retÓrica, teoria da argumentaÇÃo e pathos: o problema … · 2018. 9. 4. · marcelo fernandes...

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Marcelo Fernandes Pires dos Santos RETÓRICA, TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO E PATHOS: O PROBLEMA DAS EMOÇÕES NO DISCURSO JURÍDICO Brasília 2015

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Page 1: RETÓRICA, TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO E PATHOS: O PROBLEMA … · 2018. 9. 4. · Marcelo Fernandes Pires dos Santos Retórica, Teoria da Argumentação e Pathos: o problema das emoções

Marcelo Fernandes Pires dos Santos

RETOacuteRICA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E PATHOS O PROBLEMA

DAS EMOCcedilOtildeES NO DISCURSO JURIacuteDICO

Brasiacutelia

2015

Universidade de Brasiacutelia ndash UnB

Faculdade de Direito ndash FD

RETOacuteRICA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E PATHOS O PROBLEMA

DAS EMOCcedilOtildeES NO DISCURSO JURIacuteDICO

Dissertaccedilatildeo apresentada como requisito

parcial agrave obtenccedilatildeo do grau de mestre no

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo da Faculdade

de Direito da Universidade de Brasiacutelia aacuterea

de concentraccedilatildeo ldquoDireito Estado e

Constituiccedilatildeordquo

Orientadora Prof Dra Claudia Rosane Roesler

Orientando Marcelo Fernandes Pires dos Santos

Brasiacutelia 2015

Marcelo Fernandes Pires dos Santos

Retoacuterica Teoria da Argumentaccedilatildeo e Pathos o problema das emoccedilotildees no discurso

juriacutedico

__________________________________________________

Professora Doutora Claudia Rosane Roesler

Orientadora

__________________________________________________

Professor Doutor Alexandre Veronese Aguiar

Examinador interno (UnB)

__________________________________________________

Professor Doutor Isaac Costa Reis

Examinador externo (UFSBA)

__________________________________________________

Professor Doutor Argemiro Cardoso Martins

Suplente (Unb)

Brasiacutelia 27 de maio de 2015

Para os meus pais

AGRADECIMENTOS

Agrave Prof Dra Claudia Rosane Roesler pela orientaccedilatildeo pelos ensinamentos

acerca do direito e da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica pelas observaccedilotildees precisas

durante a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo pela paciecircncia e pela convivecircncia acadecircmica nestes

dois uacuteltimos anos Serei sempre grato

Ao Prof Dr Guy Hamelin do Departamento de Filosofia da Universidade de

Brasiacutelia - UnB pelas inspiradoras aulas sobre Aristoacuteteles e os estoicos

Ao Prof Dr Marcelo Neves pelo seu trabalho teoacuterico criacutetico em relaccedilatildeo agrave

praacutetica juriacutedica brasileira e pelas instigantes aulas

Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisiccedilatildeo do

conhecimento Marcus Faro de Castro Juliano Zaiden Benvindo Argemiro Cardoso

Martins

Agrave Faculdade de Direito da UnB cujo processo seletivo me possibilitou realizar

esta dissertaccedilatildeo

Agrave Faculdade de Direito do Recife instituiccedilatildeo onde realizei a minha graduaccedilatildeo

A todos os amigos da Coordenaccedilatildeo-Geral Juriacutedica da Procuradoria-Geral da

Fazenda Nacional em especial Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa Vanessa

Silva de Almeida Ricardo Soriano de Alencar Daniel Neiva Freire Alexandre Budib

Henrique Crisoacutestomo de Macedo Aline Nascimento Cunha Mariana Massumi Maria

Emanuelle Pinheiro

Agrave minha famiacutelia pelo constante incentivo e apoio

Liacutengua aonde vais Salvar ou destruir a cidade

(proveacuterbio antigo)

ldquoPois o comeccedilo eacute tambeacutem um deus que enquanto permanece entre os homens tudo salvardquo

(Platatildeo Leis 775e)

7

Resumo

O projeto de racionalidade construiacutedo pela atual Teoria da Argumentaccedilatildeo

Juriacutedica eacute marcado fundamentalmente por um forte silecircncio a respeito das emoccedilotildees

um tema que passou a ser considerado nos tempos atuais um indiferente teoacuterico

embora tradicionalmente tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da eacutetica desde a

Antiguidade Essa moderna lacuna teoacuterica tem por consequecircncia a preocupante

incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar de avaliar e de

refletir a presenccedila das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e mais amplamente na praacutetica

juriacutedica Este estudo objetiva compreender por que as emoccedilotildees saiacuteram de cena da Teoria

da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e tentar fornecer razotildees para que elas sejam novamente

estudadas Assim eacute preciso investigar se elas seriam compatiacuteveis com uma

argumentaccedilatildeo juriacutedica racional e mais amplamente com a explanaccedilatildeo do sistema

juriacutedico Para atingir tal objetivo este estudo parte da filosofia antiga mais

especificamente do pensamento de Aristoacuteteles e da escola estoica a fim de entender

como ambos integraram a temaacutetica das emoccedilotildees na sua eacutetica e na sua retoacuterica Em

seguida investiga-se em que contexto histoacuterico surge a Moderna Teoria da

Argumentaccedilatildeo considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraccedilotildees

seguintes Almeja-se igualmente pesquisar a compreensatildeo da psicologia de nossa

eacutepoca sobre as emoccedilotildees Ao fim objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoccedilotildees

na argumentaccedilatildeo juriacutedica possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e

capacidade criacutetica a fim de melhorar a qualidade do discurso juriacutedico

Palavras-chave emoccedilotildees ndash teoria da argumentaccedilatildeo juriacutedica ndash retoacuterica ndash

psicologia ndash linguiacutestica

8

Abstract

The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is

marked fundamentally by strong silent about emotions a subject that has been

considered nowadays a theoretical indifferent although traditionally has been linked to

the study of speech and ethics since ancient times This modern theoretical gap has the

effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify

evaluate and reflect the presence of emotions in argument and more broadly in legal

practice This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation

Theory and try to provide reasons for them to be studied again Thus it is necessary to

investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and

more broadly with the explanation of the legal system To achieve this goal it is

necessary to study ancient philosophy specifically the thought of Aristotle and the Stoic

school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his

ethics and his rhetoric Then we investigate in which historical context comes the

Modern Theory of Argumentation considering the thought of its founders and the

following generations It aims also search to understand the psychology of our time on

emotions In the end the objective is to identify the good and bad use of emotions in

legal reasoning enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in

order to improve the quality of legal discourse

Key-words emotions ndash theory of legal argumentation ndash rhetoric ndash psychology ndash

linguistic

9

Lista de abreviaturas e siglas

ADI ndash Accedilatildeo direta de inconstitucionalidade

ADPF ndash Arguiccedilatildeo de descumprimento de preceito fundamental

CF ndash Constituiccedilatildeo Federal

MTA ndash Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica

SVF ndash Stoicorum Veterum Fragmenta

STF ndash Supremo Tribunal Federal

TAJ ndash Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica

10

SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 11

1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E

ESTOICA 14

11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees 14

12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos 19

13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica 30

14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica 40

2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A

INTERDISCIPLINARIDADE 57

21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo 57

22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as emoccedilotildees no

discurso 62

23 As emoccedilotildees falaciosas 68

24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso 74

25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees 84

26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees 92

3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO 100

31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito 100

32 Anaacutelise 109

321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo 109

322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo 115

323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo 120

33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica 125

4 CONCLUSAtildeO 139

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 145

11

INTRODUCcedilAtildeO

O atual interesse pela estrutura argumentativa das decisotildees judiciais eacute fruto da

crescente valorizaccedilatildeo no campo do direito da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica ndash TAJ

que nasceu na metade do seacuteculo XX pelos trabalhos de Theodor Viehweg Stephen

Toulmin Chaiumlm Perelman e Olbrechts-Tyteca

Pode-se dizer que o atual reconhecimento do caraacuteter argumentativo do direito

guarda relaccedilatildeo direta com a substantiva importacircncia adquirida pela TAJ Neste sentido

MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito eacute o fato de

ele ser uma disciplina argumentativa pois para tentar encontrar uma soluccedilatildeo juriacutedica

aos nossos problemas da vida comum precisamos primeiramente construir

proposiccedilotildees em consonacircncia com o sistema juriacutedico1

Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a

argumentaccedilatildeo das decisotildees judiciais com suporte no instrumental teoacuterico fornecido pela

TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padratildeo de racionalidade no

discurso juriacutedico Assim via de regra analisam-se em primeiro lugar os argumentos e

apoacutes procura-se avaliar se as decisotildees judiciais estatildeo adequadamente fundamentadas

investigam-se a coerecircncia interna da argumentaccedilatildeo a coerecircncia das decisotildees judiciais

dentro de um repertoacuterio de julgados assim como a capacidade de universalizaccedilatildeo das

premissas ao fim busca-se atingir um estado oacutetimo de consistecircncia argumentativa2

Todavia nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa natildeo ouvimos

falar a respeito das emoccedilotildees Nenhum dos atuais teoacutericos da TAJ disserta a respeito das

emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica teriam elas perdido definitivamente importacircncia na

vida do direito Eacute possiacutevel realizar uma anaacutelise e uma criacutetica do uso das emoccedilotildees numa

decisatildeo judicial As emoccedilotildees satildeo incompatiacuteveis com a TAJ e mais amplamente com a

racionalidade do direito As emoccedilotildees corromperiam o discurso juriacutedico e o ser humano

Este trabalho portanto insere-se na constataccedilatildeo de uma preocupante lacuna

teoacuterica da TAJ que consiste na ausecircncia de tematizaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees Assim com

o objetivo de tentar construir uma resposta que faccedila sentido para compreender por que

tal mateacuteria natildeo eacute mais teorizada e ao mesmo tempo por que ela deveria ser

(novamente) teorizada precisaremos realizar um especiacutefico percurso nos Capiacutetulos I e II

desta dissertaccedilatildeo

1 MACCORMICK Neil Rhetoric and the rule of law New York Oxford University Press 2010 p 14

2 ATIENZA Manuel Curso de argumentacioacuten juriacutedica Madrid Editorial Trotta 2013 p 553-557

12

No Capiacutetulo I propomos fazer um retorno agrave Antiguidade a fim de entender

primeiramente em que contexto histoacuterico surge e se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto a

discussatildeo das emoccedilotildees

Em seguida tendo em vista a sua importacircncia histoacuterica para a TAJ iremos

analisar o tema sob comento na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de examinar como o

Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto especialmente tentando identificar (i) a

importacircncia das emoccedilotildees na referida obra aristoteacutelica (ii) a concepccedilatildeo de emoccedilatildeo

utilizada (iii) as influecircncias filosoacuteficas de tal concepccedilatildeo (iv) a maneira pela qual as

emoccedilotildees devem ser utilizadas no discurso e (v) os fundamentos psicoloacutegicos do tema

Apoacutes iremos investigar nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco em que medida

as emoccedilotildees satildeo importantes para a vida moral do indiviacuteduo tentando entender se para

Aristoacuteteles eacute suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito

a aspectos estritamente racionais Nesse toacutepico iremos analisar como o Estagirita divide

a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua eacutetica das virtudes Ao fim

tentaremos identificar se o tratamento teoacuterico das emoccedilotildees na Eacutetica a Nicocircmaco eacute

compatiacutevel com aquele presente na retoacuterica

Tendo realizada a investigaccedilatildeo do tema na retoacuterica e na eacutetica aristoteacutelica iremos

realizar um contraponto teoacuterico com a filosofia estoica que advogava que as emoccedilotildees

deveriam ser eliminadas da vida comum Assim considerando a ausecircncia de

tematizaccedilatildeo contemporacircnea das emoccedilotildees tanto na TAJ quanto no direito tentar entender

por que aquela escola filosoacutefica firmou tal posicionamento contribui para a reflexatildeo

acerca de nossa atual compreensatildeo da mateacuteria Desse modo iremos analisar a eacutetica

estoica a fim de apreender a sua noccedilatildeo de virtude e de viacutecio os seus fundamentos

psicoloacutegicos e a construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio objetivando perceber de que

modo todo esse pensamento influenciou a retoacuterica estoica

Ao fim do Capiacutetulo I procuraremos realizar uma comparaccedilatildeo entre o

pensamento aristoteacutelico e o estoico tentando evidenciar o grau de importacircncia que

ambos conferiam agraves emoccedilotildees Ademais registre-se que o Capiacutetulo I forneceraacute o

fundamento filosoacutefico em relaccedilatildeo ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste

trabalho a fim de proporcionar reflexatildeo comparaccedilatildeo e criacutetica

O Capiacutetulo II teraacute um vieacutes mais praacutetico e examinaraacute especificamente a Moderna

Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash MTA com o objetivo de (i) compreender em que contexto

histoacuterico surge tal saber teoacuterico e qual tipo de discurso era predominante agrave sua eacutepoca

(ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoccedilotildees (iii) qual

13

disciplina especiacutefica foi responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees no acircmbito da MTA

(iv) quais as reaccedilotildees teoacutericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as

emoccedilotildees no acircmbito da MTA (v) o que a psicologia do nosso tempo mais

especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo (psicologia cognitiva) poderia nos informar

acerca da racionalidade das emoccedilotildees Destaque-se que este Capiacutetulo teraacute por objetivo

tambeacutem localizar criteacuterios para anaacutelise e avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso

juriacutedico

No Capiacutetulo III jaacute com a compreensatildeo teoacuterica possibilitada pelos Capiacutetulos I e

II iremos abordar no primeiro toacutepico a importacircncia das emoccedilotildees para o direito

tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de

nossa praacutetica juriacutedica Ademais tentaremos responder se o modelo estoico analisado no

Capiacutetulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturaccedilatildeo do ordenamento juriacutedico

No segundo toacutepico iremos examinar com suporte no instrumental colhido no Capiacutetulo

II trecircs julgados do Supremo Tribunal Federal no afatilde de explicitar a presenccedila de

argumentos emotivos O terceiro toacutepico estaraacute reservado a tecer consideraccedilotildees criacuteticas

aos julgados bem como tentar fornecer uma respostar teoacuterica acerca da eacutetica das

emoccedilotildees na decisatildeo e na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Ao fim deste trabalho aleacutem de responder os problemas acima elencados

procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relaccedilatildeo entre

as emoccedilotildees e o discurso juriacutedico e mais amplamente o direito a fim de possibilitar a

melhoria da qualidade do discurso juriacutedico brasileiro e o surgimento de um debate

qualificado com a manutenccedilatildeo de uma perspectiva criacutetica sobre o tema das emoccedilotildees

14

1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E

ESTOICA

11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees

O primeiro problema que se impotildee quando pretendemos falar a respeito da

origem da retoacuterica diz respeito ao proacuteprio significado da palavra ldquoretoacutericardquo Ou seja de

qual ldquoretoacutericardquo falamos quando investigamos sua origem A palavra nos dias de hoje

possui muacuteltiplos significados sendo sem duacutevida o mais saliente aquele em que

preponderam afetos negativos Assim retoacuterica eacute sobretudo usado para designar um

discurso vazio (sem conteuacutedo) mentiroso falacioso incoerente apenas ornamental isto

eacute uma mera fachada linguiacutestica para uma verdadeira armadilha de intenccedilotildees

Essa carga semacircntica pejorativa tambeacutem eacute denunciada por Knudsen que lista

trecircs atuais usos da expressatildeo 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e ao

mesmo tempo superficial que mascara um conteuacutedo vazio e enganoso normalmente

atribuiacutedo a um poliacutetico ou a um conferencista 2) um conjunto de figuras de linguagem

encontrado na literatura cuja aplicabilidade se limita ao espaccedilo de sala-de-aula 3) uma

significaccedilatildeo mais ampla para se referir a discursos especiacuteficos em relaccedilatildeo a um tema ou

a um autor ldquoa retoacuterica do oacutediordquo ldquoa retoacuterica do Supremo Tribunal Federalrdquo ldquoa retoacuterica

do Presidente Obamardquo3

Assim a fim de cumprir nosso intento um bom ponto de partida seria tentar

localizar a primeira vez em que a palavra retoacuterica foi utilizada num texto escrito

Segundo Timmerman-Schiappa e considerando os fragmentos textuais que nos foram

legados atraveacutes do tempo o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela primeira vez em Goacutergias de

Platatildeo no iniacutecio do seacuteculo IV aC sendo provaacutevel que o proacuteprio Platatildeo tenha

inventando o termo pois eacute atribuiacuteda ao autor da Repuacuteblica a criaccedilatildeo de uma seacuterie de

palavras com terminaccedilatildeo -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode

significar pessoa com uma especiacutefica habilidade)4

Fazendo referecircncia a uma pesquisa do vocabulaacuterio grego realizada por Pierre

Chantraine em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminaccedilatildeo -ikos

Schiappa lembra que mais de 250 natildeo foram localizadas antes de Platatildeo ldquoUma pesquisa

3 KNUDSEN Rachel Homeric speech and the origin of rhetoric Baltimore John Hopkins University

Press 2014 p 1 4 TIMMERMAN David M SCHIAPPA Edward Classical greek rhetorical theory and the

disciplining of discourse New York Cambridge University Press 2010 p 9

15

feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae

sugere que as palavras gregas para eriacutestica (eristikecirc) dialeacutetica (dialektikecirc) e antilogikecirc

assim como retoacuterica originaram-se nas obras de Platatildeordquo5

Desse modo e partindo das referidas fontes o termo rhecirctorikecirc foi primeiramente

utilizado por Platatildeo para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em

puacuteblico para fins de convencimento especialmente perante assembleias tribunais e

demais ocasiotildees especiais No Fedro por exemplo Soacutecrates destaca que a retoacuterica eacute

ldquo[] uma arte de conduzir as almas atraveacutes das palavras mediante o discurso []rdquo6 E

posteriormente em Aristoacuteteles ldquo[] a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada

caso com o fim de persuadirrdquo7 Assim a partir destes dois filoacutesofos a retoacuterica surge com

o status de um saber munido com vocabulaacuterio proacuteprio para anaacutelise do discurso

Eacute com Platatildeo tambeacutem que ocorre a conhecida cisatildeo entre retoacuterica e filosofia A

palavra rhecirctorikecirc jaacute no seu nascedouro surge para fins bem precisos isto eacute para

demarcar o campo de uma teacutecnica (techne) moralmente questionaacutevel que lida com a

opiniatildeo (doxa) e que leva atraveacutes da palavra as pessoas ao engano em contraste com a

refinada atividade do filoacutesofo cuja base de reflexatildeo estaacute fundada sob o domiacutenio da

verdade (aletheia) Em Goacutergias e no Fedro satildeo oferecidos vaacuterios exemplos da figura do

retoacuterico como algueacutem que obteacutem sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os

outros

Antes de rhecirctorikecirc o termo mais abrangente utilizado para se referir agrave atividade

do discurso nos textos do seacuteculo V era logos que possui distintos significados na

tradiccedilatildeo grega ldquoeacute qualquer coisa que eacute lsquoditarsquo mas isso pode ser uma palavra uma frase

uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteirordquo8 Logos estaacute assim

relacionado com o conteuacutedo e natildeo com aspectos estiliacutesticos ou esteacuteticos comporta a

ideia de razatildeo argumento ordem O ensino de artes verbais no seacuteculo V aC

associado ao logos portanto natildeo diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca

5 ldquoA computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the

Greek words for eristic (eristikecirc) dialectic (dialektikecirc) and antilogic (antilogikecirc) like rhetoric originate

in Platorsquos worksrdquo (trad livre) Id ibid p 9-10 No sentido de que o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela

primeira vez na obra platocircnica cf COLE Thomas The origins of rhetoric in ancient greek Baltimore

The John Hopkins University Press 1991 6 PLATAtildeO Fedro trad Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees editores 2000 p 90

7 ARISTOacuteTELES Retoacuterica trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 12 8 ldquoit is anything that is lsquosaidrsquo but that can be a word a sentence part of a speech or of a written work or a

whole speechrdquo (trad livre) KENNEDY George A A New History of classical rhetoric New Jersey

Princeton University Press 1994 p 11

16

pela verdade conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distinccedilatildeo platocircnica

entre os fins da retoacuterica e os fins da filosofia9

Assim enquanto a retoacuterica emerge firmemente relacionada com significados

pejorativos logos sempre desfrutou de uma boa reputaccedilatildeo Os sofistas exultavam o

poder que ele possuiacutea segundo Goacutergias logos podia espantar o medo e a tristeza

incutir a compaixatildeo e o prazer10

Isoacutecrates reforccedilava o seu poder e prestiacutegio na vida

puacuteblica ldquoaqueles que satildeo haacutebeis no discurso natildeo satildeo apenas homens de poder em suas

proacuteprias cidades mas satildeo tambeacutem tidos em grande estima em outros estadosrdquo11

Mas se eacute possiacutevel numa anaacutelise textual atribuir a cunhagem da palavra retoacuterica

a Platatildeo eacute possiacutevel inferir de outra parte que a referida palavra grega soacute pode surgir

quando a atividade a que se refere jaacute estava bem consolidada na sociedade Assim a

origem que buscamos passa a ser natildeo mais da palavra mas de eventos que

supostamente deram o iniacutecio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade

Foi na Siacutecilia por volta de 426 aC que ocorreu o evento que impulsionou a

fundaccedilatildeo da retoacuterica apoacutes a expulsatildeo de tiranos que dominavam politicamente a

mencionada regiatildeo as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e

tribunais a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime

ditatorial Os sicilianos Corax e Tiacutesias cientes desta necessidade foram os primeiros a

organizar isso num meacutetodo criando preceitos teoacutericos que almejavam o sucesso da fala

em puacuteblico por meio da divisatildeo do discurso do uso de argumentos de probabilidades e

de outras mateacuterias12

A novidade teoacuterica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Goacutergias quanto

pelo proacuteprio Tiacutesias que parece ter ensinado Liacutesias e Isoacutecrates Por sua vez o manual

(ou manuais) de Corax e Tiacutesias era conhecido por Aristoacuteteles que os resumiu em seu

perdido Synagoge Technon (Coleccedilatildeo de Artes) que a partir de entatildeo passou a ser o

referencial teoacuterico sobre o assunto13

Ciacutecero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa

anaacutelise das regras coletadas nos manuais antigos de retoacuterica incluindo o de Tiacutesias

9 TIMMERMAN D M op cit p 10-11

10 KENNEDY G Op cit p 25

11 ldquothose who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in

honour in other statesrdquo(48-51) (trad livre) Cf ISOCRATES Panegyricus New York Harvard

Univesity Press vol 1 trad George Norlin 1928 p 149 12

CICERO Brutus trad J L Hendrickson CambridgeLondon Harvard University Press 46 1962 p

49 13

GAGARIN Michael Background and origins oratory and rhetoric before the sophists in

WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p

30

17

tendo superado os autores originais em clareza brevidade e estilo motivo pelo qual

apenas os escritos aristoteacutelicos passaram a ser consultados14

Todavia essa tradicional explanaccedilatildeo sobre os primeiros organizadores da arte

retoacuterica tem sido recentemente objeto de revisatildeo em virtude da inconsistecircncia das

fontes histoacutericas Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para

Tiacutesias uma vez que alguns escritos apenas fazem referecircncia a este uacuteltimo ou se Corax

realmente existiu era preocupado com argumentos de probabilidade15

Essa polecircmica a respeito da real identidade dos autores poreacutem natildeo eacute oacutebice para

assinalar o que se procura aqui dizer a partir de um determinado momento o discurso

eficiente isto eacute a fala articulada que almeja persuasatildeo passou a ser extremamente

valorizada na cultura antiga Se pudermos conjecturar que ao reivindicar a reaquisiccedilatildeo

da propriedade perdida apoacutes a expulsatildeo dos tiranos na Siciacutelia uma pessoa poderia ter

melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do conteuacutedo do discurso podemos

entender o quatildeo dramaacutetica era a necessidade de aperfeiccediloamento desta atividade

Assim a expulsatildeo dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela

restauraccedilatildeo de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a

organizaccedilatildeo teoacuterica de uma atividade que posteriormente Platatildeo iraacute designar de

retoacuterica Mas ainda assim natildeo podemos relevar que no ambiente grego outros fatores

jaacute demarcavam a forte presenccedila do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade

Contra a tradicional tese de que a retoacuterica surgiu no seacuteculo V aC com Corax e

Tiacutesias ou de que a retoacuterica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de

Platatildeo e Aristoacuteteles no seacuteculo IV aC por meio de um vocabulaacuterio especiacutefico

governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas Knudsen advoga a ideia

de que o nascedouro da retoacuterica se localiza na obra de Homero

O seu posicionamento no entanto natildeo consiste na defesa de que Homero seria

uma inspiraccedilatildeo para a retoacuterica ou um exemplo da existecircncia na eacutepoca de uma forte

cultura de eloquecircncia mas de que o narrador homeacuterico jaacute apresenta o discurso como

ldquo[] uma habilidade teacutecnica que deve ser ensinada e aprendida e que varia de acordo

com o orador a situaccedilatildeo e o auditoacuteriordquo16

Assim os personagens de Homero na Iliacuteada

14

CICERO On Invention trad H M Hubbel CambridgeMassachusetts Harvard University Press

1949 (II 6) p 171 15

COLE Thomas Who was corax In Illinois classical studies vol 16 1991 p 65-84 16

ldquo[hellip] a technical skill one that must be taught and learned and one that varies according to speaker

situation and audiencerdquo KNUDSEN R Op cit p 4

18

apresentam a retoacuterica na praacutetica enquanto Aristoacuteteles posteriormente apresenta a

retoacuterica em teoria

No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero no seacuteculo II dC o pseudo-

Plutarco teria feito o registro mais antigo a respeito do viacutenculo da obra de Homero com

a retoacuterica

Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso

poliacutetico eacute uma funccedilatildeo da arte retoacuterica pois esta eacute o poder de falar de

maneira persuasiva e quem mais senatildeo Homero estabeleceu sua

proeminecircncia nisso Ele ultrapassou todos os outros em

grandiloquecircncia e seu pensamento dispotildee do mesmo poder que sua

dicccedilatildeo17

Por sua vez no seguinte trecho da Iliacuteada pode-se observar que as caracteriacutesticas

do discurso de Odisseu e de Menelau satildeo finamente analisadas pelo narrador

demonstrando que a fluecircncia a clareza a concisatildeo a prolixidade a objetividade a

gestualidade satildeo fatores jaacute claramente distinguiacuteveis na fala e na figura do orador

Quando urdiam discursos e expunham ideias

Menelau era fluente e claro mas conciso

natildeo sendo um homem multipalavroso nem

dispersivo e tambeacutem por ser ele o mais moccedilo

Quando Odisseu poreacutem multiardiloso punha-se

de peacute para falar fixava o olhar no chatildeo

mantendo o cetro imoacutevel (nem para traacutes nem

para diante o inclinava) parecia um ruacutestico

algueacutem desatinado ou fraco de cabeccedila

Mas quando a voz do peito emitia poderosa

palavras como copos-de-neve no inverno

ningueacutem nenhum mortal o igualaria18

Knudsen todavia vai aleacutem e se dedica a analisar os discursos diretos da Iliacuteada a

fim de demonstrar que todos os recursos retoacutericos (entimema paradigma diathesis

toacutepicos ethos etc) identificados por Aristoacuteteles jaacute estavam presentes na estrutura

literaacuteria de Homero19

Ao examinar outras obras literaacuterias do mundo antigo tais como a

Epopeacuteia de Gilgamesh o Shujing o Maabaacuterata demonstra que o emprego de recursos

17

ldquoPolitical discourse is a function of the craft (τέχνη) of rhetoric which Homer seems to have been the fi

rst to understand for if rhetoric is the power to speak persuasively who more than Homer has established

his preeminence in this He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same

power as his dictionrdquo (trad livre) PSEUDO-PLUTARCO Essays 161 apud KNUDSEN Id ibid p 22 18

HOMERO Iliacuteada trad Haroldo de Campos III vol 1 Satildeo Paulo Benviraacute 2002 p 212-223 19

ldquoMy overarching contention is that the Iliad through the direct speeches of its characters demonstrates

a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be

categorized as ldquorhetoricrdquo in the fourth century in particular these techniques closely match the system

explicated in Aristotlersquos Rhetoricrdquo KNUDSEN R Op cit p 84

19

retoacutericos nestas uacuteltimas eacute extremamente pobre se comparado agrave Iliacuteada Assim destaca

que natildeo se pode explicar o sofisticado sistema retoacuterico encontrado em Homero sob a

justificativa da existecircncia de um modelo retoacuterico universal Vale dizer a tese segundo a

qual haacute um padratildeo de convencimento supostamente presente em todos os discursos e

que seriam inerentes agrave natureza humana natildeo consegue ser extensiacutevel para a realidade

literaacuteria de outras obras antigas20

Assim esse hiperdesenvolvimento de um padratildeo retoacuterico nos discursos da Iliacuteada

pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favoraacutevel agrave cultura da

competiccedilatildeo do debate e da liberdade como ocorria de forma bastante original na

Greacutecia e natildeo encontrava correspondente em culturas orientais ldquodesde as primeiras

poesias gregas ateacute a oratoacuteria juriacutedica e poliacutetica da era claacutessica tardia [] a Greacutecia antiga

funcionava como uma lsquocultura de debatersquo em que o poder era conquistado e negociado

atraveacutes do discurso persuasivordquo 21

Segue-se por isso que eacute conveniente falar natildeo da ldquoorigemrdquo mas das ldquoorigensrdquo

da retoacuterica Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do

debate natildeo eacute de se impressionar que a retoacuterica tenha sido criada e amadurecida neste

ambiente havendo para ela portanto vaacuterios iniacutecios possiacuteveis vale dizer um iniacutecio na

filosofia um iniacutecio na poesia eacutepica um iniacutecio enquanto evento histoacuterico

No entanto para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quatildeo importante

era nas suas origens a necessidade de dominar na vida puacuteblica o discurso eficiente Eacute

por essa razatildeo que a anaacutelise das emoccedilotildees (pathos) emerge na obra aristoteacutelica jaacute que

apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e por isso retoacuterico a

compreensatildeo sobre as emoccedilotildees se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto

12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos

Preliminarmente e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar

mais de perto do tema central deste trabalho eacute oportuno registrar que a origem do termo

grego pathos sob cujo signo Aristoacuteteles trata o tema das emoccedilotildees se encontra no verbo

paschein que significa ldquosofrerrdquo e nessa medida explicita o caraacuteter passivo do

20

KNUDSEN R Op cit p 101 21

ldquoFrom the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and

much later the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic) ancient Greece functioned

as a ldquodebate culturerdquo one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive

speechrdquo (trad livre) KNUDSEN R Id ibid p 101

20

fenocircmeno emotivo22

Nos trechos a seguir transcritos observa-se que o Estagirita utiliza

o termo no sentido exposto ou seja em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees o sujeito estaacute em situaccedilatildeo

de passividade isto eacute ele eacute afetado movido por elas

Entatildeo um homem que enrubesce em virtude de vergonha natildeo eacute

chamado de enrubescido nem aquele que empalidece diante do medo

de paacutelido ao contraacuterio diz-se que ele foi de algum modo afetado

Portanto tais coisas satildeo chamadas de afecccedilotildees [pathecirc] e natildeo

qualidades23

Acrescente-se a estas consideraccedilotildees que dizemos que somos afetados

em funccedilatildeo das emoccedilotildees poreacutem natildeo dizemos que somos afetados em

funccedilatildeo das virtudes e dos viacutecios mas que nos dispomos de um certo

modo24

Saliente-se que aleacutem de ldquoemoccedilatildeordquo pathos tradicionalmente tambeacutem eacute traduzido

por ldquoafecccedilatildeordquo ou ldquoafeiccedilatildeordquo assim como tambeacutem por ldquopaixatildeordquo que vem do latim passio

sendo que nestas duas uacuteltimas traduccedilotildees (ldquoafecccedilatildeordquo e ldquopaixatildeordquo) diferentemente de

ldquoemoccedilatildeordquo persiste de certo modo aquele sentido de passividade25

De outra parte eacute interessante tambeacutem acrescentar que a temaacutetica das emoccedilotildees eacute

algo que perpassa toda a obra aristoteacutelica pois se encontra presente na Eacutetica na

Retoacuterica na Psicologia na Filosofia da Natureza na Teoria Poeacutetica Poreacutem a despeito

disso Aristoacuteteles natildeo apresenta nenhum conceito de emoccedilatildeo preferindo algumas

vezes introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos Por isso esclarece Rapp

natildeo se pode falar de boa consciecircncia de uma ldquoTeoria das Emoccedilotildees de Aristoacutetelesrdquo mas

de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26

Assim tendo realizado brevemente tais anotaccedilotildees preliminares conveacutem registrar

que eacute sobre o que convence em cada caso no discurso de que se ocupa a retoacuterica

Aristoacuteteles logo na abertura de sua obra afirma que todas as pessoas estatildeo submetidas

agraves regras da retoacuterica pois eacute impossiacutevel em vida natildeo passar pela experiecircncia de ter que

22

RAPP Cristof Aristoteles Bausteine fuumlr eine Theorie der Emotionen In LANDWEE Hilge RENZ

Ursula (hrsg) Klassische emotionstheorien von Platon bis Wittgenstein BerlinNew York Walter de

Gruyter 2008 p 48 23

ldquoThus a man who reddens through shame is not called ruddy nor one who pales in fright pallid rather

he is said to have been affected somehow Hence such things are called affections but not qualitiesrdquo (trad

livre) Cf ARISTOTELES Categories In BARNES J (ed) The complete works of Aristotle trad J

L Akrill (9b20-9b32) Princeton Princeton University Press 1991 p 17 24

ARISTOTELES Eacutethica nicomachea I13-III8 tratado da virtude moral trad Marco Zingano Satildeo

Paulo Odysseus 2008 p 48-49 (11065-7) 25

RAPP C Op cit p 48 Cf TIELEMAN Teun Chrysippusrsquo on affection reconstruction and

interpretation Leiden Brill 2003 p 15 26

RAPP C Op cit p 47 Adverte-se o leitor previamente que natildeo iremos utilizar neste trabalho um

conceito normativo de emoccedilatildeo Embora ao longo da obra algumas caracteriacutesticas das emoccedilotildees sejam

evidenciadas natildeo haveraacute o fechamento de um conceito

21

defender ou atacar argumentos Poreacutem enquanto alguns fazem esta atividade de forma

irrefletida ou entatildeo de modo mais consciente por meio de uma praacutetica conquistada pelo

haacutebito eacute possiacutevel fazecirc-la estruturadamente atraveacutes de um meacutetodo que analisaria por que

algumas pessoas obteacutem tanto sucesso ao discursarem Desse modo para Aristoacuteteles a

retoacuterica eacute uma arte (techne) ou seja ldquo[] um corpo de regras e princiacutepios gerais que

podem ser conhecidos pela razatildeordquo27

contrariando assim Platatildeo para quem a retoacuterica se

reduziria a uma mera habilidade que natildeo se submete agrave razatildeo nem consegue explicar as

causas e os motivos do que faz

Sobre a parte que especificamente eacute objeto de nosso interesse isto eacute a

explanaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees conveacutem examinar os Livros I e II da Retoacuterica

Primeiramente urge compreender como o assunto eacute introduzido no Capiacutetulo I do Livro

I e depois como ele eacute desenvolvido tanto no Capiacutetulo II por intermeacutedio da doutrina

dos meios de convencimento quanto no Livro II no detalhamento das emoccedilotildees em

espeacutecie O objetivo de nossa exposiccedilatildeo consiste em traccedilar um panorama geral das

emoccedilotildees no campo da retoacuterica

Com efeito Aristoacuteteles introduz o tema no Capiacutetulo I do Livro I por meio de

uma forte criacutetica aos tratados de retoacuterica de sua eacutepoca que se preocupavam mais em

instigar os acircnimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto

de controveacutersia Ele nomina essas distraccedilotildees do discurso como questotildees exteriores ou

natildeo essenciais ao assunto pois sobre a verdadeira substacircncia da persuasatildeo retoacuterica que

satildeo os entimemas tais manuais nada tratam

O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados que

ele natildeo menciona fossem aplicadas em todas as unidades poliacuteticas aqueles autores de

retoacuterica praticamente nada teriam a dizer Assim para Aristoacuteteles estaria

terminantemente proibido ldquoperverterrdquo o juiz atraveacutes da ira do oacutedio da compaixatildeo e de

outros estados da alma Enfatize-se que as traduccedilotildees aqui consultadas utilizam sempre a

palavra ldquoperverterrdquo que daacute ideia de corromper a cogniccedilatildeo do julgador porque a partir

do momento em que o julgador estiver possuiacutedo por determinado estado mental

(compaixatildeo ira etc) ele estaraacute impossibilitado de conhecer de modo isento o fato

Jaacute no Capiacutetulo II em prosseguimento Aristoacuteteles relaciona as emoccedilotildees como

um dos meios de prova na seguinte classificaccedilatildeo

27

ldquo[hellip] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by

reasonrdquo(trad livre) GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric I a commentary New York

Fordham University Press 1980 p 4

22

Das pisteis produzidas atraveacutes do discurso existem trecircs espeacutecies

algumas residem no caraacuteter [ecircthos] do orador outras na forma em que

dispotildeem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de espiacuterito e

outras no discurso [logos] em si demostrando ou aparentando

demostrar algo28

Eacute apropriado notar que Aristoacuteteles natildeo menciona explicitamente as emoccedilotildees

neste trecho Desse modo parece bastante pertinente a observaccedilatildeo de Knudsen que

prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis porque

literalmente eacute o termo utilizado no texto por Aristoacuteteles Assim diathesis eacute uma

expressatildeo mais abrangente que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade agrave

psicologia do auditoacuterio e nesse sentido englobaria pathos29

No entanto a despeito da observaccedilatildeo a respeito da palavra diathesis feita por

Knudsen Aristoacuteteles logo em seguida explana que ldquo[] persuade-se pela disposiccedilatildeo

dos ouvintes quando estes satildeo levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso []rdquo30

parecendo-nos portanto mais interessante insistir nesse uacuteltimo termo (pathos) como

meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago que

englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicoloacutegica

Em seguida isto eacute apoacutes vincular a ideia de persuasatildeo pela disposiccedilatildeo dos

ouvintes com as emoccedilotildees Aristoacuteteles conclui no sentindo de que nosso juiacutezo varia de

acordo com o nosso estado mental Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza

pelo amor ou pelo oacutedio estaacute diretamente relacionado ao juiacutezo que iremos formular sobre

o assunto

Logo aqui conveacutem registrar certa surpresa ao observar que a despeito da criacutetica

inicial no Capiacutetulo I Aristoacuteteles inclui sem diferenccedila hieraacuterquica as emoccedilotildees ao lado

do ethos e do logos como meios de convencimento O espanto no entanto apenas

aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retoacuterica se destina a tratar

em peacute de igualdade as emoccedilotildees com os entimemas Sobre essa suposta contradiccedilatildeo

muito pode ser comentado

Tentando compreender a questatildeo Fortenbaugh reuacutene trecircs respostas jaacute oferecidas

para esse problema A primeira hipoacutetese entende que no Capiacutetulo I do Livro I

Aristoacuteteles defende um modelo de retoacuterica ideal em que apenas sejam utilizados

argumentos que tratem do assunto objeto de controveacutersia sendo que este modelo ideal eacute

deixado de lado no Capiacutetulo II quando se fala do discurso poliacutetico em que se faria

28

ARISTOacuteTELES Retoacuterica apud KNUDSEN R Op cit p 39 29

KNUDSEN R Id ibid p 39 30

ARISTOacuteTELES Retoacuterica Op cit 2012 p 13

23

necessaacuterio o uso de apelos emotivos31

Na segunda hipoacutetese Aristoacuteteles dirigiria o seu

criticismo aos contemporacircneos que utilizam as emoccedilotildees por meios natildeo-discursivos

(choros laacutegrimas rostos irocircnicos)32

A terceira resposta preferida por Fortenbaugh seria no sentido de uma evoluccedilatildeo

do pensamento aristoteacutelico Inicialmente Aristoacuteteles teria visto as emoccedilotildees de uma

forma negativa e incompatiacutevel com uma argumentaccedilatildeo baseada na razatildeo Poreacutem

durante o periacuteodo em que frequentou a Academia de Platatildeo sabe-se que a relaccedilatildeo entre

emoccedilatildeo e pensamento era objeto de estudo o que provavelmente o levou a ter uma

visatildeo mais favoraacutevel sobre as emoccedilotildees Assim se a tarefa do orador eacute convencer o

ouvinte e isso eacute feito por intermeacutedio de uma mudanccedila de pensamento entatildeo nada

haveria de errado em fazecirc-lo por meio do emprego de argumentos razoaacuteveis que

resultaria numa resposta emocional positiva dos destinataacuterios33

Levando isso em

consideraccedilatildeo eacute possiacutevel que Aristoacuteteles tenha escrito suas primeiras criacuteticas agraves emoccedilotildees

num tratado hoje em dia perdido e posteriormente ao desenvolver a doutrina dos trecircs

meios de convencimento transferiu tais observaccedilotildees ao atual manual sem realizar uma

completa adaptaccedilatildeo do tema34

De outra parte tambeacutem se cogita que os capiacutetulos desenvolvidos por Aristoacuteteles

fossem na verdade alternativos sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou

entatildeo que o Capiacutetulo I era natildeo apenas inconsistente com o que segue (Capiacutetulo II) mas

que ambos se destinavam a puacuteblicos diferentes Konstan assevera que essa duacutevida talvez

seja impossiacutevel de solucionar embora seja razoaacutevel afirmar que ao tratar das emoccedilotildees

no Livro II Aristoacuteteles jaacute pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35

Frede por sua vez demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as

emoccedilotildees tenham recebido tanta atenccedilatildeo na Retoacuterica de modo que formula as seguintes

indagaccedilotildees ldquoIsso eacute uma mera concessatildeo com os maus caminhos do mundo realrdquo ldquoSe o

inimigo o faz devo estar preparado para tambeacutem fazerrdquo36

Ela no entanto registra que

em nenhum momento Aristoacuteteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o

discurso limitando-se a fazer um registro teacutecnico das emoccedilotildees

31

FORTENBAUGH W W Aristotlersquos art of rhetoric In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to

greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 117 32

Id ibid p 117 33

Id ibid p 118 34

Id ibid p 118 35

KONSTAN David Rhetoric and emotion In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek

rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 414 36

FREDE Dorothea Mixed feelings in Aristotlersquos rhetoric In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays

on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 264

24

De fato embora exista uma ruptura de pensamento entre a criacutetica inicial agraves

emoccedilotildees e o seu posterior desenvolvimento nos capiacutetulos subsequentes acreditamos

que natildeo haacute motivo para largar pelo menos aquela censura direcionada ao uso das

emoccedilotildees com o objetivo de fugir das questotildees essenciais objeto de controveacutersia De

todo modo tal mudanccedila de entendimento permanece de difiacutecil explicaccedilatildeo e conforme

assevera Hall o novo posicionamento fez com que Aristoacuteteles possivelmente

influenciado por Platatildeo tenha elegido as emoccedilotildees um dos objetos centrais da retoacuterica37

Ainda sobre a importacircncia quantitativa e qualitativa que as emoccedilotildees adquirem na

retoacuterica aristoteacutelica se pensarmos que pathos eacute tema especificamente pertencente a uma

das partes da alma e por isso esperariacuteamos encontrar na obra psicoloacutegica de

Aristoacuteteles que eacute a ldquoDe Animardquo (Sobre a Alma) o seu desenvolvimento mais completo

e detalhado teremos uma certa decepccedilatildeo ao observar que no seu suposto habitat

especiacutefico a mateacuteria encontra um tratamento extremamente acanhado

comparativamente agravequele encontrado na Retoacuterica A este respeito Cooper anota ser

desapontante a abordagem do tema em ldquoDe Animardquo38

e Konstan chega a dizer que

curiosamente o melhor local para encontrar uma boa discussatildeo sobre emoccedilotildees nas

obras antigas eacute justamente nos livros de retoacuterica

Se vocecirc deseja consultar uma discussatildeo grega ou romana sobre

emoccedilotildees o lugar para procurar natildeo eacute ndash como se poderia esperar ndash em

um tratado de psicologia ou em termos claacutessicos ldquoSobre a Almardquo

(por exemplo De anima de Aristoacuteteles) mas sim um ensaio sobre

retoacuterica Em primeiro lugar no lado grego haacute a proacutepria Retoacuterica de

Aristoacuteteles com o seu tratamento detalhado no Livro II de uma duacutezia

ou mais de diferentes emoccedilotildees Na literatura latina Ciacutecero examina as

emoccedilotildees no seu De inventione assim como em outros ensaios de

oratoacuteria embora tambeacutem as trate com algum detalhe no seu diaacutelogo

filosoacutefico As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4)

Mais tarde no seacuteculo III DC um tal Apsines ndash se este eacute o seu nome

verdadeiro ndash pesquisou as emoccedilotildees em elaborado detalhe como parte

de um extenso livro sobre retoacuterica (apenas uma porccedilatildeo restou

especialmente a parte que trata da compaixatildeo)39

37

HALL Jon Oratorical delivery and the emotions theory and practice In DOMINIK William HALL

Jon (ed) A companion to roman rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 232 38

COOPER John M An aristotelian theory of the emotions In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed)

Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 238 39

ldquoIf you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions the place to look is not

ndash as one might have expected ndash in a treatise on psychology or in classical terms lsquoOn the Soulrsquo (for

example Aristotlersquos De anima) but rather an essay on rhetoric First and foremost on the Greek side

there is Aristotlersquos own Rhetoric with its detailed treatment in Book 2 of a dozen or more different

passions In Latin literature Cicero examines the emotions in his youthful De inventione as well as in

other essays on oratory although he also treats them at some length in his philosophical dialogue The

Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4) As late as the third century AD a certain Apsines ndash if

that is his true name ndash surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on

25

Por sua vez passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II

Aristoacuteteles principia afirmando que por ser o objetivo da retoacuterica formar um juiacutezo no

ouvinte para a tomada de decisatildeo o orador natildeo deve apenas se concentrar na tarefa de

fazer criacutevel e persuasivo o seu argumento (logos) mas tambeacutem deve se preocupar tanto

com a sua proacutepria imagem tendo em vista que o seu caraacuteter (ethos) tambeacutem eacute objeto de

julgamento das pessoas quanto com a necessidade de colocar os destinataacuterios numa

determinada disposiccedilatildeo mental (pathos) reafirmando assim a doutrina dos trecircs meios

de convencimento Logo em seguida coloca esta uacuteltima forma de convencimento

(pathos) como de grande importacircncia para a oratoacuteria judicial

O relevo conferido ao trabalho retoacuterico dirigido agrave disposiccedilatildeo mental dos ouvintes

eacute devidamente esclarecido sem mais nenhuma ponderaccedilatildeo negativa da seguinte

maneira se algueacutem estiver sob o efeito do amor ou do oacutedio da indignaccedilatildeo ou da calma

os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo criteacuterio de grandeza

ldquoquem ama acha que o juiacutezo que deve formular sobre quem eacute julgado eacute de natildeo

culpabilidade ou de pouca culpabilidade por outro quem odeia acha o contraacuteriordquo40

Assim Aristoacuteteles estabelece uma funccedilatildeo cognitiva especiacutefica para as emoccedilotildees

vale dizer eacute em funccedilatildeo delas que alteramos nossos juiacutezos acerca do mundo Estar

afetado por uma emoccedilatildeo eacute a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de

algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade Desse modo por possuir

uma funccedilatildeo tatildeo determinante no discurso o orador precisa estar preparado para bem

utilizaacute-las o que soacute se alcanccedila atraveacutes de um profundo conhecimento sobre o ser

humano

A novidade poreacutem natildeo se encerra por aiacute pois Aristoacuteteles ao dissertar sobre a

natureza das emoccedilotildees afirma que elas satildeo compostas por prazer (hedonecirc) e por dor

(lupecirc) oferecendo mais complexidade ao tema

A ideia segundo a qual as emoccedilotildees comportam tal natureza complexa ou seja

de que satildeo formadas por sentimentos mistos eacute creditada a Platatildeo que ao longo de sua

obra filosoacutefica se deparou desde cedo com o problema do prazer no Feacutedon por

exemplo o autor da Repuacuteblica adverte que o verdadeiro filoacutesofo deveria se manter

distante do prazer que eacute fonte dos maiores males (83bd) Em Goacutergias aquele que vive

desmedidamente na busca do prazer eacute considerado uma pessoa infeliz pois tenta em vatildeo

rhetoric (only a portion survives chiefly the part dealing with pity)rdquo (trad livre) KONSTAN D Op

cit p 411 40

ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 84

26

preencher um jarro furado com uma peneira (493abd) Por sua vez no Filebo uma das

suas uacuteltimas obras a dor eacute definida como a desintegraccedilatildeo do estado de equiliacutebrio

natural enquanto o prazer agora numa visatildeo mais positiva busca recuperar a harmonia

perdida conforme se observa no seguinte trecho

SOCRATES O que eu afirmo eacute que quando encontramos

comprometida a harmonia nos seres vivos ao mesmo tempo haveraacute a

desintegraccedilatildeo da sua natureza e o aparecimento da dor

PROTARCO O que vocecirc diz eacute bastante plausiacutevel

SOCRATES Mas se o contraacuterio ocorre e a harmonia eacute recuperada e a

natureza inicial restabelecida precisamos dizer que o prazer surge se

devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as mateacuterias mais

difiacuteceis no menor tempo possiacutevel41

Com esta uacuteltima definiccedilatildeo Frede destaca que Platatildeo se concilia com alguns

aspectos da natureza humana jaacute que o prazer pelo menos agora tem uma funccedilatildeo

beneacutefica e terapecircutica para o indiviacuteduo Esta nova abordagem natildeo recorre mais agrave ideia

de que o prazer eacute um distuacuterbio ou uma doenccedila da alma e ao mesmo tempo possibilita

submeter os vaacuterios tipos de prazer a um conceito uacutenico explicando quando alguns satildeo

bons e outros natildeo (51b)42

Jaacute neste momento eacute oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento

platocircnico e o encontrado na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de observar que o Estagirita

recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definiccedilatildeo de prazer ldquoAdmitamos que

o prazer eacute um certo movimento da alma e um regresso total e sensiacutevel ao seu estado

natural e que a dor eacute o contraacuteriordquo(1370a)43

Platatildeo de outra parte apoacutes discutir vaacuterias formas de mistura de prazer e de dor

chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoccedilotildees na obra

aristoteacutelica Ele afirma que as emoccedilotildees tambeacutem se submetem a este mesmo fenocircmeno

misto e fornece uma lista de exemplo a ira o medo a saudade as lamentaccedilotildees o amor

a inveja a maliacutecia e outros sentimentos da mesma espeacutecie Num fragmento da Iliacuteada

citado no referido diaacutelogo a raiva eacute apresentada como algo que amarga a alma ateacute dos

41

ldquoSOCRATES What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted there will

at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain

PROTARCHUS What you say is very plausible

SOCRATES But if the reverse happens and harmony is regained and the former nature restored we

have to say that pleasure arises if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the

shortest possible timerdquo(31d) (trad livre) Cf PLATAtildeO PHILEBUS trad Dorothea Frede In COOPER

John M (ed) Plato complete works IndianapolisCambridge Hacket Publishing Company 1997 p

419 42

FREDE D Op cit p 262 43

ARISTOTELES Op cit 2012 p 56

27

mais saacutebios mas ao mesmo tempo provoca um dulccedilor maior do que o mel A amargura

da raiva reside na dor que ela provoca desequilibrando o estado natural do indiviacuteduo e a

doccedilura estaacute justamente na antecipaccedilatildeo mental do ato de vinganccedila que eacute a sua imensa

fonte de prazer Por sua vez o riso que eacute um prazer quando dirigido a uma infelicidade

do outro eacute fruto da maliacutecia (Schadenfreude)44

que eacute uma dor da alma (50a)45

Retornando novamente agrave Retoacuterica Aristoacuteteles oferece uma lista de emoccedilotildees

opostas (ira calma amizade e inimizade medo confianccedila vergonha desvergonha

benevolecircncia compaixatildeo indignaccedilatildeo inveja emulaccedilatildeo etc) que seraacute enquadrada no

referido modelo teoacuterico dos sentimentos mistos Ressalte-se poreacutem que em nenhum

momento Aristoacuteteles faz referecircncia expliacutecita agrave teoria platocircnica nem utiliza a palavra

ldquomistordquo ou ldquomisturardquo e neste aspecto esclarece poucos detalhes de sua abordagem

emotiva No entanto o cotejo a seguir realizado mostra que a influecircncia platocircnica tem

fundamento e a sua investigaccedilatildeo merece ser feita a fim de compreender como foi

moldada a primeira grande abordagem retoacuterica das emoccedilotildees de que temos notiacutecia

Assim a ira eacute acompanhada de dor em funccedilatildeo de um desprezo sem razatildeo

dirigido a noacutes ou a pessoas que temos estima e de prazer na esperanccedila de se vingar que

eacute representada mentalmente no indiviacuteduo provocando um deleite comparaacutevel agravequeles

encontrados nos sonhos (1378b) O medo eacute uma dor em virtude da representaccedilatildeo de um

mal vindouro (1382a) A causa da vergonha consiste numa dor em razatildeo de males

passados presentes ou futuros que satildeo passiacuteveis de destruir a nossa reputaccedilatildeo (1383b)

A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisiccedilatildeo de

bens desejaacuteveis ou seja o sucesso alheio eacute fonte de grande afliccedilatildeo e o prazer estaria na

possibilidade de observar o fracasso na aquisiccedilatildeo destes bens (1387b-1388a) De seu

turno na compaixatildeo a dor eacute resultado de um mal que recai naquele que natildeo a merece

fazendo-nos sofrer por extensatildeo (1385b) Na indignaccedilatildeo a dor estaacute em observar um

ecircxito imerecido (1386b) Jaacute o amor que eacute melhor tratado no Livro I nos provoca dor

diante da ausecircncia da pessoa amada cuja lembranccedila e a esperanccedila de reencontro nos

provocam prazer (1370a)

Eacute bem verdade que em relaccedilatildeo a algumas emoccedilotildees tais a amizade e a

benevolecircncia Aristoacuteteles natildeo chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas

envolvidos mas conforme nota Frede isso mostra que ele estava mais preocupado em

44

A palavra alematilde Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortuacutenio

alheio 45

PLATAtildeO Op cit 1997 p 439-440

28

mostrar quais emoccedilotildees o orador deveria dominar para ser convincente no

empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade teoacuterica46

De outra parte importa registrar que no detalhamento das emoccedilotildees trecircs

aspectos satildeo via de regra esclarecidos quais sejam o estado de espiacuterito em que

geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoccedilatildeo contra quem ou

o que costumam ter aquela reaccedilatildeo emotiva e em quais circunstacircncias ocorrem Sem

saber estes trecircs aspectos o orador natildeo estaraacute nas condiccedilotildees ideais de alcanccedilar ecircxito no

seu empreendimento de colocar o auditoacuterio numa determinada disposiccedilatildeo mental

Por exemplo como o medo estaacute relacionado agrave visualizaccedilatildeo da ocorrecircncia de um

mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequecircncias negativas na esfera

pessoal do indiviacuteduo o ouvinte deve estar num estado de espiacuterito que acredite que de

fato algo ruim iraacute lhe suceder Assim pessoas insensiacuteveis por jaacute terem vivenciado toda

sorte de desgraccedila na vida ou porque estatildeo muito confiantes em si mesmas por terem ou

acreditarem ter muitos amigos vigor fiacutesico prosperidade econocircmica ou outro motivo

que as fortaleccedila mentalmente natildeo sentiratildeo medo Logo a confianccedila eacute o contraacuterio do

medo e eacute um verdadeiro escudo contra o sentimento de inseguranccedila que aplaca o

medroso Por outro lado teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a noacutes e nesta

categoria encontram-se aqueles que satildeo injustos ou perversos desde que contem com

instrumentos para cometerem os seus atos de injusticcedila e de maldade aqueles que

provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que noacutes os nossos concorrentes

quando o objeto de conquista natildeo pode ser compartilhado os que foram viacutetimas de

injusticcedila por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem Por fim em

relaccedilatildeo agrave coisa que tememos ela deveraacute ter a capacidade de nos causar grande

penosidade inclusive a proacutepria destruiccedilatildeo sendo o seu aspecto temporal altamente

relevante jaacute que tendemos a ter medo em relaccedilatildeo a um mal iminente e natildeo sentirmos

temor quanto a algo que provavelmente se sucederaacute mas a sua ocorrecircncia se daraacute num

intervalo temporal muito longiacutenquo

Na posse de tais informaccedilotildees e tentando imaginar um orador que planeje incutir

medo num auditoacuterio formado por pessoas com alto niacutevel de confianccedila certamente o

passo inicial seraacute dessensibilizar os ouvintes Se por exemplo as pessoas forem

confiantes por possuiacuterem muita riqueza seraacute necessaacuterio demonstrar no discurso que os

seus bens materiais nada poderatildeo fazer contra o mal que se aproxima Se por outro

46

FREDE D Op cit p 271

29

lado o mal lhes parece distante o discurso deveraacute enfatizar que a distacircncia natildeo eacute tatildeo

grande quanto aparenta e deveraacute reforccedilar a capacidade destrutiva deste mal bem como

certificar que apesar de longiacutenquo o infortuacutenio ocorreraacute No entanto se o auditoacuterio

estiver experimentando um medo excessivo talvez seja necessaacuterio lhes transmitir

confianccedila demonstrando que o mal natildeo seja tatildeo grande quanto aparenta ou que as

pessoas dispotildeem de meios adequados para enfrentaacute-lo

Enfim eacute preciso realizar um minucioso estudo do auditoacuterio a fim de

compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (preacute-discurso)

continuar a percebecirc-lo durante o discurso tudo isso com o objetivo de conduzir os

ouvintes a uma pretendida disposiccedilatildeo mental Nesta perspectiva a retoacuterica eacute uma

teacutecnica fundada no profundo conhecimento teoacuterico do ser humano na aquisiccedilatildeo de

experiecircncia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especiacuteficas de um

determinado grupo social e na contiacutenua praacutetica discursiva

Cumpre acrescentar que no discurso retoacuterico haacute tambeacutem um intenso trabalho de

representaccedilatildeo mental ou melhor dizendo de imaginaccedilatildeo isto eacute phantasia As palavras

gregas phantasia e phantasma satildeo traduzidas por imagem imaginaccedilatildeo ou representaccedilatildeo

mental em diversas ocasiotildees da obra em comentaacuterio Eacute oportuno destacar que phantasia

eacute um termo teacutecnico da psicologia aristoteacutelica e natildeo se confunde com o uso atual da

palavra fantasia que significa invenccedilatildeo narrativa ficcional algo fora da realidade

A phantasia eacute uma faculdade da alma que natildeo eacute nem pensamento nem

percepccedilatildeo embora parta desta uacuteltima Ela visa dar conta de pelo menos dois

problemas a presenccedila na ausecircncia isto eacute a lembranccedila ou pensamento de objetos

ausentes a questatildeo do engano que natildeo consegue ser explicado pela ideia de que o

semelhante conhece o semelhante pois esta uacuteltima tese sustenta que o conhecimento se

identifica com os seus objetos (409b29-30) e por isso natildeo pode ldquo[] errar ou desviar

de como as coisas satildeordquo47

Assim para Aristoacuteteles a phantasia eacute uma faculdade

especiacutefica da alma que procura solucionar esse problema da cogniccedilatildeo tornando atraveacutes

da representaccedilatildeo mental o verdadeiro e o falso possiacuteveis

Desse modo Aristoacuteteles expotildee que ldquoo prazer consiste em sentir uma certa

emoccedilatildeo e a imaginaccedilatildeo [phantasia] eacute uma espeacutecie de sensaccedilatildeo enfraquecidardquo48

(1370a28-29) Ao falar acerca do prazer sentido na vitoacuteria assevera que todos gostam

47

ldquoit cannot err or deviate from the way things arerdquo CASTON Victor Aristotlersquos psychology In GILL

M L PELLEGRIN P (ed) The Blackwell Companion to Ancient Philosophy Oxford Blackwell

Publishing 2006 p 334 48

ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 57

30

de vencer porque criamos para noacutes mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade

em relaccedilatildeo aos outros (1370b33) A honra e a boa reputaccedilatildeo satildeo altamente prazerosas

porque atraveacutes delas imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma

pessoa virtuosa Na ira o prazer ocorre em face da representaccedilatildeo mental [phantasia] do

ato de vinganccedila (1378b) O medo eacute uma dor ocasionada pela representaccedilatildeo [phantasia]

de um mal iminente (1382a21) Na esperanccedila representamos mentalmente [phantasia]

que as coisas que nos transmitem seguranccedila estatildeo proacuteximas (1383a17) Por sua vez a

vergonha consiste na representaccedilatildeo imaginaacuteria [phantasia] da perda de reputaccedilatildeo pelo

indiviacuteduo (1384a24)49

Assim em vista dos trechos acima citados fica claro que phantasia tem um

papel essencial no trabalho retoacuterico porque atraveacutes de sua elaboraccedilatildeo discursiva seraacute

possiacutevel suscitar determinadas emoccedilotildees no auditoacuterio E isso porque conforme destaca

Rapp ldquomuitas emoccedilotildees surgem apenas atraveacutes da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo

(phantasia) natildeo necessitando de uma operaccedilatildeo cognitiva superior incluindo qualquer

julgamento compreendido este uacuteltimo como uma operaccedilatildeo sofisticadardquo50

Assim em

conclusatildeo a phantasia retoacuterica consiste na induccedilatildeo de uma determinada disposiccedilatildeo

mental por meio da produccedilatildeo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um

estado emocional especiacutefico

Desse modo tendo completado a exposiccedilatildeo do tema eacute possiacutevel agora notar a

evoluccedilatildeo do pensamento de Aristoacuteteles sobre as emoccedilotildees compreender de que modo

elas satildeo suscitadas entender a sua natureza complexa e a sua funccedilatildeo cognitiva precisar

quais delas satildeo importantes para o orador e por fim observar a sua centralidade dentro

da retoacuterica

13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica

Visto o delineamento do tema na retoacuterica aristoteacutelica e percebido o alto grau de

importacircncia que as emoccedilotildees adquirem no discurso persuasivo passamos agora a

investigaacute-las na eacutetica aristoteacutelica mais precisamente nos Livros I e II da Eacutetica a

Nicocircmaco

49

GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric II a commentary New York Fordham University

Press 1988 p 26 50

ldquoViele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande beduumlrfen

aber keiner houmlheren kognitiven Operation also auch keines Urteils falls darunter eine solche

anspruchsvollere Operation verstanden wirdrdquo (trad livre) RAPP C Op cit p 56

31

Aristoacuteteles inicia no Capiacutetulo II do Livro I dizendo que se houver um bem que

seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade uacuteltima

tal bem dada a sua importacircncia merece por razotildees praacuteticas ser estudado e conhecido

uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforccedilo na vida humana

Esse bem final ou supremo eacute relacionado agrave felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no

Capiacutetulo IV ldquoverbalmente eacute-nos possiacutevel quase afirmar que a maioria esmagadora da

espeacutecie humana estaacute de acordo no que tange a isso pois tanto a multidatildeo quanto as

pessoas refinadas a ele se referem como a felicidaderdquo51

(1095a17-19)

Apoacutes discorrer sobre vaacuterias concepccedilotildees correntes sobre felicidade (eudaimonia)

oferecendo-lhes criacutetica bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista Aristoacuteteles no

Capiacutetulo XIII afirma que ldquofelicidade eacute uma certa atividade da alma em conformidade

com a virtude perfeitardquo ou que a ldquofelicidade humana significa a excelecircncia da almardquo

justificando portanto a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para

melhor compreender a mateacuteria em exame

Por isso em seguida apresenta a divisatildeo da alma em uma parte dotada de razatildeo

(logon) e uma outra parte natildeo-racional (alogon) Primeiramente eacute detalhada a parte

natildeo-racional que se divide em duas uma porccedilatildeo cuida da nutriccedilatildeo e do crescimento e

por isso eacute partilhada com todos os seres vivos natildeo sendo caracteriacutestica apenas do ser

humano (parte vegetativa ou nutritiva) mas uma outra porccedilatildeo embora tambeacutem seja

natildeo-racional possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razatildeo Esta

uacuteltima porccedilatildeo eacute a sede dos desejos apetites e emoccedilotildees e geralmente eacute denominada de

parte apetitiva ou desiderativa

Poreacutem em prosseguimento sem se decidir ele observa que talvez seja mais

apropriado dividir a parte racional em duas uma que deteacutem o princiacutepio racional strictu

sensu e em si mesmo e a outra parte (a apetitiva) que natildeo possui razatildeo mas que eacute

capaz de ouvi-la ldquocomo um filho ao seu pairdquo Em ambos os casos seja a parte

irracional duplamente dividida seja a parte racional duplamente dividida uma coisa

permanece igual a parte apetitiva (desiderativa) natildeo deteacutem em si o princiacutepio racional

mas eacute capaz de escutar e obedecer a razatildeo conforme explana Rapp

Na verdade Aristoacuteteles diz que ou o sentido da frase lsquologo echonrsquo

(lsquoter razatildeorsquo) eacute bipartite ndash primeiro aquilo que tem razatildeo em sentido

estrito e a tem em si mesmo segundo aquilo que eacute capaz de obedecer

ou responder agrave razatildeo ndash ou que um elemento da parte natildeo-racional da

51

ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco trad Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2009 p 40

32

alma eacute capaz de ouvir obedecer ou responder agravequela parte da alma

que possui razatildeo em si mesma52

Mas qual eacute a principal finalidade em apresentar esta divisatildeo da alma em uma

parte racional e outra natildeo-racional Ora se lembrarmos que a felicidade eacute um estado de

excelecircncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita entatildeo do conhecimento

das partes da alma e da compreensatildeo do seu bom funcionamento dependem o excelente

desempenho da totalidade da alma Assim anota Pakaluk o pressuposto impliacutecito neste

capiacutetulo eacute que a virtude do todo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da distinccedilatildeo da virtude das

partes53

E tal portanto eacute a justificativa para apresentar a divisatildeo entre virtudes

intelectuais e virtudes morais ou eacuteticas As virtudes intelectuais satildeo aquelas pertencentes

ao campo da parte racional da alma e de seu turno as virtudes morais satildeo relacionadas

agrave parte natildeo-racional da alma mas que conforme visto tecircm a caracteriacutestica de poder

ouvir e obedecer agrave razatildeo

Interessante registrar o jogo ambiacuteguo que o vocaacutebulo ldquovirtuderdquo exerce no texto

Se num primeiro momento Aristoacuteteles usa ldquovirtuderdquo geralmente no singular para se

referir agrave felicidade conveacutem notar que agora ele passa a utilizar a palavra no plural

(virtudes intelectuais e virtudes morais) O termo grego aretecirc pode ser traduzido por

excelecircncia ou por virtude sendo que ao empregar a palavra no singular para definir a

felicidade o Estagirita quer se referir agrave atividade excelente da alma um estado que

exerce bem sua funccedilatildeo e atinge os melhores padrotildees Jaacute no segundo caso exemplificado

(plural) deseja aludir agraves virtudes individuais tais como popularmente as conhecemos

justiccedila moderaccedilatildeo coragem etc54

Assim tendo em vista tal classificaccedilatildeo o Livro II iraacute se ocupar da virtude moral

(no singular) ou seja procurar-se-aacute compreender de que maneira a parte natildeo-racional

da alma iraacute atingir o seu estado excelente enquanto as virtudes morais (no plural) iratildeo

ser exploradas em outro trecho da obra (III8-VI)

Neste propoacutesito no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral o

Estagirita abre a discussatildeo esclarecendo o seu modo de aquisiccedilatildeo a fim de diferenciar

tal virtude em relaccedilatildeo agrave virtude intelectual Enquanto esta uacuteltima se adquire pela

52

RAPP CPara que serve a doutrina aristoteacutelica do meio termo In ZINGANO Marco (org) Sobre a

eacutetica nicomaqueia de aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010 p 410 53

PAKALUK Michael On the unity of the nicomachean ethics In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos

nicomachean ethics a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 31 54

RAPP C Op cit 2010 p 407-408 Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea Op cit p 78

33

instruccedilatildeo aquela eacute produto do haacutebito (ethos) marcando com esta posiccedilatildeo clara

divergecircncia com o intelectualismo socraacutetico que entende que a virtude eacute adquirida por

meio do conhecimento vale dizer para praticar atos bons e ser considerado bom eacute

suficiente que o indiviacuteduo compreenda o que eacute bondade para ser justo eacute satisfatoacuterio

conhecer o que eacute justiccedila Diferentemente no modelo aristoteacutelico algueacutem soacute se torna

virtuoso caso realize atos em conformidade com a virtude Por conseguinte eacute preciso

realizar atos de coragem ou de justiccedila para por exemplo ser considerado corajoso ou

justo

Ademais as virtudes morais natildeo satildeo inatas natildeo satildeo geradas pela natureza

(phusei) nem satildeo contraacuterias agrave natureza (paraphisen) Embora nos sejam concedidas

como potecircncias (dynameis) necessitam ser exercidas para serem adquiridas e natildeo

permanecerem em eterno estado de latecircncia Isso porque a virtude eacute uma hexis

(disposiccedilatildeo) um estado de caraacuteter adquirido que se tornou estaacutevel fixo natildeo sujeito a

regressotildees55

Eacute por isso que a sua aquisiccedilatildeo soacute ocorre mediante a repeticcedilatildeo de vaacuterios

atos (haacutebito) necessitando tambeacutem que haja conhecimento e deliberaccedilatildeo na sua praacutetica

(1105a30-35)

Poreacutem onde se encaixam as emoccedilotildees neste modelo teoacuterico Qual eacute o papel que

desempenham para o atingimento do estado de excelecircncia da parte natildeo-racional da

alma

No Capiacutetulo I do Livro II Aristoacuteteles fornece o primeiro exemplo empiacuterico

relativo agrave importacircncia das emoccedilotildees para a o desenvolvimento do caraacuteter do indiviacuteduo

ldquoatraveacutes da accedilatildeo em situaccedilotildees arriscadas e ao formar o haacutebito do [sentimento] do medo

ou [aquele] da autoconfianccedila eacute que nos tornamos corajosos ou covardesrdquo56

No Capiacutetulo

II reafirma-se o mesmo exemplo a pessoa que sente medo em relaccedilatildeo a tudo querendo

fugir de todas as situaccedilotildees iraacute adquirir o caraacuteter de um covarde sendo que aquele que

natildeo vivencia medo em face de qualquer situaccedilatildeo um temeraacuterio

Apoacutes o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de

incidecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Assim em relaccedilatildeo a estas uacuteltimas estar na

posse de uma virtude moral significa que o indiviacuteduo se encontra bem ou mal disposto a

55

WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2013 p 69-70 56

ARISTOacuteTELES Op cit 2009 p 68

34

sofrer o governo das emoccedilotildees ldquoas disposiccedilotildees satildeo os estados de caraacuteter formados

devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relaccedilatildeo agraves paixotildeesrdquo57

Com efeito se pensarmos que a teoria moral aristoteacutelica concerne agraves emoccedilotildees e

o vocaacutebulo pathos derivado de paschein traz consigo a ideia de que o indiviacuteduo eacute

afetado por algo isto eacute ele sofre a accedilatildeo de uma emoccedilatildeo e por isso se encontra numa

condiccedilatildeo passiva e considerando que esta mesma teoria moral tambeacutem se preocupa

com a accedilatildeo (praxis) isto eacute quando o indiviacuteduo atua e respectivamente estaacute numa

posiccedilatildeo ativa o modelo eacutetico em comentaacuterio se preocupa natildeo apenas com o agir

devidamente mas tambeacutem com o ser afetado devidamente Assim a arte de viver bem

natildeo se resume a uma arte de agir adequadamente mas sobretudo a uma arte de sentir

de modo adequado as emoccedilotildees58

Dessa forma com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de

como atingir esse ponto de excelecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Aristoacuteteles

apresenta a doutrina do meio termo

Ora de tudo que eacute contiacutenuo e divisiacutevel eacute possiacutevel tomar a parte maior

ou a menor ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores

menores e iguais seja relativamente agrave proacutepria coisa ou relativamente a

noacutes a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficiecircncia

Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois

extremos o que eacute exatamente o mesmo para todos os seres humanos

pela mediania relativa a noacutes entendo aquela quantidade que nem eacute

excessivamente grande nem excessivamente pequena o que natildeo eacute

exatamente o mesmo para todos os seres humanos59

Assim em vista do modelo conceitual oferecido a excelecircncia eacutetica estaraacute no

distanciamento do muito e do muito pouco em direccedilatildeo ao centro isto eacute ao ponto

mediano A boa disposiccedilatildeo de caraacuteter eacute alcanccedilada quando se evita tanto o excesso

quanto a deficiecircncia que seriam modos de falhar tanto na accedilatildeo quanto na forma de

sentir a emoccedilatildeo

Rapp destaca que as interpretaccedilotildees normativas desta doutrina

tradicionalmente a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os

casos individuais e encontrar consequentemente uma soluccedilatildeo Assim ela tem sido

compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas accedilotildees ou emoccedilotildees sejam

57

Id ibid p 74 58

KOSMAN L A Beeing properly affected virtues and feelings in Aristotlersquos ethics In RORTY

Ameacutelie Oksenberg Essays on aristotlersquos ethics BerkeleyLos Angeles California University Press

1980 p 104-105 59

ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco Op cit p 76

35

moderadas (b) para que apenas selecionemos as accedilotildees ou as reaccedilotildees emotivas

equidistantes dos dois extremos60

Todavia a melhor saiacuteda seria observar o seu caraacuteter anti-dedutivo jaacute que no

campo eacutetico a infinidade de situaccedilotildees e peculiaridades desaprova uma leitura ldquoregra-

casordquo desse modelo teoacuterico ldquoo melhor que a teoria eacutetica pode fazer eacute formular

enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hocircs epi to polu) e natildeo em

geralrdquo61

Nesta aacuterea que natildeo eacute a do necessaacuterio natildeo se podem formular premissas

cogentes a partir das quais deduziriacuteamos soluccedilotildees firmes

Aristoacuteteles nesse ponto adiciona uma seacuterie de paracircmetros a fim de explanar

conceitualmente a boa medida da accedilatildeo ou da emoccedilatildeo experimentar uma emoccedilatildeo

adequadamente significa senti-la na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves

pessoas e aos fins certos e de maneira correta o que demonstra a complexidade do

aperfeiccediloamento eacutetico uma vez que se espera do indiviacuteduo uma grande sensibilidade agrave

experiecircncia concreta

Em tal perspectiva sentir uma emoccedilatildeo devidamente pode significar reagir de

modo eneacutergico porque uma situaccedilatildeo especiacutefica pode reclamar que a pessoa tenha uma

resposta emocional intensa Isso natildeo anula a noccedilatildeo de virtude moral esclarecida

conceitualmente pela doutrina do meio-termo porque a pessoa que natildeo reage de forma

adequada agrave ocasiatildeo em face daqueles paracircmetros expostos estaraacute ou falhando por

deficiecircncia ou por excesso Por exemplo o indiviacuteduo que frequentemente reaja com

raiva em relaccedilatildeo agraves pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira

equivocada ou natildeo reaja quando deveria estaraacute mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees62

Assim ateacute o momento o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira

algueacutem estaraacute bem ou mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees uma vez que conforme se

delineou a parte natildeo-racional da alma apenas exerce bem a sua funccedilatildeo quando ouve a

razatildeo e no campo das emoccedilotildees isso ocorre quando o indiviacuteduo as sente adequadamente

de acordo com as circunstacircncias

Poreacutem Aristoacuteteles demonstrando que no terreno da eacutetica as peculiaridades satildeo

muitas afirma que para determinadas emoccedilotildees (a inveja a malevolecircncia a impudiciacutecia

e outras semelhantes) o modelo da mediania eacute inuacutetil e os paracircmetros sequer aplicaacuteveis

60

RAPP C 2010 p 416 61

Id ibid p 419 62

RAPP COp cit 2008 p 66

36

porque tais paixotildees satildeo maacutes em si mesmas para elas soacute existe o erro pois natildeo haacute como

senti-las no momento certo quanto agrave pessoa certa ou de modo certo etc

Assim enquanto para uma gama de emoccedilotildees eacute possiacutevel afirmar que eacute possiacutevel

senti-las adequadamente e isso implica pressupor que quando apropriadamente

vivenciadas algo de bom teraacute ocorrido da sua fruiccedilatildeo para outras tal pensamento natildeo eacute

extensiacutevel

Temos que nos socorrer do Livro II da Retoacuterica a fim de evidenciar por que a

inveja seria do ponto de vista eacutetico uma emoccedilatildeo vil em si mesma o Estagirita afirma

que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia eacute aquela que sente inveja

da felicidade dos outros e consequentemente esta mesma pessoa teraacute grande regozijo

ao observar o fracasso alheio Enquanto a indignaccedilatildeo e a inveja partilham de um ponto

comum por serem emoccedilotildees penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia

entre elas existe uma destacada diferenccedila a indignaccedilatildeo eacute uma dor gerada pela

observaccedilatildeo de um sucesso imerecido (injusto) enquanto a inveja eacute uma dor provocada

pela conquista de um bem merecido (justo) Enquanto a indignaccedilatildeo e a compaixatildeo estatildeo

ligadas ao bom caraacuteter a inveja estaacute relacionada a pessoas de alma pequena

(mikropsykhoi) Ao comparar a emulaccedilatildeo com a inveja destaca que aquela eacute

experimentada por pessoas de bem de alma grande enquanto a uacuteltima por pessoas vis

despreziacuteveis que poderatildeo inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem

Enfim parece que natildeo foi agrave toa que Aristoacuteteles de forma inusual brigou com os poetas

no iniacutecio da Metafiacutesica ao dizer que eacute mais provaacutevel que eles sejam mentirosos

conforme profere o proveacuterbio do que os deuses invejosos (1386b10-25 1387b30-39

1388a30-37 983a1-5)

Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoccedilotildees que satildeo vis em si mesmas

fundamentando-se na palavra grega mochteria utilizada em trecho em que eacute discutido

este mesmo assunto na Eacutetica a Eudemo (1221b21)63

Eacute bem verdade que mochteria

tambeacutem foi vertida por ldquoviacuteciordquo em algumas traduccedilotildees deste mesmo trecho na referida

obra aristoteacutelica64

mas natildeo deixa de ser um uso interessante para a descriccedilatildeo das

mencionadas emoccedilotildees parecendo-nos oportuna a sua utilizaccedilatildeo65

63

LEIGHTON Stephen Inappropriate passion In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos nicomachean ethics

a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 211 64

ARISTOTLE Eudemian ethics trad Michael Woods Oxford Clarendon Press 2005 p 18 65

Cf a explanaccedilatildeo dada para mochteria ldquocorrupt corruption (mochtheros mochtheria) A strong term

used to describe vicious human beings Like the English term the Greek has a range of meanings from

morally bad or wicked to perverse or depraved in ones longings and the like it can also mean in non

moral contexts simply lsquodefectiversquo or lsquobad conditionrsquo In the Ethics mochtheria is sometimes used

37

Assim por exemplo a inveja eacute uma emoccedilatildeo perversa porque conforme se viu

eacute anti-meritoacuteria O sujeito invejoso natildeo consegue enxergar um valor positivo na

conquista alheia e espera pela sua desgraccedila Consequentemente eacute uma emoccedilatildeo

relacionada ao cometimento de injusticcedilas

Mas de um modo geral todas as emoccedilotildees perversas compartilham de algo em

comum elas satildeo incompatiacuteveis com o bom caraacuteter Consoante nota Leighton as

emoccedilotildees perversas ldquo[] natildeo contribuem em nada mas apenas inibem uma vida virtuosa

ou proacutespera Enquanto a maioria das emoccedilotildees eacute objeto de elogio ou de censura

conforme as circunstacircncias particulares em que se manifestam estas merecem censura

simplesmente por serem sentidasrdquo66

Ora pelo visto ateacute o presente momento Aristoacuteteles divide as emoccedilotildees em dois

grupos aquelas que podem ser adequadamente ou natildeo-adequadamente sentidas de

acordo com as circunstacircncias e aquelas que satildeo vis em si mesmas (perversas) Naquele

primeiro grupo de emoccedilotildees os indiviacuteduos virtuosos sentiratildeo as emoccedilotildees

adequadamente enquanto aqueles natildeo-virtuosos sentiratildeo inadequadamente No segundo

grupo apenas os sujeitos de caraacuteter falho (natildeo-virtuoso) as sentiratildeo67

Desse modo de

acordo com este modelo quando devidamente formadas na disposiccedilatildeo de caraacuteter do

indiviacuteduo as emoccedilotildees contribuiratildeo significativamente no alcance de uma vida feliz

Poreacutem a despeito disso quais satildeo as outras implicaccedilotildees deste modelo

O primeiro ponto consiste em perceber que vaacuterias questotildees essenciais para a

vida inclusive para a vida em sociedade natildeo estatildeo localizadas no acircmbito de uma

racionalidade strictu sensu Se o indiviacuteduo natildeo for por haacutebito levado a constituir uma

disposiccedilatildeo de caraacuteter que o faccedila detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos

perversos provavelmente seraacute indiferente emocionalmente a accedilotildees truculentas ou

brutas contra outras pessoas

Nesse sentido conforme pontua Striker a falha em perceber qual o melhor curso

de accedilatildeo a tomar diante de determinada situaccedilatildeo estaacute relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional

porque eacute esta que iraacute possibilitar ao indiviacuteduo ter uma boa perspectiva moral

permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que eacute o melhor em cada circunstacircncia Pessoas

synonymously with the word for lsquovicersquo and so can serve as the contrary of lsquovirtuersquordquo ARISTOacuteTELES

Aristotlersquos nichomachean ethics tradRobert Bartlett e Susan D Collins ChicagoLondon Chicago

University Press 2011 p 307 66

ldquoThey cannot contribute to but only inhibit a virtuous or flourishing life While most passions deserve

praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (indashiii) these deserve blame

simply for being feltrdquo (trad livre) LEIGHTON S Op cit p 215 67

LEIGHTON SId ibid p 226

38

incapazes de sentir adequadamente indignaccedilatildeo ou compaixatildeo seratildeo inaacutebeis em prevenir

ou aliviar o sofrimento alheio assim como natildeo estaratildeo interessadas em reparar uma

injusticcedila68

Ademais registre-se que sem medo a pessoa natildeo tem como deliberar

adequadamente diante de um perigo (1383a5) E por uacuteltimo a depender da situaccedilatildeo

talvez seja necessaacuterio responder com muita indignaccedilatildeo ou muita raiva porque a

conjuntura pode demandar uma resposta eneacutergica de modo que o ideal de que as

emoccedilotildees sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)

natildeo estaacute condizente com tal abordagem69

De outra parte conveacutem tambeacutem compreender de que maneira este modelo eacute

extensiacutevel a outros domiacutenios pois ateacute entatildeo a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e

perversas esteve atrelada ao prisma eacutetico da vida comum Mas conforme adverte

Leighton eacute possiacutevel pensar a questatildeo da adequaccedilatildeo e da perversidade das emoccedilotildees na

poliacutetica na retoacuterica na trageacutedia e nos demais domiacutenios70

Por exemplo segundo Aristoacuteteles na trageacutedia o medo e a compaixatildeo satildeo duas

emoccedilotildees-chaves e estrategicamente utilizadas para garantir o efeito cataacutertico sobre o

puacuteblico (1452a3-12) que eacute levado a se surpreender e se horrorizar com o destino do

personagem Neste acircmbito a adequaccedilatildeo de tais emoccedilotildees assim como de outras que

porventura emergirem (amor oacutedio etc) natildeo satildeo orientadas pelos criteacuterios eacuteticos da vida

comum mas pela forma poeacutetica O medo que se destina agrave catarse na trageacutedia exerce

outra funccedilatildeo na eacutetica da vida ordinaacuteria relacionando-se com a virtude da coragem Por

sua vez as emoccedilotildees adequadas agrave comeacutedia deveratildeo ser outras71

Assim como conciliar a inadequaccedilatildeo de uma emoccedilatildeo na vida ordinaacuteria e sua

adequaccedilatildeo em outro domiacutenio (trageacutedia comeacutedia poliacutetica retoacuterica etc) Leighton

oferece duas respostas

Primeiramente ele lembra que Aristoacuteteles provavelmente confiante no poder do

haacutebito de que a sua teoria moral eacute devota eacute um filoacutesofo bem mais otimista do que

Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave corrupccedilatildeo moral Por exemplo para o Estagirita uma pessoa

pode aproveitar dos prazeres de uma comeacutedia sem que o seu caraacuteter moral seja

68

STRIKER Gisela Emotions in context aristotlersquos treatment of the passions in the rhetoric and his

moral psychology In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos

Angeles California University Press 1996 p 298 69

RAPP COp cit 2008 p 66 70

LEIGHTON S Op cit p 226 71

Id ibid p 227

39

destruiacutedo porque ela jaacute eacute possuidora de uma disposiccedilatildeo fixa permanente Esta primeira

hipoacutetese enfatiza o impacto psicoloacutegico das emoccedilotildees sobre o puacuteblico72

Na segunda hipoacutetese a explicaccedilatildeo enfatiza a proacutepria ideia de domiacutenio ldquoas

circunstacircncias da vida mundana natildeo satildeo as mesmas da trageacutedia da comeacutedia da retoacuterica

e vice-versa a sua localizaccedilatildeo difere dentro do sistema teleoloacutegico aristoteacutelicordquo73

Assim eacute plenamente possiacutevel no pensamento aristoteacutelico algo ser inadequado numa

circunstacircncia e adequada em outra natildeo haacute uma pretensatildeo prima facie de que se algo eacute

inadequado num determinado domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro

Portanto a adequaccedilatildeoinadequaccedilatildeo estaacute relacionada com os fins e a forma de um

especiacutefico domiacutenio sendo que os criteacuterios de adequaccedilatildeo em cada acircmbito natildeo estatildeo em

competiccedilatildeo Conveacutem registrar poreacutem que pensar na pluralidade de domiacutenios e sua

respectiva independecircncia em termos de adequaccedilatildeo natildeo significa que eles sejam

completamente autocircnomos e desconectados pois em verdade todos os domiacutenios estatildeo

subordinados agrave teleologia aristoteacutelica do bem74

Assim Leighton afirma que uma explicaccedilatildeo baseada no domiacutenio prefere a uma

psicoloacutegica por trecircs motivos 1) explica por que Aristoacuteteles oferece diferentes criteacuterios

de adequaccedilatildeo para domiacutenios distintos 2) natildeo necessita recorrer agrave ideia de que se algo eacute

inadequado em um domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro 3) possibilita

que faccedila sentido a ideia aristoteacutelica de que a adequaccedilatildeo de determinadas atividades varia

de acordo com o domiacutenio Por outro lado uma explanaccedilatildeo psicoloacutegica falha por

tambeacutem trecircs motivos 1) embora seja coerente com a noccedilatildeo de haacutebito natildeo explica a

diferenccedila entre domiacutenios 2) natildeo deixa de carregar uma censura moral consigo 3) natildeo

compreende a visatildeo aristoteacutelica de adequaccedilatildeo emotiva por domiacutenios distintos75

De fato a explicaccedilatildeo por domiacutenios oferece uma boa compreensatildeo do tema em

relaccedilatildeo agravequelas emoccedilotildees enquadraacuteveis no grupo das adequadasinadequadas de acordo

com as circunstacircncias Poreacutem o que dizer das emoccedilotildees vis em si mesmas perversas A

inveja por exemplo pode eventualmente ser adequada por domiacutenio (poliacutetica retoacuterica

etc)

Leighton afirma que a rigor uma emoccedilatildeo perversa natildeo pode ser adequada em

nenhuma circunstacircncia nem em nenhum domiacutenio considerando todas as caracteriacutesticas

72

Id ibid p 230 73

ldquoThe circumstances of mundane life are not those of tragedy comedy rhetoric and vice versa their

placement within Aristotlersquos teleological framework differsrdquo (trad livre) Id ibid p 231 74

Id ibid p 231-232 75

Id ibid p 231

40

jaacute relacionadas a respeito de tais emoccedilotildees Poreacutem ele simplesmente natildeo consegue

explicar por que Aristoacuteteles endossa o uso das emoccedilotildees perversas na retoacuterica ldquonoacutes

entendemos melhor aquilo e por que os poetas estavam errados em atribuir a inveja agrave

natureza divina mas permanecemos desconcertados por que Aristoacuteteles nos prepara

para utilizar a inveja na retoacutericardquo76

Para tentar solucionar esse verdadeiro enigma de que tratamos no toacutepico

anterior e que agora novamente retorna Leighton deveria tambeacutem ter enfrentado o

problema da compatibilidade do pensamento aristoteacutelico nos Livros I e II da Retoacuterica

Conforme dissemos anteriormente a criacutetica inicial de Aristoacuteteles ao uso das emoccedilotildees no

Capiacutetulo I do Livro I eacute conflitante com o posicionamento oferecido no Livro II e por

isso sem pressupor alguma mudanccedila de entendimento no pensamento do Estagirita fica

difiacutecil uma boa explicaccedilatildeo

Ainda assim eacute razoaacutevel supor que Aristoacuteteles tenha permanecido criacutetico em

relaccedilatildeo a um uso retoacuterico das emoccedilotildees que conduzisse ao desvirtuamento do problema

enfrentado Poreacutem no Livro II da Retoacuterica ele prepara o orador para utilizar todas as

emoccedilotildees inclusive aquelas condenaacuteveis na eacutetica da vida comum De certa forma tendo

em vista os propoacutesitos da retoacuterica e considerando que a arena puacuteblica por vezes nos

reserva situaccedilotildees inesperadas e certamente desagradaacuteveis eacute mais desejaacutevel estar

preparado para usar todas as emoccedilotildees sem censuraacute-las previamente em si mesmas

Talvez sob esta perspectiva seja justificaacutevel a quebra de coerecircncia

Por fim como fechamento desta investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio registrar que a eacutetica

aristoteacutelica consegue ateacute hoje manter a sua atualidade pelo modo como integrou as

emoccedilotildees dentro de seu modelo de vida virtuosa Com exceccedilatildeo das emoccedilotildees perversas o

indiviacuteduo virtuoso aristoteacutelico sente as emoccedilotildees que todos noacutes sentimos na vida comum

embora ele tenha adquirido um grande diferencial sua resposta emocional eacute excelente

isto eacute ele sente medo raiva indignaccedilatildeo compaixatildeo amor mas numa intensidade

adequada agrave situaccedilatildeo experenciada

14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica

Apoacutes analisar as emoccedilotildees primeiramente na retoacuterica e depois na eacutetica

aristoteacutelica passa-se agora a investigaacute-las no acircmbito da teoria estoica Se em relaccedilatildeo agrave

76

ldquoWe understand better that and why the poets were wrong to attribute envy to the divine nature but

remain puzzled why Aristotle prepares us to deploy envy in rhetoricrdquo (trad livre) Id ibid p 235

41

obra do Estagirita percorremos o referido trajeto agora teremos que comeccedilar o estudo

pela eacutetica estoica para depois chegarmos agrave retoacuterica O motivo para a alteraccedilatildeo de

percurso reside no fato de que sabemos bem mais detalhes da eacutetica do que da retoacuterica

estoica Ademais registre-se que nada sobrou dos textos de Zenatildeo de Ciacutecio (334-262

aC) Cleanto de Assos (331- aC) e Crisipo de Soles (280-204 aC) os fundadores do

estoicismo

Embora o estoicismo tenha sido praticado por um longo periacuteodo que abrange

cinco seacuteculos foi a partir do seu decliacutenio no seacuteculo III dC que as suas obras

inaugurais deixaram de ser preservadas Hoje em dia o estudo dos fundadores da escola

se baseia exclusivamente em fontes indiretas de autores tardios e sobretudo por meio

de comentaacuterios de seus adversaacuterios77

Crisipo embora natildeo tenha iniciado a escola estoica foi o seu mais importante

pensador sendo que muito do que hoje imputamos genericamente ao estoicismo eacute na

verdade o seu pensamento Dos seus mais de 705 (setecentos) livros escritos que

incluem um tratado exclusivamente sobre retoacuterica e outro sobre as emoccedilotildees soacute restam

fragmentos ou comentaacuterios Credita-se sobretudo a ele o enorme desenvolvimento da

loacutegica estoica considerada uma verdadeira preciosidade pelos especialistas Brennan eacute

incisivo ao dizer que ldquoentre os antigos apenas Platatildeo e Aristoacuteteles o ultrapassam como

filoacutesofordquo78

Com efeito considerado o extenso periacuteodo de tempo abrangido eacute de se esperar

que o desenvolvimento da escola estoica tenha passado por fases distintas de modo que

a histoacuteria do estoicismo eacute tradicionalmente dividida em trecircs momentos (i) fase inicial

periacuteodo no qual estaacute inserida a figura de Crisipo e que vai da fundaccedilatildeo da escola por

Zenatildeo em torno do seacuteculo III aC ateacute o fim do seacuteculo II dC (ii) fase intermediaacuteria que

coincide com a era de Paneacutecio e Posidocircnio (iii) fase do estoicismo romano coincide

com o periacuteodo imperial romano e os autores principais satildeo Secircneca Epicteto e Marco

Aureacutelio79

A nossa abordagem poreacutem natildeo se interessaraacute em investigar o desenvolvimento

do tema a ser estudado desde os fundadores do estoicismo ateacute os seus autores tardios

77

TIELEMAN T Op cit p 1 CHAUIacute Marilena Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia as escolas

heleniacutesticas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 p 118 78

ldquoAmong the ancients only Plato and Aristotle surpass him as philosophersrdquo (trad livre) BRENNAN

Tad The stoic life emotions duties amp fate Oxford Clarendon Press p11 SEDLEY David The school

from zeno to arius didymus In INWOOD Brad (ed) The Cambridge companion to the stoics

Cambridge Cambridge University Press p 17 LAEacuteRCIO Dioacutegenes Lives of eminent philosophers

trad R D Ricks London William Heineman 1925 p 317 79

SEDLEY D Op cit p 7

42

(fase do estoicismo romano) nem explanar eventuais discordacircncia entre eles Ao inveacutes

disso revela-se suficiente empreender um estudo que possibilite a compreensatildeo

tradicional das emoccedilotildees no campo da eacutetica possibilitando visualizar os eventuais

reflexos sobre a retoacuterica estoica

Ainda assim a delimitaccedilatildeo da abordagem natildeo deixa de ser desafiadora dado o

impressionante grau de sistematicidade da teoria estoica Atento a isso Ciacutecero diz que eacute

difiacutecil tirar um uacutenico elemento da teoria estoica sem prejudicar todo o resto do sistema

a que ele compara a um edifiacutecio

Certamente nenhuma obra da natureza (embora nada seja mais

finamente disposto do que a natureza) ou produto fabricado revela

tamanha organizaccedilatildeo tamanha estrutura firmemente soldada

Conclusatildeo segue infalivelmente da premissa posterior

desenvolvimento da ideia inicial Vocecirc pode imaginar outro sistema

em que a remoccedilatildeo de uma uacutenica letra como uma peccedila de encaixe

faria com que todo o edifiacutecio viesse a baixo80

Desse modo a fim de iniciar a nossa explanaccedilatildeo conveacutem registrar

primeiramente que para os estoicos a virtude eacute a uacutenica coisa boa que existe e o viacutecio

que eacute o seu contraacuterio a uacutenica coisa maacute Excluindo as virtudes e os viacutecios todo o resto

estaacute incluiacutedo na categoria dos indiferentes Assim sauacutede beleza forccedila riqueza

reputaccedilatildeo nascimento nobre satildeo considerados indiferentes assim como os seus

opostos doenccedila pobreza feiura etc ldquoos estoicos jamais diriam que a riqueza algumas

vezes eacute boa ou que em algumas vezes participa do bem ou que eacute boa se usada

corretamenterdquo81

Isso porque para eles a riqueza eacute algo invariavelmente classificado

como indiferente Ademais anote-se que a posse de tais indiferentes que satildeo

considerados bens externos natildeo eacute necessaacuterio para o indiviacuteduo ser feliz

Dentro da categoria dos indiferentes nem todos estatildeo no mesmo patamar

porque alguns estatildeo em conformidade com a natureza outros contraacuterios agrave natureza e

outros nem um nem outro Sauacutede e beleza por exemplo satildeo indiferentes que estatildeo em

conformidade com a natureza e por isso satildeo valorados positivamente Diante da

possibilidade devemos selecionar os indiferentes em conformidade com a natureza e

80

ldquoSurely no work of nature (though nothing is more finely arranged than nature) or manufactured

product can reveal such organization such a firmly welded structure Conclusion unfailingly follows

from premise later development from initial idea Can you imagine any other system where the removal

of a single letter like an inter-locking piece would cause the whole edifice to come tumbling downrdquo

(trad livre) CICERO On Moral ends trad WOOLF Raphael Cambridge Cambridge University

Press 2004(III74) p 88 81

BRENNAN T Op cit p 120

43

natildeo selecionar os indiferentes contraacuterios agrave natureza que satildeo desvalorados Por sua vez

dentre os indiferentes em conformidade com a natureza alguns possuem mais valor do

que outros e logo satildeo considerados preferiacuteveis A mesma ideia eacute extensiacutevel aos

indiferentes contraacuterios agrave natureza alguns possuem mais desvalor do que outros e dessa

forma satildeo menos preferiacuteveis

Um primeiro problema em relaccedilatildeo aos indiferentes diz respeito agrave sua

incontrolabilidade uma vez que satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna e por isso agrave

contingecircncia82

Outro problema consiste na possibilidade de tanto causarem benefiacutecio

quanto prejuiacutezo Riqueza e sauacutede por exemplo natildeo satildeo bons em si mesmos porque

podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal e tudo aquilo que ostenta tal

possibilidade natildeo eacute bom Eacute melhor por exemplo natildeo ter sauacutede caso ela seja o

instrumento que possibilite a praacutetica de atos vis conforme explana Graver

Nem mesmo a sauacutede eacute beneacutefica o tempo todo Se um ditador violento

pretende recrutar vocecirc para se tornar parte de um esquadratildeo da morte

entatildeo eacute preferiacutevel natildeo estar fisicamente apto (Secircneca que teve

alguma experiecircncia com ditadores recomenda suiciacutedio em tais casos)

Por esta razatildeo os estoicos argumentam que nem sauacutede nem riqueza

nem qualquer outro objeto externo eacute verdadeiramente beneacutefico em

tudo e tambeacutem os seus opostos natildeo satildeo totalmente prejudiciais O

verdadeiro valor natildeo aparece e desaparece com a ocasiatildeo83

Tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que virtude e felicidade e por outro lado viacutecio e

infelicidade coincidem na eacutetica estoica sendo que a virtude eacute identificada como um

estado de caraacuteter consistente que deve ser escolhida por si mesma e natildeo por outro

objeto externo84

Plutarco destaca que em uacuteltima instacircncia eacute a razatildeo que possibilita a

aquisiccedilatildeo de tal caraacuteter ldquo[] todos esses homens concordam em considerar a virtude

como um certo caraacuteter e poder da faculdade-comandante da alma engendrada pela

razatildeo ou melhor um caraacuteter que eacute em si mesmo consistente firme e de razatildeo

imutaacutevel[]rdquo85

A palavra ldquohomologiardquo traduzida por ldquoconsistecircnciardquo apreende bem a

82

Id ibid p 122 83

ldquoNot even health is beneficial all the time If a brutal dictator is seeking to conscript you to become part

of a death squad then it is preferable not to be physically fit (Seneca who had some experience of

dictators recommends suicide in such instances) For this reason the Stoics argue neither health nor

wealth nor any other external object is truly beneficial at all and neither are their opposites harmful

Genuine value does not come and go with the occasionrdquo GRAVER Margaret R Stoicism and emotion

ChicagoLondon The University of Chicago Press 2007 p 49 84

LAEacuteRCIO Diogenes 789 (SVF 339) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers translations of the principal sources vol 1 Cambridge Cambridge University Press 1987

p 377 85

ldquo[hellip]All these men agree in taking virtue to be a certain character and power of the souls commanding-

faculty engendered by reason or rather a character which is itself consistent firm and unchangeable

44

essecircncia desse modelo de eacutetica pois homo-logia significa tambeacutem ldquoharmonia com a

razatildeordquo demonstrando que a virtude eacute uma consistecircncia racional86

Os estoicos advogam a tese da unidade da virtude pois quem possui uma possui

todas as virtudes87

Quem age de acordo com uma age de acordo com todas A perfeiccedilatildeo

eacute apenas atingida quando o homem possui todas as virtudes e as suas accedilotildees satildeo

praticadas de acordo com todas elas88

Ademais ter uma vida feliz significa viver em conformidade com a natureza

que implica ao mesmo tempo viver de acordo com a virtude Neste particular natureza

significa a do proacuteprio homem e de tudo que o circunda (o todo) sendo que em ambas

permeia a reta razatildeo89

A razatildeo eacute aquilo que haacute de melhor e mais peculiar aos seres

humanos Quando correta e perfeita eacute a soma total da felicidade humana90

Um ponto central na eacutetica estoica reside na construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio

O saacutebio estoico eacute o modelo do indiviacuteduo virtuoso e autossuficiente faz tudo de modo

correto consistente e seacuterio natildeo faz nada de que poderia se arrepender nem nada contra

a sua vontade natildeo eacute assustado por nada ainda que aconteccedila algo inesperado e estranho

ele vive consistentemente conforme agrave natureza e por isso estaacute sempre feliz ldquoeacute uma

faacutecil conclusatildeo para os estoicos uma vez que perceberam que o bem final eacute uma

conformidade com a natureza e viver consistentemente com a natureza o que eacute natildeo

apenas a funccedilatildeo proacutepria do homem saacutebio mas tambeacutem estaacute em seu poderrdquo91

Poreacutem para compreender as emoccedilotildees e entender melhor as caracteriacutesticas

atribuiacutedas ao saacutebio eacute preciso esclarecer alguns aspectos da psicologia estoica

especialmente os conceitos de assentimento de impressatildeo e de impulso

Ordinariamente assentir significa concordar com aderir a algo conceder

aprovaccedilatildeo No entanto na escola estoica assentir eacute um termo teacutecnico e portanto

desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica em sua sistemaacutetica filosoacutefica Assim de acordo com

reason[hellip]rdquo Cf PLUTARCO On moral virtue 44OE-441D In LONG A A SEDLEY D N The

Hellenistic philosophers p 378 86

Id ibid p 383 87

STOBAEUS 2636-24 (SVF 3280 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 379 88

PLUTARCO On Stoic self-contradictions 1046E-F (SVF 3299 243) In LONG A A SEDLEY D

N The Hellenistic philosophers p 379 89

LAEacuteRCIO Dioacutegenes 787-9 In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers p

395 90

SENECA Letters 769-10 (SVF 3200a) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 395 91

ldquoIt is an easy conclusion for the Stoics since they have perceived the final good to be agreement with

nature and living consistendy with nature which is not only the wise mans proper function but also in

his powerrdquo (trad livre) Cicero Tusculan disputations 581-2 In LONG A A SEDLEY D N The

Hellenistic philosophers p 398

45

os estoicos o objeto de assentimento eacute sempre uma impressatildeo que eacute a traduccedilatildeo do

termo grego phantasia Plutarco nos diz que uma impressatildeo eacute uma marca na alma92

sendo que Crisipo registra que eacute uma afecccedilatildeo ocorrida na alma93

quando atraveacutes da

visatildeo observamos um ramalhete de flores amarelas num vaso este objeto causa uma

modificaccedilatildeo na alma que eacute afetada provocando-nos a impressatildeo de que haacute um

ramalhete de flores amarela num vaso Assim o que eacute objeto de meu assentimento e

passa a ser a minha crenccedila eacute a impressatildeo de que existe um ramalhete de flores amarela

num vaso ldquoo ato de acreditar de assentir a uma impressatildeo eacute uma espeacutecie de aprovaccedilatildeo

agrave impressatildeo dizendo ldquosimrdquo a ela concordando que as coisas estejam certas que o

mundo realmente eacute como a impressatildeo retrata que sejardquo94

Como seria de se esperar o problema da impressatildeo e do assentimento diz

respeito agrave questatildeo do verdadeiro e do falso Se eu assentir a uma impressatildeo falsa terei

uma crenccedila falsa da realidade Por conseguinte o assentimento a uma impressatildeo

verdadeira iraacute originar uma crenccedila verdadeira sobre o mundo Poreacutem qual seria a este

respeito o criteacuterio que distinguiria o verdadeiro do falso

Nesse ponto entra em cena um tipo de impressatildeo que eacute o proacuteprio carro-chefe da

epistemologia estoica Chamada de phantasia kataleptike (impressatildeo cognitiva) ela

garante o conhecimento verdadeiro da realidade Eacute uma impressatildeo que apreende

precisamente o objeto tal qual ele eacute sem erros nem desvios conforme resume Sexto

Empiacuterico

A impressatildeo cognitiva eacute aquela que surge a partir do que eacute e eacute

marcada e impressa exatamente de acordo com o que eacute de tal modo

que natildeo poderia surgir a partir do que natildeo eacute Uma vez que eles [os

estoicos] sustentam que essa impressatildeo eacute capaz de apreender os

objetos com precisatildeo e eacute marcada com todas as suas peculiaridades de

forma artesanal eles dizem que tal impressatildeo tem cada um destes

fatores como atributo95

92

PLUTARCO On common conceptions 1084F-1085A (SVF 2847) In LONG A A SEDLEY D

N The Hellenistic philosophers p 238 93

AETIUS 4121-5 (SVF 254 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 237 94

ldquoThe act of believing of assenting to the impression is a kind of endorsement of the impression saying

lsquoyesrsquo to it agreeing that it gets things right that the world really is as the impression depicts it to berdquo

(trad livre) BRENNAN TOp cit p 59 95

ldquo(3) A cognitive impression is one which arises from what is and is stamped and impressed exactly in

accordance which what is of such a kind as could not arise from what is not Since they [the Stoics] hold

that this impression is capable of precisely grasping objects and is stamped with all their peculiarities in a

craftsmanlike way they say that it has each one of these as an attributerdquo EMPIRICUS Sextus Against

the professors 7247-52 (SVF 265) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers

p 243

46

Portanto enquanto muitas impressotildees satildeo falsas porque surgem a partir do que

natildeo eacute a impressatildeo cognitiva eacute veraz pois apenas surge a partir do que eacute De outra parte

ainda que surjam a partir do que eacute muitas impressotildees representam com falha o seu

objeto o que natildeo acontece com a impressatildeo cognitiva uma vez que o seu objeto

impressor eacute representado com exatidatildeo Assim phantasia kataleptike eacute gerada a partir

do que eacute e em perfeita correspondecircncia com o que eacute ldquopara ser kataleptic a impressatildeo

precisa ser acompanhada de um tipo de garantia se vocecirc estaacute experimentando esta

impressatildeo entatildeo as coisas satildeo realmente como a impressatildeo diz que elas satildeordquo96

E isso

soacute eacute possiacutevel porque para viver em conformidade com a natureza noacutes seres dotados de

razatildeo somos equipados pela proacutepria natureza com o instrumental necessaacuterio para

realizar distinccedilotildees precisas sobre as coisas97

Todavia eacute fundamental compreender que nem todo assentimento agraves impressotildees

eacute igual Um assentimento eacute considerado forte quando eacute insuscetiacutevel de ser alterado por

meio de questionamento racional Por sua vez a caracteriacutestica do assentimento fraco

reside na sua reversibilidade Essas diferenciaccedilotildees satildeo importantes para entender que

para os estoicos o conhecimento soacute eacute possiacutevel quando simultaneamente existe um

assentimento forte a uma impressatildeo cognitiva A ausecircncia de quaisquer destas

condiccedilotildees conduz agrave formaccedilatildeo de uma mera opiniatildeo (doxa)98

Registre-se que conceder assentimentos fortes a impressotildees cognitivas eacute algo

apenas reservado ao saacutebio o qual nunca tem opiniotildees nem estaacute sujeito ao engano99

Somente o saacutebio vive uma vida plena de coerecircncia racional pois nunca erra jamais seu

conjunto de crenccedilas incorre em contradiccedilatildeo muito menos concede assentimento a algo

caso exista a miacutenima possibilidade de que este assentimento possa ser revertido100

Uma

das consequecircncias desse alto grau de exigecircncia epistecircmica consiste no fato de que as

pessoas ordinaacuterias isto eacute todos noacutes inclusive os fundadores da escola estoica natildeo

temos conhecimento a respeito de nada pois soacute assentimos de modo fraco e por isso

possuiacutemos tatildeo-soacute opiniatildeo sobre as coisas101

96

ldquoTo be kataleptic the impression has to come with a sort of guarantee if you are having this

impression then things are really as the impression says they arerdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit

p 68 97

LONG A A SEDLEY D Op cit p 250 98

BRENNAN T Op cit p 69-70 LONG A A SEDLEY D Op cit p 256-257 99

CICERO Academica 141-2 (SVF 160) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 254 100

STOBAEUS 2111 18-1128 (SVF 3-548) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophershellip p 256 101

BRENNAN T Op cit p 72-73

47

Por uacuteltimo o impulso (hormecirc) pertence a uma especial classe de assentimento e

pode ser compreendido como o antecedente mental que gera uma accedilatildeo voluntaacuteria Antes

que no mundo externo uma accedilatildeo voluntaacuteria seja praticada deve ocorrer mentalmente

um evento que entenda que aquela accedilatildeo eacute apropriada para o caso Este evento eacute um

assentimento a uma impressatildeo ldquoimpulsoacuteriardquo102

Quando vejo um ramalhete de flores

amarelas numa loja e tenho a crenccedila de que ldquoseraacute uma boa coisa compraacute-la para colocar

no vaso da minha salardquo eu assinto a uma impressatildeo e minha mente se dirige para

realizar a accedilatildeo potencial contida na proposiccedilatildeo avaliativa da minha impressatildeo Por sua

vez o impulso como todo assentimento pode ser um episoacutedio de conhecimento ou de

opiniatildeo e por isso ldquoo Saacutebio deve-se dizer conhece o que ele estaacute fazendo e

especialmente o valor do que ele estaacute fazendo enquanto os natildeo-saacutebios desconhecem

tanto um quanto o outrordquo103

Com efeito na posse destes conceitos torna-se agora possiacutevel explanar

compreensivelmente o motivo pelo qual os estoicos desejam se livrar de todas as

emoccedilotildees (apatheia)

Primeiramente do ponto de vista linguiacutestico eacute necessaacuterio registrar que os

estoicos se referem ao presente tema por meio da palavra grega pathos cuja traduccedilatildeo

varia Long-Sedley verteram o termo por paixatildeo uma expressatildeo que hoje em dia para

a grande maioria das pessoas estranhas agrave sua etimologia jaacute natildeo reteacutem aquela ideia de

passividade derivada de passio uma vez que no uso comum da liacutengua inglesa e da

portuguesa paixatildeo busca designar de modo mais saliente um sentimento arrebatador

muitas vezes de caraacuteter eroacutetico Esta traduccedilatildeo pode se mostrar bastante conveniente ao

reduzir a uma questatildeo etimoloacutegica a disputa teoacuterica entre peripateacuteticos (metriopatheia) e

estoicos (apatheia) Ciente disso Tieleman prefere o termo ldquoafecccedilatildeordquo que natildeo tem os

problemas da atual significaccedilatildeo da palavra paixatildeo e ainda tem a vantagem de respeitar

a ideia de passividade e de um outro importante significado da palavra pathos que eacute a de

doenccedila Segundo defende eacute neste uacuteltimo sentido que em importantes aspectos Crisipo

utiliza o termo104

Neste mesmo sentido Buddensiek tambeacutem prefere o termo

afecccedilatildeo105

Preferimos no entanto utilizar o termo emoccedilatildeo porque concordando com

102

GRAVER M Op cit p 26-27 BRENNAN T Op cit p 86-88 103

ldquoThe Sage we might say knows what he is doing and especially the value of what he is doing while

the non-Sage knows neitherrdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit p 103 104

TIELEMAN T Op cit p 15-16 105

BUDDENSIEK Friedmann Stoa und epikur affect als defekte oder als weltbezug In

LANDWEER Hilge RENZ Ursula (hrsg) Klassische Emotionstheorien Von Platon bis Wittgenstein

BerlinNew York Walter de Gruyter 2008 p 69-93

48

Graver noacutes designariacuteamos com esta palavra os exemplos em que os estoicos utilizam o

termo pathos106

Ademais considerando que este trabalho natildeo trata exclusivamente

sobre a filosofia estoica utilizar o termo emoccedilatildeo se adequa aos propoacutesitos de

harmonizaccedilatildeo linguiacutestica do estudo

Dito isso para os estoicos as emoccedilotildees satildeo consideradas um ldquoimpulso que eacute

excessivo e desobediente aos ditados da razatildeo ou um movimento da alma que eacute

irracional e contraacuterio agrave naturezardquo107

Desta definiccedilatildeo muito se pode extrair

primeiramente as emoccedilotildees satildeo enquadradas como um impulso mas um impulso

qualificado de extravagante e por isso transborda os limites que a razatildeo prescreve

Num segundo momento diz-se que eacute o proacuteprio movimento irracional da alma que eacute

contraacuterio agrave natureza Em suma a referida conceituaccedilatildeo em poucas palavras demonstra

o quanto as emoccedilotildees estatildeo numa posiccedilatildeo antagocircnica aos fins da filosofia eacutetica estoica

porque elas contrariam tudo o que haacute de mais caro nesta escola de pensamento as

emoccedilotildees satildeo excessivas contraacuterias agrave natureza irracionais e desobedientes aos

comandos do logos

Uma singularidade do pensamento estoico que tambeacutem ajuda a compreender

esse posicionamento diz respeito agrave sua concepccedilatildeo de alma Conforme visto

anteriormente Aristoacuteteles concebe a alma dividida numa parte racional e numa parte

natildeo-racional sendo que uma porccedilatildeo desta uacuteltima tem a particularidade de ouvir e

obedecer a razatildeo Assim porque a virtude (excelecircncia) do todo depende da virtude

(excelecircncia) das partes o bom funcionamento da parte natildeo-racional eacute imprescindiacutevel na

eacutetica aristoteacutelica e por isso as emoccedilotildees tem um espaccedilo tatildeo importante e satildeo encaradas

de maneira positiva Ter uma boa disposiccedilatildeo emocional significa ser devidamente

afetado pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias e isso contribui decisivamente

para a aquisiccedilatildeo de uma vida feliz

Eacute bem verdade que as emoccedilotildees tambeacutem tecircm um espaccedilo muito importante na

filosofia estoica mas eacute difiacutecil afirmar que satildeo encaradas de maneira positiva a alma

estoica natildeo eacute dividida em partes nem haacute porccedilatildeo irracional pois ela eacute pura razatildeo Diz-se

entatildeo que ela eacute monoliacutetica sem possibilidade de haver conflito entre as partes ldquoos

estoicos tambeacutem afirmavam em oposiccedilatildeo aos platonistas e aos aristoteacutelicos que os

106

GRAVER M Op cit p 14-15 107

ldquoThey [the Stoics] say that passion is impulse which is excessive and disobedient to the dictates of

reason or a movement of soul which is irrational and contrary to naturerdquo (trad livre) STOBAEUS

2888-906 (SVF 3378 389 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers

p 410

49

homens satildeo racionais no sentido de que satildeo apenas racionaisrdquo108

Dessa forma as

emoccedilotildees tambeacutem se encontram em contrariedade agrave concepccedilatildeo de alma defendida pelos

fundadores estoicos

Os estoicos agrupam as emoccedilotildees em quatro grandes gecircneros dentro dos quais se

acomodam emoccedilotildees especiacuteficas

Desejo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja boa de modo que

devemos persegui-la

Medo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja ruim de modo que

devemos evitaacute-la

Prazer eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute boa de modo que

devemos ficar contentes com isso

Dor eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim de modo que

devemos ficar abatidos com isso109

Em primeiro lugar observa-se que a divisatildeo das emoccedilotildees eacute feita por criteacuterio

temporal e por criteacuterio valorativo o desejo (epithumia) e o medo (phobos) satildeo

direcionados a algo futuro enquanto o prazer (hedone) e a dor (lupe) concernem a algo

que transcorre no momento presente Por sua vez o desejo e o prazer atribuem a um

objeto um valor positivo (bom) enquanto o medo e a dor imputam a algo um valor

negativo (ruim) Em todos os casos estamos diante de uma opiniatildeo isto eacute um

assentimento fraco (reversiacutevel) a uma impressatildeo

Exemplificativamente dentro do gecircnero ldquodesejordquo enquadram-se as seguintes

emoccedilotildees em espeacutecie raiva rancor exasperaccedilatildeo amor eroacutetico saudade acircnsia No

gecircnero ldquomedordquo relutacircncia receio consternaccedilatildeo vergonha supersticcedilatildeo pavor pacircnico

No gecircnero ldquodorrdquo inveja rivalidade ciuacuteme compaixatildeo luto ansiedade preocupaccedilatildeo

anguacutestia tristeza agonia No gecircnero ldquoprazerrdquo schadenfreude encantamento etc110

Ora em vista das definiccedilotildees expostas para os estoicos as emoccedilotildees satildeo impulsos

(os antecedentes mentais da accedilatildeo) e natildeo passam de opiniatildeo isto eacute assentimento ao

falso assentimento fraco (aquele que natildeo sobrevive a questionamento racional) Assim

quem atua guiado pelas emoccedilotildees age mal porque estaraacute sempre incidindo em episoacutedios

108

ldquoThe Stoics also claimed in opposition to Platonists and Aristotelians that humans are rational in the

sense that they are only rationalrdquo (trad livre) BRENNAN Tad The old stoic theory of emotions In

SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy

Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 23 BUDDENSIEK F Op cit p 72-73 109

ldquoDesire is the opinion that some future thing is a good of such a sort that we should reach out for it

Fear is the opinion that some future thing is an evil of such a sort that we should avoid it Pleasure is the

opinion that some present thing is a good of such a sort that we should be elated about it Pain is the

opinion that some present thing is an evil of such a sort that we should be depressed about itrdquo (trad

livre) BRENNAN T Op cit 2005 p 93 110

CICERO Tusculan disputations trad Margaret Graver ChicagoLondon The University of Chicago

Press 2002 (416) p 45

50

de engano em relaccedilatildeo ao mundo arrependendo-se posteriormente do que fez Mas por

que isso ocorre

Segundo Crisipo emoccedilotildees satildeo sobretudo avaliaccedilotildees111

e por assim serem

atribuem um determinado valor a algo quando algueacutem deseja fama beleza riqueza

amor eroacutetico julga que estas coisas satildeo boas e necessaacuterias agrave sua felicidade e age em

direccedilatildeo agrave sua conquista Poreacutem ao assim proceder natildeo faz mais do que contrariar toda

eacutetica estoica porque tudo isso satildeo apenas indiferentes a uacutenica coisa boa eacute a virtude No

medo avaliamos equivocadamente a realidade entendendo que algo eacute ruim quando na

verdade o uacutenico mal eacute o viacutecio E ainda que algueacutem avalie algo adequadamente

atribuindo o valor a algo que verdadeiramente lhe corresponda as emoccedilotildees continuam

sendo irracionais porque o assentimento concedido eacute fraco e por isso vacilante

possibilitando que entremos em contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves nossas crenccedilas e condutas112

Enfim as emoccedilotildees satildeo inconsistentes e quem age impulsionado por elas eacute incapaz de

perceber as coisas como satildeo porque se encontra num estado de cegueira conforme

resume Crisipo

A raiva [orgecirc] eacute cega frequentemente impede que vejamos coisas que

satildeo oacutebvias e frequentemente se coloca no caminho de coisas que [jaacute]

estatildeo sendo compreendidasporque as emoccedilotildees tatildeo logo comecem a

atuar expulsam o raciociacutenio e as evidecircncias em contraacuterio e nos

empurram violentamente em direccedilatildeo a accedilotildees contraacuterias agrave razatildeo113

Essa explanaccedilatildeo nos leva a indagar o que efetivamente sentiria o saacutebio estoico

porque todas as emoccedilotildees acima definidas estatildeo em total contrariedade com as

caracteriacutesticas de sua figura Assim para natildeo tornaacute-lo um ser apaacutetico e insensiacutevel foi

construiacutedo um conjunto de sentimentos compatiacutevel com as qualidades do saacutebio A esta

ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees deu-se o nome de eupatheiai (eupatheia no singular)

que pode ser traduzido por ldquoboas emoccedilotildeesrdquo ou ldquosentimentos apropriadosrdquo mas que

Ciacutecero preferiu utilizar o termo ldquoconsistecircnciardquo (constatiae) Graver registra que isso

tanto pode ser uma traduccedilatildeo criativa do autor romano quanto uma terminologia

alternativa perdida do grego De toda forma consistecircncia acaba por descrever as

propriedades destes sentimentos do saacutebio que satildeo experimentados de forma racional

111

LAEacuteRCIO D Op cit (VII111) p 217 112

BRENNAN T Op cit 2005 p 96 113

ldquoAnger [orgecirc] is blind it often prevents our seeing things that are obvious and it often gets in the way

of things which are ltalreadygt being comprehended For the passions once they have started drive out

reasoning and contrary evidence and push forward violently towards actions contrary to reasonrdquo (trad

livre) PLUTARCO De virtute morali 10 (Mor 450c) apud HARRIS William V Restraining rage the

ideology of anger control in classical antiquity CambridgeMassachusetts Harvard University Press

2001 p 370

51

com prudecircncia sem engano em relaccedilatildeo agrave realidade e que atribuem os predicados de

bom e ruim agraves uacutenicas coisas que satildeo de fato boas e ruins (virtudes e viacutecios)

Assim o saacutebio natildeo sente medo mas cautela que eacute o conhecimento de um mal

futuro de modo a evitaacute-lo Natildeo haacute prazer no saacutebio mas alegria que eacute o conhecimento de

que alguma coisa presente eacute boa de sorte que se deve ficar contente com isso Ele natildeo

experimenta desejo mas vontade ou voliccedilatildeo (boulesis) que eacute o conhecimento de que

alguma coisa futura eacute boa de modo que se deve buscaacute-la114

Quanto agraves emoccedilotildees em

espeacutecie sobreviveram poucos exemplos a reverecircncia e a modeacutestia subordinam-se agrave

cautela Na alegria encontram-se o enlevo o contentamento e a equanimidade e por

fim na vontade benevolecircncia respeito amizade e afetuosidade Todavia em relaccedilatildeo agrave

dor (opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim) percebe-se que natildeo existe nenhum

eupatheia correspondente e a justificativa para isso reside no fato de que como a uacutenica

coisa ruim eacute o viacutecio e o saacutebio se livrou de todos os viacutecios ele simplesmente natildeo sente

que alguma ruim se passa com ele Assim diante da humilhaccedilatildeo da miseacuteria da fome

da doenccedila o saacutebio natildeo eacute tomado por emoccedilotildees dolorosas muito menos se torna um

sujeito infeliz porque ele adquiriu a autossuficiecircncia e sabe que tudo isso natildeo passa de

indiferentes

Frise-se que todos esses sentimentos estatildeo de acordo com a natureza e desde

que o saacutebio eacute o uacutenico que assente de modo forte a impressotildees cognitivas nunca se

arrepende posteriormente ao agir guiado por eupatheiai Ainda que algo

ordinariamente assustador se passe a exemplo de um suacutebito barulho amedrontador a

alma do saacutebio apenas se contrai leve e rapidamente por efeito de um movimento

involuntaacuterio mas muito logo percebe que nada tem para assentir nestas impressotildees e

por isso nenhum medo lhe transcorre porque ele natildeo experimenta as emoccedilotildees do

homem inferior

Assim tendo sido exposta a doutrina estoica das emoccedilotildees e percebido que o

saacutebio estoico atinge um estado que ao se livrar de toda pathecirc libertou-se do falso e

passou a atribuir valor agrave uacutenica coisa que realmente merece ser estimada (a virtude)

parte-se agora para compreender em que medida esse posicionamento influencia a

retoacuterica estoica considerando que as emoccedilotildees tradicionalmente participavam de

maneira bastante marcante da praacutetica do orador

114

BRENNAN T Op cit 2005 p 98 CIacuteCERO Op cit 2002 (412-14) p 44 GRAVER M Op

cit 2007 p 51-53 LAEacuteRCIO D Op cit VII114-117 p 221

52

Em anaacutelise da obra aristoteacutelica observou-se que embora inicialmente criacutetico de

uma retoacuterica exclusivamente centrada nas emoccedilotildees e que desviasse do assunto objeto de

controveacutersia o Estagirita muda de entendimento e faz uma explanaccedilatildeo detalhada das

emoccedilotildees e prepara satisfatoriamente o orador para utilizaacute-las em sua praxis Por sua

vez nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco as emoccedilotildees atuam destacadamente na

construccedilatildeo de uma vida virtuosa e sem elas eacute impossiacutevel tomar boas decisotildees na vida

comum Embora seja aceitaacutevel distinguir entre emoccedilotildees adequadas e inadequadas de

acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas tal classificaccedilatildeo natildeo invade o campo

da retoacuterica aristoteacutelica que se constitui num domiacutenio proacuteprio jaacute que o orador eacute

instruiacutedo para utilizar no discurso inclusive as emoccedilotildees perversas

No que concerne agrave retoacuterica estoica e comparativamente agrave obra estudada de

Aristoacuteteles dispotildee-se nitidamente de bem menos material para consulta Laeacutercio

aponta que tanto Zenatildeo quanto Crisipo escreveram manuais de retoacuterica poreacutem nada foi

preservado115

Assim o que de fato temos satildeo comentaacuterios especialmente em relaccedilatildeo

ao desempenho de oradores estoicos romanos que ajudam a construir apenas em linhas

bem gerais o que teria sido a teoria retoacuterica defendida pelos estoicos116

Primeiramente por Laeacutercio sabe-se que a retoacuterica eacute definida pelos estoicos

como a ciecircncia de bem falar numa narrativa contiacutenua e a dialeacutetica como a ciecircncia de

falar corretamente por meio de perguntas e respostas sendo que ambas compotildeem a

parte loacutegica da exposiccedilatildeo filosoacutefica A dialeacutetica eacute considerada uma virtude e por isso o

saacutebio que possui todas as virtudes tambeacutem eacute um mestre na dialeacutetica que o permite

diferenciar o verdadeiro do falso a perceber o que eacute meramente plausiacutevel e ambiacuteguo de

modo a nunca cair em truques argumentativos117

Zenatildeo informa Ciacutecero utiliza uma metaacutefora para explicar a diferenccedila entre a

dialeacutetica e a retoacuterica a dialeacutetica seria representada com uma matildeo de punhos cerrados

uma vez que o seu estilo eacute compacto Por sua vez a retoacuterica atraveacutes da palma da matildeo

aberta dado o estilo expansivo do discurso dos oradores Ele defendia tambeacutem que a

retoacuterica natildeo era algo exclusivo para oradores mas tambeacutem pertence ao domiacutenio dos

115

LAEacuteRCIO D Op cit (VII 4-5) p 115 201-202 e 317 116

ATHERTON Catherine Hand over fist the failure of stoic rhetoric In Classical quarterly 38

1988 p 393 117

LAEacuteRCIO D Op cit p 42 e 47-48

53

filoacutesofos118

Sobre este ponto Ciacutecero interessantemente relata que o estoicismo eacute a

uacutenica escola que considera a retoacuterica uma virtude e uma sabedoria119

E se de fato eacute uma virtude entatildeo a retoacuterica estoica por igual estaacute sob os

cuidados do saacutebio e em assim sendo eacute de se esperar que ela apresente pelo menos

algumas peculiaridades A primeira delas jaacute se pode antever pela proacutepria definiccedilatildeo

apresentada anteriormente por Laeacutercio natildeo encontramos referecircncia a qualquer

finalidade persuasiva em sua conceituaccedilatildeo como encontramos em Platatildeo Aristoacuteteles e

outros autores de modo que o orador estoico natildeo discursa para convencer mas para

bem falar no sentido de falar corretamente

Ciacutecero eacute enfaacutetico ao detalhar uma seacuterie de dificuldades nesta retoacuterica O primeiro

problema diz respeito agrave transferecircncia do modelo da dialeacutetica para a retoacuterica Nesse

sentido Brutus assevera ldquo[] praticamente todos os adeptos da escola estoica satildeo

muito haacutebeis em argumentos precisos trabalham por regras e sistema e satildeo bons

arquitetos no uso das palavras mas ao levaacute-los da discussatildeo para a oratoacuteria percebe-se

o quatildeo satildeo pobres e sem recursosrdquo120

Concordando com a afirmaccedilatildeo Ciacutecero diz que na

verdade a atenccedilatildeo dos estoicos estaacute absorvida na dialeacutetica e por isso utilizam um estilo

que eacute muito compacto e discursivo para o emprego no foacuterum judiciaacuterio ou na

assembleia popular121

Tambeacutem eacute na dialeacutetica e natildeo na retoacuterica que se concentra o ensino sobre as cinco

virtudes de estilo hellenismus que consiste no uso de uma linguagem sem erro

gramatical e livre de vulgaridades clareza que eacute o uso de uma linguagem apresentada

de maneira inteligiacutevel concisatildeo ou brevidade que eacute o emprego de palavras natildeo mais do

que o estritamente necessaacuterio para apresentar um tema adequaccedilatildeo o uso de um estilo

de linguagem apropriado ao tema distinccedilatildeo que consiste em evitar o coloquialismo122

Ao utilizar todas essas recomendaccedilotildees no terreno da oratoacuteria Ciacutecero diz que isso resulta

num estilo sem fluecircncia sem vida magro compacto e insignificante ldquose algum homem

118

CICERO Op cit 2004 II17 p 32 119

CICERO On the orator book III trad H Rackham CambridgeMassachusetts Harvard University

Press 1942 (III 65) p66 120

ldquo[] pratically all adherents of the Stoic school are very able in precise argument they work by rule

and system and are fairly architects in the use of the words but transfer them from discussion to

oratorical presentation and they are found poor and unresourcefulrdquo (trad livre) CICERO Op cit

1962 (118) p 107 121

CICERO Op cit 1962 (119-120) p 107-108 122

LAEacuteRCIO D Op cit (VII-59) p 167-168 ATHERTON C Op cit p 396

54

aconselhar esse estilo seria apenas no sentido de que ele eacute inadequado para um

oradorrdquo123

Todavia eacute no campo das emoccedilotildees que a eacutetica estoica tem sua influecircncia decisiva

para a retoacuterica Uma vez que a figura normativa do saacutebio se livrou de toda pathe a

retoacuterica estoica natildeo faz uso de emoccedilotildees tradicionalmente tatildeo importantes para o orador

tais como o medo a compaixatildeo a ira ou a indignaccedilatildeo porque tudo isso satildeo impulsos

excessivos irracionais contraacuterios agrave natureza sendo errado corromper a cogniccedilatildeo dos

destinataacuterios do discurso por meio de tais artifiacutecios Assim ldquoo assentimento do puacuteblico

natildeo pode ser conquistado pelo apelo agrave compaixatildeo ou agrave admiraccedilatildeo ou despertando a sua

ira ou jogando com o seu esnobismo estupidez ou vulgaridaderdquo124

Eacute certo que o saacutebio

experimenta alguns bons sentimentos (eupatheiai) mas ainda que permitido o seu uso

no discurso o seu efeito praacutetico eacute nulo

Embora expressamente nomeada como ldquoretoacutericardquo pelos estoicos eacute difiacutecil

encaixar esse modelo discursivo dentro do quadro de referecircncias que entendemos por

retoacuterica isto eacute uma disciplina preocupada em fornecer os instrumentos necessaacuterios agrave

persuasatildeo pelo discurso Atherton nesse sentido chega agrave conclusatildeo de que ldquo[] natildeo

existe tal coisa como uma lsquoretoacuterica estoicarsquo e discuti-la natildeo eacute possiacutevel natildeo (a desculpa

usual) porque inexiste evidecircncia mas porque natildeo existe nada para falar a seu

respeitordquo125

Por isso ao comentar sobre os manuais de retoacuterica de Crisipo e de

Cleantes Ciacutecero diz que eles satildeo muito bons para quem quisesse ficar calado126

Todavia a despeito do evidente paradoxo de ensinar uma retoacuterica que natildeo tinha

o miacutenimo interesse em persuadir existia de fato uma retoacuterica estoica e ela era objeto

de ensino e de praacutetica E tanto era levada a seacuterio que existiam oradores romanos que se

guiavam por este meacutetodo Ciacutecero cita os nomes de Tuberius Fannius Rutilius e Cato

Dentre estes o uacutenico estoico que tinha perfeita eloquecircncia (summam eloquentiam) era

Cato mas a justificativa para isto eacute bem simples Cato aprendeu o que tinha de bom

para aprender com a filosofia estoica mas a retoacuterica mesmo ele estudou e praticou com

123

ldquoif any man commends this style it will only be with the qualification that it is unsuitable to an oratorrdquo

(trad livre) CICERO On the orator book II trad E W Sutton CambridgeMassachusetts Harvard

University Press 1942 (159) p 313 124

ldquoan audiencersquos assent cannot be secured by winning its pity or admiration or by arousing its anger or

by playing on its snobbery or stupidity or vulgarityrdquo (trad livre) ATHERTON C Op cit p 411

Nesse mesmo sentido cf KONSTAN D Op cit p 421 125

ldquo[hellip] there is no such thing as lsquoStoic rhetoricrsquo and discussing it is not possible not (the usual excuse)

because there is no evidence but because there is nothing to talk aboutrdquo ATHERTON C Op cit p

426 126

CICERO Op cit 2004 (IV-7) p 91

55

os mestres do discurso Publius Rutilius Rufus num outro extremo entrou para histoacuteria

como um exemplo de fracasso desse meacutetodo ao se defender no estilo estoico (triste

seco e severo) de uma injusta acusaccedilatildeo de extorsatildeo se recusou a utilizar de eloquecircncia

ou fazer qualquer apelo emotivo e acabou condenado assim como Soacutecrates127

Uma vez finalizada a exposiccedilatildeo a respeito da eacutetica e da retoacuterica estoica

finalmente temos em matildeo o posicionamento a respeito das emoccedilotildees de duas respeitadas

fontes da Antiguidade

De um lado e em resumo temos a abordagem de Aristoacuteteles que tanto em sua

eacutetica quanto na sua retoacuterica esboccedila uma visatildeo positiva a respeito do tema Haacute uma forte

articulaccedilatildeo do Estagirita no sentido de destacar a relevacircncia das emoccedilotildees nestes dois

campos No fim do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco destaca-se que a virtude da totalidade

da alma eacute dependente da virtude de suas partes (uma racional e outra natildeo-racional) No

Livro II explana-se de que modo a parte natildeo-racional iraacute desempenhar bem a sua

funccedilatildeo Assim enfatiza-se o quatildeo importante eacute ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que

significa ser afetado adequadamente pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias

Desse modo as emoccedilotildees satildeo sumamente relevantes para uma boa decisatildeo eacutetica pois

para o agente moral aristoteacutelico eacute impossiacutevel deliberar bem apenas com racionalidade

strictu sensu Por outro lado conforme jaacute frisamos a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees

adequadas e inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas

realizada no Livro II da Eacutetica a Nicocircmaco natildeo invade o domiacutenio da retoacuterica muito

menos inviabiliza a tarefa persuasiva do orador

De seu turno o posicionamento estoico a respeito das emoccedilotildees necessita ser lido

de acordo com a sua peculiar sistemaacutetica filosoacutefica o fim do progresso para os estoicos

seria alcanccedilar a compreensatildeo correta do mundo128

e atingir uma felicidade

autossuficiente As emoccedilotildees portanto estatildeo na contramatildeo de tal propoacutesito porque por

meio delas sempre avaliamos equivocadamente a realidade atribuiacutemos valores a bens a

que natildeo deveriacuteamos dar a miacutenima importacircncia agimos sobretudo mal pois natildeo

percebemos as coisas como elas realmente satildeo No entanto todo esse sistema filosoacutefico

invadiu o domiacutenio da retoacuterica originando um meacutetodo no miacutenimo sui generis porque

estava em total contraposiccedilatildeo com os fins de um discurso persuasivo A retoacuterica estoica

127

CICERO Op cit 1942 (I-229-230) CICERO Op cit 1962 (113-116) p 103-105 128

ldquoFor the founding Stoics the endpoint of progress was simply that one should come to understand the

world correctlyrdquo GRAVER M Op cit p 210

56

natildeo emprega emoccedilotildees natildeo utiliza ornamentos valoriza o miacutenimo de palavras possiacutevel e

coloca secamente os fatos para serem assentidos pelo puacuteblico

Por uacuteltimo independentemente das peculiaridades de cada sistema filosoacutefico

exposto uma coisa havia em comum entre Aristoteacuteles e os estoicos as emoccedilotildees eram

levadas extremamente a seacuterio e ambos natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar

das emoccedilotildees Mesmo para o estoicismo que se mostra uma escola tatildeo sistemaacutetica tatildeo

loacutegica que valoriza tanto a coerecircncia e a consistecircncia racional natildeo se pode negar que as

emoccedilotildees (ainda que hostilmente) entrem de maneira destacada em seu sistema

filosoacutefico Conforme destaca Sorabji os estoicos realizaram um debate de alto niacutevel

sobre o tema e ateacute hoje satildeo lembrados por isso129

129

SORABJI Richard Chrysippus ndash Posidonius ndash Seneca a high-level debate on emotion In

SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy

Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 149

57

2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A

INTERDISCIPLINARIDADE

21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo

No Capiacutetulo anterior iniciamos a exposiccedilatildeo deste trabalho oferecendo um

panorama sobre as origens da retoacuterica O objetivo da contextualizaccedilatildeo foi evidenciar

que o desenvolvimento do estudo das emoccedilotildees no discurso soacute foi possiacutevel dentro de

uma atmosfera que valorizava o debate e a fala persuasiva em puacuteblico Portanto foi

neste ambiente Grego livre e altamente retoacuterico que se observou a necessidade de se

refletir a respeito da dimensatildeo emotiva do discurso porque se chegou agrave conclusatildeo de

que a formaccedilatildeo de um juiacutezo acerca de um determinado assunto eacute dependente do estado

emocional do sujeito

Jaacute este Capiacutetulo tem outro propoacutesito pois num vieacutes mais praacutetico objetiva

investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash

MTA130

que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de

Toulmin e de Perelman-Tyteca ambas datadas de 1958 (respectivamente Os Usos do

Argumento e o Tratado da Argumentaccedilatildeo ou a Nova Retoacuterica) Aleacutem de averiguar a

relevacircncia das emoccedilotildees na MTA tambeacutem procuraremos criteacuterios de anaacutelise e de

julgamento da dimensatildeo emotiva do discurso que possam ser uacuteteis para o Capiacutetulo III

momento em que iremos realizar a anaacutelise e a avaliaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo de decisotildees

do Supremo Tribunal Federal - STF

Assim tal como fizemos no Capiacutetulo anterior tentaremos fornecer alguma

contextualizaccedilatildeo ao aparecimento da MTA pois como natildeo existe conhecimento

humano a-histoacuterico toda novidade do pensamento vem comprometida com os seus

problemas de eacutepoca

Para tanto a nossa intenccedilatildeo consiste em perquirir que tipo de discurso

caracterizou o contexto poliacutetico europeu que precedeu o surgimento da MTA A poliacutetica

sempre seraacute uma influecircncia importante no que diz respeito a uma teoria que se proponha

agrave anaacutelise e agrave avaliaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo E isso natildeo apenas porque a retoacuterica que eacute o

seu antecedente teoacuterico considerava desde o iniacutecio o discurso poliacutetico como um dos

130

Utilizamos a expressatildeo ldquoModerna Teoria da Argumentaccedilatildeordquo para contrastar com a Teoria da

Argumentaccedilatildeo aristoteacutelica aderindo agrave terminologia de Cristof Rapp e Tim Wagner RAPP Cristof

WAGNER Tim On some aristotelian sources of modern argumentation theory In Argumentation

Journal vol 27 Issue 1 2013 p 7-30

58

seus gecircneros por excelecircncia de discurso mas porque o discurso da esfera poliacutetica por

ter a qualidade de atingir a todos indistintamente acaba por ser um ponto comum de

reflexatildeo sobre a forma de teorizar a argumentaccedilatildeo

Assim e considerando tal finalidade eacute difiacutecil escolher outro evento poliacutetico que

natildeo os movimentos totalitaacuterios para falar neste toacutepico E desde jaacute sobressai uma

especiacutefica forma de comunicaccedilatildeo atraveacutes do qual tais movimentos estabeleciam contato

com a massa a propaganda

Embora hoje a palavra ldquopropagandardquo seja frequentemente associada a uma

informaccedilatildeo de conteuacutedo enganoso Kallis lembra que no iniacutecio do seacuteculo XX ela natildeo

desfrutava de tatildeo maacute-fama pois era empregada de modo mais isento a fim de

descrever um modo de gestatildeo da informaccedilatildeo com o objetivo de comunicar a um grande

nuacutemero de indiviacuteduos e assim obter uma especiacutefica resposta destes Dessa forma a

propaganda como espeacutecie de comunicaccedilatildeo e de persuasatildeo caracteriacutestica da

modernidade aparece com o objetivo de (i) suprir a enorme demanda de informaccedilatildeo e

de formaccedilatildeo de opiniatildeo da crescente esfera puacuteblica (ii) facilitar atraveacutes de variados

meios a absorccedilatildeo de tais informaccedilotildees131

Poreacutem para aleacutem da simples difusatildeo de informaccedilatildeo a propaganda sendo

absorvida na engrenagem do Estado aparece com outros objetivos tais como a

integraccedilatildeo a orientaccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo a continuidade a diversatildeo Diante de

sociedades saturadas com tanta informaccedilatildeo a propaganda possibilita a criaccedilatildeo de um

ambiente comunicativo comum carregado de siacutembolos significados e desejos

compartilhados Ela tambeacutem orienta e mobiliza o indiviacuteduo em direccedilatildeo a determinados

comportamentos e accedilotildees traz uma narrativa que promove uma continuidade no tempo

conectando passado presente e futuro por fim tem a capacidade de promover diversatildeo

e relaxamento evitando o cansaccedilo132

Todos estes objetivos satildeo de suma importacircncia no contexto de naccedilotildees em guerra

e eacute em tal conjuntura histoacuterica que o debate acerca de uma abordagem sistemaacutetica sobre

a propaganda se desenvolve conforme explana Kallis

Natildeo eacute coincidecircncia que o debate sobre a formulaccedilatildeo de uma

abordagem sistemaacutetica para a lsquopropagandarsquo emergiu no contexto da

Primeira Guerra Mundial na Alemanha e em outros lugares Numa

eacutepoca de completa mobilizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo de um objetivo

nacional (tal como a vitoacuteria no confronto militar) a necessidade por

131

KALLIS Aristotle A Nazi propaganda and the second world war New York Palgrave

Macmillan 2005 p 1 132

Id ibid p 2

59

estrateacutegias de informaccedilatildeo metoacutedicas e eficientes que viessem reforccedilar

a moral do front nacional e mobilizassem toda a sociedade era

particularmente destacada133

Ellul ressalta que para atingir seus propoacutesitos comunicativos e ser de fato

efetiva a propaganda precisa ser total isto eacute ela necessita utilizar todas as miacutedias

disponiacuteveis no momento (televisatildeo raacutedio filme jornal revista internet etc) Uma vez

que cada tecnologia por suas proacuteprias caracteriacutesticas tem uma esfera de alcance

limitada haacute necessidade de que uma miacutedia complemente a outra de modo a realizar

uma completa dominaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo134

Em relaccedilatildeo aos efeitos sobre os seus destinataacuterios a propaganda eacute acusada de

irrestrita manipulaccedilatildeo Natildeo haacute mais pensamento e accedilatildeo orientados por uma ideologia

espontacircnea Tudo resta condicionado pela trilha deliberadamente condutora da

propaganda Atraveacutes da criaccedilatildeo de estereoacutetipos enfraquece-se a capacidade de criacutetica e

de reflexatildeo da populaccedilatildeo Os detalhes e as contradiccedilotildees de opiniotildees individuais satildeo

eliminados a fim de que tudo reste homogeneizado Quanto mais potente a propaganda

mais fraco eacute o dissenso jaacute que o pensamento puacuteblico se esgota em raciociacutenios

simploacuterios maniqueiacutestas sem qualquer complexidade135

Ademais apoacutes a ingerecircncia da propaganda o que antes eram apenas sentimentos

sociais vagos e dispersos transformam-se em ideias delineadas Ellul aponta um dos

grandes trunfos para a propaganda atingir tamanho sucesso persuasivo o uso das

emoccedilotildees ldquoIsto eacute ainda mais notaacutevel porque a propaganda como vimos age muito mais

atraveacutes de choque emocional do que por convicccedilatildeo racionalrdquo136

Nada eacute mais interessante poreacutem do que ler os proacuteprios mentores da propaganda

discorrerem a respeito do tema a fim de realmente compreender de que modo eles

enxergavam o papel da propaganda no seu projeto poliacutetico e qual valor atribuiacuteam agraves

emoccedilotildees no intento persuasivo A este respeito no arquivo alematildeo de propaganda satildeo

valiosas as informaccedilotildees contidas no perioacutedico mensal do partido nazista Unser Wille

133

ldquoit is no coincidence that the debate about the formulation of a systematic approach to lsquopropagandarsquo

emerged in the context of the First World War in Germany and elsewhere At a time of full mobilisation

for the attainment of a national goal (such as victory in the military confrontation) the need for

methodical and efficient information strategies that would bolster the morale of the home front and

mobilise society was particularly highlightedrdquo (trad livre) Id ibid p 2 134

ELLUL Jacques Propaganda the formation of menrsquos attitudes trad Konrad Kellen e Jean Lerner

New York Vintage Book 1973 p 9 135

Id ibid p 201-206 136

ldquoThis is all the more remarkable because propaganda as we have seen acts much more through

emotional shock than through reasoned convictionrdquo (trad livre) Id ibid p 204

60

und Weg (Nosso Desejo e Caminho) publicado entre 1931 a 1941 e direcionado a

instruir os seus propagandistas

No perioacutedico de inauguraccedilatildeo em 1931 Goebbels foi bastante direto em afirmar

a suma importacircncia da propaganda no afatilde de alcanccedilar o almejado poder poliacutetico A

propaganda nacional socialista teria a missatildeo de transformar o caraacuteter da populaccedilatildeo e

para tanto precisaria traduzir numa linguagem clara e acessiacutevel toda a teoria nazista

Com a ajuda indispensaacutevel da engrenagem propagandiacutestica o partido ganharia novos

membros e eleitores e convenceria a todos a respeito do acerto de suas ideias

Assim a propaganda nacional-socialista eacute o aspecto mais importante

da nossa atividade poliacutetica Ela estaacute no primeiro plano dos nossos

objetivos praacuteticos Sem ela todo o nosso conhecimento seria inuacutetil

sem efeito

[]

A propaganda nacional-socialista serve para educar o povo Sua tarefa

natildeo eacute apenas ganhaacute-los para as tarefas de hoje mas ajudar na

transformaccedilatildeo de caraacuteter das grandes massas Estamos convencidos de

que uma nova poliacutetica na Alemanha soacute eacute possiacutevel apoacutes uma completa

transformaccedilatildeo do nosso caraacuteter nacional depois de toda uma nova

maneira nacional de pensar137

Em 1934 num artigo intitulado Politische Propaganda (Propaganda Poliacutetica)

Schulze-Wechsungen novamente enfatizou o papel da propaganda nacional socialista no

intuito de conquistar a populaccedilatildeo alematilde Para isso exalta-se o poder que a propaganda

possui de trabalhar as emoccedilotildees do povo pois sem isso restaria impossiacutevel atingir

convincentemente as massas

Poucas pessoas satildeo capazes de trazer o coraccedilatildeo e a mente em pleno

acordo A propaganda frequentemente tem particular importacircncia na

medida em que fala para as emoccedilotildees em vez de para o puro intelecto

O indiviacuteduo bem como as massas estatildeo sujeitos a lsquoatitudesrsquo suas

emoccedilotildees determinam sua condiccedilatildeo O poliacutetico natildeo pode friamente

ignorar essas emoccedilotildees ele deve reconhecer e compreendecirc-las se

deseja escolher o que eacute adequado da propaganda para atingir seus

objetivos138

137

ldquoThus National Socialist propaganda is the most important aspect of our political activity It is in the

foreground of our practical goals Without it all our knowledge would be fruitless without effect

[hellip]

National Socialist propaganda serves to educate the people Its task is not only to win them for the tasks

of today but to assist in the transformation of the character of the broad masses We are convinced that a

new politics in Germany is possible only after a complete transformation of our national character after

an entirely new national way of thinkingrdquo (trad livre) GOEBBELS Joseph Will and way In Wille und

Weg vol 1 1931 p 2-5 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-

archivewillehtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 138

ldquoFew people are able to bring heart and mind into full agreement Propaganda often has particular

importance in that it speaks to the emotions rather than to pure understanding The individual as well as

the masses are subject to lsquoattitudesrsquo their emotions determine their condition The politician may not

coldly ignore these emotions he must recognize and understand them if he is to choose the proper of

propaganda to reach his goalsrdquo (trad Livre) SCHULZE-WECHSUNGEN Politische propaganda In

61

Poreacutem eacute num artigo de tiacutetulo bastante sugestivo ldquoCoraccedilatildeo ou Razatildeordquo de 1937

direcionado para os oradores do partido que se discute espirituosamente qual eacute a

melhor forma de obter adesatildeo das pessoas que vatildeo aos encontros do partido Apoacutes

alguma explanaccedilatildeo realiza-se de iniacutecio uma forte criacutetica a certos oradores que buscam

apresentar as ideias do nacional-socialismo num estilo matemaacutetico por meio de

argumentos precisos de estatiacutestica cheios de detalhes tal como os oradores estoicos

talvez fariam ldquoexistem oradores que investigam e esculpem o seu assunto com exatidatildeo

quase cientiacutefica e esquecem totalmente que eles deveriam estar pregando uma visatildeo de

mundordquo139

Assim lembra-se que caso os primeiros oradores do partido nazista buscassem

novos adeptos por meio de um discurso cientiacutefico matemaacutetico cheios de detalhes eles

ainda estariam tentando conquistar o poder Portanto um discurso racional seria a pior

das opccedilotildees para os propoacutesitos do partido

Desse modo a soluccedilatildeo parece bastante evidente o discurso precisaria sair do

coraccedilatildeo do orador para o coraccedilatildeo dos seus destinataacuterios Em outras palavras caso

pretenda sucesso a comunicaccedilatildeo precisaria ser emotiva porque o ecircxito da fundaccedilatildeo do

partido assim como o caminho ateacute a conquista do poder ocorreu desta maneira O

convencimento do povo alematildeo natildeo poderia ser feito de modo racional

O orador e ele era a forccedila do corpo de oradores do nacional

socialismo natildeo falou para a razatildeo mas para o coraccedilatildeo Ele falou de

seu coraccedilatildeo para o coraccedilatildeo do seu ouvinte E tatildeo melhor ele

compreendeu como executar este apelo para o coraccedilatildeo tatildeo melhor ele

explorou isso e tatildeo mais receptivo foi o puacuteblico agrave sua mensagem

Naquele tempo algueacutem natildeo poderia completamente persuadir o povo

alematildeo pelo argumento racional as coisas funcionaram mal para os

partidos que tentaram essa abordagem As pessoas foram conquistadas

pelo homem que atingiu a corda que os outros tinham ignorado ndash as

sensaccedilotildees o sentimento ou como se queira chamaacute-lo o coraccedilatildeo140

Unser wille und weg vol 4 1934 p 323-332 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-

propaganda-archivepolprophtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 139

ldquoThere are speakers who investigate and carve up their subject with almost scientific exactitude and

utterly forget that they are supposed to be preaching a worldviewrdquo (trad livre) RINGLER Hugo Heart

or Reason what we donrsquot want from our speakers In Unser wille und weg vol 7 1937 p 245-249

Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-archiveringlerhtm Acesso em 11 de

janeiro de 2015 140

ldquoThe speaker and he was the strength of the National Socialist Speakerrsquos Corps spoke not to the

understanding but to the heart He spoke out of his heart into the heart of his listener And the better he

understood how to execute this appeal to the heart the more willingly he exploited it and the more

receptive was the audience to his message One could not at all at that time persuade the German people

by rational argument things worked out badly for parties that tried that approach The people were won

by the man who struck the chord that others had ignored mdash the feelings the sentiment or as one wants to

62

Diante de tudo o quanto foi aqui exposto se pudermos eleger algo traumaacutetico

com o qual a MTA teve que lidar jaacute no seu nascimento natildeo poderia haver melhor

candidato do que todo esse modelo de propaganda defendido pelos movimentos

totalitaacuterios e especialmente todo o forte apelo emotivo envolvido em seu discurso

Plantin baseado na classificaccedilatildeo encontrada na obra de Tchakhotine (ldquoa

violaccedilatildeo das massas pela propaganda poliacuteticardquo) lembra que a propaganda dos regimes

totalitaacuterios eacute considerada uma ldquosensopropagandardquo pois se caracteriza pelo apelo aos

sentimentos irracionais do indiviacuteduo Em contraposiccedilatildeo alega a existecircncia de uma

ldquoratiopropagandardquo isto eacute uma propaganda baseada na razatildeo141

Portanto eacute neste contexto pela busca de uma ldquoratiopropagandardquo e de um

repensar sobre o logos que os estudos da argumentaccedilatildeo reaparecem com o preciso fim

de rechaccedilar o modelo de discurso totalitaacuterio fundado em emoccedilotildees e possibilitar o

surgimento de um padratildeo de discurso racional que viabilizasse a democracia142

22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as

emoccedilotildees no discurso

Neste toacutepico iniciando efetivamente a busca por criteacuterios para anaacutelise e

avaliaccedilatildeo do discurso emotivo a ser realizado no Capiacutetulo III intencionamos realizar a

investigaccedilatildeo da importacircncia das emoccedilotildees para Viehweg Toulmin e Perelman-Tyteca

A nossa escolha por tais autores justifica-se por razotildees evidentes ao mesmo

tempo em que satildeo os precursores contemporacircneos de toda uma geraccedilatildeo de estudiosos da

argumentaccedilatildeo e da retoacuterica guardando por isso uma proeminente posiccedilatildeo simboacutelica

em qualquer estudo sobre o assunto tais autores chegaram a elaborar cada qual uma

abordagem teoacuterica proacutepria

Ressalte-se que o fato de termos no Capiacutetulo I investigado a importacircncia das

emoccedilotildees na retoacuterica aristoteacutelica nos coloca agora num local privilegiado Isso porque

natildeo apenas jaacute sabemos nesta altura do trabalho como foi elaborada teoricamente a

primeira abordagem emotiva do discurso em nosso pensamento ocidental mas tambeacutem

call it the heartrdquo (trad livre) Id ibid Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-

archiveringlerhtm Acesso em 11 de janeiro de 2015 141

PLANTIN Christian A argumentaccedilatildeo histoacuteria teorias perspectivas trad Marcos Marcionilo Satildeo

Paulo Paraacutebola Editorial 2013 p 20-21 142

Id ibid p 21

63

temos em matildeo um referencial fundamental para prosseguir nesta obra uma vez que

Aristoacuteteles foi o ponto de partida para a MTA

Isso natildeo significa dizer ressalta Rapp-Wagner que todos os teoacutericos da MTA

satildeo em um ou em outro sentido aristoteacutelicos mas que eles foram significativamente

influenciados pela teoria aristoteacutelica da argumentaccedilatildeo143

Em relaccedilatildeo a Toulmin e Perelman-Tyteca destaca-se que ldquoo programa que eacute

realizado no Usos do Argumento e na Nova Retoacuterica elabora algo como uma mistura da

Toacutepica e da Retoacuterica de Aristoacuteteles []rdquo144

Assim enquanto o esquema argumentativo

de Toulmin estaacute mais proacuteximo da Toacutepica o de Perelman-Tyteca estaacute da Retoacuterica Desse

modo a pergunta que fazemos eacute a seguinte teriam estes autores sido influenciados

tambeacutem pela abordagem aristoteacutelica das emoccedilotildees

Antes de analisar os chamados ldquopais fundadoresrdquo da Moderna Teoria da

Argumentaccedilatildeo (Toulmin e Perelman-Tyteca) conveacutem examinar em primeiro lugar o

pensamento de Viehweg que se natildeo eacute costumeiramente chamado de um fundador da

MTA pode-se dizer que foi um dos importantes precursores de tal movimento e

justifica uma anaacutelise neste mesmo toacutepico

Em 1953 Viehweg lanccedila a primeira ediccedilatildeo da sua obra Toacutepica e Jurisprudecircncia

que se dedica a investigar a relaccedilatildeo entre o saber juriacutedico e a retoacuterica Partindo do

trabalho de Vico ldquoDe nostre temporis studiorum rationerdquo que realiza uma comparaccedilatildeo

entre o meacutetodo de estudo da Antiguidade (retoacutericotoacutepico) e o da modernidade

(criacuteticocartesiano) a fim de demonstrar as desvantagens deste uacuteltimo e sua

inaplicabilidade agrave sabedoria praacutetica Viehweg problematiza a utilizaccedilatildeo dos modelos

oriundos das ciecircncias exatas para a estruturaccedilatildeo do pensamento juriacutedico conforme

expotildee Roesler

A partir da alusatildeo de Vico o problema que move a investigaccedilatildeo de

Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a

sistematizaccedilatildeo dedutiva pretendida pelos modelos matematizantes de

ciecircncia que predominaram a partir do seacuteculo XVII ser inadequada

para organizar o saber juriacutedico e dele retirar ou nele ocultar

caracteriacutesticas fundamentais145

Assim a preferecircncia do autor alematildeo pelo uso do vocaacutebulo ldquoJurisprudecircnciardquo um

termo que alude agrave eacutetica da Antiguidade claacutessica ao inveacutes de ldquoCiecircncia do Direitordquo o

143

RAPP C WAGNER T Op cit p 8 144

ldquothe program that is carried out in The Use of Arguments and in The New Rhetoric elaborates on

something like a blend of Aristotlersquos Topics and Rhetoric [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 8 145

ROESLER Claacuteudia Rosane Theodor Viehweg e a Ciecircncia do Direito toacutepica discurso racionalidade

Arraes Editores Belo Horizonte 2013 p 23

64

qual transmitiria a ideia de um saber rigorosamente cientiacutefico demostra a sua atitude

questionadora em relaccedilatildeo ao padratildeo cientiacutefico elaborado a partir de Descartes e

supostamente emprestaacutevel ao direito146

Resgatando o pensamento de Aristoacuteteles e de Ciacutecero e observando que o saber

juriacutedico eacute uma teacutecnica orientada para a soluccedilatildeo de problemas a tese de Viehweg se

funda na ideia de que a Jurisprudecircncia possui uma estrutura toacutepica Para o filoacutesofo

germacircnico o aspecto mais importante da toacutepica eacute ser uma teacutecnica de pensamento que

enfatiza os problemas ldquoa funccedilatildeo dos topoi e eacute indiferente que esses topoi se

apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais consiste pois no fato de servir

agrave discussatildeo dos problemasrdquo147

A relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia reside justamente nesse liame Ambas se

orientam pelo problema E por isso uma teacutecnica que privilegie o tratamento de

problemas se revela mais adequada ao direito

Se a Jurisprudecircncia for uma aacuterea de problemas na qual nunca se pode

afastar completamente a irrupccedilatildeo de questotildees novas e a necessidade

de reavaliar as premissas jaacute preparadas anteriormente ou seja na qual

o problema eacute um dado constante e natildeo eliminaacutevel entatildeo podemos

pensar que a toacutepica enquanto procedimento de busca de premissas

confere-lhe a estrutura fundamental148

Ora mas se Viehweg evidencia a relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia e

demonstra a partir do trabalho teoacuterico de Aristoacuteteles e de Ciacutecero a importacircncia da

retoacuterica para o direito ele natildeo chega a explorar o viacutenculo entre as emoccedilotildees e a

argumentaccedilatildeo juriacutedica149

Eacute verdade conforme enfatiza Roesler que o referido autor

natildeo propotildee realizar uma anaacutelise exaustiva sobre o tema Mas eacute certo dizer por outro

lado que natildeo temos na abordagem de Viehweg nenhuma tentativa de anaacutelise da

relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo juriacutedica150

146

ROESLER C R O papel de Theodor Viehweg na fundaccedilatildeo das teorias da argumentaccedilatildeo juriacutedica

Revista Eletrocircnica Direito e Poliacutetica Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Ciecircncia Juriacutedica da

UNIVALI Itajaiacute v 4 n 3 3ordm quadrimestre de 2009 pp 36-54 p 39 147

VIEHWEG Theodor Toacutepica e Jurisprudecircncia uma contribuiccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo dos fundamentos

juriacutedico-cientiacuteficos trad Kelly Susane Alflen da Silva Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2008

p 39 148

ROESLER C ROp cit 2013 p 142 149

Sobre a importacircncia da toacutepica ciceroniana em Viehweg cf ROESLER C R CARVALHO Angelo

Gamba Prata de A recepccedilatildeo da Toacutepica ciceroniana em Theodor Viehweg In Direito amp Praxis vol 6 nordm

10 2015 p 26-48 150

A partir do trabalho de Viehweg surge na Alemanha a Escola de Mainz e a retoacuterica analiacutetica atraveacutes

de Ballweg e Sobota No Brasil Adeodato defende uma retoacuterica realista como meacutetodo para o estudo do

direito Cf ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Uma Teoria Retoacuterica da Norma Juriacutedica e do Direito Subjetivo

Satildeo Paulo Editora Noeses 2011 Sobre uma anaacutelise retoacuterica da corte constitucional brasileira e alematilde cf

65

De outra parte o modelo de anaacutelise de argumentos desenvolvido por Toulmin

realiza uma criacutetica ao modo pelo qual a loacutegica formal vinha sendo aplicada ao campo da

argumentaccedilatildeo Logo na abertura da sua obra ele demonstra a preocupaccedilatildeo pela maneira

como os argumentos satildeo utilizados na praacutetica e pela forma como satildeo teorizados151

Assim sua abordagem preocupa-se em desenvolver um modelo racional de anaacutelise com

o objetivo de alargar o campo da loacutegica isto eacute possibilitar ldquo[] uma transformaccedilatildeo da

loacutegica de ciecircncia formal em ciecircncia praacuteticardquo152

Em seu conhecido layout de argumentos estatildeo presentes seis elementos uma

conclusatildeo ou alegaccedilatildeo (claim) que eacute afirmada com base em um dado (date) o qual eacute

uma informaccedilatildeo ou algo conhecido do qual se pode tirar uma conclusatildeo uma garantia

(warrant) que eacute considerada uma lei de passagem isto eacute ela autoriza o passo

argumentativo entre o dado e a alegaccedilatildeoconclusatildeo um suporte (backing) que por

vezes eacute necessaacuterio para reforccedilar a garantia um modalizador ou qualificador (qualifier)

que eacute uma espeacutecie de atenuante (ldquomitigadorrdquo) entre a passagem dos dados para a

conclusatildeo e a refutaccedilatildeorestriccedilatildeo (rebuttal) que satildeo aplicadas agrave garantia a fim de retirar

sua autoridade geral

Apoacutes descrever tais elementos natildeo eacute preciso ir mais longe para observar que

este modelo natildeo busca analisar a dimensatildeo emotiva do discurso Por meio dele eacute

possiacutevel fazer certos tipos de anaacutelise mas natildeo a que noacutes pretendemos realizar As

noccedilotildees de orador e de auditoacuterio estatildeo ausentes natildeo havendo a integraccedilatildeo de tal layout a

um esquema comunicativo153

E eacute por isso que se coloca Toulmin mais perto da

dialeacutetica do que da retoacuterica

Por sua vez em relaccedilatildeo ao modelo de Perelman-Tyteca a influecircncia da retoacuterica

eacute observada de imediato no proacuteprio tiacutetulo do trabalho ldquoTratado da Argumentaccedilatildeo ou a

Nova Retoacutericardquo O desenvolvimento de sua Nova Retoacuterica representa uma criacutetica ao

racionalismo cartesiano conforme eacute deixado claro logo no iniacutecio da obra ldquoa publicaccedilatildeo

de um tratado consagrado agrave argumentaccedilatildeo e sua vinculaccedilatildeo a uma velha tradiccedilatildeo a da

a tese de doutorado de Isaac Costa Reis Limites agrave legitimidade da jurisdiccedilatildeo constitucional anaacutelise

retoacuterica das cortes constitucionais do Brasil e da Alemanha 2013 Recife UFPE 151

TOULMIN Stephen E Os usos do argumento trad Reinaldo Guarany Satildeo Paulo Martins Fontes

2006 p 2 152

BRETON Philippe GAUTHIER Gilles Histoacuteria das teorias da argumentaccedilatildeo trad Maria

Carvalho Lisboa Editorial Bizacircncio 2001 p 75-76 153

MICHELI Raphaeumll Lrsquoeacutemotion argumenteacutee lrsquoabolition de la peine de mort dans le deacutebat

parlamentaire franccedilais Paris Les Eacuteditions du Cerf 2010a p 73

66

retoacuterica e da dialeacutetica gregas constituem uma ruptura com uma concepccedilatildeo da razatildeo e do

raciociacutenio oriunda de Descartes []rdquo154

Assim Perelman-Tyteca retomam as noccedilotildees de orador e de auditoacuterio afirmando

expressamente que este eacute o campo da retoacuterica tradicional que especialmente lhes atrai

atenccedilatildeo Todo discurso se dirige a um determinado grupo de indiviacuteduos Todo texto

escrito ainda que redigido solitariamente imagina dirigir-se a algueacutem A maacute-fama da

retoacuterica na Antiguidade estava ligada ao fato de que buscava persuadir um puacuteblico de

ignorantes e de que natildeo realizava um trabalho de investigaccedilatildeo seacuterio155

Os referidos autores realizam a distinccedilatildeo entre persuadir e convencer vinculada agrave

noccedilatildeo de auditoacuterio universal O convencimento estaacute preocupado com o caraacuteter racional

da argumentaccedilatildeo e por isso a persuasatildeo guarda um estatuto teoacuterico inferior Uma

argumentaccedilatildeo persuasiva eacute dirigida a um auditoacuterio particular enquanto uma

argumentaccedilatildeo convincente busca a adesatildeo de todo o conjunto de seres racionais Ao

argumentar para o auditoacuterio universal o sujeito deve convencer ldquo[] do caraacuteter coercivo

das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta

independentemente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo156

Particularmente quanto agraves emoccedilotildees todavia natildeo houve nenhuma recepccedilatildeo da

retoacuterica antiga No sumaacuterio da obra natildeo haacute qualquer referecircncia ao tema Se numa

pesquisa para a palavra ldquorazatildeordquo encontramos 396 (trezentos e noventa e seis)

referecircncias para a palavra ldquoemoccedilatildeordquo encontramos 13 (treze) referecircncias

Ainda assim Plantin identifica esparsamente as seguintes perspectivas sobre as

emoccedilotildees na Nova Retoacuterica (i) uma abordagem psicoloacutegica para a qual as emoccedilotildees satildeo

elementos de perturbaccedilatildeo do discurso (i) uma abordagem filosoacutefica fundada no topos

ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo (iii) uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor por meio do qual este

uacuteltimo eacute visto como menos pejorativo e (iv) um recurso que pode demonstrar

sinceridade157

Sob a influecircncia da psicologia da eacutepoca que entendia as emoccedilotildees como

perturbadoras da accedilatildeo158

o Tratado da Argumentaccedilatildeo esposa em certo trecho uma

compreensatildeo das emoccedilotildees como degradaccedilatildeo do ato linguiacutestico ldquoos indiacutecios de paixatildeo

154

PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo a nova retoacuterica

trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 p 1 155

Id ibid p 7 156

Id ibid p 35 157

PLANTIN Christian Les bonnes raisons des eacutemotions principes et meacutethode pour lrsquoeacutetude du

discours eacutemotionneacute Berne Peter Lang 2011 p 49 158

Id ibid p 49

67

podem pois dar azo a figuras a hesitaccedilatildeo o hipeacuterbato ou inversatildeo que substitui a

ordem natural da frase por uma ordem nascida da paixatildeordquo159

Em outra parte da obra

anota-se que a excitaccedilatildeo decorrente das emoccedilotildees deturpa a argumentaccedilatildeo do homem

apaixonado que soacute se preocupa consigo mesmo e perde a noccedilatildeo das pessoas a quem seu

discurso se destina ldquoo homem apaixonado enquanto argumenta o faz sem levar

suficientemente em conta o auditoacuterio a que se dirigerdquo160

Numa outra perspectiva realiza-se uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor do

seguinte modo as emoccedilotildees podem possuir uma acepccedilatildeo negativa sendo obstaacuteculos na

argumentaccedilatildeo ou podem servir de suporte para uma argumentaccedilatildeo positiva Nesta

uacuteltima hipoacutetese a fim de se livrarem de sua carga semacircntica negativa as emoccedilotildees seratildeo

nomeadas de valores ldquohaacute que notar que as paixotildees enquanto obstaacuteculo natildeo devem ser

confundidas com as paixotildees que servem de apoio a uma argumentaccedilatildeo positiva e que

habitualmente seratildeo qualificadas por meio de um termo menos pejorativo como

valorrdquo161

A despeito dos trechos acima citados que demonstram uma concepccedilatildeo negativa

das emoccedilotildees natildeo existe nenhum tratamento sistemaacutetico do assunto natildeo tendo a retoacuterica

antiga sido recepcionada neste ponto Todavia considerando que a obra sob anaacutelise se

trata de uma ldquoNova Retoacutericardquo a ausecircncia de um tema que Aristoacuteteles dedicou tanto

espaccedilo conforme visto no Capiacutetulo I natildeo deixa de ser simboacutelica Mesmo que o objetivo

da obra de Perelman-Tyteca consista no alargamento do campo da racionalidade parece

estar impliacutecito que o orador da Nova Retoacuterica deve convencer sem se emocionar

Por uacuteltimo eacute preciso dizer que natildeo surpreende o fato de que os autores acima

estudados natildeo se interessaram pelo estudo das emoccedilotildees Considerando o contexto em

que as obras emergiram tal como discutido no toacutepico precedente este tema era um

interdito para eacutepoca Aliaacutes Perelman-Tyteca tinham plena consciecircncia de que estavam

vivendo no seacuteculo da publicidade e da propaganda como afirmam no iniacutecio da sua

obra162

Portanto pode-se afirmar que o trabalho dos ldquopais fundadoresrdquo se situa melhor

num campo de reflexatildeo sobre o logos

159

PERELMAN C Op cit p 518 160

PERELMAN C Op cit p 27 161

PERELMAN COp cit p 539 162

PERELMAN C Op cit p 5

68

23 As emoccedilotildees falaciosas

Antes de dar o proacuteximo passo e realizar no toacutepico subsequente um estudo

acerca de uma abordagem normativa sobre as emoccedilotildees eacute preciso discutir neste toacutepico

a questatildeo das falaacutecias e a sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees

As falaacutecias satildeo um dos temas centrais para qualquer teoria da argumentaccedilatildeo

Eemeren aponta que a qualidade de uma teoria da argumentaccedilatildeo estaacute diretamente

relacionada agrave maneira pela qual ela compreende as falaacutecias Assim ldquose uma teoria da

argumentaccedilatildeo consegue lidar com as falaacutecias de um modo satisfatoacuterio trata-se de um

teste positivo para o alcance e para o poder de explanaccedilatildeo de tal teoriardquo163

Isso porque uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa necessariamente oferecer

criteacuterios e normas para avaliar quando argumentaccedilotildees satildeo ou natildeo razoaacuteveis Desse

modo diz-se que as falaacutecias satildeo ardis contaminantes da argumentaccedilatildeo que caso

passem despercebidas deturpam completamente a racionalidade do discurso Em outras

palavras satildeo perigosas camuflagens que necessitam ser identificadas na

argumentaccedilatildeo164

Natildeo haacute em grego uma palavra que corresponda exatamente ao vocaacutebulo

ldquofalaacuteciardquo o seu correspondente seria ldquosofismardquo165

Falaacutecia portanto deriva do termo

em latim ldquofallaciardquo que por sua vez tem sua origem no verbo grego ldquosphalrdquo que

significa ldquocausar uma quedardquo Walton destaca que este significado eacute consistente com a

ideia aristoteacutelica de refutaccedilatildeo sofiacutestica como algo intencionalmente enganoso ou um

truque argumentativo utilizado com o objetivo de ldquocausar uma quedardquo no adversaacuterio166

Por sinal Aristoacuteteles eacute considerado um dos fundadores da disciplina Em sua

Refutaccedilotildees Sofiacutesticas ele oferece um tratamento sistemaacutetico para identificar quando um

argumento eacute incorreto ou enganoso Para o Estagirita uma falaacutecia eacute invariavelmente

uma inferecircncia que aparenta ser um silogismo poreacutem sem ser conclusivo Portanto

163

ldquoIf an argumentation theory can deal with fallacies in a satisfactory way this is a positive test as to the

scope and explanatory power of that theoryrdquo (trad livre) EEMEREN Frans van GARSSEN Bart

MEUFFELS Bert Fallacies and judgments of reasonableness empirical research concerning the

pragma-dialectics discussion rules New York Springer 2009 p 1 164

EEMEREN Frans H van et al Handbook of argumentation theory New York Springer 2014 p

25 165

HAMBLIN Charles L Fallacies London Methuen CO LTD 1970 p 50 166

WALTON Douglas The place of emotion in argument Pennsylvania The Pennsylvania State

University Press 1992 p 17

69

diante de uma falaacutecia o sujeito se encontra num estado de ilusatildeo porque imagina que a

conclusatildeo decorreu das premissas oferecidas167

Todavia o tratamento aristoteacutelico das falaacutecias foi modernamente objeto de

criacuteticas Ao utilizar conceitos metafiacutesicos como ldquopropriedade essencialrdquo ou

ldquopropriedade acidentalrdquo ou dirigir-se restritivamente apenas agrave dialeacutetica a abordagem

aristoteacutelica passou a ser considerada insuficiente para lidar com a complexidade do atual

estado de arte da argumentaccedilatildeo168

Uma das mais importantes contribuiccedilotildees acerca do tema em comentaacuterio e que

particularmente nos interessa consiste no desenvolvimento das chamadas ldquofalaacutecias adrdquo

Neste campo de estudo atribui-se a John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento

Humano de 1690 a invenccedilatildeo dos argumentos ad Tendo em vista a relevacircncia histoacuterica

para a mateacuteria transcreve-se a seguir o trecho em que o filoacutesofo anuncia o seu

pensamento

Antes de encerrar este assunto pode valer a pena utilizar o nosso

tempo para refletir um pouco sobre quatro tipos de argumentos que os

homens nos seus raciociacutenios com os outros normalmente fazem uso

para prevalecer o seu assentimento ou pelo menos para impressionaacute-

los assim como para silenciar sua oposiccedilatildeo

O primeiro eacute alegar as opiniotildees de homens cujas partes

aprendizagem eminecircncia poder ou alguma outra causa ganhou um

nome e estabeleceu sua reputaccedilatildeo no estima comum com algum tipo

de autoridade

[]

Isso eu acho que pode ser chamado de argumentum ad verecundiam

Em segundo lugar uma outra maneira que os homens normalmente

utilizam para conduzir os outros forccedilaacute-los a submeter aos seus juiacutezos

assim como receber a sua opiniatildeo em debate consiste em exigir que o

adversaacuterio admita como prova aquilo que eles alegam ou que

designem uma melhor E isto eu chamo argumentum ad ignorantiam

Uma terceira maneira eacute pressionar um homem com as consequecircncias

extraiacutedas de seus proacuteprios princiacutepios ou concessotildees Isto jaacute eacute

conhecido sob o nome de argumentum ad hominem

O quarto argumento sozinho nos avanccedila em direccedilatildeo ao conhecimento

e ao julgamento O quarto eacute usado de provas extraiacutedas de qualquer um

dos fundamentos do conhecimento ou probabilidade Isso eu chamo de

argumentum ad judicium Este por si soacute de todos os quatro traz a

verdadeira instruccedilatildeo com ela e nos avanccedila em nosso caminho para o

conhecimento169

167

RAPP C WAGNER T Op cit 2013 p 27 168

Id ibid p 27 169

ldquoBefore we quit this subject it may be worth our while a little to reflect on four sorts of arguments

that men in their reasonings with others do ordinarily make use of to prevail on their assent or at least to

awe them as to silence their opposition

The first is to allege the opinions of men whose parts learning eminency power or some other cause

has gained a name and settled their reputation in the common esteem with some kind of authority

70

Locke registra que estas espeacutecies de argumento (argumentum ad verecundiam

ad ignoratiam ad hominem) satildeo utilizadas geralmente quando algueacutem deseja obter

ecircxito na discussatildeo pois se destinam a impressionar a fazer prevalecer o entendimento

exposto e a emudecer o oponente Resta evidente que o filoacutesofo aqui se refere a um

modelo interativo de discurso (dialeacutetica) Ademais conveacutem notar que embora as obras

de loacutegica passaram a tratar tais argumentos como falaacutecias natildeo se observa qualquer

comentaacuterio em tal sentido pelo pensador inglecircs

Aleacutem disso eacute digno de nota o registro de Locke segundo o qual o argumento ad

hominem jaacute era conhecido agrave sua eacutepoca Mas era conhecido em qual sentido Era

conhecido em sua definiccedilatildeo ou na proacutepria expressatildeo ldquoad hominemrdquo Hamblin destaca

que provavelmente a inspiraccedilatildeo do termo vem da traduccedilatildeo em latim do seguinte trecho

das Refutaccedilotildees Sofiacutesticas de Aristoacuteteles ldquo[] estas pessoas dirigem suas soluccedilotildees

contra o homem natildeo contra o argumento []rdquo ldquo[] hi omnes non ad orationem sed ad

hominem solvunt []rdquo170

Em 1826 Whately por sua vez ao se referir aos argumentos ad populum ad

verecundiam ad hominem registra que quando ldquoinjustamente utilizadosrdquo eles satildeo

chamados falaciosos estabelecendo entatildeo uma conexatildeo com o tema das falaacutecias

Interessante salientar que o loacutegico inglecircs opotildee os argumentos anteriormente citados ao

argumentum ad rem171

Assim considerando que rem em latim significa coisa eacute

possiacutevel inferir que enquanto o argumento ad rem se direciona ao cerne da questatildeo ao

alvo argumentativo isto eacute ldquoagrave coisardquo os argumentos ad populum ad verecundiam ad

hominem representam um desvio do assunto pois se dirigem agrave pessoa ou a outras

fontes Acrescente-se ainda que Whately afirma que provavelmente o argumento ad

rem significa aquilo que outros autores (Locke por exemplo) chamam de argumento ad

judicium

Secondly Another way that men ordinarily use to drive others and force them to submit to their

judgments and receive their opinion in debate is to require the adversary to admit what they allege as a

proof or to assign a better And this I call argumentum ad ignorantiam

A third way is to press a man with consequences drawn from his own principles or concessions This is

already known under the name of argumentum ad hominem

he fourth alone advances us in knowledge and judgment The fourth is the using of proofs drawn from

any of the foundations of knowledge or probability This I call argumentum adjudicium This alone of all

the four brings true instruction with it and advances us in our way to knowledgerdquo (trad livre) LOCKE

John The Works of John Locke London C Baldwin 1824 p 260-261 170

ldquo[] these persons direct their solutions against the man not against his argumentrdquo (trad livre)

HAMBLIN C Op cit p 161-162 171

WHATELY Richard Logic London John Joseph Griffin amp CO 1849 p 80

71

Ademais se pensarmos que neste caso a palavra ldquoargumentumrdquo pode ser

substituiacuteda com sucesso pela palavra ldquoapelordquo e sabendo que o termo em latim ldquoadrdquo

denota ldquoem direccedilatildeo ardquo ldquoparardquo pode-se afirmar que o argumento ad populum significa

apelo ao povo ou aos sentimentos do povo o argumento ad verecundiam apelo agrave

modeacutestia ou agrave autoridade o argumento ad hominem apelo ao caraacuteter ou agraves

caracteriacutesticas do sujeito Estes apelos portanto natildeo estariam dirigidos a ldquoevidecircncias

objetivasrdquo mas a subjetividades algo presente na mente ou melhor na fantasia das

pessoas172

Recentemente o estudo das falaacutecias alcanccedilou notaacutevel desenvolvimento graccedilas

ao trabalho pioneiro de Charles Hamblin que em 1970 publicou a sua obra ldquoFalaacuteciasrdquo

Neste estudo o filoacutesofo australiano comeccedila com uma forte criacutetica em relaccedilatildeo agrave forccedila

que em nosso tempo a tradiccedilatildeo ainda vinha desempenhando sobre o assunto a despeito

de tantos avanccedilos na loacutegica e em outras aacutereas ldquodepois de dois milecircnios de estudo ativo

de loacutegica e em particular depois de transcorrido mais da metade daquele que eacute

considerado o mais iconoclasta dos seacuteculos o XX dC ainda encontramos as falaacutecias

sendo classificadas apresentadas e estudadas da mesma maneira antigardquo173

Eemeren destaca que eacute enorme a importacircncia de Hamblin para o assunto sendo

o seu livro uma soacutelida referecircncia pois realiza um rigoroso apanhado histoacuterico sobre as

falaacutecias elenca as deficiecircncias no tratamento da mateacuteria oferece a sua pessoal

contribuiccedilatildeo teoacuterica e sistematiza o tema Assim ainda que tenha sido objeto de criacuteticas

a sua obra eacute considerada ao mesmo tempo um ponto de partida e o tratamento standard

da disciplina174

Ao fazer uma sistematizaccedilatildeo sobre as ldquofalaacutecias adrdquo Hamblin esboccedila uma

abundante classificaccedilatildeo do tema sendo que tendo em vista a importacircncia para o nosso

trabalho destacamos as seguintes falaacutecias

(i) apelo agrave inveja argumentum ad invidiam

(ii) apelo ao medo argumentum ad metum

(iii) apelo ao oacutedio argumentum ad odium

(iv) apelo ao orgulho argumentum ad superbiam

(v) apelo agrave amizade argumentum ad amicitiam

172

WALTON D Op cit p 4-9 173

ldquoAfter two millennia of active study of logic and in particular after over half of that most iconoclastic

of centuries the twentieth AD we still find fallacies classified presented and studied in much the same

old wayrdquo (trad livre) HAMBLIN C Op cit p 9 174

EEMEREN F Op cit 2009 p 12

72

(vi) apelo agrave compaixatildeo argumentum ad misericordiam

(vii) apelo agraves emoccedilotildees em geral argumentum ad passiones

Aleacutem destas tambeacutem se destacam as seguintes falaacutecias ad verecundiam ad

ignorantiam ad hominem ad baculum (apelo agrave ameaccedila) ad superstitionem (apelo agrave

supersticcedilatildeo) ad imaginationem (apelo agrave imaginaccedilatildeo) ad nauseam (apelo agrave prova por

repeticcedilatildeo) ad fidem (apelo agrave feacute) ad socordiam (apelo agrave estupidez) ad ludicrum (apelo

ao teatralismo) ad captandum vulgus ad fulmen ad vertiginem a carcere175

Natildeo eacute coincidecircncia que para cada emoccedilatildeo da retoacuterica estudada no Capiacutetulo I

agora exista uma ldquofalaacutecia adrdquo correspondente E ainda que eventualmente venha lhe

faltar uma classificaccedilatildeo apropriada a expressatildeo guarda-chuva ldquoargumentum ad

passionerdquo iraacute capturar alguma emoccedilatildeo fugitiva Aliaacutes eacute essa a ideia apresentada pelo

loacutegico inglecircs Issac Watz citado por Hamblin senatildeo vejamos

Haacute ainda um outro ranking de argumentos que tecircm nomes latinos sua

verdadeira distinccedilatildeo deriva dos toacutepicos ou meios-termos que satildeo

usados neles eles satildeo chamados de apelos para o nosso julgamento

para a nossa feacute para a nossa ignoracircncia para a nossa profissatildeo para a

nossa modeacutestia e para as nossas emoccedilotildees

[]

6 Acrescento por fim quando um argumento eacute emprestado de algum

toacutepico que se preste a atrair as inclinaccedilotildees e as emoccedilotildees dos ouvintes

para o lado do orador em vez de convencer o julgamento ele eacute

chamado argumentum ad passiones um apelo para as emoccedilotildees176

Por tambeacutem termos estudado o pensamento estoico no Capiacutetulo I agora tambeacutem

podemos afirmar que isso eacute uma forma estoica de pensar Obviamente natildeo no sentido

de que tal pensamento derive da escola estoica Poreacutem numa acepccedilatildeo mais ampla no

sentido de sua hostilidade em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees ou de que conveacutem eliminaacute-las do

discurso por serem irracionais enganadoras excessivas No entanto tal pensamento

parece ser demasiadamente simploacuterio porque natildeo consegue indagar se as emoccedilotildees

eventualmente podem ser razoaacuteveis na argumentaccedilatildeo Existiriam criteacuterios para

distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees no discurso

175

HAMBLIN C Op cit p 41 176

ldquoThere is yet another rank of arguments which have latin names their true distinction is derived from

the Topics or middle Terms which are used in them tho they are called an Address to our Judgment our

Faith our Ignorance our Profession our Modesty and our Passions [hellip]6 I add finally when an

argument is borrowed from any topics which are suited to engage the inclinations and passions of the

hearers on the side of the speaker rather than to convince the judgment this is argumentum ad passiones

an address to the passionsrdquo (trad livre)WATZ Issac Logic or the right use of reason in the inquiry

after truth Boston West amp Richardson 1842 p 242

73

Eacute claro que a disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo natildeo nos exige que deixemos de sentir o

que sentimos uma vez que poderiacuteamos imaginar que existe separadamente o campo do

discurso e existe o campo do sujeito de modo que o objetivo da estudada classificaccedilatildeo

consiste em despir a estrutura do discurso do uso das emoccedilotildees e dos seus efeitos

negativos quanto agrave relaccedilatildeo de inferecircncias Mas considerando que o homem vive na

linguagem eacute possiacutevel de modo plausiacutevel pensar que existam certas e profundas

conexotildees entre essas coisas

Sobre este ponto Plantin destaca que eacute justamente na questatildeo do sujeito e das

emoccedilotildees que existe uma forte ruptura entre a MTA e a retoacuterica A teoria standard da

argumentaccedilatildeo ao introduzir a noccedilatildeo de falaacutecia ad passiones erigiu as emoccedilotildees como

um dos principais inimigos da argumentaccedilatildeo ldquoa teoria das falaacutecias eacute a uacutenica parte da

teoria da argumentaccedilatildeo que se ocupa realmente das emoccedilotildees mas para removecirc-las

como se o discurso argumentativo para ser admissiacutevel devesse primeiro expulsar seus

atoresrdquo177

O linguista francecircs assevera que essa invariaacutevel exigecircncia normativa exalta a

argumentaccedilatildeo apaacutetica como um modelo desejado de discurso178

Assim pathos parece

retomar um dos seus sentidos originais presente na Greacutecia antiga isto eacute o de

patoloacutegico de sofrimento

Eacute interessante igualmente notar a maciccedila presenccedila de termos em latim na

classificaccedilatildeo das ldquofalaacutecias adrdquo Eacute sabido que na eacutepoca moderna o latim teve uma

grande importacircncia para o estudo do direito da filosofia e da loacutegica Mas o seu

constante emprego para tratar do presente tema quando se dispotildee de suficiente

vocabulaacuterio para abordar o assunto parece querer doar desnecessariamente um grau de

sofisticaccedilatildeo ou de autoridade agrave disciplina A este respeito Plantin endereccedila forte criacutetica

ldquo[] em inuacutemeros casos esse latim de ocasiatildeo aparece como defeituoso gratuito

pedante e finalmente ridiacuteculo []rdquo179

Por fim tendo em vista que este Capiacutetulo se destina a investigar a importacircncia

das emoccedilotildees para a MTA pode-se dizer agora que pelo menos para a teoria standard

da argumentaccedilatildeo as emoccedilotildees tecircm uma funccedilatildeo negativa no discurso O uacutenico local em

que as emoccedilotildees guardam um relativo espaccedilo para tematizaccedilatildeo eacute no estudo das falaacutecias

177

ldquola theacuteorie des fallacies est la seule theorie de largumentation qui socuppe reellement des eacutemotions

mais cest pour les eacuteliminer comme si le discours argumentatif pour etre recevable devait dabord

expulser ses acteursrdquo (trad livre) PLANTIN C Op cit 2011 p 63 178

Id ibid p 63 179

ldquo[hellip] dans de nombreux cas cest latin doccasion apparaicirct comme fautif gratuit jargonnant et

finalemente ridicule [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 66

74

Poreacutem tal posicionamento parece sofrer de ausecircncia de complexidade jaacute que natildeo

consegue fornecer nenhum criteacuterio para distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees

na argumentaccedilatildeo nem consequentemente consegue encontrar um razoaacutevel papel para

elas no discurso Portanto diante do exposto parece que o debate acerca das emoccedilotildees

restou significativamente empobrecido

24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso

Aleacutem de evidenciar a estreita e difiacutecil relaccedilatildeo existente entre a disciplina das

falaacutecias e o estudo das emoccedilotildees um dos objetivos do toacutepico precedente tambeacutem foi

preparar-nos para neste espaccedilo examinar e compreender o pensamento de Douglas

Walton

Em 1992 Walton insatisfeito com a forma pela qual o tratamento standard das

falaacutecias compreendia o fenocircmeno emotivo publicou uma obra (O Lugar da Emoccedilatildeo no

Argumento) dedicada a aprofundar o tema Ainda que o modelo utilizado pelo

canadense seja dirigido ao discurso dialeacutetico e natildeo se ocupe especificamente do

domiacutenio juriacutedico embora tambeacutem o abranja as suas observaccedilotildees satildeo bastante uacuteteis e

aplicaacuteveis para os objetivos deste trabalho quais sejam construir um espaccedilo para a

discussatildeo das emoccedilotildees no discurso juriacutedico e localizar criteacuterios para avaliaccedilatildeo do uso

das emoccedilotildees Ademais e a fim de organizar a apresentaccedilatildeo deste toacutepico pretendemos

expor as premissas os escopos as criacuteticas e as conclusotildees do teoacuterico canadense

Dito isso Walton afirma que uma boa teoria da argumentaccedilatildeo precisa natildeo

apenas se posicionar de maneira clara sobre as emoccedilotildees mas tambeacutem levaacute-las a seacuterio

Assim eacute fraca e implausiacutevel uma teoria que expulse previamente as emoccedilotildees para fora

do seu acircmbito ou que nomeie indistintamente de falaciosa qualquer conclusatildeo que se

sustente ainda que parcialmente em um apelo emotivo ldquoqualquer teoria da

argumentaccedilatildeo que exclua tais apelos por inteiro deve ser uma teoria muito limitada

inaplicaacutevel para vaacuterios e significantes argumentos do dia-a-diardquo180

Assim reconhece-se que o fenocircmeno emotivo faz parte do discurso porque

decidimos tambeacutem com base em emoccedilotildees em importantes momentos de nossas vidas

A abertura para a sensibilidade da ocasiatildeo para as nossas proacuteprias emoccedilotildees e para as

180

ldquoany theory of argument that rules such appeals out of court altogether must be very limited theory

inapplicable to many significant everyday argumentsrdquo (trad livre) WALTON D Op cit p 69

75

emoccedilotildees dos outros pode permear de maneira saudaacutevel decisotildees importantes em

sociedade181

Exemplificativamente diante de discussotildees de ordem poliacutetica ou juriacutedica em

que esteja no cerne do debate o caraacuteter ou a moralidade de um participante pode-se

cogitar que seja natildeo apenas relevante o uso de um argumento emotivo (ad hominem por

exemplo) mas extremamente necessaacuterio para responder adequadamente uma

alegaccedilatildeo182

De outra parte a despeito de admitir o uso de argumentos emotivos por

entender que eles satildeo importantes e legiacutetimos no diaacutelogo persuasivo Walton aconselha

cautela na sua utilizaccedilatildeo porque eles tambeacutem podem ser usados falaciosamente183

Assim a seu ver dois fatores combinados aumentam a possibilidade de que tais

argumentos sejam mal utilizados (i) primeiramente o apelo agrave emoccedilatildeo pode ter pouca

relevacircncia para o caso pois pode natildeo contribuir para os fins do diaacutelogo no qual os seus

participantes estejam comprometidos convertendo-se inclusive em instrumento para

bloquear os objetivos do discurso (ii) os argumentos baseados em emoccedilotildees possuem

uma tendecircncia de serem logicamente fracos no sentido de que sua premissa natildeo

sustenta de modo suficientemente forte a conclusatildeo e por isso natildeo preencha

adequadamente o ocircnus da prova184

Assim o uso falacioso das emoccedilotildees estaacute presente

quando ldquo[] o proponente explora o impacto do apelo para disfarccedilar a fraqueza ou a

irrelevacircncia do argumentordquo185

Poreacutem como determinar em concreto tais paracircmetros Advertindo que o seu

estudo natildeo eacute uma tese de psicologia empiacuterica mas uma abordagem normativa da

argumentaccedilatildeo cujo principal objetivo consiste em possibilitar a identificaccedilatildeo de usos

corretos e incorretos das emoccedilotildees no discurso186

o autor propotildee o estudo de quatro

ldquofalaacutecias adrdquo que na sua oacutetica satildeo extremamente fortes quanto agrave possibilidade de

aticcedilar os sentimentos e as mais profundas inclinaccedilotildees emotivas do puacuteblico argumentum

ad populum argumentum ad misericordiam argumentum ad baculum e argumentum ad

hominem

181

Id ibid p 69 182

Id ibid p 68 183

Id ibid p 1 184

Id ibid p 1-2 e 28 185

ldquo[hellip] the proponent exploits the impact of the appeal to disguise the weakness andor irrelevance of an

argumentrdquo Id ibid p 2 186

Id ibid p 28

76

Para nosso trabalho no entanto e a fim de delimitar a nossa competecircncia de

estudo eacute suficiente comentar os aspectos mais importantes relacionados ao uso do apelo

agrave compaixatildeo do apelo ao caraacuteter e do apelo agrave ameaccedila Poreacutem antes de prosseguir eacute

preciso explanar previamente e de modo breve alguns conceitos empregados na teoria

em comentaacuterio

Primeiramente conveacutem ser dito que a abordagem normativa em estudo estaacute

estruturada em funccedilatildeo de uma especiacutefica classificaccedilatildeo de tipos de diaacutelogo

Um diaacutelogo eacute considerado ldquo[] uma troca de atos de fala em sequecircncia

alternada entre dois parceiros de discurso a fim de alcanccedilar um objetivo comumrdquo187

Assim a coerecircncia do diaacutelogo depende de que o ato de fala individual se adeque ao fim

comum do tipo de diaacutelogo em que os participantes estejam atrelados Ademais tendo

em vista que em alguns tipos de diaacutelogo os participantes necessitam provar alguma

coisa surge a noccedilatildeo de ocircnus de prova que ldquo[] eacute um peso de presunccedilatildeo alocado

idealmente no estaacutegio inicial do diaacutelogordquo188

e que se mostra um recurso uacutetil para que o

diaacutelogo chegue num prazo razoaacutevel ao fim

Entre os tipos de diaacutelogo destacam-se

(i) o diaacutelogo persuasivo (discussatildeo criacutetica) os participantes utilizando como

premissas as proposiccedilotildees em que a outra parte esteja comprometida

(commitment) procuram convencer um ao outro a respeito de uma tese189

(ii) o diaacutelogo investigativo ldquoo objetivo da investigaccedilatildeo eacute provar que uma

particular proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa ou que natildeo existe evidecircncia

suficiente para provar que tal proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsardquo190

(iii) a negociaccedilatildeo o objetivo das partes consiste em por meio de barganha em

cima de interesses e de bens de concessatildeo de certas coisas e de insistecircncia em

outras fechar um acordo diferentemente do diaacutelogo persuasivo ou do

investigativo a verificaccedilatildeo da veracidade ou falsidade de proposiccedilotildees ainda

que em alguma medida relevante eacute algo secundaacuterio pois a finalidade consiste

187

ldquo[] an exchange of speech acts between two speech partners in turn-taking sequence aimed at a

collective goalrdquo (trad livre) Id ibid p 19 188

ldquo[] a weight of presumption allocated ideally at the opening stage of the dialoguerdquo (trad livre) Id

ibid p 20 189

WALTON Douglas The New dialectic conversational contexts of argument TorontoLondon

University of Toronto Press 1998 p 37-40 190

ldquothe goal of the inquiry is to prove that a particular proposition is true or false or that there is

insufficient evidence to prove that this proposition is either true or falserdquo Id ibid p 70

77

em realizar um bom negoacutecio que geralmente recai em cima de dinheiro certos

tipos de bens ou outros itens de valor191

e

(iv) a briga (quarrel) eacute um tipo de diaacutelogo eriacutestico cujo objetivo de cada parte

reside em atingir verbalmente a outra os argumentos natildeo possuem valor em si

mesmo senatildeo para golpear o adversaacuterio Tal ldquodiaacutelogordquo tem uma relevante funccedilatildeo

cataacutertica ao possibilitar que profundas emoccedilotildees sejam liberadas evitando um

confronto fiacutesico192

Esta classificaccedilatildeo eacute importante por dois motivos primeiramente ela possibilita

compreender quando existe uma mudanccedila iliacutecita de tipo de diaacutelogo (dialectical shifts)

um diaacutelogo investigativo natildeo pode se transformar num diaacutelogo persuasivo (discussatildeo

criacutetica) porque os objetivos e os meacutetodos de cada qual satildeo diversos e por isso os

argumentos tambeacutem o satildeo Em segundo lugar compreende-se que eacute no diaacutelogo

persuasivo que as emoccedilotildees tecircm o seu habitat especiacutefico podendo ser positivas e

contribuiacuterem com os objetivos da discussatildeo Todavia entende-se que nos outros tipos

de diaacutelogo (negociaccedilatildeo por exemplo) e a depender do caso elas tambeacutem podem ser

legiacutetimas193

Por uacuteltimo antes de adentrar no estudo das falaacutecias conveacutem enfatizar que a

noccedilatildeo de raciociacutenio presuntivo tem um destacado papel neste modelo de anaacutelise do

discurso argumentativo porque possibilita que a discussatildeo caminhe em direccedilatildeo ao fim

mesmo quando no estado de conhecimento as evidecircncias satildeo insuficientes e as

premissas fracas ldquoa presunccedilatildeo no diaacutelogo permite que a argumentaccedilatildeo avance de um

modo uacutetil e revelador mesmo se evidecircncia suficiente natildeo estaacute disponiacutevel para permitir

que cada lado se comprometa categoricamente a certas premissas especiacuteficasrdquo194

Assim uma vez finalizada a exposiccedilatildeo de tais conceitos passa-se agrave explanaccedilatildeo

do apelo agrave compaixatildeo

Para saber quando o apelo agrave compaixatildeo eacute ou natildeo usado falaciosamente a

abordagem tradicional recomenda distinguir se um caso diz respeito a fatos ou a

sentimentos Caso o problema envolva mateacuteria factual o apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso

sendo adequado de seu turno caso apenas envolva sentimentos195

191

Id ibid p 100 192

WALTON D Op cit 1992 p 21-23 193

Id ibid p 23-24 194

ldquopresumption in dialogue enables argumentation to move forward in a revealing and useful way even

if sufficient evidence is not available to enable either side to commit itself categorically to some particular

premisesrdquo Id ibid p 57 195

Id ibid p 106

78

Em relaccedilatildeo a esta bifurcaccedilatildeo Walton endereccedila forte criacutetica pois a compreende

muito otimista em achar que fatos e sentimentos satildeo coisas totalmente isoladas Por

exemplo em casos como aborto e eutanaacutesia natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo apenas

facticidades E sentimentos satildeo muito importantes embora tambeacutem possam ser

excessivos ou inadequados Assim para alegar que um apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso

precisa-se demonstrar a sua irrelevacircncia ou inadequaccedilatildeo para a hipoacutetese tratada196

Exemplificativamente no seguinte caso ocorrido na Casa dos Comuns do

Canadaacute em 1987 eacute relatado que um parlamentar durante o debate poliacutetico solicitou

fundos do governo federal para finalizar um projeto de enciclopeacutedia pertencente ao Sr

Joey Smallwood uma figura poliacutetica canadense ldquorespeitadardquo e ldquobem-conhecidardquo

considerado um dos uacuteltimos ldquoPais da Confederaccedilatildeordquo ainda vivos Ademais eacute dito que

Smallwood estaacute por volta dos seus 80 (oitenta) anos num estado de sauacutede debilitado e

mereceria ter seu projeto que se revelaraacute num inestimaacutevel recurso para o povo

canadense ser concluiacutedo em vida ldquoeacute uma grande distorccedilatildeo ver uma das lendas vivas do

Canadaacute sendo forccedilado a lidar com xerifes na sua idade avanccedilada e em seu mau estado

de sauacutede Certamente o governo pode encontraacute-lo em seu coraccedilatildeo agorardquo diz o

deputado197

Walton diz que a questatildeo central no caso consiste em saber se tal projeto de

enciclopeacutedia eacute valoroso o suficiente para merecer ser financiado com dinheiro puacuteblico

Assim caso apenas o apelo agrave compaixatildeo esteja suportando a conclusatildeo de que o projeto

vale a pena ser financiado entatildeo tal emoccedilatildeo natildeo eacute relevante ou uacutetil pois eacute preciso

questionar em si mesmo o meacuterito do projeto Poreacutem na presunccedilatildeo de que o projeto

realmente valha a pena a compaixatildeo pode ser um argumento adequado fazendo parte

de um argumento maior a respeito do merecimento do projeto198

Este eacute um caso de forte apelo emocional que envolve sentimentos patrioacuteticos em

relaccedilatildeo a uma pessoa admirada por muitas outras num paiacutes Poreacutem a despeito da

tradiccedilatildeo de nomear tal tipo de argumentaccedilatildeo de falaciosa Walton entende que eacute preciso

atentar para a questatildeo do contexto em que tal discurso foi produzido Assim

considerando que ele foi declamado numa especiacutefica sessatildeo da Casa dos Comuns

196

Id ibid p 106-107 197

ldquoit is a great travesty to see one of Canadas living legends being forced to deal with sheriffs at his

advanced age and in his poor state of health Surely the government can find it in its heart nowrdquo (trad

livre) Id ibid p 111 198

Id ibid p 111

79

destinada a fazer recomendaccedilotildees de financiamento de projetos a emoccedilatildeo empregada eacute

adequada agraves regras do debate e natildeo destoa do tipo de discurso utilizado

Ademais Walton reforccedila que a proacutepria noccedilatildeo de apelo agrave compaixatildeo por estar

amarrada a conotaccedilotildees pejorativas quanto a sentimentos de pena influencia o

entendimento de que por si soacute jaacute seria errado inadequado ou falacioso utilizaacute-lo ldquose

perguntado se eles querem compaixatildeo pessoas deficientes ou veteranos de guerra

provavelmente diratildeo lsquonatildeorsquo porque lsquocompaixatildeorsquo tem conotaccedilotildees de

condescendecircnciardquo199

Assim a seu ver seria mais apropriado chamar de ldquoapelo agrave

simpatiardquo do que ldquoapelo agrave compaixatildeordquo o que evitaria tal carga semacircntica negativa

Em outro exemplo em 1987 tambeacutem na Casa dos Comuns do Canadaacute discute-

se um projeto de lei cujo texto busca regulamentar o uso de cigarro em locais puacuteblicos

bem como restringir a sua publicidade

Na fala do parlamentar Brud Bradley que se posiciona contra tal projeto de lei

o apelo agrave misericoacuterdia se corporifica na visualizaccedilatildeo das consequecircncias negativas sobre

todo um grupo de pessoas que depende da induacutestria do tabaco para sobreviver Apoacutes

relatar a difiacutecil saga dos produtores de tabaco muitos deles constituiacutedos por imigrantes

que chegaram ao Canadaacute e conseguiram criar sem nenhuma ajuda uma atividade que

rende bilhotildees para o paiacutes questiona-se a difiacutecil situaccedilatildeo em que todos esses cidadatildeos

ficaratildeo ldquonas aacutereas de cultivo de tabaco do Canadaacute temos falecircncias desagregaccedilatildeo

familiar e suiciacutedio E quanto a esses agricultores E sobre os 2600 produtores de tabaco

dedicados no Canadaacute O que a legislaccedilatildeo faz por elesrdquo200

Em resposta Dan Heap defendendo o ato alega que o que se estaacute em discussatildeo

eacute o direito agrave sauacutede que em seu olhar eacute muito mais importante do que o direito de ser

um produtor de tabaco Aleacutem disso 35000 pessoas morrem anualmente no Canadaacute de

doenccedilas relacionadas ao cigarro o que eacute um nuacutemero bem superior aos 2600 produtores

de tabaco

Walton analisando o caso registra que ambas as alegaccedilotildees apelam para

argumentos de consequecircncia Enquanto Bradley advoga as consequecircncias negativas do

projeto de lei Heap busca explorar as positivas O problema eacute que o argumento

utilizado por Bradley eacute fraco e altamente unilateral embora natildeo deva ser rejeitado como

199

ldquoIf asked whether they want pity disabled persons or returning war veterans will probably say lsquonorsquo

for pity has connotations of condescensionrdquo (trad livre) Id ibid p 112 200

ldquoin the tobacco growing areas of Canada we have bankruptcies family breakdown and suicide What

about those farmers What about the 2600 dedicated tobacco farmers in Canada What does the

legislation do for themrdquo (trad livre) Id ibid p 124

80

um todo porque eacute razoaacutevel tambeacutem se preocupar com as consequecircncias sociais

negativas geradas pela nova legislaccedilatildeo Ademais falta evidecircncia que suporte a relaccedilatildeo

causal entre a legislaccedilatildeo tabagista e a alegada falecircncia desagregaccedilatildeo familiar e suiciacutedio

de produtores de tabaco que tambeacutem ocorre em outras culturas agriacutecolas do Canadaacute

Assim tendo em vista que para bem deliberar acerca de um projeto de lei eacute preciso

visualizar todas as consequecircncias possiacuteveis da nova legislaccedilatildeo a extrema

unilateralidade do argumento utilizado por Bradley prejudica o objetivo da discussatildeo

Apoacutes analisar outros casos Walton estabelece a seguinte classificaccedilatildeo para

avaliar o uso do apelo agrave compaixatildeo

(i) razoaacutevel adequado ao contexto do diaacutelogo

(ii) fraco mas natildeo irrelevante ou falacioso quando o apelo eacute unilateral e estaacute

aberto a questionamento criacutetico

(iii) irrelevante o apelo agrave compaixatildeo eacute irrelevante por exemplo numa

investigaccedilatildeo cientiacutefica cujo objetivo eacute reunir evidecircncias para provar se uma

proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa e

(iv) falacioso o uso do apelo eacute fraco e utilizado agressivamente para bloquear os

fins do diaacutelogo e se proteger de questionamentos criacuteticos201

Aleacutem disso mais importante do que determinar se um uso eacute falacioso consiste

em saber como reagir adequadamente ao uso de tal emoccedilatildeo Para isso fornece-se o

seguinte checklist com sete fatores

(i) contexto identificar o contexto do diaacutelogo indagar se o uso da emoccedilatildeo eacute

adequado para aquele contexto e se contribui para os fins da discussatildeo

(ii) peso identificar o tamanho da importacircncia a ser dado ao uso do apelo no

caso em questatildeo o apelo agrave compaixatildeo eacute a questatildeo central do problema ou eacute

apenas algo secundaacuterio

(iii) neutralizaccedilatildeo caso o apelo seja o objeto central da discussatildeo eacute necessaacuterio

reagir energeticamente

(iv) outras consideraccedilotildees importantes caso o apelo agrave misericoacuterdia seja algo

secundaacuterio determinar quais satildeo as questotildees principais para o caso

(v) sopesamento quando o apelo agrave misericoacuterdia eacute utilizado por meio de

argumento por consequecircncias eacute necessaacuterio sopesar ambos os lados

201

Id ibid p 140

81

(vi) presunccedilotildees inadequadas os casos falaciosos geralmente se apresentam

quando o proponente por meio do apelo insere agressivamente uma presunccedilatildeo

com o objetivo de mascarar a necessidade de argumentar adequadamente e

(vii) mais informaccedilotildees ao inveacutes de precipitadamente taxar uma argumentaccedilatildeo

de ldquofalaciosardquo conveacutem requerer mais informaccedilotildees sobre as particularidades do

caso202

De outra parte em relaccedilatildeo ao apelo ao caraacuteter (ad hominem) Walton

diferentemente da abordagem tradicional da loacutegica que o presume sempre falacioso

defende que em determinados casos ele eacute adequado porque no cerne da questatildeo pode

interessar saber questotildees relacionadas ao caraacuteter da pessoa203

Eacute conveniente primeiramente notar que o apelo ao caraacuteter natildeo eacute em si mesmo

uma emoccedilatildeo A inclusatildeo entre as falaacutecias emocionais se justifica por conta dos seus

efeitos isto eacute pela sua capacidade de instigar os acircnimos emotivos nos seus

destinataacuterios204

Assim por exemplo no tribunal podem emergir duacutevidas razoaacuteveis sobre a

credibilidade do depoimento de uma testemunha A sua confiabilidade pode restar

prejudicada diante de inconsistecircncias de afirmaccedilotildees diante da demonstraccedilatildeo de que se

trata de uma pessoa tendenciosa ou de que eacute possuidora de mau caraacuteter Em todas essas

hipoacuteteses eacute razoaacutevel o uso de argumentos que coloque em cheque o caraacuteter da

pessoa205

Em campanhas poliacuteticas depois da chamada ldquoonda eacuteticardquo passou-se a

considerar que questotildees ligadas ao caraacuteter do candidato satildeo de interesse puacuteblico de

modo que eacute razoaacutevel em debates explorar inconsistecircncia de afirmaccedilotildees problemas de

conduta no passado do candidato financiamentos de campanha duvidosos206

O grande problema de argumentos que se destinem a atingir o caraacuteter de outra

pessoa estaacute na sua propensatildeo em transformar um diaacutelogo criacutetico em uma verdadeira luta

verbal em que os acircnimos dos participantes se elevam aos piores niacuteveis ldquode fato o que

acontece muito frequentemente eacute que o diaacutelogo criacutetico original se deteriora num diaacutelogo

eriacutestico ou em espeacutecies de lsquocombate verbalrsquo em que o senso criacutetico eacute deixado para traacutes e

202

Id ibid p 141-142 203

Id ibid p 193 204

Id ibid p p 259-260 205

Id ibid p 195-196 206

Id ibid p 193-194

82

o uacutenico objetivo eacute lsquogolpearrsquo verbalmente a outra parte para lhe ferirrdquo207

Neste caso o

uso do apelo ao caraacuteter eacute considerado falacioso porque altera ilicitamente um diaacutelogo

criacutetico para uma briga verbal (quarrel)208

Por uacuteltimo em relaccedilatildeo ao apelo agrave ameaccedila Walton diz que ele pode ser imoral

ilegal repulsivo brutal sem ser falacioso Para resultar numa falaacutecia ele precisa ir

contra os objetivos do diaacutelogo ldquomuito frequentemente os textos simplesmente

presumem que dado um brutal ou repulsivo ou moralmente repugnante apelo agrave forccedila os

estudantes ou os leitores natildeo necessitaratildeo de mais nenhum esforccedilo persuasivo para

classificaacute-lo como falaacuteciardquo209

Poreacutem em negociaccedilotildees diplomaacuteticas tais apelos satildeo adequados porque este tipo

de diaacutelogo normalmente envolve ameaccedila de sanccedilotildees de retaliaccedilotildees de rompimento de

relaccedilotildees econocircmicas etc Assim eacute preciso estar atento para o tipo de diaacutelogo e o

contexto em que o apelo foi utilizado Ademais eacute necessaacuterio observar se a forma pela

qual foi utilizado objetivou bloquear os objetivos do diaacutelogo Portanto para avaliar a

adequaccedilatildeo do uso da emoccedilatildeo faz toda diferenccedila se as partes se encontram numa

negociaccedilatildeo ou num diaacutelogo persuasivo210

Tendo realizada essa breve exposiccedilatildeo das falaacutecias parte-se agora para os

comentaacuterios finais acerca do modelo de anaacutelise de argumentos em comentaacuterio

Em primeiro lugar eacute preciso dizer que Walton se mostra bastante consciente a

respeito de duas abordagens que podem ser utilizadas para pensar as emoccedilotildees Assim eacute

possiacutevel entendecirc-las como contraacuterias agrave razatildeo e por isso natildeo lhes confiar nenhum

espaccedilo na argumentaccedilatildeo porque o seu uso de todo modo seria suspeito211

Neste

uacuteltimo modelo imperaria o paradigma da loacutegica fria (cold logic) isto eacute uma maneira de

pensar desapaixonada calma e fundada na loacutegica212

De outra parte eacute possiacutevel pensar

que as emoccedilotildees possuem uma funccedilatildeo importante em discussotildees eacuteticas poliacuteticas em

assuntos em que natildeo existe conhecimento conclusivo sobre o meacuterito da questatildeo213

207

ldquoIn fact too often what happens is that the original critical discussion deteriorates into an eristic

dialogue or species of lsquoverbal combatrsquo where critic restraint is left behind and the only aim is to lsquohit outrsquo

verbally to injure the other partyrdquo (trad livre) Id ibid p 192 208

Id ibid p 216 209

ldquoToo often the texts simply presume that given a brutal or repulsive or morally repugnant appeal to

force the students or readers of the text will need no further persuasion to classify it as fallacyrdquo Id ibid

p 78 210

Id ibid p 159 211

Id ibid p 67 212

Id ibid p 2 213

Id ibid p 67

83

Essas duas formas de pensar as emoccedilotildees estatildeo presentes respectivamente na

filosofia de Aristoacuteteles e dos estoicos Se pudeacutessemos realizar uma aproximaccedilatildeo entre

tais formas de pensar com o modelo que aqui expusemos afirmariacuteamos que Walton estaacute

proacuteximo do pensamento de Aristoacuteteles Poreacutem natildeo do pensamento presente na retoacuterica

aristoteacutelica mas da abordagem emotiva construiacuteda na Eacutetica a Nicocircmaco que

compreende que a boa medida das emoccedilotildees ocorre quando elas satildeo sentidas

adequadamente e isso significa dizer que elas devem ser experimentadas no momento

certo de modo correto em relaccedilatildeo agraves pessoas e aos fins certos Em outras palavras as

emoccedilotildees podem ser adequadas ou inadequadas de acordo com as circunstacircncias

Walton admite que as emoccedilotildees podem desempenhar uma importante funccedilatildeo na

argumentaccedilatildeo mas eacute preciso ter cautela porque elas tambeacutem podem ser mal utilizadas

Assim satildeo fornecidos alguns paracircmetros para verificar o seu grau de adequaccedilatildeo ou

inadequaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo

para o impacto do uso da emoccedilatildeo e para o contexto em que satildeo utilizadas Quando bem

empregadas elas satildeo legiacutetimas e importantes para uma boa decisatildeo

Ademais o canadense tambeacutem informa que essa ldquodisputardquo estre aristoteacutelicos e

estoicos a respeito das emoccedilotildees continua nos dias de hoje a exercer a sua influecircncia e

deu azo para que Brinton justificasse a criaccedilatildeo do argumentum ad indignationem Como

se sabe sentir raiva para a eacutetica estoica eacute terminantemente proibido sob qualquer

circunstacircncia mas para Aristoacuteteles natildeo sentir raiva em relaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo que

merecesse seria uma falha de caraacuteter Adotando este uacuteltimo posicionamento o

argumentum ad indignationem seria o uso da raiva na argumentaccedilatildeo na medida

adequada agrave situaccedilatildeo214

Walton justifica que estudar os aspectos falhos da argumentaccedilatildeo e

principalmente compreender quando as emoccedilotildees satildeo utilizadas inadequadamente eacute um

exerciacutecio importante para o aperfeiccediloamento da praacutetica argumentativa porque em

assuntos polecircmicos e difiacuteceis geralmente ficamos presos a inclinaccedilotildees pessoais

tornamo-nos facilmente apaixonados e perdemos a perspectiva criacutetica ldquoataques

pessoais diversatildeo emocional e outras tentaccedilotildees satildeo caracteriacutesticas mais frequentes da

argumentaccedilatildeo humana do que o uso de argumentos corretos e friamente imparciaisrdquo215

214

Id ibid p 68 215

ldquopersonal attack emotional diversion and other temptations are more often characteristic of human

reasoning than correct and coolly impartial argumentsrdquo (trad livre) Id ibid p 64

84

Por derradeiro registre-se que ao tentar encontrar um lugar para as emoccedilotildees na

argumentaccedilatildeo como o proacuteprio tiacutetulo da sua obra sugere Walton procura devolver

complexidade agrave mateacuteria evitando o impulso de previamente classificar qualquer apelo

emotivo como falacioso Desse modo a abordagem sob comento concilia-se com alguns

aspectos da argumentaccedilatildeo praacutetica mas frise-se sem perder a perspectiva criacutetica jaacute que

natildeo abandona a censura quanto ao mau uso das emoccedilotildees no discurso

De outra parte por ser um estudo criacutetico em relaccedilatildeo agraves ldquofalaacutecias adrdquo Walton

fica preso a este paradigma classificatoacuterio e por isso natildeo explora algumas questotildees

importantes para a mateacuteria Por exemplo como identificar as emoccedilotildees no discurso De

que modo elas podem se apresentar Tentar responder tais perguntas consiste no

objetivo do proacuteximo toacutepico

25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees

Localizar as emoccedilotildees no discurso natildeo eacute uma atividade oacutebvia e a linguiacutestica

recentemente tem envidado relevante esforccedilo para encontraacute-las embora nem sempre

tenha sido assim

Kerbrat-Orechionni afirma que o espaccedilo para as emoccedilotildees na linguiacutestica do sec

XX foi miacutenima216

Desse modo falando em nome de toda uma geraccedilatildeo Saphir em

1921 diz que o material da liacutengua satildeo os conceitos as ideias e a realidade objetiva

sendo que as emoccedilotildees satildeo consideradas subjetividades linguiacutesticas de importacircncia

secundaacuteria que tentam expressar questotildees interiores do homem O linguista alematildeo

categoricamente afirma que as emoccedilotildees na qualidade de manifestaccedilotildees instintivas que

partilhamos com os seres irracionais natildeo podem ldquo[] ser consideradas como fazendo

parte da concepccedilatildeo cultural essencial da linguagemrdquo217

Fazendo um contraste com esta afirmaccedilatildeo e jaacute num outro momento do seacuteculo

XX Schieffelin e Ochs em 1989 defendem que para aleacutem da funccedilatildeo de comunicar

informaccedilotildees referenciais a liacutengua eacute veiacuteculo fundamental na transmissatildeo de sentimentos

estados de espiacuterito e disposiccedilotildees ldquoesta necessidade eacute tatildeo criacutetica e tatildeo humana quanto

216

ORECCHIONI-KERBRAT Catherine Quelle place pour les eacutemotions dans la linguistique du XXe

siegravecle Remarques et aperccedilus In PLANTIN Christian DOURY Marianne TRAVERSO Veacuteronique

(dir) Les eacutemotions dans les interations Lyon Presses Universitaires de Lyon 2000 p 33 217

ldquothey cannot be considered as forming part of the essential cultural conception of languagerdquo (trad

livre) SAPHIR Edward Language an introduction to the study of speech New York Hartcourt Brace

and Company 1921 p 40

85

aquela de descrever eventosrdquo218

Assim separando os canais de transmissatildeo dos afetos

entre verbais e natildeo-verbais (expressotildees faciais gestos etc) os mencionados autores

concentram os seus estudos nos meios verbais de expressatildeo A conclusatildeo alcanccedilada eacute

que a liacutengua como um todo eacute um campo do afeto inclusive aquelas aacutereas

tradicionalmente consideradas circunscriccedilotildees exclusivas da loacutegica

Natildeo se pode arguir por exemplo que a sintaxe sirva exclusivamente a

funccedilotildees loacutegicas enquanto as funccedilotildees afetivas satildeo realizadas pela

entonaccedilatildeo e pelo leacutexico O afeto permeia o sistema linguiacutestico por

inteiro Praticamente qualquer aspecto do sistema linguiacutestico que eacute

variaacutevel eacute candidato a expressar afeto219

Eacute sobre esse tema que a escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo tem se preocupado

nos uacuteltimos tempos sendo Plantin um dos pioneiros no estudo das emoccedilotildees no discurso

Assim no intento de buscar referecircncias de anaacutelise para o exame de decisotildees judiciais a

ser realizado no Capiacutetulo III iremos abordar a classificaccedilatildeo proposta por Micheli um

dos representantes de tal escola

Eemeren conforme vimos anteriormente afirma que o ldquoteste aacutecidordquo de uma

teoria da argumentaccedilatildeo diz respeito agrave sua compreensatildeo sobre as falaacutecias Se ela passar

nessa difiacutecil prova pode-se dizer que estamos diante de uma teoria da argumentaccedilatildeo

com bom poder de explanaccedilatildeo e de alcance

Assim se levarmos rigorosamente tal afirmaccedilatildeo em consideraccedilatildeo podemos

dizer que iremos analisar uma teoria da argumentaccedilatildeo que perdeu o seu ldquoinstintordquo uma

vez que a abordagem utilizada eacute puramente descritiva A despeito disso abordagens

descritivas tecircm o seu papel pois procurando narrar os eventos do mundo de maneira

mais interessante podem organizar melhor determinados temas ou ateacute possibilitarem

melhores insights prescritivos

Dito isso Micheli considera que um dos grandes problemas em relaccedilatildeo ao

exame das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade O objetivo do seu

trabalho portanto consiste em fornecer um modelo que possibilite analisar e distinguir

o complexo processo em que as emoccedilotildees satildeo semiotizadas no discurso Para isso

apresenta-se uma tipologia classificatoacuteria econocircmica mas ao mesmo tempo

218

ldquoThis need is as critical and as human as that of describing eventsrdquo (trad livre) OCHS Elinor

SCHIEFFELIN Bambi Language has a heart In Interdisciplinary journal for the study of discourse 7-

26 p9 219

ldquoOne cannot argue for example that syntax exclusively serves logical functions while affective

functions are carried out by intonation and the lexico Affect permeates the entire linguistic system

Almost any aspect of the linguistic system that is variable is a candidate for expressing affectrdquo (trad

livre) Id ibid p 22

86

teoricamente forte o suficiente para descrever satisfatoriamente o fenocircmeno em

comentaacuterio220

Primeiramente adverte-se que tal modelo natildeo se interessaraacute pelas emoccedilotildees

efetivamente experimentadas pelos sujeitos do discurso Assim natildeo seraacute objeto de

especulaccedilatildeo se o sujeito realmente experimenta aquilo que ele exprime ou procura

suscitar no seu discurso (orador) nem seraacute o cerne da pesquisa saber se o destinataacuterio

do discurso de fato sente aquela emoccedilatildeo endereccedilada (auditoacuterio) porque poderaacute haver

discrepacircncias entre aquilo que eacute publicizado e o que eacute efetivamente sentido ldquoum estudo

da construccedilatildeo das emoccedilotildees no discurso natildeo concerne assim nem agrave emoccedilatildeo efetivamente

sentida pelo locutor nem aquela efetivamente suscitada no alocutaacuteriordquo221

Assim excluindo a categoria da emoccedilatildeo experimentada a tipologia apresentada

por Micheli para a anaacutelise do discurso emotivo eacute a seguinte a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo

demonstrada e a emoccedilatildeo suportada

Na categoria da emoccedilatildeo dita percebe-se a presenccedila de enunciados em cujo seio

se apresenta uma palavra do leacutexico que designa especificamente uma emoccedilatildeo (ldquoestes

problemas processuais me datildeo raivardquo ldquoo reacuteu estava indignadordquo) Uma das

caracteriacutesticas da emoccedilatildeo dita eacute que ela faz referecircncia a um ente que sente a emoccedilatildeo

(ldquomerdquo ldquoo reacuteurdquo) Assim natildeo pertencem a esta categoria aquelas hipoacuteteses em que uma

emoccedilatildeo eacute ela mesma objeto de descriccedilatildeo (ldquoa raiva eacute cegardquo ldquoo amor eacute capaz de tudordquo)

natildeo sendo estes enunciados hipoacuteteses de um discurso emotivo222

Desse modo na emoccedilatildeo dita eacute preciso que o item lexical designador de uma

emoccedilatildeo seja atribuiacutedo a uma entidade humana ou humanizaacutevel (ldquoo povordquo ldquoelerdquo ldquoeurdquo

algum animal etc) 223

Portanto uma das caracteriacutesticas do discurso que diz a emoccedilatildeo eacute

que ele tanto pode auto-atribuir a emoccedilatildeo (ldquoa situaccedilatildeo me deixa indignadordquo) quanto

pode alo-atribuiacute-la (ldquoa raiva tomou conta da meninardquo) Assim haacute uma relaccedilatildeo

predicativa entre duas expressotildees ldquouma que incorpora um termo emotivo e outro que

designa uma entidade humana ou humanizaacutevel que deveria sentir tal emoccedilatildeordquo224

220

MICHELI Raphaumlel Les eacutemotions dans les discours modegravele drsquoanalyse perspectives empiriques

Louvain-la-Neuve De Boeck Supeacuterieur 2014 p 11-12 221

ldquoUne eacutetude de la construction des eacutemotions dans le discours ne concerne ainsi ni lrsquoeacutemotion

effectivement ressentie par le locuteur ni celle effectivement susciteacuteeacute chez lrsquoallocutairerdquo (trad livre) Id

ibid p 118 222

Id ibid p 43 223

Id ibid p 43 224

ldquolrsquoune incorporant un terme drsquoeacutemotion lrsquoautre deacutesignant une entiteacute humaine ou humanisable censeacutee

ressentir cette eacutemotionrdquo (trad livre) Id ibid p 46

87

Ademais conveacutem registrar que existem fatores variaacuteveis nas declaraccedilotildees que

dizem uma emoccedilatildeo Por exemplo o termo emotivo pode pertencer a vaacuterias categorias

lexicais um nome (ldquoindignaccedilatildeordquo) um adjetivo (ldquoindignadordquo) um verbo (ldquoindignar-serdquo)

um adveacuterbio (ldquoindignadamenterdquo) De outra parte o termo emotivo pode ocupar

diferentes posiccedilotildees sintaacuteticas sujeito (ldquoa compaixatildeo se apoderou do juizrdquo)

complemento direto (ldquoele sentiu muita vergonhardquo) Vaacuterios verbos satildeo capazes de

facilitar esse processo ldquoinvadirrdquo ldquosubmergirrdquo ldquotomarrdquo ldquoterrdquo ldquoserrdquo ldquosentirrdquo

ldquoexperimentarrdquo ldquoexplodirrdquo etc (ldquoo depoimento da testemunha fez com que todos

explodissem de raivardquo)225

Se a emoccedilatildeo dita tem por sua caracteriacutestica o fato de ser mais facilmente

observaacutevel a categoria da emoccedilatildeo demonstrada carece de contornos precisos a sua

interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel apenas atraveacutes de indiacutecios que nos possibilitam inferir a

presenccedila de uma emoccedilatildeo ldquoenunciados que demonstrem uma emoccedilatildeo tecircm caracteriacutesticas

que embora potencialmente muito heterogecircneas satildeo todas passiacuteveis de uma

interpretaccedilatildeo indicialrdquo226

Assim na emoccedilatildeo demonstrada natildeo haacute a presenccedila de um expliacutecito termo

emotivo e por essa razatildeo inexiste uma relaccedilatildeo predicativa que a conecta a uma

entidade humana afetada pela emoccedilatildeo Por isso a sua interpretaccedilatildeo reside na procura de

indiacutecios ldquoIndiacuteciordquo aqui significa a presenccedila de um signo a partir do qual se infere a

presenccedila de determinado objeto porque normalmente diante da ocorrecircncia do

primeiro tambeacutem ocorre o segundo Em outras palavras pode-se afirmar que em face

da apresentaccedilatildeo de determinadas caracteriacutesticas discursivas eacute plausiacutevel inferir que ela eacute

causada por uma emoccedilatildeo supostamente sentida pelo locutor227

Registre-se que nesta categoria natildeo interessa saber a respeito da descriccedilatildeo de

processos fisioloacutegicos ou comportamentais da emoccedilatildeo (ldquoo coraccedilatildeo disparou os laacutebios

tremeram e ele sentiu um enorme frio na barrigardquo) pois se os indiacutecios satildeo verbalizados

e detalhados eles natildeo satildeo mais indiacutecios228

Assim a fim de esclarecer sem exaustividade quais indiacutecios satildeo importantes

para a categoria da emoccedilatildeo demonstrada oferecem-se alguns marcadores que precisam

ser interpretados dentro de um contexto situacional determinado a fim de compreender

225

Id ibid p 49-51 226

ldquoLes eacutenonceacutes qui montrent lrsquoeacutemotion preacutesentent des caracteacuteristiques qui bien que potentiellement tregraves

heacuteteacuterogegravenes sont toutes passibles drsquoune interpreacutetation indiciellerdquo (trad livre) Id ibid p 63 227

Id ibid p 64 228

Id ibid p 66-67

88

de que modo eles satildeo utilizados e a que espeacutecies de emoccedilatildeo eles se referem Por

exemplo (i) as interjeiccedilotildees (ldquonossa quanto processordquo ldquomeu deusrdquo ldquoahrdquo) (ii) a

exclamaccedilatildeo (ldquopreciso ir emborardquo ldquoque julgamentordquo) (iii) os enunciados eliacutepticos que

por meio de uma reduccedilatildeo sintaacutetica possibilitam a manifestaccedilatildeo indicial de uma emoccedilatildeo

(iv) os enunciados averbais (v) os enunciados deslocados agrave direita pois existe uma

relaccedilatildeo entre o modo de ordenar a frase dando ecircnfase a determinados elementos e as

emoccedilotildees (ldquoeacute muito trabalhador esse juizrdquo)229

Por uacuteltimo e de maior interesse para o nosso trabalho estaacute a ideia de emoccedilatildeo

suportada Nesta categoria eacute possiacutevel inferir que uma emoccedilatildeo fundamenta um

especiacutefico discurso natildeo porque ela seja nomeada explicitamente nem porque existam os

tipos de indiacutecios descritos logo acima mas porque a estrutura linguiacutestica do discurso

espelha ou ldquoesquematizardquo a estrutura cognitiva de uma determinada emoccedilatildeo

Primeiramente para explicar esta categoria Micheli fundamentado na

psicologia cognitiva especialmente na Teoria da Avaliaccedilatildeo que iremos abordar com

mais detalhes no proacuteximo toacutepico procura estabelecer uma relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a

avaliaccedilatildeo da realidade A experiecircncia emocional do sujeito estaacute diretamente relacionada

agrave avaliaccedilatildeo que ele faz de uma determinada situaccedilatildeo Dois indiviacuteduos podem avaliar

uma mesma situaccedilatildeo diferentemente e por isso obterem distintas respostas emocionais

Ademais baseando-se numa perspectiva socioloacutegica e antropoloacutegica enfatiza-se que o

contexto sociocultural tem destacada funccedilatildeo na forma pela qual o indiviacuteduo avalia a

realidade O pertencimento a uma determinada cultura pode explicar a preponderacircncia

de determinadas respostas emotivas em detrimento de outras230

Tais observaccedilotildees satildeo feitas com o objetivo de transpocirc-las para o campo da

anaacutelise do discurso ldquoa questatildeo agora eacute saber como tirar parte desses diversos trabalhos

numa oacutetica das ciecircncias da linguagem e para aquilo que nos interessa da anaacutelise do

discursordquo231

Para isso o autor recorre agrave noccedilatildeo de ldquoesquemardquo discursivo derivada de Grize O

esquema eacute uma especiacutefica forma de organizar a realidade fazecirc-la compreensiacutevel e

assim transmitir linguisticamente as emoccedilotildees Desse modo fornecem-se 7 (sete)

229

Id ibid p 75-95 230

Id ibid p 106-112 231

ldquoLa question est maintenant de savoir comment tirer parti de ces divers travaux dans une optique de

sciences du langage et pour ce qui nous concerne drsquoanalyse du discoursrdquo (trad livre) Id ibid p 112

89

criteacuterios de esquematizaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo emotiva derivados tanto da psicologia

cognitiva quanto dos trabalhos de Plantin

(i) as pessoas implicadas identificar quem satildeo as pessoas presentes no discurso

como elas satildeo representadas e nomeadas e quais papeis satildeo a elas associadas

(ii) as noccedilotildees de tempo e de espaccedilo identificar como a situaccedilatildeo eacute descrita no

tempo e no espaccedilo pelo locutor a fim de enfatizar os seus aspectos emotivos

ldquoontem mesmordquo ldquotodos os dias no Brasilrdquo

(iii) as consequecircncias e o grau de probabilidade identificar como o discurso

descreve as consequecircncias da situaccedilatildeo esquematizada e de que modo eacute

enfatizado o grau de probabilidade de seu acontecimento

(iv) a atribuiccedilatildeo causal e a autoria identificar se o discurso assinala uma causa

para a situaccedilatildeo esquematizada e se haacute um agente cuja accedilatildeo ou omissatildeo resultou

na hipoacutetese narrada por exemplo na indignaccedilatildeo a descriccedilatildeo do sofrimento de

um determinado sujeito eacute resultado de uma accedilatildeo ou de uma omissatildeo imputaacutevel a

um agente

(v) o potencial de controle identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo

emotiva eacute esquematizado O discurso pode enfatizar o grau de incontrolabilidade

de uma determinada situaccedilatildeo a fim de despertar o medo ou pode enfatizar a sua

controlabilidade para fundar sentimentos de aliacutevio e de alegria

(vi) a semelhanccedila identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute comparada com

outra situaccedilatildeo a fim de lhe emprestar conteuacutedo emocional Por exemplo

Micheli narra que em 1791 Robespierre no debate parlamentar a respeito da

aboliccedilatildeo da pena de morte na Franccedila lanccedila a seguinte comparaccedilatildeo a fim de

demonstrar a desproporcionalidade de forccedilas presente em duas situaccedilotildees um

homem que mata uma crianccedila a qual poderia ter sido simplesmente desarmada

parece ser um monstro um prisioneiro que a sociedade condena estaacute numa

situaccedilatildeo de maior fragilidade do que a de uma crianccedila ante a um adulto

(vii) a significaccedilatildeo normativa identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute

compatiacutevel ou incompatiacutevel com os valores e normas compartilhados em relaccedilatildeo

a um grupo de referecircncia A vergonha por exemplo atua diante da crenccedila da

incapacidade de atingir as normas de determinados grupos (profissional

familiar amigos etc)232

232

Id ibid p 115-119

90

Assim e a tiacutetulo comparativo na emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo eacute expressamente

designada por meio de um termo emotivo enquanto que na emoccedilatildeo demonstrada e

suportada a identificaccedilatildeo da emoccedilatildeo eacute alcanccedilada por meio de uma interpretaccedilatildeo

inferencial Por outro lado na emoccedilatildeo demonstrada parte-se de indiacutecios (signos) a fim

de se inferir a presenccedila de determinada emoccedilatildeo e na emoccedilatildeo suportada haacute uma

esquematizaccedilatildeo dos fundamentos de uma determinada emoccedilatildeo a partir do qual se infere

a sua presenccedila233

Ademais saliente-se que estas trecircs categorias (a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo

demonstrada e a emoccedilatildeo suportada) podem simultaneamente estar presentes num

mesmo discurso ou natildeo ou seja eacute possiacutevel que um discurso seja portador de uma

emoccedilatildeo sem que expressamente a mencione

Tendo finalizada a exposiccedilatildeo da classificaccedilatildeo elaborada por Micheli eacute preciso

registrar que um dos objetivos da abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees no discurso e que

vem ao encontro do escopo deste trabalho consiste em diminuir a forte separaccedilatildeo

atualmente existente entre logos e pathos

Nesse sentido Plantin destaca que em nossa eacutepoca os aspectos racionais e

emocionais andam tatildeo desconectados que ao se falar que um discurso tem caraacuteter

emotivo levanta-se automaticamente a suspeita de se estar tratando de algo em direccedilatildeo

oposta agrave razatildeo ldquoa antinomia racional e emocional estaacute tatildeo profundamente assentada que

caracterizar um discurso como lsquoemocionalrsquo equivale praticamente a dizer que ele natildeo eacute

racional Esta interpretaccedilatildeo deve ser fortemente rejeitadardquo234

Motivos para essa forte separaccedilatildeo com niacutetido prejuiacutezo para o estudo do campo

das emoccedilotildees natildeo faltam temos a longa tradiccedilatildeo pejorativa da retoacuterica as emoccedilotildees

foram intensamente utilizadas e associadas agrave propaganda de regimes totalitaacuterios a

disciplina das falaacutecias eacute o uacutenico espaccedilo dentro da teoria standard da argumentaccedilatildeo que

tematiza as emoccedilotildees e se pudermos refletir este assunto ainda mais distante no tempo

temos antigas tradiccedilotildees filosoacuteficas tal como a escola estoica que entendem as emoccedilotildees

como irracionais contraacuterias agrave natureza excessivas e que por isso deveriam ser

suprimidas a fim de compreendermos corretamente o mundo

233

Id ibid p 119-120 234

ldquoThe antonomy rationalemotional is so deeply grounded that characterizing a discourse as lsquoemotionalrsquo

practically amounts to implying that it is not rational Such an interpretation should be strongly rejectedrdquo

(trad livre) PLANTIN Christian On the Inseparability of Emotion and Reason in Argumentation In

WEIGAND Edda (ed) Emotion in dialogic interaction AmsterdamPhiladelphia John Benjamins

Publishing Company 2004 265-276 p 274

91

No entanto e sob a perspectiva argumentativa Plantin destaca que eacute

impraticaacutevel se livrar das emoccedilotildees na linguagem jaacute que o argumentar implica tambeacutem

assumir posiccedilotildees afetivas diante do mundo ldquoEacute impossiacutevel moldar linguisticamente um

evento sem no mesmo gesto mostrar uma atitude emocional em relaccedilatildeo a este evento

Manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees emocionais natildeo satildeo distintas das manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees

racionaisrdquo235

Destaque-se que na abordagem tradicional ou padratildeo da MTA as emoccedilotildees satildeo

vistas como ldquoreforccedilosrdquo ou ldquonatildeo-argumentosrdquo ocupam papel ldquoauxiliarrdquo no discurso satildeo

registradas como ldquoapelosrdquo e por isso tecircm um tratamento teoacuterico bem limitado

aparecendo no mais das vezes como erros de argumentaccedilatildeo na disciplina das ldquofalaacutecias

adrdquo

Contra este panorama Micheli advoga que as emoccedilotildees podem ser

argumentaacuteveis isto eacute elas mesmas podem ser objeto do discurso e por isso de

construccedilatildeo argumentativa ldquoa este respeito os falantes argumentam a favor ou contra

uma emoccedilatildeo eles datildeo razotildees para fundamentar por que eles sentem (ou natildeo sentem)

esta emoccedilatildeo e por que ela deveria (ou natildeo deveria) ser legitimamente sentidardquo236

Ao analisar os registros do debate parlamentar francecircs acerca da aboliccedilatildeo da

pena de morte entre 1791 ateacute 1981 Micheli anota que havia algo em comum entre

abolicionistas e anti-abolicionistas ambos forneciam razotildees para sentir ou natildeo sentir

uma determinada emoccedilatildeo

Por exemplo no debate de 1791 tanto os abolicionistas quanto os anti-

abolicionistas elaboram o sentimento de medo por meio de argumentos de

consequecircncia

Do lado abolicionista os efeitos do ldquoespetaacuteculo da execuccedilatildeordquo sobre o puacuteblico

satildeo construiacutedos argumentativamente do seguinte modo a pena de morte alimenta o

sentimento de crueldade nas pessoas porque ocorre um processo de dessensibilizaccedilatildeo

do ser humano ldquoo espetaacuteculo da execuccedilatildeo tem por efeito atenuar ou inibir as

disposiccedilotildees morais e afetivas saudaacuteveisrdquo237

Ademais a crueldade tornada puacuteblica eacute um

235

ldquoIt is impossible to linguistically shape an event without in the same gesture displaying an emotional

attitude towards this event Emotional manipulationsconstructions are not distinct from rational

manipulations constructionsrdquo (trad livre) Id ibid p 274 236

ldquoIn this respect speakers argue in favor of or against an emotion they give reasons supporting why

they feel (or do not feel) this emotion and why it should (or should not) be legitimately feltrdquo (trad livre)

MICHELI Raphaumlel Emotions as objects of argumentative constructions In Argumentation Journal

2010b vol 24 Issue 1 1ndash17 p 13 237

ldquole spectacle de lrsquoexeacutecution a pour effet drsquoatteacutenuer voire drsquoinhiber des dispositions morales et

affectives sainesrdquo (trad livre) MICHELI R op cit 2010a p 248

92

estiacutemulo para que pessoas perversas venham a cometer crimes ou seja cria-se um

ambiente propiacutecio ao cometimento de mais delitos238

Por sua vez do lado anti-abolicionista explora-se a ineficaacutecia das penas

alternativas em diminuir a criminalidade O criminoso potencial natildeo seraacute mais

atemorizado por nada o resultado disso eacute uma sociedade cheia de crimes e de

delinquentes

Em resumo por meio da construccedilatildeo de argumentos que antecipem as

consequecircncias negativas da nova legislaccedilatildeo cada parte do debate procurou estruturar o

sentimento de medo no discurso

Por uacuteltimo conveacutem registrar que embora a teoria desenvolvida por Micheli natildeo

tenha fornecido criteacuterios para a avaliaccedilatildeo do discurso emotivo ela significativamente

melhorou a visualizaccedilatildeo do tema ao possibilitar a organizaccedilatildeo do assunto por meio de

uma classificaccedilatildeo econocircmica compreensiacutevel e com capacidade descritiva Nesse ponto

eacute necessaacuterio reconhecer que aleacutem de natildeo se interessar pelo tema das emoccedilotildees a teoria

normativa da argumentaccedilatildeo parece tambeacutem sofrer de um deacuteficit descritivo

26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees

Enfrentar o tema das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo implica tambeacutem se posicionar a

respeito de problemas de psicologia e talvez resida neste especiacutefico ponto um dos

grandes diferenciais das escolas filosoacuteficas da Antiguidade Isso porque o pensamento

antigo era caracterizado por ser integral ou seja ele abrangia os mais diversos aspectos

do saber humano (eacutetica poliacutetica retoacuterica fiacutesica epistemologia etc) o que facilitava

significativamente o tratamento do presente assunto porque a proacutepria escola filosoacutefica

produzia a sua psicologia que depois era aplicada em outras aacutereas Desse modo tanto

Aristoacuteteles quanto os estoicos transitaram com autoridade sobre o tema das emoccedilotildees

justamente porque elaboraram sua proacutepria disciplina psicoloacutegica

Eacute certo que o forte desenvolvimento da ciecircncia moderna eacute tambeacutem resultado do

fenocircmeno da especializaccedilatildeo do saber o que permite por exemplo que uma pessoa

passe a sua vida inteira apenas pesquisando sobre as propriedades dos neutrinos Mas

por outro lado eacute razoaacutevel pensar que estes ldquodesligamentosrdquo entre as aacutereas provocaram

algumas fraturas de pensamento que hoje em dia a interdisciplinaridade procura um

pouco diminuir

238

Id ibid p 248-249

93

Desse modo a fim de possibilitar a compreensatildeo psicoloacutegica de nossa eacutepoca

acerca das emoccedilotildees nosso intento neste toacutepico consiste em apresentar alguns aspectos

principais da chamada Teoria da Avaliaccedilatildeo pertencente ao campo da psicologia

cognitiva

Assim em primeiro lugar situando historicamente o nascimento da Teoria da

Avaliaccedilatildeo interessa perceber que ateacute por volta de 1960 a importacircncia das emoccedilotildees

para a psicologia era praticamente nula devido agrave resistecircncia em relaccedilatildeo ao tema por

parte do behaviorismo e do positivismo loacutegico campos da psicologia predominantes na

eacutepoca A ecircnfase dos textos de psicologia era direcionada para a aprendizagem para a

personalidade para a motivaccedilatildeo para a percepccedilatildeo para a fisiologia e para a

psicopatologia239

Quando o presente tema era abordado a uacutenica emoccedilatildeo que ganhava algum

destaque por influecircncia freudiana era a anguacutestia entendida como emoccedilatildeo-chave para

explicar os transtornos de ordem mental as demais emoccedilotildees natildeo eram tematizadas

muito menos individualizadas Havia algum interesse em relaccedilatildeo agrave culpa tambeacutem por

influecircncia da psicanaacutelise e em relaccedilatildeo agrave depressatildeo mas esta uacuteltima natildeo eacute considerada

uma emoccedilatildeo mas um complexo processo mental em que vaacuterias emoccedilotildees negativas

estatildeo atuantes240

Outro pensamento influente era de que as emoccedilotildees natildeo passavam de

interrupccedilotildees das operaccedilotildees mentais natildeo merecendo por isso atenccedilatildeo241

Assim em

resumo ldquoos psicoacutelogos acadecircmicos pareciam estar pouco interessados nas emoccedilotildees e

uma vez que eles natildeo as incluiacuteam no curriacuteculo oficial eacute possiacutevel dizer que eles as

consideravam uma mateacuteria altamente especializada talvez ateacute exoacuteticardquo242

O pecircndulo da balanccedila comeccedilou a mudar em virtude dos trabalhos pioneiros de

Magda Arnold e de Richard S Lazarus na deacutecada de 1960 Assim divergindo do

paradigma da eacutepoca Arnold defendeu na sua teoria cognitiva que a deflagraccedilatildeo da

emoccedilatildeo depende em primeiro lugar da avaliaccedilatildeo feita pelo indiviacuteduo de uma

determinada situaccedilatildeo Por sua vez Lazarus realizando pesquisas entre a relaccedilatildeo das

239

LAZARUS Richard S Emotion amp adaptation New YorkOxford Oxford University Press 1991

p 4-5 240

Id ibid p 5 241

SCHOR Angela Appraisal the evolution of an idea In SCHERER Klaus R SCHORR Angela

JOHNSTONE Tom (ed) Appraisal processes in emotion theory methods research New York

Oxford University Press 2001 20-36 p 20 242

ldquoAcademic psychologists have seemed little interested in emotion and because they do not include it

in the core curriculum they could be said to regard it as a highly specialized perhaps even exotic topicrdquo

(trad livre) LAZARUS op cit p 5

94

emoccedilotildees com o stress utilizou tambeacutem a noccedilatildeo de avaliaccedilatildeo e de reavaliaccedilatildeo No

Simpoacutesio Loyola de 1970 Lazarus destaca

Estendendo a posiccedilatildeo de Magda Arnold apenas um pouco noacutes

argumentamos que o padratildeo de excitaccedilatildeo observada na emoccedilatildeo deriva

de impulsos para agir que satildeo gerados pela situaccedilatildeo avaliada pelo

indiviacuteduo e pelas possibilidades avaliadas disponiacuteveis para a accedilatildeo243

Assim foi a partir destes trabalhos que surgiu um novo campo de estudos sobre

as emoccedilotildees na psicologia cujo denominador comum consiste em colocar a ideia de

avaliaccedilatildeo no centro de suas pesquisas Em outras palavras as emoccedilotildees satildeo o resultado

de uma avaliaccedilatildeo acerca de uma determinada situaccedilatildeo realizada pelo sujeito

Antes de prosseguir a primeira observaccedilatildeo a ser feita em relaccedilatildeo a este

posicionamento diz respeito ao fato de que ele vai ao encontro do entendimento de

Crisipo que compreendia que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees sobre a realidade Esta

surpreendente coincidecircncia eacute expressamente notada por Scherer ldquoeste fenocircmeno jaacute

tinha sido descrito pelo filoacutesofo estoico Crisipo que pode muito bem ter sido o primeiro

verdadeiro teoacuterico da avaliaccedilatildeordquo244

Outro ponto digno de menccedilatildeo quanto a esse novo momento teoacuterico vivido na

psicologia foi o aparecimento do interesse por parte dos psicoacutelogos pelo estudo da obra

de Aristoacuteteles mais precisamente pelo Livro II da Retoacuterica parte em que satildeo tratadas as

emoccedilotildees sob uma oacutetica cognitiva Lazarus destaca que com algumas breves exceccedilotildees

na histoacuteria houve praticamente um intervalo de dois mil anos ateacute que o cognitivismo

emotivo pudesse ser novamente abordado245

O fato eacute que a construccedilatildeo teoacuterica realizada tanto por Aristoacuteteles quanto pelos

estoicos eacute de boa qualidade e a despeito do tempo continua a ser bastante atual e uma

preciosa referecircncia histoacuterica acerca do tema Relembrando o que dissemos o Estagirita

compreendia que a nossa visatildeo a respeito dos mais variados assuntos se altera de acordo

com os nossos estados emocionais Aleacutem disso esquematizou e individualizou a

243

ldquoExtending Magda Arnolds position just a bit we argue that the pattern of arousal observed in

emotion derives from impulses to action which are generated by the individuals appraised situation and

by the evaluated possibilities available for actionrdquo (trad livre) LAZARUS Richard S AVERILL James

R OPTON Edward M Torwards a cognitive theory of emotions in ARNOLD Magda (org) Feelings

and emotions the Loyola symposium New YorkLondon Academic Press 1970 207-232 p 218 244

ldquoThis phenomenon has already been described by the stoic philosopher Chrysippus who may well

have been the first real appraisal theoristrdquo (trad livre) SCHERER Klaus R The nature and study of

appraisal a review of the issues In SCHERER Klaus R SCHORR Angela JOHNSTONE Tom (ed)

Appraisal processes in emotion theory methods research New York Oxford University Press 2001

369-391 p 384 245

LAZARUS R Op cit p 14

95

estrutura de vaacuterias emoccedilotildees importantes sendo que os livros de psicologia cognitiva

tecircm adotado a mesma praacutetica hoje em dia Ademais conveacutem recordar que refinamentos

da psicologia aristoteacutelica tal como a ideia de phantasia explicam o surgimento e a

estruturaccedilatildeo das emoccedilotildees Do lado estoico pode-se dizer que o cognitivismo foi ainda

mais marcante porque natildeo fazia uso da ideia de sentimentos mistos (prazer e dor)

derivada de Platatildeo Por fim aleacutem de dizer que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees os estoicos

originalmente utilizaram a ideia de impulso de assentimento e de atribuiccedilatildeo de valores

para explicar o agrupamento de determinadas emoccedilotildees

Tendo registrado essas observaccedilotildees conveacutem agora compreender com mais

detalhes a abordagem da Teoria da Avaliaccedilatildeo delimitando a competecircncia da nossa

investigaccedilatildeo ao pensamento de Lazarus e de Scherer

Assim em primeiro lugar em relaccedilatildeo agrave sua deflagraccedilatildeo as emoccedilotildees satildeo

iniciadas apenas diante de eventos que de alguma forma avaliamos relevantes para a

nossa esfera pessoal Nesse sentido satildeo para noacutes subjetivamente importantes aspectos

factuais relacionados a valores necessidades objetivos ou bem-estar geral Quando

alguns destes fatores estatildeo em jogo numa dada situaccedilatildeo e a depender de como os

avaliamos deflagra-se uma especiacutefica resposta emocional (raiva oacutedio aliacutevio vergonha

alegria amor) Portanto o evento-gatilho da emoccedilatildeo precisa ser pessoalmente

significativo pois de outra forma haveraacute indiferenccedila emocional246

Aleacutem de avaliar se um evento eacute significativo ou natildeo surge uma outra etapa do

processo avaliativo em que ponderamos possiacuteveis opccedilotildees para lidar com a situaccedilatildeo Por

exemplo diante de um problema especiacutefico geralmente abrem-se duas estrateacutegias (i)

podemos tratar de solucionaacute-lo porque ele eacute da espeacutecie dos solucionaacuteveis (dialogar ou

entrar com uma medida judicial especiacutefica podem ser alternativas possiacuteveis para

resolver a raiva causada diante de um vizinho que continuamente desrespeite a lei do

silecircncio) (ii) podemos ter que trabalhar as nossas proacuteprias emoccedilotildees diante de

problemas resistentes ou insoluacuteveis (doenccedila crocircnica grave crise financeira etc) Assim

pode ser necessaacuterio a alteraccedilatildeo da significaccedilatildeo pessoal do evento por meio de uma

reavaliaccedilatildeo fundada em bases realiacutesticas Somos seres capazes de substituir

interpretaccedilotildees que deflagrem respostas emocionais disfuncionais e altamente destrutivas

por outras melhores247

246

LAZARUS Richard S LAZARUS Bernice N Passion amp reason making sense of our emotions

New YorkOxford Oxford University Press 1994 p 143 247

Id ibid p 152-161

96

Assim em resumo na avaliaccedilatildeo o sujeito natildeo se limita a ser um mero agente

passivo e receptor das informaccedilotildees externas mas tambeacutem possui um papel ativo na

forma como lida com os fatores ambientais podendo inclusive reavaliar a significaccedilatildeo

do evento ldquouma avaliaccedilatildeo ndash de que as emoccedilotildees satildeo dependentes ndash eacute muitas vezes um

julgamento complexo sobre como estamos nos relacionando com o ambiente e com as

nossas vidas em geral e como lidar com potenciais prejuiacutezos e benefiacuteciosrdquo248

Acrescente-se que no complexo momento avaliativo compreende-se que vaacuterias

escalas de julgamento satildeo possiacuteveis isto eacute podem ocorrer desde avaliaccedilotildees impliacutecitas e

automaacuteticas ateacute aquelas com alto niacutevel de consciecircncia portando conteuacutedo conceitual e

proposicional249

Aleacutem do sistema avaliativo acima descrito destacam-se tambeacutem os seguintes

componentes que estatildeo presentes no processo emotivo (i) componente motivacional

situaccedilotildees emocionalmente relevantes satildeo motivacionais de modo que nos impelem a

alterar o nosso curso de accedilatildeo a fim de adequaacute-lo agraves novas circunstacircncias (ii)

componente orgacircnico o nosso organismo (sistema motor somato-visceral atenccedilatildeo

expressatildeo accedilatildeo) fica integralmente comprometido com a situaccedilatildeo significativa (iii)

componente prioritaacuterio situaccedilotildees emotivas reclamam precedecircncia sobre a nossa atenccedilatildeo

e sobre o nosso controle comportamental250

Uma especiacutefica preocupaccedilatildeo dos teoacutericos da Teoria da Avaliaccedilatildeo diz respeito agrave

verificaccedilatildeo da correccedilatildeo da ideia segundo a qual maacutes decisotildees estatildeo fundadas em

emoccedilotildees e boas decisotildees estatildeo baseadas em razatildeo pura Esta eacute uma questatildeo que

tambeacutem especialmente nos interessa porque via de regra a resistecircncia quanto ao

tratamento teoacuterico das emoccedilotildees estaacute assentada na forte dicotomia ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo

Primeiramente eacute preciso ter em mente que apoacutes a emoccedilatildeo ter sido deflagrada o

controle da resposta emocional por intermeacutedio de avaliaccedilotildees a respeito de que modo

iremos lidar com as tendecircncias de accedilatildeo geradas pela emoccedilatildeo eacute um momento em que a

racionalidade se faz presente Uma accedilatildeo cujas consequecircncias sejam socialmente

destrutivas deve ser num juiacutezo avaliativo repelida Essa ideia de controle emocional

por intermeacutedio da razatildeo natildeo eacute desconhecida e de certo modo esse jaacute era o

248

ldquoAn appraisalmdashon which emotions dependmdashis often a complex judgment about how we are doing in

an encounter with the environment and in our lives overall and how to deal with potential harms and

benefitsrdquo (trad livre) Id ibid p 144 249

SCHERER Klaus R What are emotions And how can they be measured In Social Science

Information vol 44 n 4 2005 695-729 p 701 250

SCHERER Klaus R On the rationality of emotions or when are emotions rational In Social

Science Information vol 50 2011 330-350 p 334-335

97

posicionamento de Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando diz que as emoccedilotildees tecircm a

capacidade de ouvir a razatildeo

Todavia Lazarus afirma que a racionalidade tambeacutem se faz presente no primeiro

momento do processo emotivo o surgimento de uma emoccedilatildeo soacute ocorre porque uma

avaliaccedilatildeo compreende que certos objetivos valores ou crenccedilas acerca do mundo estatildeo

sendo numa determinada situaccedilatildeo prejudicados ou beneficiados Esta avaliaccedilatildeo

depende de racionalidade e vem acompanhada de pensamentos ainda que o raciociacutenio

em que tal julgamento seja embasado possa ser agraves vezes equivocado251

Sob tal perspectiva pode-se dizer que as emoccedilotildees estatildeo fundadas em razotildees

porque elas repousam numa loacutegica proacutepria A raiva de um determinado sujeito pode

soar desarrazoada para um estranho e de fato as atitudes geradas pela referida emoccedilatildeo

podem trazer um grande prejuiacutezo social por falta de adequado controle mas uma

pesquisa mais detalhada dos seus motivos revela que uma avaliaccedilatildeo conduziu a esta

resposta emocional especiacutefica porque entendeu que valores objetivos ou necessidades

do sujeito foram prejudicados numa determinada situaccedilatildeo

Assim anota Lazarus a razatildeo estaacute presente em todos os estaacutegios do processo

emotivo mas isso natildeo significa dizer que haja uma supremacia da razatildeo sobre a

emoccedilatildeo porque entre as duas haacute uma relaccedilatildeo de dupla dependecircncia natildeo apenas a

emoccedilatildeo precisa de aspectos racionais para o seu surgimento e para o seu controle mas a

razatildeo soacute eacute proveitosa diante do balanceamento da emoccedilatildeo Nesse sentido pontua

ldquoexiste algo de equiliacutebrio entre a razatildeo e a emoccedilatildeo Caso contraacuterio aiacute reside a

loucurardquo252

As emoccedilotildees assim tecircm uma funccedilatildeo primordial na sobrevivecircncia na

adaptaccedilatildeo no conhecimento e na qualidade de vida do indiviacuteduo

Uma consequecircncia de tal abordagem reside na reduccedilatildeo da dicotomia ldquorazatildeo vs

emoccedilatildeordquo porque ainda que a avaliaccedilatildeo em que se fundou a emoccedilatildeo seja pouco realista

natildeo-saacutebia e ateacute tola eacute possiacutevel extrair racionalidade que vincula o seu surgimento a

objetivos e crenccedilas do indiviacuteduo Desse modo ao inveacutes de insistir na mencionada

dicotomia eacute mais interessante tentar identificar quando raciociacutenios em que se baseiam

as emoccedilotildees satildeo considerados razoaacuteveis ou natildeo

Lazarus nesse intento relaciona uma lista de motivos que geralmente resultam

num erro de avaliaccedilatildeo (i) retardaccedilatildeo mental psicose e danos cerebrais (ii) falta de

251

LAZARUS R Op cit 1994 p 199-200 252

ldquoThere is something of a balance between them If not there lies madnessrdquo (trad livre) Id ibid p

203

98

conhecimento (iii) crenccedilas pessoais (iv) ambiguidade (v) falta de atenccedilatildeo (vi)

rejeiccedilatildeo253

Por exemplo um relevante segmento da populaccedilatildeo pode avaliar que a presenccedila

de imigrantes estaacute relacionada ao crescimento do cometimento dos mais diversos crimes

e agrave perda da identidade cultural da naccedilatildeo deflagrando-se um generalizado medo social

contra pessoas oriundas de outros paiacuteses Para solucionar tal problema avalia-se que a

melhor accedilatildeo a ser tomada consiste no enrijecimento da poliacutetica de imigraccedilatildeo do paiacutes

Essa avaliaccedilatildeo generalizada pode estar fundada em vaacuterios erros de julgamento

como a falta de conhecimento de estatiacutesticas que comprovem que natildeo apenas o nuacutemero

de imigrantes seja iacutenfimo mas que o nuacutemero de crimes praticados por imigrantes seja

muito irrelevante Ela pode estar pouco atenta ao fato de que o paiacutes natildeo tem uma

poliacutetica de integraccedilatildeo de imigrantes fazendo que muitos deles permaneccedilam excluiacutedos

da sociedade Ela pode desconsiderar o fato de que o paiacutes precisa de matildeo-de-obra

imigrante para o setor de serviccedilos e consequentemente para o seu crescimento

econocircmico E pode ateacute desconhecer que alguns imigrantes estavam em condiccedilatildeo de

risco em seus paiacuteses de origem Assim um trabalho de investigaccedilatildeo estaacute comprometido

em identificar em que se sustenta esse medo para possibilitar a criaccedilatildeo de poliacuteticas

puacuteblicas especiacuteficas que busquem desconfirmar as razotildees que o suportam

Scherer por sua vez ressalta que o paradigma da racionalidade perfeita em que

teriacuteamos todo o tempo possiacutevel para tomar decisotildees e disporiacuteamos de abundantes e

conclusivas informaccedilotildees a respeito do assunto objeto de deliberaccedilatildeo raramente eacute

atingido nas condiccedilotildees da vida praacutetica em que geralmente temos limitado prazo para

solucionar algo e natildeo possuiacutemos tantas informaccedilotildees quanto gostariacuteamos Assim no

mundo real em que vivemos as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas agrave

situaccedilatildeo satildeo bons suportes para decisotildees e compatiacuteveis com as concepccedilotildees de

racionalidade usualmente aceitas (instrumental inferencial e consensual) A seu ver a

tentativa de enquadraacute-las como irracionais eacute incompatiacutevel com a sua importacircncia

o sistema emotivo eacute um dos mais eficientes mecanismos

filogeneticamente evoluiacutedos para a adaptaccedilatildeo em organismos

superiores Mais especificamente pode-se mostrar que foi o

desenvolvimento das emoccedilotildees que libertou os organismos do riacutegido

controle de estiacutemulos proporcionando assim um repertoacuterio

comportamental altamente flexiacutevel e portanto uma oacutetima adaptaccedilatildeo

253

Id ibid p 208-213

99

para um ambiente de constante mudanccedila e de muacuteltiplos contextos

sociais254

Assim diante do modelo teoacuterico exposto parece-nos que uma abordagem que

leve em consideraccedilatildeo as emoccedilotildees natildeo pode partir do pressuposto de que elas natildeo satildeo

dignas de tematizaccedilatildeo por sua manifesta irracionalidade Ademais uma teoria da

argumentaccedilatildeo que encare seriamente o fenocircmeno emotivo precisa acessar um saber

psicoloacutegico sob pena de se construir em cima de bases artificiais

254

ldquoThe emotion system is one of the most efficient phylogenetically evolved mechanisms for adaptation

in higher organisms More specifically it can be shown that it was the development of emotion that freed

organisms from rigid stimulus control thus providing for a highly flexible behavioral repertoire and thus

optimal adaptation to an ever-changing environment and multiple social contextsrdquo (trad livre)

SCHERER K Op cit 2011 p 331

100

3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO

31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito

Se no Capiacutetulo I examinamos a importacircncia do estudo das emoccedilotildees na

Antiguidade o Capiacutetulo II foi dedicado a investigar a sua recepccedilatildeo pela MTA com o

objetivo de inclusive coletar criteacuterios para anaacutelise e para avaliaccedilatildeo de decisotildees

judiciais Nesse intuito construiacutemos o ambiente histoacuterico do surgimento da MTA

observamos a abordagem teoacuterica dos ldquopais fundadoresrdquo examinamos o tema na

disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo percebemos a reaccedilatildeo teoacuterica de Douglas Walton Por fim

analisamos uma abordagem linguiacutestica e descritiva do discurso emotivo bem como o

posicionamento da psicologia cognitiva especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo a

respeito deste assunto

Este Capiacutetulo por sua vez busca refletir especificamente a importacircncia das

emoccedilotildees no acircmbito do direito Assim este toacutepico buscaraacute responder agrave pergunta mais

baacutesica sobre esse tema eacute possiacutevel pensar o fenocircmeno juriacutedico sem as emoccedilotildees Qual a

sua relevacircncia

Um possiacutevel ponto de partida para refletir este toacutepico seria pensarmos a partir do

proacuteprio desenvolvimento teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo e as suas respectivas

consequecircncias na aacuterea do direito Conforme vimos as emoccedilotildees satildeo deflagradas diante

de eventos que avaliamos relevantes do ponto de vista de valores crenccedilas objetivos

bem-estar geral Em outras palavras as emoccedilotildees encontram terreno feacutertil para serem

iniciadas apenas em face de eventos significativamente salientes A este respeito

poderiacuteamos desde jaacute elucubrar que o direito seria o haacutebitat especiacutefico deste tema

porque os assuntos de que ele se ocupa em grande parte nos tocam profundamente e

satildeo deflagradores de fortes emoccedilotildees crimes hediondos homiciacutedio latrociacutenio

maioridade penal direito de famiacutelia divoacutercio adoccedilatildeo uniatildeo homoafetiva direitos

humanos cotas raciais direito do consumidor aborto eutanaacutesia direito agrave sauacutede

indenizaccedilatildeo moral e tantos outros

Contra esta ideia e prosseguindo no raciociacutenio eacute possiacutevel arguir de maneira

plausiacutevel que natildeo deveriacuteamos nos guiar por nenhuma dessas emoccedilotildees eventualmente

suscitadas caso contraacuterio os efeitos seriam catastroacuteficos Assim pessoas com

descontrolaacutevel raiva munidas de tremendo oacutedio e de indignaccedilatildeo ou melhor

101

apaixonadas estatildeo desprovidas da capacidade de raciociacutenio e por isso natildeo podem ser

paracircmetro de direcionamento nem para a legislaccedilatildeo nem para a decisatildeo judicial

O direito estaria assim exclusivamente no campo de uma racionalidade strictu

sensu natildeo lhe sendo admitida a intromissatildeo de qualquer elemento exoacutegeno Nussbaum

nesse ponto diz que uma possiacutevel reaccedilatildeo em face da tentativa de introduzir elementos

emotivos no acircmbito juriacutedico seria alegar a sua completa irracionalidade e por isso a

impossibilidade de levaacute-los em consideraccedilatildeo ldquoexiste um famoso lugar-comum no

sentido de que o direito eacute baseado na razatildeo e natildeo na paixatildeordquo255

Eacute possiacutevel chamar a

tradiccedilatildeo legal que compreende as emoccedilotildees como estranhas ao direito de proposta ldquonatildeo-

emotivardquo Poreacutem um tal posicionamento simplesmente desqualifica tanto o debate

teoacuterico e praacutetico acerca do direito ldquoem primeiro lugar o direito sem apelo agrave emoccedilatildeo eacute

virtualmente impensaacutevelrdquo256

A introduccedilatildeo de uma abordagem emotiva no direito eacute necessaacuteria agrave compreensatildeo

do fenocircmeno juriacutedico em vaacuterios sentidos conseguimos entender por que alguns tipos de

danos contra nossa esfera privada e coletiva satildeo condenados e outros natildeo por que

algumas leis adquirem determinada forma por que decisotildees judiciais podem levar em

consideraccedilatildeo certos tipos de emoccedilatildeo ldquomais profundamente eacute difiacutecil compreender a

racionalidade de muitas das nossas praacuteticas juriacutedicas a menos que levemos em

consideraccedilatildeo as emoccedilotildeesrdquo257

Uma maneira adequada para compreender essa relaccedilatildeo em comentaacuterio consiste

em observar que o direito soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres passiacuteveis de vulnerabilidade

isto eacute a existecircncia de proteccedilatildeo legal apenas pode resguardar sujeitos cujas vidas

possam de algum modo sofrer certos tipos de danos ou contingecircncias Assim num

exerciacutecio de imaginaccedilatildeo natildeo faria sentido uma norma cujo conteuacutedo protegesse seres

invulneraacuteveis autossuficientes imortais porque eles natildeo podem sofrer nenhum

prejuiacutezo nada lhes pode ferir ou causar qualquer espeacutecie de estrago258

E somente em relaccedilatildeo a seres cuja constituiccedilatildeo seja caracterizada pela

vulnerabilidade eacute que as emoccedilotildees fazem sentido Assim as emoccedilotildees satildeo respostas agraves

mais diversas fragilidades existentes no ser humano Por exemplo uma vez que a nossa

255

ldquoThere is a popular commonplace to the effect that the law is based on reason and not passionrdquo (trad

livre) NUSSBAUM Martha Hiding from humanity disgust shame and the law PrincetonOxford

Princeton University Press 2004 p 5 256

ldquoFirst of all law without appeals to emotion is virtually unthinkablerdquo (trad livre) Id ibid p 5 257

ldquoMore deeply it is hard to understand the rationale for many of our legal practices unless we do take

emotions into accountrdquo (trad livre) Id ibid p 6 258

Id ibid p 6

102

reputaccedilatildeo eacute vulneraacutevel e por isso pode ser socialmente destruiacuteda estamos sujeitos agrave

vergonha e a lei penal nos protege por meio da tipificaccedilatildeo dos crimes de caluacutenia de

difamaccedilatildeo ou de injuacuteria A lei penal tambeacutem nos protege do medo de eventualmente

termos nossa integridade fiacutesica psiacutequica patrimonial violada porque em todas essas

aacutereas somos sujeitos a vaacuterias espeacutecies de danos

Assim um ser cuja constituiccedilatildeo natildeo possa de alguma forma sofrer danos natildeo

poderaacute experimentar uma resposta emotiva Nada lhe deflagraraacute medo jaacute que nenhum

mal pode lhe sobrevir Nada lhe provocaraacute vergonha raiva ou qualquer sorte de emoccedilatildeo

deflagrada pela razoaacutevel possibilidade de ocorrer prejuiacutezos agrave sua esfera pessoal ldquoeles

natildeo possuiriam razotildees para ter tristeza porque sendo autossuficientes natildeo amariam

nada fora de si pelo menos natildeo com o necessaacuterio tipo de amor humano que daacute origem a

uma profunda perda e depressatildeordquo259

Neste momento parece-nos apropriado retomar a ideia estoica de apatheia

Conforme vimos os estoicos possuiacuteam uma escala de valores bem singular a uacutenica

coisa boa que existe eacute a virtude e a uacutenica ruim eacute o viacutecio a virtude se confunde com a

felicidade e o viacutecio com a infelicidade Assim sauacutede beleza riqueza fama bens

materiais satildeo considerados indiferentes eacute certo que alguns satildeo preferiacuteveis (sauacutede por

exemplo) e outros natildeo-preferiacuteveis mas ainda assim todos satildeo indiferentes porque a

sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a conquista da felicidade Eacute possiacutevel ser feliz na miseacuteria

na doenccedila na tortura Poreacutem eacute impossiacutevel ser feliz caso o indiviacuteduo natildeo possua virtude

Os indiferentes se caracterizam pela sua contingecircncia e pela sua ambiguidade isto eacute

eles satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna mundana aleacutem de poderem ser tanto beneacuteficos

quanto maleacuteficos Nessa ordem de ideias ateacute a sauacutede pode ser mal utilizada caso a

detenccedilatildeo de boa sauacutede seja instrumentalizada para objetivos ruins (participar de roubos

assaltos etc)

Nesse modelo teoacuterico as emoccedilotildees precisam ser eliminadas porque quem

experimenta as emoccedilotildees do homem comum valora equivocadamente o que de fato eacute

bom ou ruim O saacutebio estoico tendo atingido a suma racionalidade no caminho para a

compreensatildeo do mundo corretamente livrou-se de todas as emoccedilotildees desvinculou-se

dos bens externos (indiferentes) e tornou-se um ser autossuficiente e virtuoso ldquoos

filoacutesofos estoicos gregos e romanos recorreram a esta ideia ao pedir na medida em que

259

ldquoThey would have no reasons for grief because being self-sufficient they would not love anything

outside themselves at least not with the needy human type of love that gives rise to profound loss and

depressionrdquo (trad livre) Id ibid p 6

103

pudermos para nos tornarmos pessoas autossuficientes extirpando as emoccedilotildees de

nossas vidasrdquo260

Diante de tal concepccedilatildeo eacute possiacutevel indagar o modelo estoico da apatheia eacute uma

abordagem plausiacutevel para a compreensatildeo do sistema juriacutedico tal qual o conhecemos

Certamente natildeo

O sistema juriacutedico eacute um conjunto de regras e princiacutepios que tutela os nossos bens

materiais a nossa integridade fiacutesica e psiacutequica a nossa sauacutede a nossa esteacutetica o nosso

patrimocircnio cultural a nossa intimidade a nossa reputaccedilatildeo social e identidade E assim o

faz porque atribuiacutemos enorme valor a todos esses aspectos de nossa existecircncia

Ademais por valorarmos todos esses aspectos e por temermos possiacuteveis prejuiacutezos ou

danos em relaccedilatildeo a eles o direito leva em consideraccedilatildeo as nossas emoccedilotildees

Se desprezarmos todas as respostas emocionais que nos ligam a este

mundo daquilo que os estoicos chamavam de lsquobens externosrsquo

deixamos de lado uma grande parte da nossa humanidade e uma parte

que estaacute no cerne de explicar por que temos leis civis e criminais e

que forma elas tomam261

Assim qualquer ordenamento juriacutedico apenas adquire contorno apoacutes a seleccedilatildeo

das condutas e dos bens (materiais e imateriais) em virtude dos quais as nossas

respostas emotivas satildeo relevantes A estrutura das leis criminais e civis espelha o medo

social de sua eacutepoca As leis que protegem a vida expressam a medida desse temor e

declaram a indignaccedilatildeo contra condutas que se contraponham aos seus mandamentos

ldquotoda a estrutura do direito penal pode-se dizer que implica uma imagem do que temos

razotildees para estar zangado ou temerosordquo262

Mas a questatildeo natildeo se restringe apenas agrave formataccedilatildeo da legislaccedilatildeo Por exemplo

em 1976 a Suprema Corte americana declarou inconstitucional a lei da Carolina do

Norte que estabelecia pena de morte porque natildeo possibilitava que o reacuteu apresentasse a

sua histoacuteria de vida nem apelasse agrave compaixatildeo dos jurados nos seguintes termos

Um processo que atribui nenhum significado para relevantes facetas

de caraacuteter e os antecedentes do infrator ou as circunstacircncias de

determinado delito exclui de consideraccedilatildeo na fixaccedilatildeo da pena de

morte a possibilidade de fatores de compaixatildeo ou atenuantes

decorrentes das diversas fragilidades do ser humano Ele trata todas as

260

ldquoThe Greek and Roman Stoic philosophers draw on this idea when they ask us all to become such self-

sufficient people insofar as we can extirpating the emotions from our livesrdquo (trad livre) Id ibid p 6 261

ldquoIf we leave out all the emotional responses that connect us to this world of what the Stoics called

lsquoexternal goodsrsquo we leave out a great part of our humanity and a part that lies at the heart of explaining

why we have civil and criminal laws and what shape they takerdquo (trad livre) Id ibid p 7 262

the whole structure of criminal law might be said to imply a picture of what we have reason to be

angry at what we have reason to fear (trad livre) Id ibid p 11

104

pessoas condenadas por um delito natildeo como seres humanos

unicamente individuais mas como membros de uma indiferenciada

massa sem rosto para serem submetidos agrave imposiccedilatildeo cega da pena de

morte263

De outra parte no direito norte-americano o acusado de crime de homiciacutedio

voluntaacuterio pode obter uma reduccedilatildeo penal caso prove que o homiciacutedio tenha sido

cometido em resposta a uma provocaccedilatildeo da viacutetima que tal provocaccedilatildeo tenha sido

ldquoadequadardquo que a raiva do acusado possa ser enquadrada como uma raiva atribuiacutevel a

um homem-meacutedio e que o homiciacutedio tenha sido cometido no calor da emoccedilatildeo sem

tempo suficiente para reflexatildeo264

No Brasil de seu turno uma violenta emoccedilatildeo eacute causa

atenuante da pena de acordo com os arts 65 III ldquocrdquo 121 sect 1ordm e 129 sect 9ordm do Coacutedigo

Penal

Para a configuraccedilatildeo da legiacutetima defesa exige-se que ela seja praticada em face

de uma conduta que provoque medo razoaacutevel de modo que o medo precisa ser

argumentado para fins da decisatildeo judicial Ademais o apelo agrave compaixatildeo eacute largamente

admitido no direito penal norte-americano ldquomesmo os juristas mais cautelosos

concordam que a compaixatildeo eacute construiacuteda no processo de condenaccedilatildeo e qualquer

tentativa de eliminaacute-la viola os direitos fundamentaisrdquo265

Nussbaum partindo dos estoicos e da filosofia claacutessica recorre ao modelo da

psicologia cognitiva a fim de utilizar um paradigma teoacuterico acerca das emoccedilotildees

passiacutevel de ser empregado para compreender o direito Assim a seu ver as emoccedilotildees satildeo

resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos Apenas temos respostas

emocionais diante de algo ou de uma situaccedilatildeo significativamente relevante para a nossa

esfera pessoal Caso a situaccedilatildeo envolva banalidades ela seraacute emocionalmente

irrelevante Desse modo diferentemente da propagada ideia popular que as

compreende como meros impulsos instintuais ou algo desprovido de qualquer

raciociacutenio as emoccedilotildees natildeo podem ser consideradas irracionais num sentido descritivo

embora elas o possam ser num sentido normativo isto eacute quando fundadas em crenccedilas

263

Trata-se do caso Woodson v North Carolina (1976) citado por Nussbaum ldquoA process that accords no

significance to relevant facets of the character and record of the individual offender or the circumstances

of the particular offense excludes from consideration in fixing the ultimate punishment of death the

possibility of compassionate or mitigating factors stemming from the diverse frailties of humankind It

treats all persons convicted of a designated offense not as uniquely individual human beings but as

members of a faceless undifferentiated mass to be subjected to the blind infliction of the penalty of

deathrdquo Id ibid p 21 264

Id ibid p 37 265

ldquoeven the most cautious jurists agree that compassion is built into the sentencing process and that any

attempt to eliminate it violates fundamental rightsrdquo Id ibid p 56

105

ou pensamentos equivocados (racismo sexismo etc)266

ldquopodemos destacar quando a

emoccedilatildeo de algueacutem repousa sobre crenccedilas que satildeo verdadeiras ou falsas e (um ponto

separado) razoaacutevel ou natildeo razoaacutevelrdquo267

No entanto o mais importante a ser destacado eacute que elas satildeo factiacuteveis de

observaccedilatildeo e de discussatildeo criacutetica Para aleacutem de tal constataccedilatildeo descritiva (as emoccedilotildees

satildeo resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos) tambeacutem eacute possiacutevel

avaliar as emoccedilotildees vale dizer eacute aceitaacutevel ponderar o papel que elas desempenham em

determinados ramos do direito e de que modo elas poderiam ser o nossos guias na vida

puacuteblica restabelecendo assim o debate aristoteacutelico entre emoccedilotildees

adequadasinadequadas de acordo com as circunstacircncias e as emoccedilotildees perversas isto eacute

aquelas que natildeo deveriam ser os nossos paracircmetros em nenhuma hipoacutetese

Exemplificativamente a repugnacircncia268

eacute uma emoccedilatildeo bastante marcante na

vida do ser humano e na constituiccedilatildeo da formaccedilatildeo cultural de uma sociedade Ela estaacute

relacionada ao acircmbito de nossas necessidades iacutentimas ao que entendemos por limpeza

por sujeira ou imundiacutecie agrave maneira pela qual administramos os resiacuteduos fecais a urina

os gases puacutetridos as secreccedilotildees o lixo ela gerencia os odores suportaacuteveis e natildeo

suportaacuteveis do indiviacuteduo estaacute relacionada ao que entendemos por nojento repulsivo

asqueroso tem uma funccedilatildeo na fisiologia humana porque nos adverte sobre possiacuteveis

contaminantes existentes no ambiente (comida liacutequido etc) que podem nos infectar

provocando doenccedilas e ateacute a morte Em resumo a repugnacircncia nos guia na nossa rotina

diaacuteria de limpezas escovaccedilotildees asseios lavagens isolamentos embalagens

organizaccedilotildees no uso de bactericidas de inseticidas de perfumes de aromatizantes etc

Mas para aleacutem do acircmbito das intimidades e da funccedilatildeo fisioloacutegica a repugnacircncia

invade outras aacutereas da existecircncia humana Assim a nossa vida moral eacute tambeacutem

constituiacuteda por essa emoccedilatildeo que nos conduz a fazer certas escolhas no domiacutenio privado

e puacuteblico Por consequecircncia (e inevitavelmente) ela adentra no acircmbito do direito ldquoa

repugnacircncia tambeacutem desempenha um papel poderoso no direito Ela aparece em

primeiro lugar como a principal ou mesmo a uacutenica justificaccedilatildeo para tornar algumas

condutas ilegaisrdquo269

266

Id ibid p 10-11 267

ldquoWe can point out that someonersquos emotion rests on beliefs that are true or false and (a separate point)

reasonable or unreasonablerdquo (trad livre) Id ibid p 31 268

O termo inglecircs eacute disgust cuja traduccedilatildeo tambeacutem pode ser vertida por nojo ou por aversatildeo mas que

preferimos a expressatildeo ldquorepugnacircnciardquo por acharmos mais adequada agrave nossa cultura emocional 269

ldquoDisgust also plays a powerful role in the law It figures first as the primary or even the sole

justification for making some acts illegalrdquo (trad livre) Id ibid p 72

106

Assim a lei que regula os atos obscenos eacute guiada em grande parte pelos

pensamentos de repugnacircncia prevalecentes no padratildeo moral da sociedade de sua eacutepoca

A Suprema Corte americana observou quando da aplicaccedilatildeo da lei de atos obscenos que

a proacutepria palavra ldquoobscenordquo deriva do latim caenum cujo significado eacute repugnante A

repugnacircncia do criminoso em relaccedilatildeo a uma viacutetima homossexual jaacute foi considerada fator

atenuante em crime de homiciacutedio Aleacutem disso a repugnacircncia do juiz ou do juacuteri tambeacutem

eacute considerada um guia para ponderar na decisatildeo a presenccedila de potenciais fatores

agravantes no fato delituoso270

Na comissatildeo de exame de assuntos eacuteticos do governo americano acerca das

pesquisas de ceacutelulas-tronco o especialista em bioeacutetica Leon Kass argumentou que as

novas possibilidades da medicina deveriam ser submetidas agrave ldquosabedoria da

repugnacircnciardquo a fim de alcanccedilarmos uma conclusatildeo eacutetica sobre o seu disciplinamento

juriacutedico Quanto agrave possibilidade de clonagem humana o seu banimento foi justificado

por idecircntico motivo271

No Brasil a repugnacircncia eacute criteacuterio expresso em nossa legislaccedilatildeo para a criaccedilatildeo

de fatos tiacutepicos Assim os crimes hediondos satildeo aqueles que nos provocam repulsa

repugnacircncia nojo aversatildeo Hediondo vem da palavra em latim ldquofoetibundusrdquo que

significa ldquoo que cheira malrdquo a outra palavra relacionada em latim eacute ldquofoetererdquo que

significa ldquofeder ter mau cheirordquo

Em defesa da repugnacircncia como guia na vida puacuteblica podem-se colher os

seguintes argumentos (i) toda sociedade tem o direito agrave autopreservaccedilatildeo moral e para

isso as leis devem ser elaboradas levando em consideraccedilatildeo as respostas emotivas de

repugnacircncia dos seus membros (ii) a repugnacircncia eacute uma sabedoria social que nos

impede transgredir o que eacute moralmente profundo numa determinada comunidade (iii) eacute

preciso combater os viacutecios de uma determinada sociedade por meio de sentimentos de

repugnacircncia e (iv) a repugnacircncia eacute essencial para condenar e reprimir crueldades272

Todavia alega Nussbaum a repugnacircncia nunca deveria ser paracircmetro para

elaboraccedilatildeo de leis pois tal emoccedilatildeo estaacute ligada a pensamentos de pureza de

contaminaccedilatildeo de contaacutegio Do ponto de vista teoacuterico estaacute conectada agrave ideia do

decaimento das condiccedilotildees naturais do nosso corpo da nossa mortalidade da nossa

animalidade A repugnacircncia historicamente foi direcionada a certos grupos sociais

270

Id ibid p 72 271

Id ibid p 72-73 272

Id ibid p 73

107

(mulheres homossexuais negros etc) que eram associados a todos os predicados

(imundos sujos nojentos fedorentos) respeitantes a tal emoccedilatildeo

ao longo da histoacuteria certas propriedades repugnantes ndash viscosidade

fedor ligosidade decadecircncia imundiacutecie ndash tecircm repetida e

monotonamente sido associadas ou melhor projetadas em grupos de

referecircncia a quem os grupos privilegiados procuram contrastar o seu

estado humano superior Judeus mulheres homossexuais intocaacuteveis

pessoas de classe baixa todos eles satildeo imaginados como maculados

pela sujeira do corpo273

Outra emoccedilatildeo fortemente relacionada ao direito eacute a vergonha No direito norte-

americano discute-se a imposiccedilatildeo de penalidades que tenha a capacidade de

profundamente envergonhar o cidadatildeo em substituiccedilatildeo agraves denominadas ldquopenas

alternativasrdquo (penas pecuniaacuterias ou prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade) jaacute que estas

natildeo tecircm a aptidatildeo de gerar a transformaccedilatildeo do caraacuteter do indiviacuteduo Ateacute a cadeia

ambiente em que o indiviacuteduo estaacute longe do olhar social punitivo natildeo tem a capacidade

de lhe humilhar Assim as penalidades que imponham severos sentimentos de vergonha

conseguiriam atingir de maneira muito mais eficiente o propoacutesito de retribuiccedilatildeo de

dissuasatildeo de expressatildeo e de reforma ou reintegraccedilatildeo necessaacuterios para a vida em

sociedade274

Com efeito os exemplos acima descritos demonstram que a relaccedilatildeo entre o

direito e as emoccedilotildees eacute muito mais profunda do que se pode a princiacutepio imaginar

Ademais eacute interessante notar que essa constataccedilatildeo tem sido objeto de investigaccedilatildeo nos

EUA haacute algum tempo originando um campo de estudo hoje denominado de ldquoLaw and

Emotionrdquo em cujo contexto a obra de Nussbaum estaacute inserida

Maroney destaca que a trajetoacuteria do movimento ldquoLaw and Emotionrdquo tem sido

dura porque a construccedilatildeo teoacuterica da modernidade juriacutedica estaacute fundada na ideia de que

a razatildeo e a emoccedilatildeo se localizam em campos tatildeo distintos que eacute necessaacuterio eficiente

policiamento a fim de que as emoccedilotildees natildeo escorreguem no campo do direito e

corrompam o discurso juriacutedico ldquoEste modelo teoacuterico tem persistido apesar de sua

273

ldquothroughout history certain disgust propertiesmdashsliminess bad smell stickiness decay foulnessmdash

have repeatedly and monotonously been associated with indeed projected onto groups by reference to

whom privileged groups seek to define their superior human status Jews women homosexuals

untouchables lower-class peoplemdashall these are imagined as tainted by the dirt of the bodyrdquo (trad livre)

Id ibid p 108 274

Id ibid p 227-228

108

implausibilidade como modelo de como os seres humanos vivem ou de como o nosso

direito eacute estruturado e administradordquo275

Natildeo obstante esse novo campo de estudo em que a interdisciplinaridade se faz

fortemente presente recentemente tem conseguido cada vez mais adeptos sendo

possiacutevel visualizar as seguintes abordagens teoacutericas sugeridas por Maroney

Haacute um interesse no estudo das emoccedilotildees em si mesmas isto eacute investiga-se de

que modo emoccedilotildees especiacuteficas influenciam ou deveriam influenciar a elaboraccedilatildeo de

leis Assim conforme visto a repugnacircncia a vergonha e o medo satildeo exemplos de

emoccedilotildees que despertam curiosidade de anaacutelise e de criacutetica

O medo por exemplo aumenta sentimentos de percepccedilatildeo de risco e gera

demanda por novos mecanismos de seguranccedila promovendo significativas alteraccedilotildees

juriacutedicas ldquoo medo torna os indiviacuteduos mais propensos a apoiar medidas de seguranccedila

em detrimento de outras liberdades importantes e incentiva o apoio a poliacuteticas

conservadoras em geralrdquo276

Por outro lado exemplificativamente discute-se como o

medo decorrente da ldquosiacutendrome das mulheres agredidasrdquo isto eacute uma especial condiccedilatildeo

mental presente em mulheres constantemente viacutetimas de agressatildeo por seus

companheiros deve ser considerado na defesa do processo penal para configuraccedilatildeo da

legiacutetima defesa277

Tambeacutem eacute objeto de preocupaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma teoria das emoccedilotildees com

metodologia categorias e conceitos proacuteprios a fim de possibilitar uma aplicaccedilatildeo

sistemaacutetica e coesa ao direito278

Existe a chamada abordagem doutrinaacuteria em que se estuda como uma especiacutefica

aacuterea do direito incorpora poderia ou deveria incorporar uma determinada emoccedilatildeo Haacute a

abordagem da teoria juriacutedica que analisa criticamente sob o seu ponto de vista a teoria

das emoccedilotildees E haacute uma abordagem sobre a influecircncia das emoccedilotildees sobre o papel dos

atores juriacutedicos ldquoa abordagem do ator-juriacutedico enfatiza os seres humanos que povoam

275

ldquoThis theoretical model has persisted despite its implausibility as a model of either how humans live or

how our law is structured and administeredrdquo (trad livre) MARONEY Terry A Law and Emotion A

Proposed Taxonomy of an Emerging Field In Law and Human Behavior vol 30 2006 119-142 p

120-121 Disponiacutevel em httpssrncomabstract=726864 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 276

PIZARRO David We cannot be emotionless but we are capable of rational debate Disponiacutevel

em httpwwwtheglobeandmailcomglobe-debatewe-cannot-be-emotionless-but-we-are-capable-of-

rational-debatearticle4310309 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 277

MARONEY T Op cit p 126 278

Id ibid p 126

109

os sistemas juriacutedicos e explora como a emoccedilatildeo influecircncia e informa ou deveria

influenciar ou informar o desempenho da funccedilatildeo legal atribuiacuteda a essas pessoasrdquo279

Portanto ao contraacuterio do que poderia aparentar agrave primeira vista as emoccedilotildees

participam em vaacuterios niacuteveis da constituiccedilatildeo do direito e de sua praacutetica de modo que

uma abordagem que tambeacutem privilegie o seu estudo permitiraacute uma melhor compreensatildeo

da dinacircmica do fenocircmeno juriacutedico possibilitando proveitosamente novas formas de

criacutetica teoacuterica agrave maneira pela qual o direito eacute estruturado

32 Anaacutelise

Uma vez exploradas algumas conexotildees existentes entre o direito e as emoccedilotildees

parte-se agora para a anaacutelise de trecircs decisotildees judiciais do STF em cujo corpo

procuraremos demonstrar a presenccedila de argumentos emotivos Escolhemos os julgados

pela sua repercussatildeo social assim como para demonstrar que as emoccedilotildees estatildeo

presentes ao contraacuterio do que se poderia imaginar nos mais variados temas juriacutedicos

Neste toacutepico nosso intuito consiste em realizar um exame argumentativo apenas

sob um vieacutes descritivo utilizando como auxiacutelio a classificaccedilatildeo argumentativa proposta

por Micheli no Capiacutetulo II Conforme vimos na referida classificaccedilatildeo existe a emoccedilatildeo

dita a emoccedilatildeo demonstrada e a emoccedilatildeo suportada Embora ao longo de nossa anaacutelise

iremos destacar quando presentes as emoccedilotildees ditas e as demonstradas o nosso

objetivo consiste em evidenciar de que modo as emoccedilotildees satildeo suportadas no discurso

Ademais conveacutem registrar que considerando a grande extensatildeo dos votos seratildeo

selecionados os principais argumentos utilizados pelos ministros para sustentar uma

determinada emoccedilatildeo

321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo

Na Arguiccedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental ndash ADPF nordm 101 (DJ

2462009) ajuizada pelo Presidente da Repuacuteblica estava em discussatildeo a

constitucionalidade da importaccedilatildeo de pneus usados e remoldados em territoacuterio nacional

O julgamento era necessaacuterio porque numerosas decisotildees proferidas por juiacutezes federais

das Seccedilotildees Judiciaacuterias do Cearaacute do Espiacuterito Santo de Minas Gerais do Paranaacute do Rio

279

ldquoThe legal-actor approach focuses on the humans that populate legal systems and explores how

emotion influences and informs or should influence or inform those personsrsquo performance of the

assigned legal functionrdquo (trad livre) Id ibid p 131

110

de Janeiro e de Satildeo Paulo amparavam a importaccedilatildeo de tais pneus que segundo o autor

da accedilatildeo violava preceitos fundamentais da Constituiccedilatildeo Federal ndash CF tais como dentre

outros o direito agrave sauacutede e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art 196 e 225

da CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencido o ministro Marco Aureacutelio

A seguir iremos analisar mais detidamente o voto da relatora da accedilatildeo a

ministra Caacutermen Luacutecia que foi acompanhada pelos demais ministros e em seguida

resumidamente os votos dos ministros Gilmar Mendes Carlos Ayres Brito e Joaquim

Barbosa Por uacuteltimo mencionamos o posicionamento do ministro Marco Aureacutelio

A ministra Caacutermen Luacutecia apoacutes cuidar de questotildees formais em toacutepicos

direcionados ao ldquoobjeto da accedilatildeordquo agrave ldquoadequaccedilatildeo da accedilatildeordquo e agrave ldquoexclusatildeo de alguns

arguidosrdquo bem como apoacutes apresentar algumas questotildees preparatoacuterias para o

enfrentamento do problema num toacutepico denominado ldquobreve histoacuterico da legislaccedilatildeo da

mateacuteriardquo inicia a sua argumentaccedilatildeo propriamente dita na seccedilatildeo destinada a dissertar

sobre o ldquopneurdquo

A partir daiacute a ministra utiliza para fundamentar a sua decisatildeo da estrutura

cognitiva tiacutepica do medo isto eacute argumentos de consequecircncia negativa Walton destaca

que o medo eacute estruturado do ponto de vista argumentativo por meio de consequecircncias

negativas ldquoo argumento do tipo apelo ao medo [] eacute uma espeacutecie de argumento de

consequecircncias negativasrdquo280

Diferenciando o apelo ao medo do apelo agrave ameaccedila cuja estrutura eacute mais

complexa porque conteacutem mais um elemento que eacute a ameaccedila do proponente Walton

observa que ambos satildeo argumentos de consequecircncia ldquoeacute o argumento de consequecircncias

como a estrutura subjacente na qual tanto o apelo ao medo quanto o apelo agrave ameaccedila satildeo

construiacutedos que explica a real relaccedilatildeo entre os doisrdquo281

Aleacutem disso de acordo com os criteacuterios apresentados por Micheli outro ponto a

ser observado consiste em identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo narrada eacute

esquematizado pois a avaliaccedilatildeo acerca da incapacidade de controle de algo negativo eacute

condizente com a deflagraccedilatildeo e a majoraccedilatildeo de sentimentos de medo

Assim estabelecidas essas premissas adentra-se agora nos argumentos do

julgado

280

ldquothe fear appeal type of argument [hellip] is a species of argument from negative consequencesrdquo (trad

livre) WALTON Douglas Scare tactics arguments that appeal to fear and threats Springer 2000 p

143 281

ldquoit is argument from consequences as the underlying structure upon which both appeal to fear and

appeal to threat are built that explains the real relationship between the twordquo (trad livre) Id ibid p

139

111

Inicialmente a ministra num toacutepico destinado a discorrer sobre ldquoa induacutestria

automobiliacutestica e o resiacuteduo da borrachardquo estabelece que haacute uma enorme quantidade de

pneus vulcanizados em circulaccedilatildeo no mundo ressaltando um primeiro problema que eacute

a difiacutecil decomposiccedilatildeo do seu material e enfatizando a incapacidade de controle de sua

destinaccedilatildeo apoacutes o uso ldquoresultado haacute um total de aproximadamente 4 bilhotildees de pneus

novos em circulaccedilatildeo pelo mundo feito de borracha vulcanizada que eacute um material de

difiacutecil decomposiccedilatildeo e de mais difiacutecil ainda gestatildeo de sua destinaccedilatildeo apoacutes o usordquo

Ao enfrentar o argumento da defesa segundo o qual um dos melhores meios

para superar a questatildeo referente agrave destinaccedilatildeo dos pneus usados consiste em reutilizaacute-los

na manta asfaacuteltica adverte-se que tal mistura resulta na maior emissatildeo de poluentes no

momento em que a roda do automoacutevel entra em fricccedilatildeo com o asfalto advindo a partir

daiacute consequecircncias negativas ldquoentretanto emite mais poluentes no momento da fricccedilatildeo

do pneu aleacutem de ser mais oneroso e com probabilidade de ocasionar doenccedilas de

natureza ocupacionalrdquo

Quanto agrave chamada reciclagem energeacutetica dos pneus para fins de geraccedilatildeo de

calor tambeacutem se enfatiza a sua incontrolabilidade ldquotodavia tambeacutem aqui se depara

com o problema da administraccedilatildeo dos resiacuteduos decorrentes dessa incineraccedilatildeordquo

Assim a tecnologia das incineradoras natildeo controla a situaccedilatildeo porque eacute incapaz

de zerar a emissatildeo de material queimado e a consequecircncia disso eacute que materiais

poluentes metais pesados e compostos toacutexicos (dioxinas e furanos) satildeo liberados na

atmosfera

O que se constatou eacute que apesar de eficiente a queima em

incineradoras dedicadas nunca lsquozerarsquo o material queimado dele

podem resultar efluentes soacutelidos e gasosos que aleacutem de conterem

material poluente podem se apresentar com alto grau de

contaminaccedilatildeo de metais pesados aleacutem de compostos orgacircnicos

toacutexicos em especial dioxinas e furanos

Desse modo em face de liberaccedilatildeo de tais poluentes na atmosfera e com o

consequente processamento quiacutemico dos compostos o efeito negativo reside na

formaccedilatildeo de chuvas aacutecidas

o ponto negativo desse tipo de destinaccedilatildeo dada aos pneus eacute que

produz poluiccedilatildeo ambiental pois nesse processo satildeo emitidos gases

toacutexicos em especial o dioacutexido de enxofre e a amocircnia que em

contato com as partiacuteculas de aacutegua suspensas no ar provocam o

fenocircmeno denominado chuva aacutecida

112

Por sua vez a chuva aacutecida eacute causadora de consequecircncias deleteacuterias numa seacuterie

de oacuterbitas ldquoa chuva aacutecida eacute responsaacutevel por grandes formas de aniquilamento do meio

ambiente por provocar danos nos lagos rios florestas e nos animais bem como nos

monumentos e obras construiacutedos pelos homensrdquo

Outra possiacutevel destinaccedilatildeo para os pneus seria o seu uso na co-incineraccedilatildeo

principalmente nas faacutebricas de cimento todavia novamente outra consequecircncia

negativa ldquosob altas temperaturas esses materiais datildeo origem agraves dioxinas e furanos

considerados substacircncias canceriacutegenasrdquo

Num outro momento do julgado jaacute apoacutes discorrer sobre normas constitucionais

respeitantes ao assunto a rel novamente aborda as consequecircncias negativas do descarte

de pneus usados mas agora se enfatiza o aparecimento de doenccedilas tropicais tal como a

dengue e o subsequente risco agrave vida das pessoas

Constatado que o depoacutesito de pneus ao ar livre ndash a que se chega

inexoravelmente com a falta de utilizaccedilatildeo dos pneus inserviacuteveis

mormente quando se daacute a sua importaccedilatildeo nos termos pretendidos por

algumas empresas - eacute fator de disseminaccedilatildeo de doenccedilas tropicais

[]

Entretanto as pesquisas e as estatiacutesticas satildeo taxativas ao comprovar os

riscos agrave vida acarretados pelas doenccedilas tropicais em especial a

dengue que tem como uma de suas principais causas exatamente a

presenccedila de resiacuteduos soacutelidos como os pneus natildeo utilizados e natildeo

descartados de forma a garantir a salubridade

A seguir enfatiza-se a fragilidade do controle em relaccedilatildeo ao armazenamento dos

pneus usados

A ceacutelere urbanizaccedilatildeo aliada agrave maacute qualidade da limpeza urbana

sem adequados procedimentos de remoccedilatildeo de entulhos em

especial pneus velhos eacute responsaacutevel pelo aparecimento de

criadouros de mosquitos

Alerta-se quanto a outro possiacutevel efeito negativo pois considerando o formato

oval do pneu um ambiente ideal para armazenar organismos vivos eacute possiacutevel que

doenccedilas sequer imaginadas ou ateacute jaacute erradicadas sejam trazidas para o nosso paiacutes

trazendo sofrimento e risco de perda de vida de cidadatildeos

Informa-se ainda que os pneus usados que chegam de outros Paiacuteses

podem conter ovos de insetos transmissores de doenccedilas ateacute agora

natildeo incidentes no Brasil ou jaacute erradicadas no Paiacutes o que demandaria

ndash aleacutem de maior sofrimento das pessoas - mais gastos estatais com a

jaacute precaacuteria condiccedilatildeo da sauacutede puacuteblica no Brasil sem falar insista-se

no risco de perda de vida de cidadatildeos

113

Ademais o aumento de doenccedilas e a consequente fragilizaccedilatildeo da sauacutede da

populaccedilatildeo tecircm uma seacuterie de efeitos negativos para o paiacutes sendo um deles a perda do seu

potencial econocircmico Em outras palavras ateacute o produto interno bruto eacute atingido quando

um governo eacute incapaz de promover uma boa poliacutetica de sauacutede para os seus cidadatildeos

A cada ano a Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ndash ONU elabora uma

classificaccedilatildeo dos Paiacuteses e mede a qualidade vida em pelo menos trecircs

elementos sauacutede educaccedilatildeo e produto interno bruto Jaacute se concluiu

que enquanto um Paiacutes natildeo tiver resolvido problemas relacionados

agrave sauacutede (saneamento baacutesico incluiacutedo) e agrave educaccedilatildeo da populaccedilatildeo

natildeo haacute como elevar o seu produto interno bruto

De seu turno o ministro Gilmar Mendes tambeacutem fundamenta o seu

posicionamento por meio de argumentos da mesma espeacutecie isto eacute apontam-se as

consequecircncias negativas (ldquoproliferaccedilatildeo de doenccedilasrdquo ldquosubstacircncias nocivas agrave sauacutede e ao

meio ambienterdquo ldquomaterial de difiacutecil composiccedilatildeordquo) e a ausecircncia de controle acerca da

situaccedilatildeo avaliada como negativa (ldquofalta de meacutetodo atualmente eficiente de controlerdquo)

resumindo assim alguns dos argumentos presentes no voto da ministra Caacutermen Luacutecia

O grau de nocividade a falta de meacutetodo atualmente eficiente de

controle da eliminaccedilatildeo das substacircncias nocivas agrave sauacutede e ao meio

ambiente (constataccedilatildeo de descumprimento reiterado da Resoluccedilatildeo

CONAMA nordm 25899) a proliferaccedilatildeo potencial de vetores de

doenccedilas e outros agravos e o aumento do passivo ambiental de

material inserviacutevel de difiacutecil decomposiccedilatildeo satildeo elementos que

constituem a formaccedilatildeo do convencimento juriacutedico acerca do

conhecimento cientiacutefico existente sobre a potencialidade dos danos

ambientais decorrentes do descarte irregular dos pneus usados

O ministro Carlos Ayres apoacutes destacar que os pneus natildeo satildeo biodegradaacuteveis

enfatiza cinco consequecircncias negativas em relaccedilatildeo agrave importaccedilatildeo de pneus usados e

remoldados (i) ocupaccedilatildeo de consideraacutevel espaccedilo fiacutesico para sua armazenagem (ii) risco

de faacutecil combustatildeo (iii) poluiccedilatildeo de rios lagos e correntes de aacutegua (iv) transmissatildeo de

doenccedila por insetos (incluindo a dengue que ele qualifica ser ldquotatildeo temida entre noacutesrdquo) (v)

e os pneus remoldados tem vida uacutetil muito curta e se tornam mais rapidamente um

passivo ambiental O referido ministro tambeacutem expressa indignaccedilatildeo com o fato de que

nos paiacuteses de origem tais pneus natildeo passam de ldquolixo ambientalrdquo e a sua importaccedilatildeo faz

do Brasil ldquouma espeacutecie de quintal do mundordquo com graves danos a bens juriacutedicos (sauacutede

e meio ambiente) tutelados pela Constituiccedilatildeo Federal

Por sua vez o ministro Joaquim Barbosa enfatiza a incontrolabilidade de

situaccedilotildees negativas natildeo haacute meacutetodo eficaz para lidar com os resiacuteduos dos pneus o que

114

ocasiona danos diretos ao meio ambiente natildeo haacute controle sobre o empilhamento e

descarte de pneus o que aumenta a proliferaccedilatildeo de vetores de doenccedila Aleacutem disso alega

a existecircncia de risco de aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees no campo das relaccedilotildees internacionais por

desobediecircncia agraves normas da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio - OMC

Por uacuteltimo destaque-se que o ministro Marco Aureacutelio entendeu que para proibir

a importaccedilatildeo de tais pneus deveria haver lei especiacutefica nesse sentido Ademais procura

deslegitimar os argumentos de consequecircncia negativa acima deduzidos ao dizer que a

mera proibiccedilatildeo de importaccedilatildeo natildeo seria suficiente para ldquosalvar a Matildee Terrardquo ldquo[] como

disse e parece que encerrado este julgamento estaraacute salva - a Matildee Terrardquo

Com efeito a argumentaccedilatildeo vencedora no presente caso eacute consistente com a

descriccedilatildeo do medo realizada por Aristoacuteteles em sua retoacuterica isto eacute a possibilidade de

acontecimento de algo ruim que tenha a capacidade de nos provocar danos ou seacuterios

prejuiacutezos Nesta mesma direccedilatildeo Walton enfatiza que o argumento que apela ao medo

envolve a demonstraccedilatildeo da existecircncia de algum perigo que pode ou poderaacute causar

prejuiacutezos a um determinado sujeito implicando a ideia de que eacute necessaacuterio tomar

alguma accedilatildeo para evitaacute-lo282

Portanto na referida decisatildeo estatildeo em consideraccedilatildeo perigos que iratildeo atingir a

ldquopopulaccedilatildeordquo os ldquocidadatildeosrdquo e o ldquomeio-ambienterdquo do Brasil E os males capazes de

atingi-los satildeo muitos materiais poluentes gases toacutexicos dioxinas e furanos substacircncias

canceriacutegenas metais pesados compostos orgacircnicos toacutexicos doenccedilas de natureza

ocupacional ovos de inseto doenccedilas tropicais e desconhecidas poluiccedilatildeo de rios lagos e

correntes de aacutegua chuva aacutecida dengue aumento de gastos estatais para tratar novas

doenccedilas e ateacute o impacto na economia Ademais eacute expressamente dito que tais perigos

tecircm a capacidade de ldquoaniquilarrdquo o meio ambiente e pocircr em risco a vida das pessoas

Tendo em vista a ausecircncia de tecnologia ou de fiscalizaccedilatildeo que tivesse a capacidade de

controlar tais consequecircncias negativas a procedecircncia da accedilatildeo buscou fundar

sentimentos de aliacutevio

Por uacuteltimo eacute interessante tambeacutem notar que embora as palavras ldquoperigordquo ou

ldquoperigosordquo apareccedilam com frequecircncia na decisatildeo a palavra ldquomedordquo natildeo eacute em si mesma

dita mas a despeito disso observa-se que o medo foi argumentado por meio de

argumentos de consequecircncia negativa isto eacute ele foi o suporte emotivo da decisatildeo

282

Id ibid p 143

115

322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo

Na ADPF nordm 54 (DJ 1242012) ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos

Trabalhadores na Sauacutede ndash CNTS estava sob julgamento a possibilidade juriacutedica da

antecipaccedilatildeo terapecircutica do parto na hipoacutetese de fetos anenceacutefalos uma vez que diversos

juiacutezes e tribunais negavam tal pleito agraves gestantes com fundamento nos dispositivos que

regem o crime de aborto no Coacutedigo Penal Os preceitos fundamentais da CF apontados

como violados foram a dignidade da pessoa humana o princiacutepio da legalidade da

liberdade da autonomia da vontade e o direito agrave sauacutede (arts 1ordm IV 5ordm II 6ordm e 196 da

CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencidos os ministros Ceacutesar Peluso e

Ricardo Lewandowski

Primeiramente iremos analisar a argumentaccedilatildeo do voto do ministro Peluso

Poreacutem para entender a construccedilatildeo argumentativa do referido ministro eacute necessaacuterio

expor a estrutura cognitiva da indignaccedilatildeo

Para nosso objetivo pode-se dizer que tal emoccedilatildeo eacute deflagrada mediante a

avaliaccedilatildeo negativa de uma situaccedilatildeo (accedilatildeoomissatildeo) geradora de sofrimento e danos cuja

responsabilidade causal eacute passiacutevel de imputaccedilatildeo a um agente culpaacutevel Assim existe

uma accedilatildeoomissatildeo atribuiacutevel a algueacutem que eacute julgada condenaacutevel injusta pois causa

um especiacutefico prejuiacutezodanosofrimento a um sujeito283

Portanto a fim de caracterizar a indignaccedilatildeo no discurso eacute preciso analisar como

a accedilatildeoomissatildeo eacute narrada quem eacute o agente responsaacutevel como ele eacute caracterizado no

discurso quem eacute o sujeito passivo e como ele eacute caracterizado no discurso Neste julgado

especiacutefico os dois atores objeto de predicaccedilatildeo satildeo a gestante (a matildee) e o feto

Assim posto isso conveacutem dizer que apoacutes estabelecer que ldquotodos os fetos

anenceacutefalos [] satildeo inequivocamente dotados dessa capacidade de movimento

autoacutegeno vinculada ao processo contiacutenuo da vida e regida pela lei natural que lhe eacute

imanenterdquo o ministro afirma que o aborto de feto anecenfaacutelico eacute conduta criminosa

No seguinte trecho em que o ministro conclui com uma notaacutevel exclamaccedilatildeo

(emoccedilatildeo demonstrada) a conduta condenaacutevel e injusta eacute narrada como ldquofunestamente

danosa agrave vida ou agrave incolumidade fiacutesica alheiardquo caracterizando sofrimento e dano ao

feto ldquonatildeo se concebe nem entende em termos teacutecnico-juriacutedicos uacutenicos apropriados ao

283

Nesse sentido cf MICHELI R op cit 2014 p 113 e NUSSBAUM M op cit 2004 p 99 e 166

A raiva e a indignaccedilatildeo tecircm basicamente a mesma estrutura cognitiva de modo que poderiacuteamos utilizar

tanto uma quanto a outra emoccedilatildeo

116

caso direito subjetivo de escolha [] de comportamento funestamente danoso agrave vida

ou agrave incolumidade fiacutesica alheia e como tal tido por criminoso Eacute coisa abstrusardquo

No seguinte trecho haacute a estrutura completa da indignaccedilatildeo isto eacute o agente

culpado (a gestante) eacute caracterizado como algueacutem com poder desproporcional agrave viacutetima

(ldquoser poderoso superior detentor de toda forccedilardquo) existe a conduta condenaacutevel e

geradora de danos e sofrimentos que eacute comparada a um ato brutal de violecircncia

(ldquoextermiacuteniordquo ldquopena de morterdquo) e existe o sujeito passivo que eacute descrito como algueacutem

totalmente indefeso ldquono caso do extermiacutenio do anenceacutefalo encena-se a atuaccedilatildeo

avassaladora do ser poderoso superior que detentor de toda a forccedila inflige a pena

de morte ao incapaz de pressentir a agressatildeo e de esboccedilar-lhe qualquer defesardquo

A conduta da gestante eacute caracterizada como condenaacutevel injusta e infligidora de

sofrimento vaacuterias vezes Assim a fim de lhe emprestar conteuacutedo emotivo tal

procedimento eacute comparado com situaccedilotildees que via de regra nos provocam ou deveriam

provocar indignaccedilatildeo e raiva tais como a ldquopena capitalrdquo o ldquoracismo sexismo e

especismordquo e ateacute o nazismo Aleacutem disso tal conduta nominada de ldquoodiosardquo reduz o

feto ldquoagrave condiccedilatildeo de lixordquo

[] ao feto reduzido no fim das contas agrave condiccedilatildeo de lixo ou de

outra coisa imprestaacutevel e incocircmoda natildeo eacute dispensada de nenhum

acircngulo a menor consideraccedilatildeo eacutetica ou juriacutedica

[]

Essa forma odiosa de discriminaccedilatildeo que a tanto equivale nas suas

consequecircncias a formulaccedilatildeo criticada em nada difere do racismo do

sexismo e do chamado especismo Todos esses casos retratam a

absurda defesa e absolviccedilatildeo do uso injusto da superioridade de

alguns (em regra brancos de estirpe ariana homens e seres humanos)

sobre outros (negros judeus mulheres e animais respectivamente)

Em outra passagem novamente a conduta eacute comparada com situaccedilotildees que nos

provocam ou deveriam provocar sentimentos de indignaccedilatildeo e raiva podendo-se

inclusive cogitar que a argumentaccedilatildeo implica o medo de que um passado baacuterbaro da

nossa histoacuteria volte novamente a se repetir O ministro demonstra ao final a emoccedilatildeo

com uma exclamaccedilatildeo Confira-se

Faz muito a civilizaccedilatildeo sepultou a praacutetica ominosa de sacrificar

segregar ou abandonar crianccedilas receacutem-nascidas deficientes ou de

aspecto repulsivo como as disformes aleijadas surdas albinas ou

leprosas soacute porque eram consideradas ineptas para a vida e

improdutivas do ponto de vista econocircmico e social

117

Num toacutepico que trata sobre ldquoriscos de eugeniardquo o ministro tambeacutem utiliza de

argumentos de consequecircncia negativa (medo) a fim de demonstrar os perigos que

poderatildeo advir caso a accedilatildeo seja julgada procedente O primeiro deles seria permitir que

outras mulheres possam pleitear tratamento juriacutedico semelhante sob qualquer motivo

(anomalia fetal social econocircmico familiar) implicando a ideia de que novamente seraacute

infligido sofrimento a outros seres inocentes

Eacute possiacutevel imaginar o ponderaacutevel risco de que julgada procedente

esta ADPF mulheres entrem a pleitear igual tratamento juriacutedico a

hipoacuteteses de outras anomalias natildeo menos graves ou porque a gravidez

seja indesejada em si mesma ou porque agrave conta de fatores

econocircmicos sociais familiares etc seria insuportaacutevel ou

insustentaacutevel ter um filho

A ausecircncia de tecnologia meacutedica que permita diagnoacutestico 100 seguro eacute

apontada como outro fator de risco em relaccedilatildeo agrave permissatildeo de tal espeacutecie de aborto

demonstrando assim a incontrolabilidade da situaccedilatildeo sob julgamento

E o que surpreende e admira eacute que quem a invoca parece ignorar que

a temaacutetica estaacute indissociavelmente vinculada ao problema da

dificuldade teacutecnico-cientiacutefica de se detectar com precisatildeo absoluta

quais casos satildeo de anencefalia de modo a diferenciaacute-los de outras

afecccedilotildees da mesma classe nosoloacutegica das quais se distingue apenas

por questatildeo de grau

[]

Por que se evite possibilidade concreta de em decorrecircncia das

incertezas teacutecnico-cientiacuteficas e da consequente falibilidade dos

diagnoacutesticos eliminarem-se arbitrariamente fetos acometidos de

malformaccedilotildees diversas da anencefalia eacute imperioso proibir-lhes o

aborto ainda em tais casos

Ademais para o ministro Peluso a matildee ao pretender a permissatildeo juriacutedica para a

praacutetica do referido aborto configura-se um ser ldquoegocecircntricordquo e ldquoindividualistardquo que em

nome do ldquoprinciacutepio do prazerrdquo e a fim de evitar seu sofrimento psiacutequico e suas

anguacutestias recusa o oferecimento de compaixatildeo e piedade a quem na verdade eacute

merecedor desses sentimentos isto eacute o feto

[] reflete apenas uma atitude individualista e egocecircntrica enquanto

sugere praacutetica cocircmoda de que se vale a gestante para se livrar do

sofrimento e da anguacutestia

[]

Tal ansiedade que voltada para si mesma depende da histoacuteria e da

conformaccedilatildeo psiacutequicas de cada gestante eacute exaltada na proposta em

detrimento do afeto da piedade da compaixatildeo da doaccedilatildeo e da

abnegaccedilatildeo que participam da dimensatildeo de grandeza do espiacuterito

humano

118

Por outro lado se nos votos dos demais ministros eram claramente divergentes

as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do iniacutecio da vida ou do que eacute a vida da laicidade

estatal de questotildees penais de princiacutepios juriacutedicos (dignidade da pessoa humana

autonomia da vontade etc) parece que havia pelo menos um ponto de consenso que

era a necessidade de se ter compaixatildeo para com o sofrimento vivido pela gestante

Lazarus destaca que o tema nuacutecleo da compaixatildeo consiste em ser movido pelo

sofrimento alheio284

Por sua vez na estrutura cognitiva da compaixatildeo existe uma

avaliaccedilatildeo acerca da seriedade do sofrimento vivido por determinado sujeito e de certo

modo estatildeo ausentes consideraccedilotildees acerca da culpa do proacuteprio sujeito por estar em tal

situaccedilatildeo aflitiva285

Assim no voto do relator ministro Marco Aureacutelio realiza-se uma comparaccedilatildeo

entre as emoccedilotildees positivas que geralmente se fazem presentes numa gestaccedilatildeo normal e

as emoccedilotildees negativas que a gestante tem que suportar na hipoacutetese de anencefalia do

feto

Enquanto numa gestaccedilatildeo normal satildeo nove meses de

acompanhamento minuto a minuto de avanccedilos com a predominacircncia

do amor em que a alteraccedilatildeo esteacutetica eacute suplantada pela alegre

expectativa do nascimento da crianccedila na gestaccedilatildeo do feto anenceacutefalo

no mais das vezes reinam sentimentos moacuterbidos de dor de

anguacutestia de impotecircncia de tristeza de luto de desespero dada a

certeza do oacutebito

Assim conclui-se pela impossibilidade de se exigir que a matildee suporte tamanho

sofrimento a que se compara agrave tortura

O ato de obrigar a mulher a manter a gestaccedilatildeo colocando-a em uma

espeacutecie de caacutercere privado em seu proacuteprio corpo desprovida do

miacutenimo essencial de autodeterminaccedilatildeo e liberdade assemelha-se agrave

tortura ou a um sacrifiacutecio que natildeo pode ser pedido a qualquer pessoa

ou dela exigido

Mostra-se inadmissiacutevel fechar os olhos e o coraccedilatildeo ao que vivenciado

diuturnamente por essas mulheres seus companheiros e suas famiacutelias

Igualmente o ministro Joaquim Barbosa anota a presenccedila de um conjunto de

emoccedilotildees negativas (culpa raiva tristeza etc) deflagradas para os pais quando do

diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal concluindo com uma pergunta retoacuterica (emoccedilatildeo

demonstrada)

as reaccedilotildees emocionais dos pais apoacutes o diagnoacutestico de malformaccedilatildeo

fetal abrangem conjuntamente ou natildeo os seguintes sentimentos

284

LAZARUS R Op cit 1991 p 289 285

NUSSBAUM M Op cit 2004 p 49-50

119

ambivalecircncia culpa impotecircncia perda do objeto amado choque

raiva tristeza e frustraccedilatildeo Eacute facilmente perceptiacutevel a enorme

dificuldade de se enfrentar um diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal E eacute

possiacutevel imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que

passam aqueles que de suacutebito se veem diante do dilema moral de

interromper uma gestaccedilatildeo unicamente porque nada se pode fazer para

salvar a vida do feto Seria reprovaacutevel uma decisatildeo pela

interrupccedilatildeo da gestaccedilatildeo nesse caso

Por sua vez a ministra Caacutermen Luacutecia expressamente se refere agrave necessidade de

se ter compaixatildeo para com a gestante tendo em vista o enorme sofrimento gerado pela

presenccedila de inuacutemeras emoccedilotildees negativas (medo vergonha anguacutestia) atribuiacutedas agrave

mulher

A mulher que natildeo pode interromper essa gravidez tem o medo do que

vai acontecer o medo de que lhe pode ser acometido o medo fiacutesico o

medo psiacutequico e o medo ainda de vir a ser punida penalmente por

uma conduta que ela venha a adotar

[]

Natildeo se haacute negar compaixatildeo porque seria injusticcedila menos ainda o

direito porque seria antijuriacutedico agrave mulher que trazendo um pequeno

caixatildeo no que eacute o seu berccedilo fiacutesico vai agraves portas do Judiciaacuterio a

suplicar pela sua vida

[]

A mulher gestante de feto anenceacutefalo vive anguacutestia que natildeo eacute

partilhaacutevel pelo que ao Estado natildeo compete intervir vedando o que

natildeo eacute constitucionalmente admissiacutevel como proibido

Em igual sentido o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux assinalam a

necessidade de se levar em consideraccedilatildeo para a soluccedilatildeo da controveacutersia o sofrimento

que a mulher tem que passar nesse percurso de gestaccedilatildeo

Entrementes o aborto do feto anenceacutefalo tem por objetivo preciacutepuo

zelar pela sauacutede psiacutequica da gestante uma vez que desde o

diagnoacutestico da anomalia (que pode ocorrer a partir do terceiro mecircs de

gestaccedilatildeo) ateacute o parto a mulher conviveraacute com o sofrimento de

carregar consigo um feto que natildeo conseguiraacute sobreviver segundo a

medicina afirma com elevadiacutessimo grau de certeza (ministro Gilmar

Mendes)

[] levar a gestaccedilatildeo ateacute os seus uacuteltimos termos causa na mulher um

sofrimento incalculaacutevel do qual resultam chagas eternas que podem

ser minimizadas caso interrompida a gravidez de plano (ministro

Luiz Fux)

O ministro Carlos Ayres o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber

enfatizam o mesmo aspecto isto eacute o sofrimento pelo qual a mulher passa eacute

desnecessaacuterio comparando-o novamente a uma tortura

120

Daiacute que vedar agrave gestante a opccedilatildeo pelo aborto caracteriza um modo

cruel de ignorar sentimentos que somatizados tem a forccedila de derruir

qualquer feminino estado de sauacutede fiacutesica psiacutequica e moral aqui

embutida a perda ou a sensiacutevel diminuiccedilatildeo da autoestima

[]

Por isso que levar agraves uacuteltimas consequecircncias esse martiacuterio contra a

vontade da mulher corresponde agrave tortura a tratamento cruel

Ningueacutem pode impor a outrem que se assuma enquanto maacutertir o

martiacuterio eacute voluntaacuterio (ministro Carlos Ayres)

Nessa especiacutefica situaccedilatildeo a causa supralegal mencionada traduziraacute

hipoacutetese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa uma

vez que inexistente em tal contexto motivo racional justo e legiacutetimo

que possa obrigar a mulher a prolongar inutilmente a gestaccedilatildeo e a

expor-se a desnecessaacuterio sofrimento fiacutesico eou psiacutequico com grave

dano agrave sua sauacutede e com possibilidade ateacute mesmo de risco de morte

consoante esclarecido na Audiecircncia Puacuteblica que se realizou em funccedilatildeo

deste processo (ministro Celso de Mello)

[] a imposiccedilatildeo da gestaccedilatildeo contra a vontade da mulher eacute tortura

fiacutesica e psicoloacutegica em razatildeo de crenccedila (natildeo importa se

institucionalizada por meio de lei ou de decisatildeo juriacutedica ainda eacute mera

crenccedila) nos exatos termos da Lei dos Crimes de Tortura (ministra

Rosa Weber)

Assim sob uma anaacutelise emotiva pode-se dizer que enquanto o voto do ministro

Ceacutesar Peluso construiacutedo atraveacutes de uma forte predicaccedilatildeo contra o aborto de feto

anenceacutefalo era fundado na indignaccedilatildeoraiva direcionado agrave conduta da gestante no

medo em relaccedilatildeo agraves consequecircncias do julgamento e na tentativa de criar compaixatildeo para

com o feto os votos dos demais ministros forneciam razotildees para se ter compaixatildeo para

com o sofrimento da matildee que era descrito como uma tortura um sofrimento a que ela

natildeo deu causa um martiacuterio desnecessaacuterio Desse modo observa-se que as emoccedilotildees

foram argumentadas por meio de suas estruturas cognitivas e muitas vezes

expressamente ditas e atribuiacutedas aos atores (gestante feto) objetos de consideraccedilatildeo no

julgamento

323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo

A ADI nordm 4976 (DJ 1052014) foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repuacuteblica

contra dentre outros dispositivos os arts 37 a 47 da Lei nordm 12663 de 5 de junho de

2012 que concediam aos jogadores titulares ou reservas das seleccedilotildees brasileiras

campeatildes das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970

121

um precircmio em dinheiro no valor fixo de R$ 10000000 (cem mil reais) e um auxiacutelio

especial mensal para jogadores sem recursos ou com recursos limitados De acordo com

a argumentaccedilatildeo presente na peticcedilatildeo inicial da referida ADI a concessatildeo de tais

benefiacutecios financeiros ao referido grupo de jogadores violaria o princiacutepio da isonomia

A ADI neste ponto foi julgada por unanimidade improcedente

No voto do rel ministro Ricardo Lewandowski apoacutes ser destacado que a CF

por meio do art 217 fomenta as praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais protege e

incentiva as manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacional e atraveacutes do art 215 e 216

salvaguarda as manifestaccedilotildees da cultura popular e os bens de natureza imaterial chega-

se agrave conclusatildeo que o fundamento para desequiparaccedilatildeo consiste no fato de que tais

atletas conseguiram uma ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo Aleacutem do

mais em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com

recursos limitados sustenta-se que a ldquoextrema penuacuteria materialrdquo vivida por alguns

colocaria em xeque o ldquoprofundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras

que disputaram as Copas do Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFArdquo

Diante dessas diretrizes constitucionais parece-me plenamente

justificada a iniciativa dos legisladores federais - legiacutetimos

representantes que satildeo da vontade popular - em premiar materialmente

a incalculaacutevel visibilidade internacional positiva proporcionada por

esse grupo especiacutefico e restrito de atletas bem como em evitar que a

extrema penuacuteria material enfrentada por alguns deles ou por suas

famiacutelias ndash com a perda de dignidade pessoal que acompanha essas

circunstacircncias ndash ponha em xeque o profundo sentimento nacional

em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras que disputaram as Copas do

Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFA as quais representam ainda

hoje uma das expressotildees mais relevantes conspiacutecuas e populares

da identidade nacional

Nesse pequeno trecho esboccedila-se a presenccedila de vaacuterias emoccedilotildees que

fundamentam a desequiparaccedilatildeo a ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo e a

ldquoidentidade nacionalrdquo satildeo expressivas do sentimento do orgulho a ldquoextrema penuacuteria

materialrdquo diz respeito agrave compaixatildeo ldquoo profundo sentimento nacionalrdquo faz uso do apelo

aos sentimentos do povo

Lazarus destaca que o nuacutecleo temaacutetico do orgulho diz respeito agrave ldquomelhoria da

identidade do ego de algueacutem tomando creacutedito um objeto valioso ou uma conquista seja

a nossa proacutepria ou a de algueacutem ou a de um grupo com o qual nos identificamos - por

122

exemplo um compatriota um membro da famiacutelia ou um grupo socialrdquo286

Assim no

orgulho estaacute presente uma avaliaccedilatildeo positiva de que nossa imagemidentidade foi

significativamente melhorada e engrandecida em virtude da conquista por noacutes mesmos

ou por outros com qual nos identificamos de algo socialmente relevante O evento

deflagrador do orgulho aleacutem de ser considerado positivo aumenta o valor da nossa

imagem

Em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com

recursos limitados a desequiparaccedilatildeo tambeacutem eacute justificada a tiacutetulo de compaixatildeo

porque os ldquojogadores daquela eacutepocardquo natildeo ganhavam o suficiente para uma

aposentadoria digna

Recordo nesse sentido que a final da Copa do Mundo de 1950 entre

as seleccedilotildees brasileira e uruguaia realizada no Rio de Janeiro ndash oito

anos portanto antes do primeiro tiacutetulo nacional ndash teve o maior

puacuteblico da histoacuteria do Estaacutedio do Maracanatilde superando 200 mil

pessoas Natildeo obstante como eacute notoacuterio poucos foram os jogadores

daquela eacutepoca mesmo os de maior renome que obtiveram

rendimentos suficientes para garantir na inatividade um sustento

digno para si e seus familiares

No voto do ministro Luiz Fux os ex-campeotildees satildeo descritos como ldquoverdadeiros

heroacuteis do paiacutesrdquo Por sua vez as suas conquistas construiacuteram o ldquonosso patrimocircnio

histoacuterico nacionalrdquo e ldquoalccedilaram o Brasil a outro patamar em termos desportivosrdquo de

modo que natildeo existe agressatildeo agrave isonomia em razatildeo do reconhecimento por ldquotamanho

feitordquo

[] as consequecircncias dos mundiais de 1958 na Sueacutecia de 62 no

Chile e de 70 no Meacutexico foram decisivas para a construccedilatildeo desse

patrimocircnio histoacuterico nacional

Daiacute por que natildeo haacute qualquer ofensa agrave Lei fundamental de 1988 em

especial ao princiacutepio da isonomia quando o Estado promove por

meio de concessatildeo do benefiacutecio ora previsto o reconhecimento por

tamanho feito

Natildeo se pode negligenciar que esses atletas ao representarem o paiacutes

em tais mundiais alccedilaram o Brasil a outro patamar em termos

desportivos

O ministro diz que a importacircncia da conquista de tais jogadores eacute enorme

porque fez com que abandonaacutessemos o complexo de que ldquosoacute seriamos uma paacutetria que

286

ldquoenhancement of ones ego-identity by taking credit for a valued object or achievement either our

own or that of someone or group with whom we identify mdash for example a compatriot a member of the

family or a social grouprdquo (tradlivre) LAZARUS R Op cit p 271

123

calccedila chuteirasrdquo Assim alegar a inconstitucionalidade de tal norma significa ir de

encontro agraves conquistas de que ldquoo povo brasileiro tanto se orgulhardquo

reconhecer a importacircncia dos atores dessa transmudaccedilatildeo por que

passou o Brasil e a identificaccedilatildeo do paiacutes com o futebol abandonando

o complexo de que noacutes soacute seriacuteamos uma Paacutetria que calccedila

chuteiras evidencia a implementaccedilatildeo de poliacutetica puacuteblico-estatal de

reconhecimento que contempla o princiacutepio da isonomia

Afirmar a inconstitucionalidade de tais preceitos concessa venia eacute

desestimular e depreciar as conquistas das quais o povo brasileiro

tanto se orgulha

Quanto agrave atual situaccedilatildeo de miseacuteria de alguns jogadores ela eacute justificada pela

ausecircncia de profissionalismo no futebol de antigamente Ademais tal condiccedilatildeo de

penuacuteria eacute atestada pelos telejornais e pela rede mundial de computadores

Natildeo havia o profissionalismo que vivenciamos nos dias de hoje e

justamente por isso - esse eacute um argumento talvez interdisciplinar ndash

muitos desses verdadeiros heroacuteis do paiacutes natildeo possuem condiccedilotildees

materiais miacutenimas para a sua subsistecircncia Natildeo raro haacute relatos nos

telejornais e na proacutepria rede mundial de computadores de ex-

campeotildees do mundo vivendo em completo esquecimento e ateacute

mesmo na miseacuteria de maneira que merece ser festejada e natildeo

tripudiada a iniciativa do Estado Brasileiro

Ao final do seu voto o ministro Fux atribui ao povo brasileiro mais duas

emoccedilotildees positivas relacionadas aos feitos dos ex-atletas (alegria e gratidatildeo)

Por fim Senhor Presidente egreacutegia Corte eu tenho certeza de que o

povo brasileiro por todas as alegrias que esses atletas

proporcionaram tem uma diacutevida de gratidatildeo e natildeo repudiaraacute a justa e

merecida homenagem feita pela lei

Para o ministro Luiacutes Barroso inexiste violaccedilatildeo agrave isonomia porque a concessatildeo

de tal premiaccedilatildeo e do auxiacutelio-especial estaacute fundada na ldquoavaliaccedilatildeo poliacutetica de que os

referidos jogadores realizaram um feito notaacutevel contribuindo para desenvolver um

traccedilo marcante da cultura nacional e difundir o nome do Brasil no mundordquo De resto

observa que alguns ex-jogadores enfrentam ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo e que na

deacutecada de 50 60 70 natildeo se retirava proveito econocircmico da atividade esportiva como

hoje em dia

Por sua vez o ministro Dias Toffoli oferece outra razatildeo para se ter orgulho das

conquistas dos ex-jogadores qual seja apoacutes ser campeatildeo contra a Sueacutecia em 1958 as

empresas suecas ldquodescobriram o Paiacutesrdquo o que resultou em ldquoriquezas para a Naccedilatildeo

brasileirardquo

124

Em 1958 quando o paiacutes vivia aquele processo de industrializaccedilatildeo da

eacutepoca de Juscelino Kubitschek as induacutestrias suecas olharam para o

Brasil exatamente quando viram o Brasil jogar na Sueacutecia e ser

campeatildeo numa final da Copa do Mundo contra a Sueacutecia As grandes

empresas suecas na aacuterea de tecnologia na aacuterea automobiliacutestica que

se instalaram haacute cinquenta anos no Brasil descobriram o Paiacutes por

conta do futebol o que resultou em riquezas para a Naccedilatildeo

brasileira com a geraccedilatildeo de empregos e de desenvolvimento

Indagado se o Brasil era de fato desconhecido do mundo antes de 1958 o

ministro Toffoli diz que a industrializaccedilatildeo sueca estaacute registrada nos livros Ademais

tais conquistas no futebol resultaram no soft power brasileiro no mundo

Ah eu natildeo vou citar os nomes das empresas mas isso estaacute nos livros

Estaacute na histoacuteria do desenvolvimento brasileiro basta ler Senhor

Presidente Basta ler a histoacuteria do desenvolvimento brasileiro

Verifique se tinha induacutestria sueca antes de 58 investindo no Brasil e

verifique depois

[]

[] a muacutesica brasileira traz retorno ao Brasil a cultura brasileira as

novelas brasileiras que passam no exterior trazem um capital agregado

ao Brasil

Isso eacute o soft power Trata-se do soft power

[]

esse chamado soft power ele traz um retorno agrave Naccedilatildeo brasileira ele

traz dividendos que extrapolam a proacutepria aacuterea do futebol a proacutepria

aacuterea do desporto e agrega valor a toda a Naccedilatildeo brasileira e repercute

na economia de modo geral Como eacute um fato - isso eacute um fato eacute um

dado histoacuterico - que muitas empresas suecas que hoje estatildeo

instaladas haacute mais de cinquenta anos no Brasil olharam para o

Brasil apoacutes a Copa de 1958 laacute organizada

De seu turno o ministro Gilmar Mendes alega que a hegemonia no futebol eacute

benfazeja simpaacutetica no mundo e eacute disso que se trata o soft power Embora natildeo se refira

expressamente aos dispositivos constitucionais acima mencionados ele chega a destacar

que caso bem aproveitada a Copa serviria para ldquorevirar esse complexo de vira-latardquo E

o ministro Marco Aureacutelio alega que o reconhecimento dos ex-atletas eacute justo embora

tenha vindo tarde (cinquenta e quatro anos depois)

Observa-se portanto que a estrutura cognitiva do orgulho se fez bastante

presente na argumentaccedilatildeo desenvolvida pois para fins de justificar a desequiparaccedilatildeo de

tratamento legislativo se avaliou que a imagem do Brasil ou a identidade brasileira foi

significativamente melhorada (e ateacute construiacuteda) apoacutes a vitoacuteria nas copas mundiais

masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970 Vaacuterias descriccedilotildees a respeito

de tal conquista confirmam isso ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo

125

ldquotamanho feitordquo ldquofeito notaacutevel ldquoalccedilou o Brasil em outro patamar em termos

desportivosrdquo ldquoabandonou o complexo de que seriacuteamos uma paacutetria que soacute calccedila

chuteirasrdquo ldquoas grandes empresas suecas descobriram o Brasilrdquo ldquosoft power mundialrdquo

ldquoagrega valor a toda Naccedilatildeo brasileirardquo Desse modo o orgulho foi uma emoccedilatildeo

expressamente atribuiacuteda agrave populaccedilatildeo e extensamente argumentada pelos votos

Por outro lado a estrutura cognitiva da compaixatildeo tambeacutem esteve presente pois

o sofrimento dos ex-jogadores eacute descrito como ldquoextrema penuacuteria materialrdquo ldquomiseacuteriardquo

ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo tudo isso atestado pelos ldquotelejornaisrdquo e pela ldquorede

mundial de computadoresrdquo Tambeacutem estava fora de consideraccedilatildeo questotildees acerca da

culpa dos proacuteprios jogadores para estarem em tal estado de miserabilidade jaacute que via

de regra os ministros avaliaram que naquela eacutepoca natildeo se ganhava tanto dinheiro

quanto hoje em dia Ademais vimos que a alegria e a gratidatildeo foram emoccedilotildees

expressamente atribuiacutedas agrave populaccedilatildeo

33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Este uacuteltimo toacutepico estaraacute divido em trecircs momentos O primeiro busca responder

se eacute possiacutevel uma retoacuterica estoica no direito O segundo tece consideraccedilotildees criacuteticas

sobre os julgados a fim de tentar explicitar em que medida os argumentos emotivos

colaboraram positivamente ou natildeo para a decisatildeo Sobre esse segundo momento eacute

preciso ressaltar que no atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo natildeo conseguimos

identificar criteacuterios que pudessem ser aplicados de maneira sistemaacutetica e coesa

resultando numa rigorosa metodologia de avaliaccedilatildeo de argumentos emotivos Desse

modo sobre este especiacutefico momento avaliativo eacute preciso registrar que muito se tem

para evoluir sobre o tema e por isso natildeo faremos mais do que esparsamente e sem o

rigor desejado ponderar a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum a relevacircncia

dos argumentos identificados e a sua integraccedilatildeo no contexto de uma argumentaccedilatildeo

juriacutedica Portanto intencionamos natildeo mais do que coletar alguns criteacuterios miacutenimos que

pudessem servir para ulterior desenvolvimento teoacuterico acerca da avaliaccedilatildeo de

argumentos Por fim o terceiro momento tentaraacute responder se existe uma eacutetica no uso

das emoccedilotildees na decisatildeo juriacutedica buscando construir paracircmetros de neutralidade para o

julgador

Inicialmente em relaccedilatildeo ao primeiro ponto conveacutem relembrar que a eacutetica

estoica influenciou fortemente a formataccedilatildeo de sua retoacuterica que era considerada uma

126

ciecircncia e uma virtude (diferentemente do que entendia todas as escolas filosoacuteficas da

antiguidade) No entanto a retoacuterica estoica tinha uma seacuterie de peculiaridades pois ao

inveacutes de propoacutesitos persuasivos buscava a correccedilatildeo do discurso Assim para atingir tal

desiderato natildeo utilizava ornamentos valorizava ao maacuteximo a brevidade e o apuro

gramatical repudiava coloquialismos e sobretudo natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero

descrevia esse estilo como seco severo compacto e apaacutetico Em suma o discurso

retoacuterico estoico absorvido na sua dialeacutetica era apresentado destituiacutedo de carga emotiva

para ser assentido pelo puacuteblico

No entanto a utilizaccedilatildeo desse modelo de discurso como paradigma para o

direito especialmente no que tange agraves emoccedilotildees natildeo eacute viaacutevel por uma seacuterie de motivos

Inicialmente se formos realmente radicais nessa ideia ela teria que ser bem

sucedida em sua capacidade de esvaziamento da linguagem de seu conteuacutedo emotivo

Mas isso seria impossiacutevel desde que as palavras se destinam a carregar uma constelaccedilatildeo

de informaccedilotildees experiecircncias e emoccedilotildees por detraacutes delas Seria inclusive desnorteante

retirar o peso emotivo de palavras teacutecnicas e eacuteticas do direito tais como boa-feacute

dignidade da pessoa humana direitos humanos etc Tais palavras tecircm uma dimensatildeo

emotiva forte e por isso satildeo causas de agir isto eacute nos impulsionam em suas

prescriccedilotildees conforme destaca Stevenson ldquodefiniccedilotildees eacuteticas envolvem um casamento de

significado descritivo e emotivo e consequentemente possuem um uso frequente no

redirecionamento e intensificaccedilatildeo de atitudesrdquo287

Ademais Fillmore destaca que toda definiccedilatildeo eacute composta por duas partes uma

parte descritiva relacionada ao significado de uma palavra especiacutefica sendo que esta

parte eacute dependente de outra qual seja o fundo de conhecimento culturalmente

compartilhado da palavra Assim toda palavra eacute dependente de frame isto eacute ldquouma

estrutura de conhecimento ou de conceituaccedilatildeo que subjaz ao significado de um conjunto

de itens lexicais que em certos sentidos apelam para essa mesma estruturardquo288

Portanto um projeto de apatia do discurso juriacutedico precisaria elaborar uma eficiente

287

ldquoethical definitions involve a wedding of descriptive and emotive meaning and accordingly have a

frequent use in redirecting and intensifying attitudesrdquo (trad livre) STEVENSON Charles L Ethics and

language New Haven Yale University Press 1944 p 210 Sobre a importacircncia da linguagem emotiva

na argumentaccedilatildeo cf WALTON Douglas MACAGNO Fabrizio Emotive language in argumentation

New York Cambridge 2014 288

ldquoby frame I mean a structure of knowledge or conceptualization that underlies the meaning of a set of

lexical items that in some ways appeal to that same structurerdquo (trad livre) FILLMORE Charles J

Double-decker definitions the role of frames in meaning explanations In Sign language studies

vol3 2003 p 267

127

terapecircutica para se livrar das caracteriacutesticas da proacutepria linguagem e dos seus anseios

comunicacionais mais baacutesicos

Todavia a impossibilidade de uma retoacuterica estoica no direito ultrapassa uma

questatildeo estritamente linguiacutestica Conforme vimos o direito leva em consideraccedilatildeo as

nossas emoccedilotildees porque a proteccedilatildeo juriacutedica soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres cuja

constituiccedilatildeo seja passiacutevel de danos pois eacute a partir dessa fragilidade constitutiva que se

deflagram respostas emocionais juridicamente relevantes O direito assim se constroacutei

atraveacutes de um conjunto de normas e decisotildees que fornecem elementos para entendermos

com que tipos de danos temos razatildeo para nos indignar ou para ter raiva ou que tipos de

sofrimento nos habilitam a buscar prestaccedilatildeo jurisdicional Portanto existe uma eacutetica

emotiva que informa a elaboraccedilatildeo das leis instrumentaliza-se processualmente e muitas

vezes ingressa no discurso juriacutedico Em outras palavras o direito eacute um sistema de

normas fundado em emoccedilotildees

Isso estaacute intrinsicamente conectado com a anaacutelise das decisotildees que apresentamos

no toacutepico anterior e que agora passamos a discutir

Por exemplo no ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo natildeo faria o menor sentido utilizar a

estrutura cognitiva do medo (argumentos de consequecircncia negativa) caso a existecircncia

de determinados perigos natildeo tivesse a possibilidade de realmente provocar seacuterios

danos a sujeitos e bens juridicamente tutelados pela CF isto eacute a sauacutede da populaccedilatildeo e o

equiliacutebrio do meio-ambiente

Desse modo o uso de argumentos de medo se fez necessaacuterio porque estava em

discussatildeo a presenccedila de riscos juridicamente relevantes que precisavam ser

evidenciados e ponderados Na audiecircncia puacuteblica realizada em 9 de junho de 2008

diversos especialistas manifestaram posicionamentos a favor e contra a importaccedilatildeo dos

pneus usados e remoldados de sorte que para uma boa soluccedilatildeo da questatildeo a

visualizaccedilatildeo de perigos relacionados agrave referida importaccedilatildeo era fundamental

Conveacutem destacar que na decisatildeo o uso de argumentos de medo estava

embasado em material teacutecnico elaborado por especialistas Ademais os referidos

argumentos estavam integrados dentro de uma argumentaccedilatildeo juriacutedica porque os

ministros desenvolveram a ideia de que aqueles perigos contrariavam dispositivos

constitucionais relacionados ao tema tais como o direito ao meio-ambiente

ecologicamente equilibrado o princiacutepio da precauccedilatildeo e o direito agrave sauacutede Por exemplo

em relaccedilatildeo ao art 225 da CF destaca-se o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado o que impotildee ao poder puacuteblico o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as

128

presentes e futuras geraccedilotildees O princiacutepio da precauccedilatildeo exige a necessidade de prevenir-

se contra riscos de danos previsiacuteveis quanto ao art 196 da CF enfatiza-se o dever de

atuaccedilatildeo do poder puacuteblico em face de riscos agrave sauacutede da populaccedilatildeo

Assim tal argumentaccedilatildeo demonstra a atualidade da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica de que

o medo pode ser beneacutefico para a deliberaccedilatildeo de determinados assuntos que envolvam

perigos Walton tambeacutem evidencia este aspecto ao dizer que argumentos que apelem ao

medo satildeo legiacutetimos e racionais quando a decisatildeo envolva a necessidade de ponderar as

consequecircncias de determinadas escolhas ou mais especificamente quando existe um

dilema entre manter um benefiacutecio atual ou visualizar aspectos de seguranccedila a longo-

prazo ldquoestes argumentos frequentemente envolvem uma escolha entre a seguranccedila a

longo-prazo e a gratificaccedilatildeo imediatardquo289

No presente caso pode-se dizer que estava em

discussatildeo a seguranccedila a longo prazo da populaccedilatildeo e do meio-ambiente em face da

manutenccedilatildeo dos interesses econocircmicos de certas empresas290

De outra parte analisando o ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958

1962 e 1970rdquo entendemos que os argumentos emotivos foram mal utilizados pelos

motivos a seguir desenvolvidos

Em primeiro lugar antes de prosseguir eacute preciso registrar que homenagens

puacuteblicas (sem premiaccedilatildeo em dinheiro) a cidadatildeos brasileiros que alcanccedilaram relevante

ecircxito em suas aacutereas de atuaccedilatildeo profissional (artiacutestica cultural cientiacutefica esportiva etc)

e divulgaram positivamente o nome do Paiacutes satildeo comuns e fazem parte da conduta da

Administraccedilatildeo Puacuteblica Todavia na referida ADI natildeo estava em discussatildeo uma mera

homenagem mas a constitucionalidade de dispositivos da Lei nordm 12663 de 2012 que

destinavam a especiacuteficos ex-jogadores a tiacutetulo de premiaccedilatildeo um relevante montante de

dinheiro puacuteblico no valor total de R$ 52 milhotildees de reais aleacutem de um auxiacutelio especial

Assim considerando a singularidade da homenagem seria necessaacuterio demonstrar que o

uso do dinheiro puacuteblico no caso buscava atingir algum propoacutesito constitucional

bastante relevante

289

ldquoThese arguments frequently involve a choice between long-term safety and immediate gratificationrdquo

(trad livre) WALTON D Op cit 2000 p 23 290

Sunstein em obra especiacutefica explora a relaccedilatildeo entre o medo e o princiacutepio da precauccedilatildeo Em contextos

altamente emotivos o autor argumenta que ocorre o fenocircmeno da negligecircncia probabiliacutestica isto eacute as

pessoas tendem a ignorar a real probabilidade de acontecimento dos riscos imaginados tomando assim

decisotildees irracionais Cf SUNSTEIN Cass R Laws of fear beyond the precautionary principle New

York Cambridge University Press 2005

129

Todavia da leitura dos votos dos ministros observa-se que o uso de argumentos

emotivos suplantou qualquer tentativa de desenvolvimento argumentativo a respeito dos

motivos constitucionais que fundamentariam tal premiaccedilatildeo

Apenas o relator o ministro Lewandowski conseguiu desenvolver um pouco

alguns suportes constitucionais para a decisatildeo mas ainda assim de maneira

problemaacutetica

No primeiro suporte cita-se o art 217 da CF cujo caput diz que eacute dever do

Estado fomentar praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais a autorizaccedilatildeo para a

referida homenagem estaria no inciso IV deste dispositivo o qual diz que devem ser

observados ldquoa proteccedilatildeo e o incentivo agraves manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacionalrdquo

Todavia a expressatildeo ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo que parece indicar a necessidade de proteccedilatildeo

de manifestaccedilotildees desportivas criadasoriginadas no Brasil eacute entendida em outro sentido

Assim ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo eacute compreendida no sentido de ldquoincorporada aos costumes

nacionaisrdquo

Desse modo o ministro Lewadowski chega agrave conclusatildeo de que o futebol como

esporte incorporado ao costume nacional ldquodeve ser protegido e incentivado por

expressa imposiccedilatildeo constitucional mediante qualquer meio que a Administraccedilatildeo

Puacuteblica considerar apropriadordquo Em outras palavras a Administraccedilatildeo Puacuteblica natildeo

estaria sujeita a limites quando no intuito de fomentar determinada praacutetica desportiva

a protege e incentiva com dinheiro puacuteblico inclusive atraveacutes de homenagens a pessoas

especiacuteficas Parece que tal conclusatildeo natildeo estaacute condizente com a ideia de limites

juriacutedicos presente num Estado Democraacutetico de Direito

O segundo suporte seria uma combinaccedilatildeo do art 215 sect1ordm com o art 216 da CF

Aquele primeiro dispositivo reza que ldquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas

populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo

civilizatoacuterio nacionalrdquo Assim o sect 1ordm do art 215 preocupa-se com as manifestaccedilotildees das

culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do

processo civilizatoacuterio nacional porque compreende que a vulnerabilidade de culturas

pertencentes a grupos minoritaacuterios necessita de proteccedilatildeo estatal diferenciada para natildeo

desaparecerem

Todavia o ministro Lewandowski realiza uma ablaccedilatildeo no referido dispositivo

ao retirar a parte que fala de ldquo[] indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos

participantes do processo civilizatoacuterio nacionalrdquo Na sua decisatildeo aparece apenas um

pedaccedilo do dispositivo senatildeo vejamos ldquovale lembrar ainda nesse diapasatildeo que o art

130

215 sect 1ordm da Carta Magna dispotildee que lsquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas

popularesrsquordquo

O art 216 por sua vez declara que o patrimocircnio cultural brasileiro eacute

constituiacutedo por bens de natureza material e imaterial ldquo[] tomados individualmente ou

em conjunto portadores de referecircncia agrave identidade agrave accedilatildeo agrave memoacuteria dos diferentes

grupos formadores da sociedade brasileirardquo Assim o ministro Lewandowski chega agrave

conclusatildeo de que o futebol eacute um bem de natureza imaterial e faz referecircncia aos incisos I

e II deste artigo quais sejam ldquoformas de expressatildeordquo e ldquoos modos de criar fazer e

viverrdquo

Poreacutem no direito brasileiro eacute preciso ressaltar que para ganhar tal alcunha os

bens culturais de natureza imaterial por expressa determinaccedilatildeo do art 216 sect 1ordm da CF

estatildeo sujeitos a processo de registro e de reconhecimento especiacutefico pelo Instituto de

Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional - IPHAN regulamentado pelo Decreto nordm

3551 de 4 de agosto de 2000291

Assim ateacute hoje foram registrados pelo IPHAN os seguintes bens culturais de

natureza imaterial ofiacutecio das paneleiras de goiabeiras kusiwa (linguagem e arte graacutefica

Wajatildepi) ciacuterio de Nossa Senhora de Nazareacute samba de roda do recocircncavo baiano modo

de fazer viola-de-cocho ofiacutecio das baianas de acarajeacute jongo no Sudeste modo artesanal

de fazer queijo de Minas samba do Rio de Janeiro frevo cachoeira de Iauaretecirc (lugar

sagrado dos povos indiacutegenas dos Rios Uaupeacutes e Papuri) feira de Caruaru e roda de

capoeira toque dos sinos em Minas Gerais ofiacutecio de Sineiro festa do Divino Espiacuterito

Santo de Pirenoacutepolis Rtixogravekograve (expressatildeo artiacutestica e cosmoloacutegica do Povo Karajaacute)

etc292

A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura ndash

UNESCO apenas reconhece como patrimocircnio cultural imaterial da humanidade os

seguintes elementos do Brasil roda de capoeira frevo yaokwa (ritual do povo

enawene) expressotildees orais e graacuteficas dos wajapis e samba de roda do recocircncavo

baiano293

291

Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimocircnio cultural

brasileiro cria o Programa Nacional do Patrimocircnio Imaterial e daacute outras providecircncias 292

Cf em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid=12456ampretorno=paginaIphan

Acesso em 19 de marccedilo de 2015 293

Cf em httpwwwunescoorgnewptbrasiliacultureworld-heritageintangible-cultural-heritage-list-

brazilc1414250 Acesso em 19 de marccedilo de 2015

131

De toda sorte todos os dispositivos acima citados pelo ministro satildeo brevemente

desenvolvidos na argumentaccedilatildeo e mesmo assim natildeo parecem conceder uma

autorizaccedilatildeo para a dita homenagem com o uso de dinheiro puacuteblico

A partir de entatildeo apenas surgem argumentos emotivos que procuram dar razotildees

para se ter orgulho e compaixatildeo pelos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e

1970 Todavia a questatildeo eacute que tais argumentos desconectam-se dos seus motivos

juriacutedicos afastam-se da questatildeo central em discussatildeo que era a verificaccedilatildeo do

atingimento de propoacutesitos constitucionais e adquirem um peso desproporcional na

argumentaccedilatildeo passando a ser irrelevantes

Conveacutem destacar que a argumentaccedilatildeo realizada pelo ministro Luiz Fux chega a

apresentar as caracteriacutesticas do que seria uma patologia do orgulho Segundo Lazarus o

orgulho pode demonstrar uma faceta doentia quando proveniente de uma identidade

extremante fraacutegil e em duacutevida sobre o seu proacuteprio valor294

Desse modo ao dizer que as

conquistas dos referidos jogadores fizeram com que abandonaacutessemos ldquoo complexo de

que noacutes soacute seriacuteamos uma paacutetria que calccedila chuteirasrdquo o ministro fornece um fundamento

patoloacutegico para a concessatildeo da premiaccedilatildeo Ademais dizer que as vitoacuterias da seleccedilatildeo

proporcionaram bastante alegria agrave populaccedilatildeo e que tal premiaccedilatildeo seria uma diacutevida de

gratidatildeo do povo brasileiro eacute irrelevante para a soluccedilatildeo juriacutedica do caso

O ministro Toffoli por sua vez destaca sem especificar fontes bibliograacuteficas

que a descoberta das empresas suecas pelo Brasil ocorreu em virtude da vitoacuteria de 1958

e seria um bom motivo para se orgulhar da seleccedilatildeo Tal argumento como tantos outros

foge da questatildeo central em julgamento e eacute igualmente irrelevante

De outra parte o uso da compaixatildeo que formatou a concessatildeo legislativa do

chamado auxiacutelio especial e ingressou nos argumentos juriacutedicos tambeacutem se mostra

problemaacutetico

Primeiramente eacute preciso dizer que a compaixatildeo eacute uma emoccedilatildeo de importante

cultivo na vida puacuteblica pois seria impossiacutevel conviver numa sociedade cujos membros

natildeo tivessem a capacidade de reconhecer a seriedade do sofrimento vivido pelos demais

e de lhes auxiliar Assim Nussbaum destaca que tal emoccedilatildeo quando bem utilizada

pode desempenhar relevante funccedilatildeo no direito ldquoela pode fornecer bases cruciais para

programas de assistecircncia social para a ajuda externa e outros esforccedilos para a justiccedila

294

LAZARUS R Op cit 1991 p 273

132

global e para muitas formas de mudanccedila social que abordam a opressatildeo e a

desigualdade de grupos vulneraacuteveisrdquo295

Todavia ela tambeacutem pode ser mal utilizada pelo Estado principalmente em

relaccedilatildeo a uma etapa da estrutura cognitiva da compaixatildeo que diz respeito ao julgamento

eudemonista isto eacute uma fase avaliativa em que aferimos a extensatildeo de pessoas que eacute

objeto de tal emoccedilatildeo296

Eacute caracteriacutestico do ser humano que ele tenha preocupaccedilatildeo

primeiramente por ele proacuteprio e depois por aqueles que lhes satildeo proacuteximos tendendo a

ser indiferente consequentemente com aqueles que estatildeo afastados de seu estreito

ciacuterculo de empatia Tal estrutura de pensamento estaacute presente na descriccedilatildeo da

compaixatildeo realizada por Aristoacuteteles em sua Retoacuterica

Um dos possiacuteveis erros nessa etapa alerta Nussbaum consiste em incluir uma

quantidade muito restrita de pessoas em tal ciacuterculo Ou seja geralmente ocorre que o

conjunto de indiviacuteduos digno de tal sentimento eacute aquele culturalmente proacuteximo ou

simpaacutetico de uma sociedade excluindo-se estranhos e pessoas que estatildeo distantes297

No

que tange agrave criaccedilatildeo de tais ciacuterculos a miacutedia possui um tremendo poder pois atraveacutes da

escolha de imagens e de narrativas e inclusive por pressotildees mercadoloacutegicas tem a

capacidade de produzir empatia e influenciar julgamentos eudemonistas298

Poreacutem o Estado quando se baliza pela compaixatildeo para direcionamento de

recursos puacuteblicos precisa estar atento a isso e realizar uma avaliaccedilatildeo autocriacutetica nessa

etapa de julgamento Estendendo tal raciociacutenio ao presente caso pode-se dizer que no

Brasil o exerciacutecio de compaixatildeo por jogadores campeotildees de futebol padece de um viacutecio

de circularidade cultural por parte do Estado

Assim utilizar argumentos de que determinados atletas mereceriam um auxiacutelio

financeiro porque na eacutepoca de suas atividades profissionais esportivas natildeo se retirava

proveito econocircmico como hoje em dia ou porque a presente situaccedilatildeo financeira de tais

ex-campeotildees colocaria em ldquoxeque o profundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves

seleccedilotildees brasileiras que disputaram a Copa do Mundo de 1958 1962 e 1970rdquo afronta a

isonomia em prejuiacutezo de atletas de outras modalidades excluiacutedas do ciacuterculo cultural da

295

ldquoIt can provide crucial underpinnings for social welfare programs for foreign aid and other efforts

toward global justice and for many forms of social change that address the oppression and inequality of

vulnerable groupsrdquo (trad livre) NUSSBAUM M Op cit p 55 296

Id ibid p 51 297

Id ibid p 346 298

NUSSBAUM Martha Upheavals of thought the intelligence of emotions Cambridge Cambridge

University Press 2001 p 434

133

simpatia social que tambeacutem alcanccedilaram feitos notaacuteveis para o Paiacutes e que atualmente

passam por iguais problemas financeiros

Acrescente-se que a isonomia eacute um instrumento juriacutedico de manutenccedilatildeo da

estabilidade emocional numa sociedade cujo direito valorize a igualdade Desse modo a

desequiparaccedilatildeo arbitraacuteria juridicamente desmotivada ou fraca deve ser evitada porque

deflagra reaccedilotildees juridicamente relevantes de raiva e de indignaccedilatildeo em face do Estado-

legislador

Por uacuteltimo no ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo tem-se um julgamento distinto dos

demais porque os argumentos emotivos ainda que salientes estavam diluiacutedos entre

uma seacuterie de outros argumentos acerca de questotildees penais de dignidade da pessoa

humana de laicidade estatal de autonomia do indiviacuteduo de definiccedilatildeo sobre o iniacutecio da

vida etc

Poreacutem conforme vimos os votos vencedores estavam em sintonia

argumentativa em pelo menos um aspecto qual seja o reconhecimento do sofrimento

da gestante que foi comparado muitas vezes a uma tortura a um martiacuterio revelando a

estrutura cognitiva da compaixatildeo Ademais vaacuterias emoccedilotildees negativas foram

expressamente atribuiacutedas agrave figura da matildee medo vergonha anguacutestia raiva tristeza

Ressalte-se que tal constataccedilatildeo tinha fundamento no depoimento de mulheres que

portaram fetos anenceacutefalos na opiniatildeo de meacutedicos (ginecologistas psiquiatras)

antropoacutelogos e demais especialistas ouvidos na audiecircncia puacuteblica

Acreditamos que tais argumentos eram juridicamente relevantes pelos seguintes

aspectos Primeiramente a demanda considerando o objeto da accedilatildeo soacute faria sentido

diante da seriedade do sofrimento experimentado pela gestante E isso estava

estreitamente conectado a questotildees juriacutedicas respeitantes agrave dignidade da pessoa humana

agrave liberdade e agrave autonomia da vontade ao direito agrave sauacutede que engloba a sauacutede fiacutesica e

psiacutequica

Obviamente a gravidade do sofrimento da gestante era apenas uma entre outras

questotildees que precisavam ser argumentadas e por isso haveria um erro de peso caso os

votos apenas se sustentassem nesse ponto o que natildeo aconteceu No entanto pode-se

dizer que a estrutura argumentativa do julgado estava fundada numa emoccedilatildeo especiacutefica

que era a compaixatildeo e que isso diante das caracteriacutesticas do problema e das normas

juriacutedicas invocadas tinha uma relevacircncia juriacutedica para o deslinde da controveacutersia

Tendo realizado essas observaccedilotildees em relaccedilatildeo aos trecircs julgados do STF

analisados no toacutepico anterior verifica-se que o estudo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo

134

juriacutedica e mais amplamente no direito se justifica pois a partir desta perspectiva eacute

possiacutevel compreender por que alguns julgamentos e ateacute por que algumas leis tomam

determinada formataccedilatildeo sendo admissiacutevel inclusive criticar o uso das emoccedilotildees no

discurso juriacutedico

No entanto para o fechamento deste toacutepico ainda resta discutir mais uma

problemaacutetica que se relaciona agrave eacutetica da utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e suas

implicaccedilotildees para um discurso juriacutedico que tenha a pretensatildeo de neutralidade e de

tecnicidade na soluccedilatildeo de problemas Assim a introduccedilatildeo de elementos emotivos numa

decisatildeo poderia representar uma ameaccedila agrave necessaacuteria imparcialidade exigida da figura

racional do juiz

Em parte pensamos jaacute ter respondido tal duacutevida tanto na exposiccedilatildeo que fizemos

da psicologia cognitiva quanto na anaacutelise das decisotildees judiciais do STF Para a Teoria

da Avaliaccedilatildeo natildeo haveria como falar de racionalidade dissociada das emoccedilotildees sendo

que muitas das boas decisotildees de nossa vida praacutetica estatildeo amparadas em suportes

emotivos

De outra parte vimos que em determinadas decisotildees judiciais seria ateacute

irracional decidir e fundamentar sem recorrer agraves emoccedilotildees como por exemplo no ldquocaso

dos pneumaacuteticosrdquo em que o medo se fez presente atraveacutes da visualizaccedilatildeo das

consequecircncias negativas (perigos) o que era extremamente adequado para a soluccedilatildeo do

problema

Ademais adicionamos que os argumentos emotivos precisam ser juridicamente

relevantes para o caso considerando tanto o conjunto de normas juriacutedicas invocado

quanto a especiacutefica problemaacutetica factual a ser enfrentada Por fim o peso de tais

argumentos precisa guardar uma relaccedilatildeo de proporccedilatildeo com outras questotildees que tambeacutem

precisem ser enfrentadas

Todavia aqui intencionamos tratar de algo diferente e expor um fictiacutecio modelo

humano que pudesse servir de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no julgamento porque

sabemos que elas tanto podem ser bem utilizadas quanto mal utilizadas

Em primeiro lugar o saacutebio estoico natildeo seria um bom paracircmetro de reflexatildeo

porque uma vez que se livrou das emoccedilotildees do homem comum e apenas possui uma

ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees (eupatheia) ele tem uma sistemaacutetica de valores que natildeo

coincide com a nossa e a do nosso ordenamento juriacutedico e provavelmente caso tivesse

que julgar o homem inferior teria uma difiacutecil compreensatildeo dos seus problemas juriacutedico-

mundanos

135

Vimos que Aristoacuteteles confere bastante importacircncia agraves emoccedilotildees em sua teoria

eacutetica e na retoacuterica aleacutem de possuir uma visatildeo sobre o tema que ainda permanece

bastante atual Ademais o homem aristoteacutelico tem a virtude completa porque nele a

parte racional e a parte natildeo-racional da alma desempenham bem a sua funccedilatildeo e atingem

os melhores padrotildees demonstrando corretamente que natildeo existe racionalidade sem

disposiccedilatildeo emocional Todavia vimos que Aristoacuteteles natildeo recepciona na retoacuterica a

classificaccedilatildeo emocional da Eacutetica a Nicocircmaco Aleacutem disso para o Estagirita a virtude

moral eacute conquistada pelo haacutebito o que embora concordemos em parte se distancia dos

propoacutesitos mais intelectuais aqui objetivados

Assim entendemos que um bom ponto de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no

direito e especificamente na decisatildeo juriacutedica seria o modelo do espectador imparcial de

Adam Smith

Na sua Teoria dos Sentimentos Morais Smith procura explanar a estrutura do

julgamento da vida moral na sociedade isto eacute o meio pelo qual aprovamos ou

reprovamos condutas de indiviacuteduos incluindo noacutes mesmos considerando a adequaccedilatildeo

da accedilatildeo de um determinado agente num determinado contexto Primeiramente julgamos

a correccedilatildeo das accedilotildees como espectadores diretos mas em busca de uma melhor

avaliaccedilatildeo tentamos recorrer a outros tipos de espectadores ateacute chegarmos agravequele que

seria o melhor tipo de julgador ou seja o espectador imparcial299

O ato de julgar eacute o desafio de conectar um conjunto de eventos marcados pela

fortuna e por isso pelas suas singularidades a um mundo que necessita ser regido por

padrotildees normativos em comum vale dizer ldquo[] um mundo de mentes que soacute pode ser

um mundo comum quando a imaginaccedilatildeo criativa estabelece normas comuns para a

forma de avaliar os motivos para a accedilatildeo ou seja o que deve ser considerado um motivo

adequado para a accedilatildeordquo300

A fim de realizar devidamente tais julgamentos o espectador precisa estar

munido de dois indispensaacuteveis instrumentos morais quais sejam a simpatia e a

imaginaccedilatildeo Por meio da imaginaccedilatildeo conseguimos superar a descontiguidade fiacutesica

que nos separa necessariamente dos outros homens e o hiato temporal que via de

regra nos aparta da situaccedilatildeo experimentada pelos outros permitindo-nos posicionar

299

SMITH Adam The theory of moral sentiments Cambridge Cambridge University Press 2002 p

XVI 300

ldquo[hellip] world of minds which can only be a common world when the creative imagination sets up

common standards for how to assess motives for action that is for what counts as a proper motive for

actionrdquo (trad livre) Introduccedilatildeo in Id ibid p XVII

136

num mundo de eventos que pessoalmente nunca vivenciamos mas que somos capazes

de reconstruir mentalmente e de alguma forma senti-lo

Como natildeo temos experiecircncia imediata do que os outros homens

sentem natildeo podemos formar uma ideia da forma como eles satildeo

afetados senatildeo concebendo o que noacutes sentiriacuteamos na situaccedilatildeo

semelhante

[]

Pela imaginaccedilatildeo nos colocamos em sua situaccedilatildeo concebemo-nos

suportando todos os mesmos tormentos entramos por assim dizer em

seu corpo e nos convertemos em alguma medida a mesma pessoa que

ele e daiacute formamos uma ideia de suas sensaccedilotildees podendo sentir algo

que embora em menor grau natildeo eacute totalmente contraacuterio ao deles301

Assim eacute atraveacutes da imaginaccedilatildeo baseada em evidecircncias em relaccedilatildeo ao evento

julgado que o espectador consegue compreender os motivos e as emoccedilotildees que

informaram a atitude do agente E a sua simpatia se funda nesta imaginaccedilatildeo pois apenas

ela permite ldquo[] levar para si mesmo cada pequena circunstacircncia de sofrimento que

pode eventualmente ocorrer a quem sofrerdquo302

Assim ao se imaginar na posiccedilatildeo do

agente o espectador iraacute avaliar se agiria da mesma forma simpatizando com os

sentimentos do agente e com a sua conduta

Poreacutem a despeito de o espectador imparcial possuir essa viacutevida qualidade de

imaginar a situaccedilatildeo alheia e por isso ter uma racionalidade composta por emoccedilotildees a

sua especial condiccedilatildeo lhe possibilita estar apartado da violecircncia dos sentimentos

alheios permitindo-lhe produzir julgamentos morais imparciais Assim anota Forman-

Barzilai ldquomas eacute fundamental notar que o modelo de simpatia eacute eficaz para Smith para

produzir juiacutezos morais imparciais porque o espectador eacute ao mesmo tempo envolvido e

desapegadordquo303

Assim o espectador imparcial que eacute a terceira pessoa ideal imaginaacuteria

consegue temperar as emoccedilotildees porque estaacute localizado num lugar que nem eacute

exatamente o nosso proacuteprio com as nossas eternas inclinaccedilotildees e preferecircncias pessoais

301

ldquoAs we have no immediate experience of what other men feel we can form no idea of the manner in

which they are affected but by conceiving what we ourselves should feel in the like situation [hellip] By the

imagination we place ourselves in his situation we conceive ourselves enduring all the same torments we

enter as it were into his body and become in some measure the same person with him and thence form

some idea of his sensations and even feel something which though weaker in degree is not altogether

unlike themrdquo (trad livre) Id ibid p 11-12 302

ldquo[hellip] to bring home to himself every little circumstance of distress which can possibly occur to the

suffererrdquo (trad livre) Id ibid p 26 303

ldquoBut it is key to note that the sympathy model is effective for Smith for producing impartial moral

judgments because the spectator is at once both involved and detachedrdquo FORMAN-BARZILAI Fonna

Adam Smith and the circles of sympathy cosmopolitanism and moral theory Cambridge Cambridge

University Press 2009 p 67

137

nem o da pessoa observada Conforme adverte Nussbaum a emoccedilatildeo precisa ser a

emoccedilatildeo de um espectador ldquoisso tambeacutem significa que noacutes temos que omitir essa parte

da emoccedilatildeo que deriva de um interesse pessoal em nossas proacuteprias metas e projetosrdquo304

Um tal modelo de espectador imparcial implica o desenvolvimento da

capacidade de autocriacutetica e de criacutetica porque lembra Pitts o nosso julgamento do que eacute

louvaacutevel eacute inserido sempre num determinado contexto social e eacute necessaacuterio aprender a

questionaacute-lo em seus preconceitos e nas suas parcialidades Assim ldquonoacutes desenvolvemos

uma concepccedilatildeo do que seria o julgamento de um espectador imparcial observando as

nossas proacuteprias opiniotildees e as de observadores reais ndash membros da nossa proacutepria

sociedade ndash e destes destilando um julgamento desapaixonado e imparcialrdquo305

Smith portanto estava preocupado com a manutenccedilatildeo da ordem social uma vez

que para ele a ausecircncia de determinados preceitos de justiccedila tem forte efeito

desintegrador sobre a sociedade306

Na preservaccedilatildeo dessa ordem confrontar as

inclinaccedilotildees emotivas eacute essencial e isso deve ser realizado numa dupla esfera

individualmente atraveacutes do escrutiacutenio das preferecircncias particularistas e coletivamente

por meio do exame das preferecircncias parciais de facccedilotildees civis e eclesiais que podem se

tornar extremamente fanaacuteticas307

Com efeito tendo visto o que seria o modelo de espectador imparcial de Smith

percebe-se que ele representa um bom ponto de reflexatildeo para pensar a eacutetica da

utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Primeiramente as emoccedilotildees natildeo podem ser aquelas resultantes dos proacuteprios

projetos e inclinaccedilotildees particulares do julgador e nessa medida ele precisa ter a

304

ldquoit also means that we have to omit that portion of the emotion that derives from a personal interest in

our own goals and projectsrdquo (trad livre) NUSSBAUM Martha Emotion in the language of judging

In St Johns Law Review vol 70 issue 1 1996 23-30 p 28 305

ldquoWe develop a conception of what the impartial spectatorrsquos judgments would be by observing our own

opinions and those of actual observers and from these distilling a dispassionate and unbiased judgmentrdquo

(trad livre) PITTS Jennifer A turn to empire the rise of imperial liberalism in Britain and France

PrincetonOxford Princeton University Press 2005 p 44 Neil Maccormick busca conciliar o

pensamento de Smith com o de Kant ao formular o seguinte imperativo categoacuterico smithiano ldquoEntre tatildeo

plenamente quanto possiacutevel nos sentimentos de todas as pessoas diretamente envolvidas ou afetadas por

um incidente ou por um relacionamento e imparcialmente forme uma maacutexima de julgamento sobre o que

eacute certo que todos pudessem aceitar se estivessem comprometidos com a manutenccedilatildeo de crenccedilas muacutetuas

estabelecendo um padratildeo comum de aprovaccedilatildeo entre sirdquo MACCORMICK Neil Practical reason in law

and morality OxfordNew York Oxford University Press 2008 p 64 Para uma anaacutelise da

argumentaccedilatildeo do STF e do STJ com base nos paracircmetros fornecidos por Maccormick cf ROESLER

Claudia LAGE Leonardo A argumentaccedilatildeo do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes

inimputaacuteveis e semi-imputaacuteveis In Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Ano 21 Vol 104 Out-

set 2013 pp 347-390 306

SMITH A Op cit p 101 307

FORMAN-BARZILAI F Op cit p 152

138

capacidade de filtrar as suas propensotildees pessoais e tambeacutem criticar as do grupo em que

esteja socialmente inserido e as de outros grupos sociais dominantes a fim de que as

emoccedilotildees alcanccediladas sejam a de um espectador imparcial Poreacutem a despeito disso sabe-

se que ele natildeo eacute um observador apaacutetico de modo que as emoccedilotildees quando juridicamente

relevantes e pertinentes ao conjunto normativo discutido podem ser argumentadas

desde que devidamente fundamentadas em evidecircncias Por fim eacute preciso acrescentar

que o julgador por meio de suas decisotildees eacute responsaacutevel por preservar um ambiente de

normatividade comum na sociedade

A manutenccedilatildeo da confianccedila social na figura do juiz reside na sua capacidade de

se colocar adequadamente nesse papel de espectador imparcial possibilitando a

conservaccedilatildeo do ideal da lei como limites

139

4 CONCLUSAtildeO

No Capiacutetulo I iniciamos este trabalho investigando a importacircncia conferida agraves

emoccedilotildees na Antiguidade precisamente na retoacuterica e na eacutetica da filosofia de Aristoacuteteles e

da escola estoica

Primeiramente contextualizamos o tema e observamos que as emoccedilotildees ganham

oportunidade para tematizaccedilatildeo apenas dentro de uma sociedade em que a cultura do

debate eacute valorizada A retoacuterica surge num ambiente em que a fala articulada se mostra

extremamente necessaacuteria para a soluccedilatildeo de problemas na vida comum nascendo a partir

daiacute a sua teorizaccedilatildeo e tambeacutem a sua criacutetica atraveacutes de Platatildeo que cunha o termo

ldquorhecirctorikecircrdquo Ademais a proacutepria literatura representada na sua maior qualidade pela

obra de Homero impulsiona e antecipa o desenvolvimento teoacuterico da retoacuterica

Por sua vez ao analisar a retoacuterica aristoteacutelica destacamos um ponto pouco

explorado do autor que diz respeito agrave sua mudanccedila de posicionamento acerca das

emoccedilotildees Se no Capiacutetulo I do Livro I da Retoacuterica observamos uma contundente criacutetica

ao uso das emoccedilotildees no discurso a partir do Capiacutetulo II as emoccedilotildees jaacute satildeo consideradas

um dos meios de convencimento e apoacutes dedica-se praticamente a metade do Livro II

para descrever com um grande grau de detalhes as emoccedilotildees em espeacutecie

Vimos tambeacutem que Aristoacuteteles foi influenciado pela evoluccedilatildeo do pensamento

platocircnico e incorpora em sua obra a ideia de sentimentos mistos pois para o

mencionado filoacutesofo as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer e de dor Ademais a fim

de explanar como ocorre o mecanismo de surgimento das emoccedilotildees o Estagirita recorre

agrave ideia de phantasia um termo teacutecnico emprestado de sua psicologia Uma curiosidade

identificada foi o fato de que o tema das emoccedilotildees que a rigor eacute um assunto proacuteprio da

psicologia natildeo eacute desenvolvido na obra aristoteacutelica supostamente adequada para tanto

que seria a ldquoDe Animardquo (Sobre a alma) evidenciando o quanto na sabedoria da eacutepoca

a retoacuterica jaacute estava vinculada a questotildees psicoloacutegicas

De outra parte nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles tambeacutem

confere bastante relevacircncia agraves emoccedilotildees O homem virtuoso aristoteacutelico possui a virtude

completa que eacute alcanccedilada pelo bom funcionamento da parte racional e da parte natildeo-

racional da alma A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que eacute atingida por meio

do haacutebito e ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que significa ser devidamente afetado

pelas emoccedilotildees eacute determinante para aquisiccedilatildeo de uma vida feliz Exploramos as

implicaccedilotildees morais desse modelo eacutetico ao dizer que uma falha na decisatildeo do curso da

140

accedilatildeo moral estaacute tambeacutem relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional do indiviacuteduo Aleacutem disso

constatamos que Aristoacuteteles realiza uma classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e

inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas sendo que estas

uacuteltimas natildeo devem ser sentidas em nenhuma circunstacircncia Por uacuteltimo ao compararmos

a classificaccedilatildeo emocional desenvolvida na Eacutetica a Nicocircmaco com o tratamento teoacuterico

da Retoacuterica percebemos que o orador eacute instruiacutedo a utilizar todas as emoccedilotildees no

discurso inclusive aquelas denominadas de perversas motivo pelo qual se pode dizer

que a retoacuterica foi erigida num domiacutenio proacuteprio

De seu turno os estoicos desenvolveram uma peculiar sistemaacutetica de

pensamento em que a uacutenica coisa considerada boa eacute a virtude que se confunde com a

felicidade e a uacutenica coisa ruim eacute o viacutecio que significa a infelicidade todo o resto

(reputaccedilatildeo riqueza sauacutede bom nascimento beleza etc) eacute considerado indiferente isto

eacute a sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a felicidade Ademais para os fundadores da escola

estoica a alma humana eacute monoliticamente constituiacuteda apenas pela razatildeo sem

possibilidade de haver conflito entre as partes Nessa ordem de ideias as emoccedilotildees que

satildeo entendidas como avaliaccedilotildees por Crisipo devem ser eliminadas da vida comum uma

vez que por meio delas estamos sempre valorando indevidamente a realidade Em seu

caminho para a aquisiccedilatildeo da autossuficiecircncia e para a compreensatildeo correta do mundo o

homem virtuoso estoico que eacute representado pela figura do saacutebio se livrou das emoccedilotildees

do ser humano inferior e adquiriu uma ldquoversatildeo corrigidardquo denominada eupatheia

A retoacuterica estoica por sua vez recebeu uma grande influecircncia da sua eacutetica e por

isso natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero nos traz um relato histoacuterico de oradores estoicos

romanos como figuras que embora haacutebeis na dialeacutetica e no uso de argumentos precisos

possuiacuteam um estilo seco severo apaacutetico e conciso A ineficaacutecia desse modelo de

discurso eacute relatada no julgamento de Rutilius Rufus que ao se defender no estilo estoico

de uma injusta acusaccedilatildeo foi condenado e exilado

Da exposiccedilatildeo da filosofia aristoteacutelica e estoica acerca das emoccedilotildees concluiacutemos

que o tema era extremamente relevante para as referidas escolas de pensamento e que

ambas natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar das emoccedilotildees Aristoacuteteles antes

de explanar sobre os entimemas que eacute a parte do logos na Retoacuterica ou antes de falar

sobre a parte racional da alma na Eacutetica a Nicocircmaco preferiu discursar primeiramente

sobre as emoccedilotildees conferindo uma precedecircncia e um significado simboacutelico ao assunto

Por sua vez ainda que os estoicos em virtude de sua axiologia ilustrassem uma visatildeo

141

negativa sobre as emoccedilotildees eles realizaram um debate de alto niacutevel e extremamente

atual para a reflexatildeo do assunto

No Capiacutetulo II buscamos investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a MTA

que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de Toulmin

e de Perelman-Tyteca Ademais tambeacutem procuramos identificar criteacuterios de anaacutelise e

de avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso Igualmente examinamos o

desenvolvimento teoacuterico das emoccedilotildees para a psicologia cognitiva especialmente para a

Teoria da Avaliaccedilatildeo Ressalte-se que um dos objetivos fundamentais de tal capiacutetulo foi

tambeacutem tentar compreender como o tema das emoccedilotildees que era considerado tatildeo vital

para o discurso e para a eacutetica na Antiguidade foi recepcionado pela MTA

Em primeiro lugar vimos que o surgimento da MTA ocorreu num contexto

histoacuterico bem especiacutefico em que os movimentos totalitaacuterios ingressaram no poder e

dominaram a vida poliacutetica europeia e mundial O tipo de discurso utilizado por tais

movimentos era a propaganda que empregava um forte apelo emocional para mobilizar

as massas A MTA surge com o objetivo de se afastar desse tipo de discurso e de fundar

um modelo de argumentaccedilatildeo racional que viabilizasse a existecircncia da democracia

Nesse sentido tanto Toulmin quanto Perelman-Tyteca natildeo esboccedilaram nenhum interesse

em falar sobre as emoccedilotildees Assim eacute interessante perceber que justamente na chamada

ldquoNova Retoacutericardquo nada sobre as emoccedilotildees da retoacuterica aristoteacutelica foi recepcionado Em

relaccedilatildeo a Viehweg embora o autor demonstre a relaccedilatildeo entre a toacutepica a retoacuterica e o

direito tambeacutem natildeo vimos nenhum interesse em dissertar sobre as emoccedilotildees

A disciplina responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees na MTA foi a teoria das

falaacutecias ldquoadrdquo Dessa forma toda emoccedilatildeo da retoacuterica antiga se transformou num erro de

loacutegica para a argumentaccedilatildeo de modo que o discurso apaacutetico tal como propugnado pela

retoacuterica estoica passou a ser um modelo ideal de argumentaccedilatildeo fazendo com que

pathos retomasse o seu sentido de patoloacutegico Todavia criticamos tal proposta

argumentativa pela ausecircncia de complexidade e por ser incapaz de discutir em que

medida as emoccedilotildees poderiam desempenhar um bom papel na argumentaccedilatildeo

Em resposta ao tratamento dispensado agraves emoccedilotildees pela disciplina das falaacutecias

ldquoadrdquo vimos que Douglas Walton reage com forte criacutetica Uma teoria da argumentaccedilatildeo

que exclua de suas consideraccedilotildees argumentos emotivos se mostra inaacutebil em

compreender a forma como argumentamos na praacutetica Todavia o teoacuterico canadense

alerta que as emoccedilotildees tambeacutem podem ser mal utilizadas pois argumentos emotivos

podem ser irrelevantes numa discussatildeo e o impacto do seu apelo pode querer disfarccedilar a

142

fraqueza da argumentaccedilatildeo Assim a fim de avaliar tais apelos eacute preciso estar atento

para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo para o impacto e para o contexto em

que satildeo utilizados

Em seguida analisamos a abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees desenvolvida por

Micheli representante da escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo que destaca que o

problema do estudo das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade Desse

modo o linguista suiacuteccedilo sistematiza os resultados encontrados na linguiacutestica e oferece

trecircs categorias para a identificaccedilatildeo das emoccedilotildees na liacutengua as emoccedilotildees ditas as emoccedilotildees

demonstradas e as emoccedilotildees suportadas Outrossim verificamos que as emoccedilotildees podem

ser objeto de argumentaccedilatildeo e que manipulaccedilotildees racionais natildeo satildeo distintas de

manipulaccedilotildees emocionais

Por fim considerando que o tema das emoccedilotildees eacute desde a antiguidade

profundamente conectado com a psicologia procuramos dar um suporte psicoloacutegico ao

nosso trabalho com o saber teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo que coloca a ideia de

avaliaccedilatildeo como o centro da deflagraccedilatildeo do processo emotivo

Nesse ponto observou-se a grande atualidade da abordagem aristoteacutelica e

estoica sobre as emoccedilotildees pois ambas tinham uma compreensatildeo cognitiva do assunto

sendo que Crisipo expressamente se pronunciou no sentido de que as emoccedilotildees satildeo

avaliaccedilotildees Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo dependentes da razatildeo para o seu

surgimento e para o seu controle poreacutem neste processo natildeo haacute uma prevalecircncia da

razatildeo porque esta uacuteltima para se manter equilibrada precisa da emoccedilatildeo

Observamos que as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas

atendem a criteacuterios usuais de racionalidade (instrumental inferencial e consensual) Ao

fim concluiacutemos que a construccedilatildeo de uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa tambeacutem

acessar um saber psicoloacutegico sob pena de ser um artefato teoacuterico artificial sobre como

os seres humanos decidem e argumentam

O Capiacutetulo III foi dividido em trecircs partes a primeira se destinou a evidenciar a

importacircncia das emoccedilotildees para o direito a segunda buscou aplicar os criteacuterios de anaacutelise

descritiva do discurso emotivo identificados no Capiacutetulo II a terceira procurou fazer

consideraccedilotildees criacuteticas ao uso das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Na primeira parte concluiacutemos que eacute impossiacutevel compreender a estruturaccedilatildeo do

direito sem estudar as emoccedilotildees pois estas satildeo causas para a elaboraccedilatildeo de leis para

ingressar com uma demanda em juiacutezo e para solucionar uma controveacutersia juriacutedica A

apatheia estoica eacute um modelo inadequado para explicar o direito porque o nosso

143

ordenamento juriacutedico valoriza e protege aqueles bens que os estoicos denominariam de

indiferentes Ademais as nossas emoccedilotildees satildeo respostas aos mais diversos tipos de

danos que a nossa vulneraacutevel constituiccedilatildeo fiacutesico-psiacutequica pode apresentar sendo que o

direito leva isso em consideraccedilatildeo quando socialmente relevante

Ao analisar descritivamente trecircs julgados do STF (ldquoo caso dos pneumaacuteticosrdquo

ldquoo caso dos fetos anenceacutefalosrdquo e o ldquocaso dos campeotildees da Copa do Mundo de 1958 de

1962 e de 1970rdquo) observamos o quanto as emoccedilotildees (medo raiva indignaccedilatildeo gratidatildeo

orgulho compaixatildeo) foram determinantes para a soluccedilatildeo do problema juriacutedico

Concluiacutemos que conhecer a estrutura cognitiva de tais emoccedilotildees eacute fundamental para

realizar uma boa descriccedilatildeo dos suportes emotivos do julgamento

Na terceira parte defendemos que uma retoacuterica estoica seria um modelo de

discurso inalcanccedilaacutevel para o direito seja pela impossibilidade de esvaziar o conteuacutedo

emotivo da linguagem seja pela forma como o direito eacute estruturado

Antes de realizar consideraccedilotildees criacuteticas aos julgados expusemos que no atual

estado de arte da teoria da argumentaccedilatildeo natildeo identificamos um meacutetodo para avaliaccedilatildeo

de argumentos emotivos Assim sem pretender efetuar uma avaliaccedilatildeo rigorosa

procuramos a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum identificar alguns criteacuterios

miacutenimos que pudessem ser uacuteteis a um trabalho criacutetico

Apoacutes isso expusemos que o modelo do espectador imparcial de Adam Smith

seria um oportuno ponto de reflexatildeo para compreendermos a eacutetica das emoccedilotildees na

decisatildeo juriacutedica porque as emoccedilotildees do julgador necessitam ser as de um espectador e

para tanto ele deve ter a capacidade de criticar as proacuteprias inclinaccedilotildees emotivas e as de

outros grupos sociais a fim de atingir um estado de imparcialidade e manter um

ambiente de normatividade comum na sociedade

Todavia ainda que seja um espectador imparcial compreendemos que o

julgador natildeo eacute apaacutetico de modo que quando juridicamente relevantes e fundadas em

evidecircncias as emoccedilotildees podem ser argumentadas e integradas dentro do contexto de um

discurso juriacutedico e em referecircncia a um conjunto de normas juriacutedicas

Ao final deste trabalho podemos dizer que natildeo haacute motivos para que as emoccedilotildees

natildeo sejam incorporadas numa Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e mais amplamente no

estudo do direito porque natildeo eacute possiacutevel falar de racionalidade sem falar de emoccedilotildees e

do seu respectivo controle Se existe um receio de que elas sejam elementos irracionais

e que corrompam o discurso juriacutedico acreditamos que tal avaliaccedilatildeo natildeo eacute condizente

com a importacircncia que as emoccedilotildees possuem na estruturaccedilatildeo da psique humana com a

144

forma pela qual o direito jaacute eacute construiacutedo e com a maneira que decidimos e

argumentamos na praacutetica

De outra parte este trabalho procurou tambeacutem evidenciar em que medida as

emoccedilotildees podem ser mal utilizadas a fim de manter uma postura criacutetica em relaccedilatildeo ao

tema Podem-se censurar as emoccedilotildees no direito de vaacuterias formas a partir dos seguintes

criteacuterios a sua relevacircncia juriacutedica a ausecircncia de evidecircncias a sua parcialidade o seu

peso na argumentaccedilatildeo equiacutevocos de avaliaccedilatildeo na estrutura cognitiva da emoccedilatildeo a

emoccedilatildeo em si mesma Tais criteacuterios diante do atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo

precisam ser desenvolvidos teoricamente a fim de resultar numa metodologia segura de

avaliaccedilatildeo

Assim pensamos que o desenvolvimento de uma pedagogia do uso das

emoccedilotildees que recupere o vocabulaacuterio emotivo atualmente perdido na argumentaccedilatildeo

juriacutedica e no direito eacute muito mais interessante do que o seu atual estado de silecircncio

145

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Universidade de Brasiacutelia ndash UnB

Faculdade de Direito ndash FD

RETOacuteRICA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E PATHOS O PROBLEMA

DAS EMOCcedilOtildeES NO DISCURSO JURIacuteDICO

Dissertaccedilatildeo apresentada como requisito

parcial agrave obtenccedilatildeo do grau de mestre no

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo da Faculdade

de Direito da Universidade de Brasiacutelia aacuterea

de concentraccedilatildeo ldquoDireito Estado e

Constituiccedilatildeordquo

Orientadora Prof Dra Claudia Rosane Roesler

Orientando Marcelo Fernandes Pires dos Santos

Brasiacutelia 2015

Marcelo Fernandes Pires dos Santos

Retoacuterica Teoria da Argumentaccedilatildeo e Pathos o problema das emoccedilotildees no discurso

juriacutedico

__________________________________________________

Professora Doutora Claudia Rosane Roesler

Orientadora

__________________________________________________

Professor Doutor Alexandre Veronese Aguiar

Examinador interno (UnB)

__________________________________________________

Professor Doutor Isaac Costa Reis

Examinador externo (UFSBA)

__________________________________________________

Professor Doutor Argemiro Cardoso Martins

Suplente (Unb)

Brasiacutelia 27 de maio de 2015

Para os meus pais

AGRADECIMENTOS

Agrave Prof Dra Claudia Rosane Roesler pela orientaccedilatildeo pelos ensinamentos

acerca do direito e da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica pelas observaccedilotildees precisas

durante a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo pela paciecircncia e pela convivecircncia acadecircmica nestes

dois uacuteltimos anos Serei sempre grato

Ao Prof Dr Guy Hamelin do Departamento de Filosofia da Universidade de

Brasiacutelia - UnB pelas inspiradoras aulas sobre Aristoacuteteles e os estoicos

Ao Prof Dr Marcelo Neves pelo seu trabalho teoacuterico criacutetico em relaccedilatildeo agrave

praacutetica juriacutedica brasileira e pelas instigantes aulas

Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisiccedilatildeo do

conhecimento Marcus Faro de Castro Juliano Zaiden Benvindo Argemiro Cardoso

Martins

Agrave Faculdade de Direito da UnB cujo processo seletivo me possibilitou realizar

esta dissertaccedilatildeo

Agrave Faculdade de Direito do Recife instituiccedilatildeo onde realizei a minha graduaccedilatildeo

A todos os amigos da Coordenaccedilatildeo-Geral Juriacutedica da Procuradoria-Geral da

Fazenda Nacional em especial Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa Vanessa

Silva de Almeida Ricardo Soriano de Alencar Daniel Neiva Freire Alexandre Budib

Henrique Crisoacutestomo de Macedo Aline Nascimento Cunha Mariana Massumi Maria

Emanuelle Pinheiro

Agrave minha famiacutelia pelo constante incentivo e apoio

Liacutengua aonde vais Salvar ou destruir a cidade

(proveacuterbio antigo)

ldquoPois o comeccedilo eacute tambeacutem um deus que enquanto permanece entre os homens tudo salvardquo

(Platatildeo Leis 775e)

7

Resumo

O projeto de racionalidade construiacutedo pela atual Teoria da Argumentaccedilatildeo

Juriacutedica eacute marcado fundamentalmente por um forte silecircncio a respeito das emoccedilotildees

um tema que passou a ser considerado nos tempos atuais um indiferente teoacuterico

embora tradicionalmente tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da eacutetica desde a

Antiguidade Essa moderna lacuna teoacuterica tem por consequecircncia a preocupante

incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar de avaliar e de

refletir a presenccedila das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e mais amplamente na praacutetica

juriacutedica Este estudo objetiva compreender por que as emoccedilotildees saiacuteram de cena da Teoria

da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e tentar fornecer razotildees para que elas sejam novamente

estudadas Assim eacute preciso investigar se elas seriam compatiacuteveis com uma

argumentaccedilatildeo juriacutedica racional e mais amplamente com a explanaccedilatildeo do sistema

juriacutedico Para atingir tal objetivo este estudo parte da filosofia antiga mais

especificamente do pensamento de Aristoacuteteles e da escola estoica a fim de entender

como ambos integraram a temaacutetica das emoccedilotildees na sua eacutetica e na sua retoacuterica Em

seguida investiga-se em que contexto histoacuterico surge a Moderna Teoria da

Argumentaccedilatildeo considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraccedilotildees

seguintes Almeja-se igualmente pesquisar a compreensatildeo da psicologia de nossa

eacutepoca sobre as emoccedilotildees Ao fim objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoccedilotildees

na argumentaccedilatildeo juriacutedica possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e

capacidade criacutetica a fim de melhorar a qualidade do discurso juriacutedico

Palavras-chave emoccedilotildees ndash teoria da argumentaccedilatildeo juriacutedica ndash retoacuterica ndash

psicologia ndash linguiacutestica

8

Abstract

The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is

marked fundamentally by strong silent about emotions a subject that has been

considered nowadays a theoretical indifferent although traditionally has been linked to

the study of speech and ethics since ancient times This modern theoretical gap has the

effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify

evaluate and reflect the presence of emotions in argument and more broadly in legal

practice This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation

Theory and try to provide reasons for them to be studied again Thus it is necessary to

investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and

more broadly with the explanation of the legal system To achieve this goal it is

necessary to study ancient philosophy specifically the thought of Aristotle and the Stoic

school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his

ethics and his rhetoric Then we investigate in which historical context comes the

Modern Theory of Argumentation considering the thought of its founders and the

following generations It aims also search to understand the psychology of our time on

emotions In the end the objective is to identify the good and bad use of emotions in

legal reasoning enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in

order to improve the quality of legal discourse

Key-words emotions ndash theory of legal argumentation ndash rhetoric ndash psychology ndash

linguistic

9

Lista de abreviaturas e siglas

ADI ndash Accedilatildeo direta de inconstitucionalidade

ADPF ndash Arguiccedilatildeo de descumprimento de preceito fundamental

CF ndash Constituiccedilatildeo Federal

MTA ndash Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica

SVF ndash Stoicorum Veterum Fragmenta

STF ndash Supremo Tribunal Federal

TAJ ndash Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica

10

SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 11

1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E

ESTOICA 14

11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees 14

12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos 19

13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica 30

14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica 40

2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A

INTERDISCIPLINARIDADE 57

21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo 57

22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as emoccedilotildees no

discurso 62

23 As emoccedilotildees falaciosas 68

24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso 74

25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees 84

26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees 92

3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO 100

31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito 100

32 Anaacutelise 109

321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo 109

322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo 115

323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo 120

33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica 125

4 CONCLUSAtildeO 139

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 145

11

INTRODUCcedilAtildeO

O atual interesse pela estrutura argumentativa das decisotildees judiciais eacute fruto da

crescente valorizaccedilatildeo no campo do direito da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica ndash TAJ

que nasceu na metade do seacuteculo XX pelos trabalhos de Theodor Viehweg Stephen

Toulmin Chaiumlm Perelman e Olbrechts-Tyteca

Pode-se dizer que o atual reconhecimento do caraacuteter argumentativo do direito

guarda relaccedilatildeo direta com a substantiva importacircncia adquirida pela TAJ Neste sentido

MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito eacute o fato de

ele ser uma disciplina argumentativa pois para tentar encontrar uma soluccedilatildeo juriacutedica

aos nossos problemas da vida comum precisamos primeiramente construir

proposiccedilotildees em consonacircncia com o sistema juriacutedico1

Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a

argumentaccedilatildeo das decisotildees judiciais com suporte no instrumental teoacuterico fornecido pela

TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padratildeo de racionalidade no

discurso juriacutedico Assim via de regra analisam-se em primeiro lugar os argumentos e

apoacutes procura-se avaliar se as decisotildees judiciais estatildeo adequadamente fundamentadas

investigam-se a coerecircncia interna da argumentaccedilatildeo a coerecircncia das decisotildees judiciais

dentro de um repertoacuterio de julgados assim como a capacidade de universalizaccedilatildeo das

premissas ao fim busca-se atingir um estado oacutetimo de consistecircncia argumentativa2

Todavia nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa natildeo ouvimos

falar a respeito das emoccedilotildees Nenhum dos atuais teoacutericos da TAJ disserta a respeito das

emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica teriam elas perdido definitivamente importacircncia na

vida do direito Eacute possiacutevel realizar uma anaacutelise e uma criacutetica do uso das emoccedilotildees numa

decisatildeo judicial As emoccedilotildees satildeo incompatiacuteveis com a TAJ e mais amplamente com a

racionalidade do direito As emoccedilotildees corromperiam o discurso juriacutedico e o ser humano

Este trabalho portanto insere-se na constataccedilatildeo de uma preocupante lacuna

teoacuterica da TAJ que consiste na ausecircncia de tematizaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees Assim com

o objetivo de tentar construir uma resposta que faccedila sentido para compreender por que

tal mateacuteria natildeo eacute mais teorizada e ao mesmo tempo por que ela deveria ser

(novamente) teorizada precisaremos realizar um especiacutefico percurso nos Capiacutetulos I e II

desta dissertaccedilatildeo

1 MACCORMICK Neil Rhetoric and the rule of law New York Oxford University Press 2010 p 14

2 ATIENZA Manuel Curso de argumentacioacuten juriacutedica Madrid Editorial Trotta 2013 p 553-557

12

No Capiacutetulo I propomos fazer um retorno agrave Antiguidade a fim de entender

primeiramente em que contexto histoacuterico surge e se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto a

discussatildeo das emoccedilotildees

Em seguida tendo em vista a sua importacircncia histoacuterica para a TAJ iremos

analisar o tema sob comento na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de examinar como o

Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto especialmente tentando identificar (i) a

importacircncia das emoccedilotildees na referida obra aristoteacutelica (ii) a concepccedilatildeo de emoccedilatildeo

utilizada (iii) as influecircncias filosoacuteficas de tal concepccedilatildeo (iv) a maneira pela qual as

emoccedilotildees devem ser utilizadas no discurso e (v) os fundamentos psicoloacutegicos do tema

Apoacutes iremos investigar nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco em que medida

as emoccedilotildees satildeo importantes para a vida moral do indiviacuteduo tentando entender se para

Aristoacuteteles eacute suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito

a aspectos estritamente racionais Nesse toacutepico iremos analisar como o Estagirita divide

a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua eacutetica das virtudes Ao fim

tentaremos identificar se o tratamento teoacuterico das emoccedilotildees na Eacutetica a Nicocircmaco eacute

compatiacutevel com aquele presente na retoacuterica

Tendo realizada a investigaccedilatildeo do tema na retoacuterica e na eacutetica aristoteacutelica iremos

realizar um contraponto teoacuterico com a filosofia estoica que advogava que as emoccedilotildees

deveriam ser eliminadas da vida comum Assim considerando a ausecircncia de

tematizaccedilatildeo contemporacircnea das emoccedilotildees tanto na TAJ quanto no direito tentar entender

por que aquela escola filosoacutefica firmou tal posicionamento contribui para a reflexatildeo

acerca de nossa atual compreensatildeo da mateacuteria Desse modo iremos analisar a eacutetica

estoica a fim de apreender a sua noccedilatildeo de virtude e de viacutecio os seus fundamentos

psicoloacutegicos e a construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio objetivando perceber de que

modo todo esse pensamento influenciou a retoacuterica estoica

Ao fim do Capiacutetulo I procuraremos realizar uma comparaccedilatildeo entre o

pensamento aristoteacutelico e o estoico tentando evidenciar o grau de importacircncia que

ambos conferiam agraves emoccedilotildees Ademais registre-se que o Capiacutetulo I forneceraacute o

fundamento filosoacutefico em relaccedilatildeo ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste

trabalho a fim de proporcionar reflexatildeo comparaccedilatildeo e criacutetica

O Capiacutetulo II teraacute um vieacutes mais praacutetico e examinaraacute especificamente a Moderna

Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash MTA com o objetivo de (i) compreender em que contexto

histoacuterico surge tal saber teoacuterico e qual tipo de discurso era predominante agrave sua eacutepoca

(ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoccedilotildees (iii) qual

13

disciplina especiacutefica foi responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees no acircmbito da MTA

(iv) quais as reaccedilotildees teoacutericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as

emoccedilotildees no acircmbito da MTA (v) o que a psicologia do nosso tempo mais

especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo (psicologia cognitiva) poderia nos informar

acerca da racionalidade das emoccedilotildees Destaque-se que este Capiacutetulo teraacute por objetivo

tambeacutem localizar criteacuterios para anaacutelise e avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso

juriacutedico

No Capiacutetulo III jaacute com a compreensatildeo teoacuterica possibilitada pelos Capiacutetulos I e

II iremos abordar no primeiro toacutepico a importacircncia das emoccedilotildees para o direito

tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de

nossa praacutetica juriacutedica Ademais tentaremos responder se o modelo estoico analisado no

Capiacutetulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturaccedilatildeo do ordenamento juriacutedico

No segundo toacutepico iremos examinar com suporte no instrumental colhido no Capiacutetulo

II trecircs julgados do Supremo Tribunal Federal no afatilde de explicitar a presenccedila de

argumentos emotivos O terceiro toacutepico estaraacute reservado a tecer consideraccedilotildees criacuteticas

aos julgados bem como tentar fornecer uma respostar teoacuterica acerca da eacutetica das

emoccedilotildees na decisatildeo e na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Ao fim deste trabalho aleacutem de responder os problemas acima elencados

procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relaccedilatildeo entre

as emoccedilotildees e o discurso juriacutedico e mais amplamente o direito a fim de possibilitar a

melhoria da qualidade do discurso juriacutedico brasileiro e o surgimento de um debate

qualificado com a manutenccedilatildeo de uma perspectiva criacutetica sobre o tema das emoccedilotildees

14

1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E

ESTOICA

11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees

O primeiro problema que se impotildee quando pretendemos falar a respeito da

origem da retoacuterica diz respeito ao proacuteprio significado da palavra ldquoretoacutericardquo Ou seja de

qual ldquoretoacutericardquo falamos quando investigamos sua origem A palavra nos dias de hoje

possui muacuteltiplos significados sendo sem duacutevida o mais saliente aquele em que

preponderam afetos negativos Assim retoacuterica eacute sobretudo usado para designar um

discurso vazio (sem conteuacutedo) mentiroso falacioso incoerente apenas ornamental isto

eacute uma mera fachada linguiacutestica para uma verdadeira armadilha de intenccedilotildees

Essa carga semacircntica pejorativa tambeacutem eacute denunciada por Knudsen que lista

trecircs atuais usos da expressatildeo 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e ao

mesmo tempo superficial que mascara um conteuacutedo vazio e enganoso normalmente

atribuiacutedo a um poliacutetico ou a um conferencista 2) um conjunto de figuras de linguagem

encontrado na literatura cuja aplicabilidade se limita ao espaccedilo de sala-de-aula 3) uma

significaccedilatildeo mais ampla para se referir a discursos especiacuteficos em relaccedilatildeo a um tema ou

a um autor ldquoa retoacuterica do oacutediordquo ldquoa retoacuterica do Supremo Tribunal Federalrdquo ldquoa retoacuterica

do Presidente Obamardquo3

Assim a fim de cumprir nosso intento um bom ponto de partida seria tentar

localizar a primeira vez em que a palavra retoacuterica foi utilizada num texto escrito

Segundo Timmerman-Schiappa e considerando os fragmentos textuais que nos foram

legados atraveacutes do tempo o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela primeira vez em Goacutergias de

Platatildeo no iniacutecio do seacuteculo IV aC sendo provaacutevel que o proacuteprio Platatildeo tenha

inventando o termo pois eacute atribuiacuteda ao autor da Repuacuteblica a criaccedilatildeo de uma seacuterie de

palavras com terminaccedilatildeo -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode

significar pessoa com uma especiacutefica habilidade)4

Fazendo referecircncia a uma pesquisa do vocabulaacuterio grego realizada por Pierre

Chantraine em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminaccedilatildeo -ikos

Schiappa lembra que mais de 250 natildeo foram localizadas antes de Platatildeo ldquoUma pesquisa

3 KNUDSEN Rachel Homeric speech and the origin of rhetoric Baltimore John Hopkins University

Press 2014 p 1 4 TIMMERMAN David M SCHIAPPA Edward Classical greek rhetorical theory and the

disciplining of discourse New York Cambridge University Press 2010 p 9

15

feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae

sugere que as palavras gregas para eriacutestica (eristikecirc) dialeacutetica (dialektikecirc) e antilogikecirc

assim como retoacuterica originaram-se nas obras de Platatildeordquo5

Desse modo e partindo das referidas fontes o termo rhecirctorikecirc foi primeiramente

utilizado por Platatildeo para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em

puacuteblico para fins de convencimento especialmente perante assembleias tribunais e

demais ocasiotildees especiais No Fedro por exemplo Soacutecrates destaca que a retoacuterica eacute

ldquo[] uma arte de conduzir as almas atraveacutes das palavras mediante o discurso []rdquo6 E

posteriormente em Aristoacuteteles ldquo[] a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada

caso com o fim de persuadirrdquo7 Assim a partir destes dois filoacutesofos a retoacuterica surge com

o status de um saber munido com vocabulaacuterio proacuteprio para anaacutelise do discurso

Eacute com Platatildeo tambeacutem que ocorre a conhecida cisatildeo entre retoacuterica e filosofia A

palavra rhecirctorikecirc jaacute no seu nascedouro surge para fins bem precisos isto eacute para

demarcar o campo de uma teacutecnica (techne) moralmente questionaacutevel que lida com a

opiniatildeo (doxa) e que leva atraveacutes da palavra as pessoas ao engano em contraste com a

refinada atividade do filoacutesofo cuja base de reflexatildeo estaacute fundada sob o domiacutenio da

verdade (aletheia) Em Goacutergias e no Fedro satildeo oferecidos vaacuterios exemplos da figura do

retoacuterico como algueacutem que obteacutem sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os

outros

Antes de rhecirctorikecirc o termo mais abrangente utilizado para se referir agrave atividade

do discurso nos textos do seacuteculo V era logos que possui distintos significados na

tradiccedilatildeo grega ldquoeacute qualquer coisa que eacute lsquoditarsquo mas isso pode ser uma palavra uma frase

uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteirordquo8 Logos estaacute assim

relacionado com o conteuacutedo e natildeo com aspectos estiliacutesticos ou esteacuteticos comporta a

ideia de razatildeo argumento ordem O ensino de artes verbais no seacuteculo V aC

associado ao logos portanto natildeo diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca

5 ldquoA computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the

Greek words for eristic (eristikecirc) dialectic (dialektikecirc) and antilogic (antilogikecirc) like rhetoric originate

in Platorsquos worksrdquo (trad livre) Id ibid p 9-10 No sentido de que o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela

primeira vez na obra platocircnica cf COLE Thomas The origins of rhetoric in ancient greek Baltimore

The John Hopkins University Press 1991 6 PLATAtildeO Fedro trad Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees editores 2000 p 90

7 ARISTOacuteTELES Retoacuterica trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 12 8 ldquoit is anything that is lsquosaidrsquo but that can be a word a sentence part of a speech or of a written work or a

whole speechrdquo (trad livre) KENNEDY George A A New History of classical rhetoric New Jersey

Princeton University Press 1994 p 11

16

pela verdade conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distinccedilatildeo platocircnica

entre os fins da retoacuterica e os fins da filosofia9

Assim enquanto a retoacuterica emerge firmemente relacionada com significados

pejorativos logos sempre desfrutou de uma boa reputaccedilatildeo Os sofistas exultavam o

poder que ele possuiacutea segundo Goacutergias logos podia espantar o medo e a tristeza

incutir a compaixatildeo e o prazer10

Isoacutecrates reforccedilava o seu poder e prestiacutegio na vida

puacuteblica ldquoaqueles que satildeo haacutebeis no discurso natildeo satildeo apenas homens de poder em suas

proacuteprias cidades mas satildeo tambeacutem tidos em grande estima em outros estadosrdquo11

Mas se eacute possiacutevel numa anaacutelise textual atribuir a cunhagem da palavra retoacuterica

a Platatildeo eacute possiacutevel inferir de outra parte que a referida palavra grega soacute pode surgir

quando a atividade a que se refere jaacute estava bem consolidada na sociedade Assim a

origem que buscamos passa a ser natildeo mais da palavra mas de eventos que

supostamente deram o iniacutecio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade

Foi na Siacutecilia por volta de 426 aC que ocorreu o evento que impulsionou a

fundaccedilatildeo da retoacuterica apoacutes a expulsatildeo de tiranos que dominavam politicamente a

mencionada regiatildeo as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e

tribunais a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime

ditatorial Os sicilianos Corax e Tiacutesias cientes desta necessidade foram os primeiros a

organizar isso num meacutetodo criando preceitos teoacutericos que almejavam o sucesso da fala

em puacuteblico por meio da divisatildeo do discurso do uso de argumentos de probabilidades e

de outras mateacuterias12

A novidade teoacuterica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Goacutergias quanto

pelo proacuteprio Tiacutesias que parece ter ensinado Liacutesias e Isoacutecrates Por sua vez o manual

(ou manuais) de Corax e Tiacutesias era conhecido por Aristoacuteteles que os resumiu em seu

perdido Synagoge Technon (Coleccedilatildeo de Artes) que a partir de entatildeo passou a ser o

referencial teoacuterico sobre o assunto13

Ciacutecero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa

anaacutelise das regras coletadas nos manuais antigos de retoacuterica incluindo o de Tiacutesias

9 TIMMERMAN D M op cit p 10-11

10 KENNEDY G Op cit p 25

11 ldquothose who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in

honour in other statesrdquo(48-51) (trad livre) Cf ISOCRATES Panegyricus New York Harvard

Univesity Press vol 1 trad George Norlin 1928 p 149 12

CICERO Brutus trad J L Hendrickson CambridgeLondon Harvard University Press 46 1962 p

49 13

GAGARIN Michael Background and origins oratory and rhetoric before the sophists in

WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p

30

17

tendo superado os autores originais em clareza brevidade e estilo motivo pelo qual

apenas os escritos aristoteacutelicos passaram a ser consultados14

Todavia essa tradicional explanaccedilatildeo sobre os primeiros organizadores da arte

retoacuterica tem sido recentemente objeto de revisatildeo em virtude da inconsistecircncia das

fontes histoacutericas Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para

Tiacutesias uma vez que alguns escritos apenas fazem referecircncia a este uacuteltimo ou se Corax

realmente existiu era preocupado com argumentos de probabilidade15

Essa polecircmica a respeito da real identidade dos autores poreacutem natildeo eacute oacutebice para

assinalar o que se procura aqui dizer a partir de um determinado momento o discurso

eficiente isto eacute a fala articulada que almeja persuasatildeo passou a ser extremamente

valorizada na cultura antiga Se pudermos conjecturar que ao reivindicar a reaquisiccedilatildeo

da propriedade perdida apoacutes a expulsatildeo dos tiranos na Siciacutelia uma pessoa poderia ter

melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do conteuacutedo do discurso podemos

entender o quatildeo dramaacutetica era a necessidade de aperfeiccediloamento desta atividade

Assim a expulsatildeo dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela

restauraccedilatildeo de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a

organizaccedilatildeo teoacuterica de uma atividade que posteriormente Platatildeo iraacute designar de

retoacuterica Mas ainda assim natildeo podemos relevar que no ambiente grego outros fatores

jaacute demarcavam a forte presenccedila do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade

Contra a tradicional tese de que a retoacuterica surgiu no seacuteculo V aC com Corax e

Tiacutesias ou de que a retoacuterica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de

Platatildeo e Aristoacuteteles no seacuteculo IV aC por meio de um vocabulaacuterio especiacutefico

governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas Knudsen advoga a ideia

de que o nascedouro da retoacuterica se localiza na obra de Homero

O seu posicionamento no entanto natildeo consiste na defesa de que Homero seria

uma inspiraccedilatildeo para a retoacuterica ou um exemplo da existecircncia na eacutepoca de uma forte

cultura de eloquecircncia mas de que o narrador homeacuterico jaacute apresenta o discurso como

ldquo[] uma habilidade teacutecnica que deve ser ensinada e aprendida e que varia de acordo

com o orador a situaccedilatildeo e o auditoacuteriordquo16

Assim os personagens de Homero na Iliacuteada

14

CICERO On Invention trad H M Hubbel CambridgeMassachusetts Harvard University Press

1949 (II 6) p 171 15

COLE Thomas Who was corax In Illinois classical studies vol 16 1991 p 65-84 16

ldquo[hellip] a technical skill one that must be taught and learned and one that varies according to speaker

situation and audiencerdquo KNUDSEN R Op cit p 4

18

apresentam a retoacuterica na praacutetica enquanto Aristoacuteteles posteriormente apresenta a

retoacuterica em teoria

No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero no seacuteculo II dC o pseudo-

Plutarco teria feito o registro mais antigo a respeito do viacutenculo da obra de Homero com

a retoacuterica

Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso

poliacutetico eacute uma funccedilatildeo da arte retoacuterica pois esta eacute o poder de falar de

maneira persuasiva e quem mais senatildeo Homero estabeleceu sua

proeminecircncia nisso Ele ultrapassou todos os outros em

grandiloquecircncia e seu pensamento dispotildee do mesmo poder que sua

dicccedilatildeo17

Por sua vez no seguinte trecho da Iliacuteada pode-se observar que as caracteriacutesticas

do discurso de Odisseu e de Menelau satildeo finamente analisadas pelo narrador

demonstrando que a fluecircncia a clareza a concisatildeo a prolixidade a objetividade a

gestualidade satildeo fatores jaacute claramente distinguiacuteveis na fala e na figura do orador

Quando urdiam discursos e expunham ideias

Menelau era fluente e claro mas conciso

natildeo sendo um homem multipalavroso nem

dispersivo e tambeacutem por ser ele o mais moccedilo

Quando Odisseu poreacutem multiardiloso punha-se

de peacute para falar fixava o olhar no chatildeo

mantendo o cetro imoacutevel (nem para traacutes nem

para diante o inclinava) parecia um ruacutestico

algueacutem desatinado ou fraco de cabeccedila

Mas quando a voz do peito emitia poderosa

palavras como copos-de-neve no inverno

ningueacutem nenhum mortal o igualaria18

Knudsen todavia vai aleacutem e se dedica a analisar os discursos diretos da Iliacuteada a

fim de demonstrar que todos os recursos retoacutericos (entimema paradigma diathesis

toacutepicos ethos etc) identificados por Aristoacuteteles jaacute estavam presentes na estrutura

literaacuteria de Homero19

Ao examinar outras obras literaacuterias do mundo antigo tais como a

Epopeacuteia de Gilgamesh o Shujing o Maabaacuterata demonstra que o emprego de recursos

17

ldquoPolitical discourse is a function of the craft (τέχνη) of rhetoric which Homer seems to have been the fi

rst to understand for if rhetoric is the power to speak persuasively who more than Homer has established

his preeminence in this He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same

power as his dictionrdquo (trad livre) PSEUDO-PLUTARCO Essays 161 apud KNUDSEN Id ibid p 22 18

HOMERO Iliacuteada trad Haroldo de Campos III vol 1 Satildeo Paulo Benviraacute 2002 p 212-223 19

ldquoMy overarching contention is that the Iliad through the direct speeches of its characters demonstrates

a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be

categorized as ldquorhetoricrdquo in the fourth century in particular these techniques closely match the system

explicated in Aristotlersquos Rhetoricrdquo KNUDSEN R Op cit p 84

19

retoacutericos nestas uacuteltimas eacute extremamente pobre se comparado agrave Iliacuteada Assim destaca

que natildeo se pode explicar o sofisticado sistema retoacuterico encontrado em Homero sob a

justificativa da existecircncia de um modelo retoacuterico universal Vale dizer a tese segundo a

qual haacute um padratildeo de convencimento supostamente presente em todos os discursos e

que seriam inerentes agrave natureza humana natildeo consegue ser extensiacutevel para a realidade

literaacuteria de outras obras antigas20

Assim esse hiperdesenvolvimento de um padratildeo retoacuterico nos discursos da Iliacuteada

pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favoraacutevel agrave cultura da

competiccedilatildeo do debate e da liberdade como ocorria de forma bastante original na

Greacutecia e natildeo encontrava correspondente em culturas orientais ldquodesde as primeiras

poesias gregas ateacute a oratoacuteria juriacutedica e poliacutetica da era claacutessica tardia [] a Greacutecia antiga

funcionava como uma lsquocultura de debatersquo em que o poder era conquistado e negociado

atraveacutes do discurso persuasivordquo 21

Segue-se por isso que eacute conveniente falar natildeo da ldquoorigemrdquo mas das ldquoorigensrdquo

da retoacuterica Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do

debate natildeo eacute de se impressionar que a retoacuterica tenha sido criada e amadurecida neste

ambiente havendo para ela portanto vaacuterios iniacutecios possiacuteveis vale dizer um iniacutecio na

filosofia um iniacutecio na poesia eacutepica um iniacutecio enquanto evento histoacuterico

No entanto para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quatildeo importante

era nas suas origens a necessidade de dominar na vida puacuteblica o discurso eficiente Eacute

por essa razatildeo que a anaacutelise das emoccedilotildees (pathos) emerge na obra aristoteacutelica jaacute que

apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e por isso retoacuterico a

compreensatildeo sobre as emoccedilotildees se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto

12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos

Preliminarmente e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar

mais de perto do tema central deste trabalho eacute oportuno registrar que a origem do termo

grego pathos sob cujo signo Aristoacuteteles trata o tema das emoccedilotildees se encontra no verbo

paschein que significa ldquosofrerrdquo e nessa medida explicita o caraacuteter passivo do

20

KNUDSEN R Op cit p 101 21

ldquoFrom the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and

much later the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic) ancient Greece functioned

as a ldquodebate culturerdquo one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive

speechrdquo (trad livre) KNUDSEN R Id ibid p 101

20

fenocircmeno emotivo22

Nos trechos a seguir transcritos observa-se que o Estagirita utiliza

o termo no sentido exposto ou seja em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees o sujeito estaacute em situaccedilatildeo

de passividade isto eacute ele eacute afetado movido por elas

Entatildeo um homem que enrubesce em virtude de vergonha natildeo eacute

chamado de enrubescido nem aquele que empalidece diante do medo

de paacutelido ao contraacuterio diz-se que ele foi de algum modo afetado

Portanto tais coisas satildeo chamadas de afecccedilotildees [pathecirc] e natildeo

qualidades23

Acrescente-se a estas consideraccedilotildees que dizemos que somos afetados

em funccedilatildeo das emoccedilotildees poreacutem natildeo dizemos que somos afetados em

funccedilatildeo das virtudes e dos viacutecios mas que nos dispomos de um certo

modo24

Saliente-se que aleacutem de ldquoemoccedilatildeordquo pathos tradicionalmente tambeacutem eacute traduzido

por ldquoafecccedilatildeordquo ou ldquoafeiccedilatildeordquo assim como tambeacutem por ldquopaixatildeordquo que vem do latim passio

sendo que nestas duas uacuteltimas traduccedilotildees (ldquoafecccedilatildeordquo e ldquopaixatildeordquo) diferentemente de

ldquoemoccedilatildeordquo persiste de certo modo aquele sentido de passividade25

De outra parte eacute interessante tambeacutem acrescentar que a temaacutetica das emoccedilotildees eacute

algo que perpassa toda a obra aristoteacutelica pois se encontra presente na Eacutetica na

Retoacuterica na Psicologia na Filosofia da Natureza na Teoria Poeacutetica Poreacutem a despeito

disso Aristoacuteteles natildeo apresenta nenhum conceito de emoccedilatildeo preferindo algumas

vezes introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos Por isso esclarece Rapp

natildeo se pode falar de boa consciecircncia de uma ldquoTeoria das Emoccedilotildees de Aristoacutetelesrdquo mas

de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26

Assim tendo realizado brevemente tais anotaccedilotildees preliminares conveacutem registrar

que eacute sobre o que convence em cada caso no discurso de que se ocupa a retoacuterica

Aristoacuteteles logo na abertura de sua obra afirma que todas as pessoas estatildeo submetidas

agraves regras da retoacuterica pois eacute impossiacutevel em vida natildeo passar pela experiecircncia de ter que

22

RAPP Cristof Aristoteles Bausteine fuumlr eine Theorie der Emotionen In LANDWEE Hilge RENZ

Ursula (hrsg) Klassische emotionstheorien von Platon bis Wittgenstein BerlinNew York Walter de

Gruyter 2008 p 48 23

ldquoThus a man who reddens through shame is not called ruddy nor one who pales in fright pallid rather

he is said to have been affected somehow Hence such things are called affections but not qualitiesrdquo (trad

livre) Cf ARISTOTELES Categories In BARNES J (ed) The complete works of Aristotle trad J

L Akrill (9b20-9b32) Princeton Princeton University Press 1991 p 17 24

ARISTOTELES Eacutethica nicomachea I13-III8 tratado da virtude moral trad Marco Zingano Satildeo

Paulo Odysseus 2008 p 48-49 (11065-7) 25

RAPP C Op cit p 48 Cf TIELEMAN Teun Chrysippusrsquo on affection reconstruction and

interpretation Leiden Brill 2003 p 15 26

RAPP C Op cit p 47 Adverte-se o leitor previamente que natildeo iremos utilizar neste trabalho um

conceito normativo de emoccedilatildeo Embora ao longo da obra algumas caracteriacutesticas das emoccedilotildees sejam

evidenciadas natildeo haveraacute o fechamento de um conceito

21

defender ou atacar argumentos Poreacutem enquanto alguns fazem esta atividade de forma

irrefletida ou entatildeo de modo mais consciente por meio de uma praacutetica conquistada pelo

haacutebito eacute possiacutevel fazecirc-la estruturadamente atraveacutes de um meacutetodo que analisaria por que

algumas pessoas obteacutem tanto sucesso ao discursarem Desse modo para Aristoacuteteles a

retoacuterica eacute uma arte (techne) ou seja ldquo[] um corpo de regras e princiacutepios gerais que

podem ser conhecidos pela razatildeordquo27

contrariando assim Platatildeo para quem a retoacuterica se

reduziria a uma mera habilidade que natildeo se submete agrave razatildeo nem consegue explicar as

causas e os motivos do que faz

Sobre a parte que especificamente eacute objeto de nosso interesse isto eacute a

explanaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees conveacutem examinar os Livros I e II da Retoacuterica

Primeiramente urge compreender como o assunto eacute introduzido no Capiacutetulo I do Livro

I e depois como ele eacute desenvolvido tanto no Capiacutetulo II por intermeacutedio da doutrina

dos meios de convencimento quanto no Livro II no detalhamento das emoccedilotildees em

espeacutecie O objetivo de nossa exposiccedilatildeo consiste em traccedilar um panorama geral das

emoccedilotildees no campo da retoacuterica

Com efeito Aristoacuteteles introduz o tema no Capiacutetulo I do Livro I por meio de

uma forte criacutetica aos tratados de retoacuterica de sua eacutepoca que se preocupavam mais em

instigar os acircnimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto

de controveacutersia Ele nomina essas distraccedilotildees do discurso como questotildees exteriores ou

natildeo essenciais ao assunto pois sobre a verdadeira substacircncia da persuasatildeo retoacuterica que

satildeo os entimemas tais manuais nada tratam

O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados que

ele natildeo menciona fossem aplicadas em todas as unidades poliacuteticas aqueles autores de

retoacuterica praticamente nada teriam a dizer Assim para Aristoacuteteles estaria

terminantemente proibido ldquoperverterrdquo o juiz atraveacutes da ira do oacutedio da compaixatildeo e de

outros estados da alma Enfatize-se que as traduccedilotildees aqui consultadas utilizam sempre a

palavra ldquoperverterrdquo que daacute ideia de corromper a cogniccedilatildeo do julgador porque a partir

do momento em que o julgador estiver possuiacutedo por determinado estado mental

(compaixatildeo ira etc) ele estaraacute impossibilitado de conhecer de modo isento o fato

Jaacute no Capiacutetulo II em prosseguimento Aristoacuteteles relaciona as emoccedilotildees como

um dos meios de prova na seguinte classificaccedilatildeo

27

ldquo[hellip] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by

reasonrdquo(trad livre) GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric I a commentary New York

Fordham University Press 1980 p 4

22

Das pisteis produzidas atraveacutes do discurso existem trecircs espeacutecies

algumas residem no caraacuteter [ecircthos] do orador outras na forma em que

dispotildeem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de espiacuterito e

outras no discurso [logos] em si demostrando ou aparentando

demostrar algo28

Eacute apropriado notar que Aristoacuteteles natildeo menciona explicitamente as emoccedilotildees

neste trecho Desse modo parece bastante pertinente a observaccedilatildeo de Knudsen que

prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis porque

literalmente eacute o termo utilizado no texto por Aristoacuteteles Assim diathesis eacute uma

expressatildeo mais abrangente que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade agrave

psicologia do auditoacuterio e nesse sentido englobaria pathos29

No entanto a despeito da observaccedilatildeo a respeito da palavra diathesis feita por

Knudsen Aristoacuteteles logo em seguida explana que ldquo[] persuade-se pela disposiccedilatildeo

dos ouvintes quando estes satildeo levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso []rdquo30

parecendo-nos portanto mais interessante insistir nesse uacuteltimo termo (pathos) como

meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago que

englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicoloacutegica

Em seguida isto eacute apoacutes vincular a ideia de persuasatildeo pela disposiccedilatildeo dos

ouvintes com as emoccedilotildees Aristoacuteteles conclui no sentindo de que nosso juiacutezo varia de

acordo com o nosso estado mental Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza

pelo amor ou pelo oacutedio estaacute diretamente relacionado ao juiacutezo que iremos formular sobre

o assunto

Logo aqui conveacutem registrar certa surpresa ao observar que a despeito da criacutetica

inicial no Capiacutetulo I Aristoacuteteles inclui sem diferenccedila hieraacuterquica as emoccedilotildees ao lado

do ethos e do logos como meios de convencimento O espanto no entanto apenas

aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retoacuterica se destina a tratar

em peacute de igualdade as emoccedilotildees com os entimemas Sobre essa suposta contradiccedilatildeo

muito pode ser comentado

Tentando compreender a questatildeo Fortenbaugh reuacutene trecircs respostas jaacute oferecidas

para esse problema A primeira hipoacutetese entende que no Capiacutetulo I do Livro I

Aristoacuteteles defende um modelo de retoacuterica ideal em que apenas sejam utilizados

argumentos que tratem do assunto objeto de controveacutersia sendo que este modelo ideal eacute

deixado de lado no Capiacutetulo II quando se fala do discurso poliacutetico em que se faria

28

ARISTOacuteTELES Retoacuterica apud KNUDSEN R Op cit p 39 29

KNUDSEN R Id ibid p 39 30

ARISTOacuteTELES Retoacuterica Op cit 2012 p 13

23

necessaacuterio o uso de apelos emotivos31

Na segunda hipoacutetese Aristoacuteteles dirigiria o seu

criticismo aos contemporacircneos que utilizam as emoccedilotildees por meios natildeo-discursivos

(choros laacutegrimas rostos irocircnicos)32

A terceira resposta preferida por Fortenbaugh seria no sentido de uma evoluccedilatildeo

do pensamento aristoteacutelico Inicialmente Aristoacuteteles teria visto as emoccedilotildees de uma

forma negativa e incompatiacutevel com uma argumentaccedilatildeo baseada na razatildeo Poreacutem

durante o periacuteodo em que frequentou a Academia de Platatildeo sabe-se que a relaccedilatildeo entre

emoccedilatildeo e pensamento era objeto de estudo o que provavelmente o levou a ter uma

visatildeo mais favoraacutevel sobre as emoccedilotildees Assim se a tarefa do orador eacute convencer o

ouvinte e isso eacute feito por intermeacutedio de uma mudanccedila de pensamento entatildeo nada

haveria de errado em fazecirc-lo por meio do emprego de argumentos razoaacuteveis que

resultaria numa resposta emocional positiva dos destinataacuterios33

Levando isso em

consideraccedilatildeo eacute possiacutevel que Aristoacuteteles tenha escrito suas primeiras criacuteticas agraves emoccedilotildees

num tratado hoje em dia perdido e posteriormente ao desenvolver a doutrina dos trecircs

meios de convencimento transferiu tais observaccedilotildees ao atual manual sem realizar uma

completa adaptaccedilatildeo do tema34

De outra parte tambeacutem se cogita que os capiacutetulos desenvolvidos por Aristoacuteteles

fossem na verdade alternativos sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou

entatildeo que o Capiacutetulo I era natildeo apenas inconsistente com o que segue (Capiacutetulo II) mas

que ambos se destinavam a puacuteblicos diferentes Konstan assevera que essa duacutevida talvez

seja impossiacutevel de solucionar embora seja razoaacutevel afirmar que ao tratar das emoccedilotildees

no Livro II Aristoacuteteles jaacute pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35

Frede por sua vez demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as

emoccedilotildees tenham recebido tanta atenccedilatildeo na Retoacuterica de modo que formula as seguintes

indagaccedilotildees ldquoIsso eacute uma mera concessatildeo com os maus caminhos do mundo realrdquo ldquoSe o

inimigo o faz devo estar preparado para tambeacutem fazerrdquo36

Ela no entanto registra que

em nenhum momento Aristoacuteteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o

discurso limitando-se a fazer um registro teacutecnico das emoccedilotildees

31

FORTENBAUGH W W Aristotlersquos art of rhetoric In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to

greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 117 32

Id ibid p 117 33

Id ibid p 118 34

Id ibid p 118 35

KONSTAN David Rhetoric and emotion In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek

rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 414 36

FREDE Dorothea Mixed feelings in Aristotlersquos rhetoric In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays

on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 264

24

De fato embora exista uma ruptura de pensamento entre a criacutetica inicial agraves

emoccedilotildees e o seu posterior desenvolvimento nos capiacutetulos subsequentes acreditamos

que natildeo haacute motivo para largar pelo menos aquela censura direcionada ao uso das

emoccedilotildees com o objetivo de fugir das questotildees essenciais objeto de controveacutersia De

todo modo tal mudanccedila de entendimento permanece de difiacutecil explicaccedilatildeo e conforme

assevera Hall o novo posicionamento fez com que Aristoacuteteles possivelmente

influenciado por Platatildeo tenha elegido as emoccedilotildees um dos objetos centrais da retoacuterica37

Ainda sobre a importacircncia quantitativa e qualitativa que as emoccedilotildees adquirem na

retoacuterica aristoteacutelica se pensarmos que pathos eacute tema especificamente pertencente a uma

das partes da alma e por isso esperariacuteamos encontrar na obra psicoloacutegica de

Aristoacuteteles que eacute a ldquoDe Animardquo (Sobre a Alma) o seu desenvolvimento mais completo

e detalhado teremos uma certa decepccedilatildeo ao observar que no seu suposto habitat

especiacutefico a mateacuteria encontra um tratamento extremamente acanhado

comparativamente agravequele encontrado na Retoacuterica A este respeito Cooper anota ser

desapontante a abordagem do tema em ldquoDe Animardquo38

e Konstan chega a dizer que

curiosamente o melhor local para encontrar uma boa discussatildeo sobre emoccedilotildees nas

obras antigas eacute justamente nos livros de retoacuterica

Se vocecirc deseja consultar uma discussatildeo grega ou romana sobre

emoccedilotildees o lugar para procurar natildeo eacute ndash como se poderia esperar ndash em

um tratado de psicologia ou em termos claacutessicos ldquoSobre a Almardquo

(por exemplo De anima de Aristoacuteteles) mas sim um ensaio sobre

retoacuterica Em primeiro lugar no lado grego haacute a proacutepria Retoacuterica de

Aristoacuteteles com o seu tratamento detalhado no Livro II de uma duacutezia

ou mais de diferentes emoccedilotildees Na literatura latina Ciacutecero examina as

emoccedilotildees no seu De inventione assim como em outros ensaios de

oratoacuteria embora tambeacutem as trate com algum detalhe no seu diaacutelogo

filosoacutefico As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4)

Mais tarde no seacuteculo III DC um tal Apsines ndash se este eacute o seu nome

verdadeiro ndash pesquisou as emoccedilotildees em elaborado detalhe como parte

de um extenso livro sobre retoacuterica (apenas uma porccedilatildeo restou

especialmente a parte que trata da compaixatildeo)39

37

HALL Jon Oratorical delivery and the emotions theory and practice In DOMINIK William HALL

Jon (ed) A companion to roman rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 232 38

COOPER John M An aristotelian theory of the emotions In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed)

Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 238 39

ldquoIf you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions the place to look is not

ndash as one might have expected ndash in a treatise on psychology or in classical terms lsquoOn the Soulrsquo (for

example Aristotlersquos De anima) but rather an essay on rhetoric First and foremost on the Greek side

there is Aristotlersquos own Rhetoric with its detailed treatment in Book 2 of a dozen or more different

passions In Latin literature Cicero examines the emotions in his youthful De inventione as well as in

other essays on oratory although he also treats them at some length in his philosophical dialogue The

Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4) As late as the third century AD a certain Apsines ndash if

that is his true name ndash surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on

25

Por sua vez passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II

Aristoacuteteles principia afirmando que por ser o objetivo da retoacuterica formar um juiacutezo no

ouvinte para a tomada de decisatildeo o orador natildeo deve apenas se concentrar na tarefa de

fazer criacutevel e persuasivo o seu argumento (logos) mas tambeacutem deve se preocupar tanto

com a sua proacutepria imagem tendo em vista que o seu caraacuteter (ethos) tambeacutem eacute objeto de

julgamento das pessoas quanto com a necessidade de colocar os destinataacuterios numa

determinada disposiccedilatildeo mental (pathos) reafirmando assim a doutrina dos trecircs meios

de convencimento Logo em seguida coloca esta uacuteltima forma de convencimento

(pathos) como de grande importacircncia para a oratoacuteria judicial

O relevo conferido ao trabalho retoacuterico dirigido agrave disposiccedilatildeo mental dos ouvintes

eacute devidamente esclarecido sem mais nenhuma ponderaccedilatildeo negativa da seguinte

maneira se algueacutem estiver sob o efeito do amor ou do oacutedio da indignaccedilatildeo ou da calma

os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo criteacuterio de grandeza

ldquoquem ama acha que o juiacutezo que deve formular sobre quem eacute julgado eacute de natildeo

culpabilidade ou de pouca culpabilidade por outro quem odeia acha o contraacuteriordquo40

Assim Aristoacuteteles estabelece uma funccedilatildeo cognitiva especiacutefica para as emoccedilotildees

vale dizer eacute em funccedilatildeo delas que alteramos nossos juiacutezos acerca do mundo Estar

afetado por uma emoccedilatildeo eacute a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de

algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade Desse modo por possuir

uma funccedilatildeo tatildeo determinante no discurso o orador precisa estar preparado para bem

utilizaacute-las o que soacute se alcanccedila atraveacutes de um profundo conhecimento sobre o ser

humano

A novidade poreacutem natildeo se encerra por aiacute pois Aristoacuteteles ao dissertar sobre a

natureza das emoccedilotildees afirma que elas satildeo compostas por prazer (hedonecirc) e por dor

(lupecirc) oferecendo mais complexidade ao tema

A ideia segundo a qual as emoccedilotildees comportam tal natureza complexa ou seja

de que satildeo formadas por sentimentos mistos eacute creditada a Platatildeo que ao longo de sua

obra filosoacutefica se deparou desde cedo com o problema do prazer no Feacutedon por

exemplo o autor da Repuacuteblica adverte que o verdadeiro filoacutesofo deveria se manter

distante do prazer que eacute fonte dos maiores males (83bd) Em Goacutergias aquele que vive

desmedidamente na busca do prazer eacute considerado uma pessoa infeliz pois tenta em vatildeo

rhetoric (only a portion survives chiefly the part dealing with pity)rdquo (trad livre) KONSTAN D Op

cit p 411 40

ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 84

26

preencher um jarro furado com uma peneira (493abd) Por sua vez no Filebo uma das

suas uacuteltimas obras a dor eacute definida como a desintegraccedilatildeo do estado de equiliacutebrio

natural enquanto o prazer agora numa visatildeo mais positiva busca recuperar a harmonia

perdida conforme se observa no seguinte trecho

SOCRATES O que eu afirmo eacute que quando encontramos

comprometida a harmonia nos seres vivos ao mesmo tempo haveraacute a

desintegraccedilatildeo da sua natureza e o aparecimento da dor

PROTARCO O que vocecirc diz eacute bastante plausiacutevel

SOCRATES Mas se o contraacuterio ocorre e a harmonia eacute recuperada e a

natureza inicial restabelecida precisamos dizer que o prazer surge se

devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as mateacuterias mais

difiacuteceis no menor tempo possiacutevel41

Com esta uacuteltima definiccedilatildeo Frede destaca que Platatildeo se concilia com alguns

aspectos da natureza humana jaacute que o prazer pelo menos agora tem uma funccedilatildeo

beneacutefica e terapecircutica para o indiviacuteduo Esta nova abordagem natildeo recorre mais agrave ideia

de que o prazer eacute um distuacuterbio ou uma doenccedila da alma e ao mesmo tempo possibilita

submeter os vaacuterios tipos de prazer a um conceito uacutenico explicando quando alguns satildeo

bons e outros natildeo (51b)42

Jaacute neste momento eacute oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento

platocircnico e o encontrado na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de observar que o Estagirita

recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definiccedilatildeo de prazer ldquoAdmitamos que

o prazer eacute um certo movimento da alma e um regresso total e sensiacutevel ao seu estado

natural e que a dor eacute o contraacuteriordquo(1370a)43

Platatildeo de outra parte apoacutes discutir vaacuterias formas de mistura de prazer e de dor

chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoccedilotildees na obra

aristoteacutelica Ele afirma que as emoccedilotildees tambeacutem se submetem a este mesmo fenocircmeno

misto e fornece uma lista de exemplo a ira o medo a saudade as lamentaccedilotildees o amor

a inveja a maliacutecia e outros sentimentos da mesma espeacutecie Num fragmento da Iliacuteada

citado no referido diaacutelogo a raiva eacute apresentada como algo que amarga a alma ateacute dos

41

ldquoSOCRATES What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted there will

at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain

PROTARCHUS What you say is very plausible

SOCRATES But if the reverse happens and harmony is regained and the former nature restored we

have to say that pleasure arises if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the

shortest possible timerdquo(31d) (trad livre) Cf PLATAtildeO PHILEBUS trad Dorothea Frede In COOPER

John M (ed) Plato complete works IndianapolisCambridge Hacket Publishing Company 1997 p

419 42

FREDE D Op cit p 262 43

ARISTOTELES Op cit 2012 p 56

27

mais saacutebios mas ao mesmo tempo provoca um dulccedilor maior do que o mel A amargura

da raiva reside na dor que ela provoca desequilibrando o estado natural do indiviacuteduo e a

doccedilura estaacute justamente na antecipaccedilatildeo mental do ato de vinganccedila que eacute a sua imensa

fonte de prazer Por sua vez o riso que eacute um prazer quando dirigido a uma infelicidade

do outro eacute fruto da maliacutecia (Schadenfreude)44

que eacute uma dor da alma (50a)45

Retornando novamente agrave Retoacuterica Aristoacuteteles oferece uma lista de emoccedilotildees

opostas (ira calma amizade e inimizade medo confianccedila vergonha desvergonha

benevolecircncia compaixatildeo indignaccedilatildeo inveja emulaccedilatildeo etc) que seraacute enquadrada no

referido modelo teoacuterico dos sentimentos mistos Ressalte-se poreacutem que em nenhum

momento Aristoacuteteles faz referecircncia expliacutecita agrave teoria platocircnica nem utiliza a palavra

ldquomistordquo ou ldquomisturardquo e neste aspecto esclarece poucos detalhes de sua abordagem

emotiva No entanto o cotejo a seguir realizado mostra que a influecircncia platocircnica tem

fundamento e a sua investigaccedilatildeo merece ser feita a fim de compreender como foi

moldada a primeira grande abordagem retoacuterica das emoccedilotildees de que temos notiacutecia

Assim a ira eacute acompanhada de dor em funccedilatildeo de um desprezo sem razatildeo

dirigido a noacutes ou a pessoas que temos estima e de prazer na esperanccedila de se vingar que

eacute representada mentalmente no indiviacuteduo provocando um deleite comparaacutevel agravequeles

encontrados nos sonhos (1378b) O medo eacute uma dor em virtude da representaccedilatildeo de um

mal vindouro (1382a) A causa da vergonha consiste numa dor em razatildeo de males

passados presentes ou futuros que satildeo passiacuteveis de destruir a nossa reputaccedilatildeo (1383b)

A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisiccedilatildeo de

bens desejaacuteveis ou seja o sucesso alheio eacute fonte de grande afliccedilatildeo e o prazer estaria na

possibilidade de observar o fracasso na aquisiccedilatildeo destes bens (1387b-1388a) De seu

turno na compaixatildeo a dor eacute resultado de um mal que recai naquele que natildeo a merece

fazendo-nos sofrer por extensatildeo (1385b) Na indignaccedilatildeo a dor estaacute em observar um

ecircxito imerecido (1386b) Jaacute o amor que eacute melhor tratado no Livro I nos provoca dor

diante da ausecircncia da pessoa amada cuja lembranccedila e a esperanccedila de reencontro nos

provocam prazer (1370a)

Eacute bem verdade que em relaccedilatildeo a algumas emoccedilotildees tais a amizade e a

benevolecircncia Aristoacuteteles natildeo chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas

envolvidos mas conforme nota Frede isso mostra que ele estava mais preocupado em

44

A palavra alematilde Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortuacutenio

alheio 45

PLATAtildeO Op cit 1997 p 439-440

28

mostrar quais emoccedilotildees o orador deveria dominar para ser convincente no

empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade teoacuterica46

De outra parte importa registrar que no detalhamento das emoccedilotildees trecircs

aspectos satildeo via de regra esclarecidos quais sejam o estado de espiacuterito em que

geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoccedilatildeo contra quem ou

o que costumam ter aquela reaccedilatildeo emotiva e em quais circunstacircncias ocorrem Sem

saber estes trecircs aspectos o orador natildeo estaraacute nas condiccedilotildees ideais de alcanccedilar ecircxito no

seu empreendimento de colocar o auditoacuterio numa determinada disposiccedilatildeo mental

Por exemplo como o medo estaacute relacionado agrave visualizaccedilatildeo da ocorrecircncia de um

mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequecircncias negativas na esfera

pessoal do indiviacuteduo o ouvinte deve estar num estado de espiacuterito que acredite que de

fato algo ruim iraacute lhe suceder Assim pessoas insensiacuteveis por jaacute terem vivenciado toda

sorte de desgraccedila na vida ou porque estatildeo muito confiantes em si mesmas por terem ou

acreditarem ter muitos amigos vigor fiacutesico prosperidade econocircmica ou outro motivo

que as fortaleccedila mentalmente natildeo sentiratildeo medo Logo a confianccedila eacute o contraacuterio do

medo e eacute um verdadeiro escudo contra o sentimento de inseguranccedila que aplaca o

medroso Por outro lado teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a noacutes e nesta

categoria encontram-se aqueles que satildeo injustos ou perversos desde que contem com

instrumentos para cometerem os seus atos de injusticcedila e de maldade aqueles que

provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que noacutes os nossos concorrentes

quando o objeto de conquista natildeo pode ser compartilhado os que foram viacutetimas de

injusticcedila por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem Por fim em

relaccedilatildeo agrave coisa que tememos ela deveraacute ter a capacidade de nos causar grande

penosidade inclusive a proacutepria destruiccedilatildeo sendo o seu aspecto temporal altamente

relevante jaacute que tendemos a ter medo em relaccedilatildeo a um mal iminente e natildeo sentirmos

temor quanto a algo que provavelmente se sucederaacute mas a sua ocorrecircncia se daraacute num

intervalo temporal muito longiacutenquo

Na posse de tais informaccedilotildees e tentando imaginar um orador que planeje incutir

medo num auditoacuterio formado por pessoas com alto niacutevel de confianccedila certamente o

passo inicial seraacute dessensibilizar os ouvintes Se por exemplo as pessoas forem

confiantes por possuiacuterem muita riqueza seraacute necessaacuterio demonstrar no discurso que os

seus bens materiais nada poderatildeo fazer contra o mal que se aproxima Se por outro

46

FREDE D Op cit p 271

29

lado o mal lhes parece distante o discurso deveraacute enfatizar que a distacircncia natildeo eacute tatildeo

grande quanto aparenta e deveraacute reforccedilar a capacidade destrutiva deste mal bem como

certificar que apesar de longiacutenquo o infortuacutenio ocorreraacute No entanto se o auditoacuterio

estiver experimentando um medo excessivo talvez seja necessaacuterio lhes transmitir

confianccedila demonstrando que o mal natildeo seja tatildeo grande quanto aparenta ou que as

pessoas dispotildeem de meios adequados para enfrentaacute-lo

Enfim eacute preciso realizar um minucioso estudo do auditoacuterio a fim de

compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (preacute-discurso)

continuar a percebecirc-lo durante o discurso tudo isso com o objetivo de conduzir os

ouvintes a uma pretendida disposiccedilatildeo mental Nesta perspectiva a retoacuterica eacute uma

teacutecnica fundada no profundo conhecimento teoacuterico do ser humano na aquisiccedilatildeo de

experiecircncia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especiacuteficas de um

determinado grupo social e na contiacutenua praacutetica discursiva

Cumpre acrescentar que no discurso retoacuterico haacute tambeacutem um intenso trabalho de

representaccedilatildeo mental ou melhor dizendo de imaginaccedilatildeo isto eacute phantasia As palavras

gregas phantasia e phantasma satildeo traduzidas por imagem imaginaccedilatildeo ou representaccedilatildeo

mental em diversas ocasiotildees da obra em comentaacuterio Eacute oportuno destacar que phantasia

eacute um termo teacutecnico da psicologia aristoteacutelica e natildeo se confunde com o uso atual da

palavra fantasia que significa invenccedilatildeo narrativa ficcional algo fora da realidade

A phantasia eacute uma faculdade da alma que natildeo eacute nem pensamento nem

percepccedilatildeo embora parta desta uacuteltima Ela visa dar conta de pelo menos dois

problemas a presenccedila na ausecircncia isto eacute a lembranccedila ou pensamento de objetos

ausentes a questatildeo do engano que natildeo consegue ser explicado pela ideia de que o

semelhante conhece o semelhante pois esta uacuteltima tese sustenta que o conhecimento se

identifica com os seus objetos (409b29-30) e por isso natildeo pode ldquo[] errar ou desviar

de como as coisas satildeordquo47

Assim para Aristoacuteteles a phantasia eacute uma faculdade

especiacutefica da alma que procura solucionar esse problema da cogniccedilatildeo tornando atraveacutes

da representaccedilatildeo mental o verdadeiro e o falso possiacuteveis

Desse modo Aristoacuteteles expotildee que ldquoo prazer consiste em sentir uma certa

emoccedilatildeo e a imaginaccedilatildeo [phantasia] eacute uma espeacutecie de sensaccedilatildeo enfraquecidardquo48

(1370a28-29) Ao falar acerca do prazer sentido na vitoacuteria assevera que todos gostam

47

ldquoit cannot err or deviate from the way things arerdquo CASTON Victor Aristotlersquos psychology In GILL

M L PELLEGRIN P (ed) The Blackwell Companion to Ancient Philosophy Oxford Blackwell

Publishing 2006 p 334 48

ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 57

30

de vencer porque criamos para noacutes mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade

em relaccedilatildeo aos outros (1370b33) A honra e a boa reputaccedilatildeo satildeo altamente prazerosas

porque atraveacutes delas imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma

pessoa virtuosa Na ira o prazer ocorre em face da representaccedilatildeo mental [phantasia] do

ato de vinganccedila (1378b) O medo eacute uma dor ocasionada pela representaccedilatildeo [phantasia]

de um mal iminente (1382a21) Na esperanccedila representamos mentalmente [phantasia]

que as coisas que nos transmitem seguranccedila estatildeo proacuteximas (1383a17) Por sua vez a

vergonha consiste na representaccedilatildeo imaginaacuteria [phantasia] da perda de reputaccedilatildeo pelo

indiviacuteduo (1384a24)49

Assim em vista dos trechos acima citados fica claro que phantasia tem um

papel essencial no trabalho retoacuterico porque atraveacutes de sua elaboraccedilatildeo discursiva seraacute

possiacutevel suscitar determinadas emoccedilotildees no auditoacuterio E isso porque conforme destaca

Rapp ldquomuitas emoccedilotildees surgem apenas atraveacutes da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo

(phantasia) natildeo necessitando de uma operaccedilatildeo cognitiva superior incluindo qualquer

julgamento compreendido este uacuteltimo como uma operaccedilatildeo sofisticadardquo50

Assim em

conclusatildeo a phantasia retoacuterica consiste na induccedilatildeo de uma determinada disposiccedilatildeo

mental por meio da produccedilatildeo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um

estado emocional especiacutefico

Desse modo tendo completado a exposiccedilatildeo do tema eacute possiacutevel agora notar a

evoluccedilatildeo do pensamento de Aristoacuteteles sobre as emoccedilotildees compreender de que modo

elas satildeo suscitadas entender a sua natureza complexa e a sua funccedilatildeo cognitiva precisar

quais delas satildeo importantes para o orador e por fim observar a sua centralidade dentro

da retoacuterica

13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica

Visto o delineamento do tema na retoacuterica aristoteacutelica e percebido o alto grau de

importacircncia que as emoccedilotildees adquirem no discurso persuasivo passamos agora a

investigaacute-las na eacutetica aristoteacutelica mais precisamente nos Livros I e II da Eacutetica a

Nicocircmaco

49

GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric II a commentary New York Fordham University

Press 1988 p 26 50

ldquoViele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande beduumlrfen

aber keiner houmlheren kognitiven Operation also auch keines Urteils falls darunter eine solche

anspruchsvollere Operation verstanden wirdrdquo (trad livre) RAPP C Op cit p 56

31

Aristoacuteteles inicia no Capiacutetulo II do Livro I dizendo que se houver um bem que

seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade uacuteltima

tal bem dada a sua importacircncia merece por razotildees praacuteticas ser estudado e conhecido

uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforccedilo na vida humana

Esse bem final ou supremo eacute relacionado agrave felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no

Capiacutetulo IV ldquoverbalmente eacute-nos possiacutevel quase afirmar que a maioria esmagadora da

espeacutecie humana estaacute de acordo no que tange a isso pois tanto a multidatildeo quanto as

pessoas refinadas a ele se referem como a felicidaderdquo51

(1095a17-19)

Apoacutes discorrer sobre vaacuterias concepccedilotildees correntes sobre felicidade (eudaimonia)

oferecendo-lhes criacutetica bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista Aristoacuteteles no

Capiacutetulo XIII afirma que ldquofelicidade eacute uma certa atividade da alma em conformidade

com a virtude perfeitardquo ou que a ldquofelicidade humana significa a excelecircncia da almardquo

justificando portanto a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para

melhor compreender a mateacuteria em exame

Por isso em seguida apresenta a divisatildeo da alma em uma parte dotada de razatildeo

(logon) e uma outra parte natildeo-racional (alogon) Primeiramente eacute detalhada a parte

natildeo-racional que se divide em duas uma porccedilatildeo cuida da nutriccedilatildeo e do crescimento e

por isso eacute partilhada com todos os seres vivos natildeo sendo caracteriacutestica apenas do ser

humano (parte vegetativa ou nutritiva) mas uma outra porccedilatildeo embora tambeacutem seja

natildeo-racional possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razatildeo Esta

uacuteltima porccedilatildeo eacute a sede dos desejos apetites e emoccedilotildees e geralmente eacute denominada de

parte apetitiva ou desiderativa

Poreacutem em prosseguimento sem se decidir ele observa que talvez seja mais

apropriado dividir a parte racional em duas uma que deteacutem o princiacutepio racional strictu

sensu e em si mesmo e a outra parte (a apetitiva) que natildeo possui razatildeo mas que eacute

capaz de ouvi-la ldquocomo um filho ao seu pairdquo Em ambos os casos seja a parte

irracional duplamente dividida seja a parte racional duplamente dividida uma coisa

permanece igual a parte apetitiva (desiderativa) natildeo deteacutem em si o princiacutepio racional

mas eacute capaz de escutar e obedecer a razatildeo conforme explana Rapp

Na verdade Aristoacuteteles diz que ou o sentido da frase lsquologo echonrsquo

(lsquoter razatildeorsquo) eacute bipartite ndash primeiro aquilo que tem razatildeo em sentido

estrito e a tem em si mesmo segundo aquilo que eacute capaz de obedecer

ou responder agrave razatildeo ndash ou que um elemento da parte natildeo-racional da

51

ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco trad Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2009 p 40

32

alma eacute capaz de ouvir obedecer ou responder agravequela parte da alma

que possui razatildeo em si mesma52

Mas qual eacute a principal finalidade em apresentar esta divisatildeo da alma em uma

parte racional e outra natildeo-racional Ora se lembrarmos que a felicidade eacute um estado de

excelecircncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita entatildeo do conhecimento

das partes da alma e da compreensatildeo do seu bom funcionamento dependem o excelente

desempenho da totalidade da alma Assim anota Pakaluk o pressuposto impliacutecito neste

capiacutetulo eacute que a virtude do todo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da distinccedilatildeo da virtude das

partes53

E tal portanto eacute a justificativa para apresentar a divisatildeo entre virtudes

intelectuais e virtudes morais ou eacuteticas As virtudes intelectuais satildeo aquelas pertencentes

ao campo da parte racional da alma e de seu turno as virtudes morais satildeo relacionadas

agrave parte natildeo-racional da alma mas que conforme visto tecircm a caracteriacutestica de poder

ouvir e obedecer agrave razatildeo

Interessante registrar o jogo ambiacuteguo que o vocaacutebulo ldquovirtuderdquo exerce no texto

Se num primeiro momento Aristoacuteteles usa ldquovirtuderdquo geralmente no singular para se

referir agrave felicidade conveacutem notar que agora ele passa a utilizar a palavra no plural

(virtudes intelectuais e virtudes morais) O termo grego aretecirc pode ser traduzido por

excelecircncia ou por virtude sendo que ao empregar a palavra no singular para definir a

felicidade o Estagirita quer se referir agrave atividade excelente da alma um estado que

exerce bem sua funccedilatildeo e atinge os melhores padrotildees Jaacute no segundo caso exemplificado

(plural) deseja aludir agraves virtudes individuais tais como popularmente as conhecemos

justiccedila moderaccedilatildeo coragem etc54

Assim tendo em vista tal classificaccedilatildeo o Livro II iraacute se ocupar da virtude moral

(no singular) ou seja procurar-se-aacute compreender de que maneira a parte natildeo-racional

da alma iraacute atingir o seu estado excelente enquanto as virtudes morais (no plural) iratildeo

ser exploradas em outro trecho da obra (III8-VI)

Neste propoacutesito no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral o

Estagirita abre a discussatildeo esclarecendo o seu modo de aquisiccedilatildeo a fim de diferenciar

tal virtude em relaccedilatildeo agrave virtude intelectual Enquanto esta uacuteltima se adquire pela

52

RAPP CPara que serve a doutrina aristoteacutelica do meio termo In ZINGANO Marco (org) Sobre a

eacutetica nicomaqueia de aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010 p 410 53

PAKALUK Michael On the unity of the nicomachean ethics In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos

nicomachean ethics a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 31 54

RAPP C Op cit 2010 p 407-408 Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea Op cit p 78

33

instruccedilatildeo aquela eacute produto do haacutebito (ethos) marcando com esta posiccedilatildeo clara

divergecircncia com o intelectualismo socraacutetico que entende que a virtude eacute adquirida por

meio do conhecimento vale dizer para praticar atos bons e ser considerado bom eacute

suficiente que o indiviacuteduo compreenda o que eacute bondade para ser justo eacute satisfatoacuterio

conhecer o que eacute justiccedila Diferentemente no modelo aristoteacutelico algueacutem soacute se torna

virtuoso caso realize atos em conformidade com a virtude Por conseguinte eacute preciso

realizar atos de coragem ou de justiccedila para por exemplo ser considerado corajoso ou

justo

Ademais as virtudes morais natildeo satildeo inatas natildeo satildeo geradas pela natureza

(phusei) nem satildeo contraacuterias agrave natureza (paraphisen) Embora nos sejam concedidas

como potecircncias (dynameis) necessitam ser exercidas para serem adquiridas e natildeo

permanecerem em eterno estado de latecircncia Isso porque a virtude eacute uma hexis

(disposiccedilatildeo) um estado de caraacuteter adquirido que se tornou estaacutevel fixo natildeo sujeito a

regressotildees55

Eacute por isso que a sua aquisiccedilatildeo soacute ocorre mediante a repeticcedilatildeo de vaacuterios

atos (haacutebito) necessitando tambeacutem que haja conhecimento e deliberaccedilatildeo na sua praacutetica

(1105a30-35)

Poreacutem onde se encaixam as emoccedilotildees neste modelo teoacuterico Qual eacute o papel que

desempenham para o atingimento do estado de excelecircncia da parte natildeo-racional da

alma

No Capiacutetulo I do Livro II Aristoacuteteles fornece o primeiro exemplo empiacuterico

relativo agrave importacircncia das emoccedilotildees para a o desenvolvimento do caraacuteter do indiviacuteduo

ldquoatraveacutes da accedilatildeo em situaccedilotildees arriscadas e ao formar o haacutebito do [sentimento] do medo

ou [aquele] da autoconfianccedila eacute que nos tornamos corajosos ou covardesrdquo56

No Capiacutetulo

II reafirma-se o mesmo exemplo a pessoa que sente medo em relaccedilatildeo a tudo querendo

fugir de todas as situaccedilotildees iraacute adquirir o caraacuteter de um covarde sendo que aquele que

natildeo vivencia medo em face de qualquer situaccedilatildeo um temeraacuterio

Apoacutes o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de

incidecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Assim em relaccedilatildeo a estas uacuteltimas estar na

posse de uma virtude moral significa que o indiviacuteduo se encontra bem ou mal disposto a

55

WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2013 p 69-70 56

ARISTOacuteTELES Op cit 2009 p 68

34

sofrer o governo das emoccedilotildees ldquoas disposiccedilotildees satildeo os estados de caraacuteter formados

devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relaccedilatildeo agraves paixotildeesrdquo57

Com efeito se pensarmos que a teoria moral aristoteacutelica concerne agraves emoccedilotildees e

o vocaacutebulo pathos derivado de paschein traz consigo a ideia de que o indiviacuteduo eacute

afetado por algo isto eacute ele sofre a accedilatildeo de uma emoccedilatildeo e por isso se encontra numa

condiccedilatildeo passiva e considerando que esta mesma teoria moral tambeacutem se preocupa

com a accedilatildeo (praxis) isto eacute quando o indiviacuteduo atua e respectivamente estaacute numa

posiccedilatildeo ativa o modelo eacutetico em comentaacuterio se preocupa natildeo apenas com o agir

devidamente mas tambeacutem com o ser afetado devidamente Assim a arte de viver bem

natildeo se resume a uma arte de agir adequadamente mas sobretudo a uma arte de sentir

de modo adequado as emoccedilotildees58

Dessa forma com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de

como atingir esse ponto de excelecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Aristoacuteteles

apresenta a doutrina do meio termo

Ora de tudo que eacute contiacutenuo e divisiacutevel eacute possiacutevel tomar a parte maior

ou a menor ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores

menores e iguais seja relativamente agrave proacutepria coisa ou relativamente a

noacutes a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficiecircncia

Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois

extremos o que eacute exatamente o mesmo para todos os seres humanos

pela mediania relativa a noacutes entendo aquela quantidade que nem eacute

excessivamente grande nem excessivamente pequena o que natildeo eacute

exatamente o mesmo para todos os seres humanos59

Assim em vista do modelo conceitual oferecido a excelecircncia eacutetica estaraacute no

distanciamento do muito e do muito pouco em direccedilatildeo ao centro isto eacute ao ponto

mediano A boa disposiccedilatildeo de caraacuteter eacute alcanccedilada quando se evita tanto o excesso

quanto a deficiecircncia que seriam modos de falhar tanto na accedilatildeo quanto na forma de

sentir a emoccedilatildeo

Rapp destaca que as interpretaccedilotildees normativas desta doutrina

tradicionalmente a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os

casos individuais e encontrar consequentemente uma soluccedilatildeo Assim ela tem sido

compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas accedilotildees ou emoccedilotildees sejam

57

Id ibid p 74 58

KOSMAN L A Beeing properly affected virtues and feelings in Aristotlersquos ethics In RORTY

Ameacutelie Oksenberg Essays on aristotlersquos ethics BerkeleyLos Angeles California University Press

1980 p 104-105 59

ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco Op cit p 76

35

moderadas (b) para que apenas selecionemos as accedilotildees ou as reaccedilotildees emotivas

equidistantes dos dois extremos60

Todavia a melhor saiacuteda seria observar o seu caraacuteter anti-dedutivo jaacute que no

campo eacutetico a infinidade de situaccedilotildees e peculiaridades desaprova uma leitura ldquoregra-

casordquo desse modelo teoacuterico ldquoo melhor que a teoria eacutetica pode fazer eacute formular

enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hocircs epi to polu) e natildeo em

geralrdquo61

Nesta aacuterea que natildeo eacute a do necessaacuterio natildeo se podem formular premissas

cogentes a partir das quais deduziriacuteamos soluccedilotildees firmes

Aristoacuteteles nesse ponto adiciona uma seacuterie de paracircmetros a fim de explanar

conceitualmente a boa medida da accedilatildeo ou da emoccedilatildeo experimentar uma emoccedilatildeo

adequadamente significa senti-la na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves

pessoas e aos fins certos e de maneira correta o que demonstra a complexidade do

aperfeiccediloamento eacutetico uma vez que se espera do indiviacuteduo uma grande sensibilidade agrave

experiecircncia concreta

Em tal perspectiva sentir uma emoccedilatildeo devidamente pode significar reagir de

modo eneacutergico porque uma situaccedilatildeo especiacutefica pode reclamar que a pessoa tenha uma

resposta emocional intensa Isso natildeo anula a noccedilatildeo de virtude moral esclarecida

conceitualmente pela doutrina do meio-termo porque a pessoa que natildeo reage de forma

adequada agrave ocasiatildeo em face daqueles paracircmetros expostos estaraacute ou falhando por

deficiecircncia ou por excesso Por exemplo o indiviacuteduo que frequentemente reaja com

raiva em relaccedilatildeo agraves pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira

equivocada ou natildeo reaja quando deveria estaraacute mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees62

Assim ateacute o momento o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira

algueacutem estaraacute bem ou mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees uma vez que conforme se

delineou a parte natildeo-racional da alma apenas exerce bem a sua funccedilatildeo quando ouve a

razatildeo e no campo das emoccedilotildees isso ocorre quando o indiviacuteduo as sente adequadamente

de acordo com as circunstacircncias

Poreacutem Aristoacuteteles demonstrando que no terreno da eacutetica as peculiaridades satildeo

muitas afirma que para determinadas emoccedilotildees (a inveja a malevolecircncia a impudiciacutecia

e outras semelhantes) o modelo da mediania eacute inuacutetil e os paracircmetros sequer aplicaacuteveis

60

RAPP C 2010 p 416 61

Id ibid p 419 62

RAPP COp cit 2008 p 66

36

porque tais paixotildees satildeo maacutes em si mesmas para elas soacute existe o erro pois natildeo haacute como

senti-las no momento certo quanto agrave pessoa certa ou de modo certo etc

Assim enquanto para uma gama de emoccedilotildees eacute possiacutevel afirmar que eacute possiacutevel

senti-las adequadamente e isso implica pressupor que quando apropriadamente

vivenciadas algo de bom teraacute ocorrido da sua fruiccedilatildeo para outras tal pensamento natildeo eacute

extensiacutevel

Temos que nos socorrer do Livro II da Retoacuterica a fim de evidenciar por que a

inveja seria do ponto de vista eacutetico uma emoccedilatildeo vil em si mesma o Estagirita afirma

que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia eacute aquela que sente inveja

da felicidade dos outros e consequentemente esta mesma pessoa teraacute grande regozijo

ao observar o fracasso alheio Enquanto a indignaccedilatildeo e a inveja partilham de um ponto

comum por serem emoccedilotildees penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia

entre elas existe uma destacada diferenccedila a indignaccedilatildeo eacute uma dor gerada pela

observaccedilatildeo de um sucesso imerecido (injusto) enquanto a inveja eacute uma dor provocada

pela conquista de um bem merecido (justo) Enquanto a indignaccedilatildeo e a compaixatildeo estatildeo

ligadas ao bom caraacuteter a inveja estaacute relacionada a pessoas de alma pequena

(mikropsykhoi) Ao comparar a emulaccedilatildeo com a inveja destaca que aquela eacute

experimentada por pessoas de bem de alma grande enquanto a uacuteltima por pessoas vis

despreziacuteveis que poderatildeo inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem

Enfim parece que natildeo foi agrave toa que Aristoacuteteles de forma inusual brigou com os poetas

no iniacutecio da Metafiacutesica ao dizer que eacute mais provaacutevel que eles sejam mentirosos

conforme profere o proveacuterbio do que os deuses invejosos (1386b10-25 1387b30-39

1388a30-37 983a1-5)

Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoccedilotildees que satildeo vis em si mesmas

fundamentando-se na palavra grega mochteria utilizada em trecho em que eacute discutido

este mesmo assunto na Eacutetica a Eudemo (1221b21)63

Eacute bem verdade que mochteria

tambeacutem foi vertida por ldquoviacuteciordquo em algumas traduccedilotildees deste mesmo trecho na referida

obra aristoteacutelica64

mas natildeo deixa de ser um uso interessante para a descriccedilatildeo das

mencionadas emoccedilotildees parecendo-nos oportuna a sua utilizaccedilatildeo65

63

LEIGHTON Stephen Inappropriate passion In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos nicomachean ethics

a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 211 64

ARISTOTLE Eudemian ethics trad Michael Woods Oxford Clarendon Press 2005 p 18 65

Cf a explanaccedilatildeo dada para mochteria ldquocorrupt corruption (mochtheros mochtheria) A strong term

used to describe vicious human beings Like the English term the Greek has a range of meanings from

morally bad or wicked to perverse or depraved in ones longings and the like it can also mean in non

moral contexts simply lsquodefectiversquo or lsquobad conditionrsquo In the Ethics mochtheria is sometimes used

37

Assim por exemplo a inveja eacute uma emoccedilatildeo perversa porque conforme se viu

eacute anti-meritoacuteria O sujeito invejoso natildeo consegue enxergar um valor positivo na

conquista alheia e espera pela sua desgraccedila Consequentemente eacute uma emoccedilatildeo

relacionada ao cometimento de injusticcedilas

Mas de um modo geral todas as emoccedilotildees perversas compartilham de algo em

comum elas satildeo incompatiacuteveis com o bom caraacuteter Consoante nota Leighton as

emoccedilotildees perversas ldquo[] natildeo contribuem em nada mas apenas inibem uma vida virtuosa

ou proacutespera Enquanto a maioria das emoccedilotildees eacute objeto de elogio ou de censura

conforme as circunstacircncias particulares em que se manifestam estas merecem censura

simplesmente por serem sentidasrdquo66

Ora pelo visto ateacute o presente momento Aristoacuteteles divide as emoccedilotildees em dois

grupos aquelas que podem ser adequadamente ou natildeo-adequadamente sentidas de

acordo com as circunstacircncias e aquelas que satildeo vis em si mesmas (perversas) Naquele

primeiro grupo de emoccedilotildees os indiviacuteduos virtuosos sentiratildeo as emoccedilotildees

adequadamente enquanto aqueles natildeo-virtuosos sentiratildeo inadequadamente No segundo

grupo apenas os sujeitos de caraacuteter falho (natildeo-virtuoso) as sentiratildeo67

Desse modo de

acordo com este modelo quando devidamente formadas na disposiccedilatildeo de caraacuteter do

indiviacuteduo as emoccedilotildees contribuiratildeo significativamente no alcance de uma vida feliz

Poreacutem a despeito disso quais satildeo as outras implicaccedilotildees deste modelo

O primeiro ponto consiste em perceber que vaacuterias questotildees essenciais para a

vida inclusive para a vida em sociedade natildeo estatildeo localizadas no acircmbito de uma

racionalidade strictu sensu Se o indiviacuteduo natildeo for por haacutebito levado a constituir uma

disposiccedilatildeo de caraacuteter que o faccedila detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos

perversos provavelmente seraacute indiferente emocionalmente a accedilotildees truculentas ou

brutas contra outras pessoas

Nesse sentido conforme pontua Striker a falha em perceber qual o melhor curso

de accedilatildeo a tomar diante de determinada situaccedilatildeo estaacute relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional

porque eacute esta que iraacute possibilitar ao indiviacuteduo ter uma boa perspectiva moral

permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que eacute o melhor em cada circunstacircncia Pessoas

synonymously with the word for lsquovicersquo and so can serve as the contrary of lsquovirtuersquordquo ARISTOacuteTELES

Aristotlersquos nichomachean ethics tradRobert Bartlett e Susan D Collins ChicagoLondon Chicago

University Press 2011 p 307 66

ldquoThey cannot contribute to but only inhibit a virtuous or flourishing life While most passions deserve

praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (indashiii) these deserve blame

simply for being feltrdquo (trad livre) LEIGHTON S Op cit p 215 67

LEIGHTON SId ibid p 226

38

incapazes de sentir adequadamente indignaccedilatildeo ou compaixatildeo seratildeo inaacutebeis em prevenir

ou aliviar o sofrimento alheio assim como natildeo estaratildeo interessadas em reparar uma

injusticcedila68

Ademais registre-se que sem medo a pessoa natildeo tem como deliberar

adequadamente diante de um perigo (1383a5) E por uacuteltimo a depender da situaccedilatildeo

talvez seja necessaacuterio responder com muita indignaccedilatildeo ou muita raiva porque a

conjuntura pode demandar uma resposta eneacutergica de modo que o ideal de que as

emoccedilotildees sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)

natildeo estaacute condizente com tal abordagem69

De outra parte conveacutem tambeacutem compreender de que maneira este modelo eacute

extensiacutevel a outros domiacutenios pois ateacute entatildeo a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e

perversas esteve atrelada ao prisma eacutetico da vida comum Mas conforme adverte

Leighton eacute possiacutevel pensar a questatildeo da adequaccedilatildeo e da perversidade das emoccedilotildees na

poliacutetica na retoacuterica na trageacutedia e nos demais domiacutenios70

Por exemplo segundo Aristoacuteteles na trageacutedia o medo e a compaixatildeo satildeo duas

emoccedilotildees-chaves e estrategicamente utilizadas para garantir o efeito cataacutertico sobre o

puacuteblico (1452a3-12) que eacute levado a se surpreender e se horrorizar com o destino do

personagem Neste acircmbito a adequaccedilatildeo de tais emoccedilotildees assim como de outras que

porventura emergirem (amor oacutedio etc) natildeo satildeo orientadas pelos criteacuterios eacuteticos da vida

comum mas pela forma poeacutetica O medo que se destina agrave catarse na trageacutedia exerce

outra funccedilatildeo na eacutetica da vida ordinaacuteria relacionando-se com a virtude da coragem Por

sua vez as emoccedilotildees adequadas agrave comeacutedia deveratildeo ser outras71

Assim como conciliar a inadequaccedilatildeo de uma emoccedilatildeo na vida ordinaacuteria e sua

adequaccedilatildeo em outro domiacutenio (trageacutedia comeacutedia poliacutetica retoacuterica etc) Leighton

oferece duas respostas

Primeiramente ele lembra que Aristoacuteteles provavelmente confiante no poder do

haacutebito de que a sua teoria moral eacute devota eacute um filoacutesofo bem mais otimista do que

Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave corrupccedilatildeo moral Por exemplo para o Estagirita uma pessoa

pode aproveitar dos prazeres de uma comeacutedia sem que o seu caraacuteter moral seja

68

STRIKER Gisela Emotions in context aristotlersquos treatment of the passions in the rhetoric and his

moral psychology In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos

Angeles California University Press 1996 p 298 69

RAPP COp cit 2008 p 66 70

LEIGHTON S Op cit p 226 71

Id ibid p 227

39

destruiacutedo porque ela jaacute eacute possuidora de uma disposiccedilatildeo fixa permanente Esta primeira

hipoacutetese enfatiza o impacto psicoloacutegico das emoccedilotildees sobre o puacuteblico72

Na segunda hipoacutetese a explicaccedilatildeo enfatiza a proacutepria ideia de domiacutenio ldquoas

circunstacircncias da vida mundana natildeo satildeo as mesmas da trageacutedia da comeacutedia da retoacuterica

e vice-versa a sua localizaccedilatildeo difere dentro do sistema teleoloacutegico aristoteacutelicordquo73

Assim eacute plenamente possiacutevel no pensamento aristoteacutelico algo ser inadequado numa

circunstacircncia e adequada em outra natildeo haacute uma pretensatildeo prima facie de que se algo eacute

inadequado num determinado domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro

Portanto a adequaccedilatildeoinadequaccedilatildeo estaacute relacionada com os fins e a forma de um

especiacutefico domiacutenio sendo que os criteacuterios de adequaccedilatildeo em cada acircmbito natildeo estatildeo em

competiccedilatildeo Conveacutem registrar poreacutem que pensar na pluralidade de domiacutenios e sua

respectiva independecircncia em termos de adequaccedilatildeo natildeo significa que eles sejam

completamente autocircnomos e desconectados pois em verdade todos os domiacutenios estatildeo

subordinados agrave teleologia aristoteacutelica do bem74

Assim Leighton afirma que uma explicaccedilatildeo baseada no domiacutenio prefere a uma

psicoloacutegica por trecircs motivos 1) explica por que Aristoacuteteles oferece diferentes criteacuterios

de adequaccedilatildeo para domiacutenios distintos 2) natildeo necessita recorrer agrave ideia de que se algo eacute

inadequado em um domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro 3) possibilita

que faccedila sentido a ideia aristoteacutelica de que a adequaccedilatildeo de determinadas atividades varia

de acordo com o domiacutenio Por outro lado uma explanaccedilatildeo psicoloacutegica falha por

tambeacutem trecircs motivos 1) embora seja coerente com a noccedilatildeo de haacutebito natildeo explica a

diferenccedila entre domiacutenios 2) natildeo deixa de carregar uma censura moral consigo 3) natildeo

compreende a visatildeo aristoteacutelica de adequaccedilatildeo emotiva por domiacutenios distintos75

De fato a explicaccedilatildeo por domiacutenios oferece uma boa compreensatildeo do tema em

relaccedilatildeo agravequelas emoccedilotildees enquadraacuteveis no grupo das adequadasinadequadas de acordo

com as circunstacircncias Poreacutem o que dizer das emoccedilotildees vis em si mesmas perversas A

inveja por exemplo pode eventualmente ser adequada por domiacutenio (poliacutetica retoacuterica

etc)

Leighton afirma que a rigor uma emoccedilatildeo perversa natildeo pode ser adequada em

nenhuma circunstacircncia nem em nenhum domiacutenio considerando todas as caracteriacutesticas

72

Id ibid p 230 73

ldquoThe circumstances of mundane life are not those of tragedy comedy rhetoric and vice versa their

placement within Aristotlersquos teleological framework differsrdquo (trad livre) Id ibid p 231 74

Id ibid p 231-232 75

Id ibid p 231

40

jaacute relacionadas a respeito de tais emoccedilotildees Poreacutem ele simplesmente natildeo consegue

explicar por que Aristoacuteteles endossa o uso das emoccedilotildees perversas na retoacuterica ldquonoacutes

entendemos melhor aquilo e por que os poetas estavam errados em atribuir a inveja agrave

natureza divina mas permanecemos desconcertados por que Aristoacuteteles nos prepara

para utilizar a inveja na retoacutericardquo76

Para tentar solucionar esse verdadeiro enigma de que tratamos no toacutepico

anterior e que agora novamente retorna Leighton deveria tambeacutem ter enfrentado o

problema da compatibilidade do pensamento aristoteacutelico nos Livros I e II da Retoacuterica

Conforme dissemos anteriormente a criacutetica inicial de Aristoacuteteles ao uso das emoccedilotildees no

Capiacutetulo I do Livro I eacute conflitante com o posicionamento oferecido no Livro II e por

isso sem pressupor alguma mudanccedila de entendimento no pensamento do Estagirita fica

difiacutecil uma boa explicaccedilatildeo

Ainda assim eacute razoaacutevel supor que Aristoacuteteles tenha permanecido criacutetico em

relaccedilatildeo a um uso retoacuterico das emoccedilotildees que conduzisse ao desvirtuamento do problema

enfrentado Poreacutem no Livro II da Retoacuterica ele prepara o orador para utilizar todas as

emoccedilotildees inclusive aquelas condenaacuteveis na eacutetica da vida comum De certa forma tendo

em vista os propoacutesitos da retoacuterica e considerando que a arena puacuteblica por vezes nos

reserva situaccedilotildees inesperadas e certamente desagradaacuteveis eacute mais desejaacutevel estar

preparado para usar todas as emoccedilotildees sem censuraacute-las previamente em si mesmas

Talvez sob esta perspectiva seja justificaacutevel a quebra de coerecircncia

Por fim como fechamento desta investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio registrar que a eacutetica

aristoteacutelica consegue ateacute hoje manter a sua atualidade pelo modo como integrou as

emoccedilotildees dentro de seu modelo de vida virtuosa Com exceccedilatildeo das emoccedilotildees perversas o

indiviacuteduo virtuoso aristoteacutelico sente as emoccedilotildees que todos noacutes sentimos na vida comum

embora ele tenha adquirido um grande diferencial sua resposta emocional eacute excelente

isto eacute ele sente medo raiva indignaccedilatildeo compaixatildeo amor mas numa intensidade

adequada agrave situaccedilatildeo experenciada

14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica

Apoacutes analisar as emoccedilotildees primeiramente na retoacuterica e depois na eacutetica

aristoteacutelica passa-se agora a investigaacute-las no acircmbito da teoria estoica Se em relaccedilatildeo agrave

76

ldquoWe understand better that and why the poets were wrong to attribute envy to the divine nature but

remain puzzled why Aristotle prepares us to deploy envy in rhetoricrdquo (trad livre) Id ibid p 235

41

obra do Estagirita percorremos o referido trajeto agora teremos que comeccedilar o estudo

pela eacutetica estoica para depois chegarmos agrave retoacuterica O motivo para a alteraccedilatildeo de

percurso reside no fato de que sabemos bem mais detalhes da eacutetica do que da retoacuterica

estoica Ademais registre-se que nada sobrou dos textos de Zenatildeo de Ciacutecio (334-262

aC) Cleanto de Assos (331- aC) e Crisipo de Soles (280-204 aC) os fundadores do

estoicismo

Embora o estoicismo tenha sido praticado por um longo periacuteodo que abrange

cinco seacuteculos foi a partir do seu decliacutenio no seacuteculo III dC que as suas obras

inaugurais deixaram de ser preservadas Hoje em dia o estudo dos fundadores da escola

se baseia exclusivamente em fontes indiretas de autores tardios e sobretudo por meio

de comentaacuterios de seus adversaacuterios77

Crisipo embora natildeo tenha iniciado a escola estoica foi o seu mais importante

pensador sendo que muito do que hoje imputamos genericamente ao estoicismo eacute na

verdade o seu pensamento Dos seus mais de 705 (setecentos) livros escritos que

incluem um tratado exclusivamente sobre retoacuterica e outro sobre as emoccedilotildees soacute restam

fragmentos ou comentaacuterios Credita-se sobretudo a ele o enorme desenvolvimento da

loacutegica estoica considerada uma verdadeira preciosidade pelos especialistas Brennan eacute

incisivo ao dizer que ldquoentre os antigos apenas Platatildeo e Aristoacuteteles o ultrapassam como

filoacutesofordquo78

Com efeito considerado o extenso periacuteodo de tempo abrangido eacute de se esperar

que o desenvolvimento da escola estoica tenha passado por fases distintas de modo que

a histoacuteria do estoicismo eacute tradicionalmente dividida em trecircs momentos (i) fase inicial

periacuteodo no qual estaacute inserida a figura de Crisipo e que vai da fundaccedilatildeo da escola por

Zenatildeo em torno do seacuteculo III aC ateacute o fim do seacuteculo II dC (ii) fase intermediaacuteria que

coincide com a era de Paneacutecio e Posidocircnio (iii) fase do estoicismo romano coincide

com o periacuteodo imperial romano e os autores principais satildeo Secircneca Epicteto e Marco

Aureacutelio79

A nossa abordagem poreacutem natildeo se interessaraacute em investigar o desenvolvimento

do tema a ser estudado desde os fundadores do estoicismo ateacute os seus autores tardios

77

TIELEMAN T Op cit p 1 CHAUIacute Marilena Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia as escolas

heleniacutesticas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 p 118 78

ldquoAmong the ancients only Plato and Aristotle surpass him as philosophersrdquo (trad livre) BRENNAN

Tad The stoic life emotions duties amp fate Oxford Clarendon Press p11 SEDLEY David The school

from zeno to arius didymus In INWOOD Brad (ed) The Cambridge companion to the stoics

Cambridge Cambridge University Press p 17 LAEacuteRCIO Dioacutegenes Lives of eminent philosophers

trad R D Ricks London William Heineman 1925 p 317 79

SEDLEY D Op cit p 7

42

(fase do estoicismo romano) nem explanar eventuais discordacircncia entre eles Ao inveacutes

disso revela-se suficiente empreender um estudo que possibilite a compreensatildeo

tradicional das emoccedilotildees no campo da eacutetica possibilitando visualizar os eventuais

reflexos sobre a retoacuterica estoica

Ainda assim a delimitaccedilatildeo da abordagem natildeo deixa de ser desafiadora dado o

impressionante grau de sistematicidade da teoria estoica Atento a isso Ciacutecero diz que eacute

difiacutecil tirar um uacutenico elemento da teoria estoica sem prejudicar todo o resto do sistema

a que ele compara a um edifiacutecio

Certamente nenhuma obra da natureza (embora nada seja mais

finamente disposto do que a natureza) ou produto fabricado revela

tamanha organizaccedilatildeo tamanha estrutura firmemente soldada

Conclusatildeo segue infalivelmente da premissa posterior

desenvolvimento da ideia inicial Vocecirc pode imaginar outro sistema

em que a remoccedilatildeo de uma uacutenica letra como uma peccedila de encaixe

faria com que todo o edifiacutecio viesse a baixo80

Desse modo a fim de iniciar a nossa explanaccedilatildeo conveacutem registrar

primeiramente que para os estoicos a virtude eacute a uacutenica coisa boa que existe e o viacutecio

que eacute o seu contraacuterio a uacutenica coisa maacute Excluindo as virtudes e os viacutecios todo o resto

estaacute incluiacutedo na categoria dos indiferentes Assim sauacutede beleza forccedila riqueza

reputaccedilatildeo nascimento nobre satildeo considerados indiferentes assim como os seus

opostos doenccedila pobreza feiura etc ldquoos estoicos jamais diriam que a riqueza algumas

vezes eacute boa ou que em algumas vezes participa do bem ou que eacute boa se usada

corretamenterdquo81

Isso porque para eles a riqueza eacute algo invariavelmente classificado

como indiferente Ademais anote-se que a posse de tais indiferentes que satildeo

considerados bens externos natildeo eacute necessaacuterio para o indiviacuteduo ser feliz

Dentro da categoria dos indiferentes nem todos estatildeo no mesmo patamar

porque alguns estatildeo em conformidade com a natureza outros contraacuterios agrave natureza e

outros nem um nem outro Sauacutede e beleza por exemplo satildeo indiferentes que estatildeo em

conformidade com a natureza e por isso satildeo valorados positivamente Diante da

possibilidade devemos selecionar os indiferentes em conformidade com a natureza e

80

ldquoSurely no work of nature (though nothing is more finely arranged than nature) or manufactured

product can reveal such organization such a firmly welded structure Conclusion unfailingly follows

from premise later development from initial idea Can you imagine any other system where the removal

of a single letter like an inter-locking piece would cause the whole edifice to come tumbling downrdquo

(trad livre) CICERO On Moral ends trad WOOLF Raphael Cambridge Cambridge University

Press 2004(III74) p 88 81

BRENNAN T Op cit p 120

43

natildeo selecionar os indiferentes contraacuterios agrave natureza que satildeo desvalorados Por sua vez

dentre os indiferentes em conformidade com a natureza alguns possuem mais valor do

que outros e logo satildeo considerados preferiacuteveis A mesma ideia eacute extensiacutevel aos

indiferentes contraacuterios agrave natureza alguns possuem mais desvalor do que outros e dessa

forma satildeo menos preferiacuteveis

Um primeiro problema em relaccedilatildeo aos indiferentes diz respeito agrave sua

incontrolabilidade uma vez que satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna e por isso agrave

contingecircncia82

Outro problema consiste na possibilidade de tanto causarem benefiacutecio

quanto prejuiacutezo Riqueza e sauacutede por exemplo natildeo satildeo bons em si mesmos porque

podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal e tudo aquilo que ostenta tal

possibilidade natildeo eacute bom Eacute melhor por exemplo natildeo ter sauacutede caso ela seja o

instrumento que possibilite a praacutetica de atos vis conforme explana Graver

Nem mesmo a sauacutede eacute beneacutefica o tempo todo Se um ditador violento

pretende recrutar vocecirc para se tornar parte de um esquadratildeo da morte

entatildeo eacute preferiacutevel natildeo estar fisicamente apto (Secircneca que teve

alguma experiecircncia com ditadores recomenda suiciacutedio em tais casos)

Por esta razatildeo os estoicos argumentam que nem sauacutede nem riqueza

nem qualquer outro objeto externo eacute verdadeiramente beneacutefico em

tudo e tambeacutem os seus opostos natildeo satildeo totalmente prejudiciais O

verdadeiro valor natildeo aparece e desaparece com a ocasiatildeo83

Tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que virtude e felicidade e por outro lado viacutecio e

infelicidade coincidem na eacutetica estoica sendo que a virtude eacute identificada como um

estado de caraacuteter consistente que deve ser escolhida por si mesma e natildeo por outro

objeto externo84

Plutarco destaca que em uacuteltima instacircncia eacute a razatildeo que possibilita a

aquisiccedilatildeo de tal caraacuteter ldquo[] todos esses homens concordam em considerar a virtude

como um certo caraacuteter e poder da faculdade-comandante da alma engendrada pela

razatildeo ou melhor um caraacuteter que eacute em si mesmo consistente firme e de razatildeo

imutaacutevel[]rdquo85

A palavra ldquohomologiardquo traduzida por ldquoconsistecircnciardquo apreende bem a

82

Id ibid p 122 83

ldquoNot even health is beneficial all the time If a brutal dictator is seeking to conscript you to become part

of a death squad then it is preferable not to be physically fit (Seneca who had some experience of

dictators recommends suicide in such instances) For this reason the Stoics argue neither health nor

wealth nor any other external object is truly beneficial at all and neither are their opposites harmful

Genuine value does not come and go with the occasionrdquo GRAVER Margaret R Stoicism and emotion

ChicagoLondon The University of Chicago Press 2007 p 49 84

LAEacuteRCIO Diogenes 789 (SVF 339) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers translations of the principal sources vol 1 Cambridge Cambridge University Press 1987

p 377 85

ldquo[hellip]All these men agree in taking virtue to be a certain character and power of the souls commanding-

faculty engendered by reason or rather a character which is itself consistent firm and unchangeable

44

essecircncia desse modelo de eacutetica pois homo-logia significa tambeacutem ldquoharmonia com a

razatildeordquo demonstrando que a virtude eacute uma consistecircncia racional86

Os estoicos advogam a tese da unidade da virtude pois quem possui uma possui

todas as virtudes87

Quem age de acordo com uma age de acordo com todas A perfeiccedilatildeo

eacute apenas atingida quando o homem possui todas as virtudes e as suas accedilotildees satildeo

praticadas de acordo com todas elas88

Ademais ter uma vida feliz significa viver em conformidade com a natureza

que implica ao mesmo tempo viver de acordo com a virtude Neste particular natureza

significa a do proacuteprio homem e de tudo que o circunda (o todo) sendo que em ambas

permeia a reta razatildeo89

A razatildeo eacute aquilo que haacute de melhor e mais peculiar aos seres

humanos Quando correta e perfeita eacute a soma total da felicidade humana90

Um ponto central na eacutetica estoica reside na construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio

O saacutebio estoico eacute o modelo do indiviacuteduo virtuoso e autossuficiente faz tudo de modo

correto consistente e seacuterio natildeo faz nada de que poderia se arrepender nem nada contra

a sua vontade natildeo eacute assustado por nada ainda que aconteccedila algo inesperado e estranho

ele vive consistentemente conforme agrave natureza e por isso estaacute sempre feliz ldquoeacute uma

faacutecil conclusatildeo para os estoicos uma vez que perceberam que o bem final eacute uma

conformidade com a natureza e viver consistentemente com a natureza o que eacute natildeo

apenas a funccedilatildeo proacutepria do homem saacutebio mas tambeacutem estaacute em seu poderrdquo91

Poreacutem para compreender as emoccedilotildees e entender melhor as caracteriacutesticas

atribuiacutedas ao saacutebio eacute preciso esclarecer alguns aspectos da psicologia estoica

especialmente os conceitos de assentimento de impressatildeo e de impulso

Ordinariamente assentir significa concordar com aderir a algo conceder

aprovaccedilatildeo No entanto na escola estoica assentir eacute um termo teacutecnico e portanto

desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica em sua sistemaacutetica filosoacutefica Assim de acordo com

reason[hellip]rdquo Cf PLUTARCO On moral virtue 44OE-441D In LONG A A SEDLEY D N The

Hellenistic philosophers p 378 86

Id ibid p 383 87

STOBAEUS 2636-24 (SVF 3280 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 379 88

PLUTARCO On Stoic self-contradictions 1046E-F (SVF 3299 243) In LONG A A SEDLEY D

N The Hellenistic philosophers p 379 89

LAEacuteRCIO Dioacutegenes 787-9 In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers p

395 90

SENECA Letters 769-10 (SVF 3200a) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 395 91

ldquoIt is an easy conclusion for the Stoics since they have perceived the final good to be agreement with

nature and living consistendy with nature which is not only the wise mans proper function but also in

his powerrdquo (trad livre) Cicero Tusculan disputations 581-2 In LONG A A SEDLEY D N The

Hellenistic philosophers p 398

45

os estoicos o objeto de assentimento eacute sempre uma impressatildeo que eacute a traduccedilatildeo do

termo grego phantasia Plutarco nos diz que uma impressatildeo eacute uma marca na alma92

sendo que Crisipo registra que eacute uma afecccedilatildeo ocorrida na alma93

quando atraveacutes da

visatildeo observamos um ramalhete de flores amarelas num vaso este objeto causa uma

modificaccedilatildeo na alma que eacute afetada provocando-nos a impressatildeo de que haacute um

ramalhete de flores amarela num vaso Assim o que eacute objeto de meu assentimento e

passa a ser a minha crenccedila eacute a impressatildeo de que existe um ramalhete de flores amarela

num vaso ldquoo ato de acreditar de assentir a uma impressatildeo eacute uma espeacutecie de aprovaccedilatildeo

agrave impressatildeo dizendo ldquosimrdquo a ela concordando que as coisas estejam certas que o

mundo realmente eacute como a impressatildeo retrata que sejardquo94

Como seria de se esperar o problema da impressatildeo e do assentimento diz

respeito agrave questatildeo do verdadeiro e do falso Se eu assentir a uma impressatildeo falsa terei

uma crenccedila falsa da realidade Por conseguinte o assentimento a uma impressatildeo

verdadeira iraacute originar uma crenccedila verdadeira sobre o mundo Poreacutem qual seria a este

respeito o criteacuterio que distinguiria o verdadeiro do falso

Nesse ponto entra em cena um tipo de impressatildeo que eacute o proacuteprio carro-chefe da

epistemologia estoica Chamada de phantasia kataleptike (impressatildeo cognitiva) ela

garante o conhecimento verdadeiro da realidade Eacute uma impressatildeo que apreende

precisamente o objeto tal qual ele eacute sem erros nem desvios conforme resume Sexto

Empiacuterico

A impressatildeo cognitiva eacute aquela que surge a partir do que eacute e eacute

marcada e impressa exatamente de acordo com o que eacute de tal modo

que natildeo poderia surgir a partir do que natildeo eacute Uma vez que eles [os

estoicos] sustentam que essa impressatildeo eacute capaz de apreender os

objetos com precisatildeo e eacute marcada com todas as suas peculiaridades de

forma artesanal eles dizem que tal impressatildeo tem cada um destes

fatores como atributo95

92

PLUTARCO On common conceptions 1084F-1085A (SVF 2847) In LONG A A SEDLEY D

N The Hellenistic philosophers p 238 93

AETIUS 4121-5 (SVF 254 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 237 94

ldquoThe act of believing of assenting to the impression is a kind of endorsement of the impression saying

lsquoyesrsquo to it agreeing that it gets things right that the world really is as the impression depicts it to berdquo

(trad livre) BRENNAN TOp cit p 59 95

ldquo(3) A cognitive impression is one which arises from what is and is stamped and impressed exactly in

accordance which what is of such a kind as could not arise from what is not Since they [the Stoics] hold

that this impression is capable of precisely grasping objects and is stamped with all their peculiarities in a

craftsmanlike way they say that it has each one of these as an attributerdquo EMPIRICUS Sextus Against

the professors 7247-52 (SVF 265) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers

p 243

46

Portanto enquanto muitas impressotildees satildeo falsas porque surgem a partir do que

natildeo eacute a impressatildeo cognitiva eacute veraz pois apenas surge a partir do que eacute De outra parte

ainda que surjam a partir do que eacute muitas impressotildees representam com falha o seu

objeto o que natildeo acontece com a impressatildeo cognitiva uma vez que o seu objeto

impressor eacute representado com exatidatildeo Assim phantasia kataleptike eacute gerada a partir

do que eacute e em perfeita correspondecircncia com o que eacute ldquopara ser kataleptic a impressatildeo

precisa ser acompanhada de um tipo de garantia se vocecirc estaacute experimentando esta

impressatildeo entatildeo as coisas satildeo realmente como a impressatildeo diz que elas satildeordquo96

E isso

soacute eacute possiacutevel porque para viver em conformidade com a natureza noacutes seres dotados de

razatildeo somos equipados pela proacutepria natureza com o instrumental necessaacuterio para

realizar distinccedilotildees precisas sobre as coisas97

Todavia eacute fundamental compreender que nem todo assentimento agraves impressotildees

eacute igual Um assentimento eacute considerado forte quando eacute insuscetiacutevel de ser alterado por

meio de questionamento racional Por sua vez a caracteriacutestica do assentimento fraco

reside na sua reversibilidade Essas diferenciaccedilotildees satildeo importantes para entender que

para os estoicos o conhecimento soacute eacute possiacutevel quando simultaneamente existe um

assentimento forte a uma impressatildeo cognitiva A ausecircncia de quaisquer destas

condiccedilotildees conduz agrave formaccedilatildeo de uma mera opiniatildeo (doxa)98

Registre-se que conceder assentimentos fortes a impressotildees cognitivas eacute algo

apenas reservado ao saacutebio o qual nunca tem opiniotildees nem estaacute sujeito ao engano99

Somente o saacutebio vive uma vida plena de coerecircncia racional pois nunca erra jamais seu

conjunto de crenccedilas incorre em contradiccedilatildeo muito menos concede assentimento a algo

caso exista a miacutenima possibilidade de que este assentimento possa ser revertido100

Uma

das consequecircncias desse alto grau de exigecircncia epistecircmica consiste no fato de que as

pessoas ordinaacuterias isto eacute todos noacutes inclusive os fundadores da escola estoica natildeo

temos conhecimento a respeito de nada pois soacute assentimos de modo fraco e por isso

possuiacutemos tatildeo-soacute opiniatildeo sobre as coisas101

96

ldquoTo be kataleptic the impression has to come with a sort of guarantee if you are having this

impression then things are really as the impression says they arerdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit

p 68 97

LONG A A SEDLEY D Op cit p 250 98

BRENNAN T Op cit p 69-70 LONG A A SEDLEY D Op cit p 256-257 99

CICERO Academica 141-2 (SVF 160) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 254 100

STOBAEUS 2111 18-1128 (SVF 3-548) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophershellip p 256 101

BRENNAN T Op cit p 72-73

47

Por uacuteltimo o impulso (hormecirc) pertence a uma especial classe de assentimento e

pode ser compreendido como o antecedente mental que gera uma accedilatildeo voluntaacuteria Antes

que no mundo externo uma accedilatildeo voluntaacuteria seja praticada deve ocorrer mentalmente

um evento que entenda que aquela accedilatildeo eacute apropriada para o caso Este evento eacute um

assentimento a uma impressatildeo ldquoimpulsoacuteriardquo102

Quando vejo um ramalhete de flores

amarelas numa loja e tenho a crenccedila de que ldquoseraacute uma boa coisa compraacute-la para colocar

no vaso da minha salardquo eu assinto a uma impressatildeo e minha mente se dirige para

realizar a accedilatildeo potencial contida na proposiccedilatildeo avaliativa da minha impressatildeo Por sua

vez o impulso como todo assentimento pode ser um episoacutedio de conhecimento ou de

opiniatildeo e por isso ldquoo Saacutebio deve-se dizer conhece o que ele estaacute fazendo e

especialmente o valor do que ele estaacute fazendo enquanto os natildeo-saacutebios desconhecem

tanto um quanto o outrordquo103

Com efeito na posse destes conceitos torna-se agora possiacutevel explanar

compreensivelmente o motivo pelo qual os estoicos desejam se livrar de todas as

emoccedilotildees (apatheia)

Primeiramente do ponto de vista linguiacutestico eacute necessaacuterio registrar que os

estoicos se referem ao presente tema por meio da palavra grega pathos cuja traduccedilatildeo

varia Long-Sedley verteram o termo por paixatildeo uma expressatildeo que hoje em dia para

a grande maioria das pessoas estranhas agrave sua etimologia jaacute natildeo reteacutem aquela ideia de

passividade derivada de passio uma vez que no uso comum da liacutengua inglesa e da

portuguesa paixatildeo busca designar de modo mais saliente um sentimento arrebatador

muitas vezes de caraacuteter eroacutetico Esta traduccedilatildeo pode se mostrar bastante conveniente ao

reduzir a uma questatildeo etimoloacutegica a disputa teoacuterica entre peripateacuteticos (metriopatheia) e

estoicos (apatheia) Ciente disso Tieleman prefere o termo ldquoafecccedilatildeordquo que natildeo tem os

problemas da atual significaccedilatildeo da palavra paixatildeo e ainda tem a vantagem de respeitar

a ideia de passividade e de um outro importante significado da palavra pathos que eacute a de

doenccedila Segundo defende eacute neste uacuteltimo sentido que em importantes aspectos Crisipo

utiliza o termo104

Neste mesmo sentido Buddensiek tambeacutem prefere o termo

afecccedilatildeo105

Preferimos no entanto utilizar o termo emoccedilatildeo porque concordando com

102

GRAVER M Op cit p 26-27 BRENNAN T Op cit p 86-88 103

ldquoThe Sage we might say knows what he is doing and especially the value of what he is doing while

the non-Sage knows neitherrdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit p 103 104

TIELEMAN T Op cit p 15-16 105

BUDDENSIEK Friedmann Stoa und epikur affect als defekte oder als weltbezug In

LANDWEER Hilge RENZ Ursula (hrsg) Klassische Emotionstheorien Von Platon bis Wittgenstein

BerlinNew York Walter de Gruyter 2008 p 69-93

48

Graver noacutes designariacuteamos com esta palavra os exemplos em que os estoicos utilizam o

termo pathos106

Ademais considerando que este trabalho natildeo trata exclusivamente

sobre a filosofia estoica utilizar o termo emoccedilatildeo se adequa aos propoacutesitos de

harmonizaccedilatildeo linguiacutestica do estudo

Dito isso para os estoicos as emoccedilotildees satildeo consideradas um ldquoimpulso que eacute

excessivo e desobediente aos ditados da razatildeo ou um movimento da alma que eacute

irracional e contraacuterio agrave naturezardquo107

Desta definiccedilatildeo muito se pode extrair

primeiramente as emoccedilotildees satildeo enquadradas como um impulso mas um impulso

qualificado de extravagante e por isso transborda os limites que a razatildeo prescreve

Num segundo momento diz-se que eacute o proacuteprio movimento irracional da alma que eacute

contraacuterio agrave natureza Em suma a referida conceituaccedilatildeo em poucas palavras demonstra

o quanto as emoccedilotildees estatildeo numa posiccedilatildeo antagocircnica aos fins da filosofia eacutetica estoica

porque elas contrariam tudo o que haacute de mais caro nesta escola de pensamento as

emoccedilotildees satildeo excessivas contraacuterias agrave natureza irracionais e desobedientes aos

comandos do logos

Uma singularidade do pensamento estoico que tambeacutem ajuda a compreender

esse posicionamento diz respeito agrave sua concepccedilatildeo de alma Conforme visto

anteriormente Aristoacuteteles concebe a alma dividida numa parte racional e numa parte

natildeo-racional sendo que uma porccedilatildeo desta uacuteltima tem a particularidade de ouvir e

obedecer a razatildeo Assim porque a virtude (excelecircncia) do todo depende da virtude

(excelecircncia) das partes o bom funcionamento da parte natildeo-racional eacute imprescindiacutevel na

eacutetica aristoteacutelica e por isso as emoccedilotildees tem um espaccedilo tatildeo importante e satildeo encaradas

de maneira positiva Ter uma boa disposiccedilatildeo emocional significa ser devidamente

afetado pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias e isso contribui decisivamente

para a aquisiccedilatildeo de uma vida feliz

Eacute bem verdade que as emoccedilotildees tambeacutem tecircm um espaccedilo muito importante na

filosofia estoica mas eacute difiacutecil afirmar que satildeo encaradas de maneira positiva a alma

estoica natildeo eacute dividida em partes nem haacute porccedilatildeo irracional pois ela eacute pura razatildeo Diz-se

entatildeo que ela eacute monoliacutetica sem possibilidade de haver conflito entre as partes ldquoos

estoicos tambeacutem afirmavam em oposiccedilatildeo aos platonistas e aos aristoteacutelicos que os

106

GRAVER M Op cit p 14-15 107

ldquoThey [the Stoics] say that passion is impulse which is excessive and disobedient to the dictates of

reason or a movement of soul which is irrational and contrary to naturerdquo (trad livre) STOBAEUS

2888-906 (SVF 3378 389 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers

p 410

49

homens satildeo racionais no sentido de que satildeo apenas racionaisrdquo108

Dessa forma as

emoccedilotildees tambeacutem se encontram em contrariedade agrave concepccedilatildeo de alma defendida pelos

fundadores estoicos

Os estoicos agrupam as emoccedilotildees em quatro grandes gecircneros dentro dos quais se

acomodam emoccedilotildees especiacuteficas

Desejo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja boa de modo que

devemos persegui-la

Medo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja ruim de modo que

devemos evitaacute-la

Prazer eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute boa de modo que

devemos ficar contentes com isso

Dor eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim de modo que

devemos ficar abatidos com isso109

Em primeiro lugar observa-se que a divisatildeo das emoccedilotildees eacute feita por criteacuterio

temporal e por criteacuterio valorativo o desejo (epithumia) e o medo (phobos) satildeo

direcionados a algo futuro enquanto o prazer (hedone) e a dor (lupe) concernem a algo

que transcorre no momento presente Por sua vez o desejo e o prazer atribuem a um

objeto um valor positivo (bom) enquanto o medo e a dor imputam a algo um valor

negativo (ruim) Em todos os casos estamos diante de uma opiniatildeo isto eacute um

assentimento fraco (reversiacutevel) a uma impressatildeo

Exemplificativamente dentro do gecircnero ldquodesejordquo enquadram-se as seguintes

emoccedilotildees em espeacutecie raiva rancor exasperaccedilatildeo amor eroacutetico saudade acircnsia No

gecircnero ldquomedordquo relutacircncia receio consternaccedilatildeo vergonha supersticcedilatildeo pavor pacircnico

No gecircnero ldquodorrdquo inveja rivalidade ciuacuteme compaixatildeo luto ansiedade preocupaccedilatildeo

anguacutestia tristeza agonia No gecircnero ldquoprazerrdquo schadenfreude encantamento etc110

Ora em vista das definiccedilotildees expostas para os estoicos as emoccedilotildees satildeo impulsos

(os antecedentes mentais da accedilatildeo) e natildeo passam de opiniatildeo isto eacute assentimento ao

falso assentimento fraco (aquele que natildeo sobrevive a questionamento racional) Assim

quem atua guiado pelas emoccedilotildees age mal porque estaraacute sempre incidindo em episoacutedios

108

ldquoThe Stoics also claimed in opposition to Platonists and Aristotelians that humans are rational in the

sense that they are only rationalrdquo (trad livre) BRENNAN Tad The old stoic theory of emotions In

SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy

Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 23 BUDDENSIEK F Op cit p 72-73 109

ldquoDesire is the opinion that some future thing is a good of such a sort that we should reach out for it

Fear is the opinion that some future thing is an evil of such a sort that we should avoid it Pleasure is the

opinion that some present thing is a good of such a sort that we should be elated about it Pain is the

opinion that some present thing is an evil of such a sort that we should be depressed about itrdquo (trad

livre) BRENNAN T Op cit 2005 p 93 110

CICERO Tusculan disputations trad Margaret Graver ChicagoLondon The University of Chicago

Press 2002 (416) p 45

50

de engano em relaccedilatildeo ao mundo arrependendo-se posteriormente do que fez Mas por

que isso ocorre

Segundo Crisipo emoccedilotildees satildeo sobretudo avaliaccedilotildees111

e por assim serem

atribuem um determinado valor a algo quando algueacutem deseja fama beleza riqueza

amor eroacutetico julga que estas coisas satildeo boas e necessaacuterias agrave sua felicidade e age em

direccedilatildeo agrave sua conquista Poreacutem ao assim proceder natildeo faz mais do que contrariar toda

eacutetica estoica porque tudo isso satildeo apenas indiferentes a uacutenica coisa boa eacute a virtude No

medo avaliamos equivocadamente a realidade entendendo que algo eacute ruim quando na

verdade o uacutenico mal eacute o viacutecio E ainda que algueacutem avalie algo adequadamente

atribuindo o valor a algo que verdadeiramente lhe corresponda as emoccedilotildees continuam

sendo irracionais porque o assentimento concedido eacute fraco e por isso vacilante

possibilitando que entremos em contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves nossas crenccedilas e condutas112

Enfim as emoccedilotildees satildeo inconsistentes e quem age impulsionado por elas eacute incapaz de

perceber as coisas como satildeo porque se encontra num estado de cegueira conforme

resume Crisipo

A raiva [orgecirc] eacute cega frequentemente impede que vejamos coisas que

satildeo oacutebvias e frequentemente se coloca no caminho de coisas que [jaacute]

estatildeo sendo compreendidasporque as emoccedilotildees tatildeo logo comecem a

atuar expulsam o raciociacutenio e as evidecircncias em contraacuterio e nos

empurram violentamente em direccedilatildeo a accedilotildees contraacuterias agrave razatildeo113

Essa explanaccedilatildeo nos leva a indagar o que efetivamente sentiria o saacutebio estoico

porque todas as emoccedilotildees acima definidas estatildeo em total contrariedade com as

caracteriacutesticas de sua figura Assim para natildeo tornaacute-lo um ser apaacutetico e insensiacutevel foi

construiacutedo um conjunto de sentimentos compatiacutevel com as qualidades do saacutebio A esta

ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees deu-se o nome de eupatheiai (eupatheia no singular)

que pode ser traduzido por ldquoboas emoccedilotildeesrdquo ou ldquosentimentos apropriadosrdquo mas que

Ciacutecero preferiu utilizar o termo ldquoconsistecircnciardquo (constatiae) Graver registra que isso

tanto pode ser uma traduccedilatildeo criativa do autor romano quanto uma terminologia

alternativa perdida do grego De toda forma consistecircncia acaba por descrever as

propriedades destes sentimentos do saacutebio que satildeo experimentados de forma racional

111

LAEacuteRCIO D Op cit (VII111) p 217 112

BRENNAN T Op cit 2005 p 96 113

ldquoAnger [orgecirc] is blind it often prevents our seeing things that are obvious and it often gets in the way

of things which are ltalreadygt being comprehended For the passions once they have started drive out

reasoning and contrary evidence and push forward violently towards actions contrary to reasonrdquo (trad

livre) PLUTARCO De virtute morali 10 (Mor 450c) apud HARRIS William V Restraining rage the

ideology of anger control in classical antiquity CambridgeMassachusetts Harvard University Press

2001 p 370

51

com prudecircncia sem engano em relaccedilatildeo agrave realidade e que atribuem os predicados de

bom e ruim agraves uacutenicas coisas que satildeo de fato boas e ruins (virtudes e viacutecios)

Assim o saacutebio natildeo sente medo mas cautela que eacute o conhecimento de um mal

futuro de modo a evitaacute-lo Natildeo haacute prazer no saacutebio mas alegria que eacute o conhecimento de

que alguma coisa presente eacute boa de sorte que se deve ficar contente com isso Ele natildeo

experimenta desejo mas vontade ou voliccedilatildeo (boulesis) que eacute o conhecimento de que

alguma coisa futura eacute boa de modo que se deve buscaacute-la114

Quanto agraves emoccedilotildees em

espeacutecie sobreviveram poucos exemplos a reverecircncia e a modeacutestia subordinam-se agrave

cautela Na alegria encontram-se o enlevo o contentamento e a equanimidade e por

fim na vontade benevolecircncia respeito amizade e afetuosidade Todavia em relaccedilatildeo agrave

dor (opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim) percebe-se que natildeo existe nenhum

eupatheia correspondente e a justificativa para isso reside no fato de que como a uacutenica

coisa ruim eacute o viacutecio e o saacutebio se livrou de todos os viacutecios ele simplesmente natildeo sente

que alguma ruim se passa com ele Assim diante da humilhaccedilatildeo da miseacuteria da fome

da doenccedila o saacutebio natildeo eacute tomado por emoccedilotildees dolorosas muito menos se torna um

sujeito infeliz porque ele adquiriu a autossuficiecircncia e sabe que tudo isso natildeo passa de

indiferentes

Frise-se que todos esses sentimentos estatildeo de acordo com a natureza e desde

que o saacutebio eacute o uacutenico que assente de modo forte a impressotildees cognitivas nunca se

arrepende posteriormente ao agir guiado por eupatheiai Ainda que algo

ordinariamente assustador se passe a exemplo de um suacutebito barulho amedrontador a

alma do saacutebio apenas se contrai leve e rapidamente por efeito de um movimento

involuntaacuterio mas muito logo percebe que nada tem para assentir nestas impressotildees e

por isso nenhum medo lhe transcorre porque ele natildeo experimenta as emoccedilotildees do

homem inferior

Assim tendo sido exposta a doutrina estoica das emoccedilotildees e percebido que o

saacutebio estoico atinge um estado que ao se livrar de toda pathecirc libertou-se do falso e

passou a atribuir valor agrave uacutenica coisa que realmente merece ser estimada (a virtude)

parte-se agora para compreender em que medida esse posicionamento influencia a

retoacuterica estoica considerando que as emoccedilotildees tradicionalmente participavam de

maneira bastante marcante da praacutetica do orador

114

BRENNAN T Op cit 2005 p 98 CIacuteCERO Op cit 2002 (412-14) p 44 GRAVER M Op

cit 2007 p 51-53 LAEacuteRCIO D Op cit VII114-117 p 221

52

Em anaacutelise da obra aristoteacutelica observou-se que embora inicialmente criacutetico de

uma retoacuterica exclusivamente centrada nas emoccedilotildees e que desviasse do assunto objeto de

controveacutersia o Estagirita muda de entendimento e faz uma explanaccedilatildeo detalhada das

emoccedilotildees e prepara satisfatoriamente o orador para utilizaacute-las em sua praxis Por sua

vez nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco as emoccedilotildees atuam destacadamente na

construccedilatildeo de uma vida virtuosa e sem elas eacute impossiacutevel tomar boas decisotildees na vida

comum Embora seja aceitaacutevel distinguir entre emoccedilotildees adequadas e inadequadas de

acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas tal classificaccedilatildeo natildeo invade o campo

da retoacuterica aristoteacutelica que se constitui num domiacutenio proacuteprio jaacute que o orador eacute

instruiacutedo para utilizar no discurso inclusive as emoccedilotildees perversas

No que concerne agrave retoacuterica estoica e comparativamente agrave obra estudada de

Aristoacuteteles dispotildee-se nitidamente de bem menos material para consulta Laeacutercio

aponta que tanto Zenatildeo quanto Crisipo escreveram manuais de retoacuterica poreacutem nada foi

preservado115

Assim o que de fato temos satildeo comentaacuterios especialmente em relaccedilatildeo

ao desempenho de oradores estoicos romanos que ajudam a construir apenas em linhas

bem gerais o que teria sido a teoria retoacuterica defendida pelos estoicos116

Primeiramente por Laeacutercio sabe-se que a retoacuterica eacute definida pelos estoicos

como a ciecircncia de bem falar numa narrativa contiacutenua e a dialeacutetica como a ciecircncia de

falar corretamente por meio de perguntas e respostas sendo que ambas compotildeem a

parte loacutegica da exposiccedilatildeo filosoacutefica A dialeacutetica eacute considerada uma virtude e por isso o

saacutebio que possui todas as virtudes tambeacutem eacute um mestre na dialeacutetica que o permite

diferenciar o verdadeiro do falso a perceber o que eacute meramente plausiacutevel e ambiacuteguo de

modo a nunca cair em truques argumentativos117

Zenatildeo informa Ciacutecero utiliza uma metaacutefora para explicar a diferenccedila entre a

dialeacutetica e a retoacuterica a dialeacutetica seria representada com uma matildeo de punhos cerrados

uma vez que o seu estilo eacute compacto Por sua vez a retoacuterica atraveacutes da palma da matildeo

aberta dado o estilo expansivo do discurso dos oradores Ele defendia tambeacutem que a

retoacuterica natildeo era algo exclusivo para oradores mas tambeacutem pertence ao domiacutenio dos

115

LAEacuteRCIO D Op cit (VII 4-5) p 115 201-202 e 317 116

ATHERTON Catherine Hand over fist the failure of stoic rhetoric In Classical quarterly 38

1988 p 393 117

LAEacuteRCIO D Op cit p 42 e 47-48

53

filoacutesofos118

Sobre este ponto Ciacutecero interessantemente relata que o estoicismo eacute a

uacutenica escola que considera a retoacuterica uma virtude e uma sabedoria119

E se de fato eacute uma virtude entatildeo a retoacuterica estoica por igual estaacute sob os

cuidados do saacutebio e em assim sendo eacute de se esperar que ela apresente pelo menos

algumas peculiaridades A primeira delas jaacute se pode antever pela proacutepria definiccedilatildeo

apresentada anteriormente por Laeacutercio natildeo encontramos referecircncia a qualquer

finalidade persuasiva em sua conceituaccedilatildeo como encontramos em Platatildeo Aristoacuteteles e

outros autores de modo que o orador estoico natildeo discursa para convencer mas para

bem falar no sentido de falar corretamente

Ciacutecero eacute enfaacutetico ao detalhar uma seacuterie de dificuldades nesta retoacuterica O primeiro

problema diz respeito agrave transferecircncia do modelo da dialeacutetica para a retoacuterica Nesse

sentido Brutus assevera ldquo[] praticamente todos os adeptos da escola estoica satildeo

muito haacutebeis em argumentos precisos trabalham por regras e sistema e satildeo bons

arquitetos no uso das palavras mas ao levaacute-los da discussatildeo para a oratoacuteria percebe-se

o quatildeo satildeo pobres e sem recursosrdquo120

Concordando com a afirmaccedilatildeo Ciacutecero diz que na

verdade a atenccedilatildeo dos estoicos estaacute absorvida na dialeacutetica e por isso utilizam um estilo

que eacute muito compacto e discursivo para o emprego no foacuterum judiciaacuterio ou na

assembleia popular121

Tambeacutem eacute na dialeacutetica e natildeo na retoacuterica que se concentra o ensino sobre as cinco

virtudes de estilo hellenismus que consiste no uso de uma linguagem sem erro

gramatical e livre de vulgaridades clareza que eacute o uso de uma linguagem apresentada

de maneira inteligiacutevel concisatildeo ou brevidade que eacute o emprego de palavras natildeo mais do

que o estritamente necessaacuterio para apresentar um tema adequaccedilatildeo o uso de um estilo

de linguagem apropriado ao tema distinccedilatildeo que consiste em evitar o coloquialismo122

Ao utilizar todas essas recomendaccedilotildees no terreno da oratoacuteria Ciacutecero diz que isso resulta

num estilo sem fluecircncia sem vida magro compacto e insignificante ldquose algum homem

118

CICERO Op cit 2004 II17 p 32 119

CICERO On the orator book III trad H Rackham CambridgeMassachusetts Harvard University

Press 1942 (III 65) p66 120

ldquo[] pratically all adherents of the Stoic school are very able in precise argument they work by rule

and system and are fairly architects in the use of the words but transfer them from discussion to

oratorical presentation and they are found poor and unresourcefulrdquo (trad livre) CICERO Op cit

1962 (118) p 107 121

CICERO Op cit 1962 (119-120) p 107-108 122

LAEacuteRCIO D Op cit (VII-59) p 167-168 ATHERTON C Op cit p 396

54

aconselhar esse estilo seria apenas no sentido de que ele eacute inadequado para um

oradorrdquo123

Todavia eacute no campo das emoccedilotildees que a eacutetica estoica tem sua influecircncia decisiva

para a retoacuterica Uma vez que a figura normativa do saacutebio se livrou de toda pathe a

retoacuterica estoica natildeo faz uso de emoccedilotildees tradicionalmente tatildeo importantes para o orador

tais como o medo a compaixatildeo a ira ou a indignaccedilatildeo porque tudo isso satildeo impulsos

excessivos irracionais contraacuterios agrave natureza sendo errado corromper a cogniccedilatildeo dos

destinataacuterios do discurso por meio de tais artifiacutecios Assim ldquoo assentimento do puacuteblico

natildeo pode ser conquistado pelo apelo agrave compaixatildeo ou agrave admiraccedilatildeo ou despertando a sua

ira ou jogando com o seu esnobismo estupidez ou vulgaridaderdquo124

Eacute certo que o saacutebio

experimenta alguns bons sentimentos (eupatheiai) mas ainda que permitido o seu uso

no discurso o seu efeito praacutetico eacute nulo

Embora expressamente nomeada como ldquoretoacutericardquo pelos estoicos eacute difiacutecil

encaixar esse modelo discursivo dentro do quadro de referecircncias que entendemos por

retoacuterica isto eacute uma disciplina preocupada em fornecer os instrumentos necessaacuterios agrave

persuasatildeo pelo discurso Atherton nesse sentido chega agrave conclusatildeo de que ldquo[] natildeo

existe tal coisa como uma lsquoretoacuterica estoicarsquo e discuti-la natildeo eacute possiacutevel natildeo (a desculpa

usual) porque inexiste evidecircncia mas porque natildeo existe nada para falar a seu

respeitordquo125

Por isso ao comentar sobre os manuais de retoacuterica de Crisipo e de

Cleantes Ciacutecero diz que eles satildeo muito bons para quem quisesse ficar calado126

Todavia a despeito do evidente paradoxo de ensinar uma retoacuterica que natildeo tinha

o miacutenimo interesse em persuadir existia de fato uma retoacuterica estoica e ela era objeto

de ensino e de praacutetica E tanto era levada a seacuterio que existiam oradores romanos que se

guiavam por este meacutetodo Ciacutecero cita os nomes de Tuberius Fannius Rutilius e Cato

Dentre estes o uacutenico estoico que tinha perfeita eloquecircncia (summam eloquentiam) era

Cato mas a justificativa para isto eacute bem simples Cato aprendeu o que tinha de bom

para aprender com a filosofia estoica mas a retoacuterica mesmo ele estudou e praticou com

123

ldquoif any man commends this style it will only be with the qualification that it is unsuitable to an oratorrdquo

(trad livre) CICERO On the orator book II trad E W Sutton CambridgeMassachusetts Harvard

University Press 1942 (159) p 313 124

ldquoan audiencersquos assent cannot be secured by winning its pity or admiration or by arousing its anger or

by playing on its snobbery or stupidity or vulgarityrdquo (trad livre) ATHERTON C Op cit p 411

Nesse mesmo sentido cf KONSTAN D Op cit p 421 125

ldquo[hellip] there is no such thing as lsquoStoic rhetoricrsquo and discussing it is not possible not (the usual excuse)

because there is no evidence but because there is nothing to talk aboutrdquo ATHERTON C Op cit p

426 126

CICERO Op cit 2004 (IV-7) p 91

55

os mestres do discurso Publius Rutilius Rufus num outro extremo entrou para histoacuteria

como um exemplo de fracasso desse meacutetodo ao se defender no estilo estoico (triste

seco e severo) de uma injusta acusaccedilatildeo de extorsatildeo se recusou a utilizar de eloquecircncia

ou fazer qualquer apelo emotivo e acabou condenado assim como Soacutecrates127

Uma vez finalizada a exposiccedilatildeo a respeito da eacutetica e da retoacuterica estoica

finalmente temos em matildeo o posicionamento a respeito das emoccedilotildees de duas respeitadas

fontes da Antiguidade

De um lado e em resumo temos a abordagem de Aristoacuteteles que tanto em sua

eacutetica quanto na sua retoacuterica esboccedila uma visatildeo positiva a respeito do tema Haacute uma forte

articulaccedilatildeo do Estagirita no sentido de destacar a relevacircncia das emoccedilotildees nestes dois

campos No fim do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco destaca-se que a virtude da totalidade

da alma eacute dependente da virtude de suas partes (uma racional e outra natildeo-racional) No

Livro II explana-se de que modo a parte natildeo-racional iraacute desempenhar bem a sua

funccedilatildeo Assim enfatiza-se o quatildeo importante eacute ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que

significa ser afetado adequadamente pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias

Desse modo as emoccedilotildees satildeo sumamente relevantes para uma boa decisatildeo eacutetica pois

para o agente moral aristoteacutelico eacute impossiacutevel deliberar bem apenas com racionalidade

strictu sensu Por outro lado conforme jaacute frisamos a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees

adequadas e inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas

realizada no Livro II da Eacutetica a Nicocircmaco natildeo invade o domiacutenio da retoacuterica muito

menos inviabiliza a tarefa persuasiva do orador

De seu turno o posicionamento estoico a respeito das emoccedilotildees necessita ser lido

de acordo com a sua peculiar sistemaacutetica filosoacutefica o fim do progresso para os estoicos

seria alcanccedilar a compreensatildeo correta do mundo128

e atingir uma felicidade

autossuficiente As emoccedilotildees portanto estatildeo na contramatildeo de tal propoacutesito porque por

meio delas sempre avaliamos equivocadamente a realidade atribuiacutemos valores a bens a

que natildeo deveriacuteamos dar a miacutenima importacircncia agimos sobretudo mal pois natildeo

percebemos as coisas como elas realmente satildeo No entanto todo esse sistema filosoacutefico

invadiu o domiacutenio da retoacuterica originando um meacutetodo no miacutenimo sui generis porque

estava em total contraposiccedilatildeo com os fins de um discurso persuasivo A retoacuterica estoica

127

CICERO Op cit 1942 (I-229-230) CICERO Op cit 1962 (113-116) p 103-105 128

ldquoFor the founding Stoics the endpoint of progress was simply that one should come to understand the

world correctlyrdquo GRAVER M Op cit p 210

56

natildeo emprega emoccedilotildees natildeo utiliza ornamentos valoriza o miacutenimo de palavras possiacutevel e

coloca secamente os fatos para serem assentidos pelo puacuteblico

Por uacuteltimo independentemente das peculiaridades de cada sistema filosoacutefico

exposto uma coisa havia em comum entre Aristoteacuteles e os estoicos as emoccedilotildees eram

levadas extremamente a seacuterio e ambos natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar

das emoccedilotildees Mesmo para o estoicismo que se mostra uma escola tatildeo sistemaacutetica tatildeo

loacutegica que valoriza tanto a coerecircncia e a consistecircncia racional natildeo se pode negar que as

emoccedilotildees (ainda que hostilmente) entrem de maneira destacada em seu sistema

filosoacutefico Conforme destaca Sorabji os estoicos realizaram um debate de alto niacutevel

sobre o tema e ateacute hoje satildeo lembrados por isso129

129

SORABJI Richard Chrysippus ndash Posidonius ndash Seneca a high-level debate on emotion In

SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy

Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 149

57

2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A

INTERDISCIPLINARIDADE

21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo

No Capiacutetulo anterior iniciamos a exposiccedilatildeo deste trabalho oferecendo um

panorama sobre as origens da retoacuterica O objetivo da contextualizaccedilatildeo foi evidenciar

que o desenvolvimento do estudo das emoccedilotildees no discurso soacute foi possiacutevel dentro de

uma atmosfera que valorizava o debate e a fala persuasiva em puacuteblico Portanto foi

neste ambiente Grego livre e altamente retoacuterico que se observou a necessidade de se

refletir a respeito da dimensatildeo emotiva do discurso porque se chegou agrave conclusatildeo de

que a formaccedilatildeo de um juiacutezo acerca de um determinado assunto eacute dependente do estado

emocional do sujeito

Jaacute este Capiacutetulo tem outro propoacutesito pois num vieacutes mais praacutetico objetiva

investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash

MTA130

que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de

Toulmin e de Perelman-Tyteca ambas datadas de 1958 (respectivamente Os Usos do

Argumento e o Tratado da Argumentaccedilatildeo ou a Nova Retoacuterica) Aleacutem de averiguar a

relevacircncia das emoccedilotildees na MTA tambeacutem procuraremos criteacuterios de anaacutelise e de

julgamento da dimensatildeo emotiva do discurso que possam ser uacuteteis para o Capiacutetulo III

momento em que iremos realizar a anaacutelise e a avaliaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo de decisotildees

do Supremo Tribunal Federal - STF

Assim tal como fizemos no Capiacutetulo anterior tentaremos fornecer alguma

contextualizaccedilatildeo ao aparecimento da MTA pois como natildeo existe conhecimento

humano a-histoacuterico toda novidade do pensamento vem comprometida com os seus

problemas de eacutepoca

Para tanto a nossa intenccedilatildeo consiste em perquirir que tipo de discurso

caracterizou o contexto poliacutetico europeu que precedeu o surgimento da MTA A poliacutetica

sempre seraacute uma influecircncia importante no que diz respeito a uma teoria que se proponha

agrave anaacutelise e agrave avaliaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo E isso natildeo apenas porque a retoacuterica que eacute o

seu antecedente teoacuterico considerava desde o iniacutecio o discurso poliacutetico como um dos

130

Utilizamos a expressatildeo ldquoModerna Teoria da Argumentaccedilatildeordquo para contrastar com a Teoria da

Argumentaccedilatildeo aristoteacutelica aderindo agrave terminologia de Cristof Rapp e Tim Wagner RAPP Cristof

WAGNER Tim On some aristotelian sources of modern argumentation theory In Argumentation

Journal vol 27 Issue 1 2013 p 7-30

58

seus gecircneros por excelecircncia de discurso mas porque o discurso da esfera poliacutetica por

ter a qualidade de atingir a todos indistintamente acaba por ser um ponto comum de

reflexatildeo sobre a forma de teorizar a argumentaccedilatildeo

Assim e considerando tal finalidade eacute difiacutecil escolher outro evento poliacutetico que

natildeo os movimentos totalitaacuterios para falar neste toacutepico E desde jaacute sobressai uma

especiacutefica forma de comunicaccedilatildeo atraveacutes do qual tais movimentos estabeleciam contato

com a massa a propaganda

Embora hoje a palavra ldquopropagandardquo seja frequentemente associada a uma

informaccedilatildeo de conteuacutedo enganoso Kallis lembra que no iniacutecio do seacuteculo XX ela natildeo

desfrutava de tatildeo maacute-fama pois era empregada de modo mais isento a fim de

descrever um modo de gestatildeo da informaccedilatildeo com o objetivo de comunicar a um grande

nuacutemero de indiviacuteduos e assim obter uma especiacutefica resposta destes Dessa forma a

propaganda como espeacutecie de comunicaccedilatildeo e de persuasatildeo caracteriacutestica da

modernidade aparece com o objetivo de (i) suprir a enorme demanda de informaccedilatildeo e

de formaccedilatildeo de opiniatildeo da crescente esfera puacuteblica (ii) facilitar atraveacutes de variados

meios a absorccedilatildeo de tais informaccedilotildees131

Poreacutem para aleacutem da simples difusatildeo de informaccedilatildeo a propaganda sendo

absorvida na engrenagem do Estado aparece com outros objetivos tais como a

integraccedilatildeo a orientaccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo a continuidade a diversatildeo Diante de

sociedades saturadas com tanta informaccedilatildeo a propaganda possibilita a criaccedilatildeo de um

ambiente comunicativo comum carregado de siacutembolos significados e desejos

compartilhados Ela tambeacutem orienta e mobiliza o indiviacuteduo em direccedilatildeo a determinados

comportamentos e accedilotildees traz uma narrativa que promove uma continuidade no tempo

conectando passado presente e futuro por fim tem a capacidade de promover diversatildeo

e relaxamento evitando o cansaccedilo132

Todos estes objetivos satildeo de suma importacircncia no contexto de naccedilotildees em guerra

e eacute em tal conjuntura histoacuterica que o debate acerca de uma abordagem sistemaacutetica sobre

a propaganda se desenvolve conforme explana Kallis

Natildeo eacute coincidecircncia que o debate sobre a formulaccedilatildeo de uma

abordagem sistemaacutetica para a lsquopropagandarsquo emergiu no contexto da

Primeira Guerra Mundial na Alemanha e em outros lugares Numa

eacutepoca de completa mobilizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo de um objetivo

nacional (tal como a vitoacuteria no confronto militar) a necessidade por

131

KALLIS Aristotle A Nazi propaganda and the second world war New York Palgrave

Macmillan 2005 p 1 132

Id ibid p 2

59

estrateacutegias de informaccedilatildeo metoacutedicas e eficientes que viessem reforccedilar

a moral do front nacional e mobilizassem toda a sociedade era

particularmente destacada133

Ellul ressalta que para atingir seus propoacutesitos comunicativos e ser de fato

efetiva a propaganda precisa ser total isto eacute ela necessita utilizar todas as miacutedias

disponiacuteveis no momento (televisatildeo raacutedio filme jornal revista internet etc) Uma vez

que cada tecnologia por suas proacuteprias caracteriacutesticas tem uma esfera de alcance

limitada haacute necessidade de que uma miacutedia complemente a outra de modo a realizar

uma completa dominaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo134

Em relaccedilatildeo aos efeitos sobre os seus destinataacuterios a propaganda eacute acusada de

irrestrita manipulaccedilatildeo Natildeo haacute mais pensamento e accedilatildeo orientados por uma ideologia

espontacircnea Tudo resta condicionado pela trilha deliberadamente condutora da

propaganda Atraveacutes da criaccedilatildeo de estereoacutetipos enfraquece-se a capacidade de criacutetica e

de reflexatildeo da populaccedilatildeo Os detalhes e as contradiccedilotildees de opiniotildees individuais satildeo

eliminados a fim de que tudo reste homogeneizado Quanto mais potente a propaganda

mais fraco eacute o dissenso jaacute que o pensamento puacuteblico se esgota em raciociacutenios

simploacuterios maniqueiacutestas sem qualquer complexidade135

Ademais apoacutes a ingerecircncia da propaganda o que antes eram apenas sentimentos

sociais vagos e dispersos transformam-se em ideias delineadas Ellul aponta um dos

grandes trunfos para a propaganda atingir tamanho sucesso persuasivo o uso das

emoccedilotildees ldquoIsto eacute ainda mais notaacutevel porque a propaganda como vimos age muito mais

atraveacutes de choque emocional do que por convicccedilatildeo racionalrdquo136

Nada eacute mais interessante poreacutem do que ler os proacuteprios mentores da propaganda

discorrerem a respeito do tema a fim de realmente compreender de que modo eles

enxergavam o papel da propaganda no seu projeto poliacutetico e qual valor atribuiacuteam agraves

emoccedilotildees no intento persuasivo A este respeito no arquivo alematildeo de propaganda satildeo

valiosas as informaccedilotildees contidas no perioacutedico mensal do partido nazista Unser Wille

133

ldquoit is no coincidence that the debate about the formulation of a systematic approach to lsquopropagandarsquo

emerged in the context of the First World War in Germany and elsewhere At a time of full mobilisation

for the attainment of a national goal (such as victory in the military confrontation) the need for

methodical and efficient information strategies that would bolster the morale of the home front and

mobilise society was particularly highlightedrdquo (trad livre) Id ibid p 2 134

ELLUL Jacques Propaganda the formation of menrsquos attitudes trad Konrad Kellen e Jean Lerner

New York Vintage Book 1973 p 9 135

Id ibid p 201-206 136

ldquoThis is all the more remarkable because propaganda as we have seen acts much more through

emotional shock than through reasoned convictionrdquo (trad livre) Id ibid p 204

60

und Weg (Nosso Desejo e Caminho) publicado entre 1931 a 1941 e direcionado a

instruir os seus propagandistas

No perioacutedico de inauguraccedilatildeo em 1931 Goebbels foi bastante direto em afirmar

a suma importacircncia da propaganda no afatilde de alcanccedilar o almejado poder poliacutetico A

propaganda nacional socialista teria a missatildeo de transformar o caraacuteter da populaccedilatildeo e

para tanto precisaria traduzir numa linguagem clara e acessiacutevel toda a teoria nazista

Com a ajuda indispensaacutevel da engrenagem propagandiacutestica o partido ganharia novos

membros e eleitores e convenceria a todos a respeito do acerto de suas ideias

Assim a propaganda nacional-socialista eacute o aspecto mais importante

da nossa atividade poliacutetica Ela estaacute no primeiro plano dos nossos

objetivos praacuteticos Sem ela todo o nosso conhecimento seria inuacutetil

sem efeito

[]

A propaganda nacional-socialista serve para educar o povo Sua tarefa

natildeo eacute apenas ganhaacute-los para as tarefas de hoje mas ajudar na

transformaccedilatildeo de caraacuteter das grandes massas Estamos convencidos de

que uma nova poliacutetica na Alemanha soacute eacute possiacutevel apoacutes uma completa

transformaccedilatildeo do nosso caraacuteter nacional depois de toda uma nova

maneira nacional de pensar137

Em 1934 num artigo intitulado Politische Propaganda (Propaganda Poliacutetica)

Schulze-Wechsungen novamente enfatizou o papel da propaganda nacional socialista no

intuito de conquistar a populaccedilatildeo alematilde Para isso exalta-se o poder que a propaganda

possui de trabalhar as emoccedilotildees do povo pois sem isso restaria impossiacutevel atingir

convincentemente as massas

Poucas pessoas satildeo capazes de trazer o coraccedilatildeo e a mente em pleno

acordo A propaganda frequentemente tem particular importacircncia na

medida em que fala para as emoccedilotildees em vez de para o puro intelecto

O indiviacuteduo bem como as massas estatildeo sujeitos a lsquoatitudesrsquo suas

emoccedilotildees determinam sua condiccedilatildeo O poliacutetico natildeo pode friamente

ignorar essas emoccedilotildees ele deve reconhecer e compreendecirc-las se

deseja escolher o que eacute adequado da propaganda para atingir seus

objetivos138

137

ldquoThus National Socialist propaganda is the most important aspect of our political activity It is in the

foreground of our practical goals Without it all our knowledge would be fruitless without effect

[hellip]

National Socialist propaganda serves to educate the people Its task is not only to win them for the tasks

of today but to assist in the transformation of the character of the broad masses We are convinced that a

new politics in Germany is possible only after a complete transformation of our national character after

an entirely new national way of thinkingrdquo (trad livre) GOEBBELS Joseph Will and way In Wille und

Weg vol 1 1931 p 2-5 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-

archivewillehtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 138

ldquoFew people are able to bring heart and mind into full agreement Propaganda often has particular

importance in that it speaks to the emotions rather than to pure understanding The individual as well as

the masses are subject to lsquoattitudesrsquo their emotions determine their condition The politician may not

coldly ignore these emotions he must recognize and understand them if he is to choose the proper of

propaganda to reach his goalsrdquo (trad Livre) SCHULZE-WECHSUNGEN Politische propaganda In

61

Poreacutem eacute num artigo de tiacutetulo bastante sugestivo ldquoCoraccedilatildeo ou Razatildeordquo de 1937

direcionado para os oradores do partido que se discute espirituosamente qual eacute a

melhor forma de obter adesatildeo das pessoas que vatildeo aos encontros do partido Apoacutes

alguma explanaccedilatildeo realiza-se de iniacutecio uma forte criacutetica a certos oradores que buscam

apresentar as ideias do nacional-socialismo num estilo matemaacutetico por meio de

argumentos precisos de estatiacutestica cheios de detalhes tal como os oradores estoicos

talvez fariam ldquoexistem oradores que investigam e esculpem o seu assunto com exatidatildeo

quase cientiacutefica e esquecem totalmente que eles deveriam estar pregando uma visatildeo de

mundordquo139

Assim lembra-se que caso os primeiros oradores do partido nazista buscassem

novos adeptos por meio de um discurso cientiacutefico matemaacutetico cheios de detalhes eles

ainda estariam tentando conquistar o poder Portanto um discurso racional seria a pior

das opccedilotildees para os propoacutesitos do partido

Desse modo a soluccedilatildeo parece bastante evidente o discurso precisaria sair do

coraccedilatildeo do orador para o coraccedilatildeo dos seus destinataacuterios Em outras palavras caso

pretenda sucesso a comunicaccedilatildeo precisaria ser emotiva porque o ecircxito da fundaccedilatildeo do

partido assim como o caminho ateacute a conquista do poder ocorreu desta maneira O

convencimento do povo alematildeo natildeo poderia ser feito de modo racional

O orador e ele era a forccedila do corpo de oradores do nacional

socialismo natildeo falou para a razatildeo mas para o coraccedilatildeo Ele falou de

seu coraccedilatildeo para o coraccedilatildeo do seu ouvinte E tatildeo melhor ele

compreendeu como executar este apelo para o coraccedilatildeo tatildeo melhor ele

explorou isso e tatildeo mais receptivo foi o puacuteblico agrave sua mensagem

Naquele tempo algueacutem natildeo poderia completamente persuadir o povo

alematildeo pelo argumento racional as coisas funcionaram mal para os

partidos que tentaram essa abordagem As pessoas foram conquistadas

pelo homem que atingiu a corda que os outros tinham ignorado ndash as

sensaccedilotildees o sentimento ou como se queira chamaacute-lo o coraccedilatildeo140

Unser wille und weg vol 4 1934 p 323-332 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-

propaganda-archivepolprophtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 139

ldquoThere are speakers who investigate and carve up their subject with almost scientific exactitude and

utterly forget that they are supposed to be preaching a worldviewrdquo (trad livre) RINGLER Hugo Heart

or Reason what we donrsquot want from our speakers In Unser wille und weg vol 7 1937 p 245-249

Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-archiveringlerhtm Acesso em 11 de

janeiro de 2015 140

ldquoThe speaker and he was the strength of the National Socialist Speakerrsquos Corps spoke not to the

understanding but to the heart He spoke out of his heart into the heart of his listener And the better he

understood how to execute this appeal to the heart the more willingly he exploited it and the more

receptive was the audience to his message One could not at all at that time persuade the German people

by rational argument things worked out badly for parties that tried that approach The people were won

by the man who struck the chord that others had ignored mdash the feelings the sentiment or as one wants to

62

Diante de tudo o quanto foi aqui exposto se pudermos eleger algo traumaacutetico

com o qual a MTA teve que lidar jaacute no seu nascimento natildeo poderia haver melhor

candidato do que todo esse modelo de propaganda defendido pelos movimentos

totalitaacuterios e especialmente todo o forte apelo emotivo envolvido em seu discurso

Plantin baseado na classificaccedilatildeo encontrada na obra de Tchakhotine (ldquoa

violaccedilatildeo das massas pela propaganda poliacuteticardquo) lembra que a propaganda dos regimes

totalitaacuterios eacute considerada uma ldquosensopropagandardquo pois se caracteriza pelo apelo aos

sentimentos irracionais do indiviacuteduo Em contraposiccedilatildeo alega a existecircncia de uma

ldquoratiopropagandardquo isto eacute uma propaganda baseada na razatildeo141

Portanto eacute neste contexto pela busca de uma ldquoratiopropagandardquo e de um

repensar sobre o logos que os estudos da argumentaccedilatildeo reaparecem com o preciso fim

de rechaccedilar o modelo de discurso totalitaacuterio fundado em emoccedilotildees e possibilitar o

surgimento de um padratildeo de discurso racional que viabilizasse a democracia142

22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as

emoccedilotildees no discurso

Neste toacutepico iniciando efetivamente a busca por criteacuterios para anaacutelise e

avaliaccedilatildeo do discurso emotivo a ser realizado no Capiacutetulo III intencionamos realizar a

investigaccedilatildeo da importacircncia das emoccedilotildees para Viehweg Toulmin e Perelman-Tyteca

A nossa escolha por tais autores justifica-se por razotildees evidentes ao mesmo

tempo em que satildeo os precursores contemporacircneos de toda uma geraccedilatildeo de estudiosos da

argumentaccedilatildeo e da retoacuterica guardando por isso uma proeminente posiccedilatildeo simboacutelica

em qualquer estudo sobre o assunto tais autores chegaram a elaborar cada qual uma

abordagem teoacuterica proacutepria

Ressalte-se que o fato de termos no Capiacutetulo I investigado a importacircncia das

emoccedilotildees na retoacuterica aristoteacutelica nos coloca agora num local privilegiado Isso porque

natildeo apenas jaacute sabemos nesta altura do trabalho como foi elaborada teoricamente a

primeira abordagem emotiva do discurso em nosso pensamento ocidental mas tambeacutem

call it the heartrdquo (trad livre) Id ibid Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-

archiveringlerhtm Acesso em 11 de janeiro de 2015 141

PLANTIN Christian A argumentaccedilatildeo histoacuteria teorias perspectivas trad Marcos Marcionilo Satildeo

Paulo Paraacutebola Editorial 2013 p 20-21 142

Id ibid p 21

63

temos em matildeo um referencial fundamental para prosseguir nesta obra uma vez que

Aristoacuteteles foi o ponto de partida para a MTA

Isso natildeo significa dizer ressalta Rapp-Wagner que todos os teoacutericos da MTA

satildeo em um ou em outro sentido aristoteacutelicos mas que eles foram significativamente

influenciados pela teoria aristoteacutelica da argumentaccedilatildeo143

Em relaccedilatildeo a Toulmin e Perelman-Tyteca destaca-se que ldquoo programa que eacute

realizado no Usos do Argumento e na Nova Retoacuterica elabora algo como uma mistura da

Toacutepica e da Retoacuterica de Aristoacuteteles []rdquo144

Assim enquanto o esquema argumentativo

de Toulmin estaacute mais proacuteximo da Toacutepica o de Perelman-Tyteca estaacute da Retoacuterica Desse

modo a pergunta que fazemos eacute a seguinte teriam estes autores sido influenciados

tambeacutem pela abordagem aristoteacutelica das emoccedilotildees

Antes de analisar os chamados ldquopais fundadoresrdquo da Moderna Teoria da

Argumentaccedilatildeo (Toulmin e Perelman-Tyteca) conveacutem examinar em primeiro lugar o

pensamento de Viehweg que se natildeo eacute costumeiramente chamado de um fundador da

MTA pode-se dizer que foi um dos importantes precursores de tal movimento e

justifica uma anaacutelise neste mesmo toacutepico

Em 1953 Viehweg lanccedila a primeira ediccedilatildeo da sua obra Toacutepica e Jurisprudecircncia

que se dedica a investigar a relaccedilatildeo entre o saber juriacutedico e a retoacuterica Partindo do

trabalho de Vico ldquoDe nostre temporis studiorum rationerdquo que realiza uma comparaccedilatildeo

entre o meacutetodo de estudo da Antiguidade (retoacutericotoacutepico) e o da modernidade

(criacuteticocartesiano) a fim de demonstrar as desvantagens deste uacuteltimo e sua

inaplicabilidade agrave sabedoria praacutetica Viehweg problematiza a utilizaccedilatildeo dos modelos

oriundos das ciecircncias exatas para a estruturaccedilatildeo do pensamento juriacutedico conforme

expotildee Roesler

A partir da alusatildeo de Vico o problema que move a investigaccedilatildeo de

Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a

sistematizaccedilatildeo dedutiva pretendida pelos modelos matematizantes de

ciecircncia que predominaram a partir do seacuteculo XVII ser inadequada

para organizar o saber juriacutedico e dele retirar ou nele ocultar

caracteriacutesticas fundamentais145

Assim a preferecircncia do autor alematildeo pelo uso do vocaacutebulo ldquoJurisprudecircnciardquo um

termo que alude agrave eacutetica da Antiguidade claacutessica ao inveacutes de ldquoCiecircncia do Direitordquo o

143

RAPP C WAGNER T Op cit p 8 144

ldquothe program that is carried out in The Use of Arguments and in The New Rhetoric elaborates on

something like a blend of Aristotlersquos Topics and Rhetoric [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 8 145

ROESLER Claacuteudia Rosane Theodor Viehweg e a Ciecircncia do Direito toacutepica discurso racionalidade

Arraes Editores Belo Horizonte 2013 p 23

64

qual transmitiria a ideia de um saber rigorosamente cientiacutefico demostra a sua atitude

questionadora em relaccedilatildeo ao padratildeo cientiacutefico elaborado a partir de Descartes e

supostamente emprestaacutevel ao direito146

Resgatando o pensamento de Aristoacuteteles e de Ciacutecero e observando que o saber

juriacutedico eacute uma teacutecnica orientada para a soluccedilatildeo de problemas a tese de Viehweg se

funda na ideia de que a Jurisprudecircncia possui uma estrutura toacutepica Para o filoacutesofo

germacircnico o aspecto mais importante da toacutepica eacute ser uma teacutecnica de pensamento que

enfatiza os problemas ldquoa funccedilatildeo dos topoi e eacute indiferente que esses topoi se

apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais consiste pois no fato de servir

agrave discussatildeo dos problemasrdquo147

A relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia reside justamente nesse liame Ambas se

orientam pelo problema E por isso uma teacutecnica que privilegie o tratamento de

problemas se revela mais adequada ao direito

Se a Jurisprudecircncia for uma aacuterea de problemas na qual nunca se pode

afastar completamente a irrupccedilatildeo de questotildees novas e a necessidade

de reavaliar as premissas jaacute preparadas anteriormente ou seja na qual

o problema eacute um dado constante e natildeo eliminaacutevel entatildeo podemos

pensar que a toacutepica enquanto procedimento de busca de premissas

confere-lhe a estrutura fundamental148

Ora mas se Viehweg evidencia a relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia e

demonstra a partir do trabalho teoacuterico de Aristoacuteteles e de Ciacutecero a importacircncia da

retoacuterica para o direito ele natildeo chega a explorar o viacutenculo entre as emoccedilotildees e a

argumentaccedilatildeo juriacutedica149

Eacute verdade conforme enfatiza Roesler que o referido autor

natildeo propotildee realizar uma anaacutelise exaustiva sobre o tema Mas eacute certo dizer por outro

lado que natildeo temos na abordagem de Viehweg nenhuma tentativa de anaacutelise da

relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo juriacutedica150

146

ROESLER C R O papel de Theodor Viehweg na fundaccedilatildeo das teorias da argumentaccedilatildeo juriacutedica

Revista Eletrocircnica Direito e Poliacutetica Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Ciecircncia Juriacutedica da

UNIVALI Itajaiