioso, sendo aquela uma forma de demonstrar que o
Ente Silencioso é socialmente diferente do ldoG" (“grande”). A palavra !joq' não aparecerá mais
dentro do livro para se referir a um Ente Silencioso.
A segunda observação é que as palavras rGe, ~Aty", e hn"m'l.a; (Deuteronômio 10,18;
24,19.20.21; 27,19) aparecem dentro do livro em conjunto como beneficiários da mesma
ordenança. Neste sentido, o que se pode notar é que os três pertencem ao mesmo grupo de
peregrinos dentro do povo de Israel.
A terceira observação aponta que há lugares em que ywIle é acrescentado ao conjunto rGe, ~Aty",
e hn"m'l.a; (Deuteronômio 14,29; 16,11.14; 26,12.13). A razão para isso está não somente em
que eles sofriam das mesmas necessidades, mas também porque apresentavam as mesmas
fragilidades. Eles eram os mais susceptíveis à opressão e não apresentavam um defensor
capaz de servir de obstáculo entre um possível opressor e eles. Pode ser possível que parte das
viúvas e órfãos era estrangeira e que o levita, por não possuir herança entre o povo, e assim
não ter residência fixa, poderia ser considerado como um tipo especial de estrangeiro devido à
sua condição de levita.
30
Em Deuteronômio (15,3; 17,15; 23,21 29,21) há outra palavra para “estrangeiro”, a palavra yrIk.n" (nokrî). Esse
é o estrangeiro que não vive entre o povo, e, portanto, não depende daquele povo, ou nação, para sua
sobrevivência. Em Deuteronômio 31,16 é encontrada a construção “ deus de terra estrangeira” (de onde vem este
tipo de estrangeiro, o yrIk.n") e “deus estrangeiro” em 32,12 (BJ). Nos dois versículos (31,16; 32,12), a palavra é
rk'nE (nëkär), a qual se entende por “aquilo que é estrangeiro” ou mesmo estranho por não ser natural daquele
lugar (WILSON, 1980, p. 579).
31
Entretanto, o livro de Deuteronômio distingue entre o rGe e os outros dois [~Aty" e hn"m'l.a;],
deixando esses na condição de nativos. Como o rGe era um estrangeiro que decidiu viver no
meio de Israel, ele havia se adaptado ao povo e, exceto por sua origem, era também
considerado um do povo, podendo até ir à justiça contra um “grande” (Deuteronômio
1,16.17). Tal favor da legislação deuteronômica não era concedida a um yrIk.n" (nokrî).
A quarta observação é que a palavra que mais ocorre nos três blocos literários constituintes do
livro de Deuteronômio é rGE (estrangeiro). A primeira razão para isso é que desde a chamada
de Abraão (Gênesis 12) até a entrada de Israel na Terra da Promessa, o povo havia sido
estrangeiro em peregrinação por terras alheias, e, por isso, conhecia bem o que era ser
estrangeiro em terra alheia. Assim, ele deveria tratar bem o estrangeiro que andasse por suas
terras (Deuteronômio 10,19; ver também Êxodo 22,21). A outra razão é que a terra pertence
ao Deus de Israel (Êxodo 19,5) e o sentimento que o povo deveria possuir era aquele de ser
estrangeiro, numa terra que não lhe pertencia (Levítico 25,23), e que lhe havia sido dada em
concessão. Ele deveria ser tomado por um sentimento contínuo de alguém que, mesmo
possuindo uma propriedade na Terra da Promessa, ainda devia se sentir como estrangeiro,
pois a Terra pertencia, em última análise, ao Deus de Israel (Levítico 25,23).31
Além disso, deve-se recordar que o povo de Israel havia por muito tempo sido estrangeiro
entre outros povos. Os estrangeiros em seu meio seriam um teste para ver se o povo agiria
com bondade, como aquela com que o Deus de Israel o havia tratado todo o tempo durante
sua peregrinação por terras estrangeiras. O detalhe aqui está em que o padrão de tratamento
não é aquele dado pelos povos a Israel no meio de quem ele viveu, mas o tratamento do Deus
de Israel para seu povo, enquanto peregrino em outras terras.
Entretanto, mesmo que não seja declarado pelo texto de Deuteronômio, é possível apontar
mais uma razão para maior incidência da palavra rGe. O deslocamento de pessoas entre as
nações que gerava o rGe era motivado basicamente pela guerra, fome e praga.32
Essas pessoas
31
Os filhos de Israel são chamados nesse texto de “peregrinos” [~yrIgE / gërîm] e “estrangeiros” [~ybiv'AT /
tôšäbîm]. 32
A fome foi o que motivou a ida de Jacó e seu clã para o Egito (Gênesis 46). Abraão (Gênesis 12) e Isaque
(Gênesis 26) também experimentaram seus momentos de estrangeiros em terra alheia. Na realidade, esses
patriarcas nunca tiveram uma terra em que eles pudessem considerar como sua e assim se tornarem habitantes
nativos dela. Entretanto, Abraão se autodenomina de “um estrangeiro e um residente” [bv'Atw>-rGE ] em Gênesis
23,4 (BJ), diante dos filhos de Het, por ocasião do sepultamento de Sara. Ele é um “estrangeiro” [rGE] porque ele
não possui propriedades naquela terra, nem para sepultar sua mulher. Schökel (1997, p. 700) coloca bv'At como
32
estavam empobrecidas pelas perdas de tudo que possuíam, necessitando de serem sustentadas
por aqueles que as acolhiam, e que tinham com que ajudá-las.
A quinta observação sobre as ocorrências das palavras nos quadros comparativos é que as que
foram empregadas para designar os Entes Silenciosos serão divididas em três grupos gerais. O
primeiro é aquele que se compõe dos Entes Silenciosos que são denominados de “pobres”.
Dentro do livro de Deuteronômio, duas palavras estão relacionadas a esse grupo: !wOyb.a, e yni['.
Mas está incluído aquele que é chamado de !joÝq', em Deuteronômio 1,17. Mais adiante serão
demonstradas as bases para esta associação de !joq' ao !wOyb.a, e yni[', e ainda a associação delas
com a palavra lD;, outra palavra para “pobre”.
O segundo grupo é aquele constituído por aqueles que podem ser considerados “peregrinos”
dentro de Israel: rGe, ~Aty", hn"m'l.a; e ywIle. Eles aparecem juntos, quase que comumente, dentro
do livro de Deuteronômio, mesmo que às vezes o conjunto das referências ou tenha o grupo
inteiro ou uma parte dele. Por causa disso, são colocados juntos no seu desenvolvimento, e
serão tratados num capítulo separado dos Entes Silenciosos envolvidos pelas palavras para
“pobre” e as que designam o “escravo” e a “escrava”. Mas isso quer dizer que eles não eram
considerados “pobres”? Mais adiante, será respondida essa questão. Deve-se apontar ainda
que esses Entes Silenciosos poderiam ou não desfrutar da proteção de um clã.
O último grupo tem aquelas palavras que apontavam para os que gozavam da proteção de um
clã. Essa proteção se dava, principalmente, porque protegê-los era também uma proteção ao
patrimônio do clã. Esse grupo se constituía daqueles abraçados pelas palavras db,[, e hm'a', o
“escravo” e a “escrava”. Mesmo que esses não tivessem aquela liberdade que os outros Entes
Silenciosos possuíam de forma relativa, eles tinham outras vantagens por pertencerem ao
patrimônio do clã, tais como: proteção, alimentação ou mesmo o trabalho compulsório. Se
houvessem de servir a um senhor generoso, no dia de sua saída teriam presentes para o
recomeço da vida, no caso do israelita que havia se vendido como escravo para um clã.
Por último, tem-se que notar que os capítulos seguintes terão esta ordem: primeiro, o capítulo
que tratará dos Entes Silenciosos que estão envolvidos pelas palavras para “pobre”; depois
seguirá aqueles que aparecem agrupados e formam um conjunto – a viúva, o órfão, o
sinônimo de rGE. Já o verbo “peregrinar” [rWG] é atribuído tanto a Abraão (Gênesis 12,7; 21,1.23.34) como aos
irmãos de José em sua ida para o Egito (Gênesis 47,4).
33
estrangeiro e o levita; por fim, o capítulo que tratará dos Entes Silenciosos que estão sujeitos à
servidão.
1.2. Entes Silenciosos falantes?
Numa leitura simples do Deuteronômio se notará que há palavras que são colocadas nos
lábios dos Entes Silenciosos. Deve-se levantar a questão se os Entes Silenciosos, em algum
momento do texto do Deuteronômio, quebram o seu silêncio e expressam alguma palavra e
em que situação isso ocorre. Será que eles não são tão silenciosos quanto se espera que sejam,
segundo a temática desta tese?
O procedimento para o desenvolvimento neste ponto é seguir a ordem de aparição dos Entes
Silenciosos que “falam” dentro do livro de Deuteronômio. É certo que eles “falam”. Porém,
nem todos o fazem. Além do mais, nota-se que as falas dizem respeito àquilo que o redator do
livro apontou como fala que eles teriam ou que deveriam falar em momentos específicos.
Dessa maneira, tem-se aqui um estrato daquilo que, eventualmente, teria sido dito por eles em
determinadas circunstâncias. Isso não quer dizer que eles fossem permanentemente
silenciosos em todas as circunstâncias de suas vidas. Quer dizer apenas que suas falas
apresentadas no texto são escritas em forma resumida do que eles deveriam dizer nos
contextos que exigissem suas palavras. Na realidade, pode-se dizer que as falas eram fórmulas
que deviam ser decoradas para serem ditas nos devidos contextos estabelecidos pelo redator
do livro.
1.2.1. O ywIle, lëwî, e a fala do redator para ele
1.2.1.1. O lëwî fala para abençoar
Os levitas são os Entes Silenciosos que mais “falam” em Deuteronômio. O motivo básico
para essa posição de “mais falante” está na função que eles desempenhavam dentro de Israel.
Eles eram membros da tribo sacerdotal e, como tal, eram os que detinham conhecimento para
instrução do povo.
34
A primeira ocorrência de uma fala do lëwî aparece em Deuteronômio 10,8. O texto citado
diz:33
“Neste tempo, o Deus de Israel separou a tribo de Levi para carregar a arca da aliança
do Deus de Israel, para permanecer diante do Deus de Israel para servi-lo e para abençoar em
seu nome até este dia”.34
Essa segunda subdivisão do propósito de a tribo de Levi permanecer
diante do Deus de Israel, mostra uma fala pública, quando os peregrinos eram abençoados nos
fins das festas anuais, ou depois de uma visita particular para o cumprimento de algum voto
feito pelo peregrino.35
A bênção apresentada em Números 6,22-27 é a que devia ser invocada sobre os peregrinos
como forma de perpetuar o nome do Deus de Israel sobre seu povo como meio de bênção
(6,27). Mas também funcionava pedagogicamente para ensinar ao povo quem era o Deus a
quem ele deveria servir. Assim, a repetição dessa bênção nas festas imprimia sobre a mente
do povo o senso de devoção, ensinando ao povo quem era o Deus de Israel. Para os peregrinos
e seus filhos, a bênção era o momento de recepção da esperança, enquanto aguardavam o
período que se seguia viria com o sucesso desejado para seus empreendimentos.
Deuteronômio 10,8 não é o único lugar, no livro, onde lëwî é chamado para abençoar como
parte de sua ministração ao povo de Israel. Deuteronômio 21,5 coloca a bênção como parte do
ministério dos “sacerdotes, filhos de Levi” dentro de um contexto judicial, onde se especula
33 `hZ<)h; ~AYðh; d[;Þ Amêv.Bi %rEåb'l.W ‘Atr>v")l. hw"Ühy> ynE“p.li •dmo[]l; hw"+hy>-tyrIB. !Aråa]-ta, tafeÞl' ywIëLeh; jb,veä-ta, ‘hw"hy> lyDIÛb.hi awhiªh; t[eäB'8 /
8Bä`ët hahiw´ hibDîl yhwh(´ädönäy) ´et-šëºbe† hallëwî läSë´t ´et-´árôn Bürît-
yhwh(´ädönäy) la`ámöd lipnê yhwh(´ädönäy) lüšä|rtô ûlübärëk Bišmô `ad hayyôm hazzè. 34
Esse versículo faz parte das memórias do Monte Sinai, por ocasião da entrega dos Dez Mandamentos, na
segunda vez, depois de Moisés ter quebrado as primeiras tábuas. O versículo é construído com um verbo que
mostra que o Deus de Israel separou a tribo de Levi com dois propósitos, sendo que o segundo propósito pode
ser dividido em dois outros. Assim, o Deus de Israel “separou a tribo de Levi” com o fim de conduzir a arca da
aliança e permanecer diante de Deus no santuário central. Como carregar a arca relembra as peregrinações no
deserto, então o santuário central aqui relembra o tabernáculo móvel no deserto. Essa permanência no serviço a
Deus no tabernáculo tinha dois objetivos – ministrar e abençoar. Todos os verbos que apontam para esses
propósitos e suas subdivisões são infinitivos construtos nascidos do ideal divino de separação da tribo de Levi. O
Deus de Israel “separou” [lyDIÛb.hi / hibDîl] das outras tribos a tribo de Levi para “carregar” [tafeÞl' / läSë´t] e
“para permanecer” [dmo[]l; / la`ámöd]. Esse permanecer diante do Deus de Israel mirava dois objetivos
derivados. O primeiro é que essa permanência deveria servir “para ministrar/servir” [ ‘Atr>v")l. / lüšä|rtô] ao próprio
Deus de Israel, numa referencia aos ritos diários. O segundo tem haver com a questão da fala. A tribo de Levi
estava diante do Deus de Israel “para abençoar” [%rEåb'l. / lübärëk]. O salmo 133 aponta que a bênção divina
estava sobre o Monte Sião, onde estava o Templo com a arca da aliança. O salmo 128 diz que é de Sião que
Deus abençoa (ver Salmo 134, onde a mesma ideia é repetida). Mas como ele abençoa? Ele abençoe por meio
das palavras de bênção vindas dos lábios de Levi – sejam sacerdotes, sejam levitas. As bênçãos miravam a
colocação do Nome do Deus de Israel sobre seu povo e, com isso, alcançar proteção e prosperidade. Balaão
entendeu isso ao dizer para Balaque, rei de Moabe, que Israel era povo abençoado e, como ele não podia revogar
a bênção divina, ele também não poderia amaldiçoar Israel (Números 23,20). 35
A confissão presente em Deuteronômio 26,1-11 pressupõe que o confessor, ao iniciar seu retorno para casa,
recebesse a bênção. Corrobora com isso a bênção de Eli sobre Ana em 1 Samuel 1,17 e 2,20.
35
sobre quem matou uma pessoa encontrada morta, mas sem saber quem a matou, com a ideia
de que o criminoso procedeu da cidade mais próxima. Entretanto, os anciãos daquela cidade,
alegando inocência, convocam os sacerdotes para dar seu parecer e livrar aquela cidade das
penalidades impostas sobre quem matasse alguém. Ao pronunciar a bênção, os “sacerdotes,
filhos de Levi” imprimiam sobre aquela cidade a libertação da culpa (ou possibilidade dela),
causando a sensação de paz vinda do Deus de Israel.
Dentro desse contexto é afirmado que os “sacerdotes, filhos de Levi”, foram escolhidos “para
ministrar e para abençoar no nome do Deus de Israel”.36
Como parte da bênção e de seu
serviço ao Deus de Israel, e como seus representantes que abençoam em seu Nome, está a
decisão sobre a demanda na questão do morto de quem não se conhece seu assassino nem a
sua procedência. A declaração de inocência é bênção declarada no Nome do Deus de Israel,
pois traz alívio sobre as cidades inocentes.
Finalmente, Deuteronômio 27,12 afirma que a tribo de Levi deve abençoar. Mas aqui, o texto
é aquele que trata da bênção a ser pronunciada sobre o Monte Gerizim, depois de o povo
haver entrado na Terra da Promessa. Entretanto, nesse texto, a tribo de Levi está junto com
outras cinco tribos que pronunciariam a bênção enquanto outras seis pronunciariam a
maldição.
1.2.1.2. O lëwî fala para amaldiçoar
Paradoxalmente, cabia a lëwî também amaldiçoar. Depois de dizer que um grupo de tribos
iria abençoar sobre o Monte Gerizim, o redator afirma que lëwî deveria amaldiçoar.
Deuteronômio 27,14-26 coloca uma fala que deveria ser dita em voz alta. Do versículo 15 -26
se encontra essa fala de maldição, com todas as frases começando com o verbo no infinitivo
absoluto, “amaldiçoar” [rWra' / ´ärûr].
A palavra de maldição era proferida pelo resultado do comportamento do povo ou de um
membro daquele grupo de pessoas. Amaldiçoar era colocar fora da proteção do Deus de Israel
aquele sobre quem a maldição era colocada. Portanto, era uma palavra de exclusão da
36
hw"+hy> ~veäB. %rEßb'l.W Atêr>v"ål. / lüšäºrtô ûlübärëk Büšëm yhwh (´ädönäy). Apenas para notar, observa-se que
os verbos infinitivos construtos encontram-se também em 10,8. Eles demonstram os objetivos a serem
alcançados por meio da ação do verbo finito.
36
comunidade da bênção, o povo de Israel.37
Enquanto que a bênção trazia a indicação de
sucesso e união na família, a maldição era desagregadora e implicava em fracasso. Era o
extremo oposto da bênção.
Para a cidade que, eventualmente, fosse acusada de acobertamento do assassino, a maldição,
pela cumplicidade no assassinato, a maldição lhe era imposta por cumplicidade. Segundo
Motyer (l983, p. 987-988), há três colocações quando a maldição procede de Deus. A
primeira é que a palavra de maldição é também uma palavra “de denúncia contra o pecado”
(Deuteronômio 29,19.20; Números 5,21.23). A segunda mostra que, com a maldição, Deus
está julgando o pecado (Números 5,22.24.27; Josué 24,6). Finalmente, quando a pessoa está
sofrendo as consequências de seu pecado é considerada uma maldição porque Deus a julgou,
(Números 5,21.27).
Ao deixar com o lëwî o dever de amaldiçoar, o orador deixava com aqueles que teriam,
dentro de Israel, a capacidade para decidir quando pronunciar a maldição sobre o culpado
somente quando houvesse convicção da culpa da cidade ou de alguém. Essa palavra viria
como resposta à investigação realizada.
1.2.1.3. Os sacerdotes levitas “falam”
Mesmo que os sacerdotes levitas não pertençam ao grupo próprio de levitas chamados de
Entes Silenciosos, porque eles não se apresentam como aqueles que estão entre aqueles que
têm necessidades econômicas. Mesmo assim, deve-se acrescentar aqui que, em Deuteronômio
27,9 os sacerdotes levitas falam. Essa fala, porém, é prioritariamente de Moisés. O texto38
diz:
“E falou Moisés e os sacerdotes para todo o povo de Israel com o fim de dizer”.39
O verbo
“falar”, no singular “e falou”, coloca ênfase na fala sobre Moisés. Assim, o texto quer
comunicar que a fala é de Moisés, mas com a repetição desta mesma fala para o povo por
meio dos sacerdotes.
37
Para consulta a maiores detalhes sobre a questão da palavra de maldição, notar a pesquisa de Pedro E. C.
Santos, A Presença de Deus em Gênesis e Êxodo, 19-20. 38 rmo=ale laeÞr"f.yI-lK' la,î ~YIëwIl.h; ~ynIåh]Koh;w> ‘hv,mo rBEÜd:y>w: 9
/ wayüdaBBër möšè wühaKKöhánîm halüwiyyìm
´el Kol-yiSrä´ël lë´mör. 39
O infinitivo construto é traduzido aqui como infinitivo de propósito. Assim, a tradução comum “dizendo”
oculta a ideia que a construção quer comunicar o propósito da fala que é apresentar um conteúdo. A preposição
prefixa l aponta para uma direção ou um fim. Entretanto, esta construção hebraica [rmoale] pode ser
simplesmente colocada na tradução como dois pontos (:).
37
Então Moisés fala aos sacerdotes levitas o que eles deveriam falar para o povo em obediência
à ordenança de Moisés. O conteúdo dessa fala está em Deuteronômio 27,9.10 – ao entrar em
aliança com seu Deus, Israel passaria ser o povo desse Deus e, assim, deveria obedecer
atentamente as palavras da Lei divina.
1.2.2. O db,[,, `ebed (e a hm'a', ´ämâ)
O segundo Ente Silencioso a ter uma “fala” em Deuteronômio é o `ebed. Qual `ebed “fala”?
O `ebed que “fala” é aquele que é israelita e que se vendeu como escravo e está perto de ser
liberto no Ano do Cancelamento de Dívidas (Deuteronômio 15,16.17). É o `ebed que,
voluntariamente, tomou a decisão de se vender à escravidão na casa de outro israelita com
condições de comprá-lo por um tempo e, provavelmente, com recursos para assumir e pagar
as dívidas adquiridas pelo escravo (ou escrava) temporário. É um `ebed especial por se tratar
de um membro do povo de Israel, não de um `ebed comprado de outros povos.
As suas palavras são uma declaração que ele não quer deixar o clã daquele senhor:40
“E
acontecerá que ele te dirá: ‘Não sairei de contigo’”.41
Essas palavras, colocadas na boca do
`ebed, deveriam ser declaradas também diante de um tribunal, para que fosse oficializada a
possessão perpetua do `ebed pelo clã a quem ele servia.
A marca dessa perpetuidade era colocada na orelha do `ebed, por meio de um furo. No
Código da Aliança (Êxodo 20,22-23,19) nada é dito sobre a ´ämâ que também quer ficar para
sempre com seu senhor (ou com a sua senhora). Mas Deuteronômio acrescenta essa
possibilidade (15,12.17c), não dada a ´ämâ naquele Código, mas colocada em
Deuteronômio, indicando um desenvolvimento posterior ao Código da Aliança, com o fim de
atender ao desejo dela. De qualquer forma, preferir à escravidão perpétua em lugar da
liberdade aponta para uma de duas direções – ou o ambiente com aquele clã apresentava as
40 Deuteronômio 15,16a [%M"+[ime aceÞae al{ï ^yl,êae rm:åayO-yKi( ‘hy"h'w> / wühäyâ Kî|-yö´mar ´ëlʺkä lö´ ´ëcë´
më`immäk]. A declaração do teu irmão `ebed pode ser assim colocada: “Não saio de tua companhia”, com o fim
de demonstrar uma ideia presente, no momento em que o senhor do `ebed iria colocá-lo em liberdade. Nesse
momento, ele declararia sua preferência e decisão definitiva. Por isso, tal decisão deveria ser bem pensada
porque ela não teria volta. 41
No Código da Aliança (Êxodo 20,22-23,19), a declaração do escravo hebreu que quer ficar para sempre com
seu senhor é mais completa em 21,5: “Eu amo meu senhor, minha mulher e meus filhos, não quero ficar livre”
(BJ).
38
condições superiores as da liberdade, ou o contexto de liberdade seria assaz difícil para o
recomeço, levando o `ebed /´ämâ a preferir a vida de escravo.
Há um detalhe significativo que deve ser visto na decisão do “teu irmão hebreu ou hebreia”42
em ficar permanentemente com seu senhor ou sua senhora – a liberdade de escolha. A
possibilidade de liberdade, e com ganho, está diante deles, pois eles não deveriam ser
despedidos de mãos vazias (Deuteronômio 15,13.14). Mas escolhem ficar, mesmo sabendo
que, depois dos procedimentos legais e da marca de orelha estabelecida, eles não têm mais a
escolha de retornar à condição anterior.
1.2.3. O yni[', `änî, e o !wOyb.a,, ´ebyôn
1.2.3.1. O clamor do `änî e do ´ebyôn
Deuteronômio 24,15 fala do clamor do “pobre”. Nesse capítulo, as duas palavras são
empregadas para “pobre” [`änî e ´ebyôn]. No versículo anterior há um problema entre um
trabalhador “pobre e necessitado” [`änî e ´ebyôn] e seu empregador – esse não o pagou por
seus serviços. O texto sugere que, mesmo diante dos apelos do trabalhador, o empregador não
efetua o pagamento daquela diária. O que lhe resta é clamar. O texto diz que o pagamento
deve ser feito para que o trabalhador “não comece43
a clamar [ar"Ûq.yI-al{)w> / wülö|́ -yiqrä´] ao
Deus de Israel”.
O verbo “clamar” sugere um grito de invocação de Deus para que ele aja em seu favor,
julgando a sua causa. O Deus de Israel é invocado como juiz. Neste julgamento se verá que o
empregador está fazendo injustiça. E, por isso, o texto diz que se achará pecado (injustiça)
naquele empregador (24,15). O clamor a Deus é resultante de situação extrema, onde o
diálogo homem-homem não existe, ou se tornou impossível. Nesse momento extremo, o
homem `änî e ´ebyôn tem apenas o “ouvido” divino com quem dialogar – o do Deus de Israel.
Assim, esse trabalhador, vendo que não tinha atenção por parte de seu empregador, e estando
42
Deuteronômio 15,12 [hY"ërIb.[ih'( Aa… yrIªb.[ih'( ^yxiäa' /´äHîºkä hä|`ibrî ´ô hä|`ibriyyâ]. Eles são da mesma raça,
mas o que os diferencia aqui é a condição social. É uma palavra que aponta para a origem comum. Eles
descendem de Abraão que também foi chamado de yrIªb.[ih'(, “o hebreu” (Gênesis 14,13). 43
Pressupõe-se que, depois de as tentativas de apelo do `änî /´ebyôn serem recusadas pelo seu interlocutor, ele
passa a entender que ele precisa começar a falar com um interlocutor que vai lhe ouvir. Assim, ele começa a
clamar ao Deus de Israel.
39
sob o domínio do opressor, exerce sua fé e fala com Deus, pois estabelece a confiança que ele
o ouvirá e resolverá seu problema.
1.2.3.2. A bênção do `änî
A outra “fala” do “pobre” é a fala para abençoar. Aqui a palavra para “pobre” é `änî
(Deuteronômio 24,12). O empréstimo que o `änî fizera tinha como garantia um penhor que
lhe servia de proteção durante a noite. Esse penhor deveria ser devolvido no fim da tarde para
que o `änî tivesse proteção durante a noite. Se aquele que fizera o empréstimo procedesse
assim, Deuteronômio 24,13 diz que ele seria abençoado pelo `änî. Provavelmente, a bênção
será a invocação do Deus de Israel para que abençoasse aquele que está devolvendo o penhor.
Dessa forma, o “pobre” invoca Deus tanto para clamar por justiça, quanto para pedir bênção
sobre aquele que age em bondade com o necessitado.44
A boca que grita também invoca a
bênção divina.
1.2.4. Algumas observações
O que se pode notar por meio dessas “falas”? Primeiro, o inter-relacionamento não é completo
porque eles não falam entre si (os Entes Silenciosos). Não há diálogos entre eles,
principalmente entre aqueles pertencentes ao mesmo grupo de Entes Silenciosos. Em todas as
falas, eles se expressam por meio da declaração do orador quanto ao conteúdo que eles
deviam proferir. De certa forma, eles continuam silentes porque suas falas não são
espontâneas, tais como a daquelas que vêm como conteúdo de uma declaração como “e
disse”, ou “e disseram”.
Segundo, notadamente a maior parte das falas dos Entes Silenciosos está com Ente Silencioso
lëwî. Ele fala para abençoar, amaldiçoar e para ordenar ao povo de Israel que obedeça às
palavras do Deus de Israel. Isso era de esperar. A tribo de lëwî era uma tribo culta. Ela era
responsável pela manutenção dos ritos no Tabernáculo, e, posteriormente, no Templo, e
também pela instrução do povo nos mandamentos do Deus de Israel. Mesmo assim, ainda
havia levitas que dependiam de outros para sua sobrevivência, e parece que esses formavam o
grupo maior de levitas.
44
A questão do sistema de recompensas desenvolvido dentro de Deuteronômio será abordada dentro da análise
de Deuteronômio, capítulo 15, no segundo capítulo.
40
Terceiro, as falas são palavras colocadas nos lábios dos Entes Silenciosos pelo redator (ou
redatores) do livro de Deuteronômio, como notado acima, fazendo com que as falas deles não
sejam tão espontâneas quanto se deveria esperar. O redator deuteronômico está esperando
precisão nas declarações bem como afirmações que favoreçam a memória. Esses tempos eram
tempos de grande necessidade da memória, e o redator, sabendo disso, coloca afirmações que
favoreçam a lembrança, principalmente, daqueles, como o escravo que queria ficar para
sempre com seu senhor. Assim, o texto vem na forma de um diálogo entre o redator e a
comunidade que o ouve e guarda na memória o que está sendo dito.
Quarto, mesmo que o inter-relacionamento não seja entre os próprios Entes Silenciosos, estes
“falam” com outras pessoas - com a comunidade, e com Deus. Eles estão interagindo com
seus pensamentos e desejos. Eles podem comunicar algo e, como tal, estão expressando o que
eles são – pessoas criadas à imagem do Deus de Israel, como qualquer membro do povo
israelita. Porém, deve-se notar que, a fala do servo, da serva e do pobre é expressa “de baixo
para cima”. Aqueles falam com seu senhor e sua senhora, e este dirige sua fala ao seu Deus.
Quinto, os Entes Silenciosos podem abençoar o próximo, numa demonstração de poder da sua
palavra. Clamar ao Deus de Israel contra alguém por seu desprezo a algum Ente Silencioso
não era o que alguém dentro de Israel desejaria. O Deus de Israel é um Deus justo. Com ele
não há barganha que favoreça um ou outro. Assim, a palavra do Ente Silencioso oprimido
carregava um poder inesperado para alguém, aparentemente, fragilizado.
Porém, diante disso, o que faz a pesquisa manter que os grupos de pessoas designadas pelas
palavras continuam sendo “Entes Silenciosos”? O motivo básico é que o que eles dizem é dito
para eles dizerem, ou o que deveria ser dito por meio deles nas circunstâncias designadas pelo
orador. Assim, o orador continua sendo a sua voz, fazendo com que as palavras dos Entes
Silenciosos sejam palavras que estão dentro de um ambiente controlado pelo redator que é
quem diz o que o Ente Silencioso deve dizer. Elas são orientações do orador para sua
audiência – ele fala o que eles deveriam falar em determinadas circunstâncias. Dentro da fala
dos Entes Silenciosos, onde eles são silentes, porém, falam por meio da boca do redator, o
qual diz o que eles devem falar.
Portanto, pode-se afirmar, como resultado da análise anterior, que os Entes Silenciosos de
Deuteronômio podem ser divididos em três grupos. O primeiro é aquele que se compõe por
aqueles que são denominados pelas duas palavras “pobre” empregadas no livro [!wOyb.a, e yni['].
41
Mais adiante se demonstrará que há outras palavras para “pobre” dentro da BH. Mas em
Deuteronômio somente aquelas duas são usadas. Por meio de análises comparativas com
textos dentro do Pentateuco se estabelecerá a relação delas com outra palavra. Esse capítulo
terminará como uma análise de Moisés em Números 12, onde ele aparece qualificado como
um homem humilde diante de um conflito intra familiar. O readator o identifica com os
membros desse capítulo.
O segundo grupo é composto por aqueles que quase sempre aparecem juntos dentro do livro.
Os componentes deste grupo são: a viúva, o órfão, o estrangeiro e o levita [rGe, ~Aty", hn"m'l.a; e
ywIle]. Finalmente, há o grupo daqueles que, voluntariamente ou não, são feitos escravos [db,[, e
hm'a'].
Os capítulos seguintes tratarão de cada um desses grupos existentes dentro do Deuteronômio,
numa tentativa de demonstrar que os Entes Silenciosos estão dividos em estratos sociais e
que, mesmo que todos eles pudessem ser chamados de !wOyb.a, e yni[', eles são denominados por
palavras diferentes com fim de demonstrar sua especificação. A legislação do Deuteronômio
ousou por não generalizar, ao especificar cada um em seu devido estrato social.
Nos dados anteriores se notou que alguns deles falam. Mas falam dentro de linhas mestras
dadas pelo redator. No seu discurso sobre eles, ele coloca palavras que poderiam ser
pronunciadas dentro de determinados contextos. Assim se percebe a completa dependência
dos Entes Silenciosos – eles precisavam de que alguém lhes dissesse o que dizer para que
pudessem falar. De alguma forma, a voz do redator vinha em benefícios daqueles que não
podiam falar para expressar o seu sofrimento pessoal como Ente Silencioso. Como Moisés
num momento de crise aguda com seus irmãos, os Entes Silenciosos precisavam que alguém
falasse por eles. Mesmo que eles queiram falar, eles se negam a falar até que outro fale por
eles.
A voz do redator vinha como alívio para cada um deles. O redator funcionava como um
parente muito próximo que agia para resgatar os Entes Silenciosos de seu silêncio sofredor. O
redator no Deuteronômio mostra que a comunidade pode ser agente da solução de seus
problemas, um agente participativo que, sob a bênção de seu Deus, trabalhava para que uma
comunidade “sem pobres” viesse a existir. Essa comunidade ideal viria com a benção divina
sobre o “tu/vós” obediente ao seu Deus. É assim que é a legislação deuteronômica. Ela é a voz
42
de Deus por meio da voz de homens, conhecidos dos Entes Silenciosos, e, como os Entes
Silenciosos (principalmente do grupo de “estrangeiros” [rGe, ~Aty", hn"m'l.a; e ywIle]), eles
também são “estrangeiros” (Levítico 25,23; Deuteronômio 10,19 [~yrIgE]) porque a terra
pertence ao Deus de Israel, e eles estão na terra como concessionários, enquanto atenderem a
voz de seu concessor.
No caso de Moisés, a voz do orador é a voz de Deus, em Números 12.45
Como Ente
Silencioso ideal, Deus fala em seu favor. Mas isso é representativo daquilo que Deus faz, em
Deuteronômio, em favor de todos os Entes Silenciosos. Ele fala em seu favor por meio do
legislador. E assim, numa ação da dupla divina e humana, Deus vem em benefício daquela
porção de seu povo que está empobrecida.
Enfim, como Deus, através do orador/redator deuteronômico, falou em favor de cada grupo
dos Entes Silenciosos? Como ele os tratou e os distinguiu com ações beneficentes? Os
capítulos seguintes apresentarão as respostas.
45
O capítulo seguinte será concluído com uma análise detalhada de Números 12 para demonstrar seu elo com os
Entes Silenciosos qualificados por sua pobreza.
43
2. OS ENTES SILENCIOSOS CARACTERIZADOS POR SUA “POBREZA”
O capítulo um mostrou um panorama das palavras relacionadas aos Entes Silenciosos e como
eles podem ser reunidos em grupos diferentes, com base nas ocorrências textuais onde eles
aparecem em conjunto e, dentro de suas comunidades, onde eles eram conhecidos e
mantinham relacionamentos com outros membros. Nesse capítulo, também foi analisado o
texto onde Moisés é chamado de `änäw, identificando-o, dessa forma, com aqueles que
pertencem ao grupo !Ayb.a,w> ynI[' e, por implicação, com todos os Entes Silenciosos do
Deuteronômio. Pode-se afirmar que, seguramente, o tópico relacionado a Moisés estaria bem
incorporado no capítulo a seguir. Entretanto, pensando em Moisés como um padrão de !Ayb.a,w>
ynI[' para o povo de Israel, optou-se por colocá-lo no capítulo anterior.
Pensar em comunidade dentro do Deuteronômio, seja aquela que está no campo seja a que
está na cidade, é entender que o livro não foi escrito num vácuo histórico. Os Entes
Silenciosos eram membros de suas vilas, aldeias e cidades, e eram conhecidos de todos a
quem o livro se destina (tu/vós). A vida em comunidade era fundamento de vivência dentro de
Israel, a começar por sua constituição em tribos, e, dentro das tribos, os clãs que as
constituíam e a elas davam sentido e organização.
Os Entes Silenciosos eram membros dessas comunidades espalhadas por todo o Israel e que,
por sua vez, mantinham relacionamentos com as famílias que formavam as tribos. Portanto,
eles não podiam ser esquecidos porque eles estavam ali, convivendo como membros dessas
comunidades estabelecidas em suas terras, as quais eram consideradas como herança da parte
do Deus de Israel. Eles mantinham relacionamento diário com as pessoas ao seu redor.
Os Entes Silenciosos a serem estudados neste capítulo são aqueles que estão envolvidos pelas
palavras que normalmente são traduzidas por “pobre”. Essas são !wOyb.a, [´ebyôn] e yni[' [`änî ].
Elas são as palavras para “pobre” que ocorrem dentro do livro de Deuteronômio. Há também
uma ocorrência da palavra !joq' (“pequeno”), e que se perceberá que ela faz referência ao
“pobre” por meio da análise de textos paralelos dentro do Pentateuco, onde, em lugar de !joq',
44
aparece lD; (“pobre”). Essa, em determinados textos, aparece em paralelo com as palavras que
estão presentes no Deuteronômio.46
Neste capítulo também estará presente uma pesquisa sobre a identificação de Moisés – e de
outros personagens bíblicos importantes – com o grupo de Entes Silenciosos, particularmente
com aqueles que pertencem ao bloco constituído pelos !wOyb.a, e yni['. A autoria do livro é
atribuída a Moisés pela tradição. Nesse aspecto, torna-se significativo que ele seja
apresentado como alguém que seja relacionado a eles.
2.1. O !wOyb.a, [´ebyôn] e yni[' [`änî ]
Vocábulos Deuteronômio 1-11 Deuteronômio 12-26 Deuteronômio 27-34
!wOyb.a,, ´ebyôn 15,4.7.9.11; 24,14
yni[', `änî 15,11; 24,12.14.15
Estas palavras [!wOyb.a,, yni['] devem ser estudas juntas, e uma das razões para isso é que elas,
normalmente, são traduzidas por “pobre” dentro do livro de Deuteronômio, exceto quando
elas ocorrem no mesmo versículo.47
Quando isso acontece, os tradutores da BJ, por exemplo,
traduziram o ´ebyôn ou o `änî de forma diferente uma da outra. Assim, quando uma foi
traduzida por “pobre”, a outra foi traduzida por “humilde” (yni[', `änî, 15,11), ou por
“necessitado” (!wOyb.a,, ´ebyôn, 24,14). Essa diferença na tradução pode ser encontrada em
outros textos quando elas aparecem juntas.
O outro motivo, e o mais significativo, é que as duas palavras surgem dentro dos mesmos
capítulos da mesma divisão do livro de Deuteronômio, o chamado Código da Aliança
46
Notar Provérbios 14,31 [!wOyb.a, e lD;]; 19,1 [vr", räš].4 [lD;].7 [vr"].17 [lD;].22 [vr"]; 22,2 [vr"].4 [hw"n"[], “humildade”, de yni['].7 [vr"].9 [lD;].22 [lD; (2x) e yni[']; 28,3 [vr" e lD;].6 [vr"].8 [lD;].11 [lD;].15 [lD;].27 [vr"]; 29,7 [lD;].13 [vr"].14 [lD;]. Em Provérbios 14, 20.21 yni[' ocorre com outra palavra traduzida por “pobre” [vr"]. Essa é, em realidade, um qal particípio de vwr, “ser pobre”. 47
O que pode ser notado pela tradução da BJ (!wOyb.a, -15,4 [“pobre”].7 [“pobre” nas 2 ocorrências da palavra].9
[“pobre”].11 [“pobre” nas duas ocorrências]; 24,14 [“necessitado”]; yni[' - 15,11 [“humilde”]; 24,12
[“pobre”].14 [“pobre”].15 [“pobre”]).
45
(Deuteronômio 12-26, notadamente capítulos 15 e 24). Elas têm o mesmo campo semântico,
mesmo que também apresentem diferenças de ênfase, ainda que relacionadas à mesma pessoa
dentro da comunidade, e, com isso, a possibilidade de que, a ocorrência delas juntas, seja para
enfatizar a condição de pobreza da pessoa a quem elas se referem.
Os Entes Silenciosos, denominados de !wOyb.a, e yni[' (´ebyôn e `änî), vivem à margem da
comunidade, por um lado, quando eles são vistos da perspectiva econômica – eles não
produzem, mas necessitam do resultado da produção de outros. Por outro lado, eles não estão
à margem da comunidade (como que num gueto) porque a presença deles pode ser notada e,
por atenção a eles, a comunidade é levada a agir para que ela não pratique uma maldade
contra si mesma, esquecendo-se da bondade divina com a qual tem sido tratada ao longo de
sua história, por não tratar com generosidade um Ente Silencioso em seu meio.
O livro de Deuteronômio não eleva o !wOyb.a, e yni[' [´ebyôn e `änî] à posição de perseguido por
ser um justo, e que, por isso, está em sofrimento, como alguns salmos48
parecem apresentar.
Os Entes Silenciosos são seres humanos comuns, aos quais não se pode negar o direito à
sobrevivência. É necessário entender quem era o !wOyb.a, e o yni[' e a sua importância para a
comunidade no meio da qual vivia.
2.1.1. O !wOyb.a,, ´ebyôn
2.1.1.1. Um termo geral para referir-se a uma pessoa dentro de determinada
condição econômica, a condição de pobreza.
Entretanto, como termo masculino, ele aponta para um homem nessa condição, não para uma
mulher.49
Isso quer dizer que dentro do Deuteronômio (15,4.7.9.11; 24,14), o termo nunca
48
Notar Salmos 9,18; 10,2.9.17; 12,5; 14,6. No Salmo 10,18 outra palavra é apresenta para “oprimido” [%D;, Dak] em paralelo com “órfão” [~Aty" / yätôm]. %D; também aparece no Salmo 9,10. No Salmo 74,21 ela vem em
paralelo com !Ay©b.a,w>÷ ynIï[' [`änî wü´ebyôn]: “Que o oprimido [%D;] não volte humilhado; que louvem o teu nome
o aflito e necessitado [!Ay©b.a,w>÷ ynIï[']” [`^m<)v. Wlïl.h;y>) !Ay©b.a,w>÷ ynIï[' ~l'_k.nI %D:å bvoåy"-la;21]. Portanto, tanto o ~Aty"
como o !Ay©b.a,w>÷ ynIï[' estão sujeitos a viver sob opressão por sua condição de fragilidade. 49
A palavra !wOyb.a, (´ebyôn) é um adjetivo masculino (DAVIDSON, 1970, p. 3, 4). Como adjetivo que qualifica
pessoas na condição de pobreza é que ela ocorre dentro do livro de Deuteronômio. A condição de pobreza pode
ser temporária. A palavra “viúva”, por sua vez, é um substantivo, fazendo com que a mulher nomeada por essa
palavra, sempre esteja relacionada ao marido que perdeu. Em Amós 4,1, !wOyb.a,, em paralelo com lD;, carrega o
sentido de “oprimido”, já em Amós 2,6, o paralelo se faz com “justo” [qyDIêc; / caDDîq] (HALOT, 2001, v. 1, p.
5).
46
chega a designar uma mulher como uma pessoa pobre.50
Ele sempre aponta para um homem,
e isso se pode inferir dos dois textos onde ela aparece, juntamente com `änî (Deuteronômio 15
e 24). Então o !wOyb.a, (´ebyôn) é um termo que se refere a um homem que, por qualquer
motivo, chegou à condição de pobreza, e em tal condição depende da generosidade de seu clã
ou de outros clãs sob os quais ele vive.
Aqui se deve acrescentar a seguinte observação: a pesquisa não quer dizer que a palavra
!wOyb.a,, ou mesmo ynI[', nunca se refiram, dentro da BH, a uma pessoa que não seja um homem.
Quer dizer que, dentro do livro do Deuteronômio, as palavras !wOyb.a, e ynI[' apontam para um
homem dentro da comunidade.
É entendido dessa forma pelos seguintes motivos. Primeiro, as palavras que aparecem em
paralelo com !wOyb.a, e ynI[' são “teu irmão” e “teu próximo” (Deuteronômio 15,2.3.4) para
apontar que o !wOyb.a, e ynI[' pertencem ao grupo da proximidade do clã do “tu/vós”, ou mesmo
que, não sendo do mesmo clã, ele é um membro da comunidade de Israel. Em Deuteronômio
15,7 o texto aponta para “teu irmão” como um membro dessa comunidade estendida, Israel,
não para alguém que pertença ao mesmo clã do “tu/vós”.
Em segundo lugar, a legislação se dirige a àlguém específico dentro da comunidade de Israel.
A legislação presente em Deuteronômio 15 e 24 é diferente daquela que trata dos outros
membros do grupo de Entes Silenciosos. Uma leitura desses textos mostrará que as palavras
para órfão, viúva, estrangeiro e levita não aparecem nesses capítulos como que deveria
usufruir dos benefícios da legislação ali presente. A palavra para escravo aparece no capítulo
15. Mas ele é resultado da ação do !wOyb.a, e ynI[' que se vendeu como escravo, por um período,
para quitar dívidas e sobreviver ao caos que sobreveio a ele.
Em terceiro lugar vem a sua identificação com o “irmão hebreu” – ele não somente é irmão
como ele é um hebreu. A palavra traduzia por “hebreu” [yrIb.[i, `ibrî] aparece várias vezes
dentro da BH. Dentro de Deuteronômio a palavra aparece como um substantivo definido
50
A mulher, quando apresentada na condição de um Ente Silencioso, em Deuteronômio, e, com isso, sendo
colocada como necessitada de atenção especial pela comunidade, é chamada de “viúva”. Isso quer dizer que a
mulher sob a proteção do clã não é classificada como “pobre”, mesmo que ela não tenha direito a nada do clã. Se
ela está sob a proteção do clã, ela tem um meio de sobrevivência. Parece que a mulher “viúva”, em
Deuteronômio, é alguém que vive à parte dos clãs da comunidade. Ela é apresentada como um ser solitário
dentro do Deuteronômio.
47
[yrIªb.[ih'(, hä|`ibrî]51 empregado para denominar o “teu irmão” (Deuteronômio 15,12) que viria
a se vender como escravo a outro israelita. Das ocorrências de yrIb.[i dentro da BH, pode-se
afirmar os seguintes pontos: primeiro, ela, em geral, é usada para designar um homem quando
empregada como substantivo ou adjetivo masculino, tendo como exceções suas aparições no
livro de Êxodo (3,18; 9,1.13; 10,3), na construção “o Deus dos hebreus”, em que a palavra
designa o povo de Israel inteiro, constituído, naturalmente, de homem e mulher.
Segundo, nas ocorrências da palavra feminina de yrIb.[i no livro de Êxodo (1,15.16.19;
[“hebreia”, hY"rib.[i, `ibriyyâ]),52
não há um emprego genérico para designar um homem e
uma mulher, mas especifica a mulher na sua função de procriação. Já em Deuteronômio
(15,12) e Jeremias (34,9), ela aparece para distinguir a mulher do homem dentro da condição
de escravidão. Deuteronômio é o único lugar no Pentateuco onde a mulher se vende para se
tornar escrava de um clã israelita. O texto paralelo de Êxodo 21,2 coloca apenas o homem
sendo comprado como “servo hebreu”.
Portanto, na análise das palavras yrIb.[i e hY"rib.[i, nas suas ocorrências dentro da BH, notou-se
que yrIb.[i não é empregado como termo genérico, exceto em alguns textos pontuais, para
designar todo o Israel. Ele de modo geral quer falar do homem, e, quando quer se referir a
mulher, o texto emprega o feminino, hY"rib.[i. Isso favorece a interpretação da pesquisa que
indica que os termos !wOyb.a, e ynI[' designam um homem em condição financeira desfavorável
em distinção dos outros Entes Silenciosos.
Por fim, em Deuteronômio 24,12, especificamente, a palavra ynI[' funciona como um adjetivo
ao qualificar a palavra “homem” [vyaiî]. Mesmo que se afirme que a palavra vyaiî funcione
como um artigo indefinido, “um”, a frase na qual a palavra está inserida não aponta nessa
direção: “E se ele (for) homem pobre, tu não deitarás no seu penhor”, impedindo-o de se
proteger durante a noite [`Aj*bo[]B; bK;Þv.ti al{ï aWh+ ynIß[' vyaiî-~aiw>]. Além disso, a presença do
pronome aWh, no texto confirma que o orador está se dirigindo ao “tu/vós” para falar de um
51
yrIb.[i aparece com o artigo também em Gênesis 14,13; 39,17; Jeremias 34,9.14 e, sem ele, ela está presente em
Gênesis 39,14; 41,12; Êxodo 2,11; 21,2; Jonas 1,9. Com o artigo no plural [~yrI+b.[ih', hä`ibrîm] ela está em
Gênesis 40,15; 43,32; Êxodo 2,6; 3,18; 5,3; 7,16; 9.1.13; 10,3; 1 Samuel 4,6.9; 13,3.19; 14,21; 29,3. A palavra
no plural sem o artigo [~yrIßb.[i, `ibrîm] ocorre em Êxodo 2,13; 1 Samuel 13,7; 14,11. 52
Em Êxodo 2,7, hY"rib.[i, `ibriyyâ aponta para o grupo de mulheres pertencente à comunidade de Israel no
Egito.
48
homem. Entretanto, o pronome aWh pode também ser visto como um pronome demonstrativo,
“aquele”, para se referir ao vyaiªh' do versículo 11: “E se aquele (for) homem pobre”, um
agravante apresentado à situação, ordenando ao que fez o empréstimo não reter o penhor
consigo.
Assim, nesta pesquisa, se pode dizer que as palavras !wOyb.a, e ynI[', dentro do Deuteronômio,
não são um termo genérico para se referir a todos os Entes Silenciosos, seja ele macho ou
fêmea. Elas apontam para um homem livre,53
mesmo que sua condição financeira leve-o a ser
“necessitado e aflito”.
Entretanto, há outros lugares na BH onde as palavras !wOyb.a, e ynI[' são colocadas em paralelo
com outros Entes Silenciosos: no Salmo 10,17.18 há o paralelo entre ynI[' e ~Aty" [yätôm];54
no
Salmo 68, a palavra ynI[' aparece no v. 11 (Hebraico), mas faz referência a hn"m'l.a; e ao ~Aty"
presentes no v. 6 (Hebraico); o Salmo 109,1-15 (BJ) fala de alguém, de quem a mulher ficará
hn"m'l.a; e seus filhos, ~ymi_Aty> [yütômîm] (109,10), porque ele não tratou com bondade o
!Ay©b.a,w>÷ ynIï[' [`änî wü´ebyôn], presentes no v. 16, subentendendo que a hn"m'l.a; e os ~ymi_Aty> de
tal homem serão tratados do mesmo modo que ele tratou a hn"m'l.a; e os ~ymi_Aty> dos outros,
aqui identificados por !Ay©b.a,w>÷ ynIï['.55
Os dados verificados nesses versículos, porém, demonstram que somente a hn"m'l.a; e o ~Aty"
eram considerados como sendo !Ay©b.a,w>÷ ynIï[', dentro dos textos poéticos, se eles pertencessem
ao povo de Israel. Esse detalhe coloca em relevo que a perspectiva dos escritores da BH
tinham em mente era que o tratamento de !Ay©b.a,w>÷ ynIï[' deveria ser dado exclusivamente a um
53
Os textos de Deuteronômio 15 e 24 mostram que o !Ay©b.a,w>÷ ynIï[' é alguém que tem uma casa onde ele pode ser
encontrado (24,10.11). Mas isso não implica que ela seja dele. O mais provável é que ele seja morador em uma
casa do dono da terra. Se for assim, a atitude do fiador é, principalmente, de muita reverência e obediência a
Deus, não invadindo uma casa que é sua e está dentro de suas terras. 54
A palavra ynIï[' não aparece, mas aparece a palavra ~ywIån"[] (“manso”, “pobre”), no v. 17. E quem são esses
`ánäwîm? A reposta está no v.18 – são o ~Aty" e o %D; (“oprimido”). Esse é usado em paralelo com !Ay©b.a,w>÷ ynIï[' no Salmo 74,21. 55
Considerar outros textos como Jó 29, onde as palavras ynIï[' (v. 12) e !Ay©b.a, (v. 16) são usadas para identificar
o ~Aty" do v. 12 e a hn"m'l.a; do v. 13; Jó 24,3.4.9 faz outro paralelo entre o ynIï[' e o !Ay©b.a, com a hn"m'l.a; e o
~Aty". Atentar que esses paralelos acontecem, nos escritos de poesia, onde o poeta demonstrava sua arte de
escrita, demonstrando que ele entendia que os Entes Silenciosos, identificados como o ~Aty" e a hn"m'l.a;, eram
também ynIï[' e !Ay©b.a, no meio do povo de Israel.
49
membro povo de Israel, seja ele um homem, viúva ou um órfão.56
Mas isso vem a ser um
desenvolvimento posterior e dentro de um contexto artístico de composição poética da BH.
Ao procurar os dados dentro dos outros livros do Pentateuco, o que se constatou é que o
!Ay©b.a,w>÷ ynIï[' era uma pessoa distinta dos outros Entes Silenciosos e se aplicava a um homem.
Ressalta-se que essas comunidades não eram grandes, e as pessoas envolvidas na condição de
!Ay©b.a,w>÷ ynIï[' eram facilmente notadas. Mesmo porque tais pessoas dependiam das ações do clã,
ou dos clãs, ao qual estavam apegadas por motivo de trabalho ou dependência de qualquer
forma, levando o orador/legislador do Deuteronômio a ter em mente uma pessoa específica,
que não era nenhum dos outros Entes Silenciosos, mas um homem qualificado pela condição
de !Ay©b.a,w>÷ ynIï['.
2.1.1.2. Elementos filológicos
2.1.1.2.1. A etimologia de !wOyb.a, (´ebyôn)
A etimologia da palavra !wOyb.a, (´ebyôn) é indefinida (BOTTERWECK, 1974, p. 27; COPPES,
1980, p. 4). A primeira sugestão é que !wOyb.a, (´ebyôn) tenha origem a partir de uma raiz
semítica, sendo derivada de hba [(´bh], cujo significado original é “perder, estar em
necessidade”.
Tendo essa etimologia, o !wOyb.a, (´ebyôn) seria alguém carente, uma pessoa “que quer alguma
coisa que ele não tem, e consequentemente... um necessitado e pobre” (BOTTERWECK,
1974, p. 28). A ideia de querer algo que não possui e, dentro disso, o sentimento de não poder
obter, traz o peso do sofrimento por um desejo não alcançado. Quando o Deuteronômio diz
que o israelita deva ser benigno com o !wOyb.a,, ele aponta para o “tu/vós” atender uma
necessidade que o !wOyb.a, deseja que seja suprida. Quando ele não alcança o favor, ele apela
para o Deus de Israel. Essa ideia se harmoniza com a tradução que coloca, de modo geral, que
o !wOyb.a, seja um “necessitado”.
56
Em Zacarias 7,10 aparecem quatro palavras: ~Aty", hn"m'l.a;, rGEï e ynIß['. Entretanto, elas não são empregadas
como sinônimas de ynIß['. ynIß[' aqui parece ser distinto das outras três, mas ligada a elas por meio da palavra
“irmão”. Esses quatro Entes Silenciosos são wyxiêa' vyaiä do “vós” presente na palavra “em vossos corações
[`~k,(b.b;l.Bi]. “Que vós não oprimais a viúva, o órfão, o estrangeiro e o pobre, e que não penseis cada um o mal
de seu irmão, em vosso coração” [`~k,(b.b;l.Bi Wbßv.x.T;-la;( wyxiêa' vyaiä ‘t[;r"w> Wqvo+[]T;-la;( ynIß['w> rGEï ~At±y"w> hn"ôm'l.a;w>
/ wü´almänâ wüyätôm Gër wü`änî ´a|l-Ta`ášöºqû würä`at ´îš ´äHîw ´a|l-TaHšübû Bilbabkem]
50
A outra sugestão é que o vocábulo !wOyb.a, tenha relação com o Ugarítico ’bynt (“miséria”) e
’bynm,“pessoa da cidade de ill” (BOTTERWECK, 1974, p. 28). Finalmente, há também a
sugestão de que a palavra !wOyb.a, seja derivada do Egípcio, byn – “sem valor, preguiçoso, estar
em condição desprezível/miserável, maligno” (BOTTERWECK, 1974, p. 29). Todas essas
raízes demonstram que a visão daquele contexto sobre o !wOyb.a, não era uma visão favorável à
pessoa qualificada por ela.
Diante do que foi apresentado no parágrafo acima, a melhor opção quanto à etimologia seria
colocar a palavra !wOyb.a, (´ebyôn) dentro de um relacionamento com uma palavra semítica,
hba, cujo significado vem ao encontro do sentido que a palavra pode apresentar dentro do
livro de Deuteronômio.
Assim, o !wOyb.a, (´ebyôn) é uma pessoa que chegou à essa condição porque ela perdeu outra
condição anterior àquela em que se encontrava na de !wOyb.a, (´ebyôn) atual, e, por isso, naquele
momento, ela era uma pessoa que estava em necessidade, usualmente a necessidade de
alimento, mas também necessidade de um lugar de proteção – um lar. Acrescenta-se a isso
também a necessidade de amparo por parte da comunidade, essa representada pela pessoa (ou
pessoas) que poderia (poderiam) ajudá-lo.57
2.1.1.2.2. Comparação com o Targum
Nos textos onde ocorre a palavra !wOyb.a, (´ebyôn), o Targum apresenta o Aramaico que traz a
palavra an"ykesmi (“homem pobre”,58
Deuteronômio 15,4.7.9.11; 24,14). Com isso, o Targum
segue a ideia do Hebraico de que o !wOyb.a, (´ebyôn) se refere a um homem, não a uma mulher,
que chegou à condição de pobreza, em sua tradução do Deuteronômio. Schökel propõe que
essa palavra tenha o significado de “pobre, indigente”, além de que ela seja sinônima tanto de
yni[' quanto de lD; (1997, p. 385).59
57
Para Schwantes, “penso... poder afirmar o seguinte...: ’byn(t) (e os documentos de Mari) fazem alusão ao
lamento (ou designam a pessoa que lamenta) e, com isso, não se referem à pobreza legítima; enquanto que
’bymn caracteriza pessoas realmente pobres” (2013, p. 37). 58
O livro de Deuteronômio 8,9 tem uma ocorrência de tWnKes.m.. Essa foi traduzida pela BJ por “escassez”. Mas
também pode ser entendida como “pobreza” (segundo a opção de tradução dada pelo HHL-BW7). 59
Berezin (2003, p. 380) traduz !Kes.mi por “coitado, desgraçado, infeliz, pobre”. Vale salientar aqui que o livro
de Deuteronômio não parece admitir que o !wOyb.a, seja alguém “indigente” ou “desgraçado, infeliz” por causa do
povo que está ao seu redor. Seguindo nessa mesma direção, deve-se notar o texto em Êxodo 22,25-28; 23,3 e
23,26 onde as três palavras são empregadas em um contexto de proteção ao pobre. Em 22,25 aparece a palavra
51
2.1.1.2.3. Comparação com a Septuaginta (LXX)
Nos textos no livro de Deuteronômio, onde ocorre a palavra !wOyb.a, (´ebyôn), a LXX traduz
esse vocábulo pela palavra evndeh,j (“pobre, empobrecido” [GGL-BW7]; Deuteronômio
15,4.7.11a; 24,14 [de evndeou/j]60), e pelo particípio presente de evpide,omai, no dativo,
evpideome,nw| (“um que está necessitando, quem [aquele que] está em necessidade”;61
Deuteronômio 15,9.11c). Em Deuteronômio 15,11, a palavra !wOyb.a, aparece duas vezes, sendo
traduzida pela LXX por evndeh,j em 15,11ª e pelo dativo de evpideome,non, em 15,11c. As duas
são usadas como adjetivos para qualificar um homem, da mesma forma como é empregada a
palavra !wOyb.a, (´ebyôn) em Deuteronômio na BH. Da mesma forma que a palavra hebraica
!wOyb.a,, a Septuaginta entendeu que a pessoa apontada como sendo um !wOyb.a, era alguém com
necessidade de algo que precisava ser suprida.
A forma diferente de traduzir a mesma palavra hebraica dentro do mesmo texto indica que os
tradutores da Septuaginta entenderam que a palavra hebraica tinha abrangência de significado
maior que as palavras gregas individualmente, podendo dizer que o !wOyb.a, (´ebyôn) é não
somente alguém que está empobrecido, mas que, por esse empobrecimento, ele está em
necessidade, normalmente entendido como necessidade de comida e vestimenta, mas também
de amparo.
2.1.1.3. Algumas notas
Primeiro, todas as ocorrências do !wOyb.a, (´ebyôn) mostram que a palavra era empregada para
qualificar um homem em condição de precariedade por causa da ausência de patrimônio que
pudesse lhe dar o sustento. As traduções, em segundo lugar, para a Septuaginta e o Targum
entenderam o mesmo que as ocorrências de ´ebyôn no texto Hebraico. Entretanto, elas
lançaram luz por mostrar que !wOyb.a, (´ebyôn) traz em seu corpo elementos elucidativos da
`änî, em 23,3 a palavra usada é däl e em 23,6 acha-se a palavra ´ebyôn. Mesmo que os conteúdos desses
mandamentos de proteção sejam diferentes, o objetivo é o mesmo – proteger o pobre. Entretanto, Coppes (1980,
p. 190) aponta que lD; não vem a ser um sinônimo preciso de !wOyb.a, e yni['. Para ele, “diferentemente de`änî, däl
não enfatiza sofrimento ou opressão; diferentemente de ´ebyôn, ela não enfatiza primariamente necessidade, e
diferentemente de r¹sh, ele representa aqueles que sentem falta de algo mais do que alguém destituído (de
algo)... Em däl, a ideia de privação física (material) é predominante”. 60
Genitivo singular de evndeh,j. 61
Tradução sugerida para este particípio presente de evpide,omai (“necessitar, estar em necessidade” [GGL-
BW7]).
52
condição daquele homem na comunidade israelita do Deuteronômio – ele era uma pessoa
“pobre” e que, por isso, ela “estava passando necessidade”.
Portanto, pode-se dizer que o !wOyb.a, (´ebyôn) é aquela pessoa que se encontra na condição de
necessitado. Mas necessitado de que? Pelo conteúdo de Deuteronômio, o !wOyb.a, (´ebyôn) tem
necessidade da generosidade de seu irmão israelita, tendo em vista sua carência de comida e
vestimenta. Quando ele for assalariado, que seja feito o pagamento em dia para que ele tenha
como manter sua vida. Então a questão relaciona-se à sobrevivência daquele que está na
pobreza (24,15).
Entretanto, o vocabulário existente na BH é rico ao tratar da pessoa pobre. Dentro do livro de
Deuteronômio há ainda outra palavra para qualificar o homem na condição de pobreza.
2.1.2. O yni[' (`änî)62
Inicialmente, o que se pode dizer é que este Ente Silencioso, qualificado pela palavra yni[', é
considerado como alguém que está em aflição e humilhação pela condição em que ele se
encontra (24,12-15) naquele momento.63
Porém, para se chegar a uma definição melhor,
considerar-se-á a análise seguinte.
2.1.2.1. Elementos filológicos
2.1.2.1.1. A etimologia de yni[' (`änî)
A palavra yni[' vem de uma raiz verbal, hn[ (`nh), que tem um campo semântico variado de
significações dentro da BH. É o que Stendebach chama de “raízes homônimas”, cuja forma de
escrita é a mesma, mas o significado pretendido pelo contexto é diferente (2001, p. 215). São
estas: hn[ (`nh) I (“responder”), hn[ (`nh
) II (“ser afligido”), hn[ (`nh) III (“mostrar-se,
62
Como o !wOyb.a, (´ebyôn), yni[' (`änî) também é um adjetivo masculino (DAVIDSON, 1970, p. 606, 607).
Entretanto, ao que se pode acrescentar nesta pesquisa, os dois adjetivos nunca são usados dentro da BH no
feminino. O ponto mais próximo que um deles chega está em Zacarias 11,7.11: !aCoh; yYEÜnI[] (`ániyyê haccö´n),
“pobres do rebanho”. “Rebanho” é feminino no Hebraico, mas “pobres” é um adjetivo masculino no plural no
estado construto. Em Isaías 10,30 encontramos o feminino de `änî: “pobre Anatote” [tAt)n"[] hY"ïnI[] / `ániyyâ
`ánätôt]). A BJ traduz `ániyyâ, equivocadamente, por “responde-lhe” (ou “reponde a ela”). Assim, como !wOyb.a,, yni[' também é empregada em sua maioria para qualificar um homem. 63
“Num sentido sociológico: sem (suficiente) propriedade e, portanto, dependente de outros, Deuteronômio
15,11 e 24,12” (HALOT, 2001, v. 1, p. 856).
53
manifestar-se”), e hn[ (`nh) IV (“cantar”) (STENDEBACH, 2001, p. 215, 216).
64 Seguindo a
visão de Stendebach, o adjetivo yni[' (`änî) vem da raiz verbal hn[ II (“ser afligido”). Assim, o
yni[' (`änî) é alguém que está em desespero por causa de alguma aflição, ou opressão, a que ele
está sujeito naquele momento.
Para Martin-Achard, a raiz verbal hn[ II, tem o sentido provável de “estar pressionado,
deprimido”. Segundo ele, essa raiz se encontra no Fenício com o sentido de “oprimir,
submeter”, em Moabita, “perseguir”, em Aramaico bíblico, “mísero”, e Árabe, “ser humilde,
submisso”.65
Por esses usos da raiz verbal pode-se considerar que o `änî era alguém que se
destacava por seu desespero e fragilidade diante de sua situação pessoal e, por isso
necessitava de atenção.66
Mas desespero de quê? Desespero da vida – dívida, fome, ameaça
de escravidão e perda da família.
A situação de pobreza de um homem poderia chegar ao ponto de desespero em que ele seria
obrigado a vender sua filha como escrava. Chegar a esse ponto seria o ponto alto da aflição de
um homem. A legislação de Êxodo 21,7-11 proibe a revenda da filha daquele homem para um
“povo estrangeiro” (Êxodo 21,8 [yrI±k.n" ~[;î, `am nokrî]). Desse modo, caso não houvesse
socorro, ele corria o risco de perder a vida ou a liberdade, sua ou de sua família. A legislação,
tanto de Êxodo como de Deuteronômio, entendida que esse ponto de aflição não deveria ser
cumulativo sobre aquele homem, e impede que sua filha fosse vendida ao yrI±k.n", de onde ela
não teria retorno. A legislação é uma legislação pela vida.67
Ajudar o yni[' é contribuir para
aliviá-lo das fontes de opressão que causam o seu encurvamento.
64
Coppes (1980, p. 679-684) coloca uma posição diferente de significação das raízes. As significações são: hn[ I (“responder”), hn[ II (“ser ocupado”), hn[ III (“ser afligido, humilhar”), e hn[ IV (“cantar”). Aqui são
apresentados alguns dados diferentes da ordem apresentada por Stendebach. O primeiro é que hn[ II é que tem o
sentido de “ser afligido”, não a raiz hn[ III, como em Coppes. Segundo, o sentido de “manifestar-se” de hn[ III,
de Stendebach, não ocorre em nenhuma das raízes apresentadas por Coppes. Por outro lado, o sentido de hn[ II,
“ser ocupado”, de Coppes, não é encontrado em nenhuma das quatro raízes apresentadas pelo Stendebach. Isso é
representativo da dificuldade que os estudiosos têm para definir a etimologia das palavras. Mesmo assim, pode-
se dizer que as raízes hn[ II do Coppes e hn[ III do Stendebach têm algum relacionamento. Provavelmente,
aquele que se manifesta por meio de alguma ocupação. 65
Martin-Achard, hn[ ‘nh II “ser mísero” (1985, p. 435). 66
A palavra “aflição”, encontrada em Êxodo 3,7 e 4,31, é tradução de ynIï[\ [`ónî]. Ela vem da mesma raiz que
yni[' [`änî]. A BJ traduz ynIï[\ por “miséria” nesses versículos para descrever a visão divina de condição de Israel
no Egito. 67
Schwantes traduz yni[' por “encurvado”, “oprimido” (2003, p. 38). Pode-se dizer que o resultado da opressão
torna o pobre encurvado, dobrado ante o opressor.
54
2.1.2.1.2. Comparação com o Targum
O Targum, por sua vez, traduz a palavra hebraica, yni[' (`änî), pelas palavras aramaicas yn[, ‘ny
(“humilde, pessoa pobre”, Deuteronômio 15,11; 24,14.15), e !ykesmi, miskeyn (“homem
pobre” [HHL-BW7], Deuteronômio 24,12). Considera-se que em Deuteronômio 15,4.7.9.11 e
24,14, o Targum traduz a palavra hebraica !wOyb.a, pelo vocábulo aramaico !ykesmi. A implicação
disso é que as duas palavras, !wOyb.a, e yni[', são sinônimas, segundo o tradutor do texto hebraico
para o aramaico, mesmo que uma enfatize a necessidade e a outra a aflição, mas designam a
mesma pessoa vista de diferentes ângulos.
!wOyb.a, e yni[', juntas, representam um tipo de ênfase especial que pudesse qualificar melhor a
pessoa assinalada pelas duas palavras.68
Esse tipo de ênfase será apresentado na exegese de
Deuteronômio 24. Incialmente, o que se pode afirmar é que o uso das duas palavras, nesta
sequência !Ay=b.a,w> ynIå[', parece superlativar a condição de tal homem – ele não somente é um
homem necessitado e, portanto, pobre, ele também está sob opressão.
O que se tem a pontuar do Targum é que o uso de !ykesmi, tanto para traduzir !Ay=b.a, quanto
ynIå[' para o Aramaico, demonstrou que as duas pertencem ao mesmo campo semântico e que a
condição de pobreza, da pessoa apontada por elas, era algo a qual se devia receber atenção por
parte daqueles a quem o orador/legislador se dirige.
2.1.2.1.3. Comparação com a Septuaginta (LXX)
A LXX, por outro lado, traduz o vocábulo hebraico yni[' (`änî) por pe,nhj (“pessoa pobre”,
Deuteronômio 15,11; 24,14.15),69
e por pe,nhtai (“ser pobre ou necessitado”,70
Deuteronômio
24,12). Aqui se pode notar que os que traduziram o texto Hebraico para o Grego, a LXX,
entenderam que seria melhor traduzir yni[', em Deuteronômio 24,12, com uma forma verbal e
68
A construção !Ay=b.a,w> ynIå[' aparece sempre nessa ordem dentro da BH. 69
A palavra evndeh,j traduz, em sua maior parte o adjetivo/substantivo !wOyb.a, (29 vezes) e, por outras 12 vezes, ela
é empregada para traduzir yni[', `änî (HAUCK, 1968, p. 37-40). 70
Subjuntivo presente de pe,nomai. A LXX em Deuteronômio 24,12 tem: eva.n de. o ̀ a;nqrwpoj pe,nhtai ouv koimhqh,sh| evn tw/| evnecu,rw| auvtou/ - “e se o homem for pobre, (tu) não dormirás no penhor dele.”
55
não com um adjetivo. Mas isso não tira o sentido de que eles ainda assim queriam que o
subjuntivo implicasse numa qualificação do homem em vista.71
O homem em foco continua sendo descrito por sua condição social e econômica. Como pobre,
socialmente ele é distinto daquele que tem recursos financeiros para gerir sua vida, e,
portanto, está em posição inferior. Como necessitado, ele não pode suprir suas próprias
necessidades por causa de sua falta de recursos.
Para Hauck, pe,nhj “denota alguém que precisa conquistar sua vida porque ele não tem
propriedade”,72
um campo para trabalhar e que ele chame de seu. Ele é alguém dependente da
oferta de trabalho no campo alheio. Isso, porém, não quer dizer que ele nunca teve
propriedade, mas que por alguma circunstância anterior à sua condição presente, ele a perdeu,
e passou a depender dos outros para obter seu sustento e, talvez, o sustento de sua família.
Esta última declaração se faz necessária porque tanto o !wOyb.a, (´ebyôn) como yni[' (`änî) nunca
trazem junto uma declaração de que eles possuam dependentes, seja mulher ou filhos/filhas,
em Deuteronômio.
A ausência de uma família que acompanha este Ente Silencioso pode apontar em uma de
quatro direções ou para uma e outra em conjunto. Primeiro, pode ser que ele nunca teve
família e em resposta a isso ele acabou caindo em pobreza por desprezar sua herança.73
Segundo, pode ser que ele tenha perdido sua família ao vendê-la como escrava para sua
própria sobrevivência por já haver vendido toda a sua herança.74
Terceiro, pode ser também que ele fora expulso do clã, por qualquer razão, incluindo a
impossibilidade de sustentar sua família, sendo que o clã reteve a mulher e os filhos como
forma de pagamento de dívidas assumidas.75
Por último, pode ser que o empobrecimento se
71
O subjuntivo do verbo pe,nhtai e a conjunção pertencem a terceira classe de condição, cuja construção deixa
em aberto a possibilidade quanto à condição a ser encontrada. Desse modo, o que a construção em grego quer
dizer é que, caso o homem seja mesmo pobre, o penhor deve ser devolvido para que ele se cubra durante a noite. 72
Este significado vem do uso da palavra no mundo grego (HAUCK, 1968, p. 886). 73
O caso de Esaú que vendeu o seu direito de primogenitura por um prato de comida, sem qualquer acusação de
consciência, é um representante modelo desse tipo de atitude (Gênesis 25,29-34). O descuido com a herança da
terra foi abordado no livro de Provérbios (6,6-11; 13,18; 21,17; 23,20.21; 24,30-34; 28,19). Os exemplos da vida
apresentados em Provérbios podem ser alguns dos motivos por trás do empobrecimento em Deuteronômio. Se
for assim, o valor da vida é tido em alta consideração no Deuteronômio, ao ponto de levar aqueles, chamados de
“tu/vós”, a contribuírem para preservar um homem como ser humano, mesmo que sua pobreza pudesse ter sido
evitada. 74
Êxodo 21,7; Levítico 25,14-31; Neemias 5. 75
Aqui não há um exemplo específico da BH para apresentar. Porém, as expulsões de Adão do Jardim e a de
Caim posteriormente podem ser representativas da possibilidade de os clãs expulsarem seus membros por
motivos variados (Gênesis 3, 4).
56
deu devido à mudança de cidade ou país e subsequente retorno em condição de pobreza.76
Somente pelo texto de Deuteronômio, porém, é impossível deliberar qual é a motivação por
trás do redator ao apontar para a necessidade de atenção a esse tipo de Ente Silencioso. O que
se pode dizer é que o redator está olhando para uma condição pessoal do homem denominado
pela palavra yni['.
2.1.2.2. O yni[', `änî (15,11; 24,12.14.15)77
– o Ente Silencioso em aflição
É possível dizer que o `änî é uma palavra que designa o Ente Silencioso como alguém que
está enfrentando uma condição aflitiva, passando por situação humilhante, sendo que essa
também é uma humilhação pública, a qual precisa ser suprimida por meio daquele que tem
recursos para isso, o homem livre e chefe do clã. Hauck diz que, citando Levítico 19,9s, 23,22
e Deuteronômio 24,14.15, yni[' aponta para alguém “que não possui patrimônio e que precisa
ganhar seu sustento trabalhando para outros, especialmente como diarista” (1968, p. 39).
Não é especificada a situação de humilhação que enfrenta o yni[' (`änî). Diante de
Deuteronômio 24, pode-se sugerir que a situação envolvente tem a ver com a questão
financeira. Ele está necessitando de que seu penhor seja devolvido para que ele tenha com que
se cobrir durante a noite (24,10-12). Seria uma demonstração de bondade para com aquele
que tinha apenas o penhor para se cobrir durante a noite que se seguia, e único “patrimônio”
que ainda lhe restava. Assim, se esse “patrimônio” beneficiaria o yni[' em sua sobrevivência, é
certo que não deveria ser tomado.
