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SERGIO SLAWKA
O termo de consentimento livre e esclarecido e a pesquisa em seres humanos na rea de sade :
uma reviso crtica
Dissertao apresentada Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Cincias. rea de concentrao: Medicina Preventiva Orientadora: Prof.a Dr.a Hillegonda Maria Dutilh Novaes
So Paulo 2005
Dedicatria
Dedico aos meus pais, Dbora e Luiz Slawka, que me ensinaram a nunca desistir de um projeto de vida. Dedico aos meus filhos, Isabella e Eric Slawka, que me ensinaram a gerenciar o tempo entre as funes de mestrando e de papai.
Agradecimentos minha orientadora, Prof.a Dr.a Hillegonda Maria Dutilh Novaes, por ter-me
ensinado a pensar de forma acadmica.
Aos professores da banca de qualificao, Prof.a Lilia Blima Schraiber, Prof.a
Elma Lourdes Campos Pavoni Zoboli, Prof. Jos Ricardo de Carvalho
Mesquita Ayres, pelas sugestes e correes necessrias ao bom
andamento deste projeto.
Aos demais professores do Departamento de Medicina Preventiva, por
compartilharem seus conhecimentos comigo.
Aos amigos e familiares, por aceitarem que a importncia deste projeto me
privou do prazer de suas companhias durante os trs anos de sua durao.
Merck Sharp & Dohme Farmacutica Ltda., empresa na qual, como
Gerente de Pesquisa Clnica responsvel pela coordenao de inmeros
protocolos de estudo clnico em seres humanos ao longo de vrios anos, tive
a motivao para avaliar os fatores que interferem na compreenso do termo
de consentimento livre e esclarecido pelo sujeito da pesquisa.
Joana DArc da Silva Costa, pela reviso do texto em lngua portuguesa.
Maria Machado Mastrobuono Nesti, amiga-mestranda que ganhei durante
este projeto.
Patricia Schachtitz, por ter dividido comigo as derrotas e vitrias dirias
durante a finalizao desta pesquisa.
Normatizao adotada Esta dissertao est acordo com: Referncias: adaptado de International Committee of Medical Journals Editors (Vancouver). Universidade de So Paulo. Faculdade de Medicina. Servio de Biblioteca e Documentao. Guia de apresentao de dissertaes, teses e monografias da FMUSP. Elaborado por Anneliese Carneiro da Cunha, Maria Julia A. L. Freddi, Maria F. Crestana, Marinalva de S. Arago, Suely C. Cardoso, Valria Vilhena. So Paulo: Servio de Biblioteca e Documentao; 2004. Abreviatura dos ttulos dos peridicos de acordo com List of Journals Indexed in Index Medicus.
SUMRIO Resumo
Summary
1 INTRODUO ......................................................................................................1 1.1 Prtica mdica e pesquisa ...........................................................................2 1.2 Biotica da pesquisa em seres humanos...................................................25 1.3 Direitos humanos do sujeito da pesquisa...................................................33 1.4 Histria da obteno do consentimento dos pacientes e dos sujeitos
da pesquisa ................................................................................................36 1.5 Regulamentao da pesquisa em seres humanos no Brasil .....................46
2 OBJETIVO...........................................................................................................60 3 MATERIAL E MTODOS....................................................................................62
3.1 Reviso da literatura...................................................................................63 3.1.1 Internet (web)........................................................................................... 65 3.1.2 Artigos de revistas indexadas ............................................................... 71 3.1.3 Livros......................................................................................................... 74 3.1.4 Relatrios tcnicos ................................................................................. 75 3.1.5 Teses ........................................................................................................ 76
3.2 Anlise dos textos selecionados ................................................................76 4 RESULTADOS E DISCUSSO ..........................................................................78
4.1 A comunicao mdico-paciente................................................................80 4.2 O processo de tomada de deciso pelo sujeito da pesquisa .....................97 4.3 A possibilidade de avaliao dos riscos nas expresses de
probabilidade apresentadas, segundo interpretao pelo sujeito da pesquisa ...................................................................................................120
5 CONCLUSO....................................................................................................138 6 ANEXOS............................................................................................................147
6.1 O poder e as injustias nas pesquisas em seres humanos.........................148 6.2 Portaria 16/81 Diviso Nacional de Vigilncia Sanitria de
Medicamentos ..........................................................................................182 6.3 Resoluo 1081/82 Conselho Federal de Medicina..............................186 6.4 Resoluo 01/88 Conselho Nacional de Sade ....................................188 6.5 Resoluo N.o 170/95 Conselho Nacional de Sade.............................226 6.6 Resoluo N.o 173/95 Conselho Nacional de Sade ............................227 6.7 Resoluo N.o 196/96 Conselho Nacional de Sade ............................228 6.8 Resoluo N.o 251/97 Conselho Nacional de Sade ............................254 6.9 Resoluo N.o 292/99 Conselho Nacional de Sade ............................268 6.10 Resoluo N.o 301/2000 Conselho Nacional de Sade ........................272 6.11 Resoluo N.o 303/2000 Conselho Nacional de Sade ........................273
7 REFERNCIAS .................................................................................................274 8 APNDICE
8.1 Aprovao do protocolo de pesquisa pela Comisso de tica para Anlise de Projetos de Pesquisa CAPPesq
RESUMO Slawka S. O termo de consentimento livre e esclarecido e a pesquisa em seres humanos na rea de sade: uma reviso crtica [dissertao]. So Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de So Paulo; 2005. Desde meados do sculo XX, as transformaes da prtica mdica levaram socializao do trabalho mdico e ao empobrecimento da relao mdico-paciente. Atualmente, neste cenrio de relao interpessoal difcil, surge, apoiado no desenvolvimento da pesquisa em sade, a figura do mdico-pesquisador que necessita da concordncia do paciente para ser, ao mesmo tempo, seu paciente e sujeito da pesquisa. O desenvolvimento concomitante da biotica contribuiu para que essa situao passasse a ser submetida a diretrizes que buscam preservar o bem-estar do paciente e tornasse obrigatria a obteno de um consentimento livre e esclarecido. Esta dissertao teve por objetivo estudar as caractersticas do processo de obteno do consentimento do paciente, na pesquisa clnica em seres humanos, e as possibilidades de realizao das diretrizes de beneficncia, no-maleficncia, autonomia e justia. Foi desenvolvida uma reviso sistematizada da literatura nas bases de dados existentes e analisados os artigos selecionados, segundo critrios especificados. Os artigos estudados revelaram as inmeras variveis envolvidas no processo de obteno do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido/TCLE. As caractersticas atuais da prtica mdica, o distanciamento entre o paciente e os profissionais da sade, a dificuldade inerente a uma deciso baseada no julgamento de riscos futuros apenas estimados e a presena de outros interesses individuais, envolvidos na realizao da pesquisa clnica, tornam a deciso do sujeito da pesquisa, sobre o seu consentimento em participar ou no, apenas substancialmente autnoma e no plenamente informada, autnoma e genuna, mesmo quando atendidos todos os pr-requisitos. Foram identificados na literatura os procedimentos considerados como contributivos para melhores processos de comunicao mdico-paciente, tomada de deciso e interpretao das expresses de probabilidade pelo sujeito da pesquisa durante a obteno do TCLE. Descritores: biotica, tica mdica, experimentao humana, direitos humanos, consentimento esclarecido, relaes mdico-paciente, tomada de decises, probabilidade.
SUMMARY Slawka S. The informed consent form and the research in human beings in the health field: a critical review [dissertation]. So Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de So Paulo; 2005. Since the midst of the 20th century, changes in medical practice resulted in its socialization and poor physician-patient relationship. Nowadays, in this arena of difficult interpersonal relationship, arises the figure of the physician-investigator, a professional supported by the development of health research and who needs the patients agreement to become, at the same time, his or her patient and research subject. The concurrent development of bioethics contributed to submit this situation to guidelines that aim to preserve the patients well-being and make obligatory the obtainment of his or her consent. The objective of this dissertation was to study the characteristics of the process of obtaining patients consent in clinical research with human beings and the possibilities to undertake the guidelines of beneficence, non maleficence, autonomy and justice. A systematic-like review of the literature in existing databases was developed and articles selected according to specific criteria were analyzed. The articles evaluated revealed the diverse variables involved in the process of obtaining Informed Consent/IC. The current characteristics of medical practice, the increasing distance between the patient and the health care professionals, the inherent difficulty of making a decision based on the judgment of only estimated future risks and the presence of other individual interests, involved in the process of conducting clinical research, make the decision of the research subject, about consenting to participate or not, merely substantially autonomous rather than fully informed, autonomous and genuine, even if all pre-requirements are fulfilled. In the literature were identified the procedures considered to contribute to better processes for physician-patient communication, decision-making and interpretation of probability expressions by the research subject while obtaining informed consent. Descriptors: bioethics, medical ethics, human experimentation, human rights, informed consent, physician-patient relationships, decision-making, probability.
1 INTRODUO
Introduo 2
1.1 Prtica mdica e pesquisa
A configurao da profisso mdica tal qual a conhecemos hoje
ocorreu ao final do sculo XIX, mas a sua consolidao enquanto medicina
moderna, de trabalho tcnico diferenciado com marca intelectual e parte das
polticas sociais, ocupou todo o sculo XX nos pases desenvolvidos e
tambm no Brasil (Schraiber, 1993).
A prtica liberal da medicina surgiu quando esta passou a constituir-se
em trabalho social e parte do desenvolvimento econmico e social de tipo
capitalista, preservando, no entanto, uma forma de trabalho artesanal.
Atender a uma clientela que tem liberdade de escolher por quem deseja ser
cuidada e ter a liberdade de estabelecer quanto vale o seu trabalho,
apresenta-se como o principal objetivo a ser atingido logo aps a formatura do
mdico, e essa autonomia nas suas decises uma caracterstica especfica
de insero deste agente no modo de produo capitalista. H, neste
momento histrico, uma forte relao entre instruo e auto-suficincia, de
modo que a escolarizao e qualificao universitria passam a ser recursos
necessrios, e por si mesmos suficientes, para a profisso: o saber
representa o principal meio de trabalho, e sua posse, o recurso suficiente para
que o mdico se estabelea na vida profissional (Schraiber, 1993).
