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    Memrias de Sapateiros

    Teresa MalatianDepartamento de Histria da Faculdade de Cincias

    Humanas e Sociais / UNESP - Franca

    RESUMO: Este texto aborda a memria de sapateiros construda a partir de entrevistas de Histria Oral e pesquisa bibliogrfica. Nele, os temas da identidade e dos modos de viver aparecem no mbito de uma cultura

    (prticas e representaes) na qual se inserem a indstria caladista de Franca e seus trabalhadores.

    Palavras-chave: Memria, Histria Oral, Identidade, Cultura, Indstria caladista, Modos de viver.

    A indstria de calados, como a txtil de algodo e a de fabricao de chapus, foi uma das primeiras a instalar-se no Brasil. Em seu estgio inicial de artesanato, a produo de cala-dos esteve associada atividade curtumeira e caracterizava-se por um processo realizado em pequenas oficinas por artfices, voltado para o atendimento do mercado local e realizado com instrumentos simples, de uso manual. Na sociedade escravista, tal mercado era restrito, dado que os escravos, maioria da populao, andavam descalos. No sculo XIX, os calados passa-ram a ser produzidos tambm por imigrantes que desenvolveram esse artesanato nos ncleos coloniais e em centros urbanos para atendimento demanda de botas, botinas e sapatos.

    Um avano na produo artesanal de calados feitos sob encomenda ocorreu com a utilizao de mquinas de costura de uso domstico adaptadas ao couro. Tal inovao ocor-reu em um processo de concentrao de capital e de trabalhadores em unidades de produo maiores que as oficinas, das quais se originaram as fbricas de calados que, cada vez mais solicitadas pelo crescimento populacional e pela urbanizao, tiveram sua demanda de con-sumo ampliada.

    Assim como o uso da eletricidade constituiu importante fator de expanso e mecaniza-o da indstria caladista ao permitir que diversas mquinas trabalhassem ao mesmo tem-po e com maior rapidez, as transformaes no processo produtivo pela introduo de novas tecnologias intensificaram-se nas primeiras dcadas do sculo XX, dando origem ao sistema fabril. Sua principal inovao foi a mecanizao das pequenas unidades produtivas e a in-troduo de nova e maior diviso do trabalho. Surgiu o novo sapateiro, empregado em uma grande oficina, despossudo dos instrumentos de produo, e, no entanto, ainda conhecedor do saber do seu ofcio, isto , de todas as operaes necessrias confeco do produto. Pou-co a pouco, porm, cada sapateiro passou a realizar apenas uma nica tarefa especfica para que seu trabalho se tornasse mais rpido e eficiente.

    Muito do que conhecemos hoje sobre o trabalho do sapateiro deve-se memria de trabalhadores que guardaram lembranas de suas trajetrias de vida. Mediante entrevistas

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    orais, foi possvel resgatar lembranas sobre a confeco de calados que recuam forma artesanal de produo dos anos 1930 e das dcadas seguintes. A produo, feita em pequenas unidades administradas por famlias, realizava-se em prdios que eram ao mesmo tempo residncia de seus proprietrios e local de trabalho. Como a famlia trabalhava nesse ofcio, o emprego de trabalhadores externos era restrito.

    A memria da fase artesanal da produo de calados recupera o processo produtivo ma-nual que antecedeu a instalao das fbricas. Nas oficinas, havia as bancas que consistiam em pequenos mveis nos quais eram colocadas as ferramentas. Os ajudantes vinham ali realizar o aprendizado do ofcio. Persiste a lembrana de que, ao fabricar calados, os sapateiros domina-vam os saberes de uma profisso, pois o processo produtivo dependia da habilidade do arteso em trabalhar o couro, fabricando peas sob medida. O trabalho era considerado uma arte, uma vez que estava associado ao domnio de uma tcnica de modelagem e confeco.

    Nas lembranas dos velhos sapateiros, persiste a memria dos mais antigos processos de produo em que os setores caladista e curtumeiro estavam associados. Esse processo comeava com o curtimento do couro para depois chegar modelagem. A profisso nessa fase possua fortes traos identitrios que se faziam presentes na transmisso do ofcio de uma gerao a outra. Essa memria, todavia, no persiste, alm dos sujeitos individuais que vivenciaram a produo artesanal e podem compar-la com o mundo fabril ao qual muitos deles se integraram, quando no permaneceram em pequenas oficinas. Nelas produzem e consertam sapatos muitas vezes produzidos sob medida os quais so comercializados dire-tamente aos consumidores.

    Eu gostava de montar um sapato e ele ficava igualzinho forma, certinha a cor... tudo certinho! (...) quando eu mexia com o Luz XV era um par por dia. Agora, sapato para homem, era uma mdia de 25, 30 pares. (...). O Lus XV tinha que ser uma coisa caprichada. Principalmente o vira francesa, tinha que ser um par por dia. (...) eu gostava de acabar o sapato, porque eu gostava de fazer um acaba-mento bonito. O sapato Lus XV que eu fazia, eu te juro, parecia que era fundido, parecia uma pea s (entrevista com Valter Croisfelt).

    Com a introduo de mquinas, o antigo ofcio foi modificando-se e com ele a iden-tidade do sapateiro que passou a se considerar cada vez menos um artista e cada vez mais um operrio, como qualquer outro. A produo foi fragmentada em etapas que simplificaram cada vez mais o trabalho medida em que as mquinas se tornavam mais complexas. O sa-ber do sapateiro que se identificava com seu ofcio foi apropriado pela fbrica.

    A esteira mvel e a diviso do trabalho no processo produtivo instalaram o deslo-camento automtico das peas, em um ritmo constante que imobilizou o sapateiro em um ponto no espao da fbrica, submetendo-o a um ritmo produtivo pr-determinado que visa evitar desperdcio de tempo e de material. A lgica do capital, buscando obter lucros cada vez maiores, levou nova identidade do sapateiro: de artista a rob, o caminho sem volta.

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    Uma nova disciplina industrial se instalou, alienando o trabalhador e desvalorizando seu trabalho individual.

    A constatao de que a esteira amplia a extrao da fora de trabalho do sapateiro se expressa nos depoimentos em relatos sobre atitudes de solidariedade que permitem ao traba-lhador cunhar brechas na rgida disciplina fabril, cujo ritmo ditado pela mquina. O cro-nometrista passou a determinar as cotas dirias e o nmero de peas que passam por minuto diante do sapateiro (3, 5 ou mais peas). Nas fbricas que empregam tecnologia mais sofisti-cada, o computador que controla a produo, ditando invisivelmente o ritmo do trabalho. Perdido o domnio sobre o processo produtivo, destitudo do saber do ofcio, o sapateiro das grandes fbricas exerce um trabalho mecanizado ou automatizado. Nesse mundo disciplina-do, rotineiro, de tarefas parceladas, o sapateiro constitui apenas uma pequena engrenagem.

    Importantes transformaes ocorreram na profisso que emprega sobretudo jovens, pois exige habilidade, ateno e agilidade na relao com a mquina. No sistema artesanal, estava prevista a formao de novos sapateiros pelo sistema de aprendizado junto aos ofi-ciais. O aprendiz deveria custear seu aprendizado, seja na forma de pagamento direto, seja, na maior parte das vezes, na forma de trabalho no remunerado. O domnio da tcnica era considerado um bem precioso, com valor de mercado, a ser repassado pelos mais experientes que detinham os segredos do ofcio aos mais jovens, cujo trabalho durante o aprendizado no era regulamentado. Dependia da aceitao do oficial e, muitas vezes relaes de amizade, compadrio, parentesco ou vizinhana desempenharam importante papel nesse processo.

    Com a mecanizao, o trabalhador passou a ter um confronto com a mquina. Domi-nar a mquina, conhecer seus segredos, sem se deixar triturar por ela, passou a ser o grande aprendizado. Nesse novo processo produtivo, os melhores salrios vo para os que trabalham com mquinas mais complexas, que executam as chamadas funes especializadas, defi-nidas como tal pela organizao industrial. O ofcio silencioso e contemplativo cedeu lugar ao trabalho ruidoso com a mquina.

    Outra transformao consiste no emprego cada vez mais numeroso de mulheres, so-bretudo nas funes de costureira-pespontadeira, associadas tradicionalmente ao universo domstico da reproduo. Nele, a mulher sapateira se mantm tanto como operria, quanto como costureira autnoma trabalhando no local em que reside, combinando trabalho doms-tico, guarda dos filhos e trabalho produtivo com baixos salrios e desprotegida pela legis-lao trabalhista. Desse trabalho, participam muitas vezes seus filhos, menores que tambm so iniciados no mundo do trabalho em condies muito precrias. O trabalho da mulher das fbricas diversifica-se tambm, em alguns casos, em atividades antes consideradas masculi-nas, como o corte de peles, considerado bastante complexo, pois exige conhecimentos espe-cficos de tecnologia do couro (tipos, elasticidade, defeitos, dureza, enrugamento, resistncia, espessura), para melhor aproveitamento do material.

    Insalubridade, insegurana no trabalho e baixos salrios aparecem nas histrias de vida como os maiores problemas enfrentados pelos trabalhadores das indstrias de calados.

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    Em torno deles, pode-se verificar laos de solidariedade, formas de organizao e prticas de resistncia. Na fbrica de calados, a sade do sapateiro vive constantemente ameaada: barulho excessivo, p, cheiro de cola, solventes, tachas de chumbo, alm de outras agresses qumicas desafiam o trabalhador.

    A identidade assim despojada do orgulho do ofcio passou a carregar o estigma de uma diviso do trabalho em funes detalhistas e rotineiras. O sapateiro se v como um trabalha-dor semelhante aos demais, sem caractersticas que o individualizem no conjunto da classe um funcionrio da fbrica. O sentimento que persiste nos velhos sapateiros o da perda da profisso e a nova identidade se delineia a partir da prpria mquina e da expoliao do saber: despede um, entrou outro. O funcionrio um rob (entrevista com Valter Croisfelt).

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