A questão que se levanta aqui é o que !wOyb.a, e yni[' (´ebyôn e `änî) têm em comum e em que
ponto elas se tocam. A razão para a pergunta é que elas aparecem juntas nos mesmos textos
76
O caso de Elimeleque e sua família deve ter se repetido muitas vezes e com muitas famílias ao longo da
história de Israel, principalmente em tempos de guerra (Rute 1-2), fome ou praga. 77
A raiz hni[, de yni[', aparece com o substantivo ynI[\ [`onî]. Ele é traduzido pela BJ por “miséria” em
Deuteronômio 16,3 para qualificar o pão ázimo (“pão de miséria”) que deveria ser comido na festa dos Pães
Ázimos. A outra ocorrência desta palavra está na confissão encontrada em Deuteronômio 26,1-11. No versículo
7 ela é traduzida por “miséria” para qualificar a condição do povo de Israel no Egito. Há ainda outra palavra
relacionada ao assunto dos Entes Silenciosos e que aparece em Deuteronômio 28,48.57 - rs,xo). A BJ traduz a
palavra em 28,48 por “privação” e em 28,57 por “faltando”. Nesses dois casos a palavra vem acompanhada de
lKo, “todo”, “tudo”. Assim, a BJ traduz: “privação total” e “faltando tudo”.
57
dentro do livro (capítulos 15 e 24). O passo seguinte desta pesquisa é desenvolver esse
assunto, mas apenas em Deuteronômio 24.78
2.1.2.3. O !wOyb.a, e yn[' (´ebyôn e `änî) como sinônimos em Deuteronômio – uma
exegese de Deuteronômio 24
O livro de Deuteronômio foi escrito para lidar com o homem ambientado em um país que tem
sua economia baseada em produtos extraídos do campo, seja pelo cultivo de alguma lavoura
seja pela criação de animais. Assim é de se esperar que, principalmente o Código
Deuteronômico, trate dos relacionamentos dentro desse tipo de ambiente. Esse ambiente é o
que está por trás do texto traduzido a seguir.79
2.1.2.3.1. Tradução sugerida para Deuteronômio 24,10-15
10 - “Quando tu fizeres80
um empréstimo ao teu próximo de alguma coisa,81
não virás à sua
casa para tomar82
o seu penhor (garantia).”83
11 - “No lugar de fora84
(tu) ficarás,85
e o homem, a quem tu estás emprestando,86
trará
para ti o penhor.”87
78
Deuteronômio 15 será dividido para ser analisado neste capítulo e também no capítulo 4 desta tese. Ele tem
conteúdo mais abrangente que foge escopo deste capítulo. 79
Isso não quer dizer que Deuteronômio não toque em elementos citadinos. A presença de um rei a ser escolhido
(17,14.15; 28,36; 33,5), o lugar central para o santuário (12), as cidades-refúgio (4,41.42) e as cidades
conquistadas (3,4) pressupõem um ambiente que também contempla a cidade. Além do mais, a presença de
“portões” em vários lugares no livro pressupõe um ambiente citadino misturado com ambiente do campo. Assim,
para esta pesquisa, há um ambiente misto – campo e cidade como pano de fundo para o livro de Deuteronômio. 80
hV,ît;-yKi( (Kî|-taššè) – imperfeito do verbo hvn, “emprestar, fazer empréstimo”. A conjunção yKi( apresenta
uma hipótese podendo ser traduzida por “quando”. Mas também pode ser traduzida por “se”, próprio para
tradução da construção prótase, introduzida por yKi, e apódose com a determinação seguinte que o caso requer. 81
“Alguma coisa” é “algum empréstimo” na BH [hm'Wa+m. taV;äm;, mašša´t mü´ûºmâ]. taV;äm;, “empréstimo”,
vem de hvn. Do que é constituído o empréstimo não é especificado aqui, deixando sua aplicação aberta para
qualquer tipo de empréstimo. 82
Aj*bo[] jboï[]l; (la`ábö† `ábö†ô). Essa oração infinitiva de propósito forma-se por duas palavras de mesma raiz: o
verbo jb[, “tomar ou dar um penhor por um débito” (HARRIS, 1980, p. 641), e o substantivo jAb[], “penhor,
artigo empenhado como garantia de um débito” (HARRIS, 1980, p. 641). Essa oração infinitiva faz parte do
propósito do verbo vir, aboït'-al{ (lö´-täbö´). Proíbe-se o início de uma ação: “não comeces a vir/ir”. Segundo
Tigay, em Deuteronômio 24,6.17, um verbo sinônimo é empregado pelo redator, lbx [Hbl] (1996, p. 225).
Holladay (BW7) traduz lbx por “exigir o penhor de alguém” ou “tomar alguma coisa em penhor”. 83 `Aj*bo[] jboï[]l; AtßyBe-la, aboït'-al{ hm'Wa+m. taV;äm; ^[]rE(b. hV,ît;-yKi(10 / 10Kî|-taššè bürë|`ákä mašša´t mü´ûºmâ
lö´-täbö´ ´el-Bêtô la`ábö† `ábö†ô. 84
#WxßB;, BaHûc, é uma formação construída de três palavras – o artigo definido h;, a preposição prefixada B, e o
substantivo #Wx. Todo este conjunto visa especificar claramente onde deve ficar aquele que viria receber o
penhor – “no (lugar de) fora”. Fora de sua casa ou mesmo propriedade. Ultrapassar esse limite seria considerado
invasão e humilhação pública de outro homem.
58
12 - “E se o homem for pobre (`änî)88, não te deitarás
89 no penhor
90 dele.”
91
13 - “Deverás fazer retornar,92
para ele, o penhor, quando o sol se pôr.93
E (ele) deitará com
seu manto (o penhor).94
E (ele) te abençoará.95
E, para ti, será justiça96
diante de yhwh
(´ädönäy),97 teu Deus.”
98
85
A escolha da entrega da garantia pertence ao devedor (CHOURAQUI, 1997, p. 248). 86
O que há aqui é um verbo no particípio, hv,änO, nöšè, de hvn. Aqui se buscou traduzi-lo com ideia de
continuidade para enfatizar o pensamento que um homem está fazendo um empréstimo de algo e outro está
dando a garantia para o empréstimo ou devolução do que está sendo emprestado. Mas que pode, por outro lado,
ser traduzido por “emprestaste”. 87
`hc'Wx)h; jAbß[]h;-ta,( ^yl,²ae ayciîAy Abê hv,änO ‘hT'a; rv<Üa] vyaiªh'w> dmo+[]T; #WxßB;11 / 11BaHûc Ta`ámöd wühä´îš
´ášer ´aTTâ nöšè bô yôcî´ ´ëlʺkä ´e|t-ha`ábô† haHûºcâ. 88
O `änî também é empregado em uma legislação similar encontrada em Êxodo 22,25 (no texto Hebraico é
22,24). Somente que o problema a ser evitado ali não está relacionado com o penhor, mas com juros a serem
cobrados, no caso de empréstimo em dinheiro. 89
bK;Þv.ti, tišKab. A partícula negativa está proibindo o começo da ação de retenção da devolução. O emprestador
jamais deveria dormir sobre o penhor do homem que fez o empréstimo. Tigay, porém, afirma que “credores,
provavelmente, não dormiriam nas roupas penhoradas do pobre” (1996, p. 226). 90
Aj*bo[]B;, Ba`ábö†ô. “No seu penhor” é uma referência à garantia dada pelo “homem pobre” (´îš `änî). 91
`Aj*bo[]B; bK;Þv.ti al{ï aWh+ ynIß[' vyaiî-~aiw>12 / 12wü´im-´îš `änî hû´ lö´ tišKab Ba`ábö†ô. 92
Aqui temos uma construção comum para dar ênfase dentro da BH – um infinitivo absoluto e um verbo finito
da mesma raiz no imperfeito: byvi’T' •bveh', häšëb Täšîb. Os dois estão no hifil de bwv, “retornar, tornar”
(HAMILTON, 1980, p. 909). Por isso, preferiu-se apresentar uma tradução indicando que o homem a quem foi
dado o penhor será quem vai fazer retornar o penhor para seu dono, “o homem pobre”: “Causar o retorno (ou
fazer retornar)”, “causarás retornar (ou farás retornar)”. A ênfase vem para dar a força do dever a ser levado pelo
“tu”. Daí porque às vezes se traduz por “certamente farás retornar” para pôr a ordem dentro do contexto de uma
determinação a ser seguida pela pessoa a quem ela foi dirigida, cuja obediência a ela não pode ser recusada. É
um dever. 93
Oração infinitiva temporal para indicar o momento que o penhor deve ser devolvido para o homem que o deu
como garantia. aboK., Kübö´, com verbo awB, “ir, vir” entre outros sentidos (SCHÖKEL, 1997, p. 90), no
infinitivo construto, sendo que a preposição prefixa K traz um sentido temporal aqui. Daí a tradução “quando
ir/vir”, dependendo do contexto. 94
Atßm'l.f;B., BüSalmätô, “com o manto dele (seu)”. hmlf palavra que pode se referir a “manto, capa, veste”
(SCHÖKEL, 1997, p. 644). Pelo contexto, sugere-se que o penhor serviria para cobrir ou envolver o seu dono
durante a noite. Em dias frios, ela serviria de proteção. Assim, o ato de devolver o penhor para que sirva de
cobertor durante a noite era um ato de bondade com o devedor, apesar da dívida que o penhor dava garantias de
pagamento. 95
“Quando é dito que um humano abençoa, usualmente significa ‘proferir uma oração começando com a palavra
‘bendito’ [%WrB']” (TIGAY, 1996, p. 226). 96
A palavra para “justiça” é hq'êd"c. [cüdäqâ], não jp'v.mi [mišPa†]. As duas são traduzidas para o português, de
modo geral, pela palavra “justiça”. Enquanto que a segunda aponta para um tribunal onde se faz justiça, a
primeira mira um ato justo. Assinale-se que o ponto de vista para avaliar o ato como justo ou não é o divino.
Para o credor, devolver o penhor que lhe dava garantia do pagamento da dívida poderia não ser justo, mas para
Deus isso seria como justiça (notar Deuteronômio 6,25). Para Tigay, a implicação disso é que a pessoa que
devolve a vestimenta para o pobre “acumula crédito por feito meritório” (1996, p. 83). Para ele, o conceito que
está por trás do texto é a de “aquisição de capital” na ideia talmúdica, onde “um bom feito produz capital e nutre
juros” (1996, p. 83). Por sua vez, Abraham ibn Ezra entende “justiça” como aquilo que “é certo para você lhe
permitir dormir com sua garantia” (2003, p. 114). 97
Segue-se aqui uma transliteração para o nome divino: ^yh,(l{a/ hw"ïhy>, yhwh (´ädönäy) ´élöhʺkä. Normalmente
esta pesquisa, quando fala de Deus, não o cita por seu nome pessoal, mas por chamá-lo de “Deus de Israel” ou “o
Deus de Israel”.
59
14 - “Não extorquirás99
salário (pagamento)100
de teu irmão excessivamente pobre101
(`änî
wü´ebyôn),102
ou do teu estrangeiro que vive na tua terra,103
nos teus portões.”104
15 - “No seu (mesmo) dia darás o seu salário, e (antes que) o sol vá de sobre ele. Porque
pobre105
(é) ele. E para ele mesmo levanta106
sua vida.107
E assim ele não clamará
sobre ti a yhwh (´ädönäy), e haverá em ti pecado108
.”109
98 `^yh,(l{a/ hw"ïhy> ynEßp.li hq'êd"c. hy<åh.Ti ‘^l.W &'k<+r]bE)W Atßm'l.f;B. bk;îv'w> vm,V,êh; aboåK. ‘jAb[]h;-ta,( AlÜ byvi’T' •bveh'13 / 13häšëb Täšîb lô ´e|t-ha`ábô† Kübö´ haššeºmeš wüšäkab BüSalmätô ûbë|rákeºKKä ûlükä Tihyè
cüdäqâ lipnê yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä. 99
qvoï[]t;, ta`ášöq, do verbo qv;[',. Entre os significados para esse verbo, Schökel alista “explorar, oprimir,
defraudar, surrupiar” (1997, p. 524). Diante disso, optou-se aqui por traduzi-lo por “extorquir” pela violência que
isso representa sobre uma pessoa que tem somente aquilo como meio de sua sobrevivência, e também porque a
violência está na força que representa deixar de pagar alguém, mesmo que se tenha condição para isso. Assim,
deixar de pagar, por si só, expressa violência contra quem necessita do pagamento. O verbo qv;[', também “está
associado com roubo e fraude (Levítico 19,13; 1 Samuel 12,4.5). Ele aparece nas maldições de Deuteronômio
28,29.33” (NELSON, 2002, nota p, p. 285). O verbo é “um termo geral para maltrato e trapaça sobre aquilo que
pertence a outro... é um termo que estigmatiza o atraso no pagamento de salário como um roubo” (TIGAY, 1996,
p. 226, 227). 100
rykiÞf', Säkîr, “a ideia básica da palavra é atrair os serviços de uma pessoa por pagamento” (ROGERS, 1980,
p. 878). McCarthy diz que “oprimir o salário implica em traição a respeito do salário que fora combinado”
(2007, p. 118). 101
!Ay=b.a,w> ynIå[', `änî wü´ebyôn, é uma construção que aparece outras doze vezes dentro da BH. Como as duas
palavras são traduzidas por “pobre” em contextos diferentes, nos quais elas não aparecem juntas, optou-se por
manter esta tradução para salientar que são palavras com mesmo campo semântico (“teu irmão pobre e pobre”).
Porém, em discussão posterior, esta pesquisa destacará que a ocorrência delas juntas é por motivo de ênfase, em
que uma enfatiza a condição que a outra apresenta. 102
Em outros livros da BH, essa construção aparece distribuída com outras palavras: `änî e däl (Isaías 11,4;
26,6) e däl e ´ebyôn (Salmo 113,7; Provérbios 14,31; Isaías 24,4). Apenas para salientar – em Isaías 11,4, a
palavra que aparece na frase paralela a de däl é wn"[' [`änäw], da mesma raiz que `änî e com mesma forma de
tradução. Em 1 Samuel 18,23, o texto hebraico diz: hl,(q.nIw> vr"î-vyai( ykiÞnOa'w> / wü´änökî ´î|š-räš wüniqlè. Aqui
há dois particípios usados para qualificar o homem que Davi diz ser: vr"î e hl,(q.nI. Davi se auto intitula homem
“que é pobre” e “que é de pouca estima (alguém de quem pouco se leva em conta)”. 103
Em Levítico 19,13 aparece a mesma lei que a de Deuteronômio 24,14. A diferença está em que, em Levítico,
a lei é aplicada a todos os trabalhadores, mas, em Deuteronômio 24,14, o foco é o trabalhador pobre, seja ele um
israelita, seja um estrangeiro residente (TIGAY, 1996, p. 226). 104 `^yr<(['v.Bi ^ßc.r>a;B. rv<ïa] ^±r>GEmi Aaô ^yx,§a;me !Ay=b.a,w> ynIå[' rykiÞf' qvoï[]t;-al{14 / 14lö´-ta`ášöq Säkîr `änî
wü´ebyôn më´aHʺkä ´ô miGGërkä ´ášer Bü´arcükä Biš`ärʺkä. 105
`änî. 106
afeÞnO é particípio, podendo ser traduzido perifrasticamente por “está levantando”, ou, simplesmente, por
“levanta, ergue”. Ezra entende que o verbo nesse texto tem a ideia de “suportar”, no sentido de “sustentar a si
mesmo dali” (2003, p. 114). 107
Frase de difícil tradução. Aqui ela é traduzida o mais próximo do texto hebraico: Av=p.n:-ta, afeÞnO aWhï wyl'§aew> (wü´ëläyw hû´ nöSë´ ´et-napšô). A primeira parte, wü´ëläyw hû´, “e para ele, ele”, escolheu-se a alternativa de
traduzir hû´ por “mesmo, si mesmo”, haja vista que a preposição ´ël já vinha acompanhada do sufixo
pronominal da 3a pessoa do singular masculino. Mas que também seja possível a alternativa seguinte: “e para
ele, ele levanta sua vida”. 108
Quando o fiador entrega o penhor, para proteção do homem pobre, antes do pôr do sol é “justiça”, a não
entrega é “injustiça”. No texto é “pecado” (aj.xe(, H뺆´). A mesma construção é vista em Deuteronômio 23,22
(Hebraico), onde é referido o pagamento de um voto. O redator olha para o atraso no pagamento como um ato de
crueldade por parte daquele que contratou o trabalhador (TIGAY, 1996, p. 227).
60
2.1.2.3.2. O Sitz im leben110
de Deuteronômio 24
O contexto de vida no qual o capítulo está ambientado é dentro da perspectiva do
relacionamento entre um homem que faz um empréstimo e o outro que o recebe. Há de se
destacar também que os dois parecem possuir ao menos uma propriedade, pois o que fez o
empréstimo precisa ficar fora da porta da casa111
daquele que tomou o empréstimo.112
Assim,
o ambiente113
específico no qual o texto se ambienta não é claro, pois o homem credor tem
acesso à porta daquele que fez a dívida, e isso poderia acontecer tanto na cidade quanto no
campo. Pode-se pressupor aquela vida rural que se desenvolve a partir da vida no entorno (ou
em função) da cidade. Mas isso é que se pode apenas pressupor.114
Dentro desse ambiente, duas situações são apresentadas. A primeira é aquela de um homem
pobre que fez um empréstimo e, como garantia de pagamento, entregou sua capa com a qual
ele se cobre durante a noite. A capa era a única “boa” garantia que ele tinha para quitar o
empréstimo. A outra é a de um trabalhador carente, pobre, que trabalha em função de sua
sobrevivência. A subtração de seu salário poderá levá-lo a uma situação de crise. O ambiente
do oitavo século no Reino do Norte e a subsequente situação encontrada por Josias como
herança de seu antecessor, Amon,115
bem como no exílio e pós-exílio favoreceriam o
surgimento de situações que o Deuteronômio pretendia corrigir.
109 `aj.xe( ^ßb. hy"ïh'w> hw"ëhy>-la, ‘^yl,’[' ar"Ûq.yI-al{)w> Av=p.n:-ta, afeÞnO aWhï wyl'§aew> aWhê ‘ynI[' yKiÛ vm,V,ªh; wyl'ä[' aAbôt'-al{w>) Arøk'f. !Te’ti •AmAyBi15 / 15Büyômô tiTTën Sükärô wü|lö´-täbô´ `äläyw haššeºmeš Kî `änî hû´ wü´ëläyw hû´ nöSë´
´et-napšô wülö|´-yiqrä´ `älʺkä ´el-yhwh(´ädönäy) wühäyâ bükä H뺆´. 110
Crüsemann traduz essa construção por “lugar vivencial” (2008, p. 25). 111
A casa em vista, porém, pode fazer parte da propriedade do credor, fazendo do homem endividado um
morador na propriedade daquele a quem ele prestava serviço, ao mesmo tempo faz da casa do devedor seu
território, o qual deve ser respeitado pelo credor. O credor, nesse caso, poderia pensar que, por ceder a casa a um
morador devedor, ele teria o direito de invadir aquela casa para receber o que lhe era devido. A legislação quebra
esse paradigma e estabelece a ordem do respeito pelo ser humano como tal. 112
O livro de Deuteronômio busca resolver aqui um problema comum e que corresponde às necessidades de
homem endividado em risco de ser violentado pelo credor. 113
Com a apropriação do material de Deuteronômio nos reinados de Ezequias e Josias (principalmente), o seu
conteúdo foi adaptado para a nova realidade, sugerindo constantes atualizações de seu material para novos
contextos, principalmente o ambiente citadino. 114
É recorrente dentro do livro de Deuteronômio o contexto de “cidade”. Mesmo que o livro tenha nascido
dentro da perspectiva do homem que lida com a terra em um ambiente rural (Deuteronômio 26,1-11 aponta nessa
direção – o campo), a aplicação da legislação do Deuteronômio ganhou aplicação para a vida de quem mora em
cidade ([ry[i’/ `îr] Deuteronômio 2,36.37; 3,4.6;20,10.19; 13,13.15.16; 19,12; 20,10.14.19.20; 21,3.6.19.20.21;
22,15.17.18.21.23.24; 25,8; 28,3.16; 34,3). Essas inúmeras ocorrências da palavra “cidade” demonstram que a
vida em Deuteronômio tinha aspectos citadinos muito presentes. 115
Notar o que diz 2 Crônicas 33,21-25. Amon foi filho de Manassés, e do qual é dito que ele corrompeu o povo,
a tal ponto de fazerem pior que qualquer povo que havia sido expulso diante de Israel (2 Reis 21,9; 2 Crônicas
33,9).
61
Assim, o redator do Deuteronômio levanta uma possibilidade casuística e um mandamento
direto, e, com isso, procura estabelecer um padrão mínimo que trouxesse solidariedade no
relacionamento entre aqueles que estivessem na condição de poder manter o trato correto
entre o fiador e aquele que havia tomado um empréstimo, bem como entre quem trabalhava
no campo e quem contratava seu serviço.
A situação deve ter sido desesperadora para aquele que não possuía defesa diante de um
“grande”, e, por isso, a intervenção do redator se mostraria apropriada, criando (ou tornando
abrangente) uma legislação a partir de uma situação rotineira do cotidiano da vida no campo,
e na cidade, e, com isso, procurava solucionar um problema recorrente dentro das
comunidades do Israel do século VIII AEC, e em períodos subsequentes da história de Israel,
já estabilizado na Terra da Promessa.
Porém, o que essa legislação casuísta destaca? Qual era a situação problemática que ela tenta
corrigir? A análise que segue responderá a esses questionamentos.
2.1.2.3.3. Análise de Deuteronômio 24,10-15
O capítulo 24,10-15 começa com uma construção comum, dentro do livro de Deuteronômio,
empregando uma estrutura que é formada de uma prótase, onde está a oração condicional, e
de uma apódose, na qual se declara o dever. Essa construção é chamada de “Direito
Casuístico”116
(2000, p. 195).117
Tal construção, encontrada no versículo 10, poderia ser
invertida – “Não virás à sua casa para tomar o seu penhor (garantia), quando tu fizeres um
empréstimo ao teu próximo de alguma coisa”, com o intuito de reforçar a proibição. Essa é a
finalidade do texto ao começar com uma hipótese casuística, e, com isso, a ideia básica do
texto não seria afetada.
116
Deve-se levar em consideração que o Direito Casuístico não é uma criação dos legisladores israelitas, mas
uma construção encontrada nas legislações de outros povos. De Vaux menciona que “os códigos mesopotâmicos
são redigidos em forma ‘casuística’ e uma parte da legislação israelita encontra neles um bom paralelo
estilístico” (2003, p. 180). Ele também diz que se pode fazer comparação com “os tratados impostos pelos reis
hititas a seus vassalos” (2003, p. 180). Crüsemann, por sua vez, afirma que o Direito Casuístico “está
relacionado de forma bem estreita com o direito do Antigo Oriente e, no fundo, dele se origina” (2008, p. 25).
Crüsemann fala também do “Direito Apodítico”, no qual estão “diferentes formas de sentenças como
mandamentos e proibições, maldições e sentenças jurídicas participiais” (2008, p. 25). Esse direito é “o direito
antigo e original de Israel” (2008, 25). 117
Silva diz que prótase é a oração condicional que abre o texto. A apódose é a oração que traz a ordem, ou
declaração de impunidade ou pena (2000, p. 195). O usual, nesse tipo de construção, é a oração condicional
apresentar uma hipótese (“Se algo acontecer”), seguida de uma ordenança a ser cumprida (a apódose), caso a
condição apresentada na prótase se torne uma realidade.
62
2.1.2.3.3.1. Primeiro caso: a situação de um homem que penhora sua
capa pessoal por um empréstimo (Deuteronômio 24,10-13)
O primeiro caso é aquele de um homem que toma um empréstimo. A garantia que o
empréstimo seria devolvido deveria ser dada. Essa garantia não poderia ser retirada à força da
casa do homem que tomou o empréstimo. Porém, aquele que receberia a garantida proposta
deveria ficar fora. Este “fora” sugere “fora da casa”, ou da propriedade, onde o devedor
guarda a garantia.118
O que o redator está proibindo é uma espécie de uso da força vista na violência ao entrar na
casa de alguém, para retirar uma garantia de pagamento sem o devido convite para isso.119
Como o empréstimo dava ao credor grande poder sobre aquele que tomou o empréstimo
(NELSON, 2002, p. 290), o redator busca impedir a violência que essa ação representava, não
deixando que ela aconteça. O fiador torna-se solidário com o devedor, ficando fora para
esperar a entrega voluntária da garantia. Essa era uma forma de mostrar respeito pelo homem
que devia entregar o penhor, não o desonrando em sua própria casa.120
Partindo da ideia de que o imperfectivo121
indica que a ação está “no processo de realização”
(ARNOLD & CHOI, 2003, p. 56-57), a ação proibida pela construção lö´-täbö´, “não virás”,
coloca ênfase no início da ação, ao mesmo tempo em que proíbe sua frequência ou repetição,
caso esse tipo de comportamento tenha acontecido repetidamente dentro das diferentes
comunidades lideradas por diferentes clãs dentro do Israel do século oitavo e daí por diante
(século VI AEC, período do exílio e pós-exílio).122
118
Os dispositivos para a efetivação das transações comerciais entre o que empresta e o que toma emprestado são
relativamente simples (DRIVER, 1895, p. 276). 119
Para Craigie, “este requerimento protege a privacidade da casa do recipiente, e deixa-o escolher o artigo que
deve ser dado” como garantia do empréstimo (1976, p. 308). 120
Para a halakhah, Deuteronômio 24,10.11 significa “que o credor não pode tomar a possessão do devedor por
qualquer tipo de força. Para prevenir isso, ela permite somente com o aval da corte” (TIGAY, 1996, p. 225). 121
Nomenclatura proposta pelo orientador para a ação incompleta do verbo Hebraico. 122
A queixa do “Israel pobre” contra o “Israel rico” em Neemias é ilustrativa desse tipo de violência, quando o
primeiro acusa o segundo de escravizar seus filhos e filhas por causa de dívidas não pagas. O texto deixa
subentendido que alguns estavam escravizando os próprios “irmãos”. Há uma acusação de Neemias contra
alguns de seu tempo que estariam vendendo seus próprios irmãos a estrangeiros (Neemias 5,8), tornando a
escravidão quase insolúvel.
63
O penhor seria entregue ao fiador, fora da casa, e à noite deveria retornar para o que tomara o
empréstimo: 24,12.13 – “E se o homem for pobre (`änî),123 não te deitarás no penhor dele.
Deverás fazer retornar o penhor para ele, quando o sol ir. E (ele) deitará com seu manto. E
(ele) te abençoará. E, para ti, será justiça124
diante de yhwh (´ädönäy), teu Deus.” A ação
inversa desta ordem seria considerada uma injustiça diante do Deus de Israel.
Salientem-se os seguintes dados. Primeiro, o penhor dado era algo que serviria de garantia e
do qual dependia a proteção do ynI['.125 Portanto, era algo valioso para o `änî. Segundo, o
fiador não deveria fazer qualquer outro uso do penhor para benefício pessoal. O princípio
proíbe o usufruto do penhor durante a noite por parte do fiador. Ele deveria retornar ao seu
dono para seu benefício durante a noite e esta ação é levada a cabo pelo próprio fiador. Assim,
o penhor tem aqui a função específica de garantir que a dívida será paga, não que ele deva
entrar como parte do patrimônio do fiador e assim este usufruir dele. A ordem para devolução
é colocada na forma de um dever a ser cumprido. A BJ entendeu assim e traduziu esta
construção no infinitivo absoluto + imperfeito por “deverás devolver”. O “tu”, ou o homem
livre e com capacidade de ajudar o ynI[', teria a liberdade para não atender a esse dever. Mas o
que vem a seguir serviria para estímulo e para ver a vantagem que ele teria caso ele partisse
para a obediência.
Portanto, diante da possibilidade da proibição ser atendida pelo fiador, haveria um benefício
adicional para ele, se ele obedecesse ao mandamento, especificamente, no caso do homem
endividado ser “pobre”, era este: “E (ele) te abençoará. E, para ti, será justiça diante de yhwh
(´ädönäy), teu Deus”. Primeiro, a retorno do ynI[' seria em que, da parte dele, haveria
invocação de sucesso para o empreendimento do fiador. O ynI[' já deu o que tinha que dar e o
que ele tem de mais para dar está dentro da fé. O ynI[' buscaria, diante do Deus de Israel, o
favor para aquele que estivesse usando de benevolência para com ele. Invocar a bênção de
123
Para Tigay, o homem pobre é não somente um necessitado, mas que ele é mais que isso, ele é “absolutamente
destituído, ao ponto que ele não possui nada que possa ser penhorado, exceto o envoltório com que ele dorme à
noite” (1996, p. 225). 124
Para Chouraqui, “a justificação não é nem esmola nem caridade puramente livre. Devemos compará-la antes à
equidade, que realiza a justiça interpretando leis e contratos da maneira mais favorável à parte em dificuldade...
A justificação decorre dos atos que provam a justiça do homem” (1997, p. 248). 125
Algo tão importante assim daria ao fiador a certeza de que a dívida seria paga. O fiador estava evitando um
calote, com isso, protegendo seu patrimônio. Como o patrimônio era também uma herança que seria deixada
para os filhos, o credor está também protegendo a próxima geração de seus filhos.
64
Deus sobre o credor coloca o ynI[' em posição de poder. Isso só ocorreria se nesse quadro
estivesse presente o seu Deus (NELSON, 2002, p. 291).
Assim, o redator coloca um segundo elemento – o próprio Deus de Israel entenderia isso
como um ato de justiça feito pelo fiador em sua obediência ao mandamento de devolver, ao
pôr do sol, o penhor do ynI['.126 Essa justiça seria creditada pelo próprio Deus em favor do
credor benevolente. O que o redator está dizendo é que o credor também tem uma dívida –
essa é com Deus. Se ele for beneficente com o seu devedor, Deus também será com ele. Mas a
obediência do credor faz com que Deus passe a dever a ele. O pagamento da parte divina será
a bênção.
Uma observação adicional deve ser feita. A justiça é dita que seria diante de Deus. À
semelhança do patriarca Abraão, em Gênesis 15,6, a justiça127
viria como resposta a um ato de
fé. Somente se o credor cresse que seria abençoado pelo Deus de Israel por devolver o penhor
ao pôr do sol, e que aquele ato seria agradável ao seu Deus, é que ele iria até a casa do ynI['
para devolver-lhe aquela garantia que serviria de proteção ao ynI['. “Justiça” aqui tem a ver
com o correto relacionamento com o seu próximo necessitado, mas que isso seja em
obediência a uma ordem divina.
Como a “justiça” é diante de Deus, então, o correto relacionamento é primariamente com o
Deus de Israel, e o resultado disso se dará no campo dos relacionamentos humanos. O correto
relacionamento do homem com homem, vindo em obediência ao seu Deus, resulta no correto
relacionamento do homem com Deus. O resultado disso será que aquele que assim procede
em fé será abençoado.
O primeiro caso apresentado pelo redator trata de um relacionamento entre um ynI[' [`änî ] e
um fiador, envolvendo a questão de um empréstimo e sua garantia. O segundo caso segue
pelo caminho do relacionamento de trabalho.
126
Deve-se destacar que a promessa que o ynI[' vai abençoar o fiador e que Deus entenderá isso como um ato de
justiça diante dele são afirmações que o redator está dando como fonte de estímulo à generosidade por parte do
fiador. O que se percebe aqui é a colocação de uma motivação teologicamente bem estabelecida. Para Nelson,
como justiça está em oposição ao pecado (15,9; 24,15), aqui “há o reflexo da fórmula cúltica pela qual o
sacerdote declararia a pessoa justa” (2002, p. 291). 127
A palavra para “justiça” em Gênesis 15,6 é a mesma que ocorre em Deuteronômio 24,13 (hq'êd"c., cüdäqâ).
Essa justiça se adquire diante do Deus de Israel por ser obediente a ele. Obediência a Deus é resultado de fé que
a parte de “yhwh (´ädönäy), teu Deus”, a bênção, será cumprida. É claro que essa justiça será resultante da
obediência ao mandamento divino (ver Ezequiel 18,9).
65
2.1.2.3.3.2. A situação de um homem que trabalha por sua
sobrevivência (Deuteronômio 24,14-15)
Tanto o caso de um homem que toma um empréstimo e entrega um bem essencial como
garantia de pagamento ao fiador quanto ao que trabalha pela sua sobrevivência diária têm em
comum a declaração de que os dois são caracterizados por serem ynI[' [`änî]. Mas o que os
envolve são assuntos diferentes e a estrutura da escrita também difere uma da outra. O
segundo caso não é colocado na forma de uma hipótese, mas na forma de um mandamento
constituído de uma negativa seguida de um imperfectivo.128
Observe o texto:
14 - “Não extorquirás salário (pagamento) de teu irmão excessivamente pobre,129
ou do teu
estrangeiro130
que vive na tua terra, nos teus portões.”
15 - “No seu dia darás o seu salário, e (antes que) o sol vá de sobre ele.131
Porque ele (é)
pobre. E para ele mesmo levanta sua vida.132
E (assim) ele não clamará sobre ti a
yhwh (´ädönäy), e (se ele clamar) haverá em ti pecado.”133
A proibição lida com a sonegação do direito ao pagamento de um empregado contratado por
um dia de trabalho. Ele era um diarista que trabalhou para receber ao final do dia um
128
qvoï[]t;-al{, lö´-ta`ášöq. Segundo Driver, qv[ é empregado especialmente para opressão causada por roubo
ou fraude. Ele cita como outros exemplos Deuteronômio 28,29.33; 1 Samuel 12,3.4; Ezequiel 18,18; 22,20;
Amós 4,1; Malaquias 3,5 (1895, p. 276). 129
O Salmo 72,13 traz a seguinte construção: `[:yvi(Ay ~ynIåAyb.a, tAvßp.n:w> !Ay=b.a,w> lD:ä-l[; sxoy"13 (13
yäHös `al-Dal
wü´ebyôn wünapšôt ´ebyônîm yôšîª`, “Ele olha compassivamente sobre o pobre e necessitado, e ele liberta a
vida (alma) dos necessitados”). A construção Dal wü´ebyôn aproxima o campo semântico de Dal do de `änî.
Outra ocorrência desta mesma construção está no Salmo 82,4. Nessa mesma ordem, mas separadas por um
particípio no plural, elas aparecem em Amós 4,1. A construção Dal wü`änî não aparece na BH. Mas o inverso
está presente: `änî wüDal (Sofonias 3,12: “E deixarei no meio de ti um povo pobre e insignificante, e buscarão
refúgio no nome do Senhor” [`hw")hy> ~veîB. Wsßx'w> ld"_w" ynIß[' ~[;î %Beêr>qib. yTiär>a;v.hiw> / wühiš´arTî büqirBëk `am
`änî wädäl wüHäsû Büšëm yhwh(´ädönäy)]). Elas aparecem separadas por uma palavra, mas na mesma ordem
em Isaías 26,6: “O pé a pisará: Os pés do pobre, os passos do fraco” [`~yLi(d: ymeî[]P; ynIß[' yleîg>r: lg<r"+ hN"s<ßm.r>Ti / Tirmüseºnnâ räºgel raglê `änî Pa`ámê dallîm]. 130
A mesma legislação para o irmão pobre vale para todo estrangeiro [rGE / Gër] na mesma condição de
trabalhador assalariado. 131
Esta é uma indicação de que o salário não deve ficar para o dia seguinte. O sol não deve se pôr sobre o salário
do trabalhador, ou seja, ter seu pagamento adiado. 132
Notar esse duplo apelo à solidariedade humana (“Porque ele (é) pobre. E para ele mesmo levanta sua vida”),
sobre que o “teu irmão” deveria demonstrar sua compaixão. 133
O grito do oprimido viria na forma de um lamento diante de Deus, onde imprecações seriam invocadas sobre
o empregador, como se ele fosse um inimigo do assalariado (NELSON, 2002, p. 291-292). O grito de socorro do
pobre seria ouvido por Deus que viria em seu auxílio.
66
pagamento relativo às horas trabalhadas. Portanto, um pagamento devido a ele pela trabalho
prestado, mas sem a especificação do tipo de trabalho feito.
O primeiro elemento caracterizador do `änî aqui é que ele também é um ´ebyôn. É possível
perceber uma forma alternativa de tradução quando as duas palavras, !wOyb.a, e yn[' [`änî
wü´ebyôn],134
ocorrem no mesmo versículo, na sequência uma da outra, como acontece aqui
(Deuteronômio 24,14). Para esta pesquisa, seria melhor entender e traduzir a segunda palavra,
´ebyôn, como uma forma de ênfase sobre a primeira que aparece no texto. Daí a ideia de
“pobre e necessitado”.
A sugestão seria que, em lugar de traduzir por “pobre” e “necessitado”, como faz a BJ, seria
melhor traduzir por “muito/muitíssimo pobre”, “paupérrimo”. Entende-se com isso, pelas
análises anteriores, que as duas palavras já trazem em si a ideia de necessitado, fazendo
desnecessária sua tradução por uma palavra diferente, apenas porque há necessidade de
traduzi-la. Portanto, o redator quis enfatizar a penúria do homem denominado por `änî
wü´ebyôn.
Nessa direção, deve-se observar o que acontece no Salmo 35,10: “Todos os meus ossos
dizem: yhwh, quem é como tu? O que salva o pobre [ynIï[' / `änî] do mais forte que ele, e o
muito pobre [!Ay©b.a,w>÷ ynIï[' / wü`änî wü´ebyôn] do que lhe arranca”.135
Como nesse salmo, em
Deuteronômio 24,10-15, o `änî aparece só (24,12.15) e acompanhado do ´ebyôn (24,14). Isso
reforça a ideia de que, se o salmista quisesse falar apenas de um homem pobre, o `änî seria
suficiente. Mas, tal qual em Deuteronômio, o salmista também quer enfatizar que o `änî é
também ´ebyôn – alguém muito pobre, e, por isso, também muito indefeso, exceto pela
presença do Deus de Israel em seu socorro. No caso de Deuteronômio, Deus atenderá uma
134
As duas palavras aparecem juntas, nesta mesma ordem, !Ay=b.a,w> ynIå[' /`änî wü´ebyôn, além de Deuteronômio
24,14, em Jó 24,14 (“o pobre e o indigente”); Salmos 35,10 (“o pobre e o indigente”); 37,14 (“o pobre e o
indigente”); 40,18 (“pobre e indigente”); 70,6 (“pobre e indigente”); 74,21 (“o pobre e o indigente”); 86,1
(“pobre e indigente”); 109,16 (“o pobre e o indigente”).22 (“pobre e indigente”); Jeremias 22,16 (“do pobre e do
indigente”); Ezequiel 16,49 (“ao pobre e ao indigente”); 18,12 (“o pobre e o necessitado”). A tradução colocada
em parêntesis é a que é encontrada na BJ. Uma observação pode ser colocada aqui – a ideia de “pobre e
necessitado” é enfática sobre a condição do homem tratado no texto, pois pode ser que houvesse um pobre que
não fosse necessitado. 135
O texto hebraico do Sl 35,10: `Al*z>GOmi !Ay©b.a,w>÷ ynIï['w> WNM,_mi qz"åx'me ynI['â lyCiäm; ^Amïk'ñ ymiî hw"©hy> éhn"r>m;aTo Ÿyt;’Amc.[; lK'î / Kol `acmôtay Tö´marnâ yhwh(´ädönäy) mî kämôºkä maccîl `änî mëHäzäq mimmeºnnû wü`änî
wü´ebyôn miGGözlô – “Todos os meus ossos dizem ao Senhor: Quem é como tu? Aquele que livra (está
livrando) um pobre do mais forte que ele, e um pobre e necessitado daquele que o rouba”.
67
queixa contra quem sonegar o salário do trabalhador. A queixa será apresentada pelo `änî
wü´ebyôn.
O segundo elemento que caracteriza o `änî é que ele também é “irmão” do empregador. A
provável situação é a de um clã que possui terras, e um dos membros desse clã caiu na
condição de um `änî wü´ebyôn. Essa possibilidade se torna mais forte porque este “teu irmão”
também á alguém “que (está/vive) na tua terra, nos teus portões”. É possível que essa
declaração seja uma oração que esteja qualificando o “teu estrangeiro” que vem em seguida a
“teu irmão”. Mas também pode ser entendida como um qualificativo para os dois. Tanto um
como o outro estariam vivendo sob a proteção da liderança do clã e dentro. Por isso a
afirmação – “na tua terra, nos teus portões”, ou seja, dentro da propriedade do “teu irmão”.
Vivendo assim, “na tua terra, nos teus portões”, o `änî se tornaria alguém fragilizado pela
condição de dependência, e o “irmão” empregador poderia entender que, por viver o `änî
dentro de suas terras, ele não veria problema em deixar de pagá-lo porque já lhe dava um
lugar de morada e proteção. A legislação é taxativa: “Não extorquirás o salário (pagamento)
de teu irmão muitíssimo pobre”. E ainda enfatiza: “No seu dia darás o seu salário, e (antes
que) o sol vá de sobre ele”, seguido de uma reafirmação da condição de sua vida: “Porque
pobre (é) ele”. Note-se que essa explicação vem como reforço da motivação para o salário do
trabalhador não ser retido.
O terceiro elemento caracterizador é o motivo de o `änî trabalhar – “E para ele mesmo levanta
sua vida”. O que vem a ser o sentido do qal particípio nöSë´ [afeÞnO] no texto? Schökel
apresenta uma lista significativa de sentidos que tem a raiz nS´ – “levantar, erguer, pôr,
carregar, levar, trazer, transportar” (1997, p. 450). Entre os sentidos figurados, ele aponta os
sentidos de “suportar, aguentar, tolerar, poder com, manter, sustentar” (1997, p. 452). A
Septuaginta traduziu a mesma frase por “evn auvtw/| e;cei th.n evlpi,da”136
(“nele tem a
esperança”).
136
Septuaginta - 14ouvk avpadikh,seij misqo.n pe,nhtoj kai. evndeou/j evk tw/n avdelfw/n sou h' evk tw/n proshlu,twn
tw/n evn tai/j po,lesi,n sou 15 auvqhmero.n avpodw,seij to.n misqo.n auvtou/ ouvk evpidu,setai o ̀h[lioj evpV auvtw/| o[ti pe,nhj evsti.n kai. evn auvtw/| e;cei th.n evlpi,da kai. ouv kataboh,setai kata. sou/ pro.j ku,rion kai. e;stai evn soi. a`marti,a
(tradução sugerida: (14) “Não reterás salário de uma pessoa pobre e pobre de teus irmãos, ou dos prosélitos nas
tuas cidades, (15) pagarás no mesmo dia o salário dele. Não descerá o sol sobre ele, porque pobre é e nele tem
esperança, e (assim) não gritará contra ti ao Senhor e será (encontrado) em ti pecado”).
68
Com isso, algumas observações conclusivas podem ser colocadas. Primeiro, como apontou
Schökel, em sentido figurado, a raiz nS’ pode ser traduzida por “manter, sustentar”. Isso se
aproximaria do entendimento que a Septuaginta trouxe para a tradução para o grego – “nele
tem a esperança”. “Nele” numa referência ao “salário” ou pagamento que aquele trabalhador
pobre esperava para o fim do dia. Mas “esperança” de quê? A esperança de sustentar sua
“vida” por meio do recebimento do pagamento devido. Aquele pagamento era a única
esperança que o `änî tinha para continuar vivo. Era nele que ele tinha esperança de manter sua
vida.
Assim, “E para ele mesmo levanta sua vida” tem a ver com o trabalho que traz esperança de
sustento para aquele dia. O `änî não tem quem trabalhe por ele ou outro meio de
sobrevivência. Cortar o salário dele seria frustrar as esperanças que ele, como trabalhador,
tinha para o fim do dia. Porque aquilo era a forma dele “carregar a sua vida” ou levantar o
sustento a si mesmo. Cortar ou adiar o pagamento diário do trabalhador era uma ameaça à
sobrevivência dele.
Para finalizar sua colocação sobre o pagamento da diária do trabalhador, o redator coloca um
incentivo da mesma maneira em que o fez para motivar o fiador a devolver o penhor no final
do dia. A falta do pagamento levaria o `änî a apelar para o Deus de Israel, e isso levaria Deus
a agir em favor dele. O pagamento em dia impediria o `änî de querer justiça, e se ele assim
procedesse não seria encontrada falta grave no empregador: “ele não clamará137
sobre ti a
yhwh (´ädönäy), e (se ele clamar) haverá em ti pecado”.
O “pecado” aqui tem a ver com a atitude de descumprimento da ordenança divina, sendo um
desvio daquilo que o Deus de Israel queria naquela situação para o seu povo. Portanto, trata-se
de um ato de desobediência – ele falhou em cumprir uma ordem divina. Enquanto que a
“justiça diante de Deus” é a harmonia do homem com a vontade divina, o pecado, por outro
lado, é o oposto dessa conformidade. Fazer o que o Deus de Israel ordena é harmonizar-se
com uma vida justa – ou uma vida em conformidade com as ordenanças divinas. Essa é uma
137
Dá para se estabelecer uma questão: Por que o `änî clamaria ao Deus de Israel, não ao rei, para que lhe fosse
feita justiça? Entendendo-se que o Código Deuteronômico vem do século oitavo do Reino do Norte, onde não
houveram reis “como Davi”, então é possível entender por que esse Ente Silencioso clamaria a Deus, pois da
parte do rei não haveria resposta. Entretanto, pode-se ainda se afirmar que o Código Deuteronômico vem de
longo prazo se desenvolvendo para estabelecer as relações entre as partes constituintes da sociedade por ele
regida, sendo possível seu desenvolvimento desde tempos em que não havia reis para governar o povo, e onde o
povo considerava Deus como seu rei e a quem ele deveria apelar nas situações em que ele se sentisse injustiçado.
69
vida de retidão. Não fazer o que Deus manda é uma ofensa legal, portanto, um crime
(NELSON, 2002, p. 292).
O que o redator salienta aqui é que o Deus de Israel é o defensor daqueles que não têm a
quem recorrer quando uma injustiça é praticada contra ele. Mas, ao mesmo tempo, age contra
aqueles por meio de quem a injustiça está sendo canalizada contra o `änî. Assim, o redator
coloca a infração daquele apontado pelo pronome “tu” sob o prisma do relacionamento do
homem com seu Deus. Agir contra um trabalhador pobre é agir em desobediência à vontade
do Deus. Dessa forma, o Deus de Israel se interpõe como um defensor do pobre, o qual, em
última instância, agiria quando os meios humanos de defesa do `änî não fossem suficientes
para impedir a injustiça. Ele age para fazer justiça, condenando o culpado de desobediência.
Ainda há um detalhe a ser observado. O fim do dia é um marco importante na visão do redator
– é quando o penhor deve ser devolvido ao homem que tomou um empréstimo, e também é
quando o trabalhador deve receber o pagamento pelo dia de trabalho. A primeira é “quando o
sol ir”, a outra é o paralelo da primeira, “antes que o sol vá”. O sol marca não somente a
chegada do dia e da noite, como o momento chave para determinadas ações humanas. No caso
em pauta, a chegada do sol permite que o penhor seja entregue ao fiador e que o contratado
comece seu trabalho. O pôr do sol, por outro lado, marca a devolução do penhor ao
endividado bem como o momento quando o contratado encerra seu trabalho e deve receber
seu pagamento.
O fim do dia, portanto, é um ponto limítrofe no relacionamento do fiador/empregador com o
`änî wü´ebyôn. Ele põe um ponto final até onde se toleraria ficar com a capa ou com o salário
de uma diária de um trabalhador. Falhar em obedecer a esse limite é incorrer em
desobediência ao Deus de Israel.138
Nesse texto, a desobediência é chamada de transgressão
de uma ordem divina. É rebeldia que vem em resultado da falta de fé no Deus que dá essas
ordenanças. Em Deuteronômio 9,18,139
pode-se dizer que se encontra uma definição da
138
O pôr do sol é o limite que marca o fim de um dia e o começo de outro. Para o redator, o que se acordou para
ser realizado naquele dia deve ser feito no dia acordado. Não deve ser deixado para o outro. 139
“Eu me atirei diante do Deus de Israel, como anteriormente, quarenta dias e quarenta noites. Não comi pão
nem bebi água. Por causa de todo o vosso pecado que pecastes ao fazer mal ao olhos de ´ädönäy, para o insultar”
[`As*y[ik.h;l. hw"ßhy> ynEïy[eB. [r:²h' tAfï[]l; ~t,êaj'x] rv<åa] ‘~k,t.aJ;x;-lK' l[;Û ytiyti_v' al{å ~yIm:ßW yTil.k;êa' al{å ~x,l,… hl'y>l;ê ~y[iäB'r>a;w> ‘~Ay ~y[iîB'r>a; hn"©voarIK' hw"÷hy> ynE“p.li •lP;n:t.a,w") / wä|´etnaPPal lipnê yhwh(´ädönäy) Käri´šönâ
´arBä`îm yôm wü´arBä`îm laºylâ leºHem lö´ ´äkaºlTî ûmaºyim lö´ šätîºtî `al Kol-Ha††a´tükem ´ášer Há†ä´tem la`áSôt
hära` Bü`ênê yhwh(´ädönäy) lühak`îsô].
70
transgressão da ordem divina. Nesse texto, a transgressão é fazer mal aos olhos de Deus,140
o
qual dá a medida do padrão do que é certo ou errado.
Assim, o sujeito qualificado em Deuteronômio 24 por !Ay©b.a,w>÷ ynIï[' [wü`änî wü´ebyôn] é quem,
aparentemente, tem residência fixa, um lugar onde se pode esperar na porta para receber
permissão de entrada ou não; é também alguém que presta serviço diário em troca de um
pagamento que lhe trará suprimento de necessidades do dia; ele também é alguém que, pela
construção !Ay©b.a,w>÷ ynIï[', tem carências muito grandes, podendo ser considerado uma pessoa
muito pobre, ou, simplesmente, paupérrima.
2.2. O !joÝq ': o Ente Silencioso pobre na porta da justiça (1,17)
Vocábulo Deuteronômio 1-11 Deuteronômio 12-26 Deuteronômio 27-34
!joq', qä†ön 1,17
2.2.1. Observações iniciais
Deuteronômio 1,17 tem uma palavra indefinida para se referir a um Ente Silencioso. Diz-se
indefinida porque esta pesquisa entende que não se sabe precisamente a quem ela,
inicialmente, refere-se (se ao pobre, estrangeiro, órfão, escravo, ou a outra pessoa que se
enquadre dentro da definição de “pequeno”), olhando somente da perspectiva de
Deuteronômio 1,17.
Tanto ldoG" [Gädöl] como !joq' [qä†ön] são adjetivos masculinos, e como adjetivo masculino, o
termo !joq' aponta para um ser humano do gênero masculino, mas isso não implica na exclusão
daqueles Entes Silenciosos do gênero feminino apontados pelas palavras “viúva” e
“serva/escrava”.141
Portanto, o embate judicial ao qual o texto se refere acontece,
140
Essa construção será recorrente dentro do livro de Reis para avaliar negativamente os reis que não foram
obedientes a Deus, cumprindo as ordens divinas, mesmo que tenham sido bem sucedidos como estadistas. 141
O qä†ön designa um membro da comunidade de Israel e, de modo específico, como será analisado nos termos
empregados nos textos paralelos mais adiante, ele vem a designar um homem pobre e que está num processo
judicial com um “grande”.
71
hipoteticamente,142
entre dois seres humanos, sendo um chamado de ldoG" [Gädöl] e outro de
!joq' [qä†ön], do ponto de vista da justiça (ou do juiz) encarregada de julgar um caso entre os
dois requerentes no processo judicial.
A questão, como apontada acima, envolvida pelo texto, é judicial, envolvendo um !joq'
(“pequeno” [qä†ön]) e um ldoG" (“grande” [Gädöl]).143 O fato de os dois terem acesso ao
serviço de um juiz, para julgar uma causa entre eles, sugere que tanto um como o outro sejam
pessoas com acesso ao tribunal para o julgamento de sua causa. Como o !joq' [qä†ön] está em
uma questão judicial com um ldoG" [Gädöl], tanto um como o outro somente terão sua questão
julgada com o devido direito, se os juízes forem imparciais em seu julgamento.
Pelo contexto, as palavras !joÝq' [qä†ön] e ldoG" [Gädöl] dizem respeito a questões relacionadas
a influência, ou poder de influência, a presença ou a falta dela, e também a questão do poder
econômico que poderia influenciar na decisão final do juiz.144
As razões para isso podem ser
variadas. Porém, o que é levado em consideração pelo texto é que o ldoG" [Gädöl] poderia usar
de sua capacidade de influenciar a justiça para ganhar uma causa sobre aquele que é
considerado !joq' [qä†ön].
O peso da influência do Gädöl poderia afetar na decisão de quem estivesse julgando a questão
entre os dois. Por outro lado, o qä†ön, por ser qä†ön, também poderia acionar uma espécie de
solidariedade parcial daquele que tivesse a tarefa de julgar a questão entre os dois
personagens.145
142
O texto não está se referindo a um caso concreto, mas a um evento que pode acontecer – e já deveria ter
acontecido – e, quando viesse a ocorrer, os que estavam na condição de julgar a questão deveriam saber como
agir. 143
Essa perícope, envolvendo o “grande” e o “pequeno”, mostra um problema sério da perspectiva da ação
imparcial na justiça. Essa ordem aponta na direção da forte pressão a que um juiz poderia sofrer para não ser
imparcial. Portanto, mesmo que o mandamento de Deuteronômio 1,17 pudesse ser hipotético, a realidade de vida
dentro das comunidades poderia apontar na direção de uma justiça que privilegiaria o “grande” em detrimento do
“pequeno”. 144
Segundo HALOT, em Deuteronômio 1,16.17, encontra-se uma expressão de polarização (2001, v. 2, p. 1092,
1093), onde um !joÝq' está na justiça contra um ldoG", somente que em Deuteronômio não se trata de uma
construção que inclui tudo (“tanto grande como pequeno”), mas que a polarização existente busca mostrar que a
justiça em Israel deveria agir sem levar em consideração a posição social de qualquer um dos lados do processo. 145
Em seu anseio por declarar sua inocência e afirmar que o que ele estava sofrendo não se motivou por algum
delito cometido por ele, Jó se defende, entre outras formas, afirmando que ele jamais negou justiça aos seus
próprios servos e servas: “Se recusei julgamento (justo) ao meu servo e a minha serva, na disputa deles comigo”
(Jó 31,13 [`ydI(M'[i ~b'ªrIB.÷ yti_m'a]w: yDIb.[;â jP;äv.mi sa;ªm.a,-~ai / ´im-´em´as mišPa† `abDî wa´ámätî Bürìbäm
`immädî]). Mais adiante, ele reivindica ter tido sensibilidade às necessidades dos “pobres” [lD; / Dal], os quais
72
Qual o conceito de “justiça” em Deuteronômio 1,17? Basicamente, justiça tem a ver com
julgamento de acordo com a Lei deuteronômica estabelecida para aquele tipo de litígio.
Assim, o juiz que agisse com justiça estaria julgando o caso de acordo com a lei que ele
conhecia. No caso em pauta, fazer justiça implica em julgar sem qualquer parcialidade. O juiz
deveria evitar a tendência para o lado do “grande” por ser “influente” ou a inclinação para o
lado do “pequeno” por ser “menos favorecido”, e deveria ser feita levando-se em
consideração o direito de cada um.
2.2.2. Elementos filológicos
2.2.2.1. !joÝq', q¹‰œn
2.2.2.1.1. A etimologia da palavra !joÝq ', q¹‰œn
A raiz !jq, q‰n, “denota pequenez tanto em quantidade quanto em qualidade” (TWOT, 1980,
v. 2, p. 795). Assim, o adjetivo q¹‰œn tem a ver com a ideia de “pequeno” e também com o
sentido de “jovem”, mas em determinados contextos, com o sentido de “insignificante”
(TWOT, 1980, v. 2, p. 795) no aspecto socioeconômico. É nesse sentido que q¹‰œn é
empregado em Deuteronômio 1,17.
Conrad afirma que as palavras que pertencem ao grupo q¹‰œn procedem “de uma raiz semítica
comum [q‰n] com o significado de ser estreito/apertado, ser fino/fraco” (CONRAD, 2004, p.
3). Esse sentido está em harmonia com a ideia de pequenez, pois a conotação negativa de “ser
insignificante, ser fraco” é um uso “inerente ao grupo de palavras” q¹‰œn (CONRAD, 2004, p.
4).
Partindo da perspectiva acima, o q¹‰œn de Deuteronômio 1,17 é uma pessoa com dificuldades
particulares para enfrentar alguém considerado Gädöl pela justiça, a qual é convocada para dar
uma decisão acerca de um conflito entre os dois. Assim, o termo q¹‰œn é colocado como
são identificados por ele como sendo a viúva e o órfão (Jó 31,16.17.18). Além de chamar o órfão e a viúva de
lD;, ele os chama também de !Ay*b.a, [´ebyôn], em 31,19. Em uma segunda vez, no capítulo, Jó diz que nunca
levou vantagem na justiça, mesmo que pudesse fazer por sua posição na comunidade (31,21): “Se eu empunhei
minha mão contra o órfão, porque vi meu suporte no portão”. “Portão” da cidade era o lugar onde se reunia o
tribunal para fazer justiça [`yti(r"z>[, r[;V;ªb;÷ ha,îr>a,-yKi( ydI_y" ~Atåy"-l[; ytiApåynIh]-~ai / ´im-hánîpôºtî `al-yätôm yädî
Kî|-´er´è baššaº`ar `ezrätî]. Mesmo Jó sendo um “grande”, ele tomou a decisão de nunca abusar de sua posição
contra um “pequeno”.
73
sinônimo da desvantagem que alguém poderia sofrer no tribunal, em conflito com um Gädöl.
A palavra carrega o conceito de um parecer frágil diante do outro.
A justiça imparcial seria a forma de contribuir para o equilíbrio entre os dois lados, fazendo
com que o verdadeiro devedor assumisse a responsabilidade pelo que viesse a dever ao outro.
A aplicação da justiça serve a estes dois propósitos: libertar aquele que deve ser liberto por
causa de sua inocência; causar dano a quem deve ser penalizado.
2.2.2.1.2. Comparação com o Targum
A palavra encontrada no Targum NeofMagnalia para tradução de q¹‰œn é ry[z. O dicionário
da BW7 dá como palavras para sua tradução “pequeno”, “jovem”, “pouco em número”.146
O
Aramaico favorece à idéia que o que está por trás da palavra ry[z é o conceito relacionado a
importância social dentro da comunidade. Isso é salientado quando se nota a palavra que
traduz o Hebraico Gädöl, “grande”, para o Aramaico é br. br, segundo o dicionário da BW7,
pode ser traduzido por “largo”, “grande”, “importante”, “chefe”, “ancião”. Com isso concorda
o Glossário Aramaico-Português que a traduz por “grande”, “chefe” (ARAÚJO, 2005, 313).
A tradução para o Aramaico favorece a idéia de que a peleja judicial, apontada em
Deuteronômio 1,17, ocorre entre alguém que é sem importância dentro da comunidade, um
q¹‰œn, e um líder, um chefe, alguém que goze de importância e respeito por sua posição, um
Gädöl.
2.2.2.1.3. Comparação com a Septuaginta
Para a tradução de q¹‰œn e Gädöl, a LXX empregou as palavras mikro,j, “pequeno”,
“humilde”, “jovem”, e me,gaj, “largo”, “grande” (GGL-BW7). A palavra mikro,j é a palavra
usual para traduzir q¹‰œn, e como essa, ela também traz, entre outros conceitos, o de ser
insignificante (MICHEL, 1967, p. 649).147
A palavra me,gaj, por sua vez, apresenta seu sentido
oposto ao de mikro,j, pois tem sentido de seu correspondente Hebraico, Gädöl. Deste modo,
assim como mikro,j expressa a ideia de pequenez ou insignificância, me,gaj apresenta a de
grandeza e significante (GRUNDMANN, 1967, p. 530).
146
A palavra ry[ez> é traduzida por “pequeno” no Glossário Aramaico-Português (ARAÚJO, 2005, p. 308). 147
Para alguns exemplos, Isaías 22,24; Zacarias 4,10.
74
Tendo essa comparação em vista, deve-se concluir que o redator de Deuteronômio está
fazendo um tipo de análise da importância das duas pessoas que estão trazendo uma questão
para ser julgada. Na hipótese do redator, uma é mikro,j e a outra é me,gaj. Ou, noutra forma de
expressar, mikro,j é insignificante quando seu valor é colocado em termos de importância
econômica dentro de sua comunidade, me,gaj é grande quando seu valor é posto pelo que ele
representa economicamente para a mesma comunidade.
Assim, as traduções para o Aramaico e para o Grego, a Septuaginta, entenderam que as
palavras q¹‰œn e Gädöl tratam, no texto de Deuteronômio 1,16.17, das pessoas que são vistas
pela sua importância econômica para as comunidades em que elas vivem. Numa linguagem
comum, poderia se dizer que tinha posses e o outro não as tinha, e que dependia de uma
justiça justa para dar a palavra final sobre a questão levada a juízo.
Agora, que palavra foi empregada para se referir a uma pessoa pobre dentro dos textos
paralelos que tratam da mesma questão judicial, mas que estão nos livros de Levítico e
Êxodo? A sequência desta pesquisa procurará responder a essa pergunta.
2.2.2.2. ld", däl (“pobre”)148
A palavra ld" (däl) aparece aqui porque ela surge em textos paralelos, os quais tratam da
mesma legislação de Deuteronômio 1,17, no lugar de q¹‰œn. Tais textos serão adiante
analisados no capítulo. Porém, apenas para mencioná-los inicialmente, eles são Êxodo 23,2.3
e Levítico 19,15.
2.2.2.2.1. A etimologia da palavra ld", däl
A raiz dl(l), Hebraico dll I,149
tem ocorrências em línguas semíticas orientais, tais como o
Assírio Antigo com o substantivo dullu (“tribulação, miséria”), o Babilônio tardio dullulu
(“opressão, oprimido”). No Cananita há o Ugarítico dl e dll, e o Hebraico dl, “pobre,
necessitado” (FABRY, 1978, p. 208-209), para citar alguns exemplos a fim de notar que a raiz
148
É uma palavra que designa alguém que seja considerado “inferior”, “pobre”, Gênesis 41,19; “desamparado”,
Êxodo 30,15; “impotente”, Êxodo 23,3; e “insignificante”, Jeremias 5,4 (HALOT, 2001, v. 1, p. 221, 222). Esses
significados, os quais levaram a diferentes modos de tradução da palavra ld", mostram que a importância de seu
tratamento está em que ela apresenta sentidos que cobrem os mesmos significados das palavras para pobre
encontradas em Deuteronômio. 149
Fabry (1978, p. 208-209) aponta que deve ser feita a distinção entre a raiz dll I e as raízes dll II (“oscilar”, em
Jó 28,4), dll III (“louvar”), dlh I (“tirar”), e dlh II (“oscilar”).
75
dl ou dll tem a ver com limitações econômicas que alguém experimenta em um momento de
sua vida. Provavelmente por isso a palavra däl tenha sido empregada nos textos paralelos a
Deuteronômio 1,17, em Êxodo 23,2.3 e Levítico 19,15, como forma de reafirmar que a
parcialidade é proibida, mesmo que ela venha a favorecer alguém que enfrente dificuldades
em sua vida.
Das quarenta e oito vezes que ela ocorre na BH (EVEN-SHOSHAN, 1989, p. 265), ela está
presente no Pentateuco em Gênesis, Êxodo e Levítico, mas não em Deuteronômio e Números.
Assim, aquilo que é dito em Deuteronômio de forma geral com q¹‰œn é definido em Êxodo e
Levítico com a palavra däl.
2.2.2.2.2. Comparação com o Targum
O Targum Neofiti traduz a palavra däl por !ksm, “homem pobre” (HHL-BW7), em Êxodo
23,2.3 e Levítico 19,15, fazendo com que däl tenha o mesmo significado que o ´ebyôn e o
`änî, na sua tradução para Aramaico, pois essa palavra também é empregada para traduzir o
´ebyôn e o `änî . Desse modo, o redator do Deuteronômio preferiu usar palavras que tenham o
mesmo significado que däl para designar um “homem pobre” dentro da comunidade dirigida
pela legislação de Deuteronômio. Isso faz com que ´ebyôn, `änî e däl tenham o mesmo campo
semântico.
2.2.2.2.3. Comparação com a Septuaginta
Na pesquisa comparativa com o grego da Septuaginta, constata-se que seus tradutores
empregaram os termos pe,nhj, “pessoa pobre”, para traduzir o termo Hebraico däl para o
Grego em Êxodo 23,3, e ptwco,j, “pobre, oprimido, miserável”, em Levítico 19,15. Nessa
comparação, a palavra ptwco,j não aparece como uma forma de tradução para os vocábulos
´ebyôn e `änî em Deuteronômio, acrescentando uma nova coloração ao conceito dos Entes
Silenciosos como ´ebyôn e `änî, por meio do termo däl, ao usar ptwco,j em Levítico 19,15
para a tradução da Septuaginta, deixando o däl com o sentido de alguém sob opressão, como
o `änî.
Entretanto, deve-se destacar que, enquanto !ksm traduz tanto ´ebyôn como `änî para o
Aramaico do livro de Deuteronômio, pe,nhj só é empregado para traduzir `änî e, dentro do
76
livro, ptwco,j não é usado para traduzir nem ´ebyôn nem `änî, aproximando däl de `änî,
principalmente por enfatizar o aspecto do sofrimento que tanto o däl quanto o `änî salientam,
fazendo com que a desvantagem do q¹‰œn diante do Gädöl exigisse dos juízes a estrita
obediência à ordem de serem imparciais no julgamento entre os dois, pois um erro da justiça
traria mais sofrimento a quem já desfrutava dele.150
2.2.3. Análise do texto de Deuteronômio 1,17151
2.2.3.1. Tradução de Deuteronômio 1,16.17 e dos textos paralelos em Êxodo
23,2.3 e Levítico 19,15
Deuteronômio 1,16 - “E eu ordenei os vossos juízes,152
naquele tempo, dizendo:153
Ouvi154
entre vossos irmãos e, então, fareis justiça entre um homem e entre seu
irmão155
e entre156
seu157
estrangeiro158
.”159
150
Schwantes destaca o sentido de fragilidade para däl ao colocar os sentidos de “fraco”, “pequeno”, “pouco”
(2013, p. 24). É uma palavra que aparece em paralelo com dois outros Entes Silenciosos – o órfão (Isaías 10,2) e
a viúva (Isaías 10,2). 151
Num texto paralelo a Deuteronômio 1,17, Levítico 19,15, aparece däl, “pobre”, no lugar de !joÝq', “pequeno”,
sugerindo, com isso, que a palavra !joÝq' representa alguém que seja um däl, na perspectiva do redator de
Deuteronômio. Mostrando que a legislação do livro de Deuteronômio tem por base uma legislação mais antiga,
como aquela encontrada no livro de Levítico. Ou, por outro lado, a legislação em Levítico, resolveu pôr de forma
específica àquilo que o redator do Deuteronômio entendia por qä†ön. Para o redator de Levítico, o qä†ön de
Deuteronômio era, na realidade, um homem däl, um homem “pobre”. 152
Tigay propõe a tradução de “magistrados” para os ~yjip.vo. Segundo ele, “a tradução ‘magistrados’ reflete o
ponto de vista que a raiz jpv se refere a todo tipo de autoridade governamental, executivo, legislativo bem
como judicial” (1996, p. 12). Ele acentua, porém, que na BH, o substantivo em seu sentido amplo “parece ser
limitado a reis e líderes militares nacionais”, como no livro de juízes (1996, p. 12). Nos textos claros, onde
outros tipos de oficiais são referidos, o significado de “juiz” é melhor, como em Deuteronômio 1,16 (1996, p.
12). 153
A construção gramatical é muito comum em narrativa, principalmente no Pentateuco: l – a preposição
prefixada ao infinitivo construto do verbo rma: rmo=ale [lë´mör] - literalmente, “para dizer”, mas traduzida,
comumente, por “dizendo”. “Dizendo”, mesmo que adequada para a tradução de lë´mör, encobre a ideia de
propósito que lë´mör carrega: “Eu ordenei (...) com o fim de dizer”. 154
Aqui se encontra outro infinitivo, só que desta vez é o absoluto do verbo [mv, “ouvir”. Aqui ele é usado
como imperativo [[:moÜv' / šämöª`], onde uma ordem é dada para os juízes: “ouvir” ou “ouvi”, perifrasticamente,
“deveis ouvir”. Para Ezra, šämöª` é “um substantivo verbal, como ‘relembrar’” [rk;z" / z¹kar] (2003, p. 4).
Assim, a ordem é para os juízes relembrarem o que eles já tinham ouvido e colocarem em prática no eventual
julgamento. 155
Dentro de Deuteronômio, xa' é empregado “para enfatizar a igualdade e fraternidade de todos os israelitas,
seja rei ou servo, profeta ou sacerdote” (TIGAY, 1996, p. 12). Notar Deuteronômio 15,2; 17,15.20; 18,2.15.18;
22,1-4. 156
Deve ser notada a repetição da preposição !yBe( (construto) / !yIB;ñ (absoluto), “entre”, antes de cada uma das
palavras “homem”, “irmão” e “estrangeiro” [Ar*GE !ybeîW wyxiÞa'-!ybeW vyaiî-!yBe( / Bê|n-´îš ûbên-´äHîw ûbên Gërô]. Ela
também aparece antes de “vossos irmãos” [~k,yxea]-!yBe / Bên-´áHêkem], fazendo com que Bê|n-´îš ûbên-´äHîw
ûbên Gërô seja uma especificação do que o redator quer dizer por “vossos irmãos”, colocando este tipo de
77
Deuteronômio 1,17 - “Não reconhecereis160
uma face no julgamento. Ouvireis tanto do
pequeno161
quanto do grande.162
Não tereis medo163
da face de um
homem,164
porque o julgamento é para165
o próprio Deus. E a palavra166
que é pesada167
para vós trareis perto, para mim, e eu a ouvirei.”168
estrangeiro, o Gër, como parte do “vossos irmãos”, como um estrangeiro residente e adaptado aos costumes do
povo no meio do qual ele vive. 157
“Implica que o Gër foi, ao menos em alguns casos, dependente de um indivíduo específico” (TIGAY, 1996, p.
13). 158
Primeira referência ao r*GE [Gër] dentro de Deuteronômio. 159
`Ar*GE rmo=ale awhiÞh; t[eîB' ~k,êyjep.voå-ta, ‘hW<c;a]w" !ybeîW wyxiÞa'-!ybeW vyaiî-!yBe( qd<c,ê ~T,äj.p;v.W ‘~k,yxea]-!yBe [:moÜv' rmo=ale awhiÞh; t[eîB' ~k,êyjep.voå-ta, ‘hW<c;a]w"16 / 16wä´ácawwè ´et-šöºp†êkem Bä`ët hahiw´ lë´mör šämöª` Bên-
´áHêkem ûšüpa†Tem ceºdeq Bê|n-´îš ûbên-´äHîw ûbên Gërô.
160 Aqui há um verbo hifil com uma negativa proibindo qualquer começo na direção de uma decisão judicial
parcial: WryKi’t;-al{), lö|´-taKKîºrû. Quando seguido pela palavra ~ynI÷p', pänîm, “face, rosto”, esse verbo passa a
comunicar a ideia de “mostrar consideração, no sentido de parcialidade por alguém” (HHL-BW7), e como
exemplo é citado Deuteronômio 1,17. Para Ezra, o verbo “aponta para o julgamento em relação à pessoa a quem
ele (o juiz) reconhece” (2003, p. 4), com a ideia de favorecer o conhecido. 161
É provável que Deuteronômio não empregasse a palavra däl, como fizera Levítico e Êxodo, em lugar de
q¹‰œn para que outros Entes Silenciosos pudessem ser incluídos no q¹‰œn. 162
A construção gramatical aqui é ldoG"K; !joÝQ'K;, Kaqqä†ön KaGGädöl, “como pequeno como grande”, em que os
objetos do verbo !W[êm'v.Ti, Tišmä`ûn, “ouvireis”, são precedidos pela repetição da partícula k.....k, o que,
segundo o BDB, é peculiar ao hebraico “para significar inteireza de correspondência entre dois objetos” (1979, p. 454). A implicação disso é que os juízes de Israel, segundo essa legislação, deveriam dar completa atenção
tanto a um quanto a outro, independentemente de sua posição social dentro da comunidade. Notar que os objetos
vêm em posição de ênfase no texto. Para Chouraqui, “a ideia é que os atos devem ser julgados de maneira
objetiva” (1997, p. 35). 163
O verbo apresentado no texto hebraico, ‘WrWg’t', tägûºrû, “tereis medo”, vem de rwg, de cuja raiz também
procede a palavra rGE, “estrangeiro”. Entretanto, Kirst et al. (1987, p. 39-40) apresenta três raízes verbais com a
mesma forma de escrita, mas com significado diferente uma da outra. São elas: rwg I, “morar ou viver como
estrangeiro/forasteiro/cliente, demorar-se como forasteiro”; rwg II, “hostilizar/atacar”; rwg III, “ter medo”. Como
no caso da raiz hn[, notada antes, aqui também temos o que é chamado de raízes homônimas. 164
A frase vyaiê-ynEP.mi ‘WrWg’t' al{Ü, lö´ tägûºrû miPPünê-´îš, “Não tereis medo da aparência do homem”, mostra a
presença do verbo rwg III com !mi, ter medo de alguém ou alguma coisa, e com !mi + ~ynP. Em Deuteronômio
18,22 encontra-se a seguinte frase – WNM,(mi rWgàt' al{ï, lö´ tägûr mimmeºnnû, “não terá medo dele” , numa
referência a um tipo de profeta que não devia ser temido pelo povo. Em Números 22,3 é dito que Moabe tinha
medo da presença do povo de Israel – ~['²h' ynEïP.mi ba'øAm rg"Y"“w: , wayyäºgor mô´äb miPPünê hä`äm. Para outros
exemplos notar: STIGERS, 1980, p. 156-157. 165
A preposição l pode ser entendida tanto como “para” como “de”. Pela tradução desta pesquisa, foi-se
entendido que ela aponta numa direção – “para Deus”. Porém, ela também pode ser entendida como de
procedência, “de”. Assim, o julgamento corretamente realizado chegaria a uma decisão que seria entendida como
sendo do próprio Deus. Tanto um como outro são possíveis. A primeira coloca Deus como o alvo maior para um
julgamento bem feito – no final, os juízes julgam para (ou em lugar de) Deus. A segunda coloca a decisão dos
juízes em um julgamento bem feito como sendo uma resposta divina ao caso. Assim, porque fazer um
julgamento justo? Porque ele é feito para Deus, ou, porque ele vem de Deus. 166
Weinfeld faz citação a um rei hitita que deu ordens a seus oficiais semelhantes às de Moises dadas em
Deuteronômio 1,17. Tal rei disse: “Se alguém traz ação judicial... o comandante a julgará adequadamente... se o
caso for tão grande [= difícil], ele deverá encaminhá-lo para o rei. Ele não deve decidi-lo em favor de um
superior... ninguém deve tomar suborno... faça tudo àquilo que é reto” (von Schuler, 1957, p. 36s Apud 1991,
140-141).
78
Êxodo 23,2169
“Não estarás170
atrás de muitos para (fazer) males.171
E não responderás
sobre uma disputa172
para (te) inclinar atrás de muitos para
distorcer (perverter) (uma decisão da corte) 173
.”174
Êxodo 23,3 “E o pobre175
não tratarás com distinção na sua disputa.”176
Levítico 19,15 “Não farás injustiça177
no julgamento. Não levantarás a face do pobre178
e não honrarás a face do grande.179
Julgarás com justiça teu
companheiro.”180
167
“A palavra que é pesada” ou “a coisa ou assunto que é difícil” (hv,äq.yI rv<åa] ‘rb'D"h;w>, wühaDDäbär ´ášer
yiqšè). Provavelmente seja uma referência a um problema de difícil solução para os juízes e que precisavam da
interferência de um com maior capacidade de decisão. Ou, por outro lado, a lei não era conhecida e precisava da
consulta de Moisés a Deus para que fosse conhecida (TIGAY, 1996, p. 13). Há exemplos desse tipo de consulta
em Levítico 24,10-23; Números 9,1-14; 15,32-36; 27,1-11; 36,1-10. A brevidade do texto, o fato que a narrativa
é um resumo da existente em Êxodo, e que o povo está sendo preparado para ingressar na Terra da Promessa
tenham feito com que Moisés omita a necessidade de consultar Deus. Além disso, Deuteronômio não prevê a
vinda de um profeta com novas leis (TIGAY, 1996, 13). Cairns propõe que “a palavra que é pesada” significa o
que ainda não tem decisão anterior para ajudar o juiz na condução do julgamento (1992, p. 34, 35). 168
`wyTi([.m;v.W yl;Þae !WbïrIq.T; ~K,êmi hv,äq.yI rv<åa] ‘rb'D"h;w> aWh+ ~yhiäl{ale jP'Þv.Mih; yKiî vyaiê-ynEP.mi ‘WrWg’t' al{Ü !W[êm'v.Ti ‘ldoG"K; !joÝQ'K; jP'ªv.MiB; ~ynI÷p' WryKi’t;-al{)17 / 17lö|´-taKKîºrû pänîm BammišPä† Kaqqä†ön KaGGädöl
Tišmä`ûn lö´ tägûºrû miPPünê-´îš Kî hammišPä† lë´löhîm hû´ wühaDDäbär ´ášer yiqšè miKKem Taqribûn ´ëlay
ûšüma`Tîw. 169
Êxodo 23,1-3 estabelece cinco proibições para o comportamento no tribunal com o fim de impedir o perigo
para a imparcialidade e a integridade do processo judicial (SARNA, 1991, p. 142). 170
A BJ traduz essa frase inicial assim: “Não tomarás o partido da maioria para fazeres mal”. Essa parece ser
mais uma interpretação que uma tradução. O ATP, usando da versão da SBB, traduziu-a por: “Não seguirás a
multidão para fazeres mal”. O verbo inicial do versículo é o verbo hyh, “ser ou estar”. É um verbo estativo que
aponta um estado ou uma condição. A negativa aOl, “não”, proíbe de forma veemente a participação em um
estado ou condição de violência coletiva contra alguém. 171
Essa declaração inicial é uma afirmação geral. O “mal” (ou “males” [tw[r é plural de h[r]) será
especificado a seguir, quando a figura de um tribunal é evocada e uma multidão (ou “muitos”) já tomou uma
direção na tentativa de influenciar os juízes e as testemunhas. Os “males” têm três aspectos. O primeiro é que os
que compõem o “muitos” [~yBiÞr:], pela força numérica que representam, tentam influenciar a decisão do juiz. O
segundo é que a decisão do “muitos” foi tomada sem ouvir os dois lados da questão. O terceiro e, talvez o mais
importante, é que a decisão que o “muitos” tenta influenciar não é uma decisão divina porque ela carece de
fundamento das evidências adquiridas na investigação dos juízes. 172
A palavra traduzida nesses dois versículos por “disputa” é byr. Ela aponta para uma contenda legal diante de
um tribunal constituído para decidir uma questão entre partes (KIRST et al., 1987, p. 227). 173
Os verbos “inclinar” e “distorcer” são traduções da mesma raiz, hjn, sendo que o primeiro é um infinitivo
construto qal e o segundo é um infinitivo construto hifil (KIRST et al., 1987, p. 155). 174
`tJo)h;l. ~yBiÞr: yrEîx]a; tjo±n>li brIª-l[; hn<å[]t;-al{w> t[o+r"l. ~yBiÞr:-yrE(x]a; hy<ïh.ti-al{)2 / 2lö|´-tihyè ´aHárê|-raBBîm
lürä`öt wülö´-ta`ánè `al-rìb lin†öt ´aHárê raBBîm lüha††öt.
175 “Pobre” aqui é tradução da palavra hebraica däl.
176 `Ab)yrIB. rD:ßh.t, al{ï ld"§w>3 / 3wüdäl lö´ tehDar Bürîbô.
177 A palavra lw<[' (“injustiça”), é sinônima de [v;r, (“maldade”), hm'r>mi (“engano”), e sm'x' (“violência”)
(LEVINE, 1989, p. 128). 178
A parcialidade no julgamento foi expressamente proibida. O juiz não poderia beneficiar o pobre [däl], nem o
Gädöl (Êxodo 23,3). A justiça não deveria pender nem para um lado nem para o outro.
79
2.2.3.2. Análise dos textos
2.2.3.2.1. O contexto de Deuteronômio 1,16.17181
Deuteronômio 1,16.17 pertence a uma unidade literária maior que começa no versículo 9 e
termina no versículo 18. Deuteronômio 1,9-18 é chamado por Weinfeld de “perícope de
natureza intrusiva” (1991, 139), usada aqui para quebrar a sequência da narrativa da jornada
até Horebe. Esse tipo de perícope é usualmente aberta por awhiÞh; t[eîB' [Bä`ët hahiw´].182 Essa
fórmula de abertura, comum em Deuteronômio 1 a 11, ocorre três vezes nessa perícope
intrusiva. Na primeira vez (1,9-15), está a indicação dos juízes, na segunda (1,16.17), há as
instruções sobre como deve se tratar um processo judicial entre um “grande “ e um
“pequeno”, e, por fim, uma palavra de instrução ao povo (WEINFELD, 1991, p. 139).
Esse bloco de literatura está inserido dentro daquilo que é considerado o primeiro discurso
atribuído, pelos redatores, a Moisés. Esta unidade literária maior do Deuteronômio vai do
capítulo 1,5 ao capítulo 4. Há a recapitulação de muitos eventos dentro da história de Israel,
apresentada em forma de discurso, como um sermão exortativo, tem como propósito
estabelecer uma espécie de introdução a todo o livro.
É dentro desse bloco literário que se encontra uma palavra do redator para aqueles que
haveriam de exercer um julgamento entre pessoas da comunidade. O contexto imediato do
texto (Deuteronômio 1,12-16, 18) aborda a questão de escolha daqueles que seriam os líderes
da comunidade e que teriam, como parte das suas funções, o dever de exercer a posição de
juízes.183
179
Para Levine, o contexto favorece a tradução de lAd+g" por “rico”, pois a palavra está em contraste com lD", cujo sentido é “alguém com falta de recursos, pobre” (1989, p. 129). 180
`^t<)ymi[] jPoïv.Ti qd<c,ÞB. lAd+g" ynEåP. rD:ßh.t, al{ïw> ld"ê-ynEp. aF'äti-al{ jP'êv.MiB; ‘lw<['’ Wfï[]t;-al{15 / 15lö´-ta`áSû
`äºwel BammišPä† lö´-tiSSä´ pünê-däl wülö´ tehDar Pünê gädôl Büceºdeq TišPö† `ámîteºkä.
181 Deuteronômio 16,19 apresenta um mandamento similar aos encontrados nos textos de Deuteronômio 1,
Êxodo 23 e Levítico 19, mas sem especificar uma pessoa pobre. Parece ser de aplicação geral a qualquer pessoa,
pobre ou não, que procure os juízes para resolver uma questão com próximo: “Não torcerás um julgamento, não
considerarás uma face e não tomarás um suborno. Porque o suborno cega (apaga) os olhos dos sábios e perverte
as palavras dos justos” [`~qI)yDIc; yrEîb.DI @LEßs;ywI) ~ymiêk'x] ynEåy[e ‘rWE[;y> x;Voªh; yKiä dx;voê xQ:åti-al{w> ~ynI+P' ryKiÞt; al{ï jP'êv.mi hJ,ät;-al{19
/ 19
lö´-ta††è mišPä† lö´ taKKîr Pänîm wülö´-tiqqaH šöºHad Kî haššöºHad yü`awwër `ênê
Hákämîm wî|sallëp Dibrê caDDîqìm]. 182
awhiÞh; t[eîB' [Bä`ët hahiw´]: Deuteronômio 1,9.16.18; 2.34; 3,4.8.12.18.21.23; 4,14; 5,5; 9,20; 10,1.8. 183
A estela de Horemheb (XIV AEC), um documento egípcio que apresenta instruções para a constituição de
juízes: “Eu excursionei pelo país... eu procurei pessoas de integridade, boas de caráter, que saibam como julgar...
Eu as tenho instruído, dizendo: Não se associem intimamente com outro povo, não recebem suborno”
(WEINFELD, 1991, p. 141, Apud HELCK 1955, p. 107s.).
80
Esse contexto mostra que eles foram instruídos a fazer julgamentos sem parcialidade.
Provavelmente isso era parte da cerimônia de posse quando o orador colocava, de forma
pública, como os juízes deveriam agir no julgamento, e, com isso, destacavam que, mesmo
em situações muito difíceis, eles deveriam manter a atitude de juízes divinamente
encarregados daquela posição diante do povo.
Deuteronômio 1,16 coloca de forma específica que a situação colocada diante do tribunal da
comunidade poderia ser “entre um homem e seu irmão ou o estrangeiro [Gër] que mora com
ele” (BJ). O Gër já se identifica com alguém que não é da própria comunidade. Mas, quem é o
“homem” e o teu “irmão”? Para esta pesquisa, “homem” aponta para alguém que está na
posição de alguém que desfruta de liberdade e que pode ser identificado com o Gädöl. A
primeira razão para esta pesquisa afirmar isso é que a palavra “homem” [vyai î, ´îš], dentro do
livro de Deuteronômio, comumente aponta para uma pessoa que é livre e está no usufruto
desta liberdade.184
A segunda razão é a própria construção da frase no versículo 16. Numa tradução mais literal,
a última colocação diz: “entre um homem e entre seu irmão e entre seu estrangeiro”. Isso quer
dizer que o problema seria de um ´îš com seu “irmão” e (ou) com o seu Gër. Mas o Gër de
quem? Do ´îš ou do seu irmão? Para o texto é o Gër do ´îš, de quem são dependentes o “seu
irmão” e o Gër, acolhido sob a proteção do ´îš.
Assim, tanto “irmão” quanto o Gër estão para aqueles que desfrutam de desvantagem social.
Eles são os dependentes do ´îš, o homem livre e proprietário de terras.185
Nesse caso, eles,
“seu irmão e o Gër”, são identificados pela palavra q¹‰œn no versículo seguinte.
184
Notar Deuteronômio 1,16.23.31; 4,3; 8,5; 17,2.5.12; 20,5.6.7.8; 21.15.22; 22,13.16.18.22.23.24.25.26.28.29;
23,1; 24,1.2.3.5.11; 25,7.9; 27,15; 28,30.54.56; 29,19; 32,25; 33,1.8. Em dois lugares, onde a palavra
“estrangeiro” faz a qualificação da palavra ´îš, merece destaque: em 17,15, quando da escolha do rei, é dito que
ele não pode ser um homem estrangeiro [´îš nokrî]; em 25,5 a mulher de um falecido, tendo ele irmão, é proibida
de se casar com alguém fora do clã; aqui esse homem fora do clã, ou de outro clã, é chamado de “homem
estranho” [´îš zär]. O “homem zär” [rz"] é usado para um homem fora da família de Arão (Êxodo 29,32.33;
30,33; Levítico 22,10), para um não levita (Números 1,52) e para o “fogo estranho” [´ëš zärâ] que Nadabe e
Abiú ofereceram em Levítico 10,1, culminando em suas mortes prematuras. No Salmo 81,9 (BH 81,10) zär está
em paralelo com nëkär. As duas são traduzidas por “estranho” ou “estrangeiro”: “Não haja em ti deus estranho e
não te dobres para deus estrangeiro” [`rk")nE laeäl. hw<©x]T;v.ti÷ al{ïw> rz"+ laeä ^b.â hy<åh.yI-al{)10 /
10 lö|´-yihyè bükä ´ël
zär wülö´ tišTaHáwè lü´ël nëkär]. 185
O que se pode dizer é que a “sociedade deuteronômica” apresentava os seguintes estratos sociais: o homem
livre (´îš) – e com condições de manter essa liberdade, a mulher livre, mas dependente e sob a proteção do ´îš, os
81
2.2.3.2.2. O texto próprio: os juízes instruídos
2.2.3.2.2.1. Uma observação inicial
O problema levantado dentro de Deuteronômio 1,16.17 não representa um caso real, mas uma
situação que poderia acontecer e, provavelmente, deve ter acontecido muitas vezes no
decorrer da história do povo de Israel. Desse modo, o redator se antecipa apresentando uma
situação e dando a solução para ela. Leibowitz chama atenção para o emprego do infinitivo
absoluto [“ouvir”; [:moÜv'],186 traduzido aqui como imperativo, o qual vem seguido da
preposição “entre” [ ]!yBe]. Para ele, “ouvir um litigante na ausência do outro pode dar origem a
parcialidade, pois um não pode corrigir a impressão deixada por outro. Mas se os dois estão
presentes ainda há o perigo a ser evitado no interesse da justiça” (1995, p. 10).187
2.2.3.2.2.2. Elementos na análise do texto
O primeiro elemento a considerar nesse versículo é que ele começa com um advérbio de
negação seguido de um imperfectivo. Nesse caso, o orador estaria proibindo uma ação antes
que ela começasse: “Não reconhecereis uma face”.
Face é representativo daquilo que a pessoa é externamente do ponto de vista do que vê. Por
isso, a proibição impede o juiz de ser tendencioso numa decisão apenas pela questão da
aparência de um em detrimento de outro. Face parece ser representativo daquilo que a pessoa
era ou do que ela representava. E qual a aparência dos envolvidos que o juiz do caso estaria
vendo? Que um era q¹‰œn e o outro Gädöl. Essa visão limitada poderia ser a base de decisão
de um juiz. Ele poderia preferir um ao outro e fazer uma decisão judicial equivocada.
Um segundo elemento é o contexto do qual o juiz faria parte e onde não deveria haver
consideração do que uma pessoa era ou representasse. O contexto é “no julgamento”, onde o
artigo e a preposição fazem com que mišPä† pareça ser o lugar onde as decisões judiciais
Entes Silenciosos livres, mas com liberdade relativa por causa de sua condição de dependência do îš (´ebyôn e
`änî , ´almänâ, yätôm, Gër e lëwî), e aqueles sem nenhuma liberdade (`ebed e ´ämâ). 186
O uso do infinitivo absoluto aqui é chamado de uso independente. “Esse uso parece ter o propósito de atrair a
atenção ao significado básico do verbo”, deixando para o contexto a definição de como ele deve ser traduzido
(ROSS, 2001, p. 175). Lambdin diz que “o infinitivo absoluto é usado no lugar de um verbo finito, sem ser
claramente dependente de outro verbo na oração” (2003, p. 199). 187
“Certamente que, sem ouvi-los, não pode haver um caso. Por que foi usada a forma infinitiva incomum
šämöª` em lugar do imperativo šimu` ? A implicação a ser tirada é que os juízes devem ser pacientes e ouvi-los”
(ha-Hayyim apud LEIBOWITZ, 1995, p. 10).
82
eram tomadas [jP'ªv.MiB; / BammišPä†]. mišPä† volta a aparecer nesse mesmo versículo, apenas
com o artigo definido, hammišPä†. Antes, no versículo 16, aparece outra palavra ligada ao
assunto de um tratamento judicial, “justiça” [qd<c,ê / ceºdeq].
Além dessas duas palavras, ainda aparece o verbo jp;v' [šäpa†], “julgar”. Esse surge como
particípio no versículo 16 para se referir aos juízes. Os juízes são denominados como “aqueles
(ou os que) vos julgam” [~k,êyjep.voå / šöºp†êkem]. Ele aparece como verbo finito no perfectivo
ainda no versículo 16, “julgareis” [~T,äj.p;v. / šüpa†Tem], no sentido de tomar uma decisão
justa, haja vista que vem seguido da palavra ceºdeq.
A pergunta que se faz é: o que essas palavras têm a ver com um tribunal e as decisões
judiciais que ali seriam tomadas? Qual a importância delas aqui e para o livro inteiro de
Deuteronômio?
Em primeiro lugar, a construção gramatical apresenta cada palavra como sendo uma
caracterização do processo judicial que está em curso entre o q¹‰œn e o Gädöl. O primeiro
elemento deste processo judicial é os šöºp†îm – esses são aqueles que julgam ou agem como
juízes. Eles já foram apontados pelo povo para essa posição, sendo que eles deveriam
apresentar determinadas características apropriadas para que pudessem ocupar posição de um
juiz.
Deuteronômio 1,13 diz que os šöºp†îm deveriam ser, segundo a tradução da BJ, “sábios”
[~ymiók'x] / Hákämîm], “inteligentes” [~ynI±bon> / nübönîm] “e competentes” [~y[iÞdUywI /
wîdù`îm].188
Essas qualidades são essenciais para que os šöºp†îm entendessem que o mišPä†,
sentença ou julgamento, era de (ou para) Deus. Qualidades que deveriam demonstrar sua
188
Das três palavras que deveriam caracterizar os šöºp†îm, duas são particípios usados como adjetivos e uma é
um adjetivo. A primeira, Hákämîm, é um adjetivo. Ela aponta para homens [~yvi’n"a] / ´ánäšîm] cuja capacidade
de julgamento, ou a sabedoria para tal juízo, foi adquirida pela experiência. A segunda, nübönîm, é um nifal
particípio do verbo !yb, “entender”, o qual põe em destaque a capacidade de discernimento dos šöºp†îm. Poder-
se-ia dizer que essa característica completa a primeira. Aqueles que são Hákämîm aprenderam pela experiência
na vida a serem nübönîm, “entendidos”, os que têm capacidade de discernimento. Finalmente, a palavra yüdù`îm
é um qal particípio passivo de [dy, “saber, conhecer”. Como perífrase, este particípio passivo poderia ser
traduzido assim: “aqueles que têm tido saber (sabedoria)/conhecer (conhecimento)”. Entretanto, essa última
palavra é traduzida pela Torá por “conhecidos”, tanto no v. 13 quanto no 15. A Torá entendeu que as pessoas
escolhidas eram do conhecimento daqueles que as escolheriam. Isso não está em discordância com o modo como
a palavra foi entendida nesta pesquisa. Ao contrário, eles escolheriam os “conhecidos” porque sabiam de sua
competência para participar no tribunal da comunidade. Os escolhidos eram pessoas que tinham saber para
julgar, e a comunidade os conhecia como pessoas que detinham tal saber.
83
primária devoção ao Deus de Israel. Assim, os šöºp†îm deveriam ser vistos como
representantes divinos na decisão que tomavam. A decisão deles seria considerada como se
fosse a decisão que o próprio Deus de Israel tomaria.
Em segundo lugar, como segundo elemento do processo de julgamento está o verbo jp;v'
[šäpa†], “julgar”. Ele aparece como qal perfectivo189
conversivo – “julgareis” [~T,äj.p;v. /
šüpa†Tem], no versículo 16. O verbo aponta não somente para o processo todo, mas,
principalmente, para a decisão a ser tomada. Por isso ele aponta não somente para aquele que
está agindo como juiz, mas também para aquele que, como juiz, está tomando uma decisão.
Daí se entende, em terceiro lugar, porque ele vem sucedido do terceiro elemento de todo esse
processo judicial, o190
ceºdeq, “a justiça”. Como substantivo masculino, ele fala daquilo que é
certo. Assim, tomar a decisão correta é decidir ceºdeq – é fazer justiça. Com o ceºdeq feito,
aquele a quem o ceºdeq foi feito obteve sucesso, ou justiça [ceºdeq],191
no julgamento [jP'ªv.mi /
mišPä†].
Em quarto lugar, o último elemento desse processo judicial é mišPä†. Essa palavra aparece
duas vezes no versículo 17 (“no julgamento” [jP'ªv.MiB; / BammišPä†]; “o julgamento” [jP'Þv.Mih;
/ hammišPä†]). Ela tem formas de tradução diferentes, dependendo da versão: A ARA traduz
as duas ocorrências assim – “no juízo” e “o juízo”; a BJ – “no julgamento” e “o julgamento”;
a BP – “na sentença” e “a sentença”.
Olhando os modos de tradução apresentados acima, “Não reconhecereis uma face no
julgamento. Ouvireis tanto do pequeno quanto do grande. Não tereis medo da face de um
homem, porque o julgamento é para o próprio Deus...”, nota-se que a primeira ocorrência de
mišPä† pode corretamente ser traduzida por “julgamento”, entendendo que a palavra acentua o
processo judicial em desenvolvimento naquele tribunal, principalmente que a palavra aparece
seguida de uma proibição para que a pessoa não tenha o reconhecimento como base para se
dar uma sentença no processo judicial [BammišPä†].
189
Nomenclatura sugerida pelo orientador para a ação completa do verbo hebraico. 190
O emprego do artigo masculino “o” aqui é porque ceºdeq é substantivo masculino, “o que é correto, normal;
justiça” (KIRST et al., 1987, p. 203). hq'd'c. é substantivo feminino, “justiça” (p. 203). 191
Outro significado para ceºdeq (KIRST et al., 1987, p. 203).
84
Aqui ela se aproxima mais do sentido pretendido pela BJ, “julgamento” e pela tradução
seguida pela ARA, “juízo”. Nesse contexto de um processo judicial em desenvolvimento pode
também ser entendido pela preposição b e o artigo h prefixados à palavra mišPä†. A
preposição b pode ser traduzida por “em, dentro de” e também por “em meio de, entre”
(KIRST et al., 1987, p. 21).
Essa forma de traduzir a preposição aponta para o contexto em que o processo está sendo
desenvolvido. Além da preposição, o verbo “ouvir” na frase seguinte, “Ouvireis tanto do
pequeno quanto do grande”, aponta para um procedimento que deve ser desenvolvido para
que a decisão final no processo judicial, BammišPä†, seja acertada, no sentido de decisão
correta por respeitar os direitos de cada uma das partes.
Na segunda ocorrência da palavra em Deuteronômio 1,17, ela tem mais o sentido de
“sentença”.192
Assim, hammišPä† mira, não o processo judicial em desenvolvimento, mas o
resultado daquele processo – a sentença que vai condenar um e libertar o outro. Esse sentido é
favorecido pelo próprio texto.193
Há também o motivo teológico para que a sentença, ou hammišPä†, não fosse imparcial:
“porque o julgamento é para o próprio Deus”, onde o Deus de Israel é colocado como o juiz
final e que o mišPä† seria considerado como um mišPä† divino. Se os juízes decidissem por
uma sentença equivocada, eles estariam expondo, a um entendimento errôneo, o próprio
Deus. Por isso, decidir por uma sentença como se fosse a sentença do próprio Deus atraía uma
grande responsabilidade sobre os juízes.
Weinfeld (1995, p. 30) estabelece que as palavras mišPä† e ceºdeq estão relacionadas ao
contexto de justiça social dentro de Israel. Desse modo, quando o texto começa ordenando aos
juízes “fazer justiça”, o redator estava ordenando aos šöºp†îm um julgamento justo, o qual
somente seria feito se eles se dessem ao trabalho de ouvir – ponto fundamental no processo de
julgamento – cada parte envolvida, para que pudessem estabelecer o julgamento correto. E
por que ouvir antes de fazer justiça? Porque, depois de os ouvirem, os šöºp†îm teriam como
192
Entre as opções de tradução para mišPä†, dadas por Kirst et al., está a opção de traduzi-la por “sentença
arbitral, decisão legal” (1987, p. 146). 193
Se a pessoa fosse um Gädöl, é porque pertencia a esse grupo que era considerado pela comunidade como
Gädöl. O mesmo se pode dizer daqueles que eram chamados de q¹‰œn.
85
fazer a justiça – o que significa que, diante do que foi dito, eles decidiriam quem é certo e
quem é errado e apontar qual a pena ou não de cada um.
A implicação disso é que quando a “face”,194
ou o que cada um representava, era o critério de
justiça, de fato não haveria justiça. Haveria uma perversão porque o direito de um seria
pervertido em detrimento do direito de outro. A justiça feita deve ser vista como uma decisão
que seja livre de pressão de quem quer que seja e que seja tomada de acordo com a veracidade
do que aconteceu. Ha-Hayyim disse que o ato de “levantar a face” num julgamento “implica
em negligenciar alguma transgressão ou assunto desagradável” (Apud LEIBOWITZ, 1995, p.
13), fazendo com que o devedor viesse a ser beneficiado com esse desvio do juiz (ou dos
juízes).
Assim, a justiça social, a qual tornava a sociedade mais justa em seus relacionamentos, era o
produto que resultava do seguinte conjunto formado pelos juízes [šöºp†îm]: pelo trabalho que
tais juízes tinham, “fazer justiça” [šüpa†Tem ceºdeq], e a decisão judicial que viria a ser tomada
pelos šöºp†îm, o mišPä† com base na justiça feita. Era social porque ela beneficiaria a
sociedade formada pelo q¹‰œn e pelo Gädöl, além de beneficiar os próprios envolvidos.
Além disso, deve-se levar em consideração que toda essa “organização judicial” era formada
por pessoas do povo, escolhidas por ele, e a quem cabia a função de julgar. Eles eram
membros do “tu” e do “vós”. Para o Deuteronômio, esse julgamento não era o papel do rei.
Em Deuteronômio 17,14-20 não é dada ao rei a função de juiz, mas é dada àqueles que seriam
escolhidos para essa função (Deuteronômio 1,12-16). Essa escolha era de pessoas da
comunidade para julgar pessoas de sua própria comunidade. Tal proximidade trazia sobre os
juízes uma grande pressão, exigindo a necessidade de firmeza de caráter, um absoluto
necessário.
Agora, mesmo que os textos paralelos tratem de situação semelhante à envolvida em
Deuteronômio 1,16.7, qual é o aspecto específico que elas tratam? Em que aspectos estas
passagem contribuem para o entendimento de Deuteronômio 1,16.17?
194
Thutmose III falou ao seu vizir Rekhmire sobre quem devia ser escolhido para juiz: “Ele é um que não se fez
amigo de alguém... é abominação de Deus mostrar face [= parcialidade]. Esta é uma instrução... considere-o
como alguém que você sabe que não o conhece, alguém que é próximo de você como alguém que é muito
distante” (Faukner Apud WEINFELD, 1991, p. 141).
86
2.2.3.2.3. Os textos paralelos em Êxodo e Levítico
2.2.3.2.3.1. Êxodo 23,3: a testemunha deve ser verdadeira
Os livros de Êxodo e Levítico apresentam textos correlatos que, enquanto Deuteronômio
1,16.17 trata como q¹‰œn, esses dois livros colocam especificamente um däl no lugar do
q¹‰œn de Deuteronômio. Em Levítico 19,15 parece haver um refinamento de uma legislação
mais antiga e que precisou ser adaptada ao seu tempo, e em Êxodo 23,3 onde a proibição é
dada para aquela ação judicial que buscasse beneficiar o pobre por ser pobre ou rico por ser
rico. Esse elemento aponta para uma legislação que mostra que a justiça social não pode ser
pendente para um lado. Se ela é justiça social, então ele deve ser feita para qualquer membro
da sociedade – seja ele q¹‰œn, seja ele Gädöl.
Os textos citados de Êxodo e Levítico não apresentam as mesmas figuras que Deuteronômio
1,17 apresenta - q¹‰œn e Gädöl. Mas outros elementos correlatos se apresentam na escrita dos
redatores desses livros. O primeiro texto, em sua ordem de aparição dentro da BH, é Êxodo
23,2-3. Esses versículos pertencem ao bloco de literatura do livro de Êxodo denominado de
Código da Aliança (20,22-23,19). O ambiente a que se relaciona esse texto mostra o povo em
seu estabelecimento no campo, ou na sua propriedade, e tendo um processo judicial em
andamento. O versículo 2 destaca uma proibição sobre alguém que está na condição de julgar
para que ele não distorça uma sentença por causa da pressão dos “muitos”, mesmo que isso
seja para favorecer um homem pobre [däl].
A palavra para este processo judicial é byrI [rîb]. Ela pode ser traduzida por “contenda”,
“controvérsia”, “disputa”, “causa” (SCHÖKEL, 1997, p. 617). O verbo, do qual rîb deriva
[byrI], em sentido primário, parece ter sido aquele relacionado ao combate físico (“lutar”;
“combater”; Êxodo 21,18), daí ele passou a ter o sentido de debate verbal (Gênesis 31,16),
depois veio a designar aquele debate jurídico, tendo o Deus de Israel como sujeito (CULVER,
1980, p. 845-846).195
Mas, daí em diante, houve derivação para a disputa verbal e também
para a questão judicial (CULVER, 1980, p. 845). O substantivo rîb traz esse aspecto de um
embate judicial e é deste modo que ela deve ser entendida pelo contexto em que a palavra está
195
Culver ainda acrescenta outros dois sentidos para o verbo byrI [rîb]: o primeiro é “ficar à espreita” (1 Samuel
15.5); o segundo é “reclamar” a alguém (Juízes 21,22; Jeremias 2,29). Os três significados apontados no corpo
desta pesquisa são os mais comuns, e podem ser mais bem relacionados com o significado da palavra byrI nos
textos em análise.
87
colocada dentro de Êxodo 23.196
As partes estão presentes para apresentarem suas posições no
conflito, e os juízes estão lá para decidirem a partir do que eles ouvirão durante o debate entre
as partes.
Portanto, há um rîb. Porém, ao que o texto deixa entender é que, quando a comunidade está
reunida para um rîb, ela pode já ter tomado uma decisão em favor de um lado da disputa.
Diante disso, distorções poderiam ser feitas. A proibição escrita pelo redator do Código da
Aliança tem os seguintes elementos: primeiro, mesmo que muitos tivessem tomado partido de
um lado do rîb, a testemunha não deveria ser levada a torcer seu testemunho em favor do lado
da maioria;197
segundo, mesmo que um lado do rîb fosse um däl, a pessoa que testemunhava
deveria manter-se firme em suas convicções diante do que ela ouviria no debate judicial. Sem,
contudo, alterar seu testemunho para se aliar a maioria.
Juntamente com o que se tem escrito sobre Êxodo 23,2.3, deve-se colocar uma diferenciação
entre a forma como esta pesquisa traduziu o versículo e a tradução para português de algumas
versões. A BJ traduziu esse versículo da seguinte forma: “nem serás parcial com o desvalido
no seu processo”. A BP fez a tradução assim: “Não favorecerás o poderoso em sua causa”.198
A ARA colocou a tradução desta maneira: “nem com o pobre serás parcial na sua demanda”.
O problema encontrado nessas três versões para o português está na forma como elas
traduziram o verbo ou como foi traduzida a palavra däl. A BP entendeu que palavra däl
deveria ser substituída por Gädöl, na sua tradução, enquanto que a BJ e a versão do ARA
entenderam que o verbo deveria ser traduzido por “ser parcial”. O aparato crítico da BH
apresenta como hipótese duvidosa a possibilidade de o Gädöl ser entendido no lugar de däl, e
cita como exemplo Levítico 19,15, o qual será tratado mais adiante. Mesmo assim, esta
196
A BJ usou a palavra “contenda” para traduzir rîb, em Jó 31.13, pressupondo um debate verbal entre Jó e um
db,[, ou uma hm'a' de sua propriedade. 197
No livro de Provérbios 24,28 há um provérbio que é introduzido por verbo no jussivo, o que demonstra que
isso não era preocupação somente de um legislador ou redator de uma legislação, mas também dos sábios dentro
de Israel. Isso indica que o risco de alguém ser falsa testemunha era grande (“Que tu não sejas testemunha sem
causa contra teu próximo, e enganes com teus lábios” [`^yt,(p'f.Bi t'yTiªpih]w:÷ ^[<+rEB. ~N"åxi-d[e yhiäT.-la; 28 /
28´al-Tühî
`ëd-Hinnäm Bürë`eºkä wahápiTTîºtä BiSpätʺkä]). 198
“Poderoso” é pontuado por * que remete a uma observação onde o tradutor salienta que a palavra é na
realidade däl. Numa nota sobre esse versículo, o tradutor coloca o seguinte comentário: “... no v. 3, o texto
hebraico lê däl, desvalido, que muitos corrigem para Gädöl, pessoa importante, como o sentido parece pedir”
(BP, p. 150).
88
pesquisa entende que o aparato crítico não decide por essa possibilidade de entender o Gädöl,
em lugar do däl, mantendo o texto como está no Hebraico.
O problema com a BJ e ARA está em que o verbo traduzido por “ser parcial”, nessas versões,
é o verbo rdh. SCHÖKEL (1997, p. 167) aponta que esse verbo tem o sentido de “honrar,
respeitar, autorizar”. Além desses sentidos, o verbo também pode ter o sentido de “glorificar”
(HAMILTON, 1980, p. 207)199
e “tratar com distinção”.200
Essa é a opção que a tradução feita
por esta pesquisa sugere que seja seguida.
Por sua vez, a Septuaginta traduziu o texto hebraico assim: “e a pessoa pobre não mostrarás
(terás) misericórdia no juízo/julgamento” [kai. pe,nhta ouvk evleh,seij evn kri,sei]. Primeiro, ela
traduziu däl por “pessoa pobre” [pe,nhta, de pe,nhj] e o verbo foi traduzido por um que tem a
ideia de “ter ou mostrar misericórdia” [evlee,w]. A ideia do contexto é mostrar misericórdia
para quem não tem o devido merecimento. Mas também tem a ideia de mostrar a misericórdia
em detrimento do outro. Para não incorrer no erro de exercer parcialidade no julgamento.
Diante do que foi assinalado acima, o texto de Êxodo 23,2-3 está declarando uma proibição de
parcialidade na justiça. A ordem colocada no versículo 2 destaca que ninguém deveria dar um
testemunho falso por pressão de um grupo maior. O que o versículo 3 apresenta é que isso não
deveria ser feito, nem que isso viesse a beneficiar um Ente Silencioso como um däl. Pois
alguém poderia entender que por um däl até poderia valer uma exceção à regra. Mas como o
Deus de Israel não é parcial, então, seu povo, como seu represente na terra, deveria agir da
mesma maneira.
O que isso tem a dizer é que a condição social de alguém não poderia servir de motivo para
uma distorção proposital diante da justiça para favorecer um lado.201
O livro de Provérbios
28,3 mostra que “um homem pobre” [Geºber räš], mas com poder, pode ser um instrumento de
opressão contra outros “pobres” [Dallîm]: “Um guerreiro pobre e que oprime pobres (é) chuva
199
Esse dicionário de palavras teológicas da BH afirma que uma idéia relacionada é “mostrar parcialidade”, e dá,
como exemplo, Êxodo 23,3, onde é apresentado um caso de parcialidade “para o pobre, o qual é apanhado numa
crise legal, simplesmente por causa de sua pobreza, não por causa de sua inocência”. 200
Uma das ideias sugeridas por HHL-BW7. 201
Para esta pesquisa, a opção das versões apresentadas, em não seguir o texto Hebraico nas suas traduções,
pode ser justificada ou pela ideologia da “opção pelos pobres”, ou por falta de entender que o Deus de Israel leva
ao extremo sua opção de agir imparcialmente, mesmo que isso viesse a beneficiar um pobre. Para ele, o pobre é
um membro de seu povo, e, como tal, deve apresentar as qualidades exigidas de qualquer um dos membros de
sua comunidade.
89
que prostra e não há pão”.202
Para os sábios de Israel, a pobreza de um homem não era uma
condição de inocência, ou mesmo um meio de produzir violência contra outros na mesma
condição.203
Um homem pobre que oprime outros pobres era considerado como a chuva
torrencial que, em lugar de regar o campo para aumentar sua produção, destruía o solo e não
deixava mantimento para ser colhido.
Diante desses textos (Êxodo 23,2-3; Levítico 19,15), o que se pode afirmar é que, para os seus
redatores, a condição social nunca deveria ser colocada como motivo para um juiz julgar uma
causa, de modo parcial, contra seu próximo, alterando uma decisão da justiça para beneficiar
uma pessoa da preferência de um juiz (ou dos demais juízes). E, como notado acima, essa
também foi parte da preocupação da sabedoria em Israel (Provérbios 28,3) partilhando, numa
outra forma de dizer, dos mesmos ideais dos redatores de Êxodo, Levítico e Deuteronômio,
pois poderia ser que a condição econômica de alguém atrairia complacência do povo e de
algum dos juízes, e até a complacência da comunidade diante da violência de alguém contra
seu próximo por ser um pobre. Entretanto, a legislação que regia a vida de um, regia a vida de
outro, fosse pobre, fosse rico, pois fazer justiça tem que olhar o ser humano com tal, não mirar
sua condição social.
Deve-se destacar que há uma diferença entre o Deuteronômio 1,16-17 e Êxodo 23,2-3:
enquanto que em Deuteronômio a palavra é dirigida aos šöºp†îm, em Êxodo ela é dirigida
àquele que vai responder ou testemunhar204
em um rîb. Também mais adiante, em Êxodo
23,6, aparece uma repetição do versículo três, quase que palavra por palavra. 205
Porém, em
lugar de däl aparece ´ebyôn (Êxodo 23,6), fazendo com que as duas palavras pertençam ao
mesmo campo semântico.
202
Provérbios 28,3: `~x,l'( !yaeäw> @xeªso÷ rj"ïm' ~yLi_D: qveä[ow> vr"â rb,G<å 3 [3Geºber räš wü`öšëq Dallîm mä†är söHëp
wü´ên läºHem]. Para esta pesquisa, o emprego de räš e Dallîm mostra o efeito estilístico do autor deste provérbio,
com o fim de não repetir as palavras. 203
SCHÖKEL aponta que mä†är söHëp aponta para uma “chuva torrencial”, e cita este versículo como prova
(1997, p. 465). 204
A segunda parte de Êxodo 23,2 trata disso: tJo)h;l. ~yBiÞr: yrEîx]a; tjo±n>li brIª-l[; hn<å[]t;-al{w> [wülö´-ta`ánè
`al-rìb lin†öt ´aHárê raBBîm lüha††öt] – “E não responderás sobre uma disputa para (te) inclinar atrás de muitos
para distorcer/perverter (uma decisão da corte)”. O verbo hn"[' pode ser traduzido por “testemunhar” que
também é “responder” só que em contexto judicial, como aqui (SCHÖKEL, 1997, p. 507). 205
Notar a tradução de 23,6: “Não torcerás a sentença do teu pobre na sua disputa” [`Ab*yrIB. ^ßn>yOb.a, jP;îv.mi hJ,²t; al {ï6 /
6 lö´ ta††è mišPa† ´ebyönkä Bürîbô]. ta††è é do verbo hjn. Esse aparece por duas vezes em 23,2, como
anotado antes, e uma vez em 23,6. A proibição de “não torcer” mostra que o ideal da justiça deveria ser mantido
– fazer justiça a todos, e de igual modo.
90
2.2.3.2.3.2. Levítico 19,15: outro desafio aos juízes
Mas e Levítico 19,15? Ele afirma algo diferente ou complementar a Deuteronômio 1,16-81 e
Êxodo 23,2-3? A tradução proposta por esta pesquisa para Levítico 19,15, “Não farás
injustiça no julgamento. Não levantarás a face do pobre e não honrarás a face do grande.
Julgarás com justiça teu companheiro”, apresenta um paralelo entre os verbos “levantar”
[afn] e “honrar” [rdh]. Esse paralelo pode ser notado por alguns detalhes a serem
desenvolvidos nos parágrafos seguintes.
Em primeiro lugar, o verbo afn tem um conjunto de significados abrangentes que procede de
seu emprego em diferentes estruturas verbais (binyanim) do Hebraico. A estrutura empregada
em Levítico 19,15 é a do qal. Entre os sentidos dados na tradução dessa estrutura verbal estão
o de “levantar” e “erguer” (SCHÖKEL, 1997, p. 451). Entretanto, Schökel acrescenta que
essa estrutura, afn no qal, pode formar um sintagma206
com o uso de hn<P', “face”. As duas
palavras juntas podem ter o sentido de “conceder favor ou favoritismo, ser parcial”, o que,
segundo ele, é um uso comum dentro da BH.207
O verbo rdh, “honrar”, por sua vez, além desse sentido inicial, também pode ser traduzido
com o sentido de “respeitar” ou “autorizar” no qal.208
O texto de Levítico 19,15 não está
proibindo o respeito ou honra que é devida ao ser humano que procura a justiça para dar uma
resposta justa à sua questão. O texto está falando de uma honra que acarretará prejuízo a um
dos lados da disputa judicial naquele tribunal.
O emprego desses verbos favorece o entendimento de que as duas palavras (afn; rdh), de
raízes diferentes, apresentam o mesmo significado. Portanto, para o redator, a condição social
de uma pessoa não pode ser o motivo para que ela seja favorecida pela justiça. Tal pessoa
deve ter os mesmo direitos de defesa, ou de acusação, que seu oponente.
Em segundo lugar, as duas frases começam com proibições. Além disso, a frase concluinte do
versículo mostra que a justiça deve ser feita tanto para o däl como para o Gädöl, pois os dois
206
“Uma unidade sintática, composta por um ou mais vocábulos que forma orações” (Wikipédia, vocábulo
“Sintagma”, consultada dia 19 de fevereiro de 2013, às 11 horas). 207
Schökel dá exemplos de Gênesis 19,21 e Deuteronômio 10,17, estando os dois usos de afn no qal (1997, p.
451). 208
Schökel cita, entre os exemplos de uso do verbo com os significados apontados aqui, Levítico 19,5 (1997, p.
167).
91
são qualificados pela palavra “próximo”, um “concidadão” ou mesmo um “parente”
(SCHÖKEL, 1997, p. 505 [tymi[']), para indicar que os dois pertencem à mesma comunidade
e são conhecidos um do outro. Aliás, eles podem pertencer ao mesmo clã.
Diante disso, esta pesquisa indica que Levítico 19,15 ilumina o entendimento de Êxodo
23,2.3, por demonstrar que “julgar com justiça teu próximo” [^t<)ymi[] jPoïv.Ti qd<c,ÞB. / Büceºdeq
TišPö† `ámîteºkä] é julgar imparcialmente qualquer pessoa que chegue com uma questão ao
tribunal e ela tem de ser julgada, e condenada ou inocentada, não por sua condição social, mas
por seu comportamento, sendo declarado culpado ou inocente.
Com isso, a pesquisa conclui que os três textos – Deuteronômio 1,16.17, Êxodo 23,2.3 e
Levítico 19,15 lidam com o mesmo ponto – a imparcialidade deve ser a meta dos juízes ao
julgar, e os que procuram tais juízes devem esperar que seu julgamento seja imparcial, e que
esse independe de sua condição social, porque é assim que o Deus de Israel julga o povo que a
ele pertence, Israel.
Há também uma unidade do propósito dos textos que é estabelecer uma justiça imparcial por
parte dos juízes, das testemunhas e dos que estarão ali para assistir o julgamento, porém o
foco dos três tem uma pequena diferença – enquanto que os textos de Deuteronômio 1,16-17 e
Levítico 19,15 colocam como alvo de suas palavras os juízes, o texto de Êxodo 23,2-3 mira
aquele que vai testemunhar bem como a audiência do julgamento em andamento. Todos –
juízes, julgados, testemunhas e audiência – devem esperar que uma justiça fosse tão justa
quanto seu Deus.
Finalmente, há uma questão que precisa ser respondida: qual a relação entre q¹‰œn, däl,
´ebyôn e `änî nos textos em que foram analisados nessa unidade da pesquisa?
A relação existente ocorre por meio da palavra däl presente nos textos de Levítico e Êxodo, os
quais tratam da mesma questão. Essa identificação mostra que o q¹‰œn era alguém que
pertencia às camadas dos desfavorecidos contempladas pela legislação do Deuteronômio.
Nessa comparação, entre os textos de Deuteronômio, Êxodo e Levítico, pontua que o q¹‰œn é
um däl.
Esta palavra, däl, por sua vez, com sua tradução para o Targum com palavra !ksm, a mesma
usada para traduzir as palavras ´ebyôn e `änî do texto Hebraico do livro de Deuteronômio
92
para o Aramaico, mostra que ela pertence ao campo semântico do ´ebyôn e `änî, colocando
däl dentro dos grupo do Entes Silenciosos do livro de Deuteronômio por meio do q¹‰œn, haja
vista que os três textos analisados antes tratam do mesmo assunto – a imparcialidade que um
julgamento deve ter, tanto para o q¹‰œn/däl quanto para o Gädöl.
Assim, o q¹‰œn é um däl, ou um ´ebyôn, ou um `änî – essas palavras tem o mesmo campo
semântico para indicar alguém pobre. Ele também pode ser um Gër (Deuteronômio 1,16), ou
mesmo um xa' [´äH], “irmão”, do Gädöl. Por essa aproximação, o q¹‰œn é um membro do
grupo de Entes Silenciosos do livro de Deuteronômio. Assim, com esses relacionamentos,
pode-se justificar o motivo de se colocar q¹‰œn sob a divisão que trata dos Entes Silenciosos
envolvidos pelas palavras ´ebyôn e `änî.209
No livro do profeta Jeremias, há um texto onde se pode verificar a identificação, por
implicação, do q¹‰œn com däl, e seu contraste com o Gädöl. O texto (Jeremias 5,4.5) está
inserido dentro de uma procura por pessoas, em Jerusalém, que andem em obediência aos
mandamentos do Deus de Israel. Em meio às suas avaliações pessoais, Jeremias pensa que os
“pobres” [Dallîm] não obedecem ao seu Deus porque são pobres e não têm conhecimento do
que Deus quer deles. Então Jeremias procura os “grandes” [Güdölîm] por imaginar que
encontrará entre eles gente capaz de fazer o que o Deus de Israel pede que façam porque eles
têm conhecimento.
Para Jeremias, os Güdölîm são os que detêm o conhecimento por causa de sua posição de
liderança. Aqui ele mira os profetas, sacerdotes e príncipes (ver Jeremias 1,18; 4,9; 5,31;
13,13). Mesmo que Deuteronômio não seja tão específico na identificação do Gädöl como em
Jeremias, dá, porém, para reconhecer que o problema existente em Deuteronômio é entre um
chefe, um líder importante da comunidade, e um homem pobre, um homem sem a importância
do Gädöl.
209
No livro atribuído ao profeta Isaías, dentro de uma mesma unidade literária, aparecem as três palavras para
“pobre” [däl, ´ebyôn e `änî], com diferentes sentidos de tradução, cuja motivação é apresentar a ênfase particular
de cada delas: “fracos” [däl], “indigentes” [´ebyôn], “pobres” [`änî] (14,30.32; BJ). Outras ocorrências paralelas
de däl, ´ebyôn, `änî, e `änäw (10,2 [däl /`änî,]; 11,4 [däl /`änäw]; 14,30 [däl /´ebyôn]; 25,4 [däl /´ebyôn]; 26,6
[`änî / däl]; 29,19 [`änäw /´ebyôn]; 32,7 [`änäw /´ebyôn]; 41,18 [Hebraico – v. 17 – `änî / ´ebyôn]; 66,2 [/]). As
quatro palavras não aparecem juntas em Isaías. Em Isaías 66,2, `änî está em paralelo com “abatido de espírito”
[x:Wrê-hken> / nükË-rûªH].
93
Há algo mais a dizer. O relacionamento entre esses textos pode não somente ser obtido por
meio da ideia central da imparcialidade no julgamento e por meio da identificação do q¹‰œn
com o däl, mas também por meio de outro lado na disputa judicial de Deuteronômio 1,17, o
Gädöl. Em Êxodo 23,2-3 é apenas subentendido que há uma disputa judicial entre duas
pessoas, sendo que uma é claramente identificada como sendo um däl. Como essa pessoa é
um däl, e ela não deve ser tratada de forma diferente apenas por ser däl, o que fica
subentendido é que o outro lado do processo judicial é um Gädöl. Enquanto em Êxodo 23,2-3
esse elemento pessoal é subentendido, em Levítico 19,15 ele é declarado: “Não levantarás a
face do pobre [däl] e não honrarás a face do grande [Gädöl]”. O Gädöl é o outro lado do rîb,
tanto em Deuteronômio quanto em Levítico.
Deuteronômio 1,16.17 mostra um lado do relacionamento dos Entes Silenciosos denominados
pela palavra “pobre” e outro membro da comunidade, chamado de Gädöl. O rîb era apenas
uma parte dos relacionamentos dentro da comunidade, quando um dos lados do rîb apelava
para resolver uma questão para a qual não se encontrou solução entre os dois lados dela.
Mas o rîb não era o único relacionamento tenso para o qual a justiça era convocada para
mediar à paz e trazer solução. A hJ'(miv. [šümi††â] apresentava o relacionamento de trabalho
que deve ter sido tenso em determinados momentos. O estabelecimento da hJ'(miv. viria a
trazer paz nas relações trabalhistas entre um Ente Silecioso e um Gädöl. Ela tembém viria a
estabelecer um tempo preciso para a quebra de qualquer dependência que uma dívida causasse
entre dois irmãos. A hJ'(miv. era um grande desafio para um homem de negócios nos tempos
bíblicos. Acostumado a “ver para crer”, a hJ'(miv. o convidava a “crer para ver”. Abrir mão de
seu recebimento do valor de uma dívida a qual tinha o direito de receber era um passo de
grande fé no seu Deus. Para obedecer, ele precisava crer que viria o lucro depois de nada
receber da dívida na hJ'(miv..
94
2.3. hJ'(miv. [šümi††â]: a quebra da dívida do ´ebyôn – o ´ebyôn livre da dívida
(Deuteronômio 15)
2.3.1. A importância de Deuteronômio 15
O primeiro elemento que mostra a importância desse capítulo é que a presença do inter-
relacionamento entre pobreza e escravidão fica acentuada dentro dele no Deuteronômio. O
texto indica a possibilidade de um homem livre se tornar escravo por causa de sua condição
econômica, e também apresenta o seu oposto, onde um escravo pode se tornar livre devido a
uma legislação beneficente.
A palavra que nomeia o capítulo inteiro, a hJ'miv. [šümi††â],210
traduzida nesta pesquisa por
“quitação (ou cancelamento) de débitos”, tem apenas cinco aparições dentro da BH. Todas
elas ocorrem dentro de Deuteronômio (15 e 31),211
indicando que ela é uma legislação
inovadora que quebraria os paradigmas de uma escravidão permanente.212
Esse capítulo é o único lugar dentro do Deuteronômio onde o ciclo liberdade-pobreza-
escravidão-liberdade (ou até escravidão voluntária permanente) é colocado para mostrar
eventuais mudanças para uma mesma pessoa. Deve-se pontuar que esse ciclo poderia ser o
ciclo na vida de uma pessoa, seja homem ou mulher. O homem em pauta é uma pessoa livre
que, em sua liberdade, chega ao nível mais baixo da pobreza, mas, ainda como homem livre,
opta por uma escravidão voluntária. No tempo em que sua libertação é chegada, ele escolhe
sair livre, ou, em sua liberdade de escolha, faz a opção de ser um escravo por toda a vida dali
em diante.
210
O verbo do qual o substantivo procede é jmv, cujos sentidos são: “liberar, deixar cair, deixar soltar, deixar
descansar” (AUSTEL, 1980, p. 936). Thompson diz que a šümi††â tem o sentido literal de “deixar ir” (1982, p.
178). Assim, o cancelamento da dívida é uma soltura – tanto do direito de receber quanto do dever do devedor de
pagar. Pode-se afirmar que fazer uma šümi††â é fazer uma proclamação pública de um evento de libertação. 211
Suas aparições estão sempre relacionadas á quitação de dívidas (AUSTEL, 1980, p. 936). Elas ocorrem em
Deuteronômio 15,1.2 (2x).9; 31,10. Dessas, em três, a palavra hJ'(miv. aparece com o artigo definido, apontando
para um evento específico que ocorre no ano sétimo (15,2.9; 31,10). As duas que aparecem sem um artigo
apontam para uma realização – aquilo que deve ser feito: “Ao fim de cada sete anos farás (uma) šümi††â”
(15,1); “E esta palavra é o (modo de fazer o) cancelamento de dívidas” (15,2a). A ocorrência exclusiva aqui
reforça a ideia da originalidade da šümi††â para Israel e exclusividade do Deuteronômio. 212
“Somente em Deuteronômio o ano sabático é apresentado como o ano em que os débitos deveriam ser
cancelados” (THOMPSON, 1982, p. 178). Isso demonstra um desenvolvimento da legislação original
estabelecida em Levítico 27,1-7. A legislação da šümi††â era a demonstração que algo se fazia necessário para
completar a legislação original.
95
Outra importância do capítulo é que ele aponta para a interrupção de uma prática disseminada,
dentro das comunidades rurais e citadinas, onde o ´ebyôn213 perdia a possibilidade de
restauração à condição anterior ao seu empobrecimento. Assim, o ´ebyôn era mantido na
continua condição de subserviência ao Ba`al,214 impedindo-o de acessar novo começo, e,
portanto, a liberdade.
No desenvolvimento de Deuteronômio 15 há duas situações que ilustram o inter-
relacionamento entre o Ba`al e seu ´ebyôn. A primeira é a do empréstimo feito ao ´ebyôn
quando estava se aproximando o ano de concessão do perdão às dívidas. A segunda é do
´ebyôn que se vende para ser escravo quando ele percebe que essa condição passa a ser
melhor que a de um ´ebyôn, na qual ele se encontrava.215
O capítulo 15 é como uma janela por meio da qual o sol entra para iluminar o inter-
relacionamento entre um Ba`al e um ´ebyôn, e como a misericórdia poderia ser exercida,
mesmo em meio às situações sociais de pobreza e riqueza. Aliás, o capítulo demonstra um
grande valor da riqueza onde ela dá a capacidade de quem a possui para ser generoso com
quem precisa e, ao mesmo tempo, de depender, em sua confiança, que as palavras do Deus de
Israel serão cumpridas para ele.
2.3.2. A base redacional sobre o “tu/vós”
A questão relacionada às pessoas a quem se dirige o redator de Deuteronômio é recorrente em
todo o livro. Neste ponto da pesquisa, destaca-se que a aparição da construção sobre o
“tu/vós” apresenta peculiaridades dentro do livro de Deuteronômio. Mas aqui, a forma como
redator fala é diretamente posta sobre o personagem apontado pelo pronome “tu”. A
motivação para isso existe, em primeiro lugar, porque o redator está falando com seu ouvinte,
213
´ebyôn é a palavra empregada no capítulo para designar o pobre, exceto em Deuteronômio 15,11, onde o `änî
aparece na construção ^ßn>yOb.a,l.W ^Y<±nI[]l; ^yxióa'l. / lü´äHîºkä la`ániyyeºkä ûlü´ebyönkä (BJ – “do teu irmão, do teu
humilde, do teu pobre”). Como a palavra ´ebyôn é a que é empregada para designar o “pobre” dentro de
Deuteronômio 15, para esta pesquisa, a palavra `änî aparece como parte do esforço literário do redator para
destacar a condição de pobreza a que chegou o ´ebyôn. 214
Palavra empregada para designar o “credor” que fazia um empréstimo ao ´ebyôn. Esta pesquisa entende que o
Ba`al era um proprietário de terra, ou um comerciante na cidade, e é com esse que o capítulo continuará falando
até o seu final. Ele proclama a liberdade do irmão escravizado e também dá liberdade das dívidas. De qualquer
modo, o Ba`al era alguém com condições de ter e manter um escravo.
215 Essa parte do texto será analisada quando a pesquisa for tratar do db,[,,`ebed, e da hm'a', ´ämâ no capítulo 4.
96
o Ba`al, aquele que se tornara credor,216
com quem ele trata sobre as condições de débitos,
generosidade e escravidão de um irmão israelita. Portanto, a forma pessoal de tratar é direta e
tem o alvo bem definido – o Ba`al, um senhor de terras, ou apenas alguém com posses, e que
possui as condições econômicas para emprestar e para comprar um escravo irmão.
Na análise de Deuteronômio 15 se buscará desenvolver a questão básica do inter-
relacionamento entre os Entes Silenciosos e outros membros de suas comunidades dentro do
Deuteronômio. A análise de Deuteronômio 1,17 já mostrou que os “pobres”, denominados de
“pequenos” podiam ter acesso à justiça. No tribunal eles se relacionavam com um “grande” e
também com os juízes e a comunidade presente. Nos textos paralelos, em Êxodo e Levítico, a
comunidade se mostrou muito ativa na questão que envolvia um “pobre”.
Neste ponto do capítulo, a pesquisa trabalhará, principalmente, com uma análise do capítulo
15 de Deuteronômio. Esse capítulo fora escolhido porque uma parte das palavras relacionadas
aos Entes Silenciosos é empregada: o `änî, o ´ebyôn, o estrangeiro não residente [yrIk.n" /
nokrî], o `ebed e a ´ämâ.
Deuteronômio 15 vem a ser o único capítulo dentro do livro onde se pode fazer algum tipo de
relação entre essas palavras e as pessoas que elas representam. Mas há associações entre elas
dentro de outros capítulos do Deuteronômio, as quais serão apresentadas nos capítulos
seguintes. Entretanto, essas associações existem entre os membros do mesmo grupo de Entes
Silenciosos. Esses, porém, mantêm distinção entre si.
2.3.3. A estrutura literária de Deuteronômio 15: Os blocos literários de Deuteronômio
15
Deuteronômio 15 tem quatro unidades literárias que se completam. É possível que essas
unidades fossem independentes inicialmente,217
mas que, num processo redacional constante
da literatura do Deuteronômio, elas foram unidas para formar esse capítulo e, ao mesmo
tempo, formar uma legislação unida – a hJ'(miv.. Dentro dessas unidades, especificamente, em
Deuteronômio 15,2-18, há a provisão para que o sofrimento do pobre fosse aliviado quando
216
O texto não especifica qual é o tipo de propriedade que possui o Ba`al nem o seu padrão econômico. Ele
apenas é levado a aplicar a legislação da hJ'(miv.. 217
Esta pesquisa trabalha com o texto na forma em que ele aparece aqui. Assim, apenas se pode conjecturar que
esta legislação apareceu, inicialmente, em separado para tratar de diferentes situações que um homem podia se
envolver.
97
ele viesse a enfrentar dificuldades extremas: incapacidade de pagar suas dívidas, dificuldades
para a obtenção de empréstimos e o contrato de venda para a servidão (TIGAY, 1996, p. 144).
A primeira unidade é aquela que trata daquilo que vem a ser o centro do capítulo – o Ano do
Cancelamento de Dívidas (15,1),218
e essa lida diretamente com Israel, o povo que
experimentou sua “šümi††â” no Êxodo. Além disso, ele é um capítulo que trata com o
homem israelita que está passando por privação e, por isso, ele toma certas iniciativas para
manter sua sobrevivência e liberdade. Ao tomar um empréstimo, deve receber ajuda
humanitária, ou se escravizar para sobreviver à sua crise financeira. Essa unidade funciona
como uma introdução ao capítulo. Ela serve como uma chamada. Quando perguntado sobre o
que vem a ser a hJ'(miv., as unidades seguintes servirão de resposta a essa questão.
A segunda unidade é a que aborda o perdão concedido ao tomador de um empréstimo no ano
sétimo (15,2-6). Em sua dificuldade por sobrevivência, esse homem encontra no outro a
possibilidade de ajuda por meio de um empréstimo, garantindo o pagamento com a entrega do
penhor.
A terceira unidade literária está intimamente ligada com a segunda, porém, ela aborda a
questão do empréstimo quando o ano sétimo está próximo (15,7-11). A proximidade com o
Ano do Cancelamento de Dívidas poderia não ser vantajoso fazer qualquer empréstimo,
dificultando a vida do ´ebyôn. Essa unidade lida com o eventual prejuízo que o Ba`al poderia
pensar que teria, em lugar do benefício que a hJ'miv. representava para um ´ebyôn que
estivesse no meio de seu povo.
A quarta unidade está ligada a questão do cancelamento de dívidas do ano sétimo, e trata do
assunto do irmão que, em uma atitude extrema, se vendeu como escravo para outro israelita
como meio de sobrevivência (15,12-18). Ela demonstra o extremo ao qual alguém pode apelar
em sua luta para sobreviver em uma crise financeira.
A quinta unidade não está ligada diretamente ao Ano do Cancelamento de Débitos, nem com
soltura de escravos hebreus, mas com a consagração do primogênito ao Deus de Israel (15,19-
23). Essa unidade, aparentemente, está separada dos outros quatro blocos literários. Mas, se
218
Tigay indica que o ano da šümi††â viria ser o mesmo do ano sabático, pois em Êxodo 23.10-11 o verbo jmv
(“dispensar, deixar sair, deixar cair”), de onde vem a palavra šümi††â, é empregado em relação à dispensa da
colheita dos campos, e que em Neemias 10,32 a mesma associação foi feita (1996, p. 145).
98
for olhada do ponto de vista da consagração ao seu Deus, Israel deve sua obediência a ele,
como povo consagrado, no cumprimento daquela legislação que trata do cuidado que ele deve
ter com os Entes Silenciosos. O filho primogênito deveria ser aquele que assumiria as
responsabilidades do clã em lugar do pai, e isso incluía responsabilidade de cumprir os
mandamentos divinos.
Há lugares no Pentateuco onde Israel é chamado de filho primogênito do Deus de Israel.219
Até Efraim220
é chamado de primogênito.221
Assim, Israel deve sua lealdade ao seu Deus
como um primogênito que é leal ao seu pai como filho mais velho, e a ele deve sua obediência
e honra em acatar suas palavras. Seguir os mandamentos de Deus é a forma mais elevada de
honrá-lo, como seu “pai”, e um meio prático de dar continuidade a uma tradição familiar.
O primogênito daria continuidade à tradição do pai. Como primogênito de Deus, Israel deve
ser àquele que levará adiante o que ele foi instruído pelo seu pai – o Deus de Israel. Mas aqui,
Israel não é o filho mais velho, mas é o herdeiro de tudo que pertence a Deus como seu pai.
Daí a necessidade de Israel ser um primogênito que corresponda àquilo que se espera dele
como seu herdeiro.
Assim, Deuteronômio 15,19-23 está intimamente relacionado com as unidades anteriores pela
lealdade que o primogênito de Deus deve manter na manutenção das tradições familiares, no
caso em estudo, a hJ'miv., e também como ato de bondade por expressar sua gratidão ao Deus
que o socorreu quando o libertou da escravidão no Egito.222
219
Israel é chamado de primogênito do Deus de Israel em Êxodo 4,22, e de “meu filho” (4,23). Todos os
primogênitos de Israel deveriam ser consagrados ao Deus de Israel, tanto de homens como de animais (Êxodo
13,2.12). Os primogênitos dos filhos de Israel podiam ser resgatados. Animais seriam mortos em seu lugar,
representando sua consagração total. Eles foram consagrados a Deus no dia que saíram do Egito com a morte dos
primogênitos dos egípcios (Números 8,17). Ao que parece, os primogênitos dos egípcios perderam a vida em
lugar dos primogênitos de Israel. Esses eram passíveis de resgate por um substituto, aqueles não. 220
Como representante maior de todas as tribos que formavam o Reino do Norte, Efraim é elevado à posição de
líder. Uma parte, Efraim, é colocada no lugar de todo o Reino do Norte, constituído pelas dez tribos que se
separaram de Judá e Benjamim. 221
Jeremias 31,9 está inserido dentro de um contexto de arrependimento futuro do Reino do Norte. A afirmação
que Efraim é primogênito do Deus de Israel nunca é feito a respeito de Judá nos escritos da BH. Essa declaração
em si é inédita pela condição de rebeldia que fundamentava o Reino do Norte, desde seu nascimento, com o
culto aos bezerros de ouro presentes no norte e sul daquele reino. Ela também chama atenção pela sua ausência
em relação à Judá porque esse se manteve leal ao seu Deus sob o domínio de alguns reis piedosos. 222
Mesmo que a unidade que trata dos primogênitos, em Deuteronômio 15, esteja relacionada com as unidades
precedentes, ela não participará da análise do capítulo.
99
2.3.4. O sitz im leben de Deuteronômio 15
A experiência de um Ente Silencioso, o qual, ao mesmo tempo, é um Ente Excluído, não é
favorável em nenhuma cultura. O livro de Deuteronômio, cuja vivência abraça períodos tão
diferentes quanto distantes uns dos outros, como o século VIII AEC, no Reino do Norte, e o
período do Exílio e pós-Exílio, ou mesmo em tempos de avivamentos religiosos, como
aqueles ocorridos nos dias de Ezequias e Josias. Tudo isso é demonstração que diferentes
redatores estão no trabalho árduo de aplicar a mesma legislação às suas realidades.
Eles também estão vivenciando um contexto onde há necessidade de dar voz à solução de
uma circunstância desfavorável aos Entes Silenciosos, cuja presença era comum em seus dias.
Agora, se o livro teve diferentes períodos redacionais e aplicações a diferentes períodos
históricos de Israel e Judá, significa que sempre houve necessidade de retorno ao
Deuteronômio para recordar e aplicar a mesma legislação.
O ambiente de Deuteronômio 15, como do bloco inteiro de 12 a 26, é tanto do campo como
da cidade. A situação por trás da deliberação do ano de cancelamento de dívidas é a
dificuldade que um senhor, com bens, enfrentava no trato com aquele que havia se vendido
como escravo, seu compatriota em Israel, e com aquele que havia tomado um empréstimo.
Essa dificuldade estava no coração do cancelamento das dívidas de forma simples: sem o
retorno daquilo que havia sido dado para aquele que havia se vendido como escravo ou do
empréstimo dado a um devedor. O contexto por trás do texto também revela a luta pela
sobrevivência aonde, na condição extrema de alguém, se vende como escravo.
O contexto temporal favorece ao período do ano sabático proclamado para o descanso da
terra. Nesse ano, todo proprietário deveria deixar de plantar para que a terra produzisse por si
só o alimento (Êxodo 23,10-11; Levítico 25,1-7). Aquele descanso dado aos homens e
animais uma vez por semana passava a ser ampliado para todos por um ano, incluindo o
campo de semeadura.
Entretanto, a aplicação da šümi††â envolve pequena diferença para o irmão devedor e para o
escravo hebreu (esse também era um devedor). O escravo hebreu trabalharia seis e seria
liberto na proclamação do ano sabático para a terra. Porém, os devedores do Ba`al só
experimentariam a completa libertação de suas dividas “ao fim de sete anos” [miqqëc še|ba`-
100
šänîm], quando um novo período de sete anos seria iniciado, e o devedor experimentaria a
liberdade.223
Qual a motivação para isso? Primeiro, no sábado de descanso da terra todos passavam a ser
iguais em sua dependência do Deus de Israel, pois todos esperavam que ele cumprisse sua
parte de abençoar o solo em sua produtividade. Todos viveriam daquilo que a terra
produzisse, e essa produção era para todos. De certo modo, não haveria pobre ou rico, pois
todos estariam na mesma condição, dependendo do que o solo viesse a produzir (Levítico
25,2-6). Segundo, no ano de descanso também haveria a possibilidade de soerguimento do
devedor. Haja vista que a sua dívida fora perdoada, durante o ano de descanso da terra, um
novo projeto de vida poderia ser planejado. Assim, a šümi††â não deve ser vista só pela sua
generosidade em dar liberdade a um devedor ou escravo, mas também pela sua generosidade
em dar outra oportunidade a quem perdeu, por qualquer motivo, algo no passado.
Entretanto, não se deve idealizar a sociedade pensada pelo redator como sendo uma sociedade
sem conflito. A própria ordem para que os débitos dos devedores fossem cancelados no fim
de sete anos e a liberdade compulsória dos escravos comprados de entre seus irmãos, no fim
de seis anos, pode não ter sido bem aceita pelo Ba`al. As ordens para que o Ba`al desse
presentes ao escravo que está sendo liberto (15,14), não considerar um peso (ou prejuízo) a
libertação no sétimo ano (15,18), não explorar o próximo a quem se havia feito um
empréstimo (15,2), e não ficando com a garantia mais tempo que o prazo no fim dos sete anos
indicam que o ambiente de conflito pode ter sido instalado por causa das novas ordens.
Além do mais, o ano sétimo era o ano de descanso da terra, e que tudo o que espontaneamente
nascesse era para o Ba`al, para o estrangeiro, viúva, animais e o órfão. O Ba`al poderia
considerar que tudo isso lhe causaria prejuízo e poderia não querer atender a legislação da
hJ'(miv. [šümi††â]. Deve-se levar em consideração que a legislação da šümi††â beneficiaria o
irmão pobre e o irmão escravo. O benefício do Ba`al viria de seu compromisso em obedecer
ao que o Deus de Israel estava ordenando.
223
Pode-se apontar aqui que há uma escravidão que não impõe a limitação física – a escravidão que a dívida
impõe sobre o devedor. Mas há outra escravidão que se impõe pela venda da própria pessoa. As duas são
ocasionadas pela dívida. Notar o exemplo presente em 2 Reis 4, onde uma mulher pede socorro ao profeta
Eliseu, para que seus filhos não fossem levados como escravos para quitar dívidas.
101
Ao pensar em Deuteronômio 15, não se deve se esquecer de pontuar que os conflitos entre o
Ba`al e o que ele atendia com seus bens necessitavam ser resolvidos. A quebra de velhos
hábitos não foi uma decisão simples para Ba`al, acostumado a sempre levar vantagens. Essa
forma de escrever demonstra que o redator (ou o redator de cada período) conhecia bem seu
ambiente e com quem ele estava se relacionando e tinha conhecimento do assunto que estava
tratando. Nem todos iriam aceitar, ou estavam aceitando, sem algum tipo de resistência, a
šümi††â.
Esse era o ambiente por trás de Deuteronômio 15 – um ambiente de ano de descanso do povo,
dos animais e da terra. Mas não era um descanso sem suas dificuldades. Havia seus conflitos
com a aplicação de uma nova legislação que viria mudar o relacionamento entre o Ba`al e seu
irmão pobre ou escravizado. É nesse território, seja o campo, seja a cidade, que os
relacionamentos existentes em Deuteronômio 15 estão ocorrendo. É um território físico –
campo, cidade – mas também é um território social, onde os relacionamentos humanos
acontecem e os conflitos existentes necessitam ser resolvidos.
2.3.5. O benefício da šümi††â para o pobre em Deuteronômio 15 – tradução e análise
do capítulo
2.3.5.1. A introdução (Deuteronômio 15.1)
2.3.5.1.1. Tradução224
1 – “Ao fim de sete225
anos farás226
(um) cancelamento227
(de débitos).”228
224
O primeiro objetivo desta tradução é demonstrar a estrutura literária de Deuteronômio 15, e sua inter-relação
entre esses cinco blocos literários. A tradução será apresentada na forma de uma diagramação da estrutura
literária do texto. O segundo objetivo é notar o fluir do texto de tal forma que se perceba aquela frase, ou
palavra, que precise de análise mais acurada para seu melhor entendimento. A tradução de cada bloco literário
será encontrada na análise do capítulo. 225
A pergunta que é respondida por essa construção adverbial temporal é quando seria o tempo para ser
realizado o cancelamento do pagamento de dívidas. O texto estabelece que fosse ao fim de (cada) sete anos. O
estabelecimento desse tempo ficaria fixado na mente dos ouvintes. Portanto, a cada sete anos um novo ciclo de
liberdade das dívidas seria iniciado. 226
O sentido do verbo hf'[' [`Sh] aqui poderia ser o de “oficiar” ou “celebrar” (SCHÖKEL, 1997, p. 521). Se
assim for, o texto dá uma declaração oficial diante do Deus de Israel, colocando a šümi††â dentro de um
contexto religioso. E nesta direção que aponta Deuteronômio 15,2. A šümi††â é um tempo de celebração. Pode-
se imaginar que cada endividado escravizado aguardava com ansiedade esse ano. Então, era um tempo de
celebração nacional, ao menos para esse grupo seleto de israelitas. Havia uma proclamação oficial da šümi††â
em Israel. 227
A palavra hJ'(miv. [šümi††â], traduzida pela BJ por “remissão” em Deuteronômio 15,1, foi traduzida aqui por
“cancelamento (de débitos ou dívidas)” porque é esse sentido que melhor se harmoniza com o conteúdo do
102
2.3.5.1.2. O ano do cancelamento – o centro do capítulo
O tema do capítulo é colocado numa frase simples em forma de ordem dirigida a alguém, na
segunda pessoa do singular, o que, colocado na ordem invertida da frase em hebraico, faria
com que a tradução ficasse assim – “Tu farás (um) cancelamento229
ao fim de sete anos”. A
frase é a fórmula introdutória do capítulo e funciona como uma propaganda panfletária
daquilo que será dito em seguida. Para uma cultura acostumada à transmissão oral, essa
declaração marcava as mentes dos ouvintes e também seria fonte de atração sobre o que isso
viria a ser para aquela audiência, constituída de homens denominados pela palavra “Ba`al”,
bem como para aqueles que, durante os anos anteriores, haviam se endividado.230
Entretanto, essa fórmula introdutória aponta para um evento proclamado pelo “tu”, o qual será
identificado no versículo seguinte como sendo o Ba`al, o dono do empréstimo feito a um
homem devedor,231
e que ele também é aquele que comprou a liberdade de seu irmão para ele
capítulo inteiro. Esta pesquisa entende que a BJ tenha sido influenciada em sua tradução para o Português pela
Septuaginta, cuja tradução consta a palavra a;fesij. Essa palavra é usada em todas as cinco ocorrências em
Deuteronômio para traduzir hJ'(miv. para a Septuaginta. Como o conceito de “remissão” também está ligado ao
de “perdão”, então se pode notar aqui a influencia dos escritos do Novo Testamento Grego. A palavra é usada
em Mateus 26,28 com a ideia de perdão de pecados [eivj a;fesin a`martiw/n]; em Marcos 1,4 carrega o mesmo
sentido junto com a palavra para arrependimento [metanoi,aj eivj a;fesin a`martiw/n]; essa mesma construção
aparece em Lucas 3,3. O perdão envolve o cancelamento de dívidas, mas ele é muito mais que isso, pois
pressupõe o pagamento de uma dívida de um por outro. Não é essa a ideia que está por trás da hJ'(miv. em
Deuteronômio, mesmo que indiretamente o conceito de um substituto esteja embutido nas promessas divinas
feitas ao Ba`al que obedecer ao mandamento divino de cancelar a dívida ou de libertar um escravo irmão. Deus
assume a dívida do devedor diante do credor e promete pagá-lo por meio de bênção. O grande desafio do credor
seria confiar em seu Deus. O verbo correspondente, jmv, é incomum dentro da BH, “é um termo técnico, o qual,
em tempo antigos, era aplicado no contexto da agricultura, e, em tempos mais recentes, foi adaptado para a
economia urbana e comercial” (CAIRNS, 1990, p. 146). Ezra afirma que jmv significa “deixá-la cair”, o que,
ilustrativamente, é o que acontece em 2 Reis 9,33 (2003, p. 69). 228
`hJ'(miv. hf,î[]T; ~ynIßv'-[b;v,( #QEïmi1 / miqqëc še|ba`-šänîm Ta`áSè šümi††â. A construção #QEïmi / miqqëc é
iluminada por sua tradução para a LXX – diV e`pta. evtw/n poih,seij a;fesin. Dia, com o genitivo tem, nesse texto, o
sentido de “depois” (RUSCONI, 2003, p. 121). A preposição !mi também é usada em sentido temporal no texto
hebraico. A tradução dessa pode ser também por “depois de” (KIRST et al., 1987, p. 130). Assim, a tradução
poderia ser de qualquer modo que apontasse que, terminando o período de sete anos (como alternativas de
tradução: “no término de”; “quando terminar”; “no fim de”; etc.), as dívidas do “teu irmão” deveriam ser
perdoadas, ou canceladas, e ele experimentaria um novo tempo de liberdade em sua vida, possibilitando novo
começo, sem dívidas e com a ajuda de seu irmão, o Ba`al. 229
A hJ'(miv. “corresponde em função ao acadiano anDuraru(m), remissão de débitos comerciais, remissão de
escravos privados, entrega dos depósitos de segurança” (HALOT, 2001, v. 2, p. 1558). 230
Tigay menciona que, como a šümi††â visava beneficiar o pobre, nem todas as dívidas eram cobertas pelo
evento da šümi††â no sétimo ano. Ele diz que, segundo a halakhah, os salários atrasados, dívidas de mercadorias
dos comerciantes, e alguns empréstimos segurados não estavam cobertos pelo cancelamento de dívidas na
šümi††â (1996, p. 145). 231
No progresso do texto, percebe-se que o trato da dívida com Ba`al é feito com outro homem. Esse é
identificado como alguém que é “teu irmão” e “teu próximo”.
103
lhe servisse como um `eºbed. Como evento proclamado oficialmente, havia uma solenidade ao
redor disso, e tudo era público na comunidade onde credor e devedor viviam juntos. Essa
solenidade envolvia juramentos solenes232
que o Ba`al não viria a cobrar a dívida que havia
sido cancelada.
A primeira pergunta é: o que o texto quer dizer com “ao fim de sete anos” [miqqëc še|ba`-
šänîm]?233
O que o redator está dizendo é que dentro de cada período de sete anos, no fim
desse período, as dívidas deveriam ser canceladas para o devedor israelita. Assim, qualquer
empréstimo deveria ser avaliado tendo em vista a proximidade do fim do período de sete anos
em curso. Dessa maneira, no fim de sete anos – no término desse período de sete anos e antes
do começo de um novo período de sete – haveria a liberdade de dívidas que seria proclamada
em todo o Israel, mas, individualmente, por cada Ba`al sobre o devedor que estava sob seu
domínio.234
Tigay aponta que “segundo a halakhah, os débitos eram cancelados ao pôr do sol
do último dia do sétimo ano” (1996, p. 145).
Qual a importância do ano sétimo? O ano sétimo era um ano de cancelamento de dívidas,
porém, no fim.235
Entretanto, dentro do contexto da šümi††â, mas relacionado ao irmão que
se vendeu como escravo, há a seguinte declaração: “Quando o teu irmão hebreu, ou (tua irmã)
hebreia, se vender a ti, seis anos servirá a ti. E no ano sétimo, tu o mandarás fora livre de
junto de ti (de contigo)” (Deuteronômio 15,12). Assim, “o fim de sete anos” não implica que a
232
No livro de Neemias (5,1-19), um evento de protesto é levantado por aqueles que estavam endividados,
haviam perdido seus campos nos empréstimos, e alguns já haviam perdido a liberdade para que dívidas fossem
pagas. Para resolver o problema, Neemias pede que as dívidas sejam canceladas e que um juramento, não apenas
uma palavra fosse dada, fosse prestado diante dos sacerdotes (5,12). Houve uma cerimônia solene diante do
representante divino, o sacerdote. Em Deuteronômio 15, a figura do sacerdote está ausente. O solenidade inteira
era realizada pelo Ba`al – o texto diz “tu farás šümi††â”. 233
Coloca-se aqui uma teoria. É possível apresentar um forte motivo para pôr o fim de sete anos como a data
máxima para o pagamento ou o encerramento de dívidas feitas nos sete anos anteriores. O ano sétimo era o ano
de descanso da terra. Esse ano poderia ser o ano de recuperação do devedor, tendo condições de pagar a sua
dívida, pois, afinal, ainda nesse ano ele estaria na dependência do dono do campo para sua alimentação. Caso
não houvesse condições para sua recuperação, a dívida não seria transportada para o novo período de sete anos.
Ela seria extinta na proclamação do cancelamento das dívidas pelo próprio credor, o Ba`al. 234
A šümi††â era o cancelamento das dívidas fazendo com que o credor abrisse mão do recebimento de qualquer
pagamento por elas. Em certo sentido, Deuteronômio 24,10-13 também fala de uma suspensão de pagamento
temporário, quando o credor devolveria, no pôr do sol, o penhor que o devedor lhe houvesse dado para que
servisse de cobertura durante a noite. Era uma suspensão parcial porque o credor reaveria o penhor na manhã
seguinte. 235
Para Driver, a palavra “fim” não deve ser pressionada a dizer exatamente o fim do ano sétimo. Para ele deve
ser considerado o fim do período de sete anos e, assim, “fim” é usado para indicar que o sétimo ano tem
chegado. Como demonstração disso, ele sugere que “no fim de sete anos” de Jeremias 34,14 seja o equivalente
de “no sétimo ano” de Deuteronômio 15,12, “onde o período assim denotado é claramente concebido como ter
sido começado tão logo o período de seis anos tenha terminado” (1895, p. 174). Assim, ao fim de sete anos não
indica o fim exato do sétimo ano, mas o fim do período de seis anos e o começo do sétimo.
104
šümi††â do irmão empobrecido endividado só chegue no final dos sete anos, mas no ano
sétimo.
Qual o resultado prático disso? O recomeço para o ´ebyôn era uma forma muito bem
planejada de igualar as possibilidades para todos dentro de Israel a partir do ano do descanso
da terra. De um lado estava o Ba`al – o credor que tinha condições de sobrevivência garantida
e que precisava deixar a terra descansar e viver do que ela produziria naturalmente naquele
ano, de outro estava o ´ebyôn – o endividado que também esperaria viver do que a terra
produziria, mas livre de qualquer débito.
A raiz verbal [jmv / šm†] ocorre em outras línguas semíticas com sentidos que demonstram
diferentes variações do mesmo conceito: Acádio – “retirar”; Árabe – “escaldar, despejar a
água quente sobre, suspender” (MULDER, 2006, p. 198-199). A ideia de um cancelamento
pode ser vista nos sentidos de “retirar” e “suspender”. Assim, o Ba`al retira ou suspende seus
direitos ao recebimento de uma dívida, demonstrando que o cancelamento dela é uma decisão
unilateral do Ba`al ao suspender seus direitos de recebimento.236
2.3.5.2. O ´ebyôn: o Ba`al e seu empréstimo ao ’ebyôn – seu irmão e seu
próximo (Deuteronômio 15,2-6)
Depois de declarar o “título” do que o redator pretende falar, ele passa a definir o que ele tem
em mente com a šümi††â. Ao definir a šümi††â, o redator apresenta os principais
personagens envolvidos com ela. O primeiro é o Ba`al, aquele que tinha condições de se
tornar um credor de um ´ebyôn. O segundo é o ’ebyôn, identificado como sendo “seu
próximo” [‘Wh[e’rE / rë`ëºhû] do Ba`al, aquele que, ao que tudo indica pela construção do texto, é
definido pelo personagem seguinte que aparece no texto, o “seu irmão” [wyxiêa' / ´äHîw]. Além
desses personagens, outros aparecem. Um deles é a comunidade que, mesmo que ela não seja
destacada, ela está presente na proclamação que o Ba`al faz da šümi††â, porque ela é um
evento público e formalizado pela sua declaração.
236
Thompson diz que “uma das características da expressão deuteronômica da lei israelita... é a profunda
preocupação com o bem estar do membro individual da sociedade, fosse ele rico ou pobre” (1982, p. 177). O
bem estar que a šümi††â levaria a alguém que não pôde pagar uma dívida dentro de um período de sete anos é de
difícil descrição. Porém, sem exageros, havia expressão de muita alegria, mesmo quando alguém viesse a ficar
como escravo permanente de seu Ba`al.
105
Os outros Entes Silenciosos que aparecem no capítulo são o `ebed e a ´ämâ, e, juntamente
com esses, a comunidade e os juízes, pois quando o `ebed e a ´ämâ queriam ficar para
sempre na casa de seus senhores, os juízes eram chamados para atestar a fala deles, pois a
decisão não podia ser reconsiderada no futuro depois de tomada. Estes (juízes, comunidade)
não estão declaradamente presentes nesse texto, mas isso não quer dizer que suas presenças
não estivessem subentendidas.
Finalmente, o Deus de Israel é apresentado como aquele que está ordenando a šümi††â por
meio da fala do redator, e, ao mesmo tempo, é a Deus que este evento é proclamado. Isso quer
dizer que ela vem como expressão de obediência do Ba`al ao seu Deus e como demonstração
de sua honra a ele.
2.3.5.2.1. Tradução (Deuteronômio 15,2-6)
2 – “E esta237
palavra (ou coisa)238
é o cancelamento de dívidas:239
Todo Ba`al 240 deve
abrir sua mão de empréstimo que fez (emprestou) ao seu próximo.241
Ele (o Ba`al)
não oprimirá seu próximo e seu irmão porque proclamou242
o cancelamento de
dívidas para o Deus243
de Israel.”244
237
Aqui há uma possível resposta à audiência. A audiência está curiosa por querer saber o que vem a ser a
šümi††â. Israel ouviu do ano sétimo de descanso para terra e do ano cinquenta de devolução de terras e do duplo
sábado de descanso da terra (Levítico 25), mas, o que vem a ser a šümi††â? Deuteronômio 15,2 se propõe a
responder essa pergunta. Como o orador está falando a um grupo de Ba`al, o questionamento sobre o significado
šümi††â vem desse grupo. 238
hJ'miV.h; rb:åD> éhz<w> / wüzè Dübar haššümi††â. A palavra rb:åD> pode ser traduzida por “palavra, coisa,
assunto”. Aqui se optou por manter a ideia de palavra, tendo em vista que o texto é considerado uma
comunicação de uma mensagem divina. 239
A palavra hJ'miV.h; vem acompanhada do artigo. Com isso, o redator quer apresentar mais detalhadamente o
que ele entende por hJ'miV., sem o artigo, apresentada no versículo anterior. Assim, “a hJ'miV. é esta (ou isto)”,
segundo o redator. 240
A palavra para l[;B;’ / Ba`al é a mesma palavra usada para o ídolo baal, o qual, durante toda a história de
Israel fez dura competição com o culto ao Deus de Israel. Mas aqui ela carrega o sentido de proprietário ou dono
de terras ou, simplesmente, o senhor de posses que fez o empréstimo. Pode ser aqui uma referencia ao chefe do
clã do “teu irmão”. 241
No ato de justiça (misharum) do rei babilônico Ammitsaduka, os empréstimos feitos para negócios não eram
cancelados (TIGAY, 1996, p. 145). 242
O verbo está na terceira pessoal masculina singular [ar"îq' / qärä´], sugerindo que quem proclama a
libertação das dívidas é o próprio Ba`al. Se assim for, como sugere o texto, então a proclamação era um evento
solene que ocorria dentro da propriedade do Ba`al. Aqui o sentido de “proclamar” é mais evidente, pois um
anúncio público é feito. 243
O propósito do cancelamento de dívidas ser para Deus é que ele, no final, deve servir de honra ao Deus de
Israel, pois ele tem dado ao credor a riqueza para ter condições de deixar cair de sua mão o direito de
recebimento do pagamento da dívida (EZRA, 2003, p. 69). Ainda, segundo Ezra, “a associação aqui com Deus é
devida a declaração anterior que ‘é o sábado de Deus (Levítico 25,2)’” (2003, p. 69).
106
3 – “O estrangeiro245
tu pressionarás (para pagar).246
E, aquilo que é para ti (que te é
devido), tu abrirás tua mão ao teu irmão.”247
4 – “Porque ninguém248
não será pobre249
[´ebyôn] em ti.250
Porque deveras251
o Deus de
Israel te abençoará na terra que ´ädönäy252 teu Deus está dando para ti (em) herança,
para a possuir.”253
5 – “Somente se deveras254
ouvires a voz de ´ädönäy teu Deus para guardar, para fazer
todo este mandamento que eu estou te ordenando hoje.”255
244
`hw")hyl;( hJ'Þmiv. ar"îq'-yKi( wyxiêa'-ta,w> ‘Wh[e’rE-ta, fGOÝyI-al{) Wh[e_rEB. hV,Þy: rv<ïa] Adêy" hVeäm; ‘l[;B;’-lK' jAmªv' èhJ'miV.h; rb:åD> éhz<w>2
/ 2wüzè Dübar haššümi††â šämô† Kol-Baº̀ al maššË yädô ´ášer yaššè Bürë`ëºhû lö|´-yiGGöS
´et-rë`ëºhû wü´et-´äHîw Kî|-qärä´ šümi††â lyhwh(la|´dönäy). 245
Como o Gër era protegido pela legislação deuteronômica para o estrangeiro residente, o “estrangeiro” ao qual
texto se refere é o yrIßk.n" [nokrî], o estrangeiro não residente e que teria condições de quitar seu empréstimo com
o Ba`al de Israel. O yrIßk.n" [nokrî] “é o estrangeiro que meramente visita Canaã temporariamente, para comércio”
(DRIVER, 1895, p. 175). 246
O verbo traduzido por “pressionar” [fGOÝyI] é o mesmo traduzido por “oprimir” [fGO=Ti] no versículo anterior.
Nos dois casos, o que está sendo permitido e proibido é o uso da força ou opressão sobre um devedor para
receber o pagamento. A BJ traduz o verbo fg:n" no v. 2 e 3 pelo verbo “explorar”. Para esta pesquisa, no
entanto, a ideia do texto é a de pressionar para receber o pagamento de uma dívida, não a ideia de explorar com
intuito de tomar além daquilo que não lhe pertence. 247
`^d<)y" jmeîv.T; ^yxiÞa'-ta, ^±l. hy<ïh.yI rv,’a]w: fGO=Ti yrIßk.N"h;-ta, 3/
3´et-hannokrî TiGGöS wa´ášer yihyè lükä ´et-
´äHîºkä Tašmë† yädeºkä. 248
A palavra traduzida por “ninguém” [sp,a,§ / ´eºpes] também carrega o sentido de “nada, término, final”
(DHPAP, 1987, p. 16). De qualquer forma, o que segue afirma que com a benção divina Israel deixaria de ter
pobres entre seus irmãos. Assim, a cessação de pobres seria decorrente da benção divina. Aparentemente, esse
tempo ideal nunca chegou à sua realização. 249
“Cuida para que não haja pobre em tua casa que espere uma ajuda e não a encontre absolutamente”
(CHOURAQUI, 1997, p. 176). Ele pressupõe que o texto esteja se dirigindo ao líder do clã e a pobreza que
pudesse chegar a ela. 250
“... o ideal teológico: obediência consciente à Torah de Yahweh com suas provisões humanitárias sábias
efetivamente eliminaria pobreza, ou a repararia antes que ela se tornasse crônica” (CAIRNS, 1990, p. 148). 251
Aqui há a presença daquela construção hebraica típica para reforço, quando um verbo finito é acompanhado
de mesma raiz no infinitivo absoluto: “... porque certamente o Deus de Israel te abençoará” [hw"ëhy> ‘^k.r<b'(y> %rEÜb'-yKi( / Kî|-bärëk yübä|rekükä yhwh (´ädönäy)]. Kalland sugere que o pensamento por trás da construção infinito
absoluto + imperfectivo de mesma raiz seja refletido na tradução proposta por ele: “ele ricamente te abençoará”.
No seu entender, a plena obediência será honrada com ricas bênçãos garantidas (1992, p. 105). 252
Uma opção adotada nesta pesquisa para traduzir no Nome do Deus de Israel. 253
`HT'(v.rIl. hl'Þx]n: ^ïl.-!tenO¥ ^yh,êl{a/ hw"åhy> ‘rv,a] #r<a'§B' hw"ëhy> ‘^k.r<b'(y> %rEÜb'-yKi( !Ay=b.a, ß̂B.-hy<h.yI) al{ï yKi² sp,a,§ 4
/ 4´eºpes Kî lö´ yi|hyè-Bükä ´ebyôn Kî|-bärëk yübä|rekükä yhwh(´ädönäy) Bä´äºrec ´ášer yhwh(´ädönäy)
´élöhʺkä nö|tën-lükä naHálâ lürišTäh. 254
Outra ocorrência da construção infinitivo absoluto + verbo no finito [[m;êv.Ti [;Amåv'-~ai /´im-šämôª` Tišma`]:
“se guardar tu guardares”. 255
`~AY*h; ^ßW>c;m. ykiînOa' rv<±a] taZOëh; hw"åc.Mih;-lK'-ta, ‘tAf[]l; rmoÝv.li ^yh,_l{a/ hw"åhy> lAqßB. [m;êv.Ti [;Amåv'-~ai qr:5
/ 5raq ´im-šämôª` Tišma` Büqôl yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä lišmör la`áSôt ´et-Kol-hammicwâ hazzö´t ´ášer
´änökî mücawwükä hayyôm.
107
6 – “Porque ´ädönäy teu Deus te abençoará,256
conforme falou para ti. E tu emprestarás257
a muitos povos, mas tu não tomarás emprestado. Tu governarás sobre muitos povos,
porém sobre ti (os muitos povos) não governarão.”258
2.3.5.2.2. O que caracteriza o evento da šümi††â?
2.3.5.2.2.1. É um evento oficialmente proclamado (Deuteronômio
15,2)
2 – “E esta palavra (ou coisa) é o cancelamento de dívidas: Todo Ba`al (senhor) deve
abrir sua mão de empréstimo que fez ao seu próximo. Ele (o Ba`al) não oprimirá seu
próximo e seu irmão porque proclamou o cancelamento de dívidas para o
Deus de Israel.”
2.3.5.2.2.1.1. Uma explicação necessária: O que um Ba`al (“credor”)
deve fazer com as dívidas de um emprestador?
O diálogo entre o orador e sua audiência exige uma explicação sobre o que vem a ser a
šümi††â. Deuteronômio 15,2 (e também 15,3-6) se propõe dar uma explicação do que viria
ser o evento do Cancelamento de Dívidas, pois, era a primeira vez que os ouvintes ouviam
sobre a šümi††â. Ela consistiria em que todo Ba`al abriria mão das dívidas feitas com ele pelo
seu irmão ou pelo seu próximo.
Deuteronômio 15,2 apresenta clara especificação que em Deuteronômio o ´ebyôn qualifica
um homem que, no caso do presente texto, é um “próximo” [[{:rE / rëa`] ou um “irmão” [xa' /
´äH] (“o teu próximo, o qual é teu irmão”) do Ba`al. De qualquer forma, ele não é
uma´almänâ, um Gër, um yätôm, um lëwî, um `ebed ou uma ´ämâ, ele é um irmão que se
256
Verbo no perfectivo, podendo ser traduzido por “te abençoou” [ ê̂k.r:Be( / Bë|rakükä], subentendendo que a
proclamação da šümi††â deveria tomar por base aquilo que ele já tinha recebido até ali da parte de ´ädönäy teu
Deus. Entretanto, como esse parágrafo parece ser uma resposta ao questionamento do Ba`al sobre o que vem a
ser a šümi††â, então optou-se por manter a tradução do verbo no futuro. 257
Verbo [jb[ / `b†] que carrega o sentido de “emprestar mediante penhor”, no hifil, tanto aqui como no
versículo 8 (KIRST et al., 1987, p. 172). Ele foi traduzido aqui por “emprestarás” e “tomarás emprestado” neste
versículo. 258 `Wlvo)m.yI al{ï ß̂b.W ~yBiêr: ~yIåAgB. ‘T'l.v;m'(W jboê[]t; al{å ‘hT'a;w> ~yBiªr:~yIåAG T'új.b;[]h;¥w> %l "+-rB,DI rv<ßa]K; ^êk.r:Be( ‘^yh,’l{a/ hw"Ühy>-yKi( 6
/ 6Kî|-yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä Bë|rakükä Ka´ášer DiBBer-läk wüha|`ába†Tä Gôyìm raBBîm
wü´aTTâ lö´ ta`ábö† ûmä|šalTä Bügôyìm raBBîm ûbükä lö´ yimšöºlû.
108
tornou um ´ebyôn do Ba`al. É para benefício dele que a šümi††â é solenemente proclamada
pelo Ba`al.
Mas o que vem a ser o abrir de mão do Ba`al?
2.3.5.2.2.1.2. A mão do Ba`al
A “mão” [dy" / yäd] é empregada nesse capitulo como representação do Ba`al. Aqui ela é
capaz de representar o próprio Ba`al, onde uma parte dele é usada para o representar. Porém, o
ato de abrir a mão implica em soltar aquilo que ele segura. E o que é que o Ba`al segura? Ele
segura o direito de receber representado naquilo que lhe fora concedido como garantia do
recebimento – penhor (Deuteronômio 24,10). Havia a obrigação moral urgente sobre o Ba`al
para que ele emprestasse ao próximo que caiu em dificuldades (CHOURAQUI, 1997, p. 177).
Abrir mão da garantia de recebimento do pagamento era a demonstração que o devedor não
tinha mais dívida com o Ba`al. E sem dívidas, o ´ebyôn tinha a oportunidade de reconstruir
sua vida.
2.3.5.2.2.2. Inclusão e exclusão na šümi††â (Deuteronômio 15,3.4)
2.3.5.2.2.2.1. O yrIßk.n" [nokrî]
3 – “O estrangeiro tu pressionarás. E aquilo que é para ti, tu abrirás tua mão ao teu
irmão.”
Aqui a šümi††â apresenta uma cláusula de exclusão – o nokrî não estava incluído no ano do
cancelamento de dívidas. Ao contrário, o nokrî deveria ser forçado a pagar aquilo que ele
devia ao Ba`al. O nokrî não estava sujeito à obrigação de abrir mão do produto de sua
propriedade a cada sete anos como um israelita e, assim, o Ba`al também não tem motivo para
atender aos clamores do nokrî, para ser beneficiado com a šümi††â (DRIVER, 1895, p. 175).
109
A raiz verbal do verbo traduzido por “pressionar” [fg:n"] “denota o esforço de exigir pressão
opressiva para pagamento ou trabalho” (COPPES, 1980, p. 553).259
É algo como a permissão,
divinamente permitida e legalmente declarada, para algum tipo de violência com o fim de
receber do nokrî o que ele devia. Entretanto, essa “violência” teria que ser concedida pela
justiça, dando ao Ba`al o direito de ter de volta do nokrî o empréstimo feito, com a implicação
da venda do nokrî, como escravo, para a quitação da dívida.
Talvez a melhor ilustração desse verbo esteja no particípio que se encontra em Êxodo 3,7: “E
disse ´ädönäy: De fato vi a aflição do meu povo (que está) no Egito, e ouvi o seu grito de
diante dos que lhe oprimem. Porque eu conheço o seu sofrimento (angústia)”.260
A BJ traduz
o particípio de fg:n", ~yfig>nO, por “opressores”. Aqui se traduziu por “os que oprimem”. As
palavras “grito” e “sofrimento”, presentes no versículo, demonstram que os opressores do rei
do Egito agiam, não somente com palavras, mas com violência física.
Desse modo, o que o redator está autorizando é a exclusão do nokrî da šümi††â, ao mesmo
tempo em que permite que o Ba`al faça uso da força, se possível, para receber aquilo que o
nokrî lhe deve. Opostamente, porém, o Ba`al deveria agir de modo diferente com o “teu
irmão” dando-lhe liberdade das dívidas – abrindo-lhe a mão do que ele lhe devia, deixando de
lado a garantia de pagamento.
Qual a finalidade deste “abrir mão” daquilo que é do Ba`al em favor de seu irmão ´ebyôn? A
resposta se encontra no versículo seguinte: o projeto de uma comunidade ideal onde não há
“teu irmão, teu próximo” ´ebyôn.
2.3.5.2.2.2.2. Uma comunidade ideal – sem ´ebyôn
4 – “Porque ninguém será pobre [´ebyôn] em ti. Porque deveras o Deus de Israel te
abençoará na terra que ´ädönäy teu Deus está dando para ti herança, para a
possuir.”
259
Schökel traduz esse verbo por “premer”, “exigir” (1997, p. 420). Berezin o traduz por “oprimir”, “forçar”,
“pressionar” (BEREZIN, 2003, p. 427). Esses sentidos para a tradução de fg:n" cooperam para ideia de uso de
força na cobrança da dívida do nokrî, caso ele não quisesse pagar ou quisesse se beneficiar com a šümi††â. 260
`wyb'(aok.m;-ta, yTi[.d:Þy" yKiî wyf'êg>nO* ynEåP.mi ‘yTi[.m;’v' ~t'Ûq'[]c;-ta,w> ~yIr"+c.miB. rv<åa] yMiÞ[; ynIï[\-ta, ytiyai²r" haoïr" hw"ëhy> rm,aYOæw:
/ wayyöº´mer yhwh(´ädönäy) rä´ò rä´îºtî ´et-`ónî `ammî ´ášer Bümicräºyim wü´et-ca`áqätäm šämaº̀ Tî
miPPünê nö|gSäyw Kî yädaº`Tî ´et-mak´öbäyw.
110
“Ninguém será pobre”. O que isso quer dizer? O contexto da šümi††â explica a frase. O que o
redator quer dizer é que, não que não haverá mais ´ebyôn, mas que não haverá mais ´ebyôn
endividado, dando à šümi††â grande significado de um divisor de águas – ela fazia separação
entre o ´ebyôn com dívidas e o ´ebyôn sem dívidas a partir da šümi††â. Após a šümi††â, o
´ebyôn continuaria ´ebyôn, mas sem a obrigação de pagar uma dívida e com possibilidades
“iguais” as do Ba`al para prosperar. Sem ´ebyôn endividado, a šümi††â perderia o seu
sentido.
Entretanto, deve-se olhar mais detidamente a frase: !Ay=b.a, ^ßB.-hy<h.yI) al{ï yKi² sp,a,§ [´eºpes Kî lö´
yi|hyè-Bükä ´ebyôn].261
A palavra sp,a,§ [´eºpes] juntamente com yKi² pode ser traduzida por
“só que” (KIRST et al., 1987, p. 16) deixando a construção com a seguinte tradução: “Só que
não haverá, entre ti, um ´ebyôn”. Berezin diz mais. Além de sugerir que a construção yKi² sp,a,§
possa ser traduzida por “só que”, ela propõe também que se introduza uma conjunção
adversativa, “contudo” (BEREZIN, 2003, p. 9),262
fazendo contraste com o que foi dito
anteriormente: “O estrangeiro tu pressionarás. E aquilo que é para ti, tu abrirás tua mão ao teu
irmão” (15.3b). Primeiro, o Ba`al não pressionará o ´ebyôn como ele deve fazer com o nokrî.
E, segundo, ele também agirá para dar chance a liberdade de dívidas ao seu irmão. Há uma
clara pressão do Ba`al sobre si mesmo. Com essa ideia em mente, as condições para que não
haja ´ebyôn “no meio de ti” só estarão presentes em Israel se as condições seguintes vierem a
ser estabelecidas.
Quais são as condições ideais para a cessação de pobreza em Israel? A razão para a cessação
de um pobre entre o povo de Israel será a bênção de Deus sobre a terra que será dada por
herança aos filhos de Israel. Note como ficaria uma tradução para Deuteronômio 15,3.4: “O
estrangeiro tu pressionarás (para receber o empréstimo). E aquilo que é para ti (que te é
devido do ´ebyôn nativo) tu abrirás tua mão ao teu irmão. Só que (como resultado disso) não
261
A Septuaginta traduziu essa frase por o[ti ouvk e;stai evn soi. evndeh,j (“porque não haverá em ti um pobre”). Em
seguida, ela traduziu a frase seguinte como uma explicação para essa oração: o[ti euvlogw/n euvlogh,sei se ku,rioj o` qeo,j sou evn th/| gh/| h-| ku,rioj o ̀qeo,j sou di,dwsi,n soi evn klh,rw| kataklhronomh/sai auvth,n (“porque deveras te
abençoará o Senhor teu Deus na terra, a qual o Senhor teu Deus te dará em porção de herança”). Deus abençoará
o Ba`al, e, com isso, ele terá condições de livrar seu irmão de dívidas, possibilitando o recomeço. 262
Schökel sugere que a tradução para construção yKi² sp,a,§ possa ser: “porém, só que, ainda que, se bem que, é
verdade que, agora que” (1997, p. 73). Para ele, essa construção também é adversativa. A šümi††â é o motivo
para que Israel deixe de ter pobres. Ora, sem pobres para socorrer, Israel teria recursos para emprestar a outros
povos, como será salientado em Deuteronômio 15,6.
111
haverá ´ebyôn em ti. Porque deveras o Deus de Israel te abençoará na terra que ´ädönäy teu
Deus está dando para ti (em) herança, para a possuir”. Em resposta a generosidade do Ba`al,
Deus deixará a terra de sua herança com ele (e seus filhos). Para destacar, as duas condições
para que não haja ´ebyôn em Israel – o Ba`al deve abrir mão do que ele esperava receber do
´ebyôn, na šümi††â, devolvendo-lhe as garantias dadas para o pagamento; e, por sua vez,
Deus, em vista da obediência do Ba`al na šümi††â, será favorável com Ba`al fazendo com que
sua terra seja próspera no ano de seu descanso (o sétimo ano).
Em Deuteronômio 15,4 a pesquisa é introduzida com o sistema de recompensas muito bem
elaborado pelo redator como forma de incentivar a obediência por parte do Ba`al. Era uma
forma de quebrar a resistência da audiência para a colocação em prática da šümi††â, caso ela
se sentisse ameaçada por eventuais prejuízos com o cancelamento de dívidas a receber. Esse
sistema de recompensa não é privativo de Deuteronômio 15,4. Ele está espalhado em todo o
livro.
2.3.5.2.2.2.3. Deuteronômio e seu sistema de recompensas
Há um sistema de recompensas elaborado dentro do livro de Deuteronômio, formado por
diferentes expressões que ocorrem separadamente e, nalguns casos, vêm juntas, com o fim de
enfatizar a recompensa pela obediência àquilo que fora ordenado. Porém, nem todas elas
dizem respeito a algum mandamento que se relacione no trato do tu/vós com os Entes
Silenciosos. Mas tratam de recompensas pela obediência a algum mandamento apontado pelo
redator naquela unidade textual.
Isso quer dizer que a sociedade deuteronômica era baseada na meritocracia? Sim e não. Não
porque Deuteronômio 8 assinala que a base da escolha divina de Israel não tinha como
fundamento os méritos do escolhido, mas o amor eletivo do Deus de Israel para com seu
povo. Deus escolhera Israel porque ele tinha amor por ele.
Por outro lado, a resposta é sim. A partir do momento que Israel aceita um relacionamento
pactual com seu Deus, a sua sobrevivência, como povo abençoado, dependeria de sua
obediência à Palavra divina (Deuteronômio 8,3: “o homem não vive só de pão, mas de tudo o
112
que sai da boca do Senhor, disso vive o homem.”).263
Além do mais, Israel poderia não
corresponder às expectativas divinas apenas por sua saída do Egito sob a direção divina por
meio de Moisés. Como, então, manter a fidelidade de Israel depois que ele tomasse posse de
sua herança na Terra da Promessa? A fidelidade de Israel resultará em bênçãos divinas sobre a
herança do Israelita que se mantiver fiel ao seu Deus. Isso implicava em continuidade ou
descontinuidade da herança. Se o israelita fosse fiel a Deus, ele continuaria em sua herança.
Caso contrário, ele a perderia.
Portanto, esse sistema de recompensa tinha como finalidade estimular o tu/vós a cumprir o
que Deus pedia dele, cujo resultado era demonstrar que a vida a ser usufruída na Terra da
Promessa era resultado da obediência do povo de Israel ao seu Deus. Além disso, cada uma
das promessas de recompensa tocava na alma do ser humano que a ouvia – o sucesso, tanto
em seu relacionamento com seu Deus quanto em seus empreendimentos. No relacionamento
com seu Deus porque ele mostrava obediência ao mandamento divino; em seus
empreendimentos porque, como resultado de seu cumprimento ao mandamento divino, ele
tinha prosperidade na sua herança. Com isso, a vida bem sucedida no campo, ou na cidade,
estava no objetivo de cada uma destas recompensas. Isso quer dizer que o Deuteronômio foi
dado para a vida no mundo – na terra que viria como herança, ele é um livro que é “um guia
do caminho para se viver feliz neste mundo”, onde é seu campo de atividade (Torá, 2001, p.
535, v. 13). O objetivo do redator “não é ensinar fé somente, mas fé com implicações
comportamentais” (TIGAY, 1996, p. 57).
Dentro de Deuteronômio há um claro sistema de recompensas desenvolvido.264
A questão que
este sistema responde é: O que levaria uma pessoa a obedecer aquilo que lhe está sendo
ordenado, como na šümi††â, por exemplo? Qual a recompensa que ela teria se fosse
obediente ao seu Deus? A resposta é: a promessa divina que ela teria vantagens nas suas
263
Notar outros exemplos da meritocracia dentro de Deuteronômio 8: a vida, a multiplicação e o usufruto da
herança dependiam da obediência aos mandamentos divinos (8,1.6); a memória dos feitos de Deus são essenciais
para a permanência na Terra da Promessa (8,11-20) (BJ). 264
O livro de Lucas (14,13.14), o terceiro evangelho nos escritos do Novo Testamento, diz: “... quando deres
uma festa, chama pobres, estropiados, coxos, cegos; feliz serás, então, porque eles não têm com que te retribuir.
Serás, porém, recompensado na ressurreição dos justos” (BJ). Essa citação mostra que o texto do Novo
Testamento dependeu do texto de Deuteronômio, com a diferença que o texto de Deuteronômio 15 coloca a
recompensa dentro da vida do Ba`al, mesmo que no futuro. A citação de Lucas coloca a recompensa em um
período ideal, chamado de “ressurreição dos justos”.
113
realizações como resultado de sua obediência. Esse sistema de recompensa incluía as
declarações seguintes.265
A seguir serão dadas as recompensas prometidas em Deuteronômio para a obediência de
Israel a algum mandamento divino.
2.3.5.2.2.2.3.1. “O Deus de Israel te abençoará em tudo o que
fizeres” (Deuteronômio 7,13; 15,4.6.10.18; 28,8;
30,16).266
A resposta que se busca é saber qual o tipo de bênção que o povo deveria esperar por ser
obediente ao seu Deus. O texto de Deuteronômio 7,13 detalha a bênção que o povo deveria
esperar que lhe viesse como resultado de sua obediência – “... abençoará também o fruto do
teu ventre, e o fruto do teu solo, teu trigo, teu vinho novo, teu óleo,267
a cria das tuas vacas e a
prole das tuas ovelhas” (BJ).268
Essa declaração é demonstrativa de que o povo entendia o que
o redator queria dizer por bênção divina, mesmo em texto onde ela não fora detalhada para
seus ouvintes.
Entretanto, ao proclamar que haverá recompensa para o Ba`al, em Deuteronômio
15,4.6.10.18, o redator está assumindo que outro pagará a dívida do ´ebyôn com o Ba`al. Ao
proclamar a šümi††â, o Ba`al estava transferindo a dívida do ´ebyôn para ´ädönäy seu Deus.
265
Nalgumas destas citações havia dupla recompensa como estímulo. Por exemplo, em Deuteronômio 22,6-7:
“para que te vá bem e prolongues teus dias”. O que há aqui é que a frase seguinte explica o que o redator quer
dizer com a primeira. O que significa ir bem? Significa ter longevidade. A mesma coisa parece estar presente no
texto de Deuteronômio 5,33 onde está presente uma recompensa tripla: “para que vivais e bem vos suceda, e
prolongueis os vossos dias na terra que haveis de possuir”. O que significa viver? Significa ser bem sucedido e
ter longevidade. A ideia não é viver por viver, mas o desfrutar da vida no mundo (especificamente na herança)
sob a benção do Deus de Israel. Portanto, obediência a Deus resultará em vida: prosperidade e longevidade. 266
Há oito ocorrências dessa recompensa em Deuteronômio, mas metade se encontra em Deuteronômio 15,
mostrando a relevância da šümi††â e, por outro lado, a dificuldade que o povo encontraria para coloca-la em
prática. O redator estava estimulando a obediência do povo com essas promessas de recompensas. 267
Aqui há três importantes produtos da Terra da Promessa (notar Deuteronômio 11,14; 12,17; 14,23; 18,4;
28,51) – a fertilidade da terra está unida com a fertilidade dos animais, juntamente com a fertilidade da esposa
(CAIRNS, 1992, p. 91, 92). 268
Deuteronômio 7,13 não é uma promessa de recompensa para o povo pôr em prática os mandamentos divinos
(v. 12). Mas, o detalhe aqui é aquilo que o texto aponta como sendo o tipo de bênção que o povo deveria esperar
– “... abençoará também o fruto do teu ventre, e o fruto do teu solo, teu trigo, teu vinho novo, teu óleo, a cria das
tuas vacas e a prole das tuas ovelhas” (BJ). O texto apresenta por duas vezes o verbo abençoar. No primeiro, o
objeto direto é a própria pessoa, “te abençoará”; no segundo é como, ou com que, a pessoa será abençoada [`%l") tt,l'î ^yt,Þboa]l; [B;îv.nI-rv,a] hm'êd"a]h'¥ l[;… ^n<ëaco troåT.v.[;w> ‘^yp,’l'a]-rg:v. ^r<ªh'c.yIw> ^åv.royti(w> ^øn>g"“D> ^t,m'd>a;û-yrI)p.W ^ån>j.bi-yrI)P. %r:åbeW ^B<+r>hiw> ^ßk.r:beW ^êb.heäa]w:13 / wa´áhëºbkä ûbërakükä wühirBeºkä ûbërak Pürî|-bi†nükä ûpürî|-
´admätekä Dügäºnkä wütî|röškä wüyichäreºkä šügar-´áläpʺkä wü`ašTüröt cö´neºkä `al hä|´ádämâ ´ášer-nišBa`
la´ábötʺkä läºtet läk]. Todos os bens do Ba`al estão contemplados nesta declaração de bênção: a família, o solo
que será fértil, suas plantações e seus animais.
114
Esse, por sua vez, assumia o compromisso de efetuar o pagamento ao Ba`al, no futuro, por
meio do cumprimento de sua promessa de abençoá-lo.
Mesmo que não haja aqui, de forma expressa, a figura do parente resgatador (Levítico
25,25..26.49 [lae_GO269 / Gö´ël]), a ideia da šümi††â é de um resgate, e parte do pressuposto que
nenhum membro do povo de Israel deve viver escravizado por ninguém, nem por uma dívida,
a não ser que ele opte por uma escravidão voluntariamente.270
Assim, a bênção é uma troca de
garantia de pagamento. O Ba`al troca (ele deixa a garantia cair de sua mão) a garantia de
pagamento dada pelo ´ebyôn pela garantia de pagamento dada por ´ädönäy seu Deus, a
bênção sobre seus bens na Terra da Promessa.
2.3.5.2.2.2.3.2. “... prolongareis os vossos dias” (Deuteronômio
4,40; 5,16.33; 6,2; 11,9.21; 17,20; 22,7; 25,15; 30,20;
32,47).271
O usufruto da herança na Terra da Promessa dependia dos anos de vida de cada um. Morrer
cedo representaria uma demonstração do desfavor divino com o falecido precocemente.
Assim, o esticamento dos dias de um israelita na sua herança era algo desejado e prometido
por Deus como resposta à obediência de Israel a sua Palavra.
Em Deuteronômio 5,16, o quinto mandamento resultará no prolongamento da vida que virá
sobre aqueles que honrarem seus pais, numa demonstração que “o direito das futuras gerações
de israelitas a herança da terra de Israel de seus pais é contingenciada pela honra a eles”
(TIGAY, 1996, p. 70). Pode-se dizer que a bênção divina tem um custo – a obediência do
israelita. Entretanto, o esticamento da vida é mais que longevidade. Cairns afirma que é “vida
269
Aqui há um qal particípio do verbo la;G". Esse pode ser traduzido pela perífrase: “aquele que resgata”. Ele
tanto pode resgatar a possessão de seu irmão que foi vendida quanto ao próprio irmão que se vendeu como
escravo (Levítico 25,25-55). O Gö´ël também agia como o “vingador do sangue” (BJ), fazendo justiça ao vingar
o sangue inocente derramado de seu parente próximo (Números 35,12-29). O Gö´ël aparece sete vezes nessa
unidade textual (35,12.19.21.24[2x].27[2x]). A vida se pagava com a vida. E o Gö´ël era quem tinha a
responsabilidade de a cobrar. Mais adiante, Números 35,33 mostra que o Gö´ël age como um sacerdote, ao fazer
expiação pela terra por meio da morte do homicida. 270
A base dada por Levítico para que um membro do povo de Israel pudesse ser resgatado é que Israel é um
povo de servos de ´ädönäy teu Deus, os quais já experimentaram a escravidão compulsória e foram resgatados
por ´ädönäy seu Deus. Portanto, eles são servos de ´ädönäy (Levítico 25,42.55). 271
Em Deuteronômio 30,18 se encontra uma recompensa oposta ao prolongamento dos dias. A desobediência
levaria ao não prolongamento dos dias. Seria um encurtamento da vida do povo de Israel. Afinal, a vida depende
da obediência aos mandamentos divinos.
115
que possui qualidade porque é vivida sob a constante proteção e condução de Deus bem como
em relacionamento com ele” (1992, p. 54).
2.3.5.2.2.2.3.3. “para que te vá bem” ou “para que bem vos
suceda” (Deuteronômio 4,40; 5,16.29.33; 6,3.18.24;
12,25.28; 19,13; 22,7; 305.9 ).
O sucesso é o que está previsto nessa promessa de recompensa. Mas não é qualquer sucesso.
É o sucesso que resulta de sua obediência ao seu Deus, e isso inclui a conquista dos povos
ocupantes da Terra que será dada a Israel como herança. Para que Israel tivesse a sua herança,
ele teria que conquistar. O sucesso nessa conquista viria como resultado de sua obediência.
2.3.5.2.2.2.3.4. “para que vivais” (Deuteronômio 4,1; 5,33; 8,11).
A vida para Israel é muito mais que apenas viver. É desfrutar do prazer de viver com a bênção
divina. Assim, o israelita vivia para o trabalho, o culto e sua família. Quando ele participava
de uma festa, ele tinha suas razões: desfrutar do que Deus lhe tinha dado e repartir isso com
sua família e os pobres (Deuteronômio 26,1-18). Portanto, a promessa da vida está
intimamente relacionada com o prolongamento dela, pois o desfrutar de seus relacionamentos
sob a bênção divina só aconteceria se o israelita tivesse vida longa para usufruir de todos os
bens que sua herança poderia dar.
2.3.5.2.2.2.3.5. “para que entreis e possuais a terra”
(Deuteronômio 4,1; 8,1; 11,8).
Essa promessa de recompensa mostra o que o israelita estava pensando na conquista da Terra.
Ele até poderia entrar na terra, mas ele usufruiria dela como terra conquistada? Essa
recompensa promete satisfazer os dois elementos. Ele não somente entrará na Terra como
desfrutará dela como sendo dele.
As recompensas têm dupla finalidade. A primeira é levar o ouvinte a pensar no ganho que ele
obterá se for obediente ao mandamento que está sendo dado. Ele recebe a garantia pela sua
obediência. A segunda finalidade é apenas implicada. Se o ouvinte não “fizer” aquele
mandamento, ele não receberá a bênção, mas a disciplina ou juízo como forma de protesto
divino contra a deslealdade do israelita à aliança estabelecida com ele por meio de seus
“pais”. Todas as recompensas tem um garantidor – o Deus de Israel. Ele é aquele que, por
116
meio do redator, empenha sua palavra como garantia que o cumprir da ordem divina dará
certo para o israelita obediente.
2.3.5.2.3. O imperativo da obediência para não ter ´ebyôn (Deuteronômio
15,5.6)
5 – “Somente se deveras ouvires a voz de ´ädönäy teu Deus para guardar, para fazer
todo este mandamento que eu estou te ordenando hoje.”
6 – “Porque ´ädönäy teu Deus te abençoará, conforme falou para ti. E tu emprestarás
a muitos povos, mas tu não tomarás emprestado. Tu governarás sobre muitos povos,
porém sobre ti não governarão.”
Esses dois versículos são um reforço ao incentivo dado para o cumprimento da promessa de
não haver ´ebyôn no meio do povo de Israel, devido à bênção de Deus sobre o seu povo. qr:
[raq], palavra que abre Deuteronômio 15,5 no texto Hebraico, é normalmente traduzida por
“somente”. Ela é uma partícula de restrição ou exclusão (SCHÖKEL, 1997, p. 631). É como
se o redator estivesse dizendo que a promessa encontrada dentro de 15,5 só se tornará
realidade se, de forma exclusiva, Israel obedecer ao seu Deus e cumprir a šümi††â.
Israel só será abençoado com a bênção dada em 15,4 e em 15,6 se o mandamento divino for
colocado em prática dentro da sua realidade de vida. A conjunção “se” [~ai / ´im] estabelece
a condição para o cumprimento pleno da promessa de bênção. Então, quando isso aconteceria
plenamente? Se Israel verdadeiramente ouvisse o mandamento divino, guardando-o,
notadamente, por colocá-lo em funcionamento no ano sétimo de cada período de sete anos.
A bênção prometida pelo Deus de Israel tem alcance maior que a apresentada em 15,4. Aqui
ela parece ser uma bênção apenas local – é a herança do israelita que será abençoada. Mas em
15,6 ela chega aos outros povos com quem Israel mantinha relacionamento. Em resposta à
obediência do Ba`al em abrir mão do empréstimo feito ao seu irmão ´ebyôn, Deus promete
fazer dele um credor de outros povos, fazendo com que Israel domine sobre muitos povos,
mas ele mesmo não se sujeitará a ninguém, exceto ao seu Deus por meio de sua obediência na
šümi††â.
117
Essas promessas de bênção em seu alcance global mostram a preocupação do redator com a
possibilidade de falta de cumprimento por parte de sua audiência ao que está colocado como
mandamento divino de cancelamento da dívida. Deuteronômio 15,7-11, como se notará a
seguir, desvenda esse problema de forma clara, e apresenta a proposta para que o Ba`al seja
obediente no caso de um empréstimo quando a šümi††â está próxima.
2.3.5.3. O clã e seu cuidado com o irmão empobrecido (Deuteronômio 15,7-
11)272
Esta unidade textual é continuação daquela que foi colocada nos versículos 2 a 6. Aqui ela
aborda a questão da dificuldade de um Ba`al em fazer um empréstimo a um irmão ´ebyôn por
causa da proximidade da šümi††â, pensando no prejuízo que isso poderia lhe causar, ao ter
que cancelar a dívida existente de seu irmão ´ebyôn. Provavelmente, essa foi a maior
dificuldade que a implantação da šümi††â deve ter experimentado.
Observou-se na unidade anterior a colocação de incentivos para a sua aplicação, sendo todos
eles relacionados a ações divinas que beneficiariam quem a colocasse em prática, fazendo da
šümi††â um instrumento de relacionamento triangular, onde os três elementos contantes
seriam: o Deus de Israel, o Ba`al e o ´ebyôn.
2.3.5.3.1. Tradução
7 – “Quando273
em ti houver274
(um) ´ebyôn, de um de teus irmãos, em um de teus
portões, na tua terra que ´ädönäy teu Deus está dando para ti, não farás teu coração
duro,275
não recolherás276
a tua mão de teu irmão277
´ebyôn”.278
272
Esta seção não é uma determinação legal propriamente dita, mas uma exortação ética. É uma antecipação de
um problema que poderia surgir com a legislação dada (TIGAY, 1996, p. 147). 273
A conjunção yKi² é empregada aqui em seu sentido temporal, “quando”, em lugar de seu sentido explicativo,
“porque” (KIRST et al., 1987, p. 100). 274
Não na pessoa, mas em “teu meio”, “ao teu redor”, “quando em torno de ti estiver”. 275
O verbo piel #Meäa;t. [tü´ammëc] é empregado aqui de forma figurativa com o sentido de fazer duro o coração.
No qal, ele tem o sentido de “ser forte” (KIRST et al., 1987, p. 13). Como o piel é o intensivo do qal, o “ser
forte” do qal torna-se “ser duro”. 276
A oração “não recolherás a tua mão de teu irmão ´ebyôn” é uma nota explicativa daquilo que vem a ser o
endurecimento do coração diante das necessidades do ´ebyôn. A raiz verbal #pq [qPc], no qal, é traduzida na
BH por “fechar”. A ideia de “recolher” vem do HHL-BW7. Deve-se atentar que essa é a segunda vez que a
“mão” aparece em Deuteronômio 15. Nas duas ocorrências (15,3.7) a ideia é a de liberalidade no tratamento com
o irmão empobrecido. “Recolher a mão” está em oposição a “abrir a mão”. “Mão” volta a aparecer em 15,8.
118
8 – “Antes,279
deveras abrirás280
a tua mão para ele, e deveras lhe emprestarás o suficiente
para sua necessidade,281
daquilo que ele sente282
falta”.283
9 – “Seja cuidadoso284
contigo (mesmo), para que não haja alguma coisa perversa285
com
teu coração para dizer (pensar consigo mesmo): ‘Aproxima-se o ano sete, ano da
šümi††â,’286
e teu olho287
seja mal contra teu irmão ´ebyôn, e nada dês para ele. E
ele gritará contra ti ao Deus de Israel, e haverá em ti pecado”.288
277
Por duas vezes ´ebyôn qualifica “teu irmão” neste versículo. A ênfase deve ser notada tanto por salientar que
a generosidade é para um irmão como ela virá sobre um irmão pobre. 278
`!Ay*b.a,h' ^yxiÞa'me ^êd>y"å-ta, ‘#Poq.ti al{Üw> ^ªb.b'l.-ta, #Meäa;t. al{ô %l"+ !tEånO ^yh,Þl{a/ hw"ïhy>-rv,a] ^êc.r>a;’B. ^yr<ê['v. dx;äa;B. ‘^yx,’a; dx;Ûa;me !Ay÷b.a, ^’b. •hy<h.yI-yKi(7
/ 7Kî|-yihyè bükä ´ebyôn më´aHad ´aHʺkä Bü´aHad
šü`ärʺkä Bü´aºrcükä ´ášer-yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä nötën läk lö´ tü´ammëc ´et-lübäbkä wülö´ tiqPöc ´et-
yäºdkä më´äHîºkä hä´ebyôn. 279
Aqui a conjunção yKi² funciona como uma partícula que expressa oposição ao que vem sendo proibido na
oração anterior (HHL-BW7). A BJ a traduziu por “pelo contrário” para salientar a força do contraste entre as
duas colocações. 280
Construção que envolve o infinitivo absoluto com um verbo finito de mesma raiz [xT;²p.Ti x:toôp' / pätöªH
TipTaH]. A BJ traduziu essa construção por um imperativo, “abre”. 281
rêsox.m; [maHsör] é da mesma raiz que o verbo rs:ßx.y< [yeHsar]. rêsox.m; também pode ser traduzida por
“pobreza” (KIRST et al., 1987, p. 122). Já o verbo rsx pode ser traduzido, no qal, por “diminuir, sentir falta, ter
carência” (KIRST et al., 1987, p. 73). A generosidade que está sendo ordenada ao Ba`al tem a ver com o
suprimento de uma necessidade ocasionada pelo empobrecimento do ´ebyôn. 282
“Tu emprestarás para (suprir) sua falta daquilo que ele sente falta”. É uma formação redundante. Ele teria
suprido algo que lhe falta e que lhe faz falta em sua vida. 283
`Al* rs:ßx.y< rv<ïa] Arêsox.m; yDE… WNj,êybi[]T; ‘jbe[]h;w> Al= ^ßd>y"-ta, xT;²p.Ti x:toôp'-yKi(8 /
8Kî|-pätöªH TipTaH ´et-yädkä lô
wüha`ábë† Ta`ábî†eºnnû Dê maHsörô ´ášer yeHsar lô. 284
A BJ traduziu esse imperativo por “fica atento”. Seguindo a sugestão do dicionário da Bible Works 7,
traduziu-se esse nifal imperativo “ser cuidadoso”. Esse dicionário sugere também “ser protegido”. No caso em
pauta, o Ba`al devia se proteger da desobediência a um mandamento divino. 285
“Coisa perversa” é l[;Y:÷lib.. Essa palavra está intimamente relacionada com o coração duro, a mão fechada
(15,7), o olho mal (15,9) e o coração mal (15,10). “Há, de fato, algo sinistro, para não dizer ‘demoníaco’, na
insensibilidade (deliberada) que aceita a riqueza da bondade de Deus e então se recusa imitar o Doador e repartir
a dádiva” (CAIRNS, 1990, p. 148). 286
A presença da šümi††â aqui mostra que o redator ainda está falando do empréstimo dos versículos 2 a 7,
quando o Ba`al teria que abrir mão de receber seu empréstimo e ainda devolver a garantia a “teu irmão ´ebyôn”
como demonstração que ele dispensou seu irmão de qualquer pagamento da dívida. 287
A palavra “olho” é empregada para se referir a atitude de coração do Ba`al. 288
`aj.xe( ^ßb. hy"ïh'w> hw"ëhy>-la, ‘^yl,’[' ar"Ûq'w> Al= !TEßti al{ïw> !Ayëb.a,h'( ‘^yxi’a'B. ^ªn>y[e¥ h['är"w> èhJ'miV.h; tn:åv. é[b;V,h;-tn:)v. hb'är>q") rmoªale l[;Y:÷lib. ^’b.b'l.-~[i •rb'd" hy<åh.yI-!P, ^‡l. rm,V'ähi 9
/ 9hiššäºmer lükä Pen-yihyè däbär `im-
lübäbkä büliyyaº̀ al lë´mör qä|rbâ šüna|t-haššeba` šünat haššümi††â würä`â `ê|nkä Bü´äHîºkä hä|´ebyôn wülö´
tiTTën lô wüqärä´ `älʺkä ´el-yhwh(´ädönäy) wühäyâ bükä H뺆´.
119
10 – “Deveras darás289
para ele. E o teu coração não será mal no teu lhe dar.290
Pois, por
causa dessa coisa,291
´ädönäy teu Deus te abençoará em toda tua obra e em todo
empreendimento292
de tua mão”.293
11 – “Porque o pobre não cessará294
do meio da terra. Portanto, eu te ordeno ao dizer:
Certamente abrirás295
a tua mão para teu irmão muito pobre296
na tua terra”.297
2.3.5.3.2. Solidariedade com o irmão empobrecido
2.3.5.3.2.1. Uma hipótese possível (15,7)
“Quando em ti houver (um) ´ebyôn” é a declaração que abre essa unidade textual, e
demonstra que a pobreza era um elemento recorrente dentro do mundo bíblico e,
particularmente, no mundo de Israel. A familiaridade do Ba`al com ´ebyôn é demonstrada nas
declarações seguintes. Ele é alguém do meio de “teus irmãos”, está dentro dos “teus portões”,
sendo esses qualificados pela terra que é dada em herança. Assim, ao mesmo tempo em que a
289
Construção literária comum neste capítulo: infinitivo absoluto + verbo finito de mesma raiz [‘!TeTi !AtÜn" /
nätôn TiTTën]. 290
Terceira vez que aparece a raiz !tn nesse versículo, agora com um infinitivo construto, “no teu dar” [^åT.tiB.
/ BütiTTükä]. Outra forma de traduzir poderia ser “na tua doação”. Está em vista algo que seria dado pelo credor
ao seu endividado. 291
Aqui a palavra rb"åD" [DDäbär], “palavra, coisa”, faz referência a šümi††â, aqui com o sentido de “coisa”, ou a
declaração de libertação de dívida feita pelo Ba`al, assim “palavra”. 292
^d<)y" xl;îv.mi [mišlaH yädeºkä] é “onde se coloca a mão”, segundo o dicionário da BW7. Na realidade a
palavra “mão” qualifica tanto hf,[]m;, “feito, obra, produto”, como xl;îv.mi, “ganho, lucro” – é “todo feito e todo
ganho de tua mão”. Ou, noutra forma de dizer, está sendo dito ao Ba`al é que ele seria bem-sucedido em tudo
que ele viesse a empreender. A mão que deixa cair o direito de receber uma dívida é a mesma que receberá a
benção divina em todo o seu trabalho. 293
`^d<)y" xl;îv.mi lkoßb.W ^f,ê[]m;-lk'(B. ^yh,êl{a/ hw"åhy> ‘^k.r<b'y> hZ<©h; rb"åD"h; Ÿll;äg>Bi yKiú Al+ ^åT.tiB. ^ßb.b'l. [r:îyE-al{w> Alê ‘!TeTi !AtÜn" 10
/ 10nätôn TiTTën lô wülö´-yëra` lübäbkä BütiTTükä lô Kî Biglal haDDäbär hazzè
yübärekükä yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä Büko|l-ma`áSeºkä ûbüköl mišlaH yädeºkä. 294
Holladay (HHL-BW7) sugere como alternativa de tradução para este verbo [lD:îx.y< / yeHDal] “não haverá mais
em existência (‘no longer be in existence’)”, sugerindo que, por meio da generosidade do Ba`al, o pobre deixará
de ser pobre. A outra possibilidade é que, sem a generosidade do Ba`al, o pobre não terá longa existência e
deixará de viver. Por outro lado, o entendimento usual é que sempre haverá pobre na terra e, por isso, o Ba`al
sempre terá alguém com quem deverá ser generoso. 295
Essa construção, o infinitivo absoluto com um verbo finito de mesma raiz [xT;²p.Ti x:toP'û / pätöªH TipTaH], já
apareceu em Deuteronômio 15,8. 296
Aqui se encontra uma construção onde “teu irmão” é qualificado por duas palavras para pobre [`äny e
´ebyôn]: “teu irmão pobre e pobre” [ ß̂n>yOb.a,l.W ^Y<±nI[]l; ^yxióa'l. / lü´äHîºkä la`ániyyeºkä ûlü´ebyönkä]. 297
`^c<)r>a;B. ^ßn>yOb.a,l.W ^Y<±nI[]l; ^yxióa'l. ^ød>y"-ta, xT;’p.Ti x:toP'û rmoêale ‘^W>c;m. ykiÛnOa' !Keú-l[; #r<a'_h' br<Q<åmi !Ayàb.a, lD:îx.y<-al{ yKi²11
/ 11
Kî lö´-yeHDal ´ebyôn miqqeºreb hä´äºrec `al-Kën ´änökî mücawwükä lë´mör PätöªH TipTaH ´et-
yädkä lü´äHîºkä la`ániyyeºkä ûlü´ebyönkä Bü´arceºkä.
120
proximidade ajudaria na generosidade do Ba`al, ela também poderia prejudicá-la, haja vista
que o Ba`al poderia considerar que aquele ´ebyôn não deveria merecer tal atitude de
generosidade de sua parte.
Entretanto, ao afirmar que a terra do Ba`al tinha sido concedida por doação (“tua terra que
´ädönäy teu Deus está dando para ti”), o redator está dizendo que a mesma coisa deveria ser
feita ao ´ebyôn. O Ba`al não possuía uma terra como herança até a doação de “´ädönäy teu
Deus”. Assim, o ´ebyôn também não tem com que sobreviver, a não ser que o Ba`al lhe
conceda uma doação, por meio de um empréstimo, mesmo que o ano do cancelamento da
dívida esteja perto. A generosidade do Ba`al deveria vir de uma generosidade precedente. Ele
primeiro recebeu para depois poder dar. Ou, noutra forma de dizer, ele só poderia dar porque
ele já tinha recebido.
Mesmo que Deuteronômio 15,7 comece com uma possibilidade hipotética, o que vem a seguir
no texto aponta para a dura realidade que um hipotético ´ebyôn poderia encontrar num Ba`al.
As frases paralelas “não farás teu coração duro” e “não recolherás a tua mão de teu irmão
´ebyôn” indicam que o caminho da liberdade financeira do ´ebyôn na šümi††â poderia não
ser fácil. Ao proibir a dureza de coração e o “encurtamento” da mão, o redator destaca que o
fim da pobreza ocorreria mediante a generosidade do Ba`al. É uma ordem que é colocada
como vinda de Deus por meio de uma solução humana.
2.3.5.3.2.2. Coração generoso em lugar do duro (15,8.9)298
Deuteronômio 15,8.9 é introduzido por um uso adversativo da conjunção yKi. No lugar da mão
fechada de 15,7, o Ba`al deveria ser possuído de um coração generoso, mas com determinados
parâmetros. A necessidade a ser suprida deveria ser aquela apresentada pelo ´ebyôn. O
empréstimo viria para suprir uma falta que o ´ebyôn está sentindo. Isso implica em algumas
ações por parte do Ba`al. Ele deveria entender a necessidade do ´ebyôn para poder dar aquilo
que serviria de suprimento para a carência que ele tinha. Ele também deveria fazer o
empréstimo com coração sincero. Isso quer dizer que, além de ter que entender o que o
298
Para Merrill, depois de ser tratada da hipótese de não haver pobres dentro de Israel, o redator passa a tratar da
realidade do povo e como a comunidade deve tratar com ela (1984, p. 244).
121
´ebyôn necessitava para realizar o empréstimo, o Ba`al deveria estar ciente de suas
motivações.
Deuteronômio 15,9 diz: “Seja cuidadoso a ti (mesmo), para que não haja alguma coisa
perversa com teu coração ao pensar consigo mesmo:299
‘Aproxima-se o ano sete, ano da
šümi††â,’ e teu olho seja mal contra teu irmão ´ebyôn, e não (nada) dês para ele. E ele gritará
contra ti ao Deus de Israel, e haverá em ti pecado”. Primeiro, o Ba`al deveria se proteger de si
mesmo (“cuida de ti mesmo”). Pensar num eventual “prejuízo” antes que na necessidade do
próximo causaria um dano para aquele que precisava da cobertura de uma carência. A vida do
´ebyôn estava acima de seu “prejuízo”. Para evitar um dano maior a si mesmo, o Ba`al teria
que tomar cuidado consigo mesmo. Segundo, o seu temor não deveria ser motivado por um
possível “prejuízo”, mas por uma intervenção divina em favor do ´ebyôn e contra o Ba`al.
Deus seria o juiz do ´ebyôn.
O verbo traduzido por “gritar” ou “clamar” é ar"q' [qärä´].300 Ele é considerado um sinônimo
de q[;c' [cä`aq] e q[z [z`q], cujo significado dado para esses verbos é “gritar por socorro
urgente” (COPPES, 1980, p. 810). cä`aq é empregado para o grito dos israelitas sob a
escravidão no Egito. Como tal, ele aparece na confissão encontrada em Deuteronômio 26,7
(“E gritamos a ´ädönäy, Deus de nossos pais” [Wnyte_boa] yheäl{a/ hw"ßhy>-la, q[;§c.NIw:]). Esses verbos
estão presentes em Êxodo 2,23 [z`q]; 3.7[“clamor” / c`q].9[“clamor” / c`q].
Essa relação sinonímica entre esses verbos torna a ordem divina uma palavra de libertação
semelhante aquela presente no livro de Êxodo. Faraó deveria deixar o povo sair do Egito. Mas
ele não o fez. Mais tarde ele viria confessar que ele havia pecado, ou, desobedecido ao Deus
de Israel. Por duas vezes ele fez essa confissão: “pequei” (Êxodo 9,27 [ytiaj'äx' / Hä†äº´tî]) e em
10,16 ele diz “pequei contra ´ädönäy vosso Deus e contra vós” [`~k,(l'w> ~k,Þyhel{)a/ hw"ïhyl;
ytiaj'²x' / Hä†äº́ tî lyhwh(la´dönäy) ´élö|hêkem wüläkem].
299
Bartor afirma que em Deuteronômio 15,9, o redator integra as palavras do Ba`al na sua exortação ao dar
expressão a um discurso interior que reflete seus pensamentos e o estado de sua mente. Ele entra na sua mente,
responde a sentimentos e pensamentos que o levariam a uma ação, antes que ela seja realizada (2012, p. 302). 300
A ideia de ar"q' como o grito dado pelos desesperados está presente no livro de Jonas (1,6.14). Em
Deuteronômio 15,9, há declarada o conceito de gritar com o intuito de fazer uma acusação de sonegação do
empréstimo, tendo em vista que se aproxima o tempo do perdão de dívidas.
122
A raiz do verbo “pecar” é encontrada em Deuteronômio 15,9 [aj.xe( / H뺆´]. Mais adiante, em
Deuteronômio 15,12-15,301
quando por ocasião da libertação do irmão que havia se vendido
como escravo, o Ba`al deveria tratá-lo com generosidade, da mesma forma que ele fora
resgatado do Egito com generosidade. Então, a saída do Egito e a libertação da šümi††â são
colocadas em igualdade, notadas as diferenças entre elas. Cancelar a dívida de seu irmão é
agir, como Deus, na libertação de uma escravidão que pesa sobre seu irmão – a escravidão do
endividamento.
Nesses dois textos (15,8.9), encontra-se um jogo de ideias. Se o Ba`al não fizesse o
empréstimo ao ´ebyôn para suprir sua falta (“carência” [rêsox.m;]), ele mesmo seria encontrado
em “falta” (“pecado” [aj.xe(]). Assim como o Faraó foi encontrado em falta por desobedecer
ao mandamento divino de deixar o povo partir do Egito, o Ba`al seria encontrado em “falta”
por não deixar seu próximo livre de sua carência. Manter o ´ebyôn no seu “Egito” de pobreza,
descontadas as diferenças, pode ser considerado um instrumento de opressão. O empréstimo
seria, por sua vez, um instrumento de libertação. E, com a chegada da šümi††â, o Ba`al
proclamaria liberdade ao ´ebyôn.
A questão que o texto levanta é a seguinte: Faraó, mesmo com seu coração endurecido, não
deixou Israel partir? Sim. Mesmo com sua mão fechada, ele não deixou Israel partir com
riqueza dada pelos egípcios? Sim. Então, o endurecimento de coração não é uma alternativa
apropriada para o Ba`al. Em lugar da bênção, Faraó recebeu juízo. Assim, Deuteronômio
enfatiza o valor da obediência para o próprio Ba`al: “por causa dessa coisa, ´ädönäy teu
Deus te abençoará em toda tua obra e em todo empreendimento de tua mão”. Mão generosa
do Ba`al resultará em mão generosa do Deus de Israel.
2.3.5.3.2.3. Uma contradição em Deuteronômio 15?
Ao fechar a unidade de Deuteronômio 15,7-11, o redator leva ao ápice o bloco inteiro de 15,1-
11. No final, ele diz porque a šümi††â deve ser proclamada e porque o Ba`al deverá se
habituar com ela:
301
O verbo hd'P' [PaDah] é usado em Deuteronômio para “resgatar”, “redimir”, o povo de Israel do Egito. Na
análise desse texto no capítulo sobre o servo e a serva esse verbo será tratado com mais detalhe.
123
11 – “Porque o pobre não cessará do meio da terra. Portanto, eu te ordeno ao dizer:
Certamente abrirás a tua mão para teu irmão pobre muito pobre na tua terra”.
O versículo em pauta requer uma explicação, pois ele parece contradizer o que foi dito em
Deuteronômio 15,4. Três alternativas podem ser dadas para explicar esse texto: primeiro, o
pobre deixará de ser pobre (“não haverá mais a existência de um pobre”); segundo, o pobre
não terá existência longa (“o pobre não terá mais existência na terra”); terceiro, sempre haverá
pobre na terra (“o pobre não cessará do meio da terra”). Qual delas se harmoniza melhor com
o contexto?
Essa unidade textual não é independente daquela que se encontra nos versículos 2 a 7. A
presença da šümi††â destaca que a doação não seria doação por doar. Mas um empréstimo
com garantias de recebimento. A proximidade do ano da šümi††â poderia levar o Ba`al a
perceber um “prejuízo” iminente, ou que o irmão ´ebyôn poderia aproveitar de proximidade
do ano da šümi††â para levar vantagem no empréstimo.
Entretanto, as palavras “necessidade” [rêsox.m; / maHsör] e “sente falta” [rs:ßx.y< / yeHsar], no
versículo 8, apontam para uma necessidade real do irmão ´ebyôn. Além do mais, a palavra
´ebyôn qualifica um indivíduo que é conhecido da comunidade, bem como do Ba`al, como
sendo “pobre”. Além disso, ele é “teu irmão ´ebyôn”, o que indica que ele faz parte do
relacionamento próximo do Ba`al.
Das três alternativas dadas acima, o que se pode dizer sobre a primeira é que para a šümi††â o
pobre deixará de ser pobre (“não haverá mais a existência de um pobre”) por causa da
generosidade do Ba`al. Entretanto, se o Ba`al não for generoso, o pobre não terá existência
longa (“o pobre não terá mais existência na terra”).
Entretanto, a terceira alternativa está em harmonia, não somente com Deuteronômio 15,11
como com 15,5: sempre haverá pobre na terra (“o pobre não cessará do meio da terra”). Um
olhar mais atento para Deuteronômio 15,4 se notará que a pobreza que a pobreza que não
existirá é “em ti” – no Ba`al. A implicação disso é que, se o Ba`al proclamar a šümi††â para o
seu irmão empobrecido, ele não terá pobre nele mesmo. Ou noutra forma de olhar, ele não se
tornará um pobre, porque Deus o abençoará em tudo o que ele colocar sua mão, dando-lhe
recursos, não só para socorrer seu irmão, como para emprestar a outros povos.
124
Isso deve fazer um retorno ao exemplo de Faraó e o Egito. A generosidade dos egípcios foi
forçada, fazendo com que, para que se livrassem do incômodo dos escravos israelitas, eles
dessem tudo o que eles pediram para que saíssem do Egito, tornando-se empobrecidos. Se o
Ba`al fosse generoso com seu irmão empobrecido, ele não se tornaria um ´ebyôn à
semelhança dos egípcios. Essa generosidade, porém, não deveria ser casual, pois sempre
haveria alguém para socorrer em sua pobreza.
2.4. Moisés – um modelo de `änî (um wn"[' no meio de ~ywIån"[])?
Dentro das narrativas da BH há uma característica que certas grandes personalidades
apresentavam. Seja essa uma declaração pessoal sua, seja uma declaração vinda de outros. Há
um ponto em comum entre algumas dessas grandes personagens bíblicos – alguns deles se
consideraram “pobres” no meio de seu povo. Jefté disse que sua família era uma das mais
pobres no meio de Manassés (Juízes 6,15 [lD:ä / Dal]). Saul considerou sua família a menor de
Benjamim (1 Samuel 9,21 [!j'q' / qa†an]).
Davi se considerou um “homem pobre e sem dignidade” quando os servos de Saul
consideraram a possibilidade dele se tornar genro do rei (1 Samuel 18,23 [`hl,(q.nIw> vr"î-vyai(
ykiÞnOa'w> / wü´änökî ´î|š-räš wüniqlè]). Já no final de sua vida, em um cântico atribuído a Davi,
ele se inclui entre aqueles que são chamados de ynI[': “E tu livrarás o povo aflito, mas os teus
olhos sobre os que se exaltam, tu trarás abaixo”.302
Esse cântico é um memorial de Davi de
seu sofrimento em meio as muitas perseguições e sua libertação causada por Deus de todas
elas.
O que diferencia essas declarações daquela que se encontra em Números 12, sobre Moisés, é
que a de Números não sai da boca de Moisés, mas do redator do livro e, provavelmente, o
redator lançou no livro de Números aquilo que ele recebera de uma tradição oral antiga, ou de
algum panfleto com essa tradição.
302
`lyPi(v.T; ~ymiîr"-l[; ^yn<ßy[ew> [:yvi_AT ynIß[' ~[;î-ta,w> // wü´et-`am `änî Tôšîª` wü`ênʺkä `al-rämîm TašPîl.
125
2.4.1. O texto – Números 12,1-3
2.4.1.1. Tradução
1 - “E falou303
Miriam, e Arão,304
contra Moisés por causa da mulher cuchita que (ele)
tomou, porque uma mulher cuchita (ele) tomou.”305
2 - “E disseram:306
‘De fato, yhwh (´ädönäy) falou somente307
através de308
Moisés? Não
falou309 yhwh (´ädönäy) também através de
310 nós?’ E yhwh (´ädönäy) ouviu.”
311
303
Três versões consultadas traduzem esse verbo na terceira pessoa masculino plural para envolver Arão
diretamente na trama (“Maria e Arão murmuraram” [BJ]; “Maria e Arão falaram” [BP]; “Falaram Miriã e Arão”
[ARA]). Porém, o verbo está na terceira pessoa feminina singular, rBe’d:T.w: [waTTüdaBBër], o que, no
entendimento desta pesquisa, essa rebelião de irmãos contra Moisés teve início e liderança de Miriam,
justificando assim a disciplina divina posterior somente contra ela, não contra Arão. Aparentemente, Arão era
um coadjuvante em todo o evento – e em toda sua vida – de Moisés e, agora, de sua irmã, Miriam. Preste-se
atenção também que a narrativa coloca Miriam à frente de Arão (13,4-5), enquanto que o reverso seria o
esperado (MILGROM, 1990, p. 93). Para Rashi, “o termo rbd em cada passagem onde ele é usado implica em
linguagem severa (Gênesis 42,30)... O termo rma, porém, é sempre uma expressão que denota súplica (Gênesis
19,7)” (RASHI, Bamidbar, 1934, p. 58). 304
A separação de Miriam de Arão por uma vírgula nessa tradução se dá por entender que a iniciativa e liderança
desta contenda contra Moisés é toda de Miriam, sendo Arão um sujeito passivo, como o verbo salienta na análise
acima. Essa tradução é para ênfase. No texto Hebraico, porém, a separação se dá por vav conjuntivo [w>] e mostra
que os dois estão relacionados no propósito de criticar Moisés, mesmo que a preeminência seja de Miriam sobre
Arão. É ela quem abre o debate sobre a liderança de Moisés (RASHI, Bamidbar, 1934, p. 58). 305 `xq")l' tyviÞku hV'îai-yKi( xq"+l' rv<åa] tyviÞKuh; hV'îaih' tAd±ao-l[; hv,êmoB. ‘!roh]a;w> ~y"Ür>mi rBe’d:T.w:1 / 1waTTüdaBBër
miryäm wü´ahárön Bümöšè `al-´ödôt hä´iššâ haKKùšît ´ášer läqäH Kî|-´iššâ kùšît läqäH. 306
Aqui Arão é introduzido como participante ativo da acusação contra Moisés (Wrªm.aYOw: [wayyö´mürû]). Assim,
depois da iniciativa de Miriam, ele participa com ela da fala contra Moisés. Por meio desses dois versículos
pode-se concluir que Miriam tomou a iniciativa e se tornou porta-voz do grupo, ela e Arão, que reivindicava
mais espaço na liderança do povo de Israel. Arão participa com ela e leva a força do sacerdócio junto por essa
luta pela liderança com Moisés. 307
Milgrom sugere que, por questão de ênfase, qr: seja entendido como “apenas e unicamente” (1990, p. 94).
Parece ser esse o entendimento subjacente no questionamento de Miriam: “Deus fala apenas e unicamente por
Moisés?”. 308
A preposição prefixa ao nome Moisés, b, é traduzida aqui em seu uso instrumental, “através de”,
principalmente levando em consideração que Moisés também é profeta por meio de quem Deus fala (notar 1
Reis 22,28). B. rBe(Di é “‘fala a’ ou ‘falar através de’ para comunicar algo através de um ser humano, para
transmitir uma mensagem através dele” (LEVINE, 1993, p. 328). O mesmo verbo é usado com a mesma
preposição em 12,5, mas com sentido diferente (“falar contra”). Para um uso semelhante ao de 12,2, notar 2
Samuel 23,2; 2 Crônicas 18,27. Em Números 12,6 temos outra construção: AB*-rB,d:a] / ´ádaBBer-Bô (“eu falo a
ele” ou “eu falo com ele”). 309
Essa pergunta levantada pelo grupo não é questionada por Deus. Deus fala também através deles. Porém, o
que há é a grande diferença qualitativa que existe entre a manifestação divina para Moisés e eles. Para Moisés,
Deus desvenda até a forma do ser divino (Números 12,8). 310
Aqui aparece uma construção com a preposição b, “de, através de”. Miriam é chamada de “profetisa” em
Êxodo 15,20. Arão é chamado de profeta de Moisés (“teu profeta”), em Êxodo 4,14-16; 7,1. Notar ainda
Miquéias 6,4. Interessantemente que Arão não seja chamado de “profeta de yhwh” no Pentateuco. Ele falaria
apenas aquilo que Deus já houvesse falado a Moisés. Como “profeta de Moisés”, ele é representante deste, não
do Deus de Israel. E, como sacerdote, ele representa o povo diante do Deus de Israel. Entretanto, representar
Deus diante do povo passa a ser o papel do profeta, que, aqui, tem Moisés como seu representante maior. Nessa
126
3 - “E o homem Moisés (era) manso312
(pobre/humilde)313
[wn"[' / `änäw]314
mais do que315
todo homem sobre a face do solo.”316
2.4.1.2. O contexto
O conflito intrafamiliar, envolvendo a elite da liderança317
do povo de Israel no deserto,
ocorre dentro de uma sequência de crises envolvendo todo Israel, bem como suas queixas
motivadas pela sua condição de vida no deserto. Mas essas queixas, dentro do capítulo 11 de
Números, mesmo que fossem dirigidas a Moisés e Arão como representantes divinos no meio
do povo, atingiam diretamente ao Deus de Israel que, no final, era quem havia levado o povo
até ali. Por isso, Deus apresentava sua indignação, repetidamente, contra seu povo (Números
11,1.10.33).
O capítulo 12 passa a ser aquele que conclui a questão levantada sobre a liderança do povo e a
rebelião contra os líderes instituídos divinamente, mas com o agravante que essa rebelião
alcança e parte da família de Moisés.318
Até aqui, porém, as crises não eram dirigidas
diretamente a Moisés e Arão, mas de modo velado, pois eles eram os representantes divinos
no meio do povo. As queixas do povo contra Moisés e Arão eram, no final, dirigidas ao
questão de silêncio, notar o silêncio de Jacó quando soube que seu filho Rubem havia se deitado com uma de
suas mulheres (Gênesis 35,22). 311
`hw")hy> [m;Þv.YIw: rBE+dI WnB'ä-~G: al{ßh] hw"ëhy> rB<åDI ‘hv,moB.-%a; qr:Ûh] Wrªm.aYOw:2 / 2wayyö´mürû háraq ´ak-Bümöšè
DiBBer yhwh(´ädönäy) hálö´ Gam-Bäºnû diBBër wayyišma` yhwh(´ädönäy). 312
No desenvolvimento da pesquisa será explicado os significados da palavra `änäw, traduzida aqui por
“manso”, porém, entre parêntesis foi apresentado alguns significados alternativos que poderiam constar na
tradução desse versículo. Esse é o único exemplo de `änäw no singular na BH (MILGROM, 1990, p. 94). 313
`änäw é um adjetivo masculino. Portanto, ela é usada para qualificar Moisés como um homem que apresenta
as qualidades que a palavra `änäw incorpora – mansidão, humildade, simplicidade. 314
Apenas para constar, aqui nós temos o caso de Qerê (lido) e Ketiv (escrito). O texto da BH, encontrado na
BW7, traz a seguinte leitura: Îwyn"å['Ð ¿wn"['À hv,Þmo vyaiîh'w> [wühä´îš möšè (`änäw) [`änäyw]], sendo que o Ketiv,
escrito, ¿wn"['À deve ser lido, Qerê, Îwyn"å['Ð. A BH confirma a leitura do texto da BW7 com uma nota marginal,
Qerê, wyn"å[', do Ketiv, wn"['. Mas em que isso ajuda? Tanto uma forma, wn"[', como outra, wyn"å[', são empregadas na
BH e têm seu vínculo com a raiz de ynIï[', como mais adiante a pesquisa mostrará. 315
Moisés é o mais manso em oposição clara a Arão e Miriam, cujo posto de Moisés desejam. Isso faz de Moisés
um modelo de pessoa submissa. Ele está na posição em que está, não por vontade própria, mas porque outro o
quer ali. 316
`hm'(d"a]h' ynEïP.-l[; rv<ßa] ~d"êa'h'( ‘lKomi dao+m. Îwyn"å['Ð ¿wn"['À hv,Þmo vyaiîh'w>3 / 3wühä´îš möšè (`änäw) [`änäyw]
mü´öd miKKöl hä|´ädäm ´ášer `al-Pünê hä´ádämâ.
317 Moisés era o líder máximo do povo de Israel, Arão o sumo-sacerdote, e Miriam era reconhecida como
profetiza e, aparentemente, uma espécie de líder feminina sobre as mulheres. Tal aspecto transparece em Êxodo
14, quando ela lidera um grupo de mulheres em celebração ao Deus de Israel pela derrota definitiva do exército
egípcio sob o Mar Vermelho. 318
Notar que o espírito que havia em Moisés é repartido com outros para capacitá-los a levar o povo juntamente
com Moisés. É significante, porém, que Arão e Miriam não estejam nesse grupo de “ungidos” com o espírito de
Moisés (ASHLEY, 1992, p. 222).
127
próprio Deus. Keil e Delitzsch assinalam que as rebeliões, até aqui levantadas, foram
provenientes da insatisfação do povo com as condições de privação em sua peregrinação pelo
deserto e que, em sua direção central, estava Deus, mais que Moisés (p. 809). Portanto, eram
rebeliões provenientes da insatisfação do povo contra o seu Deus que, aparentemente, não os
estava levando para aquela terra singular que ele havia prometido.
Miriam e Arão inauguram o período de críticas dirigidas para Moisés. O que há aqui é uma
espécie de ataque contra Moisés devido a um julgamento errôneo de sua pessoa, e que abre
uma sequência de outros ataques contra o líder máximo do povo de Israel naquela ocasião.
Como esse evento ocorreu de forma pública, ele estimulou outros líderes a fazerem o mesmo,
tais como Corá, Datan e Abiram, em Números 16.319
Como notado na tradução acima, o ataque foi orientado por Miriam, colocando-a com a
agente principal da instigação aberta contra Moisés. O verbo está no singular feminino (“E ela
falou”). Além disso, o nome “Miriam” vem antes do nome de Arão para salientar
preeminência dela no evento. O verbo pode ser traduzido pela perífrase “e ela começou a
falar”320
para salientar um início de ação, bem como a sua continuidade. Como Arão foi
envolvido na questão não está claro.321
Ele resistiu à tentação de participar com o povo na
festa ao bezerro de ouro (Êxodo 32). Mas aqui, ele vê a possibilidade de assumir a liderança
do próprio Israel.
O evento do bezerro de ouro (Êxodo 32), no entanto, sugere que Arão tinha uma
personalidade dependente, facilmente influenciável e dependente de duas personalidades
fortes – Moisés e Miriam, e fraco quando estava sob pressão, como no caso ocorrido em
Êxodo 32, quando o povo pressiona Arão para fazer os substitutos de Moisés, os deuses, e, no
319
Para ilustrar a estranheza do comportamento de Miriam e Arão, recorre-se à história de Davi. Davi
demonstrou-se crítico com os filhos de Zeruia (Joabe, Abisai, Asael), irmã de Davi (1 Crônicas 2,5), chegando
ao ponto de procurar substituto para o comandante do exército, Joabe (2 Samuel 3,39; 16,10; 19,22). Entretanto,
mesmo com a acidez de Davi contra seus primos, principalmente Joabe, eles sempre trabalharam em favor do
reinado de Davi sobre Israel. Mesmo quando Joabe teve a oportunidade de ser honrado acima de Davi, ele não o
fez (2 Samuel 12,26-28), e até fez o trabalho sujo de Davi, fazendo com que Urias morresse (2 Samuel
11,16.17). Para Joabe, o clã estava acima de tudo. Essa unidade, mesmo em meio aos problemas internos, não
parece ter sido a busca de Miriam e Arão. 320
A forma masculina [rBEïd:y>w: / wayüdaBBër] é usada para instrução divina e para Moisés quando instrui o povo
(ver Números 1,1; 2.1; 9,4; 11,24). O uso dessa forma no feminino atrairia naturalmente a atenção dos ouvintes
(COLE, 2000, p. 200). A construção “e falou contra” [B. ... rBe’d:T.w: / waTTüdaBBër ... Bü] é usada em Números
(21,5.7; também Jó 19,18; Salmo 50,20; 78,19) para indicar uma comunicação hostil (BUDD, 1984, p. 136). 321
Budd sugere que, tendo Miriam como a pessoa que fala, a entrada de Arão tenha sido uma adição aqui e nos
outros lugares do evento. Ele também aponta que a punição que veio somente sobre Miriam é outra indicação
disso (1984, p. 133).
128
final, de Deus, para que guiem o povo à Terra da Promessa, em lugar de Moisés – esse era o
propósito deles: arranjar não um, mas vários substitutos322
para Moisés (RASHI, Shemoth,
1934, p. 180),323
eles precisavam de um substituto que determinasse a vontade de Deus para o
lugar de Moisés, o meio humano para conhecer a vontade divina (SARNA, 1991, p. 203).
Aquele evento apresentou um Arão fraco diante da ausência de Moisés e da pressão do povo,
não se impondo como o verdadeiro líder humano substituto (ao invés de um bezerro de
metal)324
– alguém que dissesse com firmeza o que o povo deveria fazer. Seu comportamento
fraco trouxe grande prejuízo para a liderança e para o próprio povo, segundo a narrativa de
Números.
Além de Corá, Datan e Abiram, em Números 16, outros descontentes do meio do povo foram
estimulados a fazer o mesmo contra Moisés, o que deixou, por sua vez, Arão vulnerável a elas
por se achar muito próximo de seu irmão, e ser o porta-voz dele, mais que Miriam, fazendo
com que, posteriormente, a própria posição de Arão viesse a ser questionada, e outros
desejassem seu posto de Sumo-Sacerdote de Israel (Números 16,2.10).
Portanto, o contexto em que Números 12 está inserido é de conflito entre líderes, ou entre
líderes e o povo, fazendo com que a intervenção divina se faça necessária para que o povo no
deserto não experimentasse o caos, principalmente para não causar seu próprio retorno para o
Egito. O bloco de literatura que vai de Número 11 até 25 apresenta o ciclo de “rebelião e
julgamento de um povo medroso” (ALLEN, 1990, p. 695).
2.4.2. O evento envolvia incialmente uma crítica contra a mulher de Moisés.
Por mais que pareça esquisito, o problema levantado contra Moisés é também um ataque
contra a sua esposa. A essência da crítica pode ser vista em que ele se casara com uma mulher
fora do contexto do clã, ou mesmo do povo de Israel. O texto não deixa dúvida: “por causa da
322
O verbo está no plural: “deuses que andem diante de nós” (Êxodo 32,1 [WnynEëp'l. ‘Wkl.yE) rv<Üa] ~yhiªl{a/ / ´élöhîm
´ášer yë|lkû lüpänêºnû]) – deuses que nos guiem. 323
Em Êxodo 15,20.21, Miriam lidera um grupo de mulheres com cânticos após a travessia do mar. Além disso,
ela é chamada de profetisa. Esses dois detalhes demonstram a força da personalidade de Miriam. Como profetisa
ela exercia autoridade como porta-voz divina. Miriam foi hábil ao agir em benefício de Moisés quando ele foi
colocado no rio para escapar da morte, ainda pequeno (Êxodo 2), inclusive tramando para a própria mãe do
menino ser a ama de leite. Ela demonstrou coragem, habilidade e liderança. Ela poderia pensar que Moisés devia
a vida a ela e, por isso, teria ele um débito com ela. Ai, a imposição sobre Moisés para ele repartir a liderança
sobre o povo de Israel. Isso é uma conjectura possível. 324
Arão era três anos mais velho que Moisés (Números 33,29). Ele não teve o privilégio de viver no palácio do
Faraó e aprender tudo sobre a arte da liderança, como Moisés. Arão enfrentou os “anos de chumbo” da
escravidão no Egito. Isso pode ter influenciado em sua personalidade dependente. Ele queria e aprendeu a
sobreviver. O homem que poderia ser um bravo guerreiro tornou-se dócil para sobreviver.
129
mulher cuchita que (ele) tomou, porque uma mulher cuchita (ele) tomou.”325
“Cuchita” foi o
apelido colocado sobre a mulher, para que sua origem não fosse esquecida, mostrando que ela
teve pouca aceitação dentro do povo de Israel como mulher do homem que era como a “boca
de Deus” para Arão (Êxodo 4,14-16) e, subsequentemente, para todo o povo de Israel,
incluindo a própria Miriam.
Porém, há algo a mais a informar sobre a mulher de Moisés e a respeito da origem dela. O
texto por duas vezes diz que ela é “cuchita”. Entrementes, segundo a narrativa do livro de
Êxodo (2,15.16), quando Moisés fugia da perseguição de Faraó, ele acabou indo morar em
Midiã, não em Cuche.
Quatro sugestões são feitas para tentar resolver o problema da origem da mulher de Moisés.
Allen (1990, p. 797-798) apresenta as primeiras duas respostas possíveis à questão levantada
sobre a origem de Séfora, aqui chamada de “mulher cuchita”. A primeira possibilidade é que,
para Allen, a pele da Séfora era mais morena que da maioria do povo de Israel, fazendo com
que a crítica de Miriam viesse a usar o termo em forma de desprezo ao ancestral dela.
A segunda possibilidade é que, com a morte, talvez, da primeira mulher de Moisés, Séfora,
ele se tenha casado com uma mulher originária de Cuche. Allen entende que isso pode ser
comprovado pela repetição das palavras “mulher cuchita” e “tomou” nas frases: “... da mulher
cuchita que ele tomou, porque ele tomou uma mulher cuchita”, pois o verbo “tomar” parece
indicar algo recente e a repetição aponta para uma ênfase textual.
A terceira possiblidade é aquela apresentada por Rashi (Bamidbar, 1934, p. 58-59). Para ele, a
crítica inicial contra Moisés foi motivada devido à sua separação de Séfora, o que Miriam
conhecia e a repartiu com Arão. Assim, Moisés divorciou-se de Séfora e tomou a mulher
cuchita como esposa.
Entretanto, a BJ (2002, p. 220-221) traz uma nota em que declara que, pelo sentido básico de
Cuche, o texto estaria apontando para Séfora como sendo etíope. A mesma nota, porém,
325
A primeira vez que aparece a construção “mulher cuchita”, tanto a palavra “mulher” quanto “cuchita” estão
definidas pela presença do artigo definido hebraico [`xq")l' tyviÞku hV'îai-yKi( xq"+l' rv<åa] tyviÞKuh; hV'îaih' / hä´iššâ
haKKùšît ´ášer läqäH Kî|-´iššâ kùšît läqäH]. Esta pesquisa entende que isto destaca a forma como ela era
conhecida no meio de Israel – os dois termos da construção são substantivos definidos. Isso provavelmente era
uma espécie de apelido que nomeava a mulher de Moisés. Na segunda vez, tanto “mulher” quanto “cuchita”
estão sem o artigo. Aqui a ausência do artigo aponta para a qualidade da esposa de Moisés – ela é “cuchita”, ou,
noutra forma de dizer, ela é de Cuche, para salientar a origem dela. A última frase do texto é uma explicação
polida do redator da razão de a mulher de Moisés ser apelidada pelos seus cunhados e, provavelmente, por todo o
povo, de “mulher cuchita”.
130
afirma que em Habacuque 3,7 Cuche é colocado em paralelo com Midiã.326
Assim, o
casamento de Moisés com uma mulher cuchita seria uma variante do casamento que ele teve
com a filha de um sacerdote midianita. O que leva à conclusão de que “mulher cuchita” é um
apelido colocado por Miriam e Arão, e usado pelo povo em geral, para se referir à mulher de
Moisés. Provavelmente esse tenha sido um apelido pejorativo relacionado à cor de Séfora.
Assim, em lugar dela ser chamada pelo seu nome, Séfora,327
ela era chamada de hä´iššâ
haKKùšît.328
Nesta pesquisa acrescenta-se a quarta possibilidade. Nessa afirma-se que a construção
hä´iššâ haKKùšît estabelece um preconceito e um desprezo muito forte entre irmãos e que,
provavelmente, alimentou-se por anos até se consolidar nas declarações de Miriam. Midiã, o
ancestral de Séfora, fora filho de Abraão por meio de Quetura (Gênesis 25,1.2.4). Assim,
quando Moisés fugiu da perseguição egípcia, ele se refugiou no meio de parentes (Êxodo
2,15-21). Porém, Gênesis (25,6) diz que, ainda em vida, Abraão separou Quetura e seus filhos
de Isaque, filho de Abraão por meio de Sara, o herdeiro, divinamente apontado (Gênesis
21,12), de tudo que Abraão possuía, incluindo a bênção divina e a continuação da
descendência em nome de Abraão (Gênesis 7,19; 21,12).
Portanto, ao que parece, ao chamar Séfora de hä´iššâ haKKùšît, Miriam faz uma ponte com
Cuche, um descendente de Noé por meio de Cam, seu filho amaldiçoado (Gênesis 9,21-27)
que, na realidade, teve sua maldição lançada sobre o outro filho de Cam, Canaã, irmão de
Cuche.329
Assim, hä´iššâ haKKùšît viria a ser não somente um desprezo pela cor de Séfora,
326
Ashley dá três sugestões para identificar Cuche: um etíope (Ezequiel 29,10); um habitante de Cuche (Gênesis
10,8); e um habitante de Cuche em paralelo com Midiã encontrado em Habacuque 3,7 (1992, p. 223). Ele
também especula que ela pudesse pertencer ao misto de gente que saiu do Egito (Êxodo 12,38) ou da ralé de
Números 11,4 (1992, p. 224). 327
Ela é chamada de “Séfora, a mulher de Moisés”, em Êxodo 18,2.5, mas no contexto da família do seu pai,
Jetro. 328
O desprezo pela mulher de Moisés é grande. Normalmente uma mulher casada é identificada pelo marido.
Note-se alguns exemplos: “Sarai, mulher de Abrão”, Gênesis 12,17; “Ada, mulher de Esaú... Basemate, mulher
de Esaú”, Gênesis 36,10; “Raquel, mulher de Jacó”, Gênesis 46,19; “Jael, mulher de Héber”, Juízes 4,21;
“Mical, mulher de Davi”, 1 Samuel 19,11; “Abigail, mulher de Nabal”, 1 Samuel 25,14; “Bate-Seba... mulher de
Urias”, 2 Samuel 11,3. Aqui ela é colocada sozinha, sem a identificação com Moisés, numa forma possível de
desprezo ao indicar que ela não tinha relacionamentos com o clã ao qual ela estava associada. Não há indícios
que Moisés tenha tomado outra mulher como esposa, pertencente ao próprio povo de Israel, tendo uma lealdade
matrimonial incomum nos grandes líderes do povo. 329
A maldição recai sobre uma parte, mas tem a finalidade de atingir o todo. Isso quer dizer que, mesmo que a
maldição seja sobre Canaã, o alvo dela é alcançar Cam e, por implicação, todos os seus descendentes. Assim,
amaldiçoar a descendência era o mesmo que amaldiçoar o progenitor daquela descendência. Essa ideia que a
punição sobre um descendente tem por finalidade punir o pai é vista em outra situação dentro da BH. Quando
Davi adulterou com Bate-Seba e depois ordenou a morte de seu marido, Urias, para se casar com ela (2 Samuel
131
como também um desprezo pelo irmão excluído da herança com Isaque, como fora Cam
excluído da família de Noé.330
Pelo relato das narrativas, o povo está no início de suas peregrinações pelo deserto, a mulher
tinha sido trazida por seu pai, Jetro, para Moisés, depois que Moisés a enviou com os filhos,
provavelmente por entender que sua presença com ele no Egito representava algum tipo de
perigo para ela e seus filhos (Êxodo 18,1-4). Com isso em mente, é possível sugerir que a
mulher cuchita é a mesma com quem ele se casou quando de sua fuga da presença de Faraó
para Midiã.331
Mas há um elemento a mais que torna a crítica à mulher de Moisés apenas um detalhe. A
questão que está por trás de tudo é: Por quem Deus fala ao povo? Quem de fato é o
representante legítimo do Deus de Israel no meio do povo? “Porque Moisés é o favorito de
Deus” (KALLAND, 1990, p. 797), haja vista que Deus fala também por meio de Miriam e
Arão?
Na realidade, a luta travada entre os irmãos tinha a ver com a liderança, ou poder, e sobre
quem possuía mais intimidade com o Deus de Israel para que desenvolvesse a liderança sobre
o povo. A liderança deixa de ser daquele que é escolhido por Deus para ser, simplesmente,
por meio de quem Deus fala. No final, a questão toda gira em torno do poder (ou controle)
sobre o povo de Deus.
O problema desenvolvido por meio do ciúme gerado entre irmãos pode também ser colocado
assim: Se Deus fala também por meio de Miriam e Arão, então, porque a liderança do povo de
11), Davi recebeu como punição a morte do filho que nasceria daquele relacionamento com Bate-Seba (2 Samuel
12,5-19), punindo o pai da criança, Davi. 330
Jezabel fez esse tipo de analogia com o fim de desprezar o outro. Depois que Jeú deu golpe de estado no rei
de Israel, Jorão, e de matá-lo, ele se dirigiu para Jezreel a fim de colocar seus planos em andamento. Ao chegar
ali, Jezabel o recebe com o seguinte sarcasmo: “Tudo vai bem, Zambri, assassino de seu senhor?” (2 Reis 9,30;
BJ). Zambri reinou apenas 8 dias sobre o Reino de Norte, Israel. Ele assassinou Elá que era rei de Israel (1 Reis
16). Zambri era um oficial de Elá e chefe da metade de seus carros de guerra. Nessa analogia, Jezabel alude ao
assassinato de Elá, comparando Jeú com Zambri que acabara de assassinar seu senhor. Para Jezabel, Jeú é um
assassino usurpador, tal como Elá. Esse é o ponto de comparação. 331
Na cronologia das narrativas das peregrinações do povo de Israel pelo deserto, essa é a última referência que
se faz à mulher de Moisés. Assim, como até aqui não houve nenhuma menção à morte de Séfora, na narrativa
seguinte também não. Como o papel básico de uma mulher dentro de uma família israelita é a procriação, ela
tem cumprido a sua função, e com isso ela teria concluído de forma plena seu papel dentro da comunidade.
Interessantemente, por outro lado, vale salientar que não é dito que Miriam seja casada ou mesmo que tenha tido
filhos. Aquela que era criticada por sua cor e por pertencer a família do filho excluído era bem sucedida como
mulher, segundo os padrões da época. Não poderia ser este um motivo oculto para Miriam ter tanta aversão à
“mulher cuchita” de Moisés? Ao contrário de outras situações na narrativa bíblica (como Penina e Ana em 1
Samuel 1-2), aqui é a “sem filhos” que maltrata uma mulher “com filhos”.
132
Israel está somente nas mãos de Moisés, o irmão mais novo? Por que a liderança está com ele,
e os outros dois têm apenas atividade delegada? Ser considerado como porta-voz divino
implicava em maior poder e influência sobre o povo por parte de quem era o arauto
divinamente autorizado.
O término do versículo 2 não é mero adendo à narrativa: “E yhwh (´ädönäy) ouviu”. Ele tem
como propósito preparar os ouvintes/leitores para intervenção divina judicial (KEIL &
DELITZSCH, p. 811). Deus dará sua palavra final sobre o questionamento que Miriam e Arão
têm levantado.
Como Moisés reage a isso? Qual será seu papel diante de tal acusação? Quem sairá em sua
defesa? Por que ele é caracterizado como um `änî? O que Moisés e um `änî tem em comum?
2.4.3. A caracterização de Moisés como `änî
2.4.3.1. Moisés é chamado de hä´îš.
Números 12,3 apresenta uma caracterização muito particular de Moisés por parte do
narrador/redator do evento. Primeiro, ele é chamado de “homem” definido pelo artigo,332
e
coloca essa palavra numa posição de ênfase, abrindo a declaração que a segue. Esse destaque
prepara o caminho para o que será dito em seguida. Moisés é apenas um homem.333
Mas
quem está por trás dele que o faz diferente? Porque ele é tão especial que Deus vem em sua
defesa? A humanidade dele fica em relevo para mostrar que a acusação é improcedente e que
a função de Moisés é delegada.
Ele é um membro da comunidade de Israel no deserto como qualquer outro homem no meio
do povo de Israel. Porém, ele é hä´îš, “o homem”. Ele não é qualquer homem – ele é o
homem por excelência. Ele é alguém que seria como o próprio Deus para o sacerdote de
Israel, Arão, segundo a própria palavra do Deus de Israel a Moisés (Êxodo 4,14-16). Assim,
ele mais que um homem, ele é “o homem”, o ser humano ideal, cujo nome é Moisés. Esse
ideal de humanidade, segundo o Êxodo, só pode ser construído pelo relacionamento divino e
332
hv,Þmo vyaiîh', hä´îš möšè, “o homem Moisés”. 333
“wühä´îš no texto Hebraico enfatiza a humanidade de Moisés, mas como um ser humano extraordinário ele
demonstrou extraordinário caráter na área da humildade” (COLE, 2000, p. 202).
133
humano na construção de um povo. Por isso Moisés, como o hä´îš, é objeto da ira dos que se
opõem ao projeto divino para o povo no deserto.
Mas não é somente aqui que Moisés é chamado de hä´îš. Em pelo menos outros três lugares
aparece a denominação “o homem Moisés” (Êxodo 11,3; 32,1.23).334
Nesses três casos, há um
contexto de conflito. No primeiro (Êxodo 11,3), a polêmica entre o Deus de Israel e os deuses
do Egito é o cenário, tendo Faraó como representante dos deuses egípcios e Moisés e Arão
como representantes do Deus de Israel. No segundo (32,1.23), Moisés enfrenta o
envolvimento do povo com o bezerro de ouro desenvolvido por Arão. Assim, a identificação
de Moisés como hä´îš aponta para Moisés como um homem específico, conhecido pela
posição que ocupava – o porta-voz e representante direto do Deus de Israel e, como em
Números 12, um homem em conflito. Contudo, diferentemente dos outros lugares em Êxodo,
ele não está lutando por Deus, mas será Deus quem lutará por ele. O divino e o humano estão
entrelaçados nesses conflitos. Em Êxodo 11 e 32, Moisés trava as guerras contra os outros
deuses e seus representantes. Em Números 12, Deus trava a batalha de Moisés contra aqueles
que querem ocupar o lugar de seu escolhido.
Assim, essas ocorrências textuais deixam transparecer que o conflito não era contra Deus
diretamente, mas contra seu representante humano, o seu hä´îš.335
Dessa maneira, mesmo que
isso não indique uma vontade humana de atacar o Deus de Israel diretamente, o resultado
indesejado, mas alcançado, é que Deus se sente ofendido pelas acusações contra seu
representante oficial e age para defendê-lo, e, como implicação direta, defender a si mesmo.
Um ataque ao representante de Deus é um ataque ao próprio Deus que o enviou com seu
representante autorizado.
334
Em Êxodo 11,3 se encontra a construção igual a Números 12,3 – “o homem Moisés”. Já em Êxodo 32,1.23 a
construção é “Moisés, o homem”. Mas isso não implica mudança de significado, mas de ênfase. No primeiro,
“homem” está na posição de ênfase, no último texto, “Moisés”. Milgrom sugere que a construção “o homem
Moisés” talvez queira enfatizar que ele era apenas um homem (1989, p. 94). Deve-se mencionar que em Êxodo
11,3, “o homem Moisés” é grande aos olhos dos oficiais de faraó, não aos seus próprios olhos (1989, p. 94). É
instrutivo pensar que, mesmo sendo que foi e fazendo o que ele fez, Moisés não se considerou “muito grande”
[daom. lAdÜG" / Gädôl mü´öd]. Ao contrário, foi identificado com os ~ywIån"[]. Ele não deixou de ser alguém do povo.
Sua identificação com sua gente foi a tal ponto de ele preferir ser destruído com o povo em lugar de sair dele
outro povo de Deus (Êxodo 32,9-15.32; 34,8-9). 335
Mesmo assim, é o Deus de Israel que está sendo questionado. Em Êxodo 11,3, Deus está sendo questionado
sobre a sua capacidade de vencer os deuses do Egito e retirar o seu povo dali. Em Êxodo 32,1.23, está em
questão a capacidade de Deus de levar o povo para a terra que ele prometera, bem como a sua capacidade de se
fazer presente no meio de seu povo e conduzi-lo para o lugar que ele prometera. Já em Números 12, Deus está se
acusado de não fazer escolhas sábias. Afinal, existem outros por meio de quem ele fala e que são tão capazes
quanto (ou até mais que) Moisés, o preferido de Deus.
134
2.4.3.2. Um homem distinto – o mais `änäw que todos os homens.
Segundo, este wühä´îš möšè é qualificado pelo redator como sendo dao+m. wn"[' [`änäw
mü´öd,], “muitíssimo `änäw”. O que caracteriza Moisés como sendo um homem `änäw mais
do que todos os outros homens sobre a face do solo? O que uma expressão desse tipo quer
dizer sobre o homem a quem ela aponta? É notório que a presença dessa descrição editorial
indica um elogio que distingue Moisés de todos os outros homens do Israel no deserto,
incluindo o próprio Arão.
Como tratado acima, numa nota sobre a tradução, verificou-se que temos aqui um Qerê Ketiv.
Moisés é o mais `änäw de todos os homens. Assim, a primeira forma de entender essa palavra
é observar como as traduções para o Português traduziram a palavra `änäw: “humilde”,
“sofrido”, e “manso”.336
Isso já mostra a variedade de sentidos que essa palavra apresenta.
Como homem “humilde”, a palavra traz o mesmo sentido de alguém que é manso e, portanto,
dócil.
Holladay (HHL-BW7) apresenta como uma possibilidade de tradução para essa palavra a
alternativa de alguém “gentil (quando diante de Deus)” e cita como exemplo Números 12,3 –
Moisés é alguém que é completamente submisso a tudo o que Deus o manda fazer. Nesse
sentido, ele é um perfeito Ente Silencioso, pois esse aspecto da submissão era algo
característico dos Entes Silenciosos, principalmente daqueles que pertencem ao grupo !Ay©b.a,w>÷
ynIï['. Como Ente Silencioso ele cumpre ordens e, quando ele tem que falar alguma queixa,
como um Ente Silencioso, ele fala com Deus.337
Quando olhada com esse sentido, a palavra `änäw se equipara em significado a `änî. Em 2
Samuel 22,28, Israel é chamado de [:yvi_AT ynIß[' ~[;î-ta,w>, [wü´et-`am `änî Tôšîª` (“E tu
libertarás o povo humilde”)].338
Gerstenberger aponta que a palavra `änäw “aparece
336
As citações vêm destas bíblias e nesta ordem de aparição: BJ, BP, BEG.
337 Por duas vezes dentro do Deuteronômio é dito que os membros do grupo !Ay©b.a,w>÷ ynIï[' irão gritar, ou clamar, a
Deus por uma agressão feita a eles (Deuteronômio 15,9; 24,15), mostrando que sua voz, como a de Moisés, em
determinados momentos só seria ouvida por Deus. 338
A palavra `änî foi traduzida para a LXX por kai. to.n lao.n to.n ptwco.n sw,seij (“E tu salvarás o povo
pobre”). As traduções para o português traduziram-na da seguinte forma: “povo afligido” (BP), “povo pobre”
(BJ), “povo humilde” (BEG).
135
representada na versão Samaritana por `änî” (GERSTENBERGER, 2001, p. 242), sugerindo
que seus tradutores entenderam que as duas palavras são sinônimas.339
Por sua vez a LXX traduziu `änäw por prau<j (ATP), cujo significado básico é “gentil,
humilde” (GGL-BW7). É o único lugar no Pentateuco que prau<j aparece, possivelmente para
expressar o ideal de piedade ou o modelo de líder ideal, cuja submissão à vontade divina é
acima de qualquer dúvida (HAUCK & SCHULZ, 1968, p. 647). As traduções do texto
hebraico para o aramaico trazem as seguintes palavras: Targum Neofiti, !wwn[, “humilde”;
Targum Pseudo-Jonathan, !twwn[, “pessoa modesta”; Targumim, !t'w>n[i, “pessoa modesta”.
Rashi projeta sobre essa palavra o significado de “humilde e paciente” (BAMIDBAR, 1934,
p. 59). Com isso, indo na mesma direção dessas traduções, `änäw projeta sobre Moisés a
figura de um líder completamente dedicado ao seu Deus na realização da missão que lhe foi
dada como líder de seu povo, cujo resultado está presente em sua humildade e paciência no
trato com seu povo. No Salmo 22,27 (hebraico), ~ywI“n”[] está em paralelo com “os que o (Deus)
buscam”. É uma palavra que salienta devoção, fidelidade (MILGROM, 1990, p. 94).
A segunda forma é notar que a raiz verbal, hn[ II, da qual procedem `änî e `änäw, tem
também o sentido de “encontrar-se a si mesmo em situação de impedimento, humildade,
posição inferior” (HAUCK & SCHULZ, 1968, p. 647). `änî aponta para alguém que, na
escala social e econômica, é sem propriedades e ganha seu pão por meio de prestar seu
serviço a outros e, portanto, está na posição de sujeição (HAUCK & SCHULZ, 1968, p. 647).
Então o `änî é caracterizado por sua dependência de alguém para sua sobrevivência,
usualmente daquele dono de terras que o acolhia para trabalhar em seus domínios.
Portanto, resposta para aquelas duas perguntas (p. 54) pode ser dada em duas formas. Na
primeira, notando as palavras pelas quais `änäw foi traduzida para a LXX, prau<j, “humilde”,
para os Targumim, !wwn[, “humilde”, !twwn[, “pessoa modesta”, !t’w>n[i, “pessoa modesta”,
pode-se concluir que Números 12,3 apresenta Moisés como alguém que não está na posição
que está por motivo de ambição pessoal, mas por determinação de alguém superior. Em sua
vocação, segundo a narrativa de Êxodo 3-4, ele recusa, até ao fim do diálogo com Deus, a
posição de homem que levaria o povo de Israel do Egito para uma vida de liberdade da casa
339
Das 19 ocorrências dessa palavra, todas são no plural, e uma no singular, justamente a de Números 12,3
(GERSTENBERGER, 2001, p. 242).
136
de escravos, como o Egito é chamado em vários lugares da BH.340
Ele só segue para o Egito
depois que aquela missão lhe é divinamente imposta.
Na segunda forma de responder, a intervenção divina se faz notória pela declaração final
encontrada em Números 12,2 – hw”)hy> [m;Þv.YIw: [wayyišma` yhwh (´ädönäy)], “e ouviu
´ädönäy”, não Moisés.341
“A consequência do ouvir do Senhor é auto entendido e é mais
poderoso pelo silêncio deliberado do texto sobre o assunto que se houvesse sido colocado em
palavras” (MILGROM, 1990, p. 94). É o Deus de Israel quem defende Moisés. Como `änäw
que é, ele não pode responder. Alias, é surpreendente como o texto deixa Moisés
completamente silencioso diante das acusações de Miriam e Arão contra ele, transparecendo
que o redator nota que o silêncio de Moisés o faz igual a um `änî/`änäw, porque, como tal,
outro teria que responder por ele.342
Ou, na linguagem do Deuteronômio, outro iria legislar
por ele e faria com que a justiça fosse feita em seu favor. Moisés é um Ente Silencioso que
precisa que outro fale por ele e o socorra em meio às acusações que comprometem sua
liderança.
Moisés aqui é um änäw. Mas o Deus de Israel, como um líder de um clã e como quem
convocou Moisés para um trabalho “nos seus campos”, vem em defesa de seu protegido. Em
Números 11,10, Moisés ouve o chorar do povo. Mas aqui, o mesmo Moisés se cala, e Deus
ouve o que se diz contra ele. O motivo é que o próprio Deus chama Israel de “minha casa” em
Números 12,7,343
apontando para a posição de Moisés como a de um líder delegado do clã
denominado de Israel. Ele não pode se defender, mas quem o colocou ali pode fazer a sua
defesa. Assim, aquele que está na posição de um `änäw é alguém que também não pode
responder. O `änäw não responde. Por isso ele precisaria de outro que falasse no seu lugar.
340
Nas duas versões dos Dez Mandamentos (Êxodo 20,1-17 e Deuteronômio 5,6-21), o Egito é chamado de “
terra do Egito, da casa da escravidão”, na BJ [~ydI+(b'[] tyBEåîmi ~yIr:ßc.mi #r<a,îme / më´eºrec micraºyim miBBêt
`ábädîm]. 341
Essa construção aparece em Números 11,1 para Deus. Em 11,11 o representante divino, Moisés, é quem ouve
as queixas do povo. Nesses dois casos, como em Números 12, a resposta divina ao seu ouvir da queixa do povo é
ira contra os queixosos, mesmo quando o ouvir tenha sido de seu representante, sugerindo uma espécie de
solidariedade entre o divino e o humano na liderança do povo de Israel. Moisés é o lado humano na liderança de
Israel. 342
Em Deuteronômio, o `änî tem quem fale por ele – o redator ou o Deus de Israel. Interessantemente, o mesmo
acontece no evento de Números 12. Moisés não responde à acusação. O defensor do `änî, o Deus de Israel,
reponde à Miriam e Arão e, por implicação, a todo o Israel. 343
`aWh) !m"ïa/n< ytiÞyBe-lk'B. hv,_mo yDIäb.[; !kEß-al{7, 7lö´-kën `abDî möšè Bükol-Bêtî ne´émän hû´ – “Não [é] assim
meu servo Moisés – ele está sendo fiel em toda minha casa”. A LXX traduz aWh) !m"ïa/n< por pisto,j evstin (“ele é
fiel”). !m"ïa/n< é um particípio nifal, por isso a opção de traduzi-lo por “está sendo fiel”.
137
Não é especificado onde esse evento ocorre no arraial de Israel. Mas o convite divino para os
três é para que eles compareçam no centro de poder da comunidade de Israel no deserto – a
Tenda da Congregação, o tabernáculo onde se encontrava a presença divina em meio a seu
povo. É lá onde ele defende Moisés e toma providencias contra seus acusadores, ou, numa
outra forma de ver, é ali, no tribunal divino, que ele faz justiça ao `änî/`änäw.
Nas narrativas do Pentateuco, em meio a muitas mulheres de personalidade forte, apenas
Miriam resolve questionar a liderança de um homem diante de outros homens e demais
pessoas.344
Mesmo assim, deve-se apontar que a narrativa começa com Miriam falando, e
termina com Miriam em seu período de silêncio, em seu exílio por sete dias (Números 12,1-
15). Se colocada fora do arraial de Israel é ser, temporariamente, excluída da comunidade
onde está a presença divina, a comunidade da bênção, então Miriam parte para seu exílio
temporário, fora da comunidade de Israel para vivenciar seu exílio e sua maldição
temporária.345
Aquela que tratou com desprezo um irmão excluído, agora experimentava
temporariamente sua própria exclusão.346
Uma terceira forma de entender `änäw é aquela que pode ser extraída de Gerstenberger, o
qual, fazendo um trabalho comparativo entre `änî e `änäw, concluiu que houve um
desenvolvimento em que a primeira tem o sentido de “pobre”, e a segunda o sentido de
“humilde, devoto”, principalmente em seu uso plural, mesmo que, para ele, essa distinção não
deva ser estabelecida como fixa (GERSTENBERGER, 2001, p. 242). A ideia de uma pessoa
devota se aplica a Moisés por Deus nas palavras divinas dadas em sua defesa. Deus diz que
Moisés é “fiel em sua casa”. Ele é devotado a Deus no exercício de sua vocação. Essa
devoção é vista em sua completa fidelidade ao seu senhor, o Deus de Israel, o dono da casa,
sobre a qual ele foi colocado como administrador.
344
Parece ter sido um evento público. Assim como a forma divina de solução também foi pública. Obviamente,
havia o objetivo pedagógico para toda a comunidade. 345
O castigo divino sobre Miriam tem alguns pontos a mencionar. Primeiro, o castigo é uma ironia – aquela que
chamava Séfora de cuchita havia de se tornar, forçadamente, muito branca por causa da lepra. Segundo,
intimidade com o Deus de Israel não é para qualquer um. Ele só mantém o diálogo “face a face”, como com
Moisés, com quem ele quer. O castigo divino sobre Miriam era a indicação que, mesmo com quem Deus fala,
pode experimentar o juízo divino e ser afastado de seu povo. Ficar fora da comunidade onde está o Santuário
divino não é bênção, mas maldição. Séfora não era amaldiçoada por sua cor. Mas Miriam foi ao se tornar,
inesperadamente, “branca”. Essa “brancura” era excludente, mostrando que a crítica à cor de Séfora tinha algo de
tenebroso na sua expressão – o questionamento da autoridade divina de decidir para a liderança de seu povo
quem ele quisesse. 346
Nota-se no profeta Miquéias que a missão de liderar o povo de Israel em seu Êxodo até a Terra da Promessa
fora confiada tanto a Moisés como a Arão e Miriam: “Sim, eu te fiz subir da terra do Egito, resgatei-te da casa da
escravidão, e enviei diante de ti Moisés, Arão e Maria” (6,4 [BJ]).
138
Da ideia de devotado vem a de “consagrado”. Há uma frase repetida através do Pentateuco, na
qual é afirmado que os filhos de Israel fizeram o que lhes foi ordenado, conforme tudo o que
Deus tinha ordenado a Moisés e que o próprio Moisés também procedeu assim.347
Essa é uma
maneira de declarar que Moisés precisava falar a Israel o que Deus lhe tinha comunicado. É
uma demonstração de fidelidade extrema ao seu Deus no que ele lhe havia falado.
Uma quarta forma de entender `änäw é pela compreensão da raiz verbal hn[ II que também
tem o sentido de “estar aflito”. Os adjetivos derivados dessa raiz, `änî e `änäw, trazem
também a idéia de aflição de alguma forma. Moisés é um homem humilde porque, mesmo em
meio à aflição em que ele vivia,348
ele ainda se mantinha firme (“fiel” [!m ”ïa/n<]) no propósito de
levar o povo à Terra da Promessa. Liderar um grupo de escravos recém-libertos e
amargurados não foi uma tarefa fácil para Moisés.349
Como Moisés se apresenta em aflição?
Ele expressa isso na seguinte forma: “só falta apedrejar-me” (Êxodo 17,4). Além desse
exemplo, ao longo da trajetória do povo no deserto, basicamente, os livros de Êxodo e
Números carregam, em seu conteúdo, vários conflitos que houveram entre Moisés e o povo
que ele liderava.350
Moisés foi um homem que vivenciou a aflição na liderança de Israel.
Como um Ente Silencioso, Moisés experimentou o sofrimento na liderança de modo calado,
exceto nos momentos que ele fala com Deus sobre eles.
Uma quinta forma de entender a palavra `änäw é vê-la como sinônimo de `änî. O conceito de
“pobre” é muito aplicado à vida profética. Aqui se deve entender “pobre”, não necessitado,
mas pelo lado da vida simples e também pela disposição do profeta de não explorar o povo
em seu benefício próprio.351
Na contenda entre Moisés e o grupo de Corá (Números 16),
347
Aqui estão algumas referências para exemplo: Êxodo 25,9.40; 26,30; 29,35; 36,1; 39,32.42; 40,16. 348
Números 11 está carregado de exemplos de sofrimento que Moisés está experimentando com o povo, onde
recebem como retorno a ira divina e a de Moisés também. Porém, Moisés demonstra muita paciência com o
povo sob sua liderança. 349
Notar também as queixas de Moisés a Deus pela dificuldade de liderar o povo no deserto (Números
11,11.14.15). Nessas queixas, Moisés parece demonstrar sua vulnerabilidade e dificuldade para atender as
necessidades do povo. Assim, Deus, como o Grande Líder de Israel, precisava conhecer das dificuldades que
Moisés tinha para realizar seu papel de representante divino no meio do povo no deserto. 350
Os que são alistados aqui são aqueles que foram muito marcantes para a liderança de Moisés. Além do evento
de conflito entre os irmãos (Números 12,1-3), há também o evento do bezerro de ouro (Êxodo 32) onde Arão
mostra toda a fragilidade de sua liderança, o conflito com o grupo de Corá (Números 16), e aquele que culminou
na proibição divina de entrada na Terra da Promessa tanto de Moisés como de Arão (Números 20). 351
Ao que parece, alguns dos profetas de Israel buscavam manter uma vida simples, reivindicando para si uma
aura de dependência de seu próprio trabalho para poder viver e, por implicação, a ideia que a sua dependência
estava aos cuidados do Deus que os convocara para ser seu porta-voz. Em Amós 7,14, o profeta diz que sua
“profissão” é ser “boieiro e colhedor de sicômoros”. Ele não dependia da ajuda de outros muito menos do rei de
Israel, como faziam os profetas da corte. Havia um grupo de profetas que buscava manter todo tipo de
independência do Estado para sua sobrevivência (Elias em 1 Reis 18,19). Parece que a atitude de não se
139
Moisés é acusado de querer se fazer príncipe do povo de Israel no deserto (16,12-14). A
resposta de Moises foi: “E disse para yhwh (´ädönäy): Que tu não favoreças a oferta deles.
(porque) Não carreguei um jumento deles, e nem fui mal a um (só) deles”.352
Moisés mostra
que sua liderança sobre o povo não foi coercitiva nem com interesses ocultos. Sua colocação
diante de Deus mostra que, se ele possui alguma coisa, ele a possui por seu próprio esforço, e
que a acusação feita a ele demonstra ser, por si só, uma acusação falsa. A administração de
Moisés é justa e transparente.
Mas há um detalhe a demonstrar sobre Moisés – nunca é dito, em todo o Pentateuco, que ele
possuísse alguma propriedade. Parece que sua única propriedade pessoal tenha sido o seu
cajado por meio do qual ele realizou muitos dos sinais estampados no Pentateuco. Apenas
para destacar outro exemplo de grande profeta, Samuel, quando de sua prestação de contas
diante do povo de Israel e do seu primeiro, Saul, pede que qualquer um do povo pudesse falar
contra a sua lisura na liderança dos israelitas,353
obtendo como resposta que Samuel havia sido
íntegro nas suas ações. De Samuel é dito que ele tinha uma casa (1 Samuel 7,17). Mas de
Moisés se diz que tinha apenas uma tenda (Números 3,38), além do cajado mencionado
acima.
Com isso, pode-se apontar Moisés como um modelo de serviço profético – sem riqueza, e
uma vida simples. Além do mais, pode-se dizer, pelas diferentes formas de ver a palavra
`änäw, que Moisés era um líder completo do ponto de vista da piedade. Isso também indicava
que ele nunca usou a sua posição em benefício próprio, incluindo aí benefícios para sua
aproveitar de circunstâncias favoráveis para buscar benefício próprio fazia parte de uma decisão pessoal dos
grandes líderes do Israel antigo. Mesmo que Abraão seja considerado pela narrativa do Gênesis como um
homem muito rico (13,2), ele optou por desprezar os despojos de guerra dos reis de Sodoma e Gomorra e seus
aliados para que não fosse dito que ele havia sido enriquecido por aqueles despojos (Gênesis 15). Davi disse que
não apresentaria sacrifício que não lhe custasse nada (1 Crônicas 21,24). 352
[`~h,(me dx;îa;-ta, yti[oßrEh] al{ïw> ytiaf'ên" ‘~h,me dx'Ûa, rAm’x] al{û ~t'_x'n>mi-la, !p,TeÞ-la; hw"ëhy>-la, ‘rm,aYO’w: /
wayyöº´mer ´el-yhwh(´ädönäy) ´al-Tëºpen ´el-minHätäm lö´ Hámôr ´eHäd mëhem näSäº́ tî wülö´ hárë`öºtî ´et-
´aHad mëhem]. O restante da narrativa demonstra que Moisés foi atendido nesse pedido a Deus, mostrando a
aprovação divina a Moisés. 353
A defesa de Samuel diante do povo de Israel e do primeiro rei, Saul, é bem completa, e a resposta do povo
favorece a integridade de Samuel. Note a citação da BJ: “Aqui estou. Deponde contra mim diante de Iahweh e do
seu ungido: de quem tomei o boi e de quem tomei o jumento? A quem explorei e a quem oprimi? Da mão de
quem recebi compensação para que fechasse os olhos diante do seu caso? Eu vos restituirei. Eles, porém,
disseram: Tu não nos exploraste, nem nos oprimiste e de ninguém tiraste coisa alguma. Ele lhes disse: Iahweh é
testemunha contra vós, e o seu ungido é hoje testemunha de que nada achastes em meu poder. E o povo disse:
Ele é testemunha” (1 Samuel 12,3-5). Mas há uma diferença crucial entre Moisés e Samuel. Os filhos de Samuel
foram acusados de ganho desonesto (1 Samuel 8,1-5). Nesse aspecto, nada é dito dos filhos de Moisés. Os filhos
de Moisés parecem ter sido homens íntegros.
140
família. Ele era, portanto, o líder ideal.354
Moisés era um `änäw, apesar das funções que ele
desempenhava no meio de Israel. No exercício de sua liderança, Moisés desempenhava as
funções de sacerdote, profeta e rei. Ele, desse modo, era o profeta ideal. Somente um homem
`änäw, em seu significado pleno, poderia ser o que Moisés era e fazer o que ele fazia sem
orgulho e autopromoção sobre o povo.355
Em tudo isso um ponto se faz notar – o ´ebyôn e o`änî ou `änäw são356
membros de uma
sociedade com a qual eles mantêm algum tipo de relacionamento. Eles não são indivíduos
isolados. Para Gerstenberger, “o`änî nunca é um indivíduo isolado, mas um representante de
um estrato social. Os `anîym e `anäwîm são sinônimos com os privados e vulneráveis
econômica e socialmente; eles são idênticos aos Dallîm, ´ebyônîm, e räšîm”
(GERSTENBERGER, 2001, p. 244).357
Moisés é colocado entre eles. Ele é o modelo ideal de
`änî ou `änäw. Em sua identificação como um `änäw, Moisés é identificado com as camadas
mais carentes da sociedade israelita, onde estão o ´ebyôn e o`änî. Essa identificação com os
que sofrem deveria fazer parte do papel profético, bem como do rei e do sacerdote.
Em sua identificação com o ´ebyôn e o`änî, Moisés esteve na porta da justiça, diante de Deus,
para que sua causa fosse julgada, mas a convite do próprio Deus, não por seu espírito de
preservação. Um julgamento de uma questão existente entre Moisés, um !joq', e Miriam e
Arão, os “~ylidoG>”, fazendo de Moisés um protótipo de tantos ~ynIjoÝq. que haveriam de ir ao
portão de suas comunidades buscarem justiça ao longo da história seguinte do Israel bíblico.
Como síntese do capítulo, deve-se notar que as palavras `änî e ´ebyôn são palavras usadas,
dentro do Deuteronômio, para homens que tem se tornado empobrecidos e que, devido a sua
nova condição, precisam de ajuda de seu irmão, o Ba`al. No Deuteronômio, elas não são
354
Deuteronômio 18,15.18 torna Moisés o protótipo do profeta ideal, ao anunciar que seria levantado em Israel
outro profeta ideal e que esse seria semelhante a Moisés. Assim como Moisés falava as palavras divinas que
Deus lhe dava, o profeta ideal vindouro também teria as palavras divinas em sua boca. 355
Keil e Delitzsch comentam que “esta marca do caráter de Moisés serve para introduzir o ponto de vista da
pessoa atacada, e assinala a razão porque Moisés não somente absteve-se de qualquer autodefesa, mas também
não clamou a Deus por vingança pela injúria que tinha sido feita a ele” (p. 811). O homem que se calou diante da
acusação dos irmãos só podia esperar que quem o chamou pudesse vir em sua defesa e falar por ele. Como Ente
Silencioso ele se cala, Deus não. Em Deuteronômio Deus fala pelos Entes Silenciosos ao tu/vós, e para esses
estabelece a sua vontade em relação aqueles. Acudir os Entes Silenciosos é obedecer á voz de Deus e imitá-lo. 356
Martin-Achard diz que o significado `änäw não é tão distinto de `änî: “pobre, inferior, sofrido, pequeno, e
humilde” (MARTIN-ACHARD, 1985, p. 441). 357
Notar alguns lugares onde `änäw aparece em paralelo com outras palavras para designar um “pobre” (Isaías
11, 4 [~ywIn"[] / ~yLiêD:]; 29,19 [~ywIn"[] / ~ynIAyb.a,]; 32.7 [~ywIn"[] / !IAyb.a,]; Amós 2,7 [~ywIn"[] / ~yLiêD:]).
141
usadas para designar os outros membros dos Entes Silenciosos e nem aparecem relacionados
com eles. Dentro de Deuteronômio, o `änî e ´ebyôn tem alguma propriedade, é livre, mesmo
que ele venha a se vender como escravo, e que pode chegar à pobreza extrema, onde ele tem
apenas uma capa como objeto de valor e suficiente para servir de garantia de um empréstimo.
Isso demonstra que os Entes Silenciosos chamados de `änî e ´ebyôn são um grupo específico,
distinto dos outros grupos de Entes Silenciosos. Até porque essas palavras apontam
especificamente para um israelita. Por isso que elas não designam os outros membros dos
outros grupos, pois uma ´almänâ poderia ser uma mulher estrangeira que se casou com um
israelita. Também não seria um Gër, pois o `änî e o ´ebyôn dentro do Deuteronômio apontam
para um israelita nativo. O yätôm seria aquele que perdera o seu pai e todo seu elo com seu
clã. Já o lëwî pertencia a uma tribo específica de Israel. O `ebed e a ´ämâ apontavam para
um israelita e uma israelita ou não, pois essas palavras também designavam um escravo e uma
escrava adquiridos de outras terras.
A compararação com a Septuaginta e os Targumim também aponta na direção de o `änî e o
´ebyôn indicarem um homem empobrecido. O texto que, em Deuteronômio, aproximou o `änî
e ´ebyôn dos outros Entes Silenciosos foi 1,6.17. A palavra presente nesse texto é qä†ön que,
por meio de análise comparativa, notou-se que ela se refere ao `änî e ´ebyôn, por meio do däl.
Porém, o qä†ön não é o único beneficiário da ordenança nesse texto. O outro beneficiário é o
Gër. Essa palavra, no entanto, não está em paralelo com qä†ön. qä†ön está em paralelo com
´äh, “irmão”, assim como Gädöl pode ser identificado com o ´îš do versículo anterior. O texto
pressupõe que Gër poderia entrar na justiça contra um israelita, caso seus direitos de
estrangeiro residente houvessem sido violados.
Seguiu-se com um exemplo de figura importante que se calou quando, por sua posição, ele
poderia se defender e até reagir contra. Sua identificação com os Entes Silenciosos do grupo
`änî e ´ebyôn se deu por meio de um vocábulo que é traduzido por “manso/humilde”.
Assim, o que se viu foi a capacidade que alguns homens, na BH, tinham de se identificar com
as camadas mais fragilizadas da comunidade. Mesmo que sejam identificados alguns deles,
142
um foi tratado com mais detalhe devido a sua importância para a comunidade de Israel, e para
toda a BH. Esse foi Moisés.358
Portanto, `änî e ´ebyôn apontam para um grupo específico de pessoas dentro de
Deuteronômio, notadamente de homens que têm se tornado pobres e precisam de ajuda do
próximo/irmão deles.
358
A colocação de Moisés como um `änäw tem a ver com o entendimento que ele se identifica com os
fragilizados diante da opressão do mais forte. Entretanto, änäw é uma palavra que tem relacionamento próximo
com `änî, pois pertence à mesma raiz.
143
3. OS ENTES SILENCIOSOS EM BLOCO
Os quatro membros deste bloco de Entes Silenciosos [´almänâ, yätôm, Gër e lëwî]
normalmente aparecem juntos dentro do livro de Deuteronômio.359
Essa é a razão para eles
serem colocados juntos neste capítulo. Na página seguinte está um quadro comparativo para
demonstrar as ocorrências deles dentro dos mesmos textos dentro do livro. Dos quatro
membros deste grupo, os únicos que aparecem no grupo e isoladamente são Gër e lëwî. Por
outro lado, deve-se notar que a dupla ´almänâ e yätôm não aparece sozinha, como costuma
acontecer nos profetas.360
Como característica dos Entes Silenciosos tratados sob os vocábulos relacionados com a
pobreza, os que serão tratados neste bloco também são notados por sua solidão, mesmo que,
como visto no quadro seguinte, eles aparecem quase sempre juntos, numa indicação de
formação de um grupo social específico dentro da sociedade deuteronômica.
359
O quadro comparativo, na próxima página, visa salientar as ocorrências dos elementos em conjunto, não
apresenta a ocorrência desses elementos com outros membros dos outros dois grupos constituintes dos Entes
Silenciosos. Apenas para constar, em Deuteronômio 16,11.14 o conjunto ´almänâ, Gër, yätôm, lëwî aparece
junto com ‘ebed e ’amah; em 24,14, Gër aparece ao lado de ´ebyôn e `änî; em 12,12.18, lëwî está ao lado de
‘ebed e ’amah. 360
Notar para o exemplo Isaías 1,17.23.
144
Vocábulos Deuteronômio 1-11 Deuteronômio 12-26 Deuteronômio 27-
34
hn"+m'l.a;,
´almänâ, rGe,
Gër, ~wOty",
yätôm, ywIle, lëwî
14,29; 16,11.14;
26,12.13
hn"+m'l.a;,
´almänâ, ~wOty",
yätôm
rGe, Gër 1,16; 5,14; 10,19 14,21; 23,8; 24,14 28,43; 31,12
hn"+m'l.a;,
´almänâ, rGe,
Gër, ~wOty",
yätôm
10,18 24,17.19.20.21 27,19
rGe, Gër, ywIle,
lëwî
26,11
ywIle, lëwî 12,12.18.19; 14,27;
18,1.6.7; 21,5
27,9.14; 31,9.25;
33,8
Algumas observações podem ser apontadas aqui da perspectiva da ordem de aparição desses
Entes Silenciosos. Em primeiro lugar, a hn"m'l.a; é a única mulher que aparece nas listas de
aparição dos quatro e, especificamente, dentro do bloco literário chamado de Código
Deuteronômico. Segundo, a ordem usual, quando os quatro estão juntos é a seguinte: ywIle, rGe,
145
~wOty",e hn"+m'l.a; (Deuteronômio 14,29; 16,11.14; 26,12.13). Uma razão possível é a colocação
do homem antes da mulher, comum em sociedade patriarcal. Porém, é possível também que
essa ordem não esteja estabelecida por questões de gênero, mas porque elas já estavam
prontas e dessa forma era que elas eram entendidas pelos seus ouvintes. Era uma ordem já
estabelecida e o redator não a quis alterar.
Teceiro, quando o ywIle está ausente, a ordem pode ser trocada, mas segue com um homem em
primeiro lugar: ~wOty", hn"+m'l.a;, e rGe (Deuteronômio 10,18) ou rGe, ~wOty", e hn"+m'l.a; (Deuteronômio
24,17.19.20.21; 27.19). O detalhe a pontuar é a presença de dois textos fora do Código
Deuteronômico (10,18; 27,19). Em quarto lugar, há um texto onde aparecem apenas o ywIle e o
rGe (26,11).
Como última observação, há textos dentro de Deuteronîmio em que o rGe aparece sozinho
(1,16; 5,14; 10,19; 14,21; 23,8; 24,14; 28,43; 31,12), e isso nas três divisões maiores do livro.
O ywIle também aparece separado de seus compnheiros de “residência temporária” [rAgm'], mas
somente no Código Deuteronômico e na última divisão do livro (12,12.18.19; 14,27; 18,1.6.7;
21,5; 27,9.14; 31,9.25; 33,8).
O que esses quatro Entes Silenciosos têm em comum é o seu desenraizamento, falta de
proteção e consequente facilidade de serem oprimidos sem que haja quem os socorra. Desse
ângulo, o livro de Deuteronômio é um avanço com uma legislação que os proteje e também
provê meios de sustentá-los.
3.1. O Ente Silencioso desprovido do amparo do cônjuge e filhos: a viúva [hn"m'l.a;,
´almänâ]
Vocábulo Deuteronômio 1-11 Deuteronômio 12-26 Deuteronômio 27-34
hn"+m'l.a;,
´almänâ
10,18 14.29; 16,11.14;
24,17.19.20.21;
26,12.13
27,19
146
3.1.1. Algumas observações iniciais
Pelo quadro anterior, nota-se que a palavra hn"m'l.a; [´almänâ] ocorre nos três blocos
principais de literatura do livro de Deuteronômio. Porém, seu maior índice de ocorrência está
em Deuteronômio 12 a 26. Juntamente com a ´ämâ, ela integra o gênero feminino dentro do
grupo denominado por esta pesquisa de Entes Silenciosos, aparecendo em um mesmo
versículo somente em Deuteronômio 16,11 e 14. Comumente, porém, seus companheiros de
aparição são o órfão e o estrangeiro em 10,18; 24,19.20.21, sendo que o levita é acrescentado
ao grupo em 14,29; 16,11.14 e 26,12.13. Já se pode perceber com isso que ela nunca está só
em sua aparição dentro do livro. As companhias da ´almänâ, porém, precisam de ajuda tanto
quanto ela, e a legislação que alcança um alcança os outros membros desse grupo também.
Significativamente, pode-se afirmar que a palavra ´almänâ é um substantivo feminino e é
sempre assim que ela aparece dentro da BH. Com isso, afirma-se que não há uma ocorrência
de um substantivo masculino que designe um homem como “viúvo”361
dentro dos livros da
BH. A condição de “viuvez” é tipicamente feminina. Como a palavra ´almänâ é um
substantivo, ela designa a própria pessoa e assim a mulher chamada de ´almänâ passa a ser
nomeada pela condição em que ela se encontra. Desse modo, ela passaria a ser chamada de
´almänâ dentro de sua comunidade e como tal ela seria reconhecida ali.
Assim, sua condição de viúva também seria seu nome a partir da perda de seu marido. Ela
seria apenas designada de ´almänâ na sua comunidade. Ao menos, com o marido vivo, ela
seria reconhecida por ser a “mulher de”. Ao ser reconhecida na comunidade como ´almänâ,
ela ainda seria tratada pelo nome de seu marido, só que ele agora é morto e, por isso, ela é “a
viúva de”.
361
Entretanto, a palavra !m'’l.a; [´almän], “viúvo”, aparece uma vez na BH, em Jeremias 51,5, mas não em
referência a um homem. No livro de Jeremias, porém, a palavra ´almän está apontando para Israel e Judá, como
se o Deus de Israel estivesse morrido para seu povo e, Israel e Judá, como uma nação unificada, seu povo, se
tornou ´almän. Note a tradução para proposta para Jeremias 51,5: “Porque não (é) viúvo, Israel e Judá, de seu
Deus, de yhwh dos Exércitos...” [tAa+b'c. hw"ßhy>mE) wyh'êl{a/me( ‘hd"WhywI) laeÛr"f.yI !m'’l.a;-al{) yKiû, Kî lö|´-´almän
yiSrä´ël wî|hûdâ më|´élöhäyw myhwh(më|´dönäy) cübä´ôt]. Provavelmente, o adjetivo masculino foi usado no
singular por causa de uma referência à nação unificada – daí o sentido de povo. O qual primariamente designa o
nome de um dos filhos de Jacó, e a quem Jeremias profetizava diretamente, ou uma referência ao conjunto do
povo de Deus na BH, o Israel e Judá unificados em um só povo, o povo de Israel. Deus não morreu e ainda
considera Israel e Judá como uma nação unificada. Poderíamos olhar de outra ótica – Israel e Judá tentaram
matar seu Deus, mas ele não morreu. A BJ traduz Jeremias 51,5 assim: “porque Israel e Judá não são viúvas...”.
147
Essa forma de apresentação está bem enunciada em Rute 4,5, quando Boaz, ao negociar com
outro sobre o resgate da propriedade de Noemi, ele diz para aquele que ele também comprará
a propriedade de Rute, “a mulher do morto”.362
Em 1 Reis 17,10, a mulher que sustentaria em
sua casa Elias é chamada de “mulher viúva” (hn"ßm'l.a; hV'îai [´iššâ ´almänâ]),363
sendo que
em 17,20 ela é chamada de ´almänâ, apenas. Portanto, “ao que tudo indica, elas eram uma
categoria única em Israel de acordo com a legislação de Deus...” (SCOTT, 1980, p. 47).
Assim sendo, a ´almänâ era chamada de ´iššâ ´almänâ por causa da categoria a qual ela
pertencia – viúva.
A condição deste tipo de Ente Silencioso é duplamente desfavorável. Primeiro por haver
perdido o marido, sua principal fonte de amparo. Em um ambiente dado a guerras e lutas pela
posse da terra, não seria tão incomum uma viúva dentro da comunidade.364
Mesmo assim,
deveria ser desesperador para a mulher se imaginar viúva em um ambiente tipicamente
masculino e hostil a ela.
Segundo, ela também goza de condição desfavorável por ser mulher. A mulher é usualmente
anônima. Ela não tem voz. A mulher do grupo de Entes Silenciosos é duplamente sem voz –
por ser mulher e, além disso, ser ´almänâ, uma viúva. Assim, a mulher a ser tratada nesta
pesquisa aparece como viúva, mas uma viúva desprovida de recursos que pudessem compor a
herança do marido falecido,365
ou desprovida de filhos em condição de suprir-lhe as
necessidades básicas.
362
tMeh;-tv,ae( hY"Übia]AMh; tWrå (Rute 4,5 - rût hammô´ábiyyâ ´ë|šet-hammët), “Rute, a moabita, mulher do
morto”. O qal particípio usado para qualificar o marido já falecido de Rute, “aquele que morreu”, pode ser uma
alternativa de tradução. A Septuaginta traduziu assim: Rouq th/j Mwabi,tidoj gunaiko.j tou/ teqnhko,toj, “Rute, a
moabita, mulher do que tem morrido (ou está morto)”. O particípio perfeito, teqnhko,toj, aponta para o evento
passado e seus efeitos no presente da redação do texto. Malom, esposo falecido de Rute (4.10), é alguém que
“tem morrido e permanece morto”. 363
Considerar outros exemplos desta construção, ´iššâ ´almänâ, em 2 Samuel 14,5; 1 Reis7,14; 11,26. A idéia
de pertença ao marido acompanha a mulher mesmo depois dele ser morto. Deve ser notada a construção “mulher
de Jeroboão” em 1 Reis 14,6. A mulher que casa é mulher de alguém, seja ele vivo ou morto. 364
Outro motivo para o empobrecimento da mulher era o repúdio. Notar um exemplo de 1 Crônicas 8,8, onde
duas mulheres são repudiadas, aparentemente de uma vez. Os motivos não são apresentados para ação tão
drástica. 365
É possível que houvesse viúvas ricas dentro do povo de Israel a quem o livro de Deuteronômio se dirige. Mas
esta pesquisa não está preocupada com elas. Pois se estas viúvas possuem recursos e meios para sua manutenção,
o legislador não teria preocupação em colocar determinados dispositivos legais que viessem em auxílio de tais
mulheres.
148
Por outro lado, ser chamada de “viúva de” tem o seu valor social. A mulher identificada pelo
marido morto trazia à memória366
o nome de seu esposo e, por causa dele, ela devia ser
respeitada. Esse respeito pode ocorrer pelo levirato, como acontece no livro de Rute, onde
Boaz a assume como esposa com o fim de trazer o nome do morto sobre a sua herança por
meio do primeiro filho que viria a nascer na relação de Boaz com Rute. Nas palavras do
próprio Boaz, “... adquiro por mulher Rute, a moabita, viúva de Maalon, para perpetuar o
nome do falecido sobre sua herança e para que o nome do falecido não desapareça do meio de
seus irmãos nem da porta da cidade” (BJ).
Mas nem todo parente próximo poderia assumir a viúva de seu irmão. No livro de Rute, o
parente mais próximo e a quem cabia o resgate da propriedade de Rute e Noemi, em primeira
instância, recusou assumir esse direito porque ele não queria prejudicar a sua família (Rute
4,6). Isso implica que a aplicação da lei do levirato tinha seus limites e que a mulher viúva, e
sem filhos, não tinha a garantia que ela seria redimida da condição de viúva.
Entretanto, em Deuteronômio, a viúva aparece sempre denominada pela palavra “viúva” e
sem referência a um marido. O marido é subentendido porque ela é chamada de “viúva”.
Porém, nunca ela aparece como “viúva de”. Enquanto que “viúva de” identificava a mulher
com alguém conhecido da comunidade, em Deuteronômio a hn"m'l.a; é completamente
desenraizada e sem identificação com a comunidade em que vive por meio do morto.
A hn"m'l.a;, em Deuteronômio, é aquela que perdeu o marido e não tem condições de
suprimento de suas necessidades diárias. Ela também não tem um clã para servir-lhe de
amparo, provavelmente por causa da ausência de filhos – a ausência de filhos pode indicar
esterilidade, algo impensável para alguém de quem se esperava descendência para o marido e
crescimento do clã. Portanto, se ela já seria desprezada pela condição de viúva, muito mais
ainda pela condição de ser sem filhos, fato cruel para qualquer mulher naquela cultura.
Para Chwarts, diante do grande apelo bíblico pela defesa de uma viúva sem filhos, há a
indicação que “este ser social não era reabsorvido na casa do pai e na sociedade em geral”
(2004, p. 223). Os motivos para isso, apresentados por Chwarts, são dois. Primeiro, “o fator
366
O livro de Deuteronômio tem clara determinação de preservar a memória dos eventos passados. Os capítulos
1 a 4 mostram, não somente os caminhos tomados pelo povo depois de sua saída do Egito, como a recordação de
determinados eventos marcantes nalguns desses lugares. Além disso, as Confissões presentes em 6,20-25 e 26,1-
11 mostram o grande interesse que Êxodo fosse mantido na memória como parte da história de Israel e sua
importância para o presente das gerações seguintes de israelitas.
149
distância física era um empecilho para o retorno à casa paterna”, e, em segundo lugar, o valor
do indivíduo estava no “seu desempenho sociobiológico – logo, de sua produtividade” (2004,
p. 223).
É com esse tipo de pessoa, a viúva sem filhos e sem clã, que a legislação em Deuteronômio
irá se preocupar para prover bases legais com o fim de sua proteção, amparo, e para dar
alguma dignidade à vida da ´almänâ. Mesmo que a viúva estivesse longe de seu amparo
familiar, as comunidades, no meio das quais ela vivia, não podiam omitir seu auxílio a ela.
3.1.2. Elementos filológicos
3.1.2.1. A etimologia de hn"m'l.a; (´almänâ)
Originalmente, a palavra ´almänâ parece ter sido empregada como um adjetivo, não como
um substantivo, tendo em vista a construção comum composta pela palavra mulher e viúva,
assim “mulher viúva” (´ishshâ ´almänâ).367
Na maioria das línguas semíticas antigas
apresentam as consoantes ’lmn. Elas estão presentes no Hebraico (´almänâ), no Acádio
(’almattum, almattu), no Ugarítico (’almanatu), no Fenício (’almant) e, provavelmente, no
Árabe (’armalatun).368
Nessas línguas “o termo crucial é um adjetivo, e frequentemente o
substantivo ‘mulher’ aparece com ele” (HOFFNER, 1974, p. 288).
Para Kühlewein, porém, não se pode ter certeza quanto à etimologia de ´almänâ (1978, p.
265). Essa seja a razão provável de não se dar um sentido claro para a raiz ’lmn, (HOFFNER,
1974, p. 287-288) sendo apenas indicado como raiz provável.369
Desse modo, pode-se observar
que a palavra que era empregada para qualificar uma mulher, após a morte de seu marido.
Passou a ser a palavra que veio a nomeá-la, substituindo seu nome dentro de sua comunidade.
367
Dentro da BH, esta construção, “mulher viúva” [hn"ßm'l.a; hV'îai, ´iššâ ´almänâ], aparece em 1 Reis 17,9.10.
No Salmo 109,9 encontra-se o seguinte: “E serão seus filhos órfãos, e sua mulher, viúva” [ )yi|hyû-bänäyw
yütômîm wü´išTô ´almänâ / `hn")m'l.a; ATv.aiw>÷ ~ymi_Aty> wyn"ïb'-Wyh.yI]. Nestes três casos, a palavra almänâ está
sendo empregada para qualificar o substantivo ´iššâ. Portanto, seu uso aqui é adjetivo, mesmo que ela ainda seja
um substantivo, mas sendo usado como adjetivo. 368
HOFFNER, 1974, p. 287-288. Em Acádio, lmn venha de lemnu, “pobre’” como uma possibilidade
(HOFFNER, 1974, p. 288). 369
No mundo sumério-acádio, a ’almattu não apontava para uma mulher que houvesse perdido o marido, mas
para uma mulher que, mesmo casada, não desfrutava de suporte financeiro de um membro masculino do seu clã,
seja ele marido, filhos crescidos ou mesmo seu sogro (HOFFNER, 1974, p. 288). Em Deuteronômio, porém, a
viúva é aquela mulher que perdeu o marido por meio da morte dele, e, por causa disso, está completamente
desamparada.
150
3.1.2.2. Comparação com o Targum
A palavra usada para traduzir ´almänâ para o Aramaico é al'm.ra; (Deuteronômio 10,18;
27,19), at'lm;ra; (Deuteronômio 14,29; 16,11.14; 24,19.20.21; 26,12.13). O significado
básico destas palavras aramaicas é “viúva” e vêm da palavra hlmra [´rmlh], a qual também é
um substantivo (HHL-BW7). Dentro da BH, nenhuma destas palavras aparece nas porções
textuais aramaicas.
3.1.2.3. Comparação com a Septuaginta
A palavra usada para traduzir o Hebraico ´almänâ para o Grego da Septuaginta foi ch,ra,
“viúva”, em todas as ocorrências da palavra ´almänâ em Deuteronômio.370
Como o vocábulo
´almänâ no texto Hebraico, no Grego, ch,ra também é um substantivo. Em seu significado
antigo, ch,ra indicava “uma mulher deixada sem marido” (STÄHLIN, 1974, p. 440). Disso
resultou que “ch,ra pode significar não somente uma ‘viúva’, mas também ‘uma mulher
vivendo sem marido’” (STÄHLIN, 1974, p. 440), em seu sentido original.
3.1.3. Uma ´iššâ ´almänâ, em meio aos Entes Silenciosos
O que caracteriza a ´almänâ dentro do livro de Deuteronômio?
3.1.3.1. Em todas as ocorrências de ´almänâ, em suas versões em Aramaico e
Grego, as palavras empregadas são também substantivos: a ´almänâ
nomeia a mulher.
Isso contribui para reafirmar que mulher que enviuvava perdia a nome dentro da comunidade,
e passava a ser reconhecida por sua condição de mulher que perdera o marido. A motivação
para isso está no marido morto. Diante daquela comunidade, esta mulher seria reconhecida
como alguém que havia sido casada, porém, com a perda do marido, ela poderia ser
desposada por outro homem, tendo também o direito de ter filhos por meio do levirato.
Entretanto, a ´almänâ que é tratada dentro de Deuteronômio não parece ter esperança de vida
melhor, a não ser esperar o apoio da comunidade em meio da qual vivia.
370
Nos demais livros da BH, a palavra ch,ra também é empregada para traduzir ´almänâ.
151
3.1.3.2. Em Deuteronômio, a ´almänâ aparece sempre sozinha – sem filhos,
sem família e sem marido.
Esse é um problema sério para o qual Deuteronômio tenta uma solução. A solidão indica que
ela perdeu qualquer tipo de amparo que um clã poderia lhe conferir. Além disso, ela também
perdeu a identidade familiar. Ela passa a vagar sem um lugar do qual dependa sua
sobrevivência. Esta preocupação com a ´almänâ em estado de solidão é também uma
preocupação presente em outros escritos da BH. Mas em Deuteronômio há uma legislação
que a proteja e a ajude a receber algum tipo de proteção em meio à sua vulnerabilidade.
A solidão também implica que ela não tem o status de mãe. Ela não procriou. Mesmo que se
pense que um filho expulse sua mãe de seu clã, mas isso não seria o usual, e um filho com
essa natureza não seria bem aceito dentro da comunidade em que vivesse. Por isso, é melhor
pensar que a ´almänâ em questão é alguém que “falhou” no cumprimento de seu principal
papel dentro de um clã – a procriação.
Assim, a solidão dela se dá também pela ausência de procriação. Nessa circunstância, ela já
teria provado que não teria condição de procriar e, por este motivo, também estaria fora dos
propósitos do clã de seu marido, e também impossibilitada de obter atenção de outro homem
para um casamento. Se ela não pode gerar, ela também pode não ter boa opção para outro
casamento.
Por um lado, como dito acima, a ´almänâ apresentava-se sempre solitariamente, por outro,
ele está habitualmente na companhia de outros Entes Silenciosos – o órfão e o estrangeiro.
Um motivo para isso era a condição que o órfão e a viúva tinham em comum, a ausência de
família, ou clã, com quem se relacionar. O outro é o pacto de sofrimento que os unia.
Juntamente com o estrangeiro e o levita, eles faziam parte do grupo de pessoas que não eram
escravos e tinham alguma liberdade para ir e vir, mas sofriam pela falta de um clã que lhes
desse a proteção.
3.1.3.3. A ´almänâ é produto de tempos de dificuldades econômicas.
Normalmente, a presença de órfão e viúva dentro de uma comunidade salientava dificuldades
criadas pela guerra. Esta era um dos principais fatores que levava à desestruturação da
família. A morte do marido e filhos numa guerra trazia grandes dificuldades para a mulher
152
recém-enviuvada. Ela poderia ser morta pelos conquistadores, ser vendida como escrava, ou
largada à própria sorte. A mulher solteira e virgem levava grande vantagem nessa situação em
que ela poderia servir a um senhor e até se casar com um de seus conquistadores.371
Partindo do pressuposto que Deuteronômio teve suas origens dentro do Reino do Norte,372
então há todo sentido de notar a preocupação com a viúva. O Reino do Norte sempre esteve
envolvido, em toda a sua existência, com alguma guerra. Certamente que o prolongamento
desses combates levou clãs inteiros à desestruturação familiar e a perda de qualquer tipo de
organização. As constantes necessidades de defesa do Reino levavam também a constantes
necessidades de mão-de-obra para a manutenção das guerras. Tal situação gerava pobreza e
muitas viúvas.
Em Deuteronômio não há uma legislação que proíba a expulsão de viúva do clã. Entretanto, o
Código de Hamurabi373
legislou contra essa possibilidade. Esse Código,374
no parágrafo 172,
diz assim:
Se seu marido não lhe deu presentes de casamento, eles (os filhos) devem
fazer um bom dote a ela e ela deve receber dos bens de seu marido uma
porção correspondente a um herdeiro individual. Se seus filhos a
atormentarem com o fim de a fazerem deixar a casa, os juízes devem
investigar seu caso e colocar a culpa sobre os filhos, de modo que a mulher
nunca precise deixar a casa de seu marido. Se essa mulher tem em mente a
ideia de sair, ela deve deixar para seus filhos o presente de casamento que
seu marido lhe deu, mas tomará o dote da casa de seu pai a fim de que o
homem de sua escolha pudesse casar com ela (MEEK, 1973, p. 157-158).
371
Notar as ordenanças atribuídas a Moisés em Números 31 e Deuteronômio 21,10-14. 372
Notar Sanchez em seu comentário ao Deuteronômio, p. 19-20. 373
“Hamurabi foi o sexto de onze reis da Dinastia da Antiga Babilônia. Ele governou por 43 anos, de 1728 a
1686, conforme aos mais recentes cálculos” (MEEK, 1973, p. 138). A promulgação do Código de Hamurabi se
deu em seu segundo ano de reinado. Segundo Meek, “a data-fórmula para seu segundo ano, ‘O ano que ele
promulgou a lei da terra’, indica que ele promulgou seu famoso código legal bem no começo de seu reinado”
(1973, p. 138). Entretanto, o próprio Meek destaca que o prólogo da cópia disponível para a tradução aponta para
eventos mais tardios em seu reinado. 374
“Muitas das provisões do código referem-se às três classes sociais: a do awelum (“filho do homem"), ou seja,
a classe mais alta, dos homens livres, que era merecedora de maiores compensações por injúrias – retaliações –
mas que por outro lado arcava com as multas mais pesadas por ofensas; no estágio imediatamente inferior, a
classe do mushkenum, cidadão livre mas de menor status e obrigações mais leves; por último, a classe do
wardum, escravo marcado que, no entanto, podia ter propriedade. O código referia-se também ao comércio (no
qual o caixeiro viajante ocupava lugar importante), à família (inclusive o divórcio, o pátrio poder, a adoção, o
adultério, o incesto), ao trabalho (precursor do salário mínimo, das categorias profissionais, das leis trabalhistas),
à propriedade” (“O Código de Hamurabi” IN: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm). Meek
(1973), em uma nota na p. 139, diz que o termo awelum “parece ser usado ao menos em três sentidos: (1)
algumas vezes indica um homem da classe mais alta, um nobre; (2) algumas vezes um homem livre de qualquer
classe, alta ou baixa; e (3) ocasionalmente um homem de qualquer classe, do rei ao escravo”, salientando a
ambiguidade do termo original.
153
Se caso fosse consumado, com a expulsão da viúva, ela se tornaria uma peregrina sem o apoio
de uma família. O Código de Hamurabi se interpôs para encerrar costumes desumanos contra
a mulher viúva. No caso do Código Deuteronômico isso não foi previsto. Uma possibilidade
para essa ausência é que, em Israel, esse nível de desumanidade nunca fora visto e, portanto,
não havia a necessidade de uma legislação específica para pôr fim a esse tipo de perversidade
contra a viúva.
Outra possibilidade é que a viúva apoiada pela legislação do Deuteronômio era como o
próprio texto destaca – uma viúva solitária, sem marido, filhos ou parentes próximos. O único
bem que ela possuía era sua roupa e, por isso, esse bem não podia ser tomado dela em juízo
(Deuteronômo 24,17). Com a longa distância para percorrer até a casa de seus parentes, a
viúva protegida pelo Código Deuteronômico era alguém sem teto e sem terra.
3.1.3.4. Era proibido tomar a roupa da ´almänâ em um processo judicial
(24,17).
No texto de Deuteronômio 24,17b, há bem estabelecido que a roupa de uma viúva não deveria
ser tomada como forma de garantia de um pagamento. Não é especificado o motivo para esta
ordem absoluta. Como visto, porém, em Deuteronômio 15, a roupa poderia servir de penhor
de um homem `änî (Deuteronômio 24,12), mas não da ´almänâ. A condição da ´almänâ
impediria a justiça de obrigá-la a entregar sua roupa.
A motivação por trás da proibição é que roupa era tudo o que ela possuía. Retirar sua roupa
seria como retirar sua própria vida, ou, num sentido menos dramático, seria como retirar a sua
proteção, principalmente durante as noites mais frias. Assim, aquele que havia dado algo por
empréstimo a ela, deveria fazer isso por generosidade, sabendo que ele não teria qualquer
garantia que haveria de receber de volta o que lhe deu emprestado.
3.1.3.5. Ela se encontrava nos “teus portões”.
As construções gramaticais, “vivem nas tuas cidades” (Deuteronômio 14,29; 16,11.14; BJ)375
e “vivem no meio de ti” (Deuteronômio 16,11; BJ),376
aparecem para qualificar o estrangeiro,
375
A BJ traduziu por “tuas cidades” o Hebraico “teus portões” [^yr<ê['v.Bi rv<åa] / ´ášer Biš`ärʺkä]. Essa forma
de tradução é uma forma de contextualizar o texto. Entretanto, ele distorce a ideia que o ouvinte ou leitor
primeiro tinha de “teus portões”. 376
“Vivem no meio de ti” é tradução de “que (há) no teu meio” ou “que (existem) no meio de ti” [^B<+r>qiB. rv<åa] / ´ášer BüqirBeºkä].
154
o órfão e a viúva que deviam ser atendidos pela comunidade na qual eles viviam. Entretanto,
partindo do pressuposto que Deuteronômio foi escrito para comunidades que viviam no
campo, ou nas cidades, a tradução “nos teus portões” favorece o entendimento que a ´almänâ
era alguém que estava dentro da propriedade daquele clã, e que esta condição de dependência
deveria ser vista, não como momento de exploração, mas como oportunidade de ajuda.
Assim, a proibição que uma decisão judicial não poderia obrigar a ´almänâ entregar sua capa
sugere que ela era alguém muito mais necessitada de ajuda que o `änî de Deuteronômio 24,
pois este tinha uma moradia, pois esta não podia ser violada para que um penhor fosse
entregue.377
Viver “dentro dos teus portões” aponta para a busca de proteção. Ela está ali, não
somente para ser beneficiada com a ajuda, mas também como alguém que busca proteção.
Do que foi dito até aqui sobre a ´almänâ, algumas observações podem ser destacadas.
Primeiro, com o passar do tempo a palavra ´almänâ deixou de ser apenas um qualificativo
para a mulher para ser um nome, um substantivo que designava a mulher como pessoa.
Assim, em segundo lugar, isso leva a conclusão que a ´almänâ pertencia a uma classe
distinta dentro da comunidade. Não se pode avaliar se esta classe possuía muitos membros,
mas é possível dizer que elas eram reconhecidas como tal nas suas comunidades. Em terceiro
lugar, a sua vulnerabilidade era notória por ser mulher e viúva, fazendo-a fragilizada por não
ter um marido, ou mesmo filhos, e, juntamente com Gër e yätôm, um grupo de peregrinos e
desprotegidos entre os clãs constituintes das comunidades do campo, e das cidades também.
Enquanto que órfão, estrangeiro e levita são palavras para designar pessoas do sexo
masculino, hn"m'l.a; e hm'a' são palavras que colocam o sexo feminino no meio dos Entes
Silenciosos. A razão para isso é que a mulher que perdia o marido podia ter alternativas. O
levirato era uma, já mencionado. A outra era que a mulher também tinha a possibilidade de
retornar para a casa paterna. Mas essa possibilidade implicaria em custos financeiros para a
família de seu pai, o que poderia gerar dificuldade, pois ela podia ser um peso financeiro para
377
Por outro, com o crescimento das comunidades e as populações se concentrando em torno das cidades, os
portões das cidades eram os lugares de reunião. O portão da cidade era o lugar de julgamento e onde se fazia
justiça. A questão que deve ser levantada é: Qual o motivo da presença da ´almänâ ali? A resposta é que a
´almänâ estava ali para pedir por justiça por algum motivo. Esquecer-se dela seria o mesmo que não fazer
justiça. Com isto em mente, o redator está falando com aqueles que detinham o poder de julgamento. Ela recorria
a eles em caso de necessidade. Portanto, a ´almänâ estava no portão da cidade em uma situação de fragilidade e
dependência.
155
uma família em apertos econômicos. Além do mais, as distâncias poderiam não favorecer o
retorno.
Ela também tinha a alternativa de permanecer na casa dos pais do marido morto. Mas esta
alternativa podia não ser vantajosa para aquela que caía no estado de viuvez. Ela não seria
produtiva porque a força de sua produção familiar havia sido perdida. Além disso, ela seria
também um peso econômico para o clã constituído de famílias que precisavam sobreviver.
De qualquer forma, cair na condição de mulher viúva era a coisa mais indesejada que uma
mulher poderia imaginar acontecer com ela, mas que era um risco a correr com o casamento,
principalmente em tempos de guerras, e nos períodos que Israel e Judá mantiveram-se
“rebelados” contra as leis do Deus de Israel. O legislador de Deuteronômio entende
perfeitamente isso. E por isso legislou em favor desta desfavorecida.
A Lei do Levirato era o modo de manifestar misericórdia com o morto por parte do irmão
próximo em termos de idade. O primeiro filho desta união seria o herdeiro da propriedade do
falecido. Ao que tudo indica, quando o falecido tivesse uma filha, mas não um filho, aquela
assumiria o direito a herança (Números 27,1-11), com a limitação que ela somente poderia
casar com alguém de dentro de sua própria tribo. Entretanto, não há muitos exemplos da
prática dessa legislação dentro da história do Israel bíblico. Além do mais, a reação dos filhos
de Judá a ordem do pai de tomarem a esposa do irmão falecido para gerarem descendência
para ele não era algo muito bem aceito pelos irmãos.
Outro modo de prover cuidados para a mulher viúva vinha de seus filhos já crescidos e com
condições para sustento seu e dela. Essa vem a ser uma das razões para o quinto mandamento
(Deuteronômio 5,16). A honra ao pai e mãe é dada para o homem que tinha independência
dos pais e apresentava as condições de cumprir aquele mandamento. A honra ao pai e mãe
incluía não somente a reverência de filho aos pais, como o apoio nas horas de necessidade
deles. A viuvez era certamente um dos momentos mais difíceis para a mulher, e a presença de
um filho capaz de ampará-la diminuiria em muito o sofrimento motivado pela perda do
marido.
Por último, uma viúva podia ser herdeira de um marido com propriedades, um marido rico.
Nesse caso, a viúva, se tivesse filhos, estes bens seriam distribuídos entre os filhos, ficando
156
parte considerável da herança com o filho mais velho, e dele seria a responsabilidade de suprir
as necessidades da mãe.
Diante disso, pode-se dizer que a viúva dentro de Deuteronômio, amparada pelas leis
deuteronômicas, é uma viúva que não tem seus meio próprios de sustento, e que não possui
meios de suprimento de suas necessidades básicas tais como os três exemplos apresentados
acima. Ela é uma viúva que depende da sociedade para sua sobrevivência. Daí o legislador
deuteronômico deixar uma legislação que pudesse lhe dar amparo. O redator de
Deuteronômio está corrigindo algum erro ocasionado pela prática da lei presente no livro de
Êxodo. A viúva podia não herdar a propriedade por ocasião do falecimento do marido, mas
ela não podia perder o direito à vida.378
HALOT aponta que as “viúvas eram frequentemente obrigadas ao silêncio” (2001, v. 1, p.
58). Elas sofriam em silêncio diante das agressões sofridas da parte da comunidade, e da
família do marido falecido. A condição desfavorável da mulher e ainda de sua condição de
viuvez destacam a legislação favorável a hn"m'l.a; dentro do Deuteronômio.379
3.2. O Ente Silencioso desprovido da proteção do pai: o órfão [~Aty"].
Vocábulo Deuteronômio 1-11 Deuteronômio 12-26 Deuteronômio 27-34
~Atßy", yätôm 10,18 14.29; 16,11.14;
24,17.19.20.21;
26,12.13
27,19
3.2.1. Observações iniciais
O órfão, na condição de Ente Silencioso, era aquele que havia perdido o pai, por qualquer
motivo, e que não tinha propriedade – ou porque o pai que havia morrido também não tinha
378
Gênesis 38,11.14.19 mostra o caso de uma viúva por nome de Tamar. Depois de enviuvar, ela tira e coloca as
roupas de viuvez indicando que a viúva trajava um tipo de vestimenta que a qualificava como viúva. Esse traje
específico a levava a ser reconhecida pela comunidade como viúva, e atraía o respeito da comunidade masculina
pelo homem falecido. O traje de viúva funcionava como meio de proteção. 379
A condição de tristeza da hn"m'l.a; é ilustrada em Lamentações de Jeremias 1,1 na queda de Jerusalém: “Quão
solitária está a Cidade populosa! Tornou-se viúva a primeira entre as nações; a princesa das províncias em
trabalhos forçados”. Como viúva, Jerusalém está em lamentação (1,2), servidão (1,3), luto (1,4), sem filhos (1,5)
e sem beleza (1,6).
157
propriedade por ser também um Ente Silencioso, ou porque o yätôm perdera a propriedade
para pagar dívidas deixadas pelo falecido. Também pode ser possível que sua condição de
sem propriedade seja motivada por expulsão do clã para que a propriedade ficasse com os
filhos mais velhos ou outro motivo. Deve-se recordar que às vezes os filhos eram colocados
para pagar a dívida deixada pelo pai falecido (2 Reis 4,1).
A concentração na ideia que o yätôm é o que é por causa de sua relação com o pai,380
e a
perda deste, pode ser mais bem entendida a partir da declaração presente no livro de
Lamentações 5,3: “Órfãos somos sem pai, e nossas mães (são) viúvas”.381
O texto poderia
omitir a construção “sem/e sem pai” [(´ên) [wü´ên] ´äb]382
e ficaria entendido que o yätôm é
sem pai. Mas o que o texto faz é enfatizar a relação do yätôm com a ausência do ´äb – ele é
´ên ´äb.383
A palavra yätôm é um substantivo masculino (BDB, 1979, p. 450). Isso quer dizer que, como
a ´almänâ, ele também perdia o nome por causa da morte do pai, passando a ser identificado
dentro de sua comunidade pelo que ele havia perdido, e não pelo que ele representava pelo
seu nome. Deve-se destacar que esta palavra não apresenta seu oposto feminino, a “órfã”, ao
menos dentro da BH. A filha poderia ser absorvida por um clã para dar continuidade por meio
da geração de filhos. Mas o menino era quem levaria o nome do pai sobre a herança. Sem
herança, o menino sem o pai é apenas yätôm.
Como demonstra o quadro abaixo, o yätôm sempre aparece dentro do Deuteronômio
acompanhado de outros Entes Silenciosos. Os seus companheiros são usualmente a ´almänâ,
o Gër e o lëwî.
380
Notar o papel central do homem para o estabelecimento de dois tipos de Entes Silenciosos: o órfão pela perda
do pai e a viúva pela perda do marido. 381
Lamentações 5,3: `tAn*m'l.a;K. WnyteÞMoai ba'ê Î!yaeäw>Ð ¿!yaeÀ ‘WnyyI’h' ~ymiÛAty> [yütômîm häyîºnû (´ên) [wü´ên] ´äb
´immötêºnû Kü´almänôt]. A construção do texto mostra que tanto a condição de yätôm como a de ´almänâ está
em relação ao homem. Os filhos são órfãos porque não tem pais e, por implicação, as mães são viúvas porque
não tem maridos, os quais estão mortos, deixando filhos órfãos e as mães, desses filhos, viúvas. 382
O texto apresenta uma variante textual [wü´ên / !yaeäw>] que faria a tradução ser: “Órfãos somos e sem pai”. De
qualquer forma, o “e” acrescentaria uma ênfase a própria situação daquele que havia perdido o pai. 383
Como destacado no ponto anterior que tratou da ´almänâ, a ´almänâ é ´almänâ devido à morte do marido.
Porém, o texto demonstra que o yätôm pode ter mãe e ainda assim ser um yätôm dentro da comunidade a qual
pertence.
158
Vocábulos Deuteronômio 1-11 Deuteronômio 12-26 Deuteronômio 27-
34
hn"+m'l.a;,
´almänâ, rGe,
Gër, ~wOty",
yätôm, ywIle, lëwî
14,29; 16,11.14;
26,12.13
hn"+m'l.a;,
´almänâ, rGe,
Gër, ~wOty",
yätôm
10,18 24,17.19.20.21 27,19
3.2.2. Elementos filológicos
3.2.2.1. A etimologia
A etimologia da palavra yätôm pouco pode iluminar a palavra e seus usos dentro do livro de
Deuteronômio. Um destaque pode ser feito com o correspondente árabe [yaTim] que, além de
“órfão”, pode significar “único” (RINGGREN, 1990, p. 478). Entretanto, as palavras da
mesma raiz e que trazem o mesmo sentido de yätôm em outras línguas trazem paralelos
significativos para o vocábulo hebraico. O egípcio nmH.w, além de “órfão” também pode
significar “pobre e humilde”, e aponta para o órfão como uma pessoa “sem ajuda e
necessitado” (RINGGREN, 1990, p. 478).
O egípcio também lança luz sobre o texto hebraico por colocar juntos o yätôm e a ´almänâ
numa mesma declaração, bem como por atribuir ao rei o papel de protetor do yätôm e da
´almänâ (RINGGREN, 1990, p. 478). Este último detalhe, porém, difere do Deuteronômio
159
porque o redator (ou redatores) deste entende que o papel de socorrer os Entes Silenciosos
pertence à comunidade, não ao rei.384
Este detalhe – o rei como protetor do yätôm e da ´almänâ – também aparece como papel do
rei no Acádio. Seguindo uma tradição que procedia desde 2400 AEC, a conclusão do código
de Hamurabi estabelece que os órfãos e as viúvas devem desfrutar de seus direitos e que não
poderão ser oprimidos pelo mais forte (RINGGREN, 1990, p. 478).
Haja vista que o Deuteronômio tenha nascido nas comunidades do Norte no século oitavo,
onde os reis não tinham interesse em ajudar os pobres do reino e estavam sob a crítica
profética, o redator coloca o dever de ajudar os Entes Silenciosos da comunidade nas mãos
dos que podiam fazer algo por eles, a comunidade.
3.2.2.2. Traduções para o Aramaico e o Grego
A palavra empregada para traduzir o Hebraico yätôm para o Aramaico é ~yty [ytym], e a
tradução para a LXX vem com a palavra ovrfano,j. As duas têm o mesmo sentido e forma de
tradução – “órfão”. ovrfano,j foi empregada com o sentido incomum de “abandonado”,
“destituído” e “privado” (SEESEMANN, 1967, p. 487). Tais sentidos podem servir de
iluminação sobre o yätôm dentro do Deuteronômio, principalmente pelos sentidos de
“abandonado” e “privado” de ovrfano,j, pois os apelos do Deuteronômio para que a
comunidade tivesse olhares beneficentes pelos Entes Silenciosos, e não somente o yätôm,
porque há um elemento que os caracteriza é o conceito de estarem privados dos benefícios
que, provavelmente, os outros membros da comunidade desfrutavam – terra, clã, recursos. No
caso do yätôm, da ´almänâ, do Gër e do lëwî, os conceitos relacionados a “privado” e
“abandonado” se tornam ainda mais fortes. O yätôm/ovrfano,j é alguém privado do pai e, ao
que indica dentro do Deuteronômio, separado do clã de quem poderia usufruir proteção.
3.2.3. O yätôm dentro do Deuteronômio
A palavra aparece dentro dos três blocos literários maiores do Deuteronômio (10,18; 14,29;
16,11.14; 24,17.19.20.21;26,12.13; 27,19), aparecendo por quarenta vezes dentro da BH
384
Para que não se passe ao largo, o papel do rei em Deuteronômio é bastante diluído. É dito mais o que ele não
deve fazer que o que ele deve fazer (Deuteronômio 17,14-20). Talvez num olhar positivo sobre o papel do rei, o
Deuteronômio estabelece que ele deve fazer uma “cópia desta lei” para lê-la em todos os dias de seu reinado para
aprender a “temer a Iahweh teu Deus” (Deuteronômio 17,19 – BJ).
160
(HARTLEY, 1980, p. 419),385
e, como já pontuado, sempre acompanhado por outros Entes
Silenciosos numa clara indicação da formação de uma classe social específica dentro da
comunidade do Deuteronômio. Nestas ocorrências tornam difícil salientar um detalhe
específico do yätôm que também não seja aplicado aos outros do grupo.
Entretanto, mesmo sabendo que o que se diz do yätôm se diz do outro que está no mesmo
grupo social, cabe fazer algumas afirmações acerca yätôm do dentro do Deuteronômio.
Primeiro, o yätôm é colocado ao lado da ´almänâ como beneficiários da justiça do Deus de
Israel, caso a justiça dos representantes divinos, os juízes, não os beneficiassem
(Deuteronômio 10,18). Depois de apresentar as qualificações do Deus de Israel – “Deus dos
deuses e Senhor dos senhores, Deus grande, guerreiro/valente, o temível (o que é temido) que
não levanta a face, e não recebe suborno”386
– o redator mostra o que este Deus faz.
E o que este Deus, descrito de forma tão elevada e temerosa, faz em favor do yätôm e da
´almänâ? Ele “faz/fazendo justiça” [`öSè mišPa†].387 Com esta declaração, o redator
aproxima o yätôm e a ´almänâ do “pobre” [däl, ´ebyôn, `änî], porque ele também faz justiça
para eles. A frase paralela, mesmo que com construção gramatical diferente, mas com mesmo
significado, é presente em Deuteronômio 1,16 [“julgareis justiça” / ûšüpa†Tem ceºdeq]. Mas há
outro paralelo dentro deste texto com os Entes Silenciosos pertencentes ao grupo social
denominado por “pobres”, como o atributo de imparcialidade divina, “não levantará faces”, o
mesmo que é exigido dos juízes em Levítico 19,15. Assim, o yätôm é beneficiário das
385
Uma observação deve ser salientada aqui. A palavra ovrfano,j ocorre pouco dentro dos escritos do Novo
Testamento, apenas duas vezes – uma no livro de Tiago 1,27 e outra no Evangelho de João 14,18
(SEESEMANN, 1967, p. 488). No primeiro texto há a afirmação daquilo que consiste a verdadeira religião “pura
e sem mácula”. Para Tiago é visitar as viúvas e órfãos em suas aflições e manter-se separado do mundo (BJ). O
segundo texto consiste de uma promessa de Jesus para seus discípulos, onde ele afirma de forma enigmática que
“não vos deixarei órfãos, eu virei a vós” (BJ). Essas afirmações são uma pontuação do quão pouco o NT se
refere à questão desses Entes Silenciosos. 386
Notar: ~ynI+doa]h' ynEßdoa]w: ~yhiêl{a/h'( yheäl{a/ aWh… ~k,êyhel{)a/ hw"åhy> yKi… 17 / Kî yhwh(´ädönäy) ´élö|hêkem hû´
´élöhê hä|´élöhîm wa´ádönê hä´ádönîm.
`dx;vo) xQ:ßyI al{ïw> ~ynIëp' aF'äyI-al{ ‘rv,a] ar"êANh;w> ‘rBoGIh; ldoÜG"h; lae’h' / 17
Kî yhwh(´ädönäy) ´élö|hêkem hû´ ´élöhê
hä|´élöhîm wa´ádönê hä´ádönîm hä´ël haGGädöl haGGiBBör wühannôrä´ ´ášer lö´-yiSSä´ pänîm wülö´ yiqqaH
šöºHad. 387
Notar: `hl'(m.fiw> ~x,l,î Alß tt,l'î rGEë bheäaow> hn"+m'l.a;w> ~Atßy" jP;îv.mi hf,²[o 18 /
18 `öSè mišPa† yätôm
wü´almänâ wü´öhëb Gër läºtet lô leºHem wüSimlâ. Principalmente depois das duas negativas no final 10,17 –
“não levantará faces e não tomará suborno” – o redator responde o que este Deus faz ou “está fazendo”, haja
vista que a construção `öSè mišPa† pode ser traduzida pela perífrase “mas está fazendo justiça”. Lembrando que
mišPa† tem haver com decisão judicial, demonstrando que o Deus de Israel será favorável ao yätôm
wü´almänâ, se houver injustiça contra eles.
161
decisões justas do Deus de Israel. Se porventura ele não encontrasse justiça da parte dos
juízes, ele encontraria da parte de Deus.
Por fim, o yätôm é companheiro quase inseparável da ´almänâ. Porém, não somente em
Deuteronômio, mas também em outros livros da BH. O personagem central do livro de Jó é
acusado por um de seus amigos, Elifaz, de não atender as necessidades das viúvas e, no caso
dos órfãos, que Jó os fez perecer (22,9). Porém, para Jó, quem faz isso são aqueles que ele
chama de ímpios que se apropriam do patrimônio remanescente dos órfãos e das viúvas
(24,3). Ao contrário das acusações, Jó saía em socorro do órfão e levava alegria para a viúva
(29,12.13; 31,17.18.21).
Os salmos também trazem os dois juntos. No Salmo 68,6, Deus se apresenta como aquele que
é o pai dos órfãos e que faz justiça aos direitos da viúva, principalmente contra aqueles que
vivem para destruir tanto um como o outro (94,1.6), pois é a este Deus que o salmista clama
para que ele execute vingança contra os perversos, inclusive fazendo com que os filhos destes
se tornem órfãos e, suas mulheres, viúvas (109,9.12). É claro que nos salmos Deus é
convidado a tomar o lado do yätôm e da ´almänâ. O motivo para isso é duplo – os salmos
em sua maioria vieram de tempos de exílio e pós-exílio, fazendo com que a ausência do rei e a
falta de perspectiva de vida pelo caos da remoção do povo para outras terras fizesse com que a
única alternativa de socorro viesse do Deus de Israel.
Por outro lado, o profeta Isaías critica a ausência de atenção dos reis para com o yätôm e a
´almänâ, mostrando que, mesmo durante o reinado de determinados reis – provavelmente a
maioria deles, a justiça em favor dos dois não foi exercitada por eles (Isaías 1,17.23; Jeremias
7,6; 22,3). Esta luta do homem de Deus contra a liderança política e religiosa do povo – reis,
sacerdotes e profetas – irá consumir boa parte das mensagens do profeta Jeremias, com o seu
apelo para que eles praticassem a justiça.
Ao olhar esses textos em que os dois vêm juntos, algumas possibilidades podem ser
estabelecidas. A primeira é que o yätôm e a ´almänâ são parentes – mãe e filho.388
A
identificação dos dois com a mesma situação, pois ela é ´almänâ porque perdeu o marido, e,
o marido que ela perdeu deixou um filho que agora passa a ser um yätôm. Assim, os dois vêm
388
Lamentações 5,3 aponta para este relacionamento.
162
juntos porque era de se esperar que estivessem juntos porque ambos tiveram a mesma perda –
o provedor.
Em segundo lugar, porém, o relacionamento entre os dois é solidário. O amparo da ´almänâ
para o yätôm (e a companhia do yätôm para a ´almänâ) era o amparo de uma mãe para o
filho que ela não teve. E para ele a ´almänâ viria a ser a “mãe” que ele precisava na hora de
necessidade que ele estaria vivenciando. Os dois estão na mesma situação e se unem para
enfrentar as dificuldades. Numa outra forma de ver, o solitário precisa de companhia, e um
encontraria a companhia que precisava com outro e ambos buscavam sobreviver em
circunstâncias difíceis.
Mas esses dois não vêm sozinhos. Eles também têm companhia do Gër. Mas quem é o Gër?
Em que este se diferencia do yrIk.nO e do rz"? Tais questões serão respondidas a seguir.
3.3. O Ente Silencioso desprovido da proteção de sua terra ou pátria: o estrangeiro [rGe
/Gër]
Vocábulo Deuteronômio 1-11 Deuteronômio 12-26 Deuteronômio 27-34
rG,, Gër 1,16; 5,14; 10,18.19 14,21.29; 16,11.14;
23,7 (Hebraico);
24,14.17.19.20.21;
26,11.12.13
27,19; 28,43; 29.11
(Hebraico v. 11);
31,12
3.3.1. Observações
Como Ente Silencioso, o Gër é o que mais aparece dentro do livro de Deuteronômio. Segundo
o quadro anterior, das noventa e duas ocorrências (HARTLEY, 1980, p. 419) dentro da BH,
vinte e uma estão dentro de Deuteronômio. Pela sua natureza, o Gër poderia também
participar tanto da condição de alguém desprovido da proteção de um clã quanto de alguém
que goza da proteção dele. O motivo para isso é que o Gër desfrutaria do amparo de alguém
por ser estrangeiro. Por outro lado, a pessoa ou clã que o acolhesse poderia explorá-lo em
benefício próprio. Por isso, mesmo dentro da proteção de um clã, o Gër necessitaria de
163
ordenanças que pudessem lhe dar algum tipo de proteção para que ele não viesse a ser
explorado.
O Gër está presente nas três grandes unidades de literatura que compõem o livro. Isso
demonstra dois aspectos. O primeiro é que a presença de estrangeiros dentro de Israel era
comum. Eles poderiam vir tanto de terras próximas quanto distantes. Muitos dos escravos
poderiam ser colocados dentro dessa situação por virem de outras terras. O segundo aspecto é
decorrente do primeiro. As violações aos seus direitos também devem ter sido comuns.
Assim, o estabelecimento de leis de relacionamento com eles se fazia necessário para que atos
violentos e abusos de direitos fossem tolhidos dentro da nação.389
Para de Vaux, “o Gër é essencialmente o estrangeiro que vive de forma mais ou menos estável
em meio à outra comunidade em que é aceito e usufrui de certos direitos” (2003, p. 99). Como
um israelita que vive dentro de outra tribo vem a ser considerado um Gër (Juízes 19,16), então
é de se considerar que os levitas também venham a ser considerados como uma espécie de
estrangeiros dentro do Israel (de VAUX, 2003, p. 99).
A situação de abuso do Gër pode ter sido de tal gravidade que o redator de Deuteronômio
precisa recordar do passado de Israel. Mesmo que seus ouvintes iniciais não tenham sido
escravos no Egito, o redator, apelando para a solidariedade existente entre presente e passado,
instrui para que os estrangeiros sejam amados porque eles também foram estrangeiros em
terras egípcias.390
3.3.2. Elementos filológicos
3.3.2.1. A etimologia
Há dois exemplos em que esta pesquisa entende que iluminam o texto Hebraico. Os dois vêm
do Ugarítico, onde a palavra pode ter dois sentidos, dependendo do contexto em que elas
aparecem. O primeiro é o sentido de “alguém que habita os muros de Ugarite” e o outro é o de
389
O “rG, é um homem que (sozinho ou com família) deixa vila e tribo por causa de guerra (2 Samuel 4,3; Isaías
16,4), fome (Rute 1,1), epidemia, culpa de sangue etc. e busca abrigo e residência em outro lugar, onde seu
direito de propriedade, casamento e direito de participar na jurisdição, culto e guerra tem sido reduzido”
(HALOT, 2001, v. 1, p. 201). 390
“E amareis o Gër, porque estrangeiros fostes na terra do Egito” (Deuteronômio 10,19 [19
wa´áhabTem ´et-
haGGër Kî|-gërîm héyîtem Bü´eºrec micräºyim / `~yIr")c.mi #r<a,îB. ~t,ÞyyIh/ ~yrIïgE-yKi( rGE+h;-ta, ~T,Þb.h;a]w:19]). Notar que
Israel também é chamado de Gër que habitou no Egito. Com base na sua experiência, Israel saberia como deveria
tratar – ou melhor, amar – os estrangeiros.
164
“alguém que habita no templo”, possivelmente olhando para um que era fugitivo e estaria
buscando proteção (KELLERMANN, 1975, p. 440).
O primeiro sentido aparece repetido dentro do livro de Deuteronômio para se referir aos Entes
Silenciosos que fazem parte do grupo do Gër, ´almänâ, yätôm, e lëwî.391 A referência não é
aos muros, mas aos portões (“que está nos teus portões” [^yr<ê['v.Bi rv<åa] / ´ášer Biš`ärʺkä].
Nos Dez Mandamentos presentes em Deuteronômio 5, a menção é feita ao Gër que está nos
portões daquele a quem os portões pertencem. Em um contexto do campo, os portões eram
uma referência à propriedade de quem acolhia o Gër. Por outro lado, em tempos sombrios das
invasões militares, as cidades fortificadas costumavam ser o lugar para onde as pessoas
buscavam segurança que não encontravam nos campos, ou mesmo em cidades sem muros.
Assim, “portões” é uma parte do muro da cidade ou da cerca da propriedade rural usados em
lugar do todo.392
Refugiar-se no Templo Central (ou não) não parece ter sido algo que houvesse acontecido
dentro do período coberto pelos escritos da BH. Isso não quer dizer que pessoas não tenham
buscado proteção do santuário segurando nos chifres do altar de sacrifício que ficava fora (1
Reis 1,50,51; 2.28). Mas a ideia de buscar a segurança do templo não parece que fosse visto
com bons olhos pela comunidade, haja vista que essa alternativa fora veementemente rejeitada
por Neemias (Neemias 6,9-11). Se um nativo rejeitou a entrada no Templo para buscar
proteção, tal alternativa não seria uma opção oferecida para um Gër.
A alternativa oferecida a alguém que precisasse poupar sua vida, porque houvesse cometido
um assassinato involuntário, era aquela constituída pelo grupo de seis cidades de refúgio,
distribuídas por Israel, três de um lado e três de outro lado do Rio Jordão. Elas foram
estabelecidas para abrigar o homicida involuntário e poupá-lo das mãos do vingador do
sangue derramado. Entre os que poderiam se abrigar numa dessas cidades por este motivo está
o Gër (Números 35,11-15). Essas seis cidades estariam entre aquelas que pertenceriam aos
levitas (Números 35,6). Este dado torna aquelas cidades um lugar que poderia ser acolhedor
para o Gër, pois os levitas, que não podiam ter herança dentro de Israel, eram uma espécie de
391
Deuteronômio 14,29 apresenta estes quatro Entes Silenciosos como quem ´ášer Biš`ärʺkä. Notar ainda
16,11.14 para outro exemplo. 392
Zuck chama esta figura de linguagem de “Sinédoque... a substituição da parte pelo todo ou do todo pela
parte” (1991, p. 177).
165
Gërîm, estrangeiros, dentro de seu próprio povo, e com possibilidade de entender melhor a
mente de um Gër.
Assim, é possível que aquele estrangeiro que estivesse dentro dos muros de Ugarite fosse
igual ao estrangeiro que estivesse “nos teus portões” no contexto da cultura tratada pelo
Deuteronômio.
3.3.2.2. Tradução para o Aramaico
A tradução de Gër para o Aramaico foi feita pela palavra rwyg [Gywr], “estrangeiro”. Ela traz
também o sentido de “prosélito”, “vizinho” (KELLERMANN, 1975, p. 442). Nos outros
versículos que estão no quadro acima, a palavra rwyg [Gywr] aparece em todos eles, exceto em
Deuteronômio 14,21 e 28,43. Aqui a palavra presente é btwt [Twtb], cujo sentido é o de
“residente”, “estrangeiro”. Em 10,8b e 23,8 a palavra usada foi ryd [Dyr], cujo sentido é de
“habitante”, “prosélito”. A diferença entre rwyg [Gywr], btwt [Twtb] e ryd [Dyr] está em que
a palavra btwt [Twtb] não é atrelada a ideia de “prosélito” como as outras duas (HHL-BW7).
Esta pesquisa vai mais a frente e estabelece os seguintes detalhes. A variedade de palavras
empregadas para traduzir Gër para o Aramaico mostra a diferença de significados que Gër tem
em diferentes contextos para os tradutores do texto Hebraico tanto para o Aramaico quanto
para o Grego, como será notado abaixo. Os textos em que a palavra rwyg [Gywr] aparece como
alternativa de tradução de Gër são textos em que a referência é a uma pessoa não nativa e
residente dentro de Israel.
Entretanto, tem um texto em que o Aramaico faz clara distinção entre rwyg [Gywr] e ryd,
fazendo de ryd [Dyr] um uma espécie de antônimo de rwyg [Gywr]. O motivo para destacar
isso está em Deuteronômio 10,19 e 23,8. O texto de Deuteronômio 10,19 diz: “Portanto,
amareis o estrangeiro [rwyg], porque fostes estrangeiros [ryd / Dyr] no Egito” (BJ).393
Por sua
vez, Deuteronômio 23,8 diz a mesma coisa, mas em forma negativa: “Não abomines o
edomita, pois ele é teu irmão. Não abomines o egípcio, porque foste um estrangeiro em sua
terra” (BJ). A tentativa do tradutor para o Aramaico é estabelecer uma distinção entre o Israel
que habitou o Egito como Gër e os Gërîm que habitavam em Israel. Para o redator do texto em
393
A BH tem Gër nos dois casos: 19
wa´áhabTem ´et-haGGër Kî|-gërîm héyîtem Bü´eºrec micräºyim.
166
Aramaico, o Israel era apenas um morador no Egito [ryd / Dyr], não um aderente de seus
cultos, mas os estrangeiros em Israel eram moradores que eram “prosélitos” [rwyg], eles
haviam abraçado a fé de Israel. Para o redator do Deuteronômio, os dois são Gërîm.
Assim, à palavra ryd, empregada para traduzir Gër em Deuteronômio 23,8, pode ser entendida
apenas como uma pessoa que habita numa terra que não é a sua – apenas um morador.
Deuteronômio 23,8 diz que Israel não deveria detestar o egípcio porque ele fora um
estrangeiro residente, um habitante, na terra do Egito. Israel não era um prosélito ou aderente
dos deuses dos egípcios. Desde a ida de Jacó e sua família para o Egito até o Êxodo, a BH não
apresenta Israel como um aderente da religião praticada pelos egípcios. Israel era ali um
habitante temporário, mesmo que ele houvesse de passar muito tempo por lá. O povo de Israel
tinha a promessa que um dia sairia dali para habitar a Terra da Promessa.
Há outro detalhe a acrescentar. Em 14,21 e 28,43, a palavra btwt [Twtb] vem seguida pelo
substantivo lr[ [`rl], cujo significado é de um “macho incircunciso” (HHL-BW7), dando a
entender que o estrangeiro em vista é alguém que vive no meio do povo, mas que ainda não
aderiu a fé do povo do Israel. lr[ explica que tipo de estrangeiro o animal morto por si
mesmo deve ser dado (14,21), pois um estrangeiro prosélito não comeria a carne daquele
animal, pois ele estaria quebrando as leis divinas que ele abraçara ao se tornar prosélito. Em
28,43 fala de um “estrangeiro incircunciso” que, como juízo divino sobre o povo de Israel,
por seu abandono do Deus de Israel, seria elevado a posição superior a de um israelita nativo.
Essa seria uma forma de mostrar o desprazer divino com o povo que, em lugar de abençoar
Israel, abençoaria o “estrangeiro incircunciso” que vivia no meio do povo.
Pode-se estabelecer uma distinção entre as três palavras aramaicas? Sim. Para o tradutor do
texto Aramaico, rwyg é um estrangeiro prosélito. Ele abraçou a fé de Israel e vive como um
Israelita comum. ryd é um habitante comum, aplicado somente a Israel no Egito dentro do
texto do Deuteronômio. O btwt é também estrangeiro, mas ele ainda não abraçou a fé de
Israel, mesmo que habite no meio do povo de Israel. Pejorativamente ele é chamado de
“macho incircunciso” [lr[]. Ele não é um prosélito.
Essa variedade de palavras para traduzir Gër também será notada nas diferentes palavras
empregadas para traduzi-la para o Grego.
167
3.3.2.3. Tradução para a LXX
A palavra usada para traduzir Gër para o Grego é prosh,lutoj, “prosélito”. Essa ideia é
apontada por Kellermann que “sob o ponto de vista da integração religiosa, o conceito se
desenvolve mais e mais na direção do prosélito, o não israelita que se torna aderente da fé em
Yahweh” (1975, p. 443). Entretanto, em Deuteronômio 14,21, a palavra empregada para
traduzir Gër não é prosh,lutoj, mas pa,roikoj.394 Essa também é traduzida por “estrangeiro”
395
e tem um detalhe a mais – ela faz contraste com nokrî em 14,21: o animal que houvesse
morrido por si mesmo deveria ser dado ao Gër/pa,roikoj, mas poderia ser vendido ao yrIk.nO
[nokrî]/avllo,trioj, o estrangeiro não residente.
Porém, essa não é a única diferença entre o Gër/pa,roikoj e o nokrî/avllo,trioj.396 O primeiro é
alguém “que vive em tua cidade” (BJ), deixando subentendido que o nokrî/avllo,trioj é um
estrangeiro que não “vive em tua cidade”. Ele é um estrangeiro de passagem, e está ali por
algum motivo, provavelmente por comércio. Ainda outra diferença o texto apresenta entre os
dois. O Gër/pa,roikoj não pode comprar. Ele é necessitado e precisa de ajuda para sua
sobrevivência. Mas o nokrî/avllo,trioj tem recursos e, por isso, o animal morto por si mesmo
pode ser vendido para ele.
Diante do que foi colocado nos dois parágrafos acima, pode-se concluir que as duas palavras
são sinônimas, haja vista que Gër foi traduzido para a Septuaginta, em Deuteronômio, tanto
por prosh,lutoj como por pa,roikoj. Seja um prosh,lutoj seja um pa,roikoj, o Gër é alguém que
decidiu viver no meio de um povo que não é o seu de origem, e, ficará ali como um
dependente daquele povo, ou, mais especificamente, daquele ou da comunidade que o
acolheu.
Entretanto, Martin-Achard afirma que o uso de pa,roikoj ocorre “quando se exclui a
compreensão especial como prosélito” (1978, p. 586). No entanto, para esta pesquisa, os
textos onde prosh,lutoj ou pa,roikoj ocorrem não apontam para um adepto da fé de Israel,
394
Rusconi traduz esta palavra por alguém “que habita como estrangeiro ou exilado: residente, hóspede,
estrangeiro” (2003 p. 359). Rusconi aponta também que pa,roikoj é formada por para, (“ao lado de) + oi;koj (“casa”). 395
A BJ traduziu Gër neste texto por “forasteiro”, provavelmente para contrastar com yrIêk.n" [nokrî] que é
traduzido por “estrangeiro” mais adiante no versículo. 396 avllo,trioj pode ser traduzido por “alheio”, “estrangeiro”, “inimigo”, “estranho” (RUSCONI, 2003, p. 34).
168
porque o Gër é um que habita ao lado, um pa,roikoj, e o prosh,lutoj é um que tem se
aproximado, um que está próximo – um que está próximo pode bem ser um que mora ao lado.
No contexto de uma sociedade dividida em clãs, prosh,lutoj ou pa,roikoj é o que vive dentro
de tuas portas, ou de teus domínios. Em Deuteronômio, esse é o Gër – aquele estrangeiro que
decidiu fazer das terras de Israel a sua própria terra.
O outro texto dentro de Deuteronômio onde Gër é traduzido por pa,roikoj é Deuteronômio
23,8. Nos outros a palavra presente é prosh,lutoj.
3.3.3. O Gër dentro de Deuteronômio
O que caracteriza o Gër dentro do livro do Deuteronômio? Ele é apresentado como um
estrangeiro que é sem recursos. Mas que não é um escravo. O Gër é alguém que é integrado à
sociedade e conhecido da comunidade ao seu redor. Ele é um exilado de sua terra, e que
chegou a Israel sem recursos para sua sobrevivência e por isso merece atenção do povo de
Deus.
Seguindo a ordem de aparição da palavra Gër dentro do livro, em primeiro lugar, o Gër era
alguém caracterizado por ser tão integrado á vida do povo que podia ir ou ser levado à justiça
contra ou a favor dele. Deuteronômio 1,16.17 diz que entre aqueles que poderiam se envolver
num processo judicial contra o “grande” estava o Gër. A exortação para que os juízes não
fossem parciais no julgamento entre o “pequeno” e o “grande” seria ainda mais forte se o caso
diante dos juízes fosse entre o “grande” e o Gër.
Em segundo lugar, o Gër deveria cumprir o mandamento da guarda do sábado e não trabalhar
no sétimo dia da semana (Deuteronômio 5,14). Isso implica que ele também estaria sujeito às
penalidades caso ele viesse a quebrar esse mandamento. Como foi colocado acima, ele
poderia fugir para uma cidade de refúgio, caso houvesse assassinado alguém
involuntariamente. Porém, se ele houvesse cometido o crime voluntariamente, ele seria morto
como aquele que ele matou (Números 35,15-21). Esta é uma ilustração da responsabilidade do
Gër de observar as ordenanças do Deus de Israel como um nativo, pois o Gër deveria estar
presente na leitura da aliança para que aprendesse a obedecer às palavras da lei de Deus
(Deuteronômio 31,12).
169
Em terceiro lugar, o Gër deveria ser objeto do amor do povo de Israel, assim como o Gër era
objeto do amor do Deus de Israel (Deuteronômio 10,18.19). Deuteronômio 14,21.29 diz que o
Gër deveria receber comida do povo, participar das festas (16,11.14), as quais incluíam
comida e bebida.397
Havia um tipo de dízimo que deveria ser dado ao Gër, ´almänâ, yätôm, e
lëwî (Deuteronômio 26,11.12.13). Em Deuteronômio 10,18 diz que o Deus de Israel seria
generoso com o Gër, pois lhe daria alimento e vestimenta. E como o Deus de Israel faria isso?
Por meio de seu representante – o povo de Israel. O direito dado por Deus ao Gër, ´almänâ,
yätôm, e lëwî de receber o alimento não poderia ser pervertido, nem o seu direito pedido na
justiça (27,19). Quem pervertesse o direito deles seria amaldiçoado.
Em quarto lugar, caso Israel não fosse obediente aos mandamentos de seu Deus, em lugar de
ele dominar, ele seria dominado por um Gër (28,43). Essa situação se tornaria contrastante
com a condição esperada dos Gërîm (Deuteronômio 29,10 [Hebraico]), que era a de prestar
serviços para a comunidade de Israel, por meio de cortar madeira e retirar água – fazer o
trabalho braçal. Esse último detalhe destaca a importância dos Gërîm para o povo de Israel
naqueles dias.
Há, porém, outros termos que são empregados dentro da BH para um estrangeiro, e que, nas
traduções, não revelam distinção. Eles apontam para um contraste com o Gër.
3.3.4. Outros termos para indicar o estrangeiro
Duas palavras são comumente empregadas para designar um “estrangeiro” dentro da BH. São
elas: yrIk.nO [nokrî] e rz" [zär].
3.3.4.1. yrIk.nO (Deuteronômio 17,15 [nokrî])398
Há três tipos de estrangeiros encontrados dentro do livro de Deuteronômio. O primeiro é Gër,
tratado acima. O segundo é o estrangeiro com recursos. Pode-se dizer que ele é o estrangeiro
investidor. Ele é chamado de nokrî. O terceiro tipo, aparece em alguns lugares da BH como
397
Notar mais Deuteronômio 24,19-21. 398
“Estrangeiro”, mas que traz embutida a ideia de “forasteiro”, alguém de fora daquele lugar, que não reside
junto aos nativos residentes ali. É uma palavra que funciona como um adjetivo. Ela, portanto, funciona para
qualificar alguém de fora do povo, de outro povo que não Israel.
170
sinônimo de yrIk.nO, é rz". Esse aparece num paralelo com rk'nE. rz" será tradado num ponto
abaixo.
O nokrî é um forasteiro, uma pessoa não identificada com a comunidade local, e por isso ele
não fazia parte da sociedade israelita. Assim, um animal morto poderia ser vendido para um
nokrî (Deuteronômio 14,21). Esse texto mostra com clareza a diferença entre o nokrî e o Gër.
Pois o animal morto poderia ser vendido a um, mas, em se tratando do Gër, o animal morto
deveria ser doado, porque esse não teria as condições de comprá-lo enquanto que o primeiro
as teria.
O nokrî também é diferente de “teu irmão” (Deuteronômio 15,3),399
pois quando um
empréstimo fosse feito ao nokrî O, aquele israelita que o fez poderia pressionar o nokrî para
receber o empréstimo de volta com os devidos acréscimos. Entretanto, ele não poderia fazer o
mesmo com o “teu irmão”, um israelita, membro da comunidade. Além disso, o nokrî nunca
poderia se tornar um rei sobre o povo de Israel, em lugar de um rei que é do povo, um irmão
(Deuteronômio 17,15 [yrIêk.n" vyaiä]). Paradoxalmente, porém, o nokrî poderá ser testemunha da
severidade do juízo com que o Deus trataria seu povo e faria sua própria lamentação diante do
que verá (Deuteronômio 29,21), caso o povo siga pelo caminho da desobediência persistente
contra os mandamentos de Deus.
Há dois lugares, em Deuteronômio, que, em lugar do adjetivo nokrî, é empregado o
substantivo rk'nE [nëkär]. Em Deuteronômio 31,16, nëkär é empregado num contexto de
admoestação de um desvio futuro do povo para seguir “atrás dos deuses estranhos da terra”
(Torá [#r<a'ªh'-rk;nE) yheäl{a/ ŸyrEäx]a; / ´aHárê ´élöhê në|kar-hä´äºrec]. O outro texto é
Deuteronômio 32,12. Este faz parte da canção de Moisés. Ele fala que a libertação de Israel
ocorreu por intervenção do Deus de Israel unicamente, “e não havia com ele deus estranho”
[rk")nE laeî AMß[i !yaeîw> / wü´ên `immô ´ël nëkär]. Pode-se dizer que essa última ocorrência está
em paralelo com rz", pois mais adiante, em 32,16, “despertaram o ciúme dele com (deuses)
estranhos” [~yrI+z"B. WhauÞnIq.y: / yaqnì´uºhû Büzärîm].400
399
Deuteronômio 23,21 diz que o empréstimo ao nokrîO poderia ser recebido com juros. 400
O texto não tem a palavra “deuses”. Porém, a palavra fica subentendida a partir de Deuteronômio 32,12, e do
Salmo 78,58 que parece ser uma interpretação de Deuteronômio 32,12: “E o provocaram com os seus lugares
171
Comparativamente, o nokrî tem poucas ocorrências dentro do livro de Deuteronômio quando
comparado com o Gër. O Gër aparece nos três grandes blocos literários do livro. A estatística
apresentada anteriormente demonstra que o vocábulo Gër aparece em dezenove versículos do
Deuteronômio.
O Gër era “o estrangeiro residente... (que) habitava sob a proteção da família ou tribo a qual
ele não pertencia, embora não (sendo) escravo, estava obrigado a prestar serviço como
recompensa pela proteção que ele recebia” (PRICE, 1908, p. 269). Por essa razão, ele é o
“estrangeiro que reside em teu meio” (Deuteronômio 26,11), e deve participar da festa do
camponês em sua celebração na apresentação de sua oferta do produto da terra diante de Javé.
Tanto ele quanto o levita seriam participantes dessa alegria pela colheita bem sucedida e com
eles a oferta do produto da terra seria repartida.
3.3.4.2. O rz" [zär]
A palavra aparece dentro do livro em apenas duas ocasiões. Uma está em Deuteronômio 25,5,
para proibir o casamento da mulher viúva com outro homem fora do clã [rz"+ vyaiä],401
cumprindo a legislação do levirato. Mas aqui tem o sentido de fora da família, pois a mulher
do morto deveria casar com o irmão para preservar o nome do morto sobre a herança. Além
disso, a palavra “fora” [#Wx] qualifica o rz" como sendo um homem fora da família, mesmo
que ele fosse um israelita.402
Seu sentido básico é de “estrangeiro”, “estranho”, e é empregada tanto como adjetivo como
substantivo dentro da BH (MARTIN-ACHARD, 1978, p. 728). Nos escritos proféticos, zär
carrega o “sentido étnico ou político... designam os povos estrangeiros com os quais Israel
está relacionado, especialmente seus inimigos políticos” (MARTIN-ACHARD, 1978, p. 729).
nokrî e zär aparecem em paralelo dento do livro de Provérbios para indicar de quem deveria
esperar o louvor, em lugar de fazer promoção pessoal: “Seja outro [zär] quem te louve, um
altos, e despertaram o seu ciúme com suas imagens” [`WhWa)ynIq.y: ~h,ªyleysip.biW÷ ~t'_Amb'B. WhWsïy[ik.Y:w /
wayyak`îsûºhû Bübämôtäm ûbipsîlêhem yaqnî´ûºhû]. 401
A outra referência está em Deuteronômio 32,16, já vista no ponto anterior. 402
“O mandamento do levirato deverá ser cumprido pelo irmão maior de preferência” (Torá, 2001, p. 576).
172
estranho [nokrî], e não os teus lábios” (Provérbios 27,2, BJ).403
No livro de Provérbios as
duas palavras aparecem juntas para designar uma mulher que, para os sábios de Israel, não
deveria ser objeto do desejo daqueles que buscavam a sabedoria: “para livrar-te da mulher
estrangeira [hr"_z" / zärâ], da estranha... [hY"©rIk.N"mi / nokriyyâ]” (Provérbios 2,16, BJ).404
Enfim, o que mais a dizer? O Gër é o estrangeiro acolhido por Israel. Ele veio para Israel
porque tinha necessidades que afetariam sua sobrevivência, caso ficasse em sua terra – ele
precisava de comida, vestimenta e proteção – elementos que o Deus de Israel se propõe a
suprir através de seu povo. Como Gër, ele participa das festas de Israel, e tem
responsabilidades diante da lei de Deus, afinal, ele é residente e tem que se sujeitar às leis que
regem aquele povo.
Como o nokrî, o zär é um estrangeiro que está de passagem por Israel, ou que, mesmo
vivendo em Israel, não tem identificação com ele e, por isso, a palavra pode ser traduzida por
“estranho”, distinto do nativo e do estrangeiro residente. Ele também não depende de Israel
para sua sobrevivência. Ele pode comprar e, de alguma forma, não tem obrigação de vivenciar
a lei a que Israel e o Gër estão sujeitos. nokrî e zär podem ser traduzidas tanto por “estranho”
quanto por “estrangeiro”, e quando ocorrem em paralelismo, elas são traduzidas por uma ou
outra forma de tradução. Isso aponta para um intercâmbio de significados entre as duas, elas
são vizinhas uma da outra (MARTIN-ACHARD, 1978, p. 728).
3.4. O Ente Silencioso desprovido de herança: o levita [ywIle / lëwî]
Vocábulo Deuteronômio 1-11 Deuteronômio 12-26 Deuteronômio 27-34
ywIle, lëwî 12,12.18.19;
14,27.29; 16,11.14;
18,1.6.7; 21,5;
26,11.12.13
27,9.14; 31,9.25;
33,8
403
Dentro do livro de Salmos elas aparecem para indicar os deuses opostos ao Deus de Israel e que não deveriam
ser adorados: “Nunca haja em ti deus alheio [zär], nunca adores um deus estrangeiro [rk")nE / nëkär]” (Sl 81,10,
BJ). 404
As duas palavras aparecem em Provérbios 5,20; 7,5; Jeremias 5,19. Mas em Provérbios 5,10; 20,16 aparecem
juntas nokrî e zär .
173
3.4.1. Observações
Pelo quadro acima, como primeira observação, nota-se que lëwî aparece em sua maior parte
no bloco literário que vai de Deuteronômio 12 a 26. Este dado aponta essencialmente para a
vida do lëwî dentro de comunidades do campo ou relacionado à legislação atribuída ao
Santuário Central. Pode-se dizer que o lëwî é um membro conhecido da comunidade a quem
o Deuteronômio fala, e, como tal, conhecido pelo que ele é – essencialmente pela sua tribo de
origem.405
Dentro do livro de Deuteronômio, a palavra lëwî não tem um nome próprio que lhe anteceda
ou suceda, exceto quando ela vem acompanhada da palavra “sacerdotes”, os chamados
“levitas sacerdotes”. Assim, a palavra lëwî pode funcionar tanto como um substantivo como
um adjetivo – ela pode se referir ao patrono da tribo, o filho de Jacó que dera nome a ela, ou a
um indivíduo que vive dentro da comunidade e descende dela.
O outro bloco literário onde a palavra lëwî aparece trata do encerramento do livro, constando
de Deuteronômio 27 a 34. O capítulo 27 é um bloco literário em que as palavras são
atribuídas a Moisés; no 31 também as palavras são colocadas na boca de Moisés como as
tendo falado, e no 33 é onde se apresenta a bênção atribuída a Moisés sobre as tribos de Israel,
entre as quais está a tribo de lëwî.
3.4.2. Etimologia
A origem do nome, dentro da BH, pode ser traçada a partir do emprego encontrado dentro da
declaração de Lia, em Gênesis 29,34: “E concebeu novamente, e gerou um filho. E ela disse:
‘Agora, desta vez, unir-se-á a mim meu homem, porque dei à luz para ele três filhos’. Assim,
chamou-lhe Levi”.406
O verbo “unir” [hwl/ läwâ] faz um jogo de palavras com lëwî, dentro
405
A situação financeira dos levitas lhes deve ter sido favorável nos reinados de Davi e Salomão. Mas com a
cisão de Israel entre Reino do Norte, denominado de Israel, e Reino do Sul, denominado de Judá, o
favorecimento ao trabalho dos levitas veio a ser minimizado. O cronista narra o desprestígio que os levitas e
sacerdotes desfrutaram no Reino do Norte, sob Jeroboão I, levando-os a abandonarem suas propriedades no
Norte e a se mudarem para o Sul (2 Crônicas 11,11.12; 13,9), pois Jeroboão I os havia expulsado. Este
deslocamento em massa provocou sobrecarga financeira em Judá que, com a divisão do reino de Salomão, não
tinha mais muitos contribuintes para o Templo. Isso levou a muitos deles ao empobrecimento forçado. O apoio
das comunidades se fazia necessário para a sobrevivência destes levitas “estrangeiros”. 406
`ywI)le Amßv.-ar"(q' !KEï-l[; ~ynI+b' hv'äl{v. Alß yTid>l;îy"-yKi( yl;êae ‘yviyai hw<ÜL'yI ‘~[;P;’h; hT'Û[; rm,aToªw: è!Be dl,Teäw: édA[ rh;T;äw: 34 /
34 waTTaºhar `ôd waTTëºled Bën waTTöº´mer `aTTâ haPPaº̀ am yilläwè ´îšî ´ëlay Kî|-yälaºdTî lô šülöšâ
bänîm `al-Kën qärä|´-šümô lëwî. Notar a alegria de Lia por cumprir a função que era esperada dela como mulher
174
da declaração de Lia, dando ao nome lëwî uma etimologia popular. O verbo läwâ aparece
em Números 18,2.4 para dizer que a tribo de Levi se unirá a Arão para ajudá-lo nos serviços
do Tabernáculo, e em Êxodo 32,26, no caso do bezerro de ouro, para afirmar que a tribo de
Levi se une a Moisés, dando-lhe o suporte necessário em seu embate contra os demais
israelitas que estavam cultuando o bezerro de ouro (KELLERMANN, 1995, p. 487).407
As notas acima não mostram o significado original do nome lëwî, mas como o nome lëwî foi
interpretado e, ao observar as diversas intepretações sobre a origem deste nome, chega-se à
conclusão que não se tem conhecimento sobre o significado original dele.408
Por esta
dificuldade, esta pesquisa apresenta apenas o que a própria BH apresenta como sendo a
origem da palavra lëwî.
3.4.3. Traduções para o Aramaico e Septuaginta
3.4.3.1. Targum
A palavra lëwî é traduzida por ha'w"yle [lêwä’â]409
para o Aramaico. No Aramaico, ela é
considerada um adjetivo (HHL-BW7). Portanto, ela qualifica indivíduos masculinos
pertencentes à tribo de Levi. Esta palavra, lêwä’â, é a que aparece na maioria das ocorrências
dentro de Deuteronômio. Entretanto, em Deuteronômio 21,5 e 31,9, encontra-se a construção
ywIle ynEb. [Bünê lëwî]. lëwî aqui é um nome próprio, provavelmente numa referência ao
ancestral, filho de Jacó, que dera nome à tribo. Na bênção de Moisés, em Deuteronômio 33,8,
a palavra lëwî aparece sozinha como nome próprio. A tribo inteira está colocada sob o nome
ywIle nesse texto de Deuteronômio.
de Jacó. Ela gera para “o seu homem/marido, ´îšî,” mostrando que a função dela dentro do clã é procriar,
especialmente filhos. Ela se gaba de já ter dado a Jacó três filhos. 407
Aponta-se aqui que o verbo “unir” em Êxodo 32,26 não é läwâ, mas @s;a' [´äsp]. Porém, a ideia que se quer
salientar é o conceito de unir repetido em relação aos levitas.
408 Outras propostas quanto ao significado original do nome lëwî são apresentadas por Kellermann (1995, p.
487-490). 409
Esta palavra vem de ywyl [lywy].
175
3.4.3.2. Septuaginta
A palavra lëwî é traduzida para o Grego por Leui,thj.410 Ela não ocorre como adjetivo, mas
como substantivo (GGL-BW7). A LXX omite a palavra lëwî em Deuteronômio 12,18.
Provavelmente porque ela aparece no versículo 19 com a ênfase que o lëwî não deveria ser
esquecido na generosidade do homem em sua celebração pelos frutos do campo. Em
Deuteronômio 31,9, a construção com a palavra lëwî não é Leui,thj, mas ui`oi/j Leui, uma
formação genitiva com a palavra Leui,.411 Como no Aramaico, Leui, é uma referência ao
ancestral que doou seu nome para a formação de uma tribo de Israel.
3.4.4. Análise textual
Pelo quadro anterior, há no livro de Deuteronômio aproximadamente 18 versículos com
aparições da palavra lëwî. Destas ocorrências, pode-se dizer que o livro apresenta quatro
divisões de levitas.412
Elas são apresentadas como segue pela pesquisa abaixo. Elas não são
meramente divisões internas da tribo. Elas são divisões sociais existentes na tribo levita. E o
motivo para isso é que que há o lëwî que tem recursos e o que não os tem.
3.4.4.1. O lëwî como Ente Silencioso específico
O maior número de referências, no Deuteronômio, está relacionado ao grupo de levitas
pertencentes ao grupo de Entes Silenciosos, de modo específico.413
Todas as ocorrências da
palavra lëwî relacionadas a esse grupo estão dentro de Deuteronômio 12 a 26 (12,12.18.19;
14,27.29; 16,11.14; 26,11.12,13). Nessa divisão, apresentada por esta pesquisa, a primeira
classe de levita era aquela que mais se adequa ao conceito de um Ente Silencioso, porque ela
410
Nem todas as ocorrências da palavra aparecem com a inicial maiúscula como aqui. Ela também aparece com
a letra do começo minúscula, leui,thj. Não está clara a motivação dos tradutores para essa opção. A palavra
aparece na LXX com letra maiúscula em Deuteronômio 12,12.19; 14,27; 16,11.14; 18,1.6.7; 21,5; 26,11.12.13;
31,25; 27,9.14; com letra minúscula em 14,29. 411
A mesma palavra ocorre em Deuteronômio 33,8, só que numa construção dativa, mas com mesma grafia. 412
Kellermann, seguindo Gunneweg, diz que é possível distinguir quatro estágios no tratamento dos levitas
dentro do livro de Deuteronômio: “O levita dentro dos teus portões” que era um tipo de estrangeiro; o levita
“dentro dos teus portões” e que possuía os mesmos privilégios que o levita que servia no santuário central; o
levita que também era sacerdote; a tribo inteira de Levi (1995, p. 496-497). 413
Todos os levitas são pertencentes aos Entes Silenciosos, pois eles continuam sem falar e o que é dito sobre
eles é dito por outros. Mas essa primeira divisão trata daqueles que são completamente dependentes do “tu/vós”,
como os demais - Gër, ´almänâ, e yätôm. Assim, poderíamos dizer que essa divisão de levitas é a menos
privilegiada dentro da tribo de lëwî.
176
é constituída de pessoas que não possuíam qualquer propriedade dentro da comunidade em
que viviam, pois isso lhe havia sido vedado (Deuteronômio 12,12.18.19).
Esse levita era aquele que necessitava ser socorrido em suas necessidades (14,27.29). O levita
aqui, especificamente, era pertencente ao grupo de Entes Silenciosos presente no livro de
Deuteronômio, e, como apontado, anteriormente, ele é comumente relacionado com o grupo
constituído por Gër, ´almänâ, e yätôm. Isso não quer dizer que as outras divisões de levitas
não pertençam ao grupo de Entes Silenciosos como essa divisão. Quer dizer que esta é a que
preenche todas as características de um ser dependente, tal como o Gër, a ´almänâ, e o
yätôm, com os quais esse lëwî está relacionado.
O que caracteriza esta divisão de lëwî como, essencialmente, um membro dos Entes
Silenciosos? Em primeiro lugar, como notado acima, todos os textos relacionados a ela estão
dentro do bloco principal de literatura que compõe o livro (12-26). É aqui onde a legislação
deuteronômica se torna prática para os Entes Silenciosos, bem como para o “tu/vós” a quem o
texto é dirigido.
Em segundo lugar, ele é aquele que está “nos teus portões”. Esta construção gramatical
aparece relacionada ao lëwî, em Deuteronômio 12,12.18. Em Deuteronômio 14,27.29
(também 16,11.14; 26,12), o lëwî tem a companhia de outros Entes Silenciosos, Gër,
´almänâ, e yätôm. Estar dentro dos portões é uma expressão figurada para apontar que o
lëwî vive dentro da propriedade do “tu/vós” e, assim, este deve conceder ao lëwî o que ele
precisa para sua subsistência.
Viver “dentro dos teus portões” ou, simplesmente, “que (está) nos teus portões” [^yr<ê['v.Bi
rv<åa] / ´ášer Biš`ärʺkä], aparece em relação ao Gër em Deuteronômio 5,14; 14,21.29;414
24,14;415
31,12. O indivíduo a quem o redator está se referindo é especificado. É como se
414
Deuteronômio 14,29 inclui ´almänâ e yätôm em ´ášer Biš`ärʺkä. 415
Este versículo acrescenta um detalhe. A construção Biš`ärʺkä (“na tua terra”) aparece como um
qualificativo: “o que (está) na tua terra, nos teus portões” [^yr<(['v.Bi ^ßc.r>a;B. rv<ïa] / ´ášer Bü´arcükä Biš`ärʺkä].
“Nos teus portões” é a especificação de “na tua terra” – estar “na tua terra” é estar dentro dos teus domínios,
“nos teus portões”. O que vem a ser “estar nos teus portões”? Segundo esse texto, é estar “na tua terra”. a porção
de terra, a herança, que pertence aquele “tu”. Além disso, aqui o Gër vem acompanhado do `änî wü´ebyôn. O
versículo inteiro pode ser assim traduzido: “Não oprimirás o assalariado pobre e necessitado de teus irmãos ou o
estrangeiro que (está) na tua terra, nos teus portões” [`^yr<(['v.Bi ^ßc.r>a;B. rv<ïa] ^±r>GEmi Aaô ^yx,§a;me !Ay=b.a,w> ynIå[' rykiÞf' qvoï[]t;-al{ 14
/ 14
lö´-ta`ášöq Säkîr `änî wü´ebyôn më´aHʺkä ´ô miGGërkä ´ášer Bü´arcükä Biš`ärʺkä].
177
estivesse acontecendo um diálogo hipotético no texto. O redator está falando de um
estrangeiro, e a audiência pergunta ao orador sobre qual estrangeiro ele estava se referindo.
Então ele responde com a construção: “aquele que está nos teus portões” [´ášer Biš`ärʺkä].416
Com relação ao lëwî, a construção ´ášer Biš`ärʺkä também tem a finalidade de especificar o
levita a quem o redator está se referindo. Com muitos levitas vivendo na Terra de Israel, qual
ele tinha em mente? “Aquele que está nos teus portões”. Em relação a lëwî, ela aparece em
Deuteronômio 12,12.18;14,27.29; 16,11.14; 26,12.
Assim, ´ášer Biš`ärʺkä salienta a propriedade do “tu/vós” delimitada. A construção aponta
para as pessoas que estão dentro daquela propriedade, desfrutando do acolhimento,
temporário ou não. Sendo que o “tu/vós”, a quem o texto se refere, é aquele que tem o poder
de decisão – o líder do clã.
Porém, há outra formação gramatical que torna mais específica à proximidade dos Entes
Silenciosos do “tu/vós”: “que (está) no meio de ti” [^B<+r>qiB. rv<åa] / ´ášer BüqirBeºkä]. Ela
aparece em Deuteronômio 16,11, onde estão envolvidos, de modo específico, o Gër, a
´almänâ, e o yätôm; em 26,11, onde os envolvidos são apenas o lëwî e o Gër; no entanto, em
28,43 e 29,11 (hebraico v. 10) ´ášer BüqirBeºkä aponta para o Gër, somente.
Esta construção, br,q,B., tem grande quantidade de significados, como demonstra Shökel
(1997, p. 591). Com, b, como nesses textos em Deuteronômio, pode ter o sentido de “o lugar
dentro do qual: de uma comunidade” (SHÖKEL, 1997, p. 591).417
Se se entender BüqirBeºkä,
“no meio de ti”, como uma referência ao clã no qual o lëwî, o Gër, a ´almänâ, e o yätôm se
encontravam, então se pode ver uma construção que pertença ao mesmo campo semântico de
Biš`ärʺkä, “nos teus portões”. O texto que favorece a esta interpretação é Deuteronômio
16,11, onde as duas formações aparecem: “E te alegrarás diante de yhwh teu Deus – tu, e teu
filho e tua filha, e teu servo, e tua serva, e o levita que (está) nos teus portões [Biš`ärʺkä], e o
416
Em um diálogo entre Jesus e um sábio judeu é desenvolvido uma definição do que vem a ser um “próximo”, a
partir de uma pergunta do sábio para Jesus: “Quem é o meu próximo?”. Na resposta de Jesus, o próximo é aquele
necessitado que precisasse de ajuda e que, tal ajuda, estava dentro da possibilidade daquele sábio ajudar e estaria
perto de quem pudesse ajudar (Evangelho de Lucas 10,25-37). Aparentemente, Jesus tem seu pensamento
lapidado por Deuteronômio quando conta a parábola do “bom samaritano” para aquele sábio, e tem em mente a
questão que envolvia Biš`ärʺkä. Quem são as pessoas que o “tu/vós” devia ajudar? Aqueles (ou aquele) que
estão ao alcance dele – ele (ou eles) está (estão) nos teus portões, está na tua terra, ou está no meio de ti. 417
Esse significado pode ser tanto com b quanto com !mi (p. 591).
178
estrangeiro, e o órfão, e a viúva que (estão) no teu meio [BüqirBeºkä], no lugar que yhwh teu
Deus escolher para estabelecer seu nome lá”.418
O texto não parece fazer uma divisão entre hallëwî ´ášer Biš`ärʺkä e haGGër wühayyätôm
wühä´almänâ ´ášer BüqirBeºkä, pois tanto um como outro devem fazer parte da alegria do
“tu” e sua família – filha e filho. Assim, estar “nos teus portões [BüqirBeºkä] é estar “no meio
de ti” [BüqirBeºkä].
Com isso, o estar dentro dos portões iguala o lëwî, de modo específico, ao Gër, a ´almänâ, e
ao yätôm, fazendo com que o lëwî esteja ali pelos mesmos motivos – guerra, fome, ou algum
tipo de privação. Ali ele está sob a proteção daquele que o acolhe. Como o lëwî é um Ente
Silencioso, o redator se dirige ao “tu/vós”.
Em terceiro lugar, como membro do grupo de Entes Silenciosos, é ordenado que o lëwî
jamais fosse esquecido pelo clã que o acolhe. Em Deuteronômio 12,19 é dito que: “Seja
guardado419
por ti: Não420
abandones o levita todos os teus dias sobre o teu solo”.421
Dentro
do contexto deste texto, de que tipo de abandono o lëwî deveria ser preservado pelo ouvinte?
A resposta pode ser encontrada nos versículos 17 e 18. Nestes textos o “tu” é proibido de
comer o dízimo no lugar onde vive, e que ele deve comê-lo no lugar designado. Nessa comida
festiva, “perante yhwh teu Deus”, participa a família, os servos, e “o levita que (está) nos teus
portões”. Este usufruto da comida, elemento básico para a sobrevivência do lëwî, não poderia
ser esquecido. Deve-se apontar que aqui apenas o levita, além da família e dos servos, é que é
indicado a participar da comida festiva.
418
^yr<ê['v.Bi rv<åa] ‘ywILeh;w> è^t,m'a]w: ^åD>b.[;w> é^T,biW ^ån>biW hT'’a; ^yh,ªl{a/ hw"åhy> ŸynEåp.li T'úx.m;f'w>11
`~v'( Amßv. !KEïv;l. ^yh,êl{a/ hw"åhy> ‘rx;b.yI rv<Üa] ~AqªM'B; ^B<+r>qiB . rv<åa] hn"ßm'l.a;h'w> ~AtïY"h;w> rGE±h;w> / 11
wüSämaHTä
lipnê yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä ´aTTâ ûbinkä ûbiTTekä wü`abDükä wa´ámätekä wühallëwî ´ášer Biš`ärʺkä
wühaGGër wühayyätôm wühä´almänâ ´ášer BüqirBeºkä Bammäqôm ´ášer yibHar yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä
lüšaKKën šümô šäm . 419
O verbo aqui é nifal imperativo, rm,V'ähi [hiššäºmer]. Nessa tradução, optou-se por traduzi-lo acompanhado do
verbo ser. Assim: “Seja guardado”. Mas o que deveria ser guardado pelo ^êl. [lükä]? A observância de nunca
abandonar o lëwî. 420
!P<) aponta para a proibição de um evento possível por parte daquele a quem a mensagem é dirigida (BW7). O
que seria possível ser esquecido pelo ouvinte? O amparo devido ao lëwî ´ášer BüqirBeºkä (Deuteronômio 12,18).
Seguido do imperfeito bzOà[]T;, pode-se sugerir que a proibição tem como propósito o impedimento do começo de
uma ação. 421
`^t<)m'd>a;-l[; ^ym,Þy"-lK' ywI+Leh;-ta, bzOà[]T;-!P<) ^êl. rm,V'ähi 19 /
19 hiššäºmer lükä Pe|n-Ta`ázöb ´et-hallëwî Kol-
yämʺkä `al-´admäteºkä.
179
Esse tratamento especial para o lëwî aponta para ele como alguém dependente de ajuda para
sua sobrevivência, ao mesmo tempo em que salienta outra qualidade dos membros deste
grupo de lëwî em Deuteronômio 14,27 – “E o levita que está nos teus portões, não o
abandonarás, porque para ele não há território e herança contigo”.422
Esta oração explicativa
volta a aparecer no versículo 29. Somente que neste versículo ela não somente qualifica o
lëwî como o torna distinto dos outros Entes Silenciosos presentes no texto - o Gër, a
´almänâ, e o yätôm. A privação de uma propriedade por parte do lëwî não foi por opção
pessoal tomada por ele, mas por imposição divina (18,1).
Assim, a inexistência de uma propriedade havia levado este grupo de lëwî a uma situação
extrema – a completa necessidade de dependência do “tu/vós”.
3.4.4.2. O lëwî como membro da classe sacerdotal
A segunda divisão de levitas era aquela constituída pelos “sacerdotes levitas”, onde a palavra
“sacerdote” vem necessariamente qualificada pela palavra “levita”. Em Deuteronômio as
ocorrências são em 18,1; 21,5; 27,9 e 31,9. A forma como essa qualificação acontece segue as
duas formas seguintes de formação: em Deuteronômio 18,1, a construção é: “para os
sacerdotes levitas” [~YI÷wIl.h; ~ynI“h]Kol; / laKKöhánîm halüwiyyìm] e em 27,9 é: “os sacerdotes
levitas” [~YIëwIl.h; ~ynIåh]Koh; / haKKöhánîm halüwiyyìm]; já em 21,5 e 31,9, a qualificação segue
assim: “os sacerdotes, filhos de Levi” [ywIle ynEåB. é~ynIh]Koh ; / haKKöhánîm Bünê lëwî].423
3.4.4.2.1. O motivo dessa especificação
A questão que se deve fazer é porque o livro de Deuteronômio traz, de forma específica, a
definição que os sacerdotes deveriam ser “filhos de Levi” ou, simplesmente, “levitas”. Em
primeiro lugar, Deus definiu quem deveria ocupar o sacerdócio, posição que já havia sido
disputada por outros, como mostram as narrativas do deserto. Como o sacerdócio era uma
posição de grande influência, a primeira disputa para a posição aconteceu entre os próprios
membros da tribo de Levi no deserto. Um grupo liderado por um homem de nome Corá
422
`%M")[i hl'Þx]n:w> ql,xeî Al± !yaeî yKiä WNb,_z>[;t;¥ al{å ^yr<Þ['v.Bi-rv,a] ywIïLeh;w> 27 /
27wühallëwî ´ášer-Biš`ärʺkä lö´
ta|`azbeºnnû Kî ´ên lô Hëºleq wünaHálâ `immäk. 423
Esta qualificação dos sacerdotes como sendo dos “filhos de Levi” fora encontrada, por esta pesquisa, somente
nestes dois lugares dentro do livro de Deuteronômio, em toda a BH. As outras duas estão em 1 Reis 12,31 e
Ezequiel 40,46, mas não como a construção existente dentro de Deuteronômio.
180
questionou a posição de Arão como sacerdote (Números 16). A questão, sobre a quem
pertencia o sacerdócio, fora definitivamente resolvida por escolha divina, feita mediante o
milagre do florescimento da vara que levava o nome de Arão (Números 17).424
Em segundo lugar, o contexto de abrangência do livro de Deuteronômio necessita que isso
seja especificado. Isso quer dizer que essa forma de salientar, que os sacerdotes deveriam ser
dos filhos de Levi, vem da polêmica existente entre os redatores de Deuteronômio e os reis do
norte.425
Os reis do Norte tinham o costume de constituir seus próprios sacerdotes. A
qualificação dos sacerdotes como tendo que ser dos filhos de Levi torna-se relevante para este
período.426
Assim, a política de Jeroboão I, e dos reis que o sucederam no Reino do Norte,
forçava o redator a especificar quem deveria ser sacerdote.
3.4.4.2.2. A caracterização dos “sacerdotes levitas”
O que caracteriza os sacerdotes levitas? Deuteronômio 18,1-5 mostra que os sacerdotes são
levitas e ao mesmo tempo são distintos do restante da tribo de Levi. A eles foi dado o direito
de comer das coisas sacrificadas, porém, especificamente, das ofertas que seriam queimadas
ao Deus de Israel, e a motivação para isso é que a eles fora vetada a possibilidade de ter
algum tipo de herança no meio de Israel. Deuteronômio 18,1 diz: “Não haverá para os
sacerdotes levitas, toda a tribo de Levi, território e herança427
com Israel. (Eles) comerão as
ofertas queimadas428
a yhwh, e (ela será) a herança/possessão dele”.429
A ordenança é dirigida diretamente aos “sacerdotes levitas”. “Tribo de Levi” funciona aqui
como aquela que também não receberá herança no meio de Israel e o motivo de os
“sacerdotes levitas” não terem qualquer tipo de herança ou propriedade no meio de Israel,
424
Deus havia ordenado que cada tribo trouxesse uma vara, com o nome da tribo. A vara da tribo de Levi deveria
ter o nome de Arão. Essas varas deveriam ser colocadas no Tabernáculo para passarem uma noite ali. A tribo
escolhida teria a vara florescendo. Para definir a escolha divina, a vara com o nome de Arão foi a que floresceu
(Números 17). 425
Sánchez aponta que a origem do livro de Deuteronômio está no Reino do Norte, onde o livro sublinha a
polêmica entre os seguidores de Baal e aqueles que defendiam o Deus de Israel, tendo principalmente nos
oráculos de Elias, Amós e Oséias como pano de fundo (2002, p. 19). 426
O livro de 1 Reis 12,31 afirma que Jeroboão I constituiu seus próprios sacerdotes, os quais “não eram filhos
de Levi” (BJ). Em 1 Reis 13,33 diz de Jeroboão “a quem desejasse, ele dava a investidura para se tornar
sacerdote dos lugares altos” (BJ). Isto se tornou uma prática dos reis do Reino do Norte a partir de Jeroboão. 427
A palavra “herança” [hl'Þx]n: / naHálâ] aparece duas vezes nesse versículo. 428
“Ofertas feitas ao SENHOR pelo fogo” (TENNEY, 1992, p. 119). 429
`!Wl)keayO Atßl'x]n:w> hw"±hy> yVeóai lae_r"f.yI-~[i hl'Þx]n:w> ql,xeî ywI±le jb,veó-lK' ~YI÷wIl.h; ~ynI“h]Kol; hy<h.yIû-al{) / lö|´-yihyè
laKKöhánîm halüwiyyìm Kol-šëºbe† lëwî Hëºleq wünaHálâ `im-yiSrä´ël ´iššê yhwh(´ädönäy) wünaHálätô
yö´këlûn.
181
pois eles pertencem à Tribo de Levi. A palavra “herança” [naHálâ], em sua primeira
ocorrência nesse versículo, afirma o que os sacerdotes levitas não terão herança. Em sua
segunda aparição, ela mostra o que eles terão “as ofertas queimadas a yhwh”. A última frase
do versículo apresenta, de forma específica, que essas ofertas devem ser dadas aos sacerdotes
levitas, porque elas são uma espécie de possessão de yhwh.430
Mesmo assim, os sacerdotes levitas não ficariam sem uma herança. Deuteronômio 18,2 afirma
qual será a herança desses servidores do Tabernáculo: “E não haverá herança para ele no meio
de seus irmãos – o próprio yhwh (será) sua herança, conforme falou para ele”.431
O que
significa dizer que “yhwh (será) sua herança”? A construção pode ser entendida que Deus
será a herança “tanto quanto possessões materiais for uma preocupação” (TENNEY, 1992, p.
318) para Israel. Assim, se havia uma preocupação com herança material para qualquer
israelita comum, havia também para os membros da Tribo de Levi, e, de forma especial no
texto, para os sacerdotes levitas. Para diminuir qualquer preocupação com isso, o Deus de
Israel se interpõe como a sua herança, com a qual eles manterão um relacionamento especial.
Outra forma de entender essa construção é do ponto de vista da perda de ganho. A Tribo de
Levi perdeu em posses territoriais, mas ganhou em “posição privilegiada como intercessores
entre Deus e seu povo” (MERRILL, 1994, p. 268). De modo especial os sacerdotes levitas
seriam aqueles que representariam o povo de Israel diante de Deus.
A palavra naHálâ tem a ver com possessão que passa de pai para filho de forma permanente,
como a herança de um clã (COPPES, 1980, p. 569). A Tribo de Levi teria a autodoação de
herança, onde o próprio Deus de Israel se doa em herança a eles, como forma de compensação
da perda de possessões territoriais. No caso específico dos sacerdotes levitas, como eles
teriam que devotar seu tempo ao serviço no Tabernáculo, aquilo que seria dado a Deus é
repassado para esses sacerdotes como forma de pagamento pelo trabalho devotado, no
Tabernáculo, como demonstra Deuteronômio 18,3-5. Entretanto, toda a terra de Israel
pertence ao Deus de Israel (Êxodo 19,5). Mesmo que Deus não fosse um deus para ser
430
O verbo está na terceira pessoa do plural masculino, `!Wl)keayO / yö´këlûn. No entender desta pesquisa, ele
aponta para ~YI÷wIl.h; ~ynI“h]Kol; / laKKöhánîm halüwiyyìm. Como a última palavra, “possessão dele/sua”, aponta
para as ofertas queimadas, então, já que as ofertas queimadas são uma porção dada ao Deus de Israel, mas ele
não come, elas são dadas aos sacerdotes levitas, para a sua subsistência, pois eles comem. 431
`Al)-rB,DI rv<ßa]K; Atêl'x]n: aWhå ‘hw"hy> wyx'_a, br<q<åB. ALß-hy<h.yI)-al{ hl'îx]n:w> 2 /
2 wünaHálâ lö´-yi|hyè-llô
Büqeºreb ´eHäyw yhwh(´ädönäy) hû´ naHálätô Ka´ášer DiBBer-lô. Notar que a palavra “herança” aparece duas
vezes também aqui.
182
domesticado por seus adoradores, a Tribo de Levi e, de modo especial, os sacerdotes levitas,
possuiriam-no na medida em que o representassem de acordo com o que era exigido deles.
Dessa forma, Deus seria a herança de Levi.
Deuteronômio 18,3-5 mostra que o redator não está falando da Tribo de Levi, mesmo que ele
venha falando de “ele” no sufixo pronominal de algumas palavras. Especificamente, ele diz
quais partes das ofertas devem ser dadas aos sacerdotes (v. 3), como parte de sua herança
divinamente concedida – a eles cabia receber dos ofertantes partes específicas dos animais
sacrificados, e também recebiam das primícias do campo e dos animais (v. 4). Com isso,
mesmo que eles pertencessem à tribo de Levi, eles eram distintos dos outros também porque
somente a eles foi dado o direito do sacerdócio – o fato de ser levita não dava direito ao
sacerdócio, mas somente aos descendentes de Arão (v. 5).
Por último, aos sacerdotes, filhos de Levi, também competia o direito de decidir juízos, pois a
Lei fora entregue por Moisés a eles – assim, os sacerdotes detinham o conhecimento, e, entre
a tribo de Levi, era o grupo mais instruído (21,5; 31,9).
Portanto, como os sacerdotes levitas também eram sem propriedade, pode-se dizer que eles
pertenciam ao grupo de Entes Silenciosos, mas com ganho garantido pelas ofertas do altar, as
primícias do povo, o que os distinguia dos levitas apresentados no ponto anterior, cujo
sustento era dependente da comunidade que os acolhia. Assim, mesmo que os sacerdotes
levitas não possuíssem herança dentro do povo de Israel, mas com sua subsistência garantida
pelas ofertas do altar, eles podiam possuir vida melhor que a daquele levita que vivia dentro
das comunidades rurais e cidades pequenas.
3.4.4.3. O lëwî como uma tribo em Israel
A terceira classe de levitas era aquela constituída da tribo de Levi como um todo (18,1; 33,8).
Aqui é onde a palavra lëwî designa o grupo inteiro de levitas sem se importar com o que cada
um deles faz de modo específico. Porém, em Deuteronômio 18,1, como visto acima, é feita
uma distinção entre a tribo de Levi como um todo e o grupo de levita denominado de “levitas
sacerdotes”. Nesse texto é especificada a forma de subsistência de uma parte da Tribo de
Levi.
O outro texto é o que aborda a benção de Moisés às tribos de Israel, e, de forma específica, à
tribo de Levi, tem algumas peculiaridades. Primeiro, as declarações iniciais são dirigidas
183
diretamente à Tribo de Levi como um todo, para, logo em seguida, mostrar que a ênfase da
bênção seja dirigida, não à tribo inteira, mas aos “sacerdotes levitas” e, especificamente,
aquele que seria o “sumo-sacerdote” porque era a ele que caberia a responsabilidade de levar
as pedras mágicas denominadas de “Urim e Tumim” (33,8). Elas seriam um meio de conhecer
os oráculos divinos, a vontade de Deus.
Aqui (33,8) ele é chamado de “teu homem santo” – um homem separado para aquela função.
Mesmo que a figura de “homem santo” se aplique ao sumo-sacerdote, neste contexto ele tem
em mente Arão, e os sacerdotes que dele descendem. Como apontado no ponto acima, tal
especificação mostra o destaque de quem deveria ser o sacerdote, e, novamente, entra numa
polêmica com os sacerdotes constituídos no Reino do Norte, mas também coloca para os que
retornam do Exílio de quem deveria ser o sacerdócio.
Essa peculiaridade coloca a primeira parte da bênção sobre apenas um grupo, a elite dos
levitas, o sacerdote principal. Entretanto, a referência é a Arão, nas palavras finais do texto,
onde é citado o que aconteceu em Êxodo 20, onde Moisés e Arão deveriam falar à rocha, mas
a feriram, recebendo o juízo divino de não entrar na Terra da Promessa. Foi ali que o Deus de
Israel contendeu com eles.
A segunda peculiaridade (Deuteronômio 33,9) é uma recordação do evento narrado em Êxodo
32, onde os levitas fizeram a opção de seguir Moisés quando do evento do bezerro de ouro.
Ao dizer que nunca viu seu pai e mãe, não reconhece seus irmãos e que eles se firmaram na
palavra divina, ele está apontando para aquele evento em que a lealdade dos levitas foi
demonstrada por ficar ao lado de Moisés e matar todos os que estavam rebelados, por
cultuarem o bezerro de ouro.
A terceira peculiaridade (Deuteronômio 33,10) é ao ensino dos levitas. Cabia a eles
ministrarem o ensino das leis e juízos divinos em Israel. Juntamente com isso, também era
função deles apresentarem o incenso no santuário e de oferecerem os holocaustos no altar
diante do Tabernáculo e, posteriormente, do Templo Central. Com isso, apontam-se as três
funções da tribo de Levi: a função oracular, com o Urim e Tumim; a função do ensino; e a
função nos altares do holocausto e do incenso.
Finalmente, a benção específica vem em Deuteronômio 33,11, onde Deus é convidado a
abençoar a tribo de Levi em sua força ou capacidade militar, na aceitação dos seus feitos
184
(oráculo, ensino e ofertas) diante de Deus, e na derrota violenta de seus adversários. Depois
da tribo de José, a bênção à tribo de Levi é a que ocupa maior espaço nas últimas palavras
atribuídas a Moisés.
O que se pode ver é que a Tribo de Levi é vista, não em sua unidade somente, mas também
em suas particularidades. Assim, nota-se a unidade da Tribo de Levi dentro de sua
diversidade. Ela é uma tribo de Israel, mas dentro da tribo há diversidade pelas funções que
ela realiza. Qualquer que seja a função, ela está relacionada ao trabalho procedente do
Santuário Central – Urim e Tumim, sacrifícios e ensino.
3.4.4.4. O lëwî como um cuidador da arca da aliança
A última classe de levitas era constituída daqueles que cuidavam da arca da aliança e estavam
a serviço permanente dos sacerdotes levitas, junto ao Santuário Central (31,9.24). Tanto o
levita que vivia no campo quanto aquele levita que era sacerdote diante do santuário central,
todos pertenciam à mesma tribo, a tribo de Levi.
Quanto à questão do patrimônio, o levita que ia ao Santuário Central para prestar algum tipo
de serviço, junto aos sacerdotes levitas, tinha os mesmos direitos de usufruir das ofertas ali
oferecidas, durante o tempo em que estivesse a serviço do sacerdócio, e ele também poderia
vender seu “patrimônio” naquele lugar (18,6.7). Tanto o patrimônio dos levitas sacerdotes
quanto o patrimônio referido a esse levita, que prestava serviço temporário no Santuário
Central, constituía-se de bens adquiridos por sua participação no serviço junto ao Santuário, e,
provavelmente, era constituído de animais e frutos do campo. Isso indica que a situação
daqueles que viviam para o serviço junto ao Santuário tinham suas vantagens em relação
àqueles que viviam no meio de comunidades pobres do interior.
Em suma, esta seção trata daqueles que, normalmente, aparecem juntos dentro do livro do
Deuteronômio: Gër, ´almänâ, yätôm, e lëwî. Na essência, o que os caracteriza é que eles são
todos como um Gër, por três motivos – eles não têm propriedade, e são dependentes dos
outros para sua sobrevivência – mesmo que essa dependência fosse da generosidade da fé
daqueles que faziam suas ofertas regulares, e, assim, formam um grupo social distinto dentro
do Israel deuteronômico.
185
Portanto, o Gër, a ´almänâ, o yätôm, e o lëwî, colocados juntos nesta unidade da pesquisa,
caracterizam-se por sua completa dependência dos outros. Suas necessidades são supridas por
meio de ações generosas do “tu/vós”. Desse modo, como eles não têm qualquer tipo de
patrimônio dentro de Israel, pode-se dizer que todos eles são um tipo especial de Gër.
Porém, como sobreviver em um mundo como peregrino? Como o Deuteronômio ajudou esse
grupo de “estrangeiros” dentro do povo de Israel. A resposta está no dízimo do terceiro ano,
instiuído especificamente para ajudá-los.
3.5. O Dízimo do terceiro ano (Deuteronômio 26,12-15)432
3.5.1. Tradução
12 – “Quando terminares433
de fazer a coleta do dízimo, o dízimo todo do teu produto do
campo434
naquele ano, o dízimo do terceiro ano.435
E tu (o) darás436
para o levita, para
432
O dízimo do terceiro ano é uma legislação específica do Deuteronômio. Ele já havia aparecido no texto de
Deuteronômio 14,28-29. Nesse texto, especificamente é dito que o dízimo do terceiro ano deve ser arrecadado no
fim de cada terceiro ano e colocado à disposição do levita, órfão, viúva e do estrangeiro residente. Ali o levita é
qualificado como alguém que não tem patrimônio no meio de Israel: “porque para ele (o levita) não há porção e
herança contigo” (14,29 [%M'ª[i hl'øx]n:w> ql,xe’ •Al-!yae( yKiä]). Essa qualificação não está presente em Deuteronômio
26,12-15. 433
O verbo hl'K', no piel, significa “trazer a um fim”, completar (HALOT, 2001, v. 1, p. 477), “encerrar (uma
tarefa, trabalho)” (SCHÖKEL, 1997, p. 317). A ideia é que algo tem sido encerrado. Isso sugere que o redator
está pressupondo que a colheita dos produtos do campo foi encerrada e que é possível quantificar o dízimo do
terceiro ano. Essa quantidade separada deveria ser doada para os Entes Silenciosos. Notar que, ao ser deixado
para ser retirado no fim do ano terceiro, o fazendeiro teria a noção da quatidade exata do dízimo a ser dado. 434
A construção ^±t.a'WbT. rf:ô[.m;-lK'-ta, rfe[.l;û [la`Sër ´et-Kol-ma`Sar Tübû´ätkä] funciona no texto como o
objeto direto do verbo hL,úk;t. [tükallè], aqui no piel, “completar” [hl'K']. A forma apositiva como foi traduzida
a construção foi motivada porque o verbo rf[, “coletar o dízimo” (HHL-BW7), já dá a ideia de coletar o
dízimo, sendo ^±t.a'WbT. rf:ô[.m;-lK'-ta, a especificação de qual dízimo deveria ser recolhido – “todo dízimo do
teu produto do campo”. O que está apontado aqui é o balanço final das colheitas e a separação do dízimo delas.
Essa parte do produto do campo é a que deveria ser concedida a esse grupo de Entes Silenciosos. 435
“No ano, o terceiro ano do dízimo” [rfE+[]M;h;( tn:åv. tviÞyliV.h; hn"ïV'B; / Baššänâ haššülîšìt šünat ha|mma`áSër].
A segunda construção apositiva de Deuteronômio 26,12. “Todo teu dízimo do produto do campo no ano” precisa
de uma explicação sobre qual ano o redator está pensando– a cada ano ou um ano específico? O redator, por
meio de um aposto, especifica o dízimo de qual ano ele está falando. Ele está falando de “o terceiro ano do
dízimo”, literalmente. 436
O verbo “dar” [!tn] aparece quatro vezes nesta unidade textual.
186
o estrangeiro, para o órfão e para a viúva.437
E eles comerão nos teus portões. E eles
serão saciados.”438
13 – “E dirás diante de ´ädönäy teu Deus: Eu removi439
o consagrado440
da casa441
e
também o dei para o levita e para o estrangeiro e para o órfão e para a viúva, conforme
todo o teu mandamento que tu me mandaste. Eu não transgredi442
e não me esqueci
dos teus mandamentos.”443
14 – “Não o444
comi no meu luto445
e não o consumi em impureza, e não dei dele para
o que morreu.446
Ouvi a voz de ´ädönäy meu Deus. Fiz conforme tudo que me
ordenaste447
.”448
437
É a segunda vez que o quarteto [ywI©le, rGE, ~Atåy" e hn"ëm'l.a;] aparece nesta unidade textual. No versículo anterior
eles aparecem na boca do redator quando ele se dirige ao “tu” a quem cabe o dever de dar o dízimo do terceiro
ano. Nesse versículo, os quatro aparecem na boca do “tu” confirmando a entrega do dízimo aos destinatários,
segundo o mandamento recebido. 438
`W[be(f'w> ^yr<Þ['v.bi Wlïk.a'w> hn"ëm'l.a;l'¥w> ~AtåY"l; ‘rGEl; ywI©Lel; hT'ät;n"w> rfE+[]M;h;( tn:åv. tviÞyliV.h; hn"ïV'B; ^±t.a'WbT. rf:ô[.m;-lK'-ta, rfe[.l;û hL,úk;t. yKiä12
[12
Kî tükallè la`Sër ´et-Kol-ma`Sar Tübû´ätkä Baššänâ haššülîšìt šünat
ha|mma`áSër wünätaTTâ lallëwî laGGër layyätôm wülä|´almänâ wü´äklû biš`ärʺkä wüSäbëº̀ û]. 439
r[B é um verbo normalmente empregado para purificação de pecado da sociedade, mas aqui ele foi usado
para indicar que a remoção do dízimo foi total e que dele nada ficou na casa do confessor (TIGAY, 1996, p.
243). Assim como a remoção do pecado deve ser completa, a do dízimo também. Ver Deuteronômio 13,6 e 2
Reis 23,24. 440
Em Deuteronômio 26,13 não aparece a palavra dízimo. Ela ocorre duas vezes no v. 12, na boca do redator. Na
boca do “tu” ela não está presente. Ele fala de “o consagrado” [vd<Qoåh; / haqqöºdeš]. A BJ traduz vd<Qoåh; por “o
que estava consagrado”. A ARA traduziu por “o que é consagrado”. O “tu” entende que o dízimo é algo que
deva ser separado para ser entregue a quem de direito. No caso em pauta, aos Entes Silenciosos – ywI©le, rGE, ~Atåy" e
hn"ëm'l.a;. Assim, “o objeto consagrado” (SCHÖKEL, 1997, p. 572) é o dízimo do terceiro ano, cuja destinação é
especificada – ele deve ser doado integralmente ao ywI©le, ao rGE, ao ~Atåy" e a hn"ëm'l.a;. HALOT define vd,qo como
“alguma coisa com a qual a santidade é associada, que é para ser tratada cuidadosamente, alguma coisa santa;
pessoa ou coisas que são santas” (2001, volume 2, p. 1072). O conceito de algo que precisa ser tratado com
cuidado está por trás da preocupação do confessor quando ele diz que não desviou o dízimo do terceiro ano para
outras finalidades (26,14) que não a sua entrega para os Entes Silenciosos apontados pelo redator. 441
Casa aqui pode ser uma referência à casa do ofertante ou ao lugar onde se guardaria o dízimo. 442
O verbo no rb:[', no qal, tem seu sentido básico de “atravessar, percorrer um território” (SCHÖKEL, 1997, p.
476). Aqui o verbo tem um sentido figurativo de “transgredir”, e até de “quebrar” (SCHÖKEL, 1997, p. 476). O
que o confessor está declarando é que ele foi até onde Deus lhe tinha ordenado. Ele não fez menos nem mais do
que Deus lhe tinha mandado. Ele foi preciso na sua obediência ao que Deus lhe tinha ordenado. 443
`yTix.k'(v' al{ïw> ^yt,ÞwOc.Mimi yTir>b:ï['-al{) ynIt"+yWIci rv<åa] ^ßt.w"c.mi-lk'K. hn"ëm'l.a;l'w> ~AtåY"l; ‘rGEl;w> ‘ywILel; wyTiÛt;n> ~g:“w> tyIB;ªh;-!mi vd<Qoåh; yTir>[:ôBi ^yh,øl{a/ hw"“hy> •ynEp.li T'‡r>m;a'w>13
[wü´ämarTä lipnê yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä Bì`aºrTî
haqqöºdeš min-haBBaºyit wügam nütaTTîw lallëwî wülaGGër layyätôm wülä´almänâ Kükol-micwätkä ´ášer
ciwwîtäºnî lö|´-`äbaºrTî mimmicwötʺkä wülö´ šäkäºHTî]. 444
“Dele” – do consagrado [vd<Qoåh;]. 445
“Meu luto” é tradução de ynI÷ao [´önî], “lamentação pelo morto” (HHL-BW7]). Ela vem de hn<ao, a qual procede
do verbo hn"aî" I, “lamentar”, “gemer” (SCHÖKEL, 1997, p. 67). Essa palavra aparece na boca de Raquel, em
Gênesis 35,18, por ocasião do nascimento de seu segundo filho e sua morte subsequente: “Filho do meu luto”
[ynI+Aa-!B, / Ben-´ônî].
187
15 – “Olha449
do lugar da tua santidade,450
do céu,451
e abençoa452
o teu povo, Israel,453
e o
solo454
que deste para nós, conforme juraste para nossos pais – terra que flui455
leite456
e mel.”457
3.5.2. O contexto
O contexto no qual está inserido o dízimo do terceiro ano mostra a sua importância para a
memória do povo. Primeiro, em Deuteronômio 26,1-11 está a Confissão memorial que inclui
a fala do confessor israelita cercada pela estrutura redacional, onde o confessor, juntamente
com sua família, convida alguns Entes Silenciosos para participarem de seu banquete festivo
em memória do Êxodo, como um dia festivo pela colheita dada pela bênção divina sobre o
solo de sua herança.
446
A colocação de bebidas e alimentos sobre os túmulos dos mortos era praticada pelos povos antigos. O
confessor nega que fizera isso ou mesmo que o tivesse repartido com os enlutados (CHOURAQUI, 1997, 260). 447
Esta frase, ynIt")yWIci rv<ïa] lkoßK. ytiyfi§[', está presente no versículo anterior. 448
`ynIt")yWIci rv<ïa] lkoßK. ytiyfi§[' yh'êl{a/ hw"åhy> ‘lAqB. yTi[.m;ªv' tme_l. WNM,Þmi yTit;în"-al{w> ameêj'B. ‘WNM,’mi yTir>[:Übi-al{w> WNM,ªmi ynI÷aob. yTil.k;’a'-al{14
[lö´-´äkaºlTî bü´önî mimmeºnnû wülö´-bì`aºrTî mimmeºnnû Bü†ämë´ wülö´-nätaºTTî
mimmeºnnû lümët šämaº`Tî Büqôl yhwh(´ädönäy) ´élöhäy `äSîºtî Küköl ´ášer ciwwîtäºnî]. 449
O verbo @qv no hifil traz a ideia de “olhar para baixo” da perspectiva de quem está em baixo, enquanto que
no nifal é o oposto – “olhar para baixo” da perspectiva de quem está em cima (BW7). O confessor está pedindo
que Deus “se incline” para olhar para o confessor e atestar sua lealdade a ele, pois, depois de seu exame, ele
atestará a lealdade do confessor e realizará o segundo imperativo. É um olhar propositivo – “olha para
abençoar”. 450
Segunda ocorrência da palavra vd,qo (Deuteronômio 26,13.15). 451
A apositiva ~yIm;ªV'h; qualifica ^øv.d>q' !A[’M., definindo o que o confessor quer dizer por “lugar de tua
santidade”. Essa mesma frase aparece também em 2 Crônicas 30,27 [~yIm")V'l; Avßd>q' !A[ïm.li], Salmo 68,6 heb.
[Av*d>q' !A[ïm.Bi], Jeremias 25,30 [‘Avd>q' !A[ÜM.], e Zacarias 2,17 heb. [‘Avd>q' !A[ÜM.] (KALLAND, 1993, p. 158). 452
Os verbos “olhar” e “abençoar” estão no imperativo. 453
A solidariedade entre o confessor e o povo de Israel está estabelecida. Ele deseja que a resposta divina à sua
lealdade tenha alcance nacional. Ele quer que seu povo, com o qual ele se identifica, seja inteiramente
abençoado. Assim como o pecado de um membro do povo atinge o povo inteiro (Josué 7), a bênção também
deveria ter o mesmo alcance. 454
A hm'd"a], “solo”, é a terra produtiva. A bênção de Deus deveria vir na produtividade da terra. A produtividade
da terra seguraria o povo na sua herança, de modo que ela passaria para as gerações seguintes. 455
O qal particípio tb;îz", de bwz, pode ser traduzido pela perífrase “que está fluindo” para dar a noção de algo
presente na vida daquele que faria o pedido a Deus, para que ele atentasse para a obediência do povo de Israel, e
lhe retribuísse com bênção. 456
A hm'd"a] de Israel é caracterizada por produtividade superlativa, “terra que flui leite e mel” [vb'(d>W bl'Þx' tb;îz" #r<a,²]. A frase aparece em outros lugares no Deuteronômio (6,3; 11,9; 26,9.15; 27.3). Em Deuteronômio 31,20
não aparece a palavra #r<a,², mas a palavra hm'd"a]. Em Deuteronômio 8,8 há uma descrição longa da #r<a,² de
Israel. Entre suas características ela é apresentada como “terra... de mel”, sem a presença do “leite”. 457
`vb'(d>W bl'Þx' tb;îz" #r<a,² Wnyteêboa]l; ‘T'[.B;’v.nI rv<Üa]K; Wnl'_ hT't;Þn" rv<ïa] hm'êd"a]h' ‘taew> laeêr"f.yI-ta, ‘^M.[;-ta,( %rEÜb'W ~yIm;ªV'h;-!mi ^øv.d>q' !A[’M.mi •hp'yqiv.h ;15 [hašqîpâ mimmü`ôn qodšükä min-haššämaºyim ûbärëk ´e|t-
`ammükä ´et-yiSrä´ël wü´ët hä´ádämâ ´ášer nätaºTTâ läºnû Ka´ášer nišBaº̀ Tä la´ábötêºnû ´eºrec zäbat Häläb
ûdübäš].
188
Segundo, o dízimo do terceiro ano é a última parte do bloco literário denominado de Código
Deuteronômico, antes que seja feita a declaração final do redator, em 26,16-19. Isso é
significante porque a última parte do Código tenderia a ser a parte melhor lembrada após sua
leitura. O legislador, ao colocar no final essa legislação quis deixar marcada na mente do
tu/vós que havia importância em se acudir tais Entes Silenciosos em suas necessidades. Mas,
também, que os dízimos do terceiro ano não seriam para ele, sua família e convidados, como a
oferta da Confissão de Deuteronômio 26,1-11. Aqui o redator diz com clareza que o dízimo
do terceiro ano era para ser dado aos Entes Silenciosos considerados desenraizados, sem
propriedade e sem lugar para ficar que fosse chamado de seu.
Terceiro, os últimos quatro versículos de Deuteronômio 26 encerram o Código
Deuteronômico. Este começou com a ordem para que os “estatutos e preceitos” (12,1
[~yjiP'v.Mih;w> ~yQIåxuh;¥]) que seriam apresentados, em seguida, devessem ser obedecidos pelo
povo de Israel. Em 26,16, essas palavras surgem, formando um inclusio. Em 12,1 o redator
apontará os “estatutos e preceitos” [é~yjiP'v.Mih;w> ~yQIåxuh;¥] que devem ser obedecidos. Em 26,16
ele encerra com a ideia que “estatutos e preceitos” [~yji_P'v.Mih;-ta,w> hL,aeÞh' ~yQIïxuh;-ta,] já
foram apresentados entre 12,2 e 26,16.
Deuteronômio 26,16-19 contém as palavras de estabelecimento da aliança. É dito que o povo
de Israel aceitou os “estatutos e preceitos” e que os obedecerá “com todo o teu coração e com
toda a tua alma” (26,16.17). Isso pressupõe que o povo já tenha feito essa declaração formal.
Em resposta, Deus se compromente com Israel para torná-lo seu povo, com o compromisso de
fazer Israel uma nação “altíssima” (26,19 [!Ay©l.[,]).458 Deus se compromete tornar Israel numa
nação muito superior aos outros povos. As palavras seguintes destacam como isso será feito
(26,19). Israel será “altíssimo” em “honra” [hL'hiT.], “fama” [~ve], e “respeito” [tr,a,p.Ti].459
Assim, colocar o mandamento do dízimo do terceiro ano no fechamento do Código
estabelecia a certeza que o povo estaria com ele na memória. A leitura e releitura desse
458
Mesma palavra empregada para o título divino, “Deus Altíssimo”, em Gênesis 14,18-20, onde Abraão é
abençoado por Melquisedeque em nome do Deus Altíssimo. A vitória da qual retornava Abraão indicava,
segundo Melquisedeque, que Deus era “superior” aos deuses dos povos derrotados. Esse conceito era recorrente
entre os povos do mundo bíblico. Ao dizer que Israel viria a ser !Ay©l.[, por obedecer aos “estatutos e preceitos”
de seu Deus, o redator está afirmando que Israel seria tão elevado, acima dos outros povos, quanto seu Deus
seria acima dos deuses dos outros povos. 459
A BJ traduz !Ay©l.[, por “superior”. A ARA a traduziu por um verbo, “exaltar”. O mesmo ocorre na BP,
“elevará”. A palavra aqui tem seu uso comparativo. A nação de Israel será !Ay©l.[, na comparação com outros
povos. !Ay©l.[, é uma palavra superlativa. Não se trata de ser só superior, mas muito superior a todos os povos.
189
Código faria com que o povo pensasse nos resultados de sua obediência, e ficaria com
disposição em obedecê-lo, ao notar que os resultados de sua obediência viriam, não somente
sobre o israelita atento, mas sobre toda a nação.
Sua obediência ao Código tinha efeitos muito maiores que apenas a família individual do
tu/vós abençoada, por um lado. Por outro lado, o povo de Israel, na condição de !Ay©l.[,, seria o
resultado da obediência de cada tu/vós espalhado pelas tribos de Israel. Atente-se para a
solidariedade proposta pelo texto. A bênção divina derramada sobre o povo de Israel viria
sobre cada família. Por outro lado, essa bênção dada sobre cada família resultaria no coletivo
de um povo abençoado.
3.5.3. Estrutura e análise de Deuteronômio 26,12-15
3.5.3.1. Estrutura da perícope de Deuteronômio 26,12-16
A estutura de Deuteronômio 26,12-16, como a maior parte da legislação do Código, começa
com a conjunção yKi, em seu uso temporal, “quando”. Ela intruduz uma estrutura simples,
comum em perícopes que envolvem as falas propostas pelo redator: há a fala do redator e a
fala do confessor declarando sua obediência a algum mandamento colocado na fala do
redator.460
Não existe nessa unidade a fala do redator encerrando a perícope. A perícope
começa com o retador e termina com o confessor.
3.5.3.2. Análise: O que é o dízimo do terceiro ano?
Como já notado, os quatro Entes Silenciosos beneficiários do dízimo do terceiro ano são
caracterizados pela ausência de propriedade da terra. Entretanto, o que a legislação desse
dízimo faz é levar esses Entes Silenciosos à participação dos benefícios da terra, a sua
produção. A herança da terra lhes tem sido negada, não a participação na sua produção. A
entrega desse dízimo deveria ser feita “no lugar dos encontros públicos e da prática do
direito” (CRÜSEMANN, 2008, p. 305).
3.5.3.2.1. A voz do redator
O que o redator tem a declarar aqui? Primeiro, ele estabelece o tempo e qual dízimo deveria
ser entregue para os Entes Silencisos. O dízimo deveria vir depois que toda a colheita estava
460
Notar as confissões presentes em Deuteronômio 6,20-25 e 26,1-11 que começam com yKi.
190
encerrada. Deuteronômio 14,28-29 diz que deveria ser no final do terceiro ano. O dízimo
tinha que refletir a bênção divina sobre a propriedade do “tu”. A contagem desse ano está
relacionada ao bloco de sete. Então, no ano terceiro dos sete, o “tu” deveria separar o dízimo
inteiro e consagrá-lo ao serviço social de sua comunidade.
Segundo, os destinatários desse dízimo são o grupo de pessoas, sem herança “e socialmente
fracos”, os quais teriam garantida uma base econômica legal e suportada pelo juramento
público do produtor (CRÜSEMANN, 2008, p. 305).461
Esse “imposto social” viria suprir as
necessidades daqueles que, de outro modo, não teriam como garantir sua sobrevivência. A
conclusão do versículo 12 demonstra qual era a meta do dízimo – “e eles serão saciados”. O
dízimo vinha como um instrumento de libertação da fome daqueles que, provavelmente, eram
habituados a passar por algum tipo de restrição alimentar.
Por último, o redator não deseja separar o dízimo do terceiro ano do compromisso do “tu”
com Deus. Antes da entrega do dízimo, o “tu” deveria fazer uma confissão pública diante de
Deus de sua completa lealdade (“E dirás diante de ´ädönäy teu Deus”). Essa lealdade seria
atestada tanto pela quantidade precisa do dízimo quanto pela manutenção de sua sacralidade.
Isso garantiria a resposta divina favorável para o próximo ano.
3.5.3.2.2. A confissão de obediência do “tu”
3.5.3.2.2.1. O sagrado não pertence ao dono (26,13)
Ao estabelecer que o dízimo é “santo”,462
esse dízimo passa a não pertencer mais ao seu dono,
e estará à disposição para uso daquele a quem ele foi consagrado.463
Nesse caso, ele deveria
461
Leibowitz (1995, p. 276-277) levanta a questão do motivo do fazendeiro apresentar, de forma pública, o que
ele fez e o que ele não fez. As respostas para isso são como segue. Primeiro, o homem tem um dom único que é
sua capacidade de falar. O mandamento da confissão pública é uma forma de testemunha com os próprios lábios
com o fim de que o confessor não esteja enganado com respeito às dádivas nem que elas foram ocultas
(Abravanel apud LEIBOWITZ, 1995, p. 277). Segundo, seria possível que o doador tivesse hesitação em
entregar o dízimo do terceiro ano para um rGE. A confissão serviria de grande incentivo para ele falar a verdade
por ter dado o dízimo do terceiro ano em sua localidade, pois, ao confessar no Templo, ele teria sua generosidade
publicada e sua justiça testemunhada. Ele seria honrado nos portões como se ele tivesse oferecido diante do
Senhor (Abravanel apud LEIBOWITZ, 1995, p. 277-278). Portanto, a confissão funcionaria como um meio de
combate à negligência do preceito e um incentivo à sua observância (LEIBOWITZ, 1995, p. 278). Por fim, como
o texto declara “conforme ao mandamento que me ordenaste” e “eu não tenho transgredido nenhum dos teus
mandamentos nem tenho me esquecido deles”, a confissão pública seria a demonstração que o confessor estava
em harmonia com o preceito divino. O alvo do preceito é que a motivação do confessor seja somente por
cumprir a vontade de Deus com inteireza de coração e desempenho sincero (LEIBOWITZ, 1995, p. 278-279). 462
Em Levítico 27,30 é declarado que todos os dízimos são de Deus e são santos a ele. “Talvez esse tratamento
do dízimo do pobre indique que dá-lo ao pobre não é um propósito menos sagrado que trazê-lo a um santuário ou
consumi-lo ali” (TIGAY, 1996, p. 243).
191
ser entregue, em sua totalidade, para uso dos Entes Silenciosos. Esse status de santidade
atribuído ao dízimo está por trás da confissão e do temor que o confessor apresenta ao
declarar que ele não fez uso “ilegítimo” daquele dízimo.
O versículo 13 inteiro é uma declaração de lisura por parte do confessor. Primeiro, ele declara
a Deus que nada do dízimo ficou em sua casa. Ele não tem retido nada, “seja
intencionalmente nem acidentalmente” (TIGAY, 1996, p. 243). E que tudo já fora entregue ao
levita, estrangeiro, órfão e viúva. Percebe-se que ele é bem específico quanto ao grupo que
deve ser entregue o dízimo. Segundo, ao falar disso, ele tem em mente a demonstração de um
servo completamente leal ao seu Deus. O mandamento do dízimo do terceiro ano foi
obedecido em sua inteireza. Assim, o confessor estava declarando que a sua parte havia sido
feita. Os versículos 13 e 14 são onde está a parte do confessor. Ele cumpriu sua parte. A
expectativa é que Deus cumpra a dele.
3.5.3.2.2.2. Os elementos de exclusão (26,14)
3.5.3.2.2.2.1. O luto
Deuteronômio 26,14 contém a declaração do confessor dos três elementos de exclusão para os
quais o confessor declara não ter desviado qualquer porção do dízimo do terceiro ano,464
por
mais justificável que isso fosse. O primeiro é que ele não fez uso dele no luto. O luto no
mundo bíblico durava dias.465
Assim, quando o confessor afirma que ele não comeu no seu
luto, ele não está pensando em um dia, mas num período de luto. Durante os dias do luto,
haveria a necessidade de alimentação tanto para si como para os que viessem passar aquele
período com o enlutado,466
pois o trabalho no campo estaria suspenso. A obediência dele é
463
A frase “e dirás diante de ´ädönäy teu Deus”, normalmente, dentro de Deuteronômio, aponta para algo feito
no Santuário Central. Mas aqui, o redator entende que o dízimo do terceiro ano deva ser deixado pelo confessor
em sua própria cidade. Quando o redator deuteronomista entende que deva se referir especificamente ao
Santuário Central, ele, usualmente, acrescenta “O lugar onde ´ädönäy teu Deus escolherá para pôr o seu nome”,
como em 16,1-11. “Deuteronômio é tão cuidadoso em acrescentar essa frase em passagens que se refiram à
adoração que sua ausência aqui pode ser deliberada, implicando que a declaração não precisa ser feita no
Templo, haja vista que o dízimo não seria depositado ali”, mas se dirige a Deus a partir de onde ele está
(TIGAY, 1996, p. 243). 464
Os pastores hititas faziam juramento semelhante na entrega de suas ofertas. “Os pastores responsáveis pela
entrega de ofertas de gado para o templo deviam declarar, sob juramento, quando eles trouxessem o gado, que
eles não tinham desviado do gado aquilo que era devido” (TIGAY, 1996, p. 243). 465
O luto por Jacó, no Egito, durou setenta dias (Gênesis 50,3); por Moisés, o luto foi de trinta dias
(Deuteronômio 34,8). 466
Ezequiel 24,17.22 fala da comida dos pranteadores (literalmente, “pão dos homens” [~yviÞn"a] ~x,l, / leºHem
´ánäšîm]).
192
levada ao extremo – mesmo em tempo de dificuldades e, em certo sentido, em um emprego
legítimo, ele se absteve de usar o dízimo do terceiro ano.
Para entendimento do que o confessor está falando, duas passagens podem ser esclarecedoras.
Ezequiel 24,17-22 fala do “pão dos homens” (24,17.22 [~yviÞn"a] ~x,l,î]) que seria comido no
período de luto. No caso de Ezequiel, esse pão não seria comido, assim como os outros rituais
do luto também não seriam cumpridos por ele pela perda de sua mulher: deixar de pôr o
turbante, andar descalço, e cobrir os lábios. Ao que parece, esse pão era específico para o
período de luto – era o pão de sofrimento. Oseías 9,4 fala do “pão de lamentações pelo morto”
[~ynIAa ~x,l,Û] e, mais adiante, fala que aqueles que comessem desse pão eram imundos e que
este pão não deveria ser apresentado a Deus.
Isso esclarece porque o confessor declara que não comeu do dízimo do terceiro ano no seu
luto. Ao tirar desse dízimo para comer no luto, ele dessacralizaria todo o dízimo, o qual é
chamado de “a coisa consagrada”. O alimento feito em uma casa de luto era impuro, fazendo
com que todos aqueles que participassem desse alimento também se tornassem impuros. Ao
dessacralizar esse dízimo, ele não poderia mais ser entregue aos Entes Silenciosos, deixando
de suprir a necessidade daqueles que mais necessitavam dele, incorrendo em grande
desobediência.
A importância da confissão que ele não comeu dele no seu período de luto apontava para a
sua consagração a Deus, mantendo a santidade daquilo que ele estava dedicando. O dízimo
não somente estava completo (era exatamente o que o confessor devia dar) como ele estava
santo (ver TIGAY, 1996, p. 243-244).
3.5.3.2.2.2.2. A impureza
O segundo é que ele não comeu dele estando impuro, e essa impureza está intimamente
relacionada com a anterior. Deve-se considerar que o contexto no qual a palavra amej' está
inserida é a de impureza causada pela presença de um morto. As declarações de luto e de um
morto sugerem que a impureza a que o confessor se refere tem a ver com a contaminação por
morte. Como o confessor está declarando que ele não comeu do dízimo tanto no seu luto
quanto que ele não deu dele para alguém que estivesse morrendo, então, pode-se afirmar que
essa impureza tem a ver com a contaminação por um morto, provavelmente de um membro de
sua família.
193
Como apontado acima, ao dizer que ele não comeu do dízimo na sua impureza por um morto,
ele estava mantendo a integridade da oferta como sendo a “coisa consagrada”. Deve-se notar
com isso que o período de luto era um tempo de necessidade para o “tu” da confissão. Mesmo
em meio às dificuldades que o luto traria sobre aquela família, a santidade do dízimo do
terceiro ano foi mantida.
3.5.3.2.2.2.3. O morto
E o terceiro elemento da exclusão é que ele não entregou o dízimo ao que morre. A prática de
colocar comida junto com o corpo do morto no túmulo foi prática egípcia e cananeia
(KALLAND, 1992, p. 156). Mas essa prática não tem sido encontrada dentro da história do
Israel bíblico. O qal particípio, tme, pode ser traduzido por ação contínua – “aquele que está
morrendo”, ou “aquele que morre”. Desta perspectiva, o confessor não fez um ato de
misericórdia com o dízimo destinado aos Entes Silenciosos. Uma provável situação é aquela
da pessoa que está prestes a morrer deseja comer algo. Se algo do desejo do moribundo se
encontrasse no dízimo consagrado, ele não o tiraria de lá. O dízimo já estava santificado para
propósito exclusivo.
Por outro lado, é possível encontrar outro motivo para a declaração do confessor aqui. Ele está
declarando sua completa lealdade ao seu Deus, e que ele não tem dado daquilo que tem sido
consagrado a Deus a nenhuma outra divindade. Merrill entende que o que está por trás da
declaração do confessor deuteronomista é o “ritual cananita em que deidades, tal como Baal,
que tinham sido expedidas para o mundo dos mortos, foram sustentadas por ofertas de comida
até que elas pudessem reviver e retornar à sua função procriativa sobre a terra” (1994, p. 336).
O confessor estava fazendo com isso sua declaração de fé.467
Ele entendia que a bênção da
fertilidade da terra, da qual ele tirara o dízimo do terceiro ano, não dependida de Baal e seu
panteão, mas do Deus de Israel.468
467
Seguindo nessa perspedtiva religiosa, Tigay cita uma crença existente no mundo antigo, em que os antigos
criam que os vivos podiam ver os espíritos dos mortos no sheol, provendo-lhes comida e bebida. Ele cita um
texto mesopotâmico em que a citação do nome de uma pessoa era representativa de sua invocação com o
oferecimento de comida e bebida a seu espírito. Essa talvez fosse uma das razões que morrer sem filhos era
considerado uma maldição terrível (1996, p. 244, 482). 468
Em Deuteronômio 14,1 é declarado que, nos rituais de luto, Israel deveria agir diferentemente dos povos ao
seu redor. A razão teológica para essa diferença está em que “vós sois filhos do Senhor vosso Deus” e, por isso,
Israel não deveria dilacerar-se nem abrir calva entre olhos por nenhum morto. Em 14,2 outras duas razões,
derivadas da primeira, são acrescentadas. Israel é “povo santo ao Senhor teu Deus” e que “o Senhor te escolheu
para lhe seres o seu próprio povo” (ARA). Portanto, Israel tem um pai e uma filiação diferentes da dos povos ao
redor. Por isso ele deve agir de forma diferente da dos outros povos. “Nos textos mitológicos relacionados a
Baal, há a descrição de luto de El” pela morte de Baal, onde El é descrito cortando-se (CRAIGIE , 1976, p.229).
194
3.5.3.2.2.3. A contrapartida divina: a conclusão sem hT'ª[;w>, “e agora”
(26,15)
Diante de demonstração de lealdade extrema, colocadas na forma de três afirmações
negativas, o confessor pede a contrapartida divina por meio de duas afirmações positivas.
Deus deve cumprir sua parte abençoando o confessor e seu povo. Agora, o dízimo do terceiro
ano, como o dízimo de todos os anos, já era a demonstração que Deus estava abençoando seu
povo (CRAIGIE, 1976, p. 323). Assim, o pedido de bênção do confessor pressupõe seu
interesse pelo próximo. Ao pedir a bênção divina, o confessor entende que sem ela, ele não
poderá dar seus dízimos para os Entes Silenciosos no próximo terceiro ano.
Era de se esperar que, concluindo sua expressão de lealdade a Deus em benefício dos Entes
Silenciosos, o confessor aportasse sua declaração final com hT'ª[;w> (“e agora”) ou só hT'ª[;
(“agora”), como se o orador dissesse: “depois do que tem acontecido ou sido dito”.469
A
ausência dela parece demonstrar a urgência do confessor em querer abordar seu Deus pela
bênção prometida. Deus não tem permissão para protelar sua parte do compromisso assumido
pelos lados do acordo. O confessor tem sido um súdito leal. Por isso ele deve ser
recompensado.
Dois pedidos do confessor ao Deus de Israel: “Olha do lugar da tua santidade, do céu, e
abençoa o teu povo, Israel, e o solo que deste para nós, conforme juraste para nossos pais –
terra que flui leite e mel.” O Deus transcendente não habita entre os homens, mas no céu.
Mesmo assim, ele pode ouvir a oração de seu povo. Caso contrário, o confessor não suplicaria
a bênção divina.
Como já apontado, o olhar divino deve ser propositivo – ele deve olhar para abençoar. Ou, de
outro modo de declarar, ele deve olhar para continuar abençoando. Como citado acima, o
confessor já comprovou que o solo em que ele habita “flui leite e mel”,470
e isso é
comprovação que o Deus de Israel tem cumprido o seu juramento feito aos ancestrais do
confessor. Mas ao dizer que Deus deve abençoar Israel e o solo dado a ele, o confessor vai
Na “lenda de Aqht”, “há uma referência a mulheres profissionais do luto que se laceram para deixar o sangue
correr” e, além disso, “num texto Acadiano recuperado de Ras Shamra (‘o Justo sofredor’), um homem doente,
mas ainda não morto, é tratado como se já estivesse no túmulo – ‘meus irmãos banham-se no sangue como uns
possuídos’” (CRAIGIE, 1976, p.229-230). 469
Essa forma de conclusão pode ser encontrada em Deuteronômio 2.13; 4,1; 10,12.22; 26,10; 32,39; 39,19. 470
Frase que aparece em Deuteronômio 11,9; 26,9.15; 27,3; 31,20; ela descreve “a riqueza da terra que os
israelitas iriam logo possuir” (CRAIGIE, 1976, p. 168).
195
além do cumprimento das promessas feitas aos pais. Ele quer que Deus continue a cumprir as
promessas feitas a ele também, por meio de seus ancestrais, pois, afinal, ele diz “fiz conforme
tudo que me ordenaste” (26,14). “Aqui na Confissão do Dízimo, o indivíduo lista o que ele
fez e o que ele não fez a fim de demonstrar a aceitação do jugo de Deus sobre ele mesmo, e
que ele tem feito somente o que ‘tu tens me mandado” (LEIBOWITZ, 1995, p. 279).
A questão do dízimo do terceiro ano está entendida – ele deveria ser entregue aos Entes
Silencisos do bloco dos sem herança. Mas, e o dízimo dos outros anos? O que era feito?
Como ele era empregado pelo confessor?
3.5.4. O Dízimo do terceiro ano – uma antecipação a Deuteronômio 26,12-15:
14,28.29
3.5.4.1. Tradução
14,28 “Do fim de três anos,471
tu farás vir472
o dízimo473
todo do teu trabalho
naquele ano, e porás474
nos teus portões.”475
14,29 “E virá o levita – porque não há, para ele, propriedade e herança contigo – e
o estrangeiro e o órfão e a viúva que (estão) nos teus portões. E comerão, e
serão saciados, a fim de que teu ´ädönäy Deus te abençoe em todo feito de
tua mão que tu farás.”476
471
Para von Rad, “a última norma se destina a impedir o empobrecimento da região dos sacerdotes que perderam
seus meios de subsistência através da centralização” (VON RAD, 1966, p. 103). Isso quer dizer que, com a
escolha do Lugar Central de adoração, o pagamento dos dízimos seria encaminhado para lá, deixando os levitas e
sacerdotes sem as contribuições locais. O dízimo do terceiro ano viria ser uma espécie de compensação com essa
perda. 472
Hifil de acy, “vir”, traduzido aqui no sentido causativo por “fazer vir” de onde vem a ideia de “trazer”. 473
O dízimo é especificado como sendo do produto do campo (Deuteronômio 14,22.23), mas nada é dito no livro
sobre o dízimo dos animais (cf. DRIVER, 1895, p. 166; CRAIGIE, 1976, p. 233). Mas em Levítico 27,32 os
animais, “gado e rebanho”, entram no dízimo. 474
Usado no hifil com o sentido de “dar repouso”, “por” (HHL-BW7]). O dízimo resultante do balanço anual da
colheita do terceiro ano deveria ser colocado em lugar acessível aos Entes Silenciosos. É possível que ele fosse
recolhido pelos fazendeiros em um depósito central para ser entregue a eles depois que o balanço da colheita
estivesse completado. 475
`^yr<(['v.Bi T'Þx.N:hiw> awhi_h; hn"ßV'B; ^êt.a'äWbT. ‘rf;[.m;-lK'-ta, ‘ayciAT ~ynI©v' vl{åv' Ÿhceäq.mi28 [miqücË šälöš
šänîm Tôcî´ ´et-Kol-ma`Sar Tübû´äºtkä Baššänâ hahiw´ wühinnaHTä Biš`ärʺkä]. 476 `hf,([]T; rv<ïa] ^ßd>y" hfeî[]m;-lk'B. ^yh,êl{a/ hw"åhy> ‘^k.r<b'y> ![;m;Ûl. W[be_f'w> Wlßk.a'w> ^yr<ê['v.Bi rv<åa] ‘hn"m'l.a;h'(w> ~AtÜY"h;w> rGEh;w>û%M'ª[i hl'øx]n:w> ql,xe’ •Al-!yae( yKiä ywI³Leh; ab'äW29
[ûbä´ hallëwî Kî ´ê|n-lô Hëºleq wünaHálâ `immäk
wühaGGër wühayyätôm wühä|´almänâ ´ášer Biš`ärʺkä wü´äklû wüSäbëº`û lümaº̀ an yübärekükä
yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä Bükol-ma`áSË yädkä ´ášer Ta`áSè].
196
3.5.4.2. O contexto
No contexto do livro de Deuteronômio, o “dízimo” aparece pela primeira vez no primeiro
capítulo do Código Deuteronômico (12,6.11). Neste capítulo, o dízimo é vinculado ao lugar
de entrega, o Lugar Central sagrado que seria apontado, segundo o redator, em algum tempo
no futuro. Assim como as outras ofertas apontadas nesse capítulo, o dízimo deve ser comido
pelo ofertante e sua família e aqueles que a ela pertecem (o servo e a serva). E o levita deve
participar desse momento familiar festivo. Em 26,12, como tratado acima, está a segunda
ocorrência do dízimo do terceiro ano e sua entrega aos Entes Silenciosos.
No contexto imediato, há uma unidade (14,22-29) que trata de especificar o dízimo. Primeiro,
ele deve ser entregue no Lugar Central (14,22.23).477
A refeição deve ser com o grande Rei de
Israel e seus súditos no lugar de sua residência (MERRILL, 1994, p. 240). A esse lugar, todos
os dízimos devem ser levados com o fim de que o povo aprendesse a temer a seu Deus. Pode-
se dizer que o “temer” em vista faz referência ao “reverenciar”, sendo essa entrega uma forma
de tributo ao Deus de Israel.
Em segundo lugar, o dízimo aqui apresenta um desenvolvimento. Caso o Lugar Central venha
a ser longe demais para a entrega do dízimo, ele deve ser vendido, e o dinheiro arrecadado
deve ser levado e usado para comprar aquilo que alegra o coração do ofertante, de tal forma
que ele tenha uma refeição festiva diante do seu Deus (14,24-26). Dinheiro em vista fala da
“prata”, um metal com facilidade de câmbio (MERRILL, 1994, p. 240). Seja pelo produto em
espécie, seja pela prata que será trocada por produtos equivalentes aos que foram tracados por
prata antes da vigem ao Santuário Central, a comida deveria ser usufruída diante de Deus,
numa demonstração que Deus é muito mais que um observador – ele é participante ativo do
banquete (MERRILL, 1994, p. 241). Assim, a alegria do ofertante era, não somente na
presença de Deus, como era com seu Deus.478
Em terceiro lugar, o dízimo deve ser repartido com o levita (14,27). Aqui se deve colocar um
destaque. O dízimo do terceiro ano é para ser doado aos Entes Silenciosos em bloco (levita,
477
Chouraqui afirma que “o dízimo é um imposto pago pelo camponês sobre o produto de sua terra, e pelo pastor
sobre seu rebanho. Ele era destinado ao senhor, ao Adôn, isto é, no contexto do versículo, ao próprio Deus, e
noutras circunstâncias, ao rei (1 Samuel8,15-17)” (1997, p. 172). Nelson, por sua vez, informa que é somente em
Deuteronômio que os dízimos religiosos são claramente obrigatórios (2002, p. 184). 478
Para Merrill, “é verdade que a frase ^yh,êl{a/ hw"åhy> ‘ynEp.li frequentemente refere-se à presença do Senhor
como testemunha do pacto, mas o contexto de banquete sugere, fortemente, sua participação como tal” (1994, p.
241, nota 49). Como o ofertante, sua família e seus convidados, Deus é um membro do grupo que participa do
banquete festivo.
197
estrangeiro, órfão, viúva) no lugar de vivência do fazendeiro. Entretanto, quando esse
ofertante vai para o Santuário Central, o dízimo deve ser comido por ele, sua família, seus
servos e o levita (12,12.18; 14,27).
Já em Deuteronômio 26,11, as primícias devem ser repartidas com o levita e o estrangeiro.
Pode-se afirmar que o dízimo em Deuteronômio, seja o dízimo para ser levado ao Santuário
Central, seja o dízimo do terceiro ano, eles devem ser usufruidos pelo ofertante, sua família,
seus servos, bem como pelos Entes Silenciosos em bloco.
Em quarto lugar, o dízimo e sua entrega no Santuário Central está vinculado a um momento
de alegria do ofertante e daqueles que participam com ele desse momento festivo.
Deuteronômio vê a festividade como o resultado natural da bênção divina sobre os bens do
israelita. Por isso que ele deve vir ao Santuário Central para prestar sua celebração com seu
Deus, e, com o seu Deus, “comer” o dízimo. Talvez, por isso, o levita é incluído nessa
refeição festiva, como representante divino no banquete do israelita. A festividade dele e de
sua família estava em ver a alegria dos carentes ao terem supridas suas necessidades de
alimentação.
3.5.4.3. Análise de Deuteronômio 14,28.29
3.5.4.3.1. Como identificar o dízimo para a doação aos Entes Silenciosos
Primeiro, ele deveria ser apresentado no fim do terceiro ano. Era o período do balanço anual
do fazendeiro.479
Só assim, o fazendeiro poderia, com precisão, ver se ele obteve ganho ou
perda. Segundo, ele deveria ser colocado em um lugar estratégico, acessível aos Entes
Silenciosos. No caso em pauta, “nos portões”. Se o texto aponta diretamente para o portão de
acesso à propriedade do fazendeiro, ou ao portão, ou portões, de uma cidade, de qualquer
forma, ele deveria ser colocado em lugar visível e de fácil acesso a todos os que poderiam
usufruir daquela dádiva. Então, Deus “abre mão” de sua oferta em favor dos Entes Silenciosos
da comunidade.
Observe-se que o ofertante estava impedido, por ordem divina, de comer o dízimo dos outros
anos dentro de sua propriedade (Deuteronômio 12,17). Ele deveria ser levado para o Santuário
479
A exatidão de como o dízimo deveria ser medido para que não houvesse sonegação por parte do fazendeiro
não é especificado. Entretanto, as afirmativas “de todo fruto da tua semente” (14,22) e “todos os dízimos da tua
colheita” (14,28) “sugerem que deve ter havido algum grau de julgamento pessoal na determinação da
quantidade” (NELSON, 2002, p. 184).
198
Central e ali ele poderia comer. A proibição continuava também para o dízimo do terceiro ano
para ofertante, mas ela não atingia os Entes Silenciosos, seus destinatários. Somente esses
poderiam comer em sua cidade daquele dízimo. A razão para isso estava na própria condição
econômica das pessoas desse grupo. Isso quer dizer que o levita que participava da comida
festiva no Santuário Central era alguém que estava ali a serviço do Santuário, mesmo que ele
vivesse dentro da comunidade do ofertante (12,18).
3.5.4.3.2. Os destinatários do dízimo postado “nos portões”
O primeiro é o levita. É o único que se apresenta com uma oração apositiva com o fim de
qualificá-lo (“porque não há para ele propriedade e herança contigo”). Essa oração aparece
em outros lugares do Deuteronômio com o mesmo propósito – apresentar o levita como
alguém desprovido de herança (Deuteronômio 12,12; 14,27.29). Todas essas ocorrências
estão relacionadas ao dízimo do terceiro ano ou não. O levita é o único deste grupo de Entes
Silenciosos que é beneficiado pelos dízimos do terceiro ano e os dos outros anos, e a
motivação para isso é que ele não tem nenhuma propriedade como herança. Diante disso, ele
deve ser apoiado pelo povo de Israel, e a apresentação do dízimo no Santuário Central ou “nos
teus portões” é o momento.
Juntamente com o levita estão os demais Entes Silenciosos – Gër, yätôm, ´almänâ. Todos
eles são os que estão “nos teus portões”. Eles são da convivência do israelita que fará a
entrega do dízimo do terceiro ano. Estar nos portões também indica que eles estão ali na
expectativa da entrega desse dízimo especial.
O dízimo do terceiro ano tem um duplo objetivo. Em relação aos Entes Silenciosos, ele deve
servir para que eles o comam até o ponto da saciedade. Pode-se propor uma tradução
alternativa aqui: “e eles comerão com o fim de satisfazerem-se”. Portanto, não era somente
comer, era comer com o fim de ter satisfação com aquela comida. A ideia básica do verbo
[b;f' é “estar satisfeito por ter-se alimentado” (WALTKE, 198O, p. 869-870). Então ele
pressupõe abundância na comida disponível para isso. O dízimo do terceiro ano era colocado
no fim do ano à disposição dos Entes Silenciosos.480
Isso pressupõe abundância de comida
dada a eles.481
480
Tanto no dízimo que ia ser levado para o Santuário Central como no dízimo do terceiro ano há temas
teológicos importantes relacionados: “o santuário central, a celebração alegre, a dessacralização das ofertas, a
solidariedade social, e a bênção de Yahweh através da fertilidade da terra” (NELSON, 2002, p. 185). Tendo por
base uma teologia da liberdade, com base no Êxodo, e uma ideologia igualitária, o Deuteronômio transformou os
199
O outro objetivo é abençoar o israelita fiel. lümaº̀ an segue wü´äklû wüSäbëº̀ û. A benção
divina virá pela plenitude de satisfação dos Entes Silenciosos com a comida recebida ali. Ela
também virá pela obediência do israelita em guardar o dízimo do terceiro ano até o fim
daquele ano para que ele fosse doado aos Entes Silenciosos. O texto pressupõe dupla
satisfação: os Entes Silencios com a abundância de comida e o fazendeiro com a prosperidade
de sua fazenda com a bênção divina – todos ganham.
3.5.4.4. O dízimo em Deuteronômio tem meta básica socorrer os Entes
Silenciosos?
Primeiro, os dízimos tinham como meta primária testar a obediência do israelita. O dízimo é
algo que se retira de um montante. Essa tarefa cabia ao israelita a quem pertencia o solo. Ela
não era terceirizada. Segundo, os dízimos visavam, no momento da entrega, ser um momento
de alegria. Era um momento de reunião do clã, incluindo servos e servos, com seu Deus, num
banquete festivo. Por isso que o dízimo deveria ser levado ao Santuário Central para um
momento de celebração. Por último, o dízimo do terceiro ano não perdia a característica da
alegria festiva. Ele continuava sendo um momento de alegria festiva dos Entes Silenciosos
com o seu Deus em um banquete, e também do fazendeiro que, no exercício da fé, dependia
de Deus para que sua bênção fosse dada sobre seus bens no ano que se seguia, em resposta a
sua fidelidade em dar o dízimo aos Entes Silenciosos.
Entretanto, os Entes Silenciosos também tinham outros momentos festivos de participação
coletiva em Israel. Deuteronômio 16 coloca Entes Silenciosos desse bloco nos momentos
festivos da nação. Eles deviam participar da Festa das Semanas (Deuteronômio 16,10.11) e
da Festa dos Tabernáculos (16,13.14). A tônica dessas festas era alegria. Isso indica
festividade com comida e bedida fartas. Para o Deus de Israel, eles também eram israelitas,
incluindo o estrangeiro residente, e deveriam celebrar o seu Deus com a comunidade no
Santuário Central.
Como síntese, deve-se mencionar que os Entes Silenciosos tratados nesse capítulo estão
juntos porque, de algum modo, podem ser identificados como “estrangeiros” dentro de Israel
por alguns motivos. Primeiro, por eles não terem qualquer dipo de propriedade dentro de
“dízimos que foram taxas reais ou requerimentos sacerdotais em fontes de alegria e solidariedade comunitárias”
(NELSON, 2002, p. 185). 481
O verbo [b;f', no hifil, é usado “para mostrar que o Senhor saciou o seu povo com pão... ele satisfez os pobres
com pão (Salmo 132.15)” (WALTKE, 1980, p. 869).
200
Israel. Segundo, por não terem propriedade, eles não têm residência fixa. Eles vivem em
Israel como heremitas em busca de algum tu/vós que lhes conceda proteção. Nesse ponto, eles
são muito diferentes dos Entes Silenciosos que são denominados de “pobre”. Em
deuteronômio, o “pobre” tem alguma propriedade onde ele pode ser encontrado. Os Entes
Silenciosos desse capítulo não. A vida era, talvez, a única coisa que possuíssem. A
preservação deles era fundamental. Em terceiro lugar, por viverem como peregrinos, eles
estavam mais susceptíveis à opressão e perseguição.
Por esses motivos, pode-se dizer que esse grupo de Entes Silencioso poderia ser considerado
os “verdadeiros” pobres, devido a sua própria condição. Os pobres do grupo `änî wü´ebyôn
tem algum tipo de propriedade, pois o credor pode chegar até à porta de sua casa
(Deuteronômio 24, 10) para fazer uma cobrança – por outro lado, a casa pode pertecencer ao
dono do terreno que lhe permitiu morar ali. Os Entes Silencisos aqui não. Eles vivem “nos
portões” de outros.
Além disso, eles são diferentes dos Entes Silanciosos do grupo `ebed-´ämâ. Estes estão sobre
a proteção de seus “donos”. E se são israelitas, no sétimo ano sairão livres e com algum bem
na mão para seu recomeço na vida. Porém, os Entes Silenciosos desse capítulo estão “dentro
dos teus portões” e deveriam gozar de proteção do dono daqueles portões. A legislação
deuteronômica vem fazer essa proteção efetiva por meio da “voz de Deus”.
Algumas considerações seguirão na forma de pergunta e resposta para que esse capítulo seja
fechado. A pergunta é: porque o estrangeiro, o órfão, a viúva e às vezes o levita aparecem
juntos? A resposta consiste, em primeiro lugar que esses Entes Silenciosos são considerados
como uma espécie de “estrangeiros”. E nessa condição eles não têm terra ou qualquer tipo de
propriedade. Portanto, são sem propriedade fixa, sendo sem raiz dentro da comunidade em
que vivem.
Em segundo lugar, eles não têm herança. Eles são os deserdados da comunidade em que
vivem. A sobrevivência deles é resultado de um favor que a comunidade em que vivem lhes
concede. Por isso que o incentivo é dado pelo redator em dizer que o Deus de Israel abençoará
aquele que agir generosamente para com eles.
Em terceiro lugar, há um verbo que aparece em Deuteronômio e está relacionado à alegria das
festas que deveriam envolver os Entes Silenciosos relacionados ao grupo da ´almänâ, do Gër,
201
do yätôm, e do lëwî. Este verbo é o xmf, o qual ocorre dentro do livro, especificamente
dentro da seção de 12 a 26,482
para expressar “a alegria humana” (KRAMER, 2006, p. 52),
mas é uma alegria humana dividida com outros (WALTKE, 1980, p. 879), na festa da colheita
que era demonstração de alegria diante do Deus de Israel, para a qual os Entes Silenciosos
seriam convidados para dividir com o clã aquela alegria pela colheita feita. Isso seria
demonstração da generosidade do dono do campo bem sucedido no plantio. As ocorrências
desse verbo estão em Deuteronômio 12,7; 14,26; 16,11; 26,11; 27,7.
Deve-se dizer que o sentido básico do verbo xmf é “alegrar-se”, mas com o sentido de um
grande regozijo por algum feito recebido ou realizado. É assim que ele é traduzido em todas
as vezes que ele aparece dentro de Deuteronômio.483
A Septuaginta o traduziu pela palavra
euvfrai,nw.484
O Targum entendeu que ele deveria ser traduzido para o Aramaico por ydx.485
Tanto o Hebraico xmf, quanto o Grego euvfrai,nw e o Aramaico ydx trazem a ideia de
regozijo ou de uma alegria repartida, o que pode ser atestado pelo próprio contexto. Para isso
vejamos (BJ): a alegria deveria ser entre “vós e vossa família” (12,7), “tu e tua família”
(14,26), “tu, teu filho e tua filha, teu servo e tua serva, o levita... e o estrangeiro, o órfão e a
viúva” (16,11), “ti e a tua casa... o levita e o estrangeiro” (26,11).
Mas de quem é a alegria – é a alegria do clã? Ou é a alegria dos Entes Silenciosos convidados
para participar daquele momento? Seguindo para os contextos onde o verbo xmf aparece,
percebe-se que ele está relacionado à festa pós-colheita. A festa podia ser em algum santuário
bem como dentro da própria comunidade. O convite para isso era feito pelo líder do clã aos
Entes Silenciosos que estavam vivendo dentro daquela comunidade ou tinham acesso ao
campo daquele clã.486
De modo específico, a alegria era do dono do campo, o líder daquele
clã. Porém, por ordem divina, aquele homem é levado a compartilhar dessa alegria com
aqueles que não poderiam, por seu próprio trabalho ter o mesmo sucesso. Assim, os Entes
482
A exceção é Deuteronômio 27,7. Porém, aqui a ideia de sacrifício em um momento festivo para toda a família
do ofertante permanece a mesma. 483
“Alegrando-vos” (12,7); “e te alegrarás” (14,26); “e te alegrarás” (16,11); “alegrar-te-ás” (26,11); “alegrando-
te” (27,7). 484
Em seu sentido ativo, “alegrar/animar alguém”, no passivo, “alegrar-se”, “regozijar-se”, “ser feliz”
(RUSCONI, 2003, p. 207). “O objeto do gozo pode ser coisas ou eventos que afetam o bem-estar físico exterior,
e especialmente situações que originam um modo de alegria comum” (BULTMANN, 1964, p. 772). 485
“Florescer alegria”, “regozijar-se”, “fazer feliz” (HHL-BW7). 486
Em uma tentativa de fazer uma contextualização com o que acontecia dentro do Deuteronômio, pode-se
afirmar que era uma espécie de “distribuição de renda” adaptada para aquela situação. Não se tratava de
dinheiro, mas de comida – elemento essencial para a sobrevivência de qualquer um dos Entes Silenciosos, e,
especial, dos membros do grupo: ´almänâ, Gër, yätôm, e lëwî.
202
Silenciosos seriam convidados daquele homem, bem-sucedido em seus negócios do campo,
para participarem daquele momento festivo e comerem com ele e sua família, e até com seus
escravos e escravas.
Neste aspecto, estes Entes Silenciosos – ´almänâ, Gër, yätôm, e lëwî – eram reunidos em
torno da alegria da colheita, seja na comunidade seja no santuário, para um tempo festivo,
com o fim de prestar uma refeição cultual diante do Deus de Israel, como expressão de todo
bem que ele tinha feito em favor de seu povo.
Uma nota deve ser colocada aqui. No Salmo 109 o `änî wü´ebyôn (v. 22) e o yätôm e a
´almänâ (v. 9) estão colocados em polos opostos daqueles que vêm sendo tratados nesse
capítulo. O Salmo 109 é um salmo imprecatório, onde o salmista suplica ao Deus de Israel a
fim de que uma vingança recaia sobre a cabeça de seus inimigos. É um tipo de salmo onde é
feita “uma petição de que a justiça seja feita, e o direito vindicado” (KIDNER, 1981, p. 38).
Assim, entre as súplicas de vingança do salmista está “que seus filhos fiquem órfãos
[yütômîm] e sua mulher se torne viúva [´almänâ]” (109,9 – BJ).
Desse modo, é pedida a condição de yätôm e ´almänâ para os filhos e a mulher de quem está
maltratando injustamente o salmista. Enquanto em outros lugares da BH a súplica é feita para
que Deus proteja o órfão e a viúva, no salmo em pauta, o salmista pede o contrário. Ele quer
“que ninguém lhe mostre clemência, que ninguém tenha piedade de seus órfãos” (109,12 –
BJ). E entre as razões apontadas pelo salmista para tão grave pedido está o tratamento
dispensado ao`änî wü´ebyôn: “Ele não se lembrou de agir com clemência: perseguiu o pobre
e indigente... [`änî wü´ebyôn]” (109,16 – BJ), com quem o salmista se identifica no versículo
22: “Quanto a mim, sou pobre e indigente... [`änî wü´ebyôn]” (BJ), e por quem ele celebra o
Deus de Israel como aquele que “se põe à direita do indigente... [´ebyôn]” (109,31 – BJ), para
apoiá-lo nas suas dificuldades.
Por esse exemplo, pode-se dizer que a proteção divina e da comunidade, tão requerida e
ordenada dentro da comunidade do Deuteronômio, é aqui suspensa por causa das ações de
deslealdade e, no final, de completa falta de fidelidade ao Deus de Israel. Assim, o surgimento
do yätôm e da ´almänâ na família dos inimigos do salmista seria decorrente de seu
tratamento dado ao `änî e ´ebyôn. O que, de certa forma, já estava previsto dentro do livro de
203
Deuteronômio: “Não oprimirás um assalariado pobre, necessitado... um estrangeiro... porque
ele é pobre. Deste modo ele não clamará ao Deus de Israel contra ti, e em ti não haverá
pecado” (Deuteronômio 24,14-15 – BJ).
204
4. OS ENTES SILENCIOSOS COMO PROPRIEDADE
Vocábulos Deuteronômio 1-11 Deuteronômio 12-26 Deuteronômio 27-34
db,[,,`ebed 5,14.15.21; 6,21 12,12.18; 15,15.17;
16,11.14; 23,15.16;
24,22
hm'a', ´ämâ 5,14.15.21 12,12.18; 15,17;
16,11.14
4.1. Algumas notas iniciais
4.1.1. O db,[,,`ebed, e a hm'a', ´ämâ, como patrimônio
Aqui se deve fazer uma distinção entre dois tipos de escravos/escravas existentes dentro do
Israel, segundo o livro de Deuteronômio. O primeiro é aquele que é escravo que vem de
outros povos seja por meio de conquistas na guerra seja por meio de compras de escravos de
outros povos como meio de investimento. É este tipo de servo/serva que está sendo tratado em
Deuteronômio 5,51, onde há a proibição que não se cobice qualquer coisa que seja do
patrimônio do “teu próximo”. Entre os bens do “teu próximo” está o servo e a serva.487
Eles pertencem aos bens de herança, aqueles bens que serão passados aos herdeiros por
ocasião da morte do pai. O escravo era uma forma de patrimônio do clã. A principal limitação
do escravo era sua falta de liberdade. Mas como ele estava dentro do clã, ele gozava de
proteção do mesmo, pois ele como, uma espécie de patrimônio, era um tipo de investimento.
Entretanto, em Deuteronômio há o segundo tipo de `ebed e de ´ämâ que são aqueles que se
tornaram escravos, mesmo sendo membros do povo de Israel. Eles entraram nessa condição
voluntariamente, mesmo que forçados por suas condições de sobrevivência. Entre esses há o
`ebed e a ´ämâ que decidiram ficar para sempre com seus senhores. Esses passariam a fazer
parte do patrimônio do clã legal e definitivamente.
487
Há duas mulheres que são do “teu próximo” e que não podem ser cobiçadas, em Deuteronômio 5,21 – “a
mulher do teu próximo” e a “serva” do teu próximo.
205
Em Gênesis 30,43, “servos” e “servas” estão colocados nos mesmo nível que os animais, no
sentido que eles são uma aquisição e pertecem ao patrimônio de quem os adquiriu. Isso é
repetido em outros lugares dentro do livro de Gênesis. Portanto, o `ebed e a ´ämâ são
considerados patrimônio daquele que os comprou e, a partir disso, eles passam a ser
computados como bens do clã.
4.1.2. As aparições do `ebed e da ´ämâ em Deuteronômio
O quadro anterior apresenta os seguintes detalhes. Primeiro, o `ebed e a ´ämâ não aparecem
no último bloco literário de Deuteronômio, apenas o Gër, a ´almänâ, o yätôm, e o lëwî,
aparecem. Segundo, como os demais Entes Silenciosos, a maior parte das referências a eles
está dentro do bloco literário denominado de Código Deuteronômico (Deuteronômio 12-26).
O `ebed e a ´ämâ estão juntos em Deuteronômio 5,14.15.21; 12.12.18; 15,17; 16,11.14. Mas
o `ebed aparece sozinho em Deuteronômio 6,21; 15.15; 23,15.16; 24,22.
4.1.3. Outros Entes Silenciosos associados com o `ebed e a ´ämâ
Entre as referências do quadro estão aquelas em que o `ebed e a ´ämâ aparecem
acompanhados de outros Entes Silenciosos. Em Deuteronômio 5,14, o `ebed e a ´ämâ estão
juntos com o Gër. Esse texto faz parte dos Dez Mandamentos. Eles são os únicos Entes
Silenciosos colocados dentro dos Dez Mandamentos, e aqui eles são apontados como aqueles
que devem usufruir do descanso do sábado. Pode-se perguntar se o fato de os outros Entes
Silenciosos não serem colocados nos Dez Mandamentos para descansarem no sábado, se eles
não seriam alcançados pelo descanso daquele dia. A resposta do redator é que todos deveriam
descansar no sábado, incluindo o `ebed e a ´ämâ e o Gër, mesmo que fossem escravos
adquiridos de fora de Israel.
Deuteronômio 12,12.18 apresenta o `ebed e a ´ämâ acompanhados do lëwî. Os textos falam
de um momento festivo do clã. Neste momento, provavelmente depois da colheita, o clã se
reúne para uma comemoração pelo plantio bem sucedido, e também pelo sucesso na criação
de animais. Os dois textos falam de ofertas e dízimos que deveriam ser levados para o
Santuário Central, onde o clã realizaria um momento festivo. O texto não é claro sobre a
motivação de tal comemoração no Santuário. Provavelmente é um momento festivo devido
aos lucros obtidos pelo campo – colheita e criação de animais.
206
Em Deuteronômio 16,11.14, ao contrário de Deuteronômio 12, claramente o motivo é a Festa
das Semanas, quando a colheita tinha sido encerrada (v. 11). Em Deuteronômio 16,14, a festa
da qual esses Entes Silenciosos deveriam participar com o “tu/vós” era a Festa dos
Tabernáculos. A motivação para a festividade está bem estabelecida em Deuteronômio 16,16,
onde são alistadas as três festas que todo homem deveria participar no Santuário Central – a
Festa dos Pães Ázimos, das Semanas, dos Tabernáculos.
4.2. Usos específicos da palavra db,[,,`ebed, e hm'a', ´ämâ, em Deuteronômio
4.2.1. O db,[,,`ebed, e hm'a', ´ämâ, como parte dos bens do clã
Esse é o uso mais comum das duas palavras dentro de Deuteronômio, e tem uma legislação
específica para tratar deles (Deuteronômio 5,14.15.21; 23,15.16). Além das notas já apontadas
em um ponto anterior, apenas dois detalhes a mais sobre estes Entes Silenciosos – o `ebed, e a
´ämâ. Primeiro, é significante que os Dez Mandamentos tenham se preocupado com eles
para coloca-los sob o descanso no sábado, igualando à necessidade de descanso deles a de seu
senhor, o “tu/vós” (5,14). Era demonstração de humanidade deixá-los descansar.
Em segundo lugar, o `ebed, e a ´ämâ são postos em outra situação dentro dos Dez
Mandamentos, não mais como alvos do mandamento do descanso sabático, mas como objetos
de cobiça. Como parte do patrimônio do “tu/vós”, eles não poderiam ser cobiçados (5,21). O
mandamento tem dois verbos para cobiçar. O primeiro aparece no início da referência: “não
cobiçarás a mulher de teu próximo”.488
O segundo verbo aparece antes dos outros elementos
passíveis de cobiça: “e não cobiçarás a casa do teu próximo, seu campo, e seu servo, e sua
serva, seu boi, e seu jumento, e tudo que (é) de teu próximo”.489
Qual a diferença entre eles? O primeiro fala de um desejo ardente que leva a tentativa de
adquirir (HHL-BW7). Nesse caso, cobiçar a mulher do próximo implicaria na tentativa de
quebrar outro mandamento – “não adulterarás”, estampado em 5,18. O segundo também fala
de cobiça, no sentido de “sentir um desejo”, mas, normalmente, num mal sentido (HHL-
BW7). Saliente-se, porém, que em Êxodo 20,17, o verbo empregado é dmoßx.t; [taHmöd], tanto
para a mulher quanto para os bens. Deuteronômio faz uma pequena e significante distinção.
488
^[<+rE tv,aeä dmoßx.t; al{ïw> 21 /
21 wülö´ taHmöd ´ëºšet rë`eºkä.
489 `^[<)rEl. rv<ïa] lkoßw> Arêmox]w: AræAv ‘Atm'a]w: ADÝb.[;w> WhdEøf' ^[,ªrE tyBeä hW<÷a;t.ti al{’w> /
21wülö´ tit´awwè Bêt
rë`eºkä Sädëºhû wü`abDô wa´ámätô šôrô waHámörô wüköl ´ášer lürë`eºkä.
207
Shökel diz que o verbo dmx [Hmd] pode ser sinônimo de “amar” [bha] (1997, p. 228),
enquanto o outro verbo [hwa], no hithpael, como em Deuteronômio 5,21, tem o sentido de
cobiçar, mas com a ênfase na ansiedade (1997, p. 32), fazendo da cobiça um forte desejo para
ter aquilo que é do outro. Assim, para esta pesquisa, o que Deuteronômio está demonstrando é
que a mulher do próximo jamais pode fazer parte do desejo amoroso do “tu/vós”, pois ela tem
marido que a ama. Por outro lado, o mesmo “tu/vós” não poderia vir a ser possuído de um
desejo descontrolado para querer ter o patrimônio que pertence a outro – nisso incluído o
`ebed e a ´ämâ, pois esse desejo descontrolado poderia resultar na quebra de mais um
mandamento – “não furtarás”.
Finalmente, há uma referência, onde o `ebed aparece sozinho, que apresenta um mandamento
de ajuda humanitária para o `ebed fugitivo. Deuteronômio 23,15.16 (Hebraico v. 16 e 17)
parece trazer por trás de si a questão de vida ou morte. O texto é taxativo em dizer que o
`ebed fugitivo não pode ser entregue ao seu senhor: “Não entregarás um escravo para seu
senhor, aquele que escapou para ti de seus senhores”.490
O verbo traduzido nesta pesquisa por “escapar” [lceîN"yI / yinnäcël]491 sugere fuga para
preservação da vida. A construção presente no texto - ^yl,Þae lceîN"yI-rv,a] [´ášer-yinnäcël
´ëlʺkä] – onde lcn com la, traz a ideia de “refúgio” (SHÖKEL, 1997, p. 446). Assim,
quando o `ebed fugitivo procurou aquele “tu”, ele o fez para buscar refúgio. Tratando-o bem,
esse protetor não estará quebrando nenhum dos mandamentos dos Dez, mas os cumprindo
integralmente, pois a vida está sendo preservada. Assim, o direito de propriedade do “tu” não
está sendo violado pelo outro “tu” que acolhe o escravo daquele, pois o direito à vida é maior
que a posse de um bem.
Por outro lado, o Código de Hamurabi estabelecia a pena de morte para quem acolhesse o
escravo alheio: “Se um senhor feudal tem abrigado, em sua casa, um escravo fugitivo que
pertence ao estado ou uma escrava que pertença ao estado, ou a um cidadão, e não o tem
trazido na intimação da polícia, aquele chefe de família deve ser posto para morrer”
(PRITCHARD, 1958, p. 141, § 16). Assim, juntamente com o aporte dado pelo senhor ao seu
490
`wyn")doa] ~[iîme ^yl,Þae lceîN"yI-rv,a] wyn"+doa]-la, db,[,Þ ryGIïs.t;-al {16 /
16lö´-tasGîr `eºbed ´el-´ádönäyw ´ášer-
yinnäcël ´ëlʺkä më`ìm ´ádönäyw. 491
Esse é um dos sentidos para a raiz lcn quando no nifal (SHÖKEL, 1997, p. 446).
208
escravo a ser liberto, o asilo a um escravo fugitivo demonstrava avanço significativo do
Código Deuteronômico em relação a legislação de Hamurabi.492
O restante do mandamento é um esclarecimento do que deve acontecer com este `ebed
fugitivo.493
O texto de Deuteronômio salienta que o direito à vida está acima dos direitos de
propriedade. Mesmo que um `ebed e uma ´ämâ fizessem parte do patrimônio de um clã, a
vida deles estava acima de qualquer direito que um clã tivesse sobre eles. Mesmo sendo um
`ebed fugitivo, ele deve ser tratado com humanidade. O final do v. 17 afirma: “Não o
oprimirás494
”. Em Êxodo 22,20 (Hebraico) o mesmo verbo aparece em uma proibição contra a
opressão de um Gër. Esse detalhe é revelador, pois o `ebed fugitivo passará a viver com o “tu”
como um Gër: “contigo habitará, no meio de ti, no lugar que ele escolher, em um dos teus
portões, o que é bom para ti” (v. 17).
4.2.2. O `ebed como um representante oficial
O conceito de `ebed dentro do livro de Deuteronômio é pouco aplicado aquele emprego de
`ebed como título honorífico, como acontece em outros lugares dos escritos da BH, tais como
“meus servos, os profetas” (Ezequiel 38,17), onde a palavra `ebed qualifica a pessoa por ela
identificada como representante divino, ou como um representante de um rei (Isaías 36,9.11 e
37,5.6.24).495
Em Deuteronômio, apenas quando se refere a Moisés como servo do Deus de Israel é que
ocorre esse uso especializado da palavra `ebed. Isso ocorre em apenas dois lugares –
Deuteronômio 3,24 – onde Moisés é chamado de “teu servo”, e 34,5 – quando Moisés é
492
Nas leis de Eshnunna, § 50, há a seguinte legislação: “Se um governador militar, um governador do sistema
de canal, ou qualquer pessoa na posição de autoridade apreende um escravo fugitivo, uma escrava fugitiva, um
boi extraviado, ou um jumento extraviado que pertence a uma autoridade ou a um cidadão, e não o conduz a
Eshnunna, mas o retém em sua casa e permite decorrer mais que um mês, o palácio deve trazer contra ele uma
acusação de ladrão” (HALLO, 2003, p. 334-335). Não é clara a consequência dessa acusação, mas certamente
implicaria em penalidade para quem quebrasse essa lei. Provavelmente, haveria o pagamento de certa quantia em
dinheiro. 493
`WNn<)AT al{ß Al+ bAJåB; ^yr<Þ['v. dx;îa;B. rx:±b.yI-rv,a] ~AqôM'B; ^ªB.r>qiB. bveäyE ^úM.[i 17/
17`immükä yëšëb BüqirBükä
Bammäqôm ´ášer-yibHar Bü´aHad šü`ärʺkä Ba††ôb lô lö´ Tôneºnnû: “contigo habitará, no meio de ti, no lugar
que ele escolher, em um dos teus portões, o que é bom para ti. Não oprimirás (serás violento / começarás a
oprimir) a ele”. 494
Na conjugação hifil da raiz hny (HHL-BW7). 495
Os representantes do rei assírio Senaqueribe que invadiu Judá nos dias de Ezequias são chamados de “servos”
de Senaqueribe. Eles estavam ali para representá-lo e falar com a sua autoridade.
209
chamado de “servo de yhwh”. Nos demais lugares, a palavra `ebed traz o significado natural
de “escravo”, mesmo que haja alguma especialização salientada, como será visto abaixo.
4.2.3. Israel como `ebed
As referências ao povo de Israel como um `ebed aparecem em Deuteronômio 5,15; 6,21;
15,15; 24,22. O que caracteriza Israel como `ebed? A escravidão no Egito deveria fazer parte
da memória permanente de Israel. A frase “E lembrarás que foste escravo na terra do
Egito”496
é recorrente no trato de Deus com seu povo Israel, e está presente em Deuteronômio
(5,15; 15,15; 24,22) para relembrá-lo destes dias difíceis de escravidão no Egito. Com que
objetivo ela é colocada para Israel?
Em primeiro lugar, essa era uma forma de incentivar Israel a agir com solidariedade. Em
Deuteronômio 5,15, ela é colocada dentro do contexto dos Dez Mandamentos com o fim de
dar a motivação necessária para a guarda do dia de descanso. Mas não somente o descanso do
“tu”, mas o descanso de todos os que são apresentados em 5,15, os quais incluem a família do
“tu” e também os animais e o `ebed e a ´ämâ. Essa memória deveria ser usada como
incentivo para que o “tu” usasse de atos de humanidade com aqueles que se encontravam sob
seu domínio. A memória aqui serviria de incentivo à solidariedade – como Israel havia sido
escravo no Egito, ele entenderia quais são as necessidades de um escravo quanto ao descanso.
Em Deuteronômio 15,15, o contexto aponta para outro tipo de escravo. O que está em vista
aqui não é o `ebed como patrimônio, mas aquele israelita que, por sua condição financeira,
havia se deixado escravizar por outro israelita. O `ebed israelita tinha um prazo para
permanecer nessa condição. No prazo determinado para sua libertação, ele não deveria sair
dali como entrou – sem nada. O “tu” israelita deveria ser generoso para com aquele que seria
liberto.
Por fim, Deuteronômio 24,22, a memória deveria ser útil para que o “tu” tratasse com
generosidade o Gër, a ´almänâ, e o yätôm (Deuteronômio 24,20.21). A sobrevivência deles
dependia de o “tu” deixar caídos, no chão, os grãos da colheita. Esses serviriam para
alimentação destes Entes Silenciosos. Lembrar-se da escravidão no Egito era lembrar-se dos
momentos de necessidade que Israel passou ali.
496
~yIr:ëªc.mi #r<a,äB. Ÿ‘t'yyI’åh' db,[<Üî-yKiä T'ùªr>k;z"w> 15 / wüzäkartä Kî-`eºbed häyîºtä Bü´eºrec micraºyim.
210
Em todas essas três referências, a memória da escravidão no Egito deveria servir para atos de
solidariedade – provavelmente porque Israel não teve a empatia dos egípcios, mas a desejou.
Agora, com condição diferente, Israel não deveria agir como os egípcios agiram com ele.
Em segundo lugar, essa memória deveria fazer parte da confissão de Israel como escravo
liberto por seu Deus. Deuteronômio 6,21 tem uma confissão que deveria ser repassada para os
filhos dos Israelitas para que eles entendessem a motivação de Israel ter que observar
“testemunhos, estatutos e preceitos” (6,20). Assim, a confissão tinha um duplo propósito –
relembrar dos dias difíceis da escravidão no Egito, e relembrar que a saída dali foi uma saída
causada pelo Deus de Israel. Observar “testemunhos, estatutos e preceitos” era guardar na
memória a bondade de Deus sobre Israel. Assim, Israel é, dentro de Deuteronômio, um `ebed
apenas na memória. Mas não se trata de uma memória passiva, mas ativa.
4.2.4. O `ebed (ou a ´ämâ) israelita feito `ebed (ou a ´ämâ) para sempre
O outro tipo de `ebed (ou ´ämâ) é aquele que era constituído de escravos feitos dos teus
irmãos (Deuteronômio 15,17). Esse era aquele escravo que foi feito escravo por sua condição
financeira e ele era membro do povo de Israel – voluntariamente ele havia se vendido para
algum clã com possibilidade de comprá-lo. Ele tinha oportunidade de sair livre no ano da
remissão. O primeiro tipo de escravo fazia parte do patrimônio do clã e entrava na divisão da
herança. O segundo tipo de escravo era um escravo temporário, a não ser que ele optasse por
se tornar um escravo permanente.
O escravo israelita tinha, a seu favor, uma legislação específica para cuidar dele. Ele tinha um
tempo determinado de serviço para aquele a quem ele se vendia. Por outro lado, o escravo
vindo de outros povos era feito escravo compulsoriamente. Ele permaneceria escravo durante
os dias de sua vida, salvo se encontrasse um dono generoso que lhe desse a sua liberdade. As
demandas por mão de obra, normalmente, impediriam essa atitude por parte de um senhor de
terras.
Entretanto, o `ebed que se fez escravo podia fazer uma escolha voluntária de ficar como
escravo para sempre do clã ao qual se vendera (Deuteronômio 15,16.17). A motivação deveria
ser o amor pelo seu senhor. O redator diz que deveria ser dito pelo `ebed, ou pela ´ämâ, que
ele, ou ela, amava seu senhor: “E será que ele diga para ti: ‘não sairei de perto de ti’, porque
211
ele te ama, e (ama) tua casa, porque (é) bom para ele (estar) contigo”.497
Note-se: primeiro,
ele deve fazer uma declaração oficial diante do tribunal da comunidade, segundo Êxodo
21,4.5. Portanto, ela é feita diante de testemunhas. Um segundo detalhe a ser observado é que
aquele clã é bom para ele. Esse ambiente favorável deve ser comparado com a liberdade que
ele recusa receber por direito. Isso significa que a vida de escravo naquele clã é mais
favorável que a liberdade que ele estava prestes a usufruir. Diante de sua decisão oficial, ele
passa a ser marcado pelas furos da servidão voluntária perpétua – as orelhas furadas
(Deuteronômio 16,17).
4.3. O `ebed e a ´ämâ na šümi††â: Liberdade ou escravidão permanente? O dilema do
`ebed e da ´ämâ em Deuteronômio 15,12-18
4.3.1. Tradução
12 – “Quando o teu irmão hebreu,498
ou (tua irmã) hebreia,499
vender-se500
a ti, seis anos
servirá a ti. E no ano sétimo, tu o mandarás livre,501
de junto502
de ti”.503
497
`%M")[i Alß bAjï-yKi ^t,êyBe-ta,w> ‘^b.he(a] yKiÛ %M"+[ime aceÞae al{ï ^yl,êae rm:åayO-yKi( ‘hy"h'w>16 / 16wühäyâ Kî|-yö´mar
´ëlʺkä lö´ ´ëcë´ më`immäk Kî ´áhë|bkä wü´et-Bêteºkä Kî-†ôb lô `immäk. 498
“Em todos os textos relativos à escravidão, distingue-se o escravo hebreu do escravo kena‘ani (cananeu) que
era tratado da mesma maneira que todos os escravos nas sociedades vizinhas. Quanto ao hebreu, ele permanecia
‘irmão’ em sua escravidão” (CHOURAQUI, 1997, p. 179). 499
A palabra yrIªb.[i [`ibrî] foi primeiramente empregada para Abraão em Gênesis 14,13, sendo a construção
igual, “Abrão, o hebreu” [yrIªb.[ih'( / hä|`ibrî]. A palavra hY"ërIb.[i [`ibriyyâ] aparece somente aqui. Tanto “o teu
irmão” quanto a “tua irmã” são claramente identificados com “Abraão, o hebreu” [yrIªb.[ih'(], justificando com
força da origem o porque de eles serem tratados diferentemente. Um descendente de Abraão não pode ser um
escravo de outro descendente de Abraão nem de outro qualquer. Neemias viria a fazer todo esforço para comprar
seus irmãos que haviam sido vendidos a outros povos (Neemias 5,8). Em Êxodo 21,2 a formação é com a
palavra “escravo/servo” [yrIêb.[i db,[,ä], onde o contexto salienta a compra de um escravo hebreu. Deuteronômio
aproxima este “servo hebreu” do Ba`al e diz que ele é “teu irmão hebreu”. Ou, noutra forma de dizer, o Ba`al e
`eºbed têm a mesma origem, o “Abrão, o hebreu”. “yrIêb.[i, portanto, ocorre com muita frequência e usualmente na
presença de (ou nos lábios de) estrangeiros (exceto Gênesis 14,13; Êxodo 21,2; Deuteronômio 15,12; Jeremias
34,9; Jonas 1,9) para indicar aspectos raciais distintivos de Israel e seus ancestrais” (HALOT, 2001, v. 1, p. 782).
HALOT apresenta cinco interpretações para o emprego de yrIêb.[i, mas aqui seguem as quatro primeiras: primeiro,
indica o nome de uma nação; segundo, aponta para um grupo social e, depois, para o nome de uma nação;
terceiro, mostra uma classe inferior de israelitas na comunidade preexílica; quarto, um grupo étnico que não deve
ser identificado diretamente com os israelitas, mas com o grupo ao qual eles pertenceriam (2001, v. 1, p. 783).
Para Cairns, yrIªb.[i, em 15,12, indica “um cidadão israelita pleno em contraste com o estrangeiro residente”
(1990, p. 149). Tigay, por sua vez, acrescenta que yrIªb.[i “é uma designação antiga para os israelitas que não
poderiam ser chamados de ‘israelitaas’ antes do tempo de Israel. Ela aparece comumente nas narrativas
patriarcais e de José, no Êxodo, e no período antes de Davi se tornar rei. Depois desse tempo a palavra caiu em
desuso. Ela pode ser relacionada com palavra ‘apiru, a qual é encontrada em textos do Antigo Oriente Próximo
em referência a classe social de desenraizados, indivíduos subservientes... Entretanto, os termos ‘apiru e `ibrî
não são necessariamente relacionados. Há diferenças fonétics entre eles, e em outros contextos ‘hebreu’
claramente se refere a um grupo étnico, enquanto ‘apiru refere-se a uma classe social... Aqui em Deuteronômio,
‘hebreu’ significa simplesmente ‘israelita’” (1996, p. 148).
212
13 – “E quando tu o mandares livre de ti,504
não o mandarás505
vazio506
”.507
14 – “Tu certamente farás pôr, como um colar508
para ele, do teu rebanho,509
e da tua eira, e
do teu lagar. Tu darás para ele (do) que ´ädönäy teu Deus te abençoou (deu)”.510
15 – “E tu lembrarás511
que escravo foste512
na terra do Egito e ´ädönäy teu Deus te
regatou.513
Assim eu te ordeno esta palavra hoje”.514
500
A BJ traduziu o verbo rke’M'yI [yimmäkër] por “for vendido”, entendendo o nifal aqui como passivo do qal.
Para esta pesquisa, o nifal nesse texto pode ser traduzido como um reflexivo do qal, “vender-se”. Isso é
favorecido pelo contexto que salienta que o israelita, diante de sua situação social degradada, opta por se vender
como escravo ao irmão israelita. Em Levítico 25,47, favorece a ideia de um reflexivo do qal aqui. Nesse texto, o
verbo nifal rK;ªm.nIw> [wünimKar] é reflexivo (“e se vender”). O texto trata da possibilidade de um “estrangeiro e
peregrino” [bv'Atw> rGEÜ / Gër wütôšäb] prosperar ao ponto de um israelita acumular com ele uma dívida
impagável, tendo como única saída sua venda para pagamento da dívida. Ele não deve ser deixado como escravo
para o resto de sua vida. Ele deve ser resgatado por um parente (24,48-55). Por outro lado, Deuteronômio 15,12
pode ter por trás de si o contexto de Levítico 24,48-55 de outra forma. O empobrecido que se vendeu para o
bv'Atw> rGEÜ é revendido pelo bv'Atw> rGEÜ para um israelita para pagar sua própria dívida com um membro da
comunidade de Israel. Se for assim, a tradução “se for vendido” seria apropriada a Deuteronômio 15,12. 501
Livre no sentido de libertado da escravidão a que se sujeitou, bem como de qualquer dívida que tenha
motivado a sua autosservidão. Chegou a šümi††â para ele e para ela. 502
%M")[ime – essa construção aparece quatro vezes nesta unidade textual (15,12.13.16.18). Ela indica muito mais
que proximidade. Ela aponta para a convivência. É alguém “de contigo”. Alguém que, mesmo tendo servido
como escravo, conviveu com seu senhor e da vida dele ele participou. 503 `%M")[ime yviÞp.x' WNx,îL.v;T. t[iêybiV.h; ‘hn"V'b;W ~ynI+v' vveä ß̂d>b'([]w: hY"ërIb.[ih'( Aa… yrIªb.[ih'( ^yxiäa' ø̂l. rke’M'yI-yKi( 12 / 12Kî|-yimmäkër lükä ´äHîºkä hä|`ibrî ´ô hä|`ibriyyâ wa`ábä|dkä šëš šänîm ûbaššänâ haššübî`ìt TüšallüHeºnnû
Hopšî më`immäk. 504
A primeira parte deste versículo é quase uma repetição da parte final do versículo anterior. A diferença está
em como as duas ocorrências foram traduzidas [%M"+[ime( yviÞp.x' WNx,îL.v;t / tüšallüHeºnnû Hopšî më|`immäk]. No
versículo anterior, o imperfectivo piel foi traduzido como uma ordem, o que se repete no final do versículo onde
a mesma formação verbal aparece pela terceira vez. No versículo 13, como um subjuntivo, no começo do
versículo 13, devido a presença de yKi(, traduzida por “quando”. É o contexto onde estão inseridas essas formas
verbais que favorece as diferenças na tradução. 505
Além de o Ba`al ter que perder a mão de obra já paga na compra do escravo, ou escrava, ele ainda teria que
conceder um presente como forma de compensação por ter escravizado e usufruído dos serviços do hY"ërIb.[ih'( Aa… yrIªb.[ih'( ^yxiäa'. Em Gênesis 31,42 Jacó emprega essa palavra para indicar que, se não fora o seu Deus, seu sogro
o teria despedido [ynIT"+x.L;vi] de mãos vazias [~q")yrE]. Como notado nessa citação do diálogo entre Jacó e seu
sogro, Labão, também tem presente o verbo xlv, no piel perfectivo, para indicar o ato de mandar embora
[ynIT"+x.L;vi]. 506
~q")yrE tem três empregos dentro da BH: primeiro, ela carrega a ideia de sair sem um presente (Gênesis 31,42);
segundo, ter fracassado em algum objetivo e, por isso, não ter nada pelo que comemorar (Isaías 55,11); e, por
último, ser destituídos de posses da família, como em Rute 1,21 (HALOT, 2001, v. 2, p. 1229). 507 `~q")yrE WNx,ÞL.v;t. al{ï %M"+[ime( yviÞp.x' WNx,îL.v;t.-yki(w>13 / 13wükî|-tüšallüHeºnnû Hopšî më|`immäk lö´ tüšallüHeºnnû
rêqäm. 508
Kalland vê nessa nesta construção, Alê ‘qynI[]T; qynEÜ[]h ;, uma figura hebraica para generosidade. Para ele,
literalmente, essa construção pode ser traduzida por “tu deves fazer um rico colar”, “ser liberal com os
presentes” (1992, p. 107). 509
O servo liberto sairá com um animal do rebanho sobre os ombros. 510
`Al*-!T,Ti ^yh,Þl{a/ hw"ïhy> ^±k.r:Be rv<ôa] ^b<+q.YImiW ^ßn>r>G"mI)W ^ên>aCoåmi Alê ‘qynI[]T; qynEÜ[]h ; 14 / 14 ha`ánêq Ta`ánîq lô
miccöº´nükä ûmi|GGornükä ûmiyyiqbeºkä ´ášer Bërakükä yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä TiTTen-lô.
213
16 – “Mas, será515
que quando516
ele te disser: ‘Não sairei de junto de ti’. Porque ele ama
a ti e a tua casa, porque (é) bom para ele (ficar) contigo”.517
17 – “E tomarás o furador518
e meterás519
na sua orelha na porta. E ele será para ti um
escravo para sempre. E também para tua serva farás assim”.520
18 – “Não será difícil nos teus olhos mandar-lhe embora, livre de ti, porque ele te serviu o
dobro521
do salário522
de um diarista523
seis anos. E ´ädönäy teu Deus te abençoará
em tudo que fizeres”.524
511
O desafio da memória é para que o resultado seja diferente no trato do Ba`al com o “teu irmão escravo”
daquele que os egípcios deram aos israelitas. 512
Lembrar que o Ba`al também foi um escravo no Egito invoca as lembranças do Êxodo. O Êxodo é
fundamental para o tratamento misericordioso com o próximo. 513
O verbo hdp é o verbo empregado para “resgatar” dentro de Deuteronômio. O verbo l[g não é presente em
Deuteronômio em sua forma conjugada, apenas na substantivada, l[eGO, “redentor”, “o que redime”. Em
Deuteronômio, o l[eGO é o “vindador do sangue” (19,6-12). 514
`~AY*h; hZ<ßh; rb"ïD"h;-ta, ^±W>c;m. ykiónOa' !Keú-l[; ^yh,_l{a/ hw"åhy> ^ßD>p.YIw:) ~yIr:êc.mi #r<a,äB. ‘t'yyI’h' db,[,Û yKiä T'ªr>k;z"w>15 /
15wüzäkarTä Kî `eºbed häyîºtä Bü´eºrec micraºyim wa|yyipDükä yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä `al-Kën ´änökî
mücawwükä ´et-haDDäbär hazzè hayyôm. 515
O verbo hy"h', no perfectivo com w>, é empregado para abrir locuções temporais com perspectiva futura: “E
será...” (ROSS, 2001, p. 146). Aqui, com a perspectiva de uma possibilidade real futura, ele pode ser traduzido
por “e acontecerá” para apontar para um evento futuro possível, quando as condições futuras forem favoráveis a
sua ocorrência. 516
A LXX traduziu essa locução temporal por uma oração condicional: eva.n de. le,gh| pro.j se, (“Mas, se ele disser
a ti”). Isso salienta que os tradutores da LXX entenderam a construção como uma condição que provavelmente
poderia acontecer em um tempo futuro. 517 `%M")[i Alß bAjï-yKi ^t,êyBe-ta,w> ‘^b.he(a] yKiÛ %M"+[ime aceÞae al{ï ^yl,êae rm:åayO-yKi( ‘hy"h'w>16 / 16wühäyâ Kî|-yö´mar
´ëlʺkä lö´ ´ëcë´ më`immäk Kî ´áhë|bkä wü´et-Bêteºkä Kî-†ôb lô `immäk. 518
A BJ traduz [:ceªr>m; [marcëª`] por “sovela” – “instrumento com que os correeiros e sapateiros furam o cabedal
para o coser” (Michaelis, p. 1975). Na tradução apresentada nesta pesquisa, optou-se por traduzir a palavra
hebraica por “furador” por ser mais fácil de o leitor entender. Essa palavra aparece em Êxodo 21,6 em contexto
semelhante. 519
O verbo aqui é qal de !tn, “dar”. Na tradução desse versículo se deu uma alternativa de tradução para o verbo
dada por Schökel (1997, p. 458). 520
`!KE)-hf,[]T; ^ßt.m'a]l; @a:ïw> ~l'_A[ db,[,ä ^ßl. hy"ïh'w> tl,D<êb;W ‘Anz>a'b. hT'Ût;n"w> [:ceªr>M;h;-ta, T'äx.q;l'w>17 / 17wüläqaHTä
´et-hammarcëª` wünätaTTâ bü´oznô ûbaDDeºlet wühäyâ lükä `eºbed `ôläm wü´ap la´ámätkä Ta`áSè-Kën. 521
A palavra “dobro” [hn<v.mi / mišnè], segundo Von Rad, deveria ser entendida por “equivalente a” (1966, p.
108). 522
A raiz rkf é usada tanto na palavra “salário” [rk'f'.] quanto na palavra “diarista” [rykiêf']. O verbo do qual
essas duas palavras procedem é rkf, traduzido como “alugar, assalariar, contratar, empregar” (DBHP, p. 643-
644). Assim, rk'f' é o salário pago ao assalariado diarista [rykiêf']. 523
Temos aqui uma construção que poderia salientar uma desvantagem para o Ba`al. Entretanto, o que o redator
está dizendo é que houve vantagem para ele. O serviço do “servo hebreu” [yrIêb.[i db,[,ä] rendeu ao o Ba`al o
dobro do que renderia um diarista. Com o rykiêf' [Säkîr] ele teria o pagamento da diária. Com o “servo hebreu”,
não haveria esse gasto, dando a ele lucro [rk:åf. / Sükar] dobrado, e isso por seis anos.
214
4.3.2. db,[, [`ebed] e hm'a' [´ämâ]: O irmão (ou a irmã) que se vendeu como escravo
(Deuteronômio 15,12-18)
O que caracteriza a šümi††â do `ebed e da ´ämâ ? Na essência, a šümi††â aqui acrescenta a
ideia de libertação depois de um período de seis anos de escravatura, além do cancelamento
da dívida pela qual o/a israelita se vendeu ao seu irmão. Mais que isso, a šümi††â é também
um meio de mostrar solidariedade com o irmão que se vendeu e trabalho como escravo por
um período de tempo.
4.3.2.1. Venda voluntária (15,12)525
Ao começar com uma hipótese futura, o redator propõe a possiblidade de um israelita vir a se
vender como escravo. A legislação da šümi††â, “Quando o teu irmão... se vender a ti”, aponta
para essa possibilidade futura. Mas como tratar o irmão ou irmã israelita que, diante das
circunstâcias chega ao extremo de se vender a um irmão como escravo ou escrava?
Primeiro, Deuteronômio pontua que a disposição de um israelita de se sujeitar à condição de
escravo deve ser voluntária. O nifal de rk;m', “vender-se”, aponta para essa direção. Isso está
em harmonia com o contexto anterior da šümi††â. O irmão empobrecido deveria receber um
empréstimo e ter sua dívida concelada na šümi††â (Deuteronômio 15,1.2). Isso quer dizer que
se vender para ser escravo não era compulsório, mas voluntário.
Segundo, a šümi††â estabelece um período fixo de seis anos para o israelita trabalhar como
escravo para um irmão. Se esses seis anos de serviço está relacionado com o período de sete
anos, sendo o sétimo o ano sabático, então o período de seis anos deve ser considerado o
perído máximo para um/uma israelita servir ao seu irmão como escravo/escrava. Isso quer
dizer que ele/ela poderia se vender por período menor. Mas como harmonizar esse verder-se
524
`hf,([]T; rv<ïa] lkoßB. ^yh,êl{a/ hw"åhy> ‘^k.r:be(W ~ynI+v' vveä ^ßd>b'¥[] rykiêf' rk:åf. ‘hn<v.mi yKiª %M'ê[ime( ‘yvip.x' AtÜao ‘^x]Le(v;B. ^n<©y[eb. hv,äq.yI-al {18 / 18lö´-yiqšè bü`êneºkä Büšallë|Hákä ´ötô Hopšî më|`immäk Kî mišnè Sükar Säkîr
`ábä|dkä šëš šänîm ûbë|rakükä yhwh(´ädönäy) ´élöhʺkä Büköl ´ášer Ta`áSè. 525
Êxodo 21,1-11 apresenta uma legislação sobre o “escravo hebreu”. Algumas diferenças podem ser anotadas
entre essa legislação e a de Deuteronômio 15: o escravo hebreu deve trabalhar seis anos e sair livre no sétimo,
mas se ele entrou sozinho, deve sair sozinho, se entrou com a mulher, ela deve sair com ele; se ele casou depois
de se fazer escravo, a mulher e os filhos desse período ficam com quem o comprou; também um homem pode
vender sua filha como escrava; porém, ela não deverá sair como escrava se caso ela tenha se casado com quem a
comprou. Segundo Driver, “a verdadeira explicação para a variação é que a lei de Deuteronômio vem de um
estágio mais avançado da sociedade que a lei de Êxodo; ela regula o costume para o tempo em que o poder de
um pai não foi mais absoluto quanto tinha sido em tempos anteriores, e coloca os dois sexos em posição de
igualdade” (1985, p. 182-183).
215
como escravo com o cancelamento de dívida do irmão empobrecido na šümi††â? O que está
por trás dessa atitude extrema é a sobrevivência. O/a israelita pode chegar a um ponto onde
ele/ela entende que a única forma de sobreviver é se vendendo como escravo para um irmão.
Outro motivo é que um empréstimo não pago na expectativa da šümi††â poderia levar o
irmão a não fazer outro empréstimo.
Num ato de boa vontade do devedor, ele não somente se vende para pagar uma dívida
anterior, mas também para não fazer outra, e ainda receber por essa venda. Deuteronômio 15,
18 diz “Não será difícil nos teus olhos o teu mandar-lhe embora livre de junto de ti, porque ele
te serviu pelo dobro do salário de um diarista”. O escravo/escrava israelita, aparentemente,
traria um custo alto para o irmão que o/a comprou. Ele pagou pelo período de tempo que seria
servido nos seis anos até a šümi††â. Esse pagamento foi o dobro do custo que ele teria com
um diarista. Mas esse custo tinha a ver com a compra de um irmão israelita, e por isso ele
devia ser generoso. Além disso, o/a israelita seria seu durante o período dos seis anos, e, no
final, daria maior lucro que o diarista.
Terceiro, assim como a atitude do israelita que se vendia como escravo deveria ser voluntária,
a do comprador também deveria ser na hora de libertá-lo: “E no ano sétimo, tu o mandarás
livre de ti”. Há, por trás dessa declaração, a formalidade de um ato de libertação. A
proclamação da šümi††â para o irmão que se escravizou envolvia a declaração que ele não
devia mais nada e que, a seu tempo, chegara a hora de libertá-lo.
4.3.2.2. Liberalidade na saída
4.3.2.2.1. Saída com suporte (15,13)
“E quando tu o mandares livre de ti, não o mandarás vazio”. O ano da šümi††â é ano de
soltura. O conceito de mão que solta está colocado em Deuteronômio 15,3, a mão do Ba`al
deve ser aberta para ele soltar o que ela segura. Em 15,7.8.11, a mão do Ba`al é convocada a
se abrir outra vez para dar ao seu irmão pobre o que ele precisa. Em 15,10, a mão que solta é a
mão que recebe. Pois se o Ba`al liberar a mão generosa, ela receberá generosidade em tudo
que ela tocar. Aqui, mesmo que 15,13 não tenha a palavra mão, mas a ideia de sair “vazio”
pode ser esticada para o pensamento de “sair de mãos vazias”. Sair vazio é sair sem um
presente.
216
4.3.2.2.2. Bênção para abençoar (15,14)
“Tu certamente farás pôr como um colar, para ele”. Há dois detalhes sobre essa construção.
Primeiro, há aqui recurso do emprego do infinitivo absoluto com um verbo finito de mesma
raiz [‘qynI[]T; qynEÜ[]h; / ha`ánêq Ta`ánîq]. Ele estabele uma ordem com base certa naquilo que a
benção divina já havia concedido ao Ba`al.
Segundo, o verbo no qal pode ser traduzido como “colocar como um colar” (HHL-BW7),
como no Salmo 73,6. No hifil, causativo do qal, como em 15,14, “fazer colocar como um
colar” (HHL-BW7). A ideia é de carregar sobre os ombros do “teu irmão escravo”, recém-
liberto, uma ajuda, generosa, para seu recomeço. A BJ traduz essa construção por: “carrega-
lhe o ombro com presentes”. A sugestão é que o presente não seja apenas para um dia. Pode
apontar para um animal que fosse carregado sobre as costas. Ele precisa recomeçar a vida de
um ponto de partida melhor. A figura evocada pelo versículo é a do escravo/escrava saindo
formalmente, na šümi††â, com festa promovida pelo Ba`al, na qual, como reconhecimento de
ter sido abençoado por Deus, através do trabalho do servo/serva, ele abençoa o recém-liberto
com provisões generosas para seu recomeço. A provisão para isso viria daquilo que Deus já o
tinha dado: rebanho, eira, lagar.
4.3.2.2.3. Liberdade baseada na memória (15,15)
Para entender melhor Deuteronômio 15,15, deve-se recorrer a 15,12. Ali é dito que a pessoa
que se venderá como escravo é “teu irmão hebreu, ou tua irmã hebreia”. A palavra yrIªb.[i foi
empregada para caracterizar os israelitas feitos escravos no Egito (Êxodo 1,15-19; 3,18; 5,3;
7,16). Em 15,12, duas palavras palavras deveriam salientar a solidariedade racial entre o
vendedor e comprador: “teu irmão hebreu/hebreia”. Mas aqui, 15,15, o redator coloca de
forma explícita – o comprador também foi um “escravo hebreu” no Egito. Então, por sua
condição anterior, ele deveria tratar bem o seu irmão que se escravizou a ele.
Note o recurso da memória: “E tu lembrarás que escravo foste na terra do Egito”.526
Mas isso
não significaria que o Ba`al deveria sentir algum tipo de piedade que o levasse a ser generoso
com o “teu irmão hebreu/hebreia”. A implicação é que quando Ba`al passou por seu tempo de
escravidão, Deus o amou ao ponto de o libertar e ainda lhe trazer ampla provisão para o
526
Notar a semelhança de linguagem com Deuteronômio 5,15; 16,12; 24,18.22. Israel foi, não somente escravo
no Egito, como foi estrangeiro residente ali (Deuteronômio 10,19).
217
recomeço na Terra da Promessa (CRAIGIE, 1976, p. 239). Portanto, não é só libertar. É
libertar com presentes para seu recomeço. Não é só libertar, mas libertar com suprimento.
4.3.2.3. A recusa em sair
4.3.2.3.1. A recusa em sair tem que ser voluntária (15,16)
Em Êxodo 21,5.6, a recusa em sair é motivada pelo amor que o escravo hebreu tinha pela
família que ele constituiu depois que ele se escravizou, bem como por seu Ba`al.527 Em
Deuteronômio 15, o motivo para ele não sair é o amor pelo seu Ba`al e pela sua casa e porque
ele estava bem com o clã ao qual ele servira nos últimos anos. Só que essa última declaração
não está na boca do declarante, mas é uma declaração do redator diante da disposição do
escravo hebreu em querer ficar escravo em definitivo na casa do Ba`al: “porque é bom para
ele ficar contigo”.
4.3.2.3.2. A recusa tem que ser oficializada (15,17)
A recusa em sair deve ser formalmente ratificada “pela cerimônia de cravar sua orelha na
porta de seu senhor” (DRIVER, 1895, p. 184), sinal de completa dedicação ao seu senhor e
família: “E tomarás o furador e meterás na sua orelha na porta. E ele será para ti um escravo
para sempre. E também para tua serva farás assim”. Em Êxodo 21,6, o escravo hebreu deve
ser trazido para Deus,528
pressupondo o Santuário Central, onde teria como juízes os
sacerdotes ministrantes ali.
Em Deuteronômio, o evento de formalização da escravidão por toda a vida não pressupõe ida
ao Santuário Central. Ao que tudo indica, todo o procedimento formal acontece dentro da
propriedade do Ba`al, num evento público, e, ao mesmo tempo, doméstico, pois a pessoa que
está se escravizando para sempre é alguém da comunidade, e tal evento precisa ser atestado
com testemunhas, para mostrar que a decisão de manter aquele escravo no patrimônio do
527
A palavra traduzida por “senhor” em Exodo 21,5 é !Ada'. A ordem da declaração de amor é primeiramente
dirigida ao seu senhor, depois à sua mulher e, finalmente, aos seus filhos. A casa do !Ada' não é citada em Êxodo
21,5, mas é implicada pela citação do próprio !Ada' como objeto do amor do escravo. O tratamento recebido ali
é fator decisivo para a permanência do escravo naquele clã depois do cumprimento dos seis anos. Mas também o
seu amor pela sua própria família que fora formada depois de sua entrada como escravo naquele clã. 528
O texto hebraico diz “E o seu senhor o trará para Deus” [~yhiêl{a/h'ä-la, ‘wyn"doa] AvÜyGIhiw>]. A BJ traduz a frase
por “o seu senhor fa-lo-á aproximar-se de Deus”.
218
Ba`al não partiu do Ba`al, mas do próprio escravo hebreu. Caso contrário, ele deveria sair
livre.529
4.3.2.4. Obediência para a prosperidade (15,18)
O versículo final trabalha com a eventual relutância do Ba`al em libertar seu irmão escravo.
Ele pode pensar que ele teve prejuízo. Afinal, ele pode pensar que os custos com o escravo
hebreu tenham sido maiores que os que ele teria se houvesse contratado um diarista. Mas o
texto tem uma construção que favorece o ganho do Ba`al: “ele te serviu o dobro do salário de
um diarista seis anos”. O trabalho do escravo hebreu foi muito lucrativo. Ele proporcionou
ganhos dobrados.
O que o texto sugere é que, segundo o redator, além de o Ba`al não ter que pagar um diarista,
ele ainda lucrou cem por cento sobre o trabalho do escravo hebreu. Mas para não ficar apenas
com esse ganho que já é muito, o redator se interpõe com uma promessa de bênção ainda
maior: “E ´ädönäy teu Deus te abençoará em tudo que fizeres”. Isso indica que Deus o
abençoará na produtividade do campo além do que ele teria se mantivesse a mão-de-obra
escrava para trabalhar nos seus campos.530
529
A legislação sobre a liberdade compulsória dos escravos hebreus aparece em três lugares no Pentateuco.
Êxodo 21,5.6, Levítico 25,39-46 e Deuteronômio 15,16.17. A legislação de Levítico 25 estabelece que os
escravos adquiridos de outros povos permaneçam no patrimônio do clã indefinidamente e, os escravos hebreus,
diferentemente de Êxodo e Deuteronômio, devem sair livres no Jubileu, não após seis anos de serviço como
escravo. Driver (1895, p. 185) apresenta algumas maneiras de harmonizar essa discrepância entre as legislações.
A primeira é estabelecer que, se o ano do jubileu chegar primeiro que o sétimo ano, então esse será o ano de
libertação do escavo hebreu. A segunda é entender que a situação de pobreza que culminou na escravidão era tal
que, mesmo saindo em liberdade, ele não teria condições de se estabelecer com independência e, por isso,
deveria permanecer na casa de quem o comprou como escravo. Por último, para Driver, a solução para a
discrepância entre os textos está em que, em Levítico, há a suposição que a lei levítica é a provisão para a
atenuação da servidão de israelitas, e sem referência a legislação anterior, e originada num tempo quando a
legislação de Êxodo e Deuteronômio, a qual estabelece um limite de tempo, não poderia ser forçada. Driver nota
também que a legislação de Levítico tem seu valor humanitário. Ela estabelece que o escravo israelita deva viver
com seu senhor como um estrangeiro, como um diarista e, quando chegar à sua libertação, ele poderá sair com a
sua mulher e filhos. Mas há outro modo de ver a libertação no ano do jubileu proposta por Levítico. Hartley
indica que, tendo em vista que Êxodo 25 e Deuteronômio 15 determinam que o escravo hebreu deva sair no ano
sétimo, a legislação levítica acentua que o escravo hebreu que deve sair no ano do jubileu é aquele que optou por
ficar com seu senhor em definitivo. Assim, além de ele ganhar sua liberdade, ele ainda recebe o privilédio de sair
com sua esposa e filhos (1992, p. 440). 530
Jeremias 34,12-16 indica que a legislação da šümi††â não teve aceitação generalizada pela comunidade
israelita. O profeta faz crítica severa contra o povo de seu tempo por haver a escravização disseminada de irmãos
e irmãs israelitas. Jeremias diz que mesmo os antepassados dos israelitas do tempo de Jeremias não foram
obedientes à ordem divina de dar liberdade no sétimo ano (34,14).
219
4.4. A hm'a' e a hx'p.vi -šipHäh
O último tópico desse capítulo busca mostrar que, enquanto a palavra db,[,,`ebed, é a única
palavra para designar um homem escravo dentro da BH, a “serva/escrava” é designado por
duas palavras: hm'a' e hx'p.vi. As duas podem ser traduzidas por “serva” ou “escrava”. Partindo
do pressuposto que Jeremias escreveu seu livro tendo uma perspectiva teológica
deuteronomista, pode-se afirmar que as palavras são sinônimas. Em Jeremias 34, dentro de
um contexto que faz referência a šümi††â,531
a palavra hm'a', empregada em Deuteronômio
15, é substituída por hx'p.vi (34,9.10.11 [2x].16 [2x]). Como em Deuteronômio 15,12, onde a
hm'a' é qualificada por ser uma hY"ßrIb.[i, Jeremias 34 também qualifica a hx'p.vi da mesma
forma (34,9).
Porém, enquanto que a palavra šipHäh concentra 26 de suas 60 ocorrências dentro da BH em
Gênesis 12 a 35, ela é quase ausente dentro dos textos legais (REUTER, 2006, p. 406),
literatura dominada pelas aparições da palavra hm'a'. Dentro de Deuteronômio, šipHäh aparece
em 28,68, na companhia de `ebed, dentro de um contexto de maldições que ameaçam Israel,
caso ele não fosse obediente em cumprir a legislação do Deuteronômio. A única ocorrência
dentro de um texto legal propriamente dito está em Levítico 19,20 (REUTER, 2006, p. 409).
Para Reuter, na literatura de Gênesis, a šipHäh é mencionada quando as matriarcas são sem
filhos, relacionando-a a esposa do patriarca (REUTER, 2006, p. 406). Mesmo que o patriarca
seja o dono dela, dentro da família ela pertence à matriarca. Desse modo, quando a filha
casava, uma šipHäh podia ser incluída como serva da noiva (REUTER, 2006, p. 407). Dessa
forma, ela estaria à disposição da matriarca para ser entregue ao patriarca para lhe gerar filhos
quando a matriarca estava impossibilitada, fazendo da šipHäh, nesses casos, uma segunda
esposa (REUTER, 2006, p. 407-408).
531
Em Jeremias 34, o profeta faz menção ao rei Zedequias e à sua liderança que haviam tomado a decisão de
libertar seus escravos e escravas israelitas. Porém, depois de alguma reflexão sobre o que fizeram, resolveram
recuar e outra vez escravizar seus irmãos e irmãs, recebendo, depois disso, pesada crítica do profeta, inclusive
uma acusação que a atitude deles refletia seus antepassados que, como eles, nunca foram obedientes à legislação
deuteronômica da šümi††â (34,14). Em Jeremias 34,14, logo no início, mostra claro que Jeremias está se
referindo à legislação deuteronômica da šümi††â: “Ao fim de sete anos” [~ynI³v' [b;v,ä #QEåmi]. A mesma
construção está em Deuteronômio 15,1.
220
Bridge (2012, p. 1) mostra que a ´ämâ e a šipHäh são usadas como sinônimos, tanto no seu
emprego para demonstrar a serva em seu sentido geral (Naum 2,8; Levítico 25,44;
Deuteronômio 28,68; 1 Samuel 8,16) quanto pelo emprego das duas dentro do mesmo texto e
mesmo contexto (Gênesis 16,2-5; 21,10-13; 30,3.4; 31,33; 33,1.6; 1 Samuel 25,27.28).
Bridge entende que a análise das duas palavras não deve seguir pelo caminho da distinção
entre elas, mas pelo padrão de uso. Segundo ele, os dois termos devem ser distinguidos pelo
padrão de uso dentro da BH, mostrando que elas podem ser usadas em seu sentido descritivo
e em deferência (2012, p. 2, 3). Na primeira parte de seu artigo, Bridge critica aqueles que
buscam encontrar distinção entre as duas palavras.
Os padrões de uso que Bridge (2012, p. 10-14) observa são os seguintes. Primeiro, há uma
concentração de uso de ´ämâ dentro de contextos legais (Êxodo e Deuteronômio) e de šipHäh
em textos narrativos, mesmo que haja exceções dentro desse padrão. Segundo, há
predominância do emprego de šipHäh dentro de listas de propriedade, onde ela aparece
somente duas vezes – em Êxodo 20,17 e Esdras 2,65. Terceiro, šipHäh aparece em sua
relação com sua senhora mais frequentemente (Gênesis 16,1–8; 25,12; 30,4–18; 35,25–26;
Salmos 123,2; Provérbios 30,23; Isaías 24,2). Quando a relação é com o senhor, a´ämâ é
usualmente empregada. Por último, ´ämâ é o termo predominante em seu emprego para
denotar escravas no casamento ou outras relações conjugais com o senhor ou outro membro
masculino da família (Gênesis 20,17; 30,3; Êxodo 21,7–11; Juízes 9,18; 19,19).
Para esta pesquisa, basta dizer aquilo que os dados acima já declararam – que a ´ämâ e a
šipHäh são termos distintos pelos seu uso em determinados contextos, mas são sinônimos pelo
seu significado de “serva” ou “escrava”, seja no seu sentido polido de uma referência pessoal
à submissão a um superior, ou superiora, ou no sentido de caracterizar alguém em sua
condição de escravidão. Como notado acima, a presença predominante de ´ämâ em contextos
legais, tanto em Êxodo como em Deuteronômio, segue o padrão de uso das duas palavras,
mesmo que cada padrão ainda apresente suas exceções, mas o que se procurou notar foi o
emprego predominante de cada palavra.
Basicamente há dois tipos de escravo-escrava dento de Deuteronômio: os que pertenciam ao
povo de Israel e os que eram de outros povos. Por outro lado, os dois tipos eram adquiridos da
mesma forma: por meio de recursos financeiros de quem os comprasse. Entretanto, os
221
escravos e escravas israelitas podiam sair no sétimo ano, ano da liberdade compulsória. Os
escravos e escravas de outros povos pertenciam ao patrimônio do israelita, e deveriam passar
às mãos dos herdeiros.
222
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considere-se o seguinte: os Entes Silenciosos dentro do Deuteronômio podem ser
classificados em três grupos – os pobres, os “estrangeiros” e os escravos. Os pobres são
homens israelitas e que podem ser considerados homens livres, mesmo que, pela sua condição
econômica, venham a se tornar dependentes e até escravos de um irmão israelita; os
“estrangeiros” incluem o estrangeiro residente, os demais são israelitas – o órfão, a viúva e o
levita; os Entes Silenciosos do grupo dos escravos incluem os israelitas que se fizeram
escravos – são homens e mulheres livres que se vendem a outro israelita com o fim de
sobreviver em sua crise financeira, sendo que eles ganham sua liberdade no sétimo ano, a não
ser que queiram ficar para sempre com seu senhor/senhora. Há também os escravos
comprados de outras nações – para esses não há um ano de libertação. Para o Deuteronômio,
essa é a estrutura da sociedade israelita, da perspectiva da pobreza.
Os Entes Silenciosos presentes no Deuteronômio são membros dos estratos sociais inferiores
da sociedade israelita regida pela legislação do Deuteronômio. Tais estratos até então, pouca,
ou nenhuma, atenção haviam recebido da comunidade ao seu redor com tanto detalhe como
no livro de Deuteronômio. Isso não quer dizer que pessoas nunca tivessem agido em favor
deles. Quer dizer que a comunidade nunca havia sido levada a pôr-lhes atenção para o
cuidado deles. São eles: o yni[' [`änî] e o !wOyb.a, [´ebyôn]; o rGe [Gër], o ywIle [lëwî,], a hn"m'l.a;
[´almänâ], e o ~wOty" [yätôm]; o db,[, [`ebed] e a hm'a' [´ämâ].
Enquanto que no Oriente Próximo a proteção aos Entes Silenciosos “era vista como uma
virtude dos deuses, reis e juízes” (FENSHAM, 1962, p. 129), em Deuteronômio, a proteção é
dada aos Entes Silenciosos por meio da comunidade, em obediência ao Deus de Israel, o qual,
em resposta a essa obediência, abençoa o seu povo. Mesmo que a legislação venha ao povo
como ordem divina do Grande Rei de Israel, seu Deus, é o povo que, no final, faz os atos de
beneficência aos seus irmãos e irmãs israelitas. Porém, deve-se salientar que o cuidado dado
aos Entes Silenciosos é dito como sendo a vontade de Deus (FENSHAM, 1962, p. 137).
O que o Deus de Israel fez em favor dos Entes Silenciosos foi colocar ordem em seu mundo
“sem forma e vazio” [Whboêw" ‘Whto’ (töºhû wäböºhû)] caracterizado por necessidade e aflição.
Porém, isso não foi feito unilateralmente, como as ações divinas em Gênesis 1,2. As mazelas
da sociedade, prejudiciais ao próximo empobrecido, são corrigidas com a participação da
223
própria comunidade, com o “tu/vós” da audiência do redator/orador. A escuridão do silêncio
em que cada Ente Silencioso se encontrava – pobreza, viuvez, orfandade, estrangeirice,
escravidão – recebia a luz do Deus de Israel por meio do povo obediente à sua voz. Aqui
encontramos um trabalho em equipe – o divino e o humano trabalhando para o bem do
próximo, o outro humano em situação de crise.
De certa forma, mesmo que o foco central de Deuteronômio não seja pôr os Entes Silenciosos
no centro, o livro acaba por alcançar um alvo que talvez não fosse o seu proposto – ele chama
atenção para o grupo de Entes Silenciosos. Ele mostra que eles não estão sob a maldição
divina por causa de sua condição social. Há vida neles e a bênção divina repousa sobre eles
por meio do “tu/vós” da audiência. Mas a benção divina também está sobre eles pela o
cuidado de Deus com eles. Por outro lado, a benção de Deus só alcançará o “tu/vós” se eles
contribuírem para o bem dos Entes Silenciosos de sua comunidade.
Eles estão ali para serem abençoados pela comunidade de Israel como comunidade divina no
mundo e, como resultado, a comunidade, em sua obediência, viria a receber a bênção de seu
Deus. Há um “ciclo da bênção”: a comunidade abençoa os Entes Silenciosos, Deus abençoa o
israelita obediente, e isso se repete sucessivamente. A benção seria tal que “tu/vós” seria
elevado acima das nações, na medida em que eles elevasse os Entes Silenciosos por meio de
seu auxílio. Assim, um grupo de esquecidos passa para a memória de Israel por meio da
escrituração do Deuteronômio. Ele também entra na memória da comunidade par agir em seu
auxílio.
Por último, os Entes Silenciosos em Deuteronômio não deveriam ser uma preocupação do
Estado, principalmente centrado na pessoa do rei. O que é dito sobre ou para o rei em
Deuteronômio 17,14-20 não traz nada sobre o cuidado que ele deveria ter com os Entes
Silenciosos de sua nação. A preocupação com os Entes Silenciosos deveria ser da comunidade
na qual eles estão inseridos.
Os Entes Silenciosos podem ser, portanto, definidos por sua condição financeira, por sua
vulnerabilidade bem como por seu silêncio. Por sua condição financeira, pois eles não têm
recursos para seu próprio sustento e também para o sustento daqueles que deles dependiam.
Por sua vulnerabilidade, pois eles estavam impossibilitados de defenderem-se diante dos que
detinham a força e poder dentro da comunidade e poderiam ser vítimas da vontade de um juiz
fragilizado diante da pressão financeira de um clã poderoso. Por seu silêncio porque ele nada
224
diz diante da legislação. A legislação não é dada em resposta a uma reivindicação sua. Ela
vem porque outros veem a necessidade de proteção daqueles que não podem se proteger.
Deuteronômio tem uma questão muito importante para responder em seu escrito: Qual é a
função dos Entes Silenciosos? Por que eles existem no meio do povo de Deus? Eles existem
como parte do projeto divino para abençoar seu povo. Os Entes Silenciosos não são uma
espécie de “mal” entre seu povo, Israel, ou algum tipo de impureza que precisa ser extirpada
ou afastada do meio do povo “são”. Eles são tão puros como qualquer um do grupo “tu/vós”.
Deus os restaura como parte do povo com um olhar divino mediado por um olhar humano de
ajuda.
Mas eles são também instrumentos de poder divino entre seu povo, pois ao repartir de seus
bens com eles, Deus abençoa aquele que agiu desse modo. Eles também podem clamar a Deus
quando prejudicados, e seu defensor divino age para punir o agressor. Assim, a função dos
Entes Silenciosos mira um projeto de povo que trabalha para o bem comum de seu próximo
ao ponto de chegar o dia em que não haveria mais pobres no meio de seu povo. Esse projeto
divino dependia da obediência – um povo que empresta a outros povos prosperará e ajudará
seu irmão empobrecido a sair da crise de pobreza em que entrou.
Finalmente, além do que foi apresentado nos parágrafos acima, há certos pontos que unem os
Entes Silencisos uns com os outros. Primeiro, por sua condição de completa dependência do
Deus de Israel através de seu povo, o “tu/vós”. Segundo, com uma legislação favorável aos
Entes Silenciosos, o impedimento que eles se tornassem escravos ou prostitutos cultuais se
tornaria uma realidade, principalmente para as mulheres deste grupo.
Terceiro, a necessidade de proteção por parte da comunidade. Quarto, a necessidade de
pertencer à comunidade na qual estão envolvidos – ao ajudar os Entes Silenciosos, o “tu/vós”
demonstraria a ele a ideia de pertecimento. Eles são tao do povo de Israel como qualquer
israelita com poder econômico. A proteção que a legislação de Deuteronômio apresenta não é
apenas para proteção, é também para inclusão. Quinto, o estabelecimento da legislação é
colocado pelo redator como algo que vem a partir da orientação divina. Com isso, o redator
coloca a legislação como vontade divina que deve ser atendida pelo seu povo. Por último, a
legislação é também um apelo para que o sofrimento de alguém seja amenizado, ou, se
possível, eliminado.
225
Em Deuteronômio, pode-se atestar o profundo senso de completa dependência do socorro dos
outros, particularmente, dos homens livres apresentados no livro como “tu/vós”. Esses são
aqueles que lideram suas comunidades e clãs, e eles devem agir como exemplo para que seus
clãs sejam generosos para com aqueles. Sem a palavra de permissão deles, nenhum membro
do clã será generoso. Por outro lado, o “tu/vós” não é tão livre quanto ele poderia pensar. Se
ele não fosse beneficente aos Entes Silenciosos, ele seria punido por seu Deus. Assim, o
“tu/vós” livre tem uma liberdade relativa. A legislação beneficente aos Entes Silenciosos
demonstra isso.
Há também o elemento de desenraizamento532
dos Entes Silenciosos. Eles pertencem aquela
terra, com a exceção dos escravos estrangeiros e do ger. Porém, por outro lado, eles eram sem
terra. Ou, noutra forma de dizer, a terra não pertencia mais a eles. Eles estavam à disposição
da vontade daqueles que os queriam acolher. Por isso eles podiam ser considerados como um
tipo de “estrangeiro”, dentro de sua própria terra, porque seus deslocamentos seriam
favorecidos por seu desprendimento da terra. Em um contexto onde a terra fazia parte da
identidade de um povo, ser sem terra era ser sem identidade com aquele povo. Porém, Deus se
identifica com eles ao ponto de ser solidário com eles por meio do redator/orador do
Deuteronômio.
Aparentemente, Deuteronômio apresenta a aridez dos Entes Silenciosos. Tudo os que eles
produzissem seria para os outros. Em poucas situações eles poderiam trabalhar para sua
própria melhora de condição. Mas há outro elemento de aridez neles – eles não têm filhos
nem família (ao menos que seja expresso no Deuteronômio).533
É como se eles estivessem
mortos. Sem filhos, eles são sem continuidade e em nada contribuem para a perpetuidade de
nação, nem de seu próprio nome.
Ai entra a legislação em Deuteronômio com um valor sem precedente – mesmo que ela não
nomeie nenhum deles, ela os faz perpétuos por meio de seu escrito, ao lembrar o “tu/vós” que
os Entes Silenciosos também são pessoas que estão na lembrança do Deus de Israel e,
portanto, devem estar na lembrança do seu povo. Este aspecto se torna notório em
Deuteronômio 15,11: “sempre haverá pobres na terra”. Portanto, o povo deveria entender que
sempre haveria a necessidade de lembrar-se dos Entes Silenciosos porque eles sempre
532
Nessa última palavra sou devedor a Chwarts, por quem ela é comumente empregada em seu livro: Uma visão
da esterilidade na Bíblia Hebraica (São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004). 533
Deuteronômio 24 fala para não entrar na casa do pobre para recolher o penhor. Isso pode indicar família. Mas
nada é dito expressamente quanto a isso.
226
existirão, e existirão ao alcance de seus olhos e de sua possibilidade de ajuda, de tal forma que
nunca perdessem de vista o ideal de uma sociedade sem pobres.
Deve-se notar o elemento da singularidade dos Entes Silenciosos. O texto Hebraico de
Deuteronômio não aborda os Entes Silenciosos em sua pluralidade. Eles são sempre
apresentados numa condição de singularidade. Assim, o texto apresenta o pobre, órfão, viúva,
estrangeiro, levita, escravo e escrava sempre no singular, nunca no plural. A implicação disso
é que o texto usa um elemento particular como modelo para o conjunto. A legislação aplicada
a um indivíduo deveria ser aplicada a todos os outros em igual condição.
Há um elemento a mais que deve ser mencionado quando o assunto é a ausência de família,
ou clã, dos Entes Silenciosos – a sua condição não favorecia os relacionamentos familiares.
Eles são aqueles que deviam ser esquecidos porque em nada ajudavam suas comunidades.
Aqui entra o lado perverso do clã – eles preferiam expulsar alguém de seu meio por sua
condição desfavorável que os socorrer para que voltasse a ser “alguém” dentro da
comunidade. Assim, sem família que os apoiasse, eles se tornavam sujeitos vulneráveis aos
aproveitadores de ocasião. Deuteronômio corrige esse aspecto também por advertir o povo de
Israel que os Entes Silenciosos têm um “parente defensor”, o próprio Deus do povo de Israel.
Negar ajudar ao Ente Silencioso era igual a recusa em obedecer a Deus.
Há o elemento “subversivo” nos Entes Silenciosos – eles alteram a comodidade do “tu/vós”
que agora tem que dar atenção a eles, tendo em vista que o Deus de Israel os incita a olhar
para eles, e com as ameaças, caso isso não vier a ser feito. Em lugar da exploração habitual, a
generosidade, em lugar da expulsão, uma nova oportunidade dentro da comunidade. Há
poucos elementos femininos dentro do livro de Deuteronômio. Aos elementos tratados dentro
dessa pesquisa, viúva e serva, soma-se a palavra “mãe”534
e o termo geral “mulher”. Fora isso,
todos os outros são masculinos. De qualquer modo, sem os Entes Silenciosos, não haveria boa
parte da literatura do Deuteronômio.535
Os Entes Silenciosos embelezam a literatura bíblica por dar uma coloração especial aos livros
em que eles estão inseridos, no sentido de acrescentar contraste e riqueza cultural a uma
cultura que seria monocromática se a sua presença fosse inexistente. Assim, apesar de seu 534
~ae, ´em, “mãe” (Deuteronômio 5,16; 13,6 [Hebraico 13,7]; 14,21 [refere-se a mãe de um animal];
21,13.18.19; 22,6.6 [referem-se a mãe de um passarinho].15; 27,16.22; 33.9). 535
Boa parte dos livros considerados proféticos não teria conteúdo, caso suas mensagens não viessem como
profecia contra aqueles que pilhavam os Entres Silenciosos, e o profeta falasse em seu benefício e para sua
proteção de governantes – príncipes, sacerdotes e profetas da elite.
227
silêncio, eles não passam sem serem percebidos. As diversas pessoas que pertenciam ao grupo
dos Entes Silenciosos demonstram a riqueza vocabular que elas trouxeram para a literatura do
Deuteronômio, bem como a riqueza de uma legislação humana e com profundo interesse no
seu bem estar.
O elemento religioso dentro do livro de Deuteronômio não pode deixar de ser visto, pois ele
afeta não somente o “pequeno” como também o “grande”. Esse elemento deve fazer uma
grande mudança na forma de ver o pobre. O pobre é abençoado por Deus por meio do modo
generoso como o “grande” o trata. Por outro lado, o “grande” também é abençoado mediante
a resposta de Deus ao modo como o “grande” trata o “pequeno”.
Para o Deuteronômio, o Ente Silencioso não é um problema social, mas uma oportunidade
social. Isso quer dizer que as leis de proteção a ele foram dadas não somente para beneficiá-lo
e protegê-lo, mas também para beneficiar e proteger aqueles que as aplicassem. Para o
Deuteronômio, aquele que agia em benefício de um Ente Silencioso agia em benefício próprio
porque o Deus de Israel lhe traria a bênção do sucesso em seus empreendimentos. O israelita
que obedecesse aos mandamentos beneficentes aos pobres viria a ser abençoado por Deus. A
pesquisa sobre Deuteronômio 15 mostrou os vários incentivos dados à obediência do israelita.
Faz-se aqui a rememoração do que é dito em Deuteronômio 15,11: “Nunca deixará de haver
pobres na terra” (BJ). O retador está estabelecendo que qualquer método para ocultar ou
extinguir os Entes Silenciosos é proibido e fracassará. Talvez devesse fazer uma paráfrase
desse texto: “Sempre haverá os que têm muito e os que nada ou pouco têm”. Entretanto, cabe
aos que têm muito repartir parte do seu muito com aqueles que pouco ou nada têm. Como
disse a Chwarts: “É este caráter da Bíblia Hebraica – o de estar sempre aberta à descoberta e a
novas interpretações” (2014, p. 15).
Fensham (1962, p. 139) declara:
A atitude tomada em favor da viúva, do órfão, e do pobre é para ser vista de
um pano de fundo legal. Essas pessoas não tinham direito, nem
personalidade legal, ou, em alguns casos, possivelmente, direitos restritos.
Eles eram quase ilegais. Qualquer um poderia oprimí-los sem medo que
qualquer atitude legal pudesse ir contra sua posição. Para restaurar o
equilíbrio da sociedade, essas pessoas deveriam ser protegidas. Portanto, foi
necessário sancionar sua proteção por mandamento direto da divindade e
fazê-lo virtude dos reis.
Em Deuteronômio, a virtude para isso seria do “tu/vós”.
228
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