Introduo 3
As dcadas que antecederam a II Grande Guerra se caracterizaram
por importantes transformaes sociais no Brasil, mas o trabalho mdico
ainda se caracterizava como um ato de discernimento e interveno apoiado
simultaneamente no conhecimento, na intuio e na criatividade. Naquele
perodo, o mdico comea a repartir os tempos de trabalho: o tempo da
manh, anteriormente reservado ao aprimoramento da experincia clnica
individual do mdico em servios de filantropia, Santas Casas e outros
servios gratuitos, passa a ser paulatinamente substitudo pelo tempo do
emprego, quando a instituio filantrpica e o setor pblico passam a
assalariar os mdicos. O tempo da tarde ainda permanece como o tempo
nobre da atividade de consultrio, entretanto, com o surgimento de servios
mdicos complementares para diagnstico e tratamento, o mdico passa a
necessitar da articulao entre estes servios complementares para manter,
ainda que parcialmente, o controle sobre sua prtica mdica liberal e seus
pacientes. Dessa forma, a articulao do mdico entre os servios
parcelares permite a configurao de um trabalho profissional prximo da
representao do exerccio autnomo-independente correspondente figura
tradicional do mdico (Schraiber, 1993).
Ao longo da dcada de 1950, ser especialista e incorporar mais
tecnologia material aos cuidados mdicos surge como um elemento
importante na diferenciao da prtica profissional. Tal fato aponta para as
progressivas transformaes por que passa a medicina, quando a
organizao institucional e a produo de servios substituem, gradualmente,
Introduo 4
a experincia clnica pessoal ou a localizao geogrfica do consultrio como
elemento diferenciador na qualificao da prtica mdica. (Schraiber, 1993).
A partir da dcada de 1960, o mdico passa a vivenciar o
enfraquecimento do modelo liberal de trabalho. A forma de produtor privado
isolado e independente, to conhecida na figura do mdico de prtica liberal,
vai sendo substituda pela conformao da prtica mdica em trabalhos
especializados de produtores associados e de cooperao obrigatria: a
medicina tecnolgica impe-se como a modalidade dominante de
organizao do trabalho mdico e a medicina passa a no mais deter o grau
de intelectualidade conferido em outras pocas aos trabalhos-profisses.
Na medicina tecnolgica, medida que a profisso sofre uma reestruturao
progressiva sobre as bases impessoais e objetivas da tecnologia material,
enfraquecem as dimenses de personalizao e sacralizao da prtica
mdica. Como conseqncia, o exerccio da medicina se insere em uma
nova organizao de trabalho, com demarcao de lugares e perodos
tpicos do trabalho cooperativo da produo capitalista (tempo e espao da
vida pessoal vs tempo e espao do trabalho). Surge um ponto de clivagem
entre o individual-privado e o trabalho coletivizado, criando uma divergncia
entre essas duas dimenses da vida social: o mdico, enquanto produtor
direto, se v marginalizado da concepo original de seu trabalho e no
reconhece a atividade coletivizada como um componente da sua vida
pessoal (Schraiber, 1993).
Introduo 5
As transformaes da prtica mdica e a sua insero nas polticas de
sade e sociais no Brasil fazem parte do processo que, na dcada de 1990,
levou consolidao do Sistema nico de Sade (SUS), cuja implementao
foi determinada pela Constituio de 1988, levando descentralizao da
ateno sade e reorientao do modelo assistencial. Com a criao do
SUS, buscou-se implantar um sistema de sade nico, universal e de acesso
igualitrio que, apesar das dificuldades sempre presentes, foi bem sucedido
na implementao das suas principais diretrizes.
Ainda que os indicadores de sade demonstrem uma evoluo
positiva nas condies gerais de sade coletiva na dcada de 1990
(aumento da esperana de vida, reduo da mortalidade infantil e da
mortalidade proporcional por causas variveis, tais como infeces
respiratrias agudas e diarrias) (Piola; Vianna; Osrio, 2002), para as
quais a implantao do SUS certamente contribuiu, esta tambm
incorporou as alteraes que j estavam em andamento na relao
mdico-paciente. Uma vez que a compartimentalizao da vida entre
individual-privado e trabalho coletivizado, originada na forma capitalista de
conceber e realizar a produo, tornou o profissional mdico alienado ao
seu trabalho coletivizado (Schraiber, 1993), tambm a relao mdico-
paciente sofreu alteraes: o mdico deixou de ser um profissional
conhecedor do histrico mdico de todos seus pacientes, portanto, passou
a ser um profissional que raramente tem condies de estabelecer relaes
mais duradouras com seus pacientes.
Introduo 6
O trabalho mdico, enquanto parte da histria dos modos de
produo na ordem social capitalista, sofreu as influncias decorrentes da
nova estruturao geral do trabalho social, isto , sofreu a necessidade
histrica de tornar-se social (socializado, coletivizado, repartido no conjunto
social). As mudanas na organizao da prtica mdica no Brasil refletem a
industrializao tardia da sociedade brasileira, constituindo parte das
transformaes sociais que caracterizam a modernidade, tais como:
urbanizao, mudanas nas formas de organizao do trabalho, no papel do
Estado, desenvolvimento cientfico, direitos sociais, relaes entre a
medicina e a sociedade, dentre outras transformaes. O profissional
mdico liberal tambm foi afetado por essas mudanas, de maneira que o
assalariamento foi inserido nas relaes de trabalho na medicina,
assumindo, nas representaes profissionais, uma qualidade antagnica
autonomia profissional (Schraiber, 1993).
Na maioria dos servios de ateno mdica, a relao mdico-
paciente passou a ser apenas momentnea, e o paciente s mais um
desconhecido que o mdico deve atender antes de partir para sua prxima
jornada de trabalho. Esta despersonalizao da relao mdico-paciente
percebida pelo paciente mediante o desinteresse que o mdico
desconhecido tem sobre os pacientes que atende, criando assim viess de
desconfiana, desentendimento e desconhecimento nesta relao entre
doente e provedor de cuidados da sade.
Introduo 7
Neste cenrio de relaes interpessoais difceis, introduziu-se uma
nova questo com o desenvolvimento da figura do mdico tambm
pesquisador. Este profissional recm-surgido comea a solicitar ao seu
paciente, durante a consulta ou no momento da internao, a sua
concordncia em se constituir, ao mesmo tempo, paciente e sujeito da
pesquisa. Conseguir de forma adequada a concordncia do paciente com o
tratamento proposto sempre fez parte do exerccio da prtica e tica
profissional do mdico. No entanto, trata-se agora de obter uma dupla
aceitao e concordncia do tratamento proposto, pois esse no se organiza
apenas pelas necessidades individuais daquele paciente, mas est inserido
em uma proposta geral de procedimentos diagnsticos e teraputicos
orientada para permitir a produo de conhecimento sobre uma questo
especfica. As condies necessrias e as formas consideradas adequadas
para a obteno, pelo mdico, da aceitao, concordncia e formalizao do
consentimento do paciente em ser sujeito da pesquisa, passaram a constituir
um tema de importncia no mais apenas para a medicina e a pesquisa
mdica, mas tambm para a sociedade como um todo.
Historicamente, a funo de mdico-pesquisador teve incio nos
Estados Unidos no comeo da dcada de 1950, quando a Rockefeller
Foundation e o NIH (National Institutes of Health) comearam a influenciar
os melhores alunos das escolas mdicas a se envolverem em atividades
cujo paradigma era a atividade mesclada de mdico-cientista. Nesta
atividade, os mdicos eram estimulados a desenvolver atividades da prtica
clnica associada pesquisa bsica e voltadas a atender o cotidiano da
Introduo 8
atividade mdica em ambulatrios e enfermarias; entretanto, o paradigma
baseava-se no pressuposto de que s seria possvel entender e curar as
doenas se a pesquisa bsica fosse desenvolvida tanto em situao
normal/fisiolgica quanto patolgica/fisiopatolgica. Este estmulo fuso da
atividade mdica com a atividade de pesquisa fez com que a funo de
mdico-pesquisador fosse impulsionada com grande sucesso, acomodando
a frmula de mdico-pesquisador em um perodo de trabalho intercalado
com perodos de atividade mdica assistencial (Csillag; Schor, 1999).
Perante o aumento do volume de pesquisas, da maior utilizao dos
servios de sade pela populao para procedimentos diagnsticos e
teraputicos, do grau de interveno que a medicina tem sobre o corpo
humano, com riscos crescentes para o paciente, lidar com essa situao
tornou-se cada vez mais difcil, tanto para o paciente quanto para o
profissional de sade, e foram sendo feitas proposies que permitissem
equacionar os potenciais riscos e conflitos de interesse de uma forma
socialmente aceita, levando ao desenvolvimento da rea de tica em
pesquisa com seres humanos.
A tica em pesquisa com seres humanos, como todas as ticas (se
diferenciando das leis e normas estabelecidas) tem por objetivo auxiliar o
mdico-pesquisador a vivenciar uma nova tenso dentro do seu novo
contexto profissional: ao tentar fundir suas atividades clnicas usuais com
suas novas atividades de pesquisador, o mdico comea a ver-se dividido
entre suas obrigaes perante o paciente e perante a pesquisa. ela que,
Introduo 9
legitimada socialmente, potencializa a produo e utilizao do
conhecimento resultante dos estudos em seres humanos: este
conhecimento passa a ter funes sociais, respondendo a demandas sociais
expressas de diferentes maneiras que o legitimam e o tornam possvel
(Pellegrini Filho, 2000).
Uma das questes centrais na tica em pesquisa com seres humanos
o desenvolvimento das condies que permitam ao paciente - solicitado a
concordar em ser sujeito de uma pesquisa - o fornecimento de um
consentimento que esteja baseado em uma deciso, atitude e ao
independentes e autnomas, fundamentadas em informaes verdadeiras
quanto s implicaes presentes e futuras para o paciente e permitindo uma
escolha entre as alternativas de consentir ou no consentir. Nos ltimos
anos, passou a haver uma progressiva normatizao quanto s condies
necessrias (fundamentao cientfica da pesquisa, explicitao dos riscos
possveis para o paciente, garantia de atendimento independentemente da
deciso, dentre outras) para que esse consentimento possa ser solicitado e
formalizado em documentos apropriados, e esse conjunto de diretrizes
passou a ser denominado de obteno do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido/TCLE.
A pesquisa mdica, mesmo aliada tica e institucionalizada por
intermdio da anlise dos projetos por Comisses de tica em Pesquisa e
utilizao do TCLE, no se realiza independentemente das condies
existentes de assistncia sade e de sade da populao. Nos pases
Introduo 10
pobres ou emergentes, os grandes problemas de sade, causados pela falta
de saneamento ou educao, pelo desemprego e misria, no dependem
unicamente de novas descobertas cientficas para serem solucionados, mas
da utilizao de conhecimento existente e aes pblicas sustentadas.
Nestas condies, torna-se necessria a anlise crtica dos temas
prioritrios de pesquisa mdica de interesse para o pas, buscando-se
identificar e priorizar temticas que podero contribuir para a formulao de
polticas nacionais adequadas e resoluo dos problemas de sade mais
impactantes para a populao (Zago, 2004).
Na avaliao do aporte financeiro dirigido resoluo dos problemas
de sade de maior impacto social ou emocional, observa-se uma
dissociao muito grande entre a carga de doenas das populaes
desfavorecidas nos pases pobres ou emergentes e a concentrao do
investimento global em pesquisa em sade no mundo industrializado: menos
de 10% dos recursos para a pesquisa em sade se destinam s doenas ou
condies responsveis por 90% da carga global de doenas. A exigidade
de recursos para a pesquisa em sade nas doenas da pobreza ou
patologias de forte impacto social ou emocional, nas quais possa haver a
rgida implementao da tica em pesquisa, exige das agncias
financiadoras um rduo trabalho de priorizao e seleo de programas e
projetos de pesquisa clnica (Morel, 2004).
Nos ltimos anos observa-se nos pases pobres ou emergentes uma
crescente participao dos setores privado e filantrpico no financiamento e
Introduo 11
execuo da pesquisa em sade por meio de parcerias pblico-privadas
(Morel, 2004), aliados nfase crescente para com a tica em pesquisa:
no princpio da dcada de 1970, 2,8% do gasto mundial total em
pesquisa e desenvolvimento (P&D) era proveniente dos pases em
desenvolvimento (0,8% provenientes da Amrica Latina), cifra esta
que aumentou para 6,5% (1,7% da Amrica Latina) em 1980
em 1988, estes percentuais haviam diminudo para 3,9% (pases
em desenvolvimento) e 0,7% (Amrica Latina), graas s
dificuldades financeiras e sociopolticas enfrentadas pelas naes
na dcada de 1980
durante a dcada de 1990, j com o trmino ou arrefecimento do
perodo agudo das crises econmicas e polticas de ajuste, aliado
s transformaes nos modos de produo e P&D (introduo de
novas tecnologias, matrias primas e formas diferenciadas de
organizao da produo), houve redefinio das relaes entre a
economia, o Estado e a sociedade (Pellegrini Fillho, 2000).
Na dcada de 1990, com os padres de competitividade entre os
pases passando a basear-se em novas tecnologias, surgiu a necessidade
nos pases desenvolvidos da privatizao precoce dos resultados das
pesquisas em seres humanos at seu nvel mais bsico, por intermdio de
diferentes mecanismos, tais como o estreitamento das relaes
universidade-indstria farmacutica (Pellegrini Filho, 2000).
Introduo 12
No Brasil, tambm houve estreitamento desta parceria na dcada de
1990, parceria esta at ento considerada pouco nobre ou provedora de
uma cincia de segunda categoria (Csillag; Schor, 1999). As inter-relaes
entre indstria farmacutica e comunidade acadmica passam a ser
percebidas como benficas para ambas, podendo atender aos interesses
pblicos, desde que mantenham o respeito a todos os limites ticos e
cdigos de conduta envolvidos (Zago, 2004). Nesse contexto de parceria
indstria-comunidade cientfica, em que interesses econmicos imediatos se
fazem mais presentes, a questo da tica em pesquisa e a garantia da
participao e consentimento dos pacientes, segundo as diretrizes
estabelecidas, mostram-se ainda mais significativas.
A aliana academia-indstria, associada ao fortalecimento dos
mecanismos internacionais de proteo propriedade intelectual, dificultou
as possibilidades de transferncia indevida de conhecimentos e tecnologia e
facilitou as grandes inverses financeiras em P&D na Amrica Latina na
dcada de 1990. Entre 1990 e 1996 foram observados os seguintes gastos
com P&D na regio:
considerando-se a populao e o produto interno bruto (PIB),
houve um crescimento de gastos com P&D na Amrica Latina de
57%, com 82,5% deste montante concentrados em apenas trs
pases: Brasil (60%), Argentina (12,5%) e Mxico (10%)
os gastos com P&D por habitante na Amrica Latina foram, em
mdia, de US$ 22,00, ainda que Argentina, Brasil, Chile e Costa
Introduo 13
Rica tenham apresentado uma mdia superior (entre US$ 32,00 e
US$ 35,00); de qualquer maneira, nesse perodo, houve um
crescimento de 41% para gastos com P&D por habitante na regio
os gastos com P&D na Amrica Latina, em relao ao PIB, foram
de 0,5%, em mdia, ainda que outros pases tenham efetuado
gastos maiores: Brasil (0,76%), Chile (0,64%) e Costa Rica (1,13%)
nesse perodo, o Estado foi a principal fonte de financiamento para
P&D na regio, entretanto, a participao das empresas vem
crescendo gradualmente: como exemplo, pode ser citado o Brasil,
onde o aporte privado para P&D passou de 22% (em 1990) para
40% (em 1996) (Pellegrini Filho, 2000).
Ao mesmo tempo que necessrio preservar a liberdade de ao do
mdico-pesquisador na escolha de temas e objetos de pesquisa, protegendo
o exerccio da pesquisa que no visa apenas a resultados imediatamente
aplicveis, o custo das atividades cientficas e o papel central do
conhecimento cientfico e tecnolgico exigem uma poltica governamental de
longo prazo para orientao dos grandes investimentos na rea e
manuteno do foco na resoluo de patologias com forte impacto social ou
emocional (Zago, 2004).
Inovaes nas cincias da sade tm resultado em mudanas
dramticas na capacidade de tratamento das doenas e na melhoria da
qualidade de vida. Desde o final da dcada de 1990, os gastos com
Introduo 14
medicamentos tm aumentado mais rapidamente do que os outros
componentes no sistema de cuidados com a sade; conseqentemente, as
discusses sobre a elevao de custos para cuidados com a sade e o
desenvolvimento de novas tecnologias mdicas tm focalizado a indstria
farmacutica de maneira crescente, uma vez que esta um participante
fundamental na indstria de cuidados com a sade e uma fonte importante de
avanos nas tecnologias para a sade (DiMasi; Hansen; Grabowski, 2003).
Apesar da indstria farmacutica investir tambm em outros tipos de
inovao, em geral a mais significativa delas a descoberta e
desenvolvimento de novas entidades qumicas e bio-farmacuticas que
possam se transformar em novas terapias medicamentosas. Alguns novos
compostos investigados pela indstria farmacutica tiveram sua origem em
laboratrios do governo ou da academia (DiMasi; Hansen; Grabowski, 2003).
Atualmente, entretanto, a indstria farmacutica, e no o setor pblico,
quem mais investe em P&D de novos produtos, direcionando para este
objetivo aproximadamente 18,5% do total de seus recursos (Dainesi, 2002).
O custo mdio com P&D para uma nova droga subiu, aproximadamente, de
US$ 231 milhes em 1987 para US$ 800 milhes em 2000 (DiMasi; Hansen;
Grabowski, 2003); apesar desse aumento, a pesquisa da indstria
farmacutica , hoje em dia, responsvel por 99% das descobertas de novas
molculas e desenvolvimento de novos medicamentos contra apenas 1%
originado por outras instituies de pesquisa, incluindo o setor pblico. Ainda
que, comparativamente ao custo mdio para o desenvolvimento global de
um novo medicamento da ordem de US$ 800 milhes, os valores investidos
Introduo 15
em pesquisa clnica no Brasil no sejam grandes, eles saltaram de R$ 21,9
milhes em 1995 para R$ 112 milhes em 2001, um crescimento acumulado
no perodo de 411%: em 2002, estima-se que os investimentos locais nesta
rea tenham atingido R$ 150 milhes (Vormittag, 2003).
Ainda que a sade constitua-se em uma das reas de maior
interveno estatal, tanto para servios quanto para atividades cientficas e
tecnolgicas, ela representa um dos espaos econmicos mais dinmicos de
acumulao de capital e de inovao. O forte papel regulatrio exercido pelo
Estado sobre o mercado farmacutico justifica-se pela preservao do
interesse social inerente produo e inovao de medicamentos. Tal
controle gera tenso entre o dinamismo empresarial na gerao de
inovaes e a necessidade de assegurar um acesso equitativo aos bens e
servios de sade, de controle de qualidade e de atenuao dos problemas
de informao, de maneira que a lgica econmica da produo privada
desses produtos pela indstria farmacutica no se sobreponha s
necessidades sociais (Gadelha; Quental; Fialho, 2003).
No Brasil, o complexo educacional universitrio e, conseqentemente,
o sistema de cincia e tecnologia (C&T) foram estruturados muito
tardiamente, e encontram-se ainda em processo de consolidao. Ainda que
o setor pblico e tambm a indstria farmacutica invistam na infra-estrutura
de C&T e atividades de P&D para novos produtos (o setor pblico investe
diretamente, a indstria farmacutica o faz indiretamente, por meio das bolsas
para pesquisa em seres humanos e apoio para treinamento das equipes de
Introduo 16
investigadores), a proposio de patentes fundamentadas em conhecimento
cientfico gerado no prprio pas ainda baixa (Guimares, 2004).
Curiosamente, ainda que a proposio de patentes baseadas em
conhecimento cientfico gerado localmente esteja aqum do desejado, as
ltimas quatro dcadas mostraram um aumento importante no segmento de
C&T no Brasil: nesse perodo, a produo cientfica brasileira na rea
mdica cresceu, atingindo, no ranking de 1997-2001, a 23.a posio dentre
os 175 pases que compem o banco de dados de publicaes indexadas do
ISI (Institute for Scientiific Information ISI, Filadlfia, EUA) (7.365 artigos
brasileiros publicados e qualificados, representando 0,9% da publicao
mdica mundial no perodo). Entretanto, apenas algumas poucas subreas
da medicina destacam-se dentre estas publicaes (imunologia, bioqumica
e biofsica, neurocincias, microbiologia, biologia celular, cardiologia,
oncologia, hematologia, endocrinologia, medicina ambiental e sade pblica,
reumatologia, medicina laboratorial), refletindo o elevado grau de
heterogeneidade nas atividades de pesquisa mdica e biomdica
(Guimares, 2004).
Nosso crescimento em C&T no vem sendo suportado apenas pela
reas da sade, mas tambm por outras reas consolidadas, tais como,
fsica, qumica, cincias agrrias, engenharia, cincias humanas e sociais.
Sob o enfoque qualiquantitativo, o desempenho cientfico brasileiro mostrou
uma evoluo importante nas ltimas quatro dcadas:
Introduo 17
dcada de 1960: cerca de 52 publicaes cientficas anuais
indexadas na base de dados do ISI
1970: 64 artigos indexados no ISI, representando 0,019% da
produo cientfica mundial
1981-2000: crescimento relativo da produo cientfica brasileira de
5,6 vezes, fruto da criao do Ministrio da Cincia e Tecnologia
em 1986 e conseqentes investimentos em recursos humanos
(melhoria na capacidade instalada de pesquisa e capacitao da
formao de novos pesquisadores/ps-graduados). Nesse mesmo
perodo, aumentou tambm a qualificao das nossas publicaes
sob alguns indicadores importantes: nos parmetros nmero de
artigos citados e total de citaes, houve um crescimento,
respectivamente, de 5,3 e 6,9 vezes (nesse perodo, os 175 pases
do banco de dados do ISI apresentaram ndices mdios de,
respectivamente, 1,8 e 2,6 vezes) (Guimares, 2004).
Sendo a indstria farmacutica, e no o setor pblico, quem mais
investe em P&D de novos produtos (Dainesi, 2002), o grande comprador e
usurio da pesquisa cientfica e tecnolgica no , necessariamente, o setor
produtivo privado mas sim o setor pblico. Uma vez que este setor ainda o
responsvel pela regulamentao e acompanhamento da indstria
farmacutica, a interao entre ambos pode gerar apoio cientfico e
tecnolgico mais consistentes, polticas pblicas mais eficientes e eficazes,
Introduo 18
vinculao mais importante entre as atividades da indstria e as atividades
de interesse pblico, e tambm fortalecer o setor de P&D de ambos os
setores mediante transferncia de conhecimento, de legitimidade e de
recursos (Schwartzman, 2002).
Historicamente, as relaes entre C&T e o setor pblico tm sido
conflitantes pelas mais diversas causas; entretanto, o setor pblico vem
apresentando movimentos de mudana e organizao no sentido de
proporcionar recursos e aumentar o papel e a presena da C&T no pas. A
pesquisa de medicamentos se desenvolve dentro de uma lgica industrial
que requer a integrao de toda a cadeia de estudos e pesquisas
respectivas (envolvendo supridores de servios externos e questes de
propriedade intelectual), e a existncia de recursos do setor pblico, aliados
s novas tecnologias e interesses sociais definidos, tem permitido que a
atividade de pesquisa se organize de maneira distinta da que ocorre
usualmente na cincia acadmica (Schwartzman, 2002).
A questo da efetividade da pesquisa cientfica e tecnolgica tem
sido contextualizada como um posicionamento antagnico entre a
pesquisa enquanto atividade acadmica (pura e desinteressada de suas
possveis aplicaes) e enquanto pesquisa aplicada (orientada e
determinada pelo mundo empresarial para fins especficos).
Curiosamente, apesar desta percepo dicotmica, a maior parte dos
recursos pblicos para pesquisa cientfica no Brasil sempre foram
direcionados para atividades de interesse prtico:
Introduo 19
cerca de 66% dos recursos pblicos atuais para os programas de
pesquisa so consumidos pelas reas de tecnologia industrial e
programas militares de grande porte
uma parcela importante dos dispndios atuais do governo brasileiro
em C&T so para programas de capacitao de recursos humanos
(ps-graduao e bolsas de estudo)
cerca de 50 milhes de reais (1,7% da verba total do Ministrio de
Cincia e Tecnologia para projetos da comunidade cientfica) so
distribudos pelos programas de auxlio pesquisa do CNPq
(Schwartzman, 2002).
A maior parte das pesquisas conduzidas nas universidades ou
institutos de pesquisa governamentais so orientadas para temas prticos
em engenharia, cincias da sade e educao; entretanto, uma vez que elas
se desenvolvem nos moldes institucionais e organizacionais da pesquisa
acadmica ou do servio pblico, raramente conduzem a aplicaes
efetivas. So estes moldes institucionais e organizacionais, mais do que o
contedo ou natureza das pesquisas, que fazem a diferena entre a
pesquisa bsica e a pesquisa aplicada; isto , a transformao de
conhecimentos bsicos ou aplicados em resultados efetivos depende de
arranjos institucionais que geralmente no existem na universidade
(Schwartzman, 2002).
Introduo 20
Tal dificuldade que a universidade enfrenta para implantar arranjos
institucionais na produo do conhecimento cientfico poderia ser um
resqucio do modo anterior de produo do conhecimento, at ento
centrado na estrutura acadmica e sem vivenciar a (atual) ruptura de
fronteiras entre o setor pblico e o setor privado, entre a pesquisa bsica e a
pesquisa aplicada:
Modo de produo anterior do
conhecimento cientfico (estrutura
acadmica)
Modo de produo atual do
conhecimento cientfico (ruptura de
fronteiras)
O conhecimento bsico era
produzido antes e
independentemente de aplicaes
O conhecimento produzido no
contexto das aplicaes
Organizao da pesquisa de forma
disciplinar
Transdisciplinaridade
Organizaes de pesquisa
homogneas
Heterogeneidade e diversidade
organizacional
Compromisso estrito com o
conhecimento: os pesquisadores no
sentiam-se responsveis pelas
possveis implicaes prticas de
seus trabalhos
Responsabilidade e reflexividade: os
pesquisadores se preocupam e so
responsveis pelas implicaes no-
cientficas de seu trabalho
(Gibbons, Trow, Scott et al., 1994 apud Schwartzman, 2002)
A atividade cientfica sempre apresentou muitas caractersticas do
modo de produo pluralista (interdisciplinar, heterogneo e sem fronteiras),
no atendo exclusivamente ao modo estrutura acadmica para produzir
Introduo 21
conhecimentos; a diferena que, atualmente, o conhecimento passou a ser
produzido no pela penetrao da cincia e tecnologia no mundo da
indstria, mas sim pela penetrao do modo industrial na produo do
conhecimento. Isto no significa que a pesquisa acadmica esteja deixando
a universidade ou instituies pblicas e transferindo-se para o setor
industrial, mas apenas que est mais aberta e porosa aos principais valores
e formatos organizacionais do mundo empresarial:
1. mudana de escala e processos de trabalho, onde as tarefas de
coordenao e controle do trabalho de grandes equipes so
essenciais, e as doutrinas e concepes organizacionais tpicas da
atividade industrial passam a ser utilizadas no mundo da pesquisa
2. transformaes que ocorrem no nvel dos valores onde, aliados
aos sistemas tradicionais de reconhecimento do mrito e
qualidade do trabalho cientfico, comeam a ser agregados outros
valores, tais como, utilidade comercial e industrial, adequao
poltica vigente, ou exerccio do poder
3. cincia proprietria, em que h preocupao pela propriedade
intelectual e apropriao indevida dos conhecimentos produzidos
(Schwartzman, 2002).
As novas formas de organizao da atividade cientfica, com a reduo
ou desaparecimento das barreiras entre cincia pura e cincia aplicada, aliadas
ao papel central do setor pblico - no enquanto apenas agente financiador,
Introduo 22
mas tambm enquanto agente avaliador dos resultados da pesquisa cientfica e
tecnolgica - trazem a necessidade de uma maior abertura nas instituies
acadmicas de pesquisa cientfica, na qual haja participao mais ampla da
sociedade e implantao de procedimentos mesclando excelncia dos
trabalhos cientficos com aplicabilidade (Schwartzman, 2002).
A diminuio de barreiras entre a indstria de pesquisa acadmica e o
setor privado pode apresentar um vis financeiro originado pela crescente
participao da iniciativa privada, notadamente a indstria farmacutica, no
financiamento da pesquisa clnica. Como as foras que impulsionam a
pesquisa acadmica ou empresarial em sade esto atreladas s foras do
mercado, o mdico-pesquisador - ao mesmo tempo que deve respeitar os
procedimentos exigidos pelas diretrizes da tica em pesquisa em seres
humanos - necessita tambm ater-se s mudanas no perfil do mercado da
pesquisa em sade, o que pode gerar tenses com alguma freqncia
(Csillag; Schor, 1999).
A articulao entre a pesquisa acadmica e a pesquisa privada em
sade teve reflexos na maneira pela qual a sociedade percebe as razes para
a pesquisa: de incio, apenas para produzir conhecimentos com potencial
benefcio para a sade da populao, mas que pode implicar tambm a
possibilidade de obteno de lucro com os seus resultados a curto, mdio e
longo prazo por indstria farmacutica e de equipamentos, servios de sade,
profissionais, farmcias, agncias de publicidade, entre outras instituies.
Estes reflexos sobre a funo da pesquisa, quando derivados para os estudos
Introduo 23
em seres humanos, terminaram por influir na maneira pela qual os indivduos
consideram a sua participao em pesquisas.
A expanso da pesquisa clnica e a mudana nas suas caractersticas
levaram a desdobramentos importantes no Brasil, entre o quais destacam-se:
o desenvolvimento da pesquisa clnica com seres humanos no
Brasil, atualmente apresentando uma prtica mais estruturada de
pesquisa clnica, um maior grau de interveno na atividade de
pesquisa cientfica, e uma situao de mudana no sistema de
atuao na sade
o desenvolvimento da biotica, dos princpios ticos, e dos direitos
humanos do sujeito da pesquisa.
Atualmente, a pesquisa clnica envolve, alm do mdico, outros
profissionais da sade com destaque para as reas de enfermagem,
nutrio, fisioterapia e servio social, enquanto parte das equipes que
realizam os procedimentos diagnsticos e teraputicos que compem a
ateno prestada aos pacientes e sujeitos da pesquisa. Vale ressaltar
tambm que a pesquisa em seres humanos inclui no apenas a pesquisa
clnica, isto , a pesquisa que se articula ateno ao paciente, mas
tambm a pesquisa de base populacional que se realiza fora dos servios de
sade. Mesmo as pesquisas em animais ou em materiais biolgicos tm sido
encaminhadas aos Comits de tica em Pesquisa para uma anlise da
perspectiva tica, na qual se verifica inclusive a sua fundamentao
Introduo 24
cientfica, considerando-se que uma pesquisa sem adequada
fundamentao cientfica no tica e desperdia recursos preciosos.
O exerccio dos princpios que orientam a tica em pesquisa em seres
humanos resultou na regulamentao dos mecanismos que permitem que
eles sejam, de fato, aplicados em uma poltica de tica em pesquisa em
seres humanos. No que diz respeito ao sujeito da pesquisa, esses
mecanismos tm por objetivo procurar garantir que ele possa exercer de
forma considerada adequada o direito de decidir se quer participar da
pesquisa. As formas a serem adotadas para apresentao da pesquisa, dos
riscos possveis, da conduta a ser adotada nas intercorrncias, do direito
informao, da reviso da sua deciso, e dos instrumentos que documentam
desse processo, encontram-se hoje bastante regulamentados por
organismos internacionais e nacionais e denominam-se Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido/TCLE.
Para uma melhor compreenso dos condicionantes filosficos,
polticos e sociais que levaram conformao da tica em pesquisa em
seres humanos, das formas adotadas para a sua implantao enquanto
poltica no Brasil, e que determinaram s caractersticas especficas que o
termo de consentimento livre e esclarecido/TCLE adquiriu, faz-se necessrio
abordar as seguintes temticas: biotica da pesquisa em seres humanos,
direitos humanos do sujeito da pesquisa, histria da obteno do
consentimento dos pacientes e dos sujeitos da pesquisa, e regulamentao
da pesquisa em seres humanos no Brasil.
Introduo 25
1.2 Biotica da pesquisa em seres humanos
A pesquisa com seres humanos introduz mltiplas questes ante as
implicaes ticas originadas pela adeso consciente do sujeito da pesquisa
ao estudo proposto. No contexto da pesquisa em seres humanos, o
exerccio das questes bioticas perspassado pela tica da profisso
mdica, que tem como uma das suas questes centrais o reconhecimento
de uma assimetria na relao mdico-paciente.
A biotica, quando aplicada pesquisa em seres humanos, ajuda a
responder questes ticas importantes:
seria o termo de consentimento livre e esclarecido atual uma
condio no apenas necessria, mas suficiente para o
consentimento verdadeiramente livre e esclarecido?
uma vez obtido o termo de consentimento livre e esclarecido,
tico submeter o paciente pesquisa, ou h casos em que o TCLE,
ao menos em princpio, no seria suficiente?
a tica mdica deve assumir o termo de consentimento livre e
esclarecido como condio suficiente para a pesquisa com seres
humanos ou no? (Souza, 2002).
Introduo 26
A biotica a reflexo ou juzo crtico sobre valores e no apenas um
cdigo moral [(Hossne, 2002) (ANEXO 6.1)], e para responder s questes
acima ela utiliza quatro princpios fundamentais:
a) autonomia
b) beneficncia
c) no-maleficncia
d) justia
a) Autonomia
Por Princpio da Autonomia ou Princpio Biotico do Respeito
Pessoa entende-se a anuncia do indivduo para uso do seu prprio corpo.
O exerccio do consentimento livre e esclarecido envolve uma relao
de dilogo, eliminando atitudes arbitrrias ou prepotentes por parte do
profissional da sade e reconhecendo o sujeito da pesquisa como um ser
autnomo, livre e merecedor de respeito (Clotet et al., 2000a).
Diversas propostas j foram apresentadas tentando definir melhor o
que vem a ser a autonomia ou propriedade que o indivduo mantm sobre
seu prprio corpo, ainda que no sujeito da pesquisa:
Sobre si mesmo, seu prprio corpo e mente, o indivduo
soberano (Goldim, 2003a).
Introduo 27
Uma pessoa autnoma um indivduo capaz de deliberao
sobre objetivos pessoais e de atuar sob o direcionamento de tal
deliberao (The Belmont Report, 1979).
Autonomia um dos aspectos da responsividade dos sistemas de
sade no qual o indivduo usufrui a liberdade de decidir por si prprio
sobre tratamento alternativo, testes e opes de cuidados com a
sade, incluindo a deciso de recusar tratamento, caso seja
adequado (World Health Organization, 2003).
O nvel de autonomia de um indivduo pode ser variado, entretanto,
seja qual for este nvel, a autonomia per se exige duas condies essenciais
liberdade (independncia do controle de influncias) e ao (capacidade
de ao intencional) (Goldim, 2003a) e incorpora duas convices ticas
fundamentais tratamento do indivduo como agente autnomo e proteo
s pessoas com autonomia reduzida (The Belmont Report, 1979).
No Brasil, a Resoluo CNS 196/96 [BRASIL. Ministrio da Sade(a)]
exige o respeito autonomia do sujeito da pesquisa; portanto, sob tal viso,
o termo de consentimento livre e esclarecido/TCLE passa a ser um
instrumento de manuteno da autonomia do sujeito:
A norma legal do consentimento tenta garantir e fortalecer a
autonomia do indivduo, principalmente em situaes
controvertidas e, s vezes, nicas na vida de uma pessoa. O
objetivo da lei do consentimento aumentar a autonomia
pessoal nas decises que afetam o bem-estar fsico e mental
(Clotet et al., 2000b).
Introduo 28
b) Beneficncia
O princpio da beneficncia atua como um apelo intuitivo orientando a
relao mdico-paciente (Goldim, 2003b), e tambm um dever englobado
pela tica mdica (Associao Mdica Mundial).
A beneficncia no informa como distribuir o bem e o mal, mas manda
promover o primeiro e evitar o segundo (Goldim, 2003b). Ainda que seja
freqentemente compreendida como a promoo de atos de bondade ou
caridade alm da estrita obrigao, a beneficncia deve ser vista de forma
mais ampla: no causar mal e maximizar os benefcios possveis e
minimizar os danos possveis (The Belmont Report, 1979).
Os efeitos da beneficncia afetam investigadores e a prpria
sociedade, pois se estendem tanto para projetos de pesquisa com seres
humanos quanto para o empreendimento global de pesquisa:
para projetos com seres humanos, os investigadores so obrigados
a prever a maximizao dos benefcios e a reduo do risco que
possa ocorrer baseando-se na investigao
para projetos globais de pesquisa, os membros da sociedade so
obrigados a reconhecer os benefcios e riscos a longo prazo que
possam resultar da melhora do conhecimento (The Belmont
Report, 1979).
Introduo 29
Para os mdicos, o princpio da beneficncia justificativa suficiente
para aliviar a dor de seus pacientes (Post et al., 1996). Entretanto, em
muitas reas da pesquisa com seres humanos, o papel da beneficncia
poder no ser to explcito, como, por exemplo, em pesquisas que
apresentam risco acima do mnimo e sem a perspectiva imediata de
benefcio direto ao sujeito (The Belmont Report, 1979).
Para a Resoluo CNS 196/96 [BRASIL. Ministrio da Sade(a)], a
beneficncia na pesquisa com seres humanos exige ponderao entre riscos
e benefcios atuais e potenciais, individuais ou coletivos, e o
comprometimento com o mximo de benefcios e o mnimo de danos e
riscos. Adicionalmente, o investigador deve tambm preocupar-se contra o
risco de danos ao sujeito da pesquisa e contra a perda de benefcios
substanciais que a pesquisa possa causar a este sujeito (The Belmont
Report, 1979).
c) No-Maleficncia
O princpio da no-maleficncia prope a obrigao de no causar
dano intencional ao prximo.
Para muitos autores, este princpio (deontolgico em sua essncia)
seria controverso, pois a no-maleficncia j estaria implcita no princpio da
beneficncia: quem evita o dano intencional ao prximo j est visando ao
seu bem (Goldim, 2003c).
Introduo 30
A controvrsia sobre haver vinculao, ou no, entre beneficncia e
no-maleficncia j vem de longa data. Apesar do Juramento de
Hipcrates desvincular claramente o bem do mal (CREMESP, 2003), o
clebre mdico da Grcia antiga, quando escreveu a frase Pratique duas
coisas ao lidar com as doenas: auxilie ou no prejudique o paciente
(Goldim, 2003c) j levantou, ainda que indiretamente, a questo: existe o
mal na presena do bem?
O Relatrio Belmont elaborado em 1979 por uma comisso do
Senado americano, (com base na juno dos princpios biticos de
autonomia, beneficncia e justia), e com o intuito de sistematizar a
aplicao da biotica em pesquisa com seres humanos - tambm no
reconhece o mal isoladamente, mas apenas a ausncia do mal como
parte do bem (The Belmont Report, 1979); diretrizes posteriores do NIH
(datadas de 1995) do respaldo ao no-reconhecimento do mal pelo
Relatrio Belmont, enfatizando que tal Relatrio contm apenas trs
princpios bioticos: autonomia, beneficncia e justia (Guidelines at the
NIH, 1995).
No Brasil, a Resoluo CNS 196/96 [BRASIL. Ministrio da Sade(a)]
desconsidera esta controvrsia e reconhece o Princpio da No-Maleficncia
como um princpio biotico per se, devendo ser aplicado ao indivduo e s
coletividades.
Introduo 31
d) Justia
A justia um elemento essencial nas relaes humanas, e est
intimamente imbricada com a liberdade (Hossne, 2002).
Justia significa fairness (a atitude de ser justo para com todos)
(World Health Organization, 2003) e apresenta mltiplas facetas quando
aplicada pesquisa com seres humanos:
para a Resoluo CNS 196/96
o (Item III.1.d.) importante a relevncia social da pesquisa
com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e
minimizao do nus para os sujeitos vulnerveis, o que
garante a igual considerao dos interesses envolvidos, no
perdendo o sentido de sua destinao scio-humanitria
(justia e eqidade) [BRASIL. Ministrio da Sade(a)]
para o FDA
o suas regulamentaes sobre o termo de consentimento livre
e esclarecido baseiam-se, entre outros, no princpio de
justia discutido pelo Relatrio Belmont
o os encargos e benefcios da participao em pesquisa
clnica devem ser igualmente distribudos para toda a
populao da regio na qual a pesquisa conduzida
Introduo 32
o status racial, tnico, sexo e condio econmica no devem
ser utilizados injustamente para excluir a participao em
pesquisa clnica
o pessoas elegveis para participao na pesquisa clnica
devem ter uma oportunidade justa e razovel de serem
includas at que a coorte da mesma esteja completamente
recrutada (Investigational New Drug Applications, 1997)
para o Relatrio Belmont
o deve ser determinado um tratamento igual para todos
o a seleo de sujeitos da pesquisa necessita ser escrutinada
a fim de determinar se algumas classes esto sendo
sistematicamente selecionadas simplesmente devido a sua
fcil disponibilidade, sua posio comprometida ou sua
capacidade de ser manipulada, ao invs de razes
diretamente relacionadas ao problema sendo estudado (The
Belmont Report, 1979).
Em face da desigualdade na relao investigador (dono do saber) vs
sujeito da pesquisa (dependente do saber), sempre haver um poder do
investigador - maior ou menor, mais ou menos visvel - sobre o sujeito da
pesquisa e que poder levar a injustias. Portanto, nos estudos com seres
Introduo 33
humanos, sempre que houver poder e este sufocar a tica, poder haver
injustia ou situaes que favoream o seu aparecimento:
injustia por discriminao: tratamento desigual arbitrrio ao
legislar, administrar ou forar regras
injustia por explorao: obter vantagem sobre a confiana do
prximo ou incapacidades naturais para ganhar injustamente s
suas custas
injustia de julgamento: qualquer tipo de fraude, desde omisso
proposital de informaes ao sujeito da pesquisa at o falseamento
de resultados (Hossne, 2002).
1.3 Direitos humanos do sujeito da pesquisa
O segundo elemento a construir o contexto atual para o TCLE so os
direitos humanos do sujeito da pesquisa.
Os argumentos morais e de direitos humanos para obteno do TCLE
apiam-se no fato de que o sujeito da pesquisa pode enfrentar risco superior
queles encontrados em sua vida diria, uma vez que o grau dos riscos da
pesquisa s ser conhecido aps seu trmino. Para as populaes
marginalizadas vulnerveis, os direitos humanos visam tambm a proviso de
benefcios para os doentes e o seu retorno sociedade (Sommerville, 2001).
Introduo 34
O primeiro reconhecimento internacional sobre a importncia do
consentimento e dos direitos humanos na pesquisa mdica surge com o
Cdigo de Nuremberg:
A contribuio principal de Nuremberg foi unir a tica
hipocrtica e a proteo dos direitos humanos em um nico
cdigo (Sommerville, 2001).
At a II Guerra, a individualidade e os direitos do sujeito da pesquisa
no eram prioritrios para muitos pesquisadores, e a obteno do
consentimento do paciente era ento um processo no-mandatrio. O
Cdigo de Nuremberg veio estabelecer um elo importante entre os preceitos
do Juramento de Hipcrates e os direitos humanos do sujeito da pesquisa:
o Cdigo requer que o pesquisador proteja o bem-estar do sujeito
da pesquisa, e d a este proteo por meio do termo de
consentimento livre e esclarecido e o direito de retirar-se da
pesquisa; portanto, ao substituir a tica de Hipcrates, centrada no
mdico pelos direitos humanos centrados no sujeito da pesquisa, o
Cdigo de Nuremberg oferece a este sujeito a mesma autonomia
que oferece ao pesquisador (Sommerville, 2001).
Ainda que Nuremberg seja um marco na discusso da voluntariedade
do sujeito da pesquisa, a discusso hoje sobre a prtica mais estruturada
da pesquisa clnica, na qual direitos humanos e princpios ticos caminhem
Introduo 35
em paralelo. A forma atual para o consentimento, o TCLE, seria o
instrumento que concretiza os princpios ticos e direitos humanos para com
o sujeito da pesquisa, e por seu intermdio que se procura manter a
dignidade deste sujeito.
Sob a tica dos direitos humanos, todo e qualquer cidado teria a
obrigao moral de contribuir para o objetivo social de aumento do
conhecimento existente:
no passado, essa argumentao foi utilizada para legitimar
pesquisas em pacientes vulnerveis ou dependentes sem seu
consentimento livre e esclarecido, aumentando a percepo de que
estudos em seres humanos poderiam sobrepujar a autonomia e
liberdade individual dos indivduos (Sommerville, 2001)
nessas pesquisas, os direitos humanos de liberdade e opo de
escolha foram seriamente comprometidos, favorecendo o
estabelecimento da Declarao Universal dos Direitos Humanos
em 1948 (Souza, 2002).
Atualmente, liberdade e autodeterminao constituem o ponto central
dos direitos humanos. Alm disso, hoje tambm j se reconhece a interface
entre direitos humanos e pesquisa clnica:
1. direitos humanos e tica em pesquisa coincidem ao enfatizar o
papel fundamental do TCLE para estudos clnicos
Introduo 36
2. em situaes nas quais o interesse social sobrepuja o interesse
individual, liberdades civis e direitos humanos individuais podem
ser legitimamente infringidos a fim de atingir um objetivo maior, tal
como a manuteno da sade pblica
3. a negao de informaes aos voluntrios de pesquisa pode ser
encarada como uma quebra de seus direitos morais e humanos
4. a pesquisa em pases em desenvolvimento levanta preocupaes
sobre tica e direitos humanos, principalmente quando terapias
dispendiosas e inovadoras so utilizadas em pases nos quais o
gasto anual com sade bsica incapaz de preencher o custo de
tais terapias (Sommerville, 2001).
1.4 Histria da obteno do consentimento dos pacientes e dos
sujeitos da pesquisa
O terceiro elemento formando o contexto atual para o TCLE a
histria da obteno do consentimento dos pacientes e dos sujeitos da
pesquisa.
Inicialmente solicitado apenas para tratamentos e, posteriormente,
para tratamentos e participao em pesquisa, a forma de obteno do
consentimento sofreu modificaes dependendo do contexto histrico no
Introduo 37
qual estava inserido, at constituir-se em parte fundamental da tica em
pesquisa conforme o modelo atual:
1767 Na Inglaterra observa-se a primeira citao conhecida
sobre questes envolvendo consentimento e informao, quando
um paciente em tratamento de fratura ssea acusa seus mdicos
de ignorncia, impercia e no-fornecimento de informaes
precisas sobre seu tratamento (Clotet et al., 2000b).
1830 John William Willcock, advogado ingls, publica um livro
sobre legislao e exerccio profissional da Medicina, apresentando
base jurdica para utilizao do consentimento em pesquisa com
pacientes (Clotet et al., 2000b).
1833 Primeiro registro cientfico conhecido estabelecendo relao
entre investigador e sujeito da pesquisa, quando um paciente com
seqela em estmago por arma de fogo passa a receber dinheiro,
casa e comida de seu mdico para permanecer disposio de
experimentos cientficos (Goldim, 2003d).
1880 A Corte da cidade de Bergen (Noruega) condena um
mdico por realizar uma pesquisa sem a autorizao antecipada do
paciente (Clotet et al., 2000b).
1884 Louis Pasteur prope testar uma vacina contra a raiva
utilizando condenados morte no Brasil, porm sem solicitar
Introduo 38
autorizao prvia. D. Pedro II nega autorizao para o teste
(Clotet et al., 2000b).
1900 O senador Jacob H. Gallinger prope uma lei para
regulamentar os experimentos cientficos em seres humanos nos
EUA. Ainda que no tenha sido aceita, esta proposta considerada
o primeiro documento legal a estabelecer regras claras para a
realizao de pesquisas em seres humanos, a exigir aprovao
prvia da pesquisa por um comit, utilizao de autorizao dos
participantes, avaliao prvia dos riscos envolvidos e preservao
dos grupos vulnerveis (Clotet et al., 2000b).
1901 O governo da Prssia aprova o primeiro documento legal
sobre a utilizao do consentimento em pesquisa, estabelecendo
os dois componentes bsicos do consentimento: informao e
autorizao expressa (Clotet et al., 2000b).
1931 O Ministrio do Interior da Alemanha estabelece as
Diretrizes para Novas Teraputicas e Pesquisa em Seres
Humanos, tornando imprescindvel o uso do consentimento e
abrindo a possibilidade de que o mesmo pudesse ser obtido por um
representante quando o sujeito da pesquisa fosse considerado
incapaz (Clotet et al., 2000b).
1946 O Conselho Jurdico da Associao Mdica Americana
divulga um relatrio utilizando a expresso consentimento
Introduo 39
voluntrio e estabelecendo trs princpios ticos bsicos para a
pesquisa em seres humanos:
o consentimento voluntrio da pessoa na qual o experimento
ser realizado
o o perigo de cada experimento deve ser previamente
investigado por experimentao animal
o o experimento deve ser realizado sob proteo e
gerenciamento mdico adequados (Clotet et al., 2000b).
1947 O Tribunal Militar de Nuremberg estabelece o Cdigo de
Nuremberg, com dez princpios bsicos para pesquisas em seres
humanos e sendo dois deles diretamente relacionados ao
consentimento:
o Princpio Um requeria que o sujeito da pesquisa fosse
voluntrio, com capacidade legal para dar consentimento
sem sofrer qualquer forma de coero, e que tivesse
conhecimento e compreenso suficientes do experimento
para tomar uma deciso fundamentada a respeito
o Princpio Nove discutia a liberdade do sujeito retirar-se do
protocolo de estudo (Brody, 2001).
1954 A Associao Mdica Mundial publica a Resoluo
Humana sobre Experimentao, permitindo a obteno do
Introduo 40
consentimento por intermdio do representante legal quando
adequado (Brody, 2001) e estabelecendo tambm trs Princpios
sobre o consentimento:
o Princpio 3 para pesquisa em pessoas saudveis, garantir
informao plena
o Princpio 4 para pesquisa em pessoas doentes, exigir
consentimento da prpria pessoa ou do seu representante legal
o Princpio 5 necessidade de obter o consentimento por
escrito e, no caso de pacientes considerados
irresponsveis, exigir consentimento do representante legal
(Clotet et al., 2000b).
1957 Surge o primeiro uso da expresso consentimento informado:
em uma sentena judicial nos EUA julgando um caso mdico, a Corte
afirmou que o mdico deveria revelar plenamente os fatos
necessrios a um consentimento informado (Goldim, 2003e).
1964 A 18.a Assemblia da Associao Mdica Mundial (Helsinki,
Finlndia) aprova a Declarao de Helsinki (Associao Mdica
Mundial), estabelecendo o consentimento como uma condio
indispensvel para a realizao de pesquisa clnica (Clotet et al.,
2000b). Desde ento, a Declarao de Helsinki considerada o
documento internacional de referncia mundial para as pesquisas
mdicas (Freitas, 2000).
Introduo 41
1966 Henry K. Beecher publica um artigo relatando 22 trabalhos
cientficos publicados em importantes revistas mdicas e que
apresentavam desvios ticos por parte dos investigadores. Esses
trabalhos haviam sido realizados nas principais escolas mdicas e
hospitais dos Estados Unidos, porm a maioria deles no tinha o
consentimento dos pacientes (Bunker, 2001).
1967 Maurice Pappworth publica o livro Human Guinea Pigs
(Cobaias Humanas), resumindo cerca de 200 investigaes
clnicas publicadas nas principais revistas mdicas, e que
representavam casos de pesquisa no-benfica aos voluntrios ou
que foram conduzidas sem o consentimento e/ou conhecimento
destes (Edelson, 2001).
1974 O Congresso dos EUA decreta o National Research Act
(Ato Nacional de Pesquisa), criando regulamentaes para
proteo do sujeito da pesquisa, tais como requerimento para
consentimento, reviso da pesquisa por comits de reviso
institucionais e obrigao de submeter protocolos de pesquisa com
seres humanos reviso dos pares (Getz; Borfitz, 2003a).
Ainda em 1974, surge nos EUA a National Commission for the
Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral
Research (NCPHSBBR) para estabelecer critrios na pesquisa com
seres humanos. Essa Comisso elaborou diversos documentos
Introduo 42
abordando diferentes situaes de pesquisa e grupos vulnerveis de
pessoas, tais como crianas e prisioneiros (Clotet et al., 2000b).
1975 A Declarao de Helsinki (29.a Assemblia da Associao
Mdica Mundial Tquio, Japo) sugere a aprovao prvia dos
protocolos por um comit independente e admite a existncia de
possvel conflito de interesse do investigador entre o papel de mdico e
o de cientista, negando assim a neutralidade da cincia (Freitas, 2000).
1979 Por intermdio da juno dos princpios bioticos de
autonomia, beneficncia e justia, a Comisso NCPHSBBR elabora
o Belmont Report (Relatrio Belmont) determinando, pela primeira
vez, a utilizao sistemtica desses princpios bioticos, a
requisio do consentimento, a avaliao do risco-benefcio e a
necessidade de adequar as informaes do consentimento ao nvel
de compreenso do sujeito da pesquisa (Clotet et al., 2000b).
Ainda que no reconhecendo o mal isoladamente mas apenas a
ausncia do mal como parte do bem, pode-se depreender que a
gnese da biotica enquanto um conjunto de princpios ticos
aplicados pesquisa clnica em seres humanos ocorreu de
maneira concomitante elaborao do Belmont Report.
1982 - O Council for the International Organization of Medical
Sciences (CIOMS) publica suas diretrizes, fornecendo orientao para
pesquisadores de pases tecnologicamente avanados ao conduzirem
pesquisas em pases em desenvolvimento (Getz; Borfitz, 2003a).
Introduo 43
1983 A Declarao de Helsinki (35. Assemblia da Associao
Mdica Mundial Veneza, Itlia) reconhece o direito moral de
crianas e adolescentes perante o consentimento ao determinar
que, caso uma criana participante de estudo clnico tenha
desenvolvimento moral suficiente para fornecer seu consentimento,
dever d-lo em acrscimo ao consentimento fornecido pelo seu
guardio legal (Clotet et al., 2000b).
1988 No Brasil, o uso do consentimento na pesquisa em seres
humanos proposto pela primeira vez mediante a Resoluo CNS
01/88. Definindo a autorizao fornecida pelo sujeito da pesquisa
como consentimento ps-informado, esta Resoluo apresentava
dois destaques principais:
1. as informaes do estudo deveriam ser dadas ao paciente
previamente ao seu consentimento
2. era dever moral permitir a participao de grupos
especficos, tal como, menores de 18 anos de idade, no
processo do consentimento, ainda que sem validade legal
(Clotet et al., 2000b).
1989 So estabelecidas internacionalmente as diretrizes de Boas
Prticas Clnicas ou GCP (Good Clinical Practice), orientando a
realizao de estudos clnicos com produtos medicinais em seres
humanos.
Introduo 44
1990 Em abril, representantes das agncias regulatrias e
indstrias farmacuticas da Europa, Estados Unidos e Japo
renem-se na Conferncia Internacional de Harmonizao (ICH),
visando a padronizar os requerimentos regulatrios no
desenvolvimento de produtos farmacuticos (IFPMA, 2003).
1991 O CIOMS (Conselho de Organizaes Internacionais de
Cincias Mdicas) publica suas diretrizes para reviso tica de
estudos epidemiolgicos, possibilitando a obteno de um
consentimento coletivo - desde que obtido junto s lideranas
reconhecidas da comunidade e preservando ainda o direito de um
membro da comunidade recusar sua participao no estudo (Clotet
et al., 2000b).
1993 As diretrizes aprovadas pelo CIOMS incluem novas
questes sobre o consentimento:
1. discusso sobre o uso do termo de consentimento em
estudos epidemiolgicos
2. a possibilidade de crianas recusarem sua participao
3. a possibilidade de pessoas portadoras de distrbios mentais
ou comportamentais recusarem sua participao (Clotet et
al., 2000b).
1996 O Conselho Nacional de Sade no Brasil aprova a
Resoluo CNS 196/96 [BRASIL. Ministrio da Sade(a)],
propondo a expresso consentimento livre e esclarecido e
Introduo 45
preservando as caractersticas do seu processo de obteno. Essa
Resoluo, devido a sua abrangncia de orientaes na pesquisa
clnica com seres humanos, veio a ser incorporada posteriormente
pelas principais Resolues brasileiras nesta rea.
1997 A Resoluo CNS 251/97 [BRASIL. Ministrio da Sade(b)]
aprova normas de pesquisa referentes capacidade do indivduo.
Ela inclui a discusso do consentimento na pesquisa clnica com
pacientes idosos ou doentes mentais, e possibilita a participao
de crianas e adolescentes no seu processo de obteno (Clotet et
al., 2000b).
1998 O Japo estabelece normas para a conduo de pesquisa
clnica em seres humanos e prope a utilizao do consentimento
por escrito. Esta questo, to culturalmente estranha cultura
japonesa, gera questionamentos sobre a transposio de modelos,
valores morais, e adequao transcultural do conceito e utilizao
do consentimento (Clotet et al., 2000b).
Introduo 46
1.5 Regulamentao da pesquisa em seres humanos no Brasil
O quarto e ltimo elemento formando o contexto atual para o TCLE
so as regulamentaes brasileiras que normatizam as pesquisas em seres
humanos.
No Brasil, os limites da experimentao em seres humanos so
definidos por normas gerais e especficas. Dentre as normas gerais destaca-
se o artigo 132 do Cdigo Penal Brasileiro, ao estabelecer que a exposio
da vida ou sade de outra pessoa ao perigo direto ou iminente crime
passvel de deteno de trs meses a um ano, se o fato no constituir-se em
crime maior (Munz, 2003). Portanto, no haveria necessidade de dano
efetivo ao sujeito da pesquisa, uma vez que a simples exposio da sua vida
ou sade a um perigo direto ou iminente j configura o crime.
J as normas especficas para pesquisa em seres humanos apresentam
carter internacional ou apenas local; elas podem ser gerais e globalizadas, tal
como a Declarao de Helsinki, ou servir apenas a um pas, como a Resoluo
brasileira CNS 196/96. Essas normas, sejam locais ou internacionais,
estabelecem os limites entre o moral e o imoral, o lcito e o ilcito nos estudos
com seres humanos, gerenciando assim o nvel tico desses estudos.
A normatizao do uso do consentimento em pesquisa clnica com
seres humanos tem incio na dcada de 1980. Em 27/novembro/1981, a
Diviso de Vigilncia Sanitria de Medicamentos (DIMED) do Ministrio da
Sade baixou a Portaria 16/81, instituindo o Termo de Conhecimento de
Introduo 47
Risco (TCR) (ANEXO 6.2) para todos os projetos de pesquisa com
medicamento no registrado, com indicao ainda no aprovada ou que era
importado e cuja documentao ainda no havia sido analisada pela DIMED.
Essa Portaria priorizava os riscos em pesquisa, os deveres ticos, e o
registro e/ou controle de qualidade dos medicamentos importados. J o TCR
tinha por objetivo apenas informar ao participante as caractersticas
experimentais de utilizao do medicamento: seu texto era genrico e
padronizado, no abordava a questo da compreenso ou voluntariedade,
isentava o Ministrio da Sade no caso de danos decorrente do estudo, e
no estabelecia critrios sobre os riscos especficos de cada medicamento
(Goldim, 2003f).
Em 12/maro/1982, o Conselho Federal de Medicina baixou a
Resoluo CFM 1081/82 (Consentimento para Procedimentos Diagnsticos e
Teraputicos) (ANEXO 6.3), estabelecendo que as provas necessrias para
diagnstico e teraputica poderiam ser realizadas apenas com o consentimento
do paciente, e destacando tambm os cuidados post mortem (quatro dos seus
cinco artigos abordavam a questo de autorizao para necropsia).
Essa Resoluo j utilizava, ainda que superficialmente, componentes
de informao e capacidade para consentir, porm a questo da
compreenso e voluntariedade no eram sequer abordadas. Seu texto
caracterizava ainda um consentimento por procurao, via representante
legal ou familiares, no caso do paciente ser incapaz de decidir por si prprio
(Goldim, 2003f).
Introduo 48
Em 1988 foi implantada a Resoluo CNS 01/88 (ANEXO 6.4),
estabelecendo as primeiras normas de pesquisa em sade no Brasil,
regulamentando o credenciamento de centros de pesquisa no pas, e
recomendando a criao de um Comit de tica em Pesquisa (CEP)
registrado junto ao Conselho Nacional de Sade para cada instituio que
realizasse pesquisa em seres humanos (Comit de tica em Pesquisa da
Secretaria Municipal de Sade, 2004).
Em 1995 so implantadas duas novas Resolues para pesquisa
clnica em seres humanos:
Resoluo CNS 170/95 (ANEXO 6.5) - definindo a formao de um
Grupo Executivo de Trabalho para reviso da Resoluo CNS 01/88
Resoluo CNS 173/95 (ANEXO 6.6) - definindo o Plano de
trabalho de reviso da Resoluo CNS 01/88 e incluindo a
normatizao de reas temticas especiais.
Em outubro de 1996, aps ampla discusso com a sociedade civil,
surge a Resoluo CNS 196/96 [BRASIL. Ministrio da Sade(a)] (ANEXO
6.7) e revogada a Resoluo CNS 01/88.
A implementao dessa nova Resoluo tornou-se necessria porque
havia a percepo de que o Brasil era um territrio adequado para a
implementao de pesquisas clnicas negadas no pas de origem. Ela veio
Introduo 49
normatizar a pesquisa clnica em seres humanos no Brasil, impondo uma
viso biotica multidisciplinar e pluralista:
A Resoluo CNS 196/96 de natureza biotica desde a sua
gnese, assim como sua concepo, estruturao e
consolidao (Hossne, 2002).
Portanto, a Resoluo CNS 196/96 veio destacar os quatro princpios
bioticos mais importantes:
consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa e a proteo
a grupos vulnerveis e aos legalmente incapazes. Os seres humanos
envolvidos devem ser tratados com dignidade, respeitados em sua
autonomia e defendidos em sua vulnerabilidade (autonomia)
ponderao entre riscos e benefcios, tanto atuais como potenciais,
individuais ou coletivos, comprometendo-se com o mximo de
benefcios e o mnimo de danos e riscos (beneficncia)
garantia de que danos previsveis sero evitados (no-maleficncia)
relevncia social da pesquisa com vantagens significativas para o
sujeito da pesquisa e minimizao do nus para os sujeitos
vulnerveis, garantindo igual considerao dos interesses
envolvidos e no perdendo o sentido de sua destinao scio-
humanitria (justia).
Introduo 50
Essa Resoluo preocupou-se ainda com as questes bioticas
relacionadas ao poder e a injustia:
no era cartorial, estatutria ou um simples cdigo
no era coercitiva
era aplicvel a todas as pesquisas que pudessem causar danos
fsicos, psquicos, morais, intelectuais, sociais, culturais ou
espirituais do ser humanos
tinha suporte de disposio legal, permitindo anlise tica pelo
Ministrio da Sade e julgamento por rgos profissionais de
classe e justia comum (Hossne, 2002).
As percepes iniciais da classe mdica sobre a Resoluo CNS
196/96 foram negativas, mas tambm foi reconhecido o incremento da tica
em pesquisa que ela trouxe (Grande encontro rene comits de tica em
pesquisa, 2003).
A criao da CONEP (Comisso Nacional de tica de Pesquisa)
tambm fruto dessa Resoluo. Funcionando como instncia normativa,
de recurso e coordenao, a CONEP atua de maneira interdisciplinar em
diversas reas temticas, sendo ainda obrigatria a presena de um
representante do usurio final (o sujeito da pesquisa) entre os membros do
seu colegiado (Hossne, 2002).
Introduo 51
A Resoluo CNS 196/96 implantou tambm caractersticas
operacionais importantes envolvendo o sujeito da pesquisa:
O sujeito da pesquisa autnomo, deve ser esclarecido em
terminologia acessvel, e o seu consentimento livre e esclarecido
fornecido sem induo, seduo, coao ou coero
O sujeito da pesquisa ter livre acesso s informaes, liberdade de
recusa, e direito assistncia por eventos decorrentes da pesquisa
O sujeito da pesquisa ter assegurada a inexistncia de conflito de
interesses entre as partes envolvidas no estudo e ter seus valores
culturais, sociais, morais, religiosos e ticos respeitados
Devem ser previstos procedimentos que assegurem a
confidencialidade, privacidade e proteo da imagem do sujeito da
pesquisa
O estudo deve ser desenvolvido, preferencialmente, em sujeitos da
pesquisa com autonomia plena
Os benefcios resultantes do projeto devem ser assegurados ao
sujeito da pesquisa, assim como tambm as condies de
acompanhamento ou tratamento mdico adequados
O material biolgico do sujeito da pesquisa e os dados obtidos com
sua participao no estudo devem ser utilizados exclusivamente
para a finalidade prevista no protocolo
Introduo 52
A pesquisa dever ser suspensa caso seja percebido algum risco
ou dano sade do sujeito da pesquisa no previsto no TCLE; ao
contrrio, caso seja percebida a superioridade de um mtodo em
estudo sobre outro, os benefcios da melhor terapia devero ser
oferecidos ao sujeito da pesquisa
O sujeito da pesquisa que vier a sofrer dano decorrente da
pesquisa, previsto ou no no TCLE, ter direito indenizao e
no poder ser exigido que renuncie a este direito (Hossne, 2002).
A Resoluo CNS 196/96 tambm considerou algumas reas
temticas como especiais e com grande ingerncia sobre os respectivos
TCLEs: em todas essas reas especiais, a Resoluo visava a proteger o
sujeito da pesquisa e assegurar a compreenso do TCLE. Alm disso, ela
exigia informaes sobre as circunstncias nas quais o termo de
consentimento livre e esclarecido seria obtido, quem iria tratar de obt-lo e a
natureza da informao a ser fornecida aos sujeitos da pesquisa.
Por ser muito abrangente no contexto tico da pesquisa clnica em
seres humanos, a Resoluo CNS 196/96 veio a ser incorporada pelas
principais Resolues brasileiras que se seguiram nesta rea.
Em 07/agosto/1997 foi decretada a Resoluo CNS 251/97 [BRASIL.
Ministrio da Sade(b)] (ANEXO 6.8) para regulamentao das pesquisas
clnicas em seres humanos realizadas dentro da rea temtica especial 3
da Resoluo CNS 196/96 (novos frmacos, medicamento, vacinas e testes
Introduo 53
diagnsticos envolvendo seres humanos). Esta nova Resoluo no revogou
a Resoluo anterior 196/96; ao contrrio, ela incorporou todas as
disposies contidas na 196/96 e tambm delegou aos CEPs a anlise final
dos projetos na rea temtica especial 3 (Comit de tica em Pesquisa da
Secretaria Municipal de Sade, 2004).
A Resoluo CNS 251/97 tambm oferecia ateno especial ao
sujeito da pesquisa:
no caso de conflitos de interesse, sua dignidade e bem-estar
prevaleciam sobre outros interesses, fossem econmicos, da
cincia ou da comunidade
fornecia garantia de condies para o atendimento do sujeito da
pesquisa.
Alm disso, essa nova Resoluo conferia um carter especial
plena capacidade do indivduo para consentir, ou no, com sua participao
em estudos clnicos:
para sujeitos com capacidade de autodeterminao reduzida (por
exemplo, idosos) ou no desenvolvida (por exemplo, crianas),
deveria se levar em conta a manifestao do prprio sujeito, alm
do TCLE do responsvel legal
no caso de pacientes psiquitricos, o TCLE deveria ser obtido do
prprio paciente, sempre que possvel; alm disso, esta Resoluo
Introduo 54
tornou fundamental que um profissional no envolvido no estudo
estabelecesse a capacidade deste paciente em expressar seu
consentimento livre e esclarecido.
A Resoluo CNS 251/97 conferia ao CEP o direito de contato direto
com o sujeito da pesquisa para acompanhamento e avaliao, e ainda
sugeria uma postura tica para sujeitos da pesquisa em situaes de
emergncia ou com autodeterminao alterada:
em estudo com pacientes em situao de emergncia, o CEP
deveria aprovar previamente as condies ou limites em que se
daria o consentimento livre e esclarecido
em estudo com pacientes apresentando capacidade de
autodeterminao reduzida ou limitada, o CEP deveria assegurar
todas as medidas adequadas
Em 08/julho/1999 foi decretada a Resoluo CNS 292/99 [BRASIL.
Ministrio da Sade(c)] (ANEXO 6.9), estabelecendo normas para
aprovao de protocolos de estudo com cooperao estrangeira, mantendo
a aprovao dos mesmos pelo CEP e, em seguida, pela CONEP.
Essa Resoluo atendia a todos os critrios ticos e bioticos da
Resoluo CNS 196/96 e destacava sua rea temtica especial 8
(pesquisas coordenadas do exterior ou com participao estrangeira e
Introduo 55
pesquisas envolvendo remessa de material biolgico para o exterior): ao
considerar toda e qualquer amostra biolgica proveniente do sujeito da
pesquisa como sua propriedade, a Resoluo CNS 292/99 normatizou os
cuidados ticos na manipulao dessas amostras e deu ao sujeito da
pesquisa o direito de concordar, ou no, com o destino das mesmas.
Esta nova Resoluo exigia que as amostras biolgicas do sujeito da
pesquisa fossem coletadas exclusivamente para os fins previstos no
protocolo de estudo, e tambm abordava situaes de discriminao que
um aporte financeiro poderia representar para o sujeito da pesquisa,
conduzindo-o a benefcios extraordinrios.
Segundo a Resoluo CNS 292/99, a CONEP pde ainda delegar
competncia temporria aos CEPs para determinados projetos, mantendo
para si, contudo, a deciso final em estudos clnicos com cooperao
estrangeira envolvendo uso de placebo ou banco de material biolgico.
Dessa forma, por meio da Resoluo CNS 292/99, a CONEP mantinha para
si a salvaguarda da integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa.
Posteriormente, algumas outras Resolues sobre pesquisa clnica
em seres humanos foram decretadas, todas, porm, abordando apenas
aspectos muito especficos:
Resoluo CNS 301/00 [BRASIL. Ministrio da Sade(d)] (ANEXO
6.10) veio contemplar o posicionamento do CNS e CONEP
contrrio a modificaes da Declarao de Helsinque
Introduo 56
Resoluo CNS 303/00 [BRASIL. Ministrio da Sade(e)] (ANEXO
6.11) contemplou uma norma complementar na rea de
Reproduo Humana, estabelecendo subreas que deveriam ser
analisadas na CONEP e delegando aos CEPs a anlise de outros
projetos da rea temtica
Resoluo CNS 304/00 [BRASIL. Ministrio da Sade(f)]
contemplou a norma complementar para a rea de Pesquisas em
Povos Indgenas
Mais recentemente, em 08/julho/2004, foi decretada a Resoluo CNS
340/04. Ao levar em considerao o recente avano tcnico-cientfico e suas
aplicaes na pesquisa em gentica humana, essa Resoluo veio definir os
termos mais usuais neste novo campo teraputico, os seus aspectos ticos
mais importantes e a operacionalizao dos est
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