o pathos na carta de amor
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O PATHOS NAS CARTAS DE AMOR
Heloisa Caldas1
A psicanálise é uma teoria do amor. Lacan destaca que não
desenvolvia “uma psico-logia, um discurso sobre a realidade irreal a que
chamamos psique, mas sobre uma práxis que merece um nome:
erotologia”. E ele acrescenta: “Trata-se do desejo”2.
Esse comentário de Lacan vai na mesma direção do trabalho
exaustivo de Freud sobre o amor, em especial suas três contribuições à vida
amorosa nas quais comenta o valor que se atribui ao amado, a importância
das barreiras e das dificuldades que acendem o desejo, as degradações
necessárias para que se possa gozar do amado3. Textos em que, na teoria
freudiana, encontramos o falo enlaçando a tríade amor, desejo e gozo.
Em um deles, Freud demonstra que uma mulher reúne dois
aspectos diante de sua parceria: ter um valor – esse agalma pode ser
expresso pela virgindade –, mas ao mesmo tempo, poder perder esse valor
– ser violada, o que lhe deixará marcas de perda e ódio4. Nos outros dois
textos5 ele desenvolve a problemática fálica do lado masculino: o objeto
para suscitar tanto o amor como o desejo precisa ser agalmático, mas ao
servir como objeto de gozo perde seu brilho, é degradado. Os semblantes,
as vestimentas imaginárias que recobrem a crueza do real, são desvelados
quando se trata de gozo, deixando o objeto mais próximo do horror.
Durante o gozo ele é um objeto meramente utilitário, e após seu uso ele é o
resto. Para alguns homens manter o objeto inacessível em sua forma
idealizada pode ser uma condição para amar. 1 Psicanalista. Profª. Visitante do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do IP/UERJ. Membro daAssociação Mundial de Psicanálise (AMP) e da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). 2 Lacan, J. O seminário, livro10: a angústia ( 1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 24.3 Freud, S. “Contribuições à psicologia do amor”. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud.Edição Standard Brasileira, vol. XI. Rio de Janeiro: Imago, 1969.4 “O tabu da virgindade” (1918). Op. cit. 5 “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” (1910) e “Sobre a tendência universal àdepreciação na esfera do amor” (1912). Op. cit.
Com Lacan, a lógica da vida amorosa é considerada de forma
ainda mais complexa. Ele ultrapassa o ponto até onde Freud chegou, o falo
como referência para a partilha sexual, ao pensar a lógica fálica em função
de outra lógica. Essas duas lógicas são co-existentes. Além da lógica fálica
que organiza a fantasia com molduras, mapas e contabiliza o desejo e o
gozo, Lacan aponta uma lógica diversa na qual não há medida. A partilha
sexual trabalhada em função dessas duas lógicas situa, para cada sujeito o
masculino naquilo que o falo rege, e o feminino na lógica do desmesurado6.
Assim, o sujeito pode tender mais para uma ou para outra, mas as duas
lógicas estão sempre em questão. A fragilidade de uma é o malefício da
outra.
O falo como significante pode ser reduzido a um traço, aquele que
regula o que se pode agrupar. Por isso Lacan adjetivou essa lógica de para
todos, na medida em que ela permite estabelecer conjuntos constituídos por
elementos em função de um traço que valha para todos. Na outra lógica, ao
contrário, não se tem esse traço que permita formar conjunto. Logo, cada
elemento extraído dentro desta lógica é impar; em função disto, ele
adjetivou-a como não toda, 0situando aí o objeto a de gozo e o enigma do
Outro, /A . Desta forma, cada sujeito com sua fantasia, vale-se de um
significante que possa neutralizar as variantes do objeto segundo algum
critério que sirva para todos.
Nesse aspecto a fantasia, no coração do sintoma, é uma fórmula
que pretende regular o gozo e amarrar um objeto como o adequado. O
objeto a, no entanto, é um vazio que nenhum objeto da cultura sutura
inteiramente. A fantasia, ancorada por um significante, encontra-se do lado
da lógica fálica. No entanto, orientada ao objeto de gozo, ela padece da
lógica do não todo. Conseqüentemente, a fantasia não se realiza toda. Isso
faz com que ela sempre tenha algo de fracassada: nenhum objeto é
6 Lacan, J. “O aturdito” (1973). Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
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inteiramente adequado. Mas o sujeito a repete tentando, a cada vez, o
sucesso da fórmula.
No amor, o objeto da fantasia é buscado em outra pessoa. Jacques-
Alain Miller propôs a expressão parceiro-sintoma para o fato de que a
parceria amorosa se faz com o sintoma que envelopa o objeto no outro7. O
parceiro-sintoma é, portanto, aquele que se presta como semblante do
objeto a. Logo a parceria, a rigor, se estabelece com o objeto a, e neste
ponto cada sujeito esbarra no impar de seu gozo. Trata-se de sujeito e
objeto. Não existe pulsão genital no sentido da uma busca do Outro sexo. É
preciso inventá-la, fazer com que as pulsões parciais passem pelo campo do
Outro, da cultura, do Édipo, das identificações, para que seja possível
construir algum semblante de homem, mulher, gay, etc. São formas que
acontecem a partir do discurso, no laço social.
A cultura propõe os modos de parceria, mas a forma como cada
um se deixa fisgar pelo caldo da cultura é impar. Para que haja
direcionamento a uma pessoa é preciso que a pulsão passe por este campo,
enlaçando o pulsional ao Outro. Os quatro discursos lacanianos foram
propostos justamente para pensar esse enlace entre o pulsional e o Outro. A
partir daí, Lacan retoma o binômio elementar, S1-S2, e o matema da
fantasia, $ ◊ a, para pensar como a fantasia pode entrar no laço social
produzindo uma parceria sintomática.
Entretanto, o sujeito não sabe que é solitário com seu sintoma.
Especialmente no amor ele clama pela reciprocidade, pela existência de
dois, mesmo que seja como no mito, para com o dois fazer um. O amor
exige reciprocidade, não só porque declarar o amor significa uma demanda,
mas também porque aponta que, no outro, algo faz com que ele seja amado.
E esse traço que o amante atribui ao amado tem sua raiz no narcisismo do
eu: o que se ama são as versões do objeto a encapadas pela imagem do eu
7 Miller, J.-A. El partenaire-síntoma (1997-1998). Buenos Aires: Paidós, 2008.
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ideal e sustentadas pelos significantes do Ideal do Outro, I(A). Logo o
amado, de certa forma, é responsável pelo amor que causa. Quanto a isso o
amor não correspondido é um ultraje ao amante.
No entanto, se no campo narcisista do amor procura-se emparelhar
amar e ser amado, no campo pulsional não há essa possibilidade. A pulsão
circula um objeto que não importa pela sua capa de ideal, mas pela
satisfação e gozo que promove. Não encontramos no circuito pulsional a
questão entre amar e ser amado. Temos apenas o sujeito e o objeto de gozo.
Logo a questão sobre a recíproca não pode ser colocada, pois não há dois
sujeitos. Há apenas Um e a 8. Assim, na clínica do amor verificamos que,
em cada caso, as invenções de conciliação do sujeito expressam-se em seu
sintoma permitindo-lhe poder ou não fazer uma parceria.
Um aspecto relativo à fala se destaca nessa parceria. O que fala e o
que silencia é um ponto importante de sublinhar. O gozo é silencioso. O
desejo que visa o gozo depende do significante, pois advém do campo
Outro, mas não o suficiente para estabelecer parceria, devido à
singularidade fadada à dissimetria. Digamos que o desejo, se ele pudesse
existir fora da cadeia significante da demanda, produziria uma fala só para
si, próxima ao autismo. Como demanda, o amor é a forma pela qual o
desejo pode se manifestar em direção ao semelhante. O amor é, portanto,
uma tentativa de colocar significantes isolados numa conversa; conversa
que ensaia unir as pessoas atraídas, cada uma, por algo seu quase delirado
no outro, para viabilizar o gozo mudo do corpo. Conversa de surdos-
mudos: eis uma definição possível para o amor.
É importante ressaltar o sucesso dessa conversa. A conversa
amorosa tem sua razão de ser. É justamente o ser que ela visa e, de certa
forma, o atinge. Ainda que não dê conta da inexistência da relação sexual,
8 Lacan, J. O seminário, livro20: mais, ainda... ( 1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
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são os versos, a poética, com suas ressonâncias, que podem provocar no
corpo, através da fala, efeitos mudos de gozo.
As cartas-letras e as teorizações sobre o amor
É neste campo que as cartas de amor surgem como cartas/letras.
Elas são endereçadas, porém destituídas de sentido; são feitas em nome do
amor e pelo desejo, mas nelas só interessa o pathos – efeitos de gozo.
Podemos destacar em Lacan dois momentos distintos do seu trabalho sobre
a carta/letra. No primeiro, o pathos encontra-se mais relacionado ao desejo.
No outro, a questão do gozo ganha destaque.
Na primeira abordagem Lacan vale-se do equívoco do termo em
francês lettre9, conforme se lê em O seminário sobre “A carta roubada”.
Ele coloca em relevo o efeito-sujeito decorrente do trabalho formal e
estrutural do significante em sua remissão a outro significante. O sujeito
não é aquele que fala, mas aquele que é falado na cadeia significante. Nesse
sentido, a letra/carta exemplifica que não se trata tanto do que se diz, mas
sim um dizer que a carta testemunha. A carta endereçada à rainha é
desviada, escondida, procurada, achada, representando a letra em seu
endereçamento. E esta carta alcança sempre seu destino não naquele a
quem ela se endereça, e sim naquele que a remete a partir do Outro.
Além disso, cada um que a detém se feminiza, sublinha Lacan10,
ao indicar que ter a carta é portar seu enigma, ou seja, acreditar tê-la sem se
dar conta que sua posse não diz nada. Trata-se de uma estratégia de
feminização semelhante à da mascarada, como no caso narrado por Joan
Rivière e comentado por Lacan11: uma mulher faz de conta que não tem o
9 Lacan, J. “O seminário sobre ‘A carta roubada’” (1957). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1998.10 Lacan, J. O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 255. 11 Lacan, J. “A significação do falo” (1958). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
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falo e com isso esconde apenas a verdade dessa mentira. De fato, ela não
tem o falo. Mas ao proceder assim, ela abre a possibilidade para ser o falo.
A carta no conto de Poe ocupa esse mesmo lugar de falo. Aquele
que a tem finge que não a tem e mente sua verdade: a de que tê-la não quer
dizer nada. No entanto, permite que sua posse tenha valor, engrandece o eu.
Esse efeito de feminização, como aponta Stevens12, pode ser equiparado a
um efeito de histericização. O pathos não poderia deixar de estar presente,
contudo parece estar mais situado ao lado do desejo. A mensagem da carta,
jamais revelada no conto de Poe, pode ser colocada como equivalente à
demanda de amor, envelope formal para o desejo.
Toda carta de amor é demanda e toda demanda é, em última
análise, demanda de amor. Por isso atender à demanda engendra a
armadilha em que caem os enamorados. A demanda de amor não é para ser
atendida, pois somente nessa condição ela alcança sua razão de ser uma
demanda intransitiva a favor do desejo. Assim as cartas de amor não
importam pela mensagem que portam, mas pelo pathos que veiculam.
Como no conto de Poe nem precisam ser lidas, elas bastam como
demandas, cifram o ponto em que o desejo é impossível e o gozo resiste ao
saber.
Em relação ao objeto, Lacan distingue duas formas de amor13,
trabalhadas por Jacques Alain-Miller14. Podemos pensar essa distinção
situando o amor fetichista no homem, mais determinado pela fantasia de
recobrimento da falta do Outro, S( /A ). No amor erotomaníaco, situado do
lado da mulher, a lógica do não todo predomina. Como a operação fálica é
precária em recobrir com um significante da fantasia a falta do Outro,
verificamos a demanda por uma identificação do ser. A erotomania, ainda12 Stevens, A. “Clinique de la lettre”. Quarto. Revue de psychanalise publiée a Bruxelles: Litter –Letter –littoral, nº 92. Bruxelles: ECF- ACF em Belgique, avril 2008.13 Lacan, J. “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina” (1960). Escritos. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1998.14 Miller, J.-A. “Uma partilha sexual”. Clique. Revista dos Institutos Brasileiros do Campo Freudiano: Osexo e seus furos, nº 2. Belo-Horizonte: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, 2003.
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que deduzida a partir da psicose e da construção de delírios que tratam o
Outro dentro de um regime de certeza do sujeito – expresso por um “ele me
ama, estou certo disso” – não é exclusividade da psicose. Poderíamos
ensaiar um cogito amoroso para a erotomania, mais trans-estrutural,
formulado nos termos “sou amada, logo sou”. Torna-se evidente a demanda
de um significante do campo do Outro que possa nomear e circunscrever o
campo de gozo do sujeito. A demanda de amor clama, em última análise,
por um nome próprio que nomeie seu ser de gozo.
Na forma fetichista de amar, ao contrário, a lógica fálica
predomina. O fetiche, derivado do significante que funda a fantasia, recobre
o objeto de gozo de valor fálico e responde à falta do Outro. Seu relativo
sucesso em cifrar o desejo que acede ao gozo faz com que sirva, repetidas
vezes, para o mesmo fim.
Em uma primeira análise, essa divisão situa a fala amorosa e as
cartas de amor mais ao lado da erotomania que do amor fetichista, já que
nas cartas não temos a repetição do significante. Na verdade, as cartas
variam os significantes, se algo nelas se repete não é um significante, mas a
petição por um. Elas repetem a falta de um significante.
No entanto, Lacan fornece um exemplo de um caso em que as
cartas de amor estão do lado do fetichismo. Podemos encontrá-lo na
análise das cartas que Gide escrevia para Madeleine15. Elas sustentavam o
amor casto que Gide tinha pela esposa. Embora as cartas fossem um objeto
precioso e agalmático, elas não recobriam o objeto de gozo e,
conseqüentemente, não sustentavam o acesso ao mesmo. Elas moviam seu
desejo em relação ao amor, mas não ao gozo. No campo do desejo, que dá
acesso ao gozo, Gide era movido em direção às relações plurais com
meninos. Nestas relações, ele situava-se na mesma posição que teve quando
menino diante de sua tia de reputação um tanto criticada na família –15 Lacan, J. “Juventude de Gide ou a letra e o desejo” (1958). Escritos, op. cit.
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justamente a mãe de Madeleine, sua prima – que o tocou despertando seu
desejo.
Para Gide, a mulher do amor era o oposto disso: Madeleine era
para ele intocável. Tratava-se de um desejo que mantinha pela manutenção
do objeto idealizado, inacessível. Nesse caso, o desejo se desdobra entre o
que alimenta as cartas de amor e mantém, por um lado, um Ideal de homem
de letras pela via das cartas e, por outro, uma atração sexual pelos meninos.
A falta atroz que as cartas lhe fazem evidenciam que a perversão de Gide
caracterizava-se mais ao lado do amor do que de sua inversão sexual. Essas
cartas de amor dedicadas a Madeleine tinham, de certa forma, uma função
de fetiche, elas situavam-se no ponto em que o desejo que franqueia o gozo
recuara para dar lugar exclusivo ao amor16.
A segunda abordagem de Lacan sobre a carta/letra, em
Lituraterra17, encontramos novos elementos para interpretar o pathos das
cartas de amor, em especial no estilo erotomaníaco de amar. Neste texto, o
tratamento que Lacan fornece à letra não enfoca a questão do significante
em seu endereçamento. Ele deixa de sublinhar na carta/letra o efeito-sujeito
para destacar o efeito de gozo. A letra/carta não está mais situada a partir
da insistência do desejo, de um traço que funda no inconsciente uma série a
repetir. Certamente, esse plano não desaparece, e não anula o primeiro
ensino. Trata-se mais de sublinhar os pontos cruciais que, em cada ensino,
provoca a teorização.
Após alguns anos de formalização do objeto a e do
estabelecimento dos quatro discursos como aparelhos de gozo – nos quais
elementos da ordem significante, heterogêneos ao gozo, conectam-se ao
objeto a –, Lacan situa a letra como ponto limite e pivô da operação
significante-gozo, chamando-a de letra-litoral.
16 Idem, ibidem, p. 773-774.17 Lacan, J. “Lituraterra” (1971). Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
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Na primeira abordagem – referida à feminização como
histericização – a interpretação girava em torno da identificação e do valor
significante sobre o qual a carta/letra repousa. O gozo restava velado.
Entretanto, após a teorização da letra-litoral, a feminização ocorre –
daquele que detém ou escreve a carta – não porque ele desconheça o
próprio desejo e receba sua mensagem invertida do campo do Outro. Mas
porque, diante do gozo, a posição do sujeito regride à posição de objeto.
O sujeito é objeto em seu gozo e disso ele não pode falar. Esse é o
ponto crucial da feminização diante da letra: um gozo sobre o qual não há o
que se dizer. Ele é pura presença. No momento em que o sujeito fala, ele
abre mão de parte de seu ser de objeto e, em decorrência, também abre mão
de parte de seu gozo que passa a ser fálico. Ao falar, temos o sujeito que
pensa e afasta-se do ser de gozo, tal como no cogito proposto por Lacan18 –
“penso, logo não sou”. No entanto, na mudez do gozo o ser do objeto se
superpõe ao “penso”, e a identificação ao objeto predomina. Assim, o
cogito tende para “não penso, logo sou”.
A carta/letra de amor situa-se nesse tênue litoral entre o sujeito que
fala e o gozo que o habita. Nessa dimensão, o pathos aparece a favor do
desejo, subjetiva aquele que escreve, demanda o amor com base na
pergunta: “sou ou não sou amada?”. Mas serve ao gozo de maneira
temperada – digamos assim –, pois cumpre a função do amor em relação
aos outros dois elementos dessa tríade: o desejo e o gozo. Pelo fato de
passar a ser interpretada como carta/fala, promove o desejo do lado do
cogito “penso, logo não sou”. Trata-se, então, de uma forma de acting out
do sujeito colocando o amor em cena e a questão do ser na forma de
pergunta19.
18 Lacan, J. O seminário 15: o ato analítico (1967-1968). Inédito.19 Idem. Ibidem.
9
Contudo, pelo fato de ser carta/letra, permite o gozo: um gozo
silencioso, como sublinha Éric Laurent20. Trata-se de uma fala que, em
relação à falta do Outro, S ( /A ), por não ter o recurso do significante forte e
repetitivo, de um fetiche que obture essa falta, faz da própria fala remédio
para a falta. Então, se a carta de amor serve à mascarada feminina, promove
sua pergunta sobre seu ser, coloca-a em relação com seu desejo, essa ainda
não é sua função mais misteriosa e mais relacionada ao pathos do gozo. A
carta/letra é por si mesma um recurso ao S ( /A ). Ela é em si um objeto de
gozo. Um gozo silencioso que passa por traz dos ditos e afeta o ser. A carta/
letra serve para gozar da letra.
Mas ela pode também se prestar ao ato de produção poética e
sublimação como atesta a tradição das cartas do amor cortês. Ato que se
distingue da passagem ao ato em que predomina a identificação ao objeto e
do acting out que reitera a petição eterna de uma palavra do Outro.
Com isso tomamos a carta/letra como um objeto a. Talvez um dos
objetos a possíveis de se acrescentar à série de objetos inaugurada por
Freud, e a qual Lacan adicionou o olhar e a voz.
20 Laurent, E. “De la disparité dans l’amour”. Quarto. Revue de psychanalise publiée a Bruxelles: Litter –Letter – littoral, nº 92. Bruxelles: ECF- ACF em Belgique, avril 2008.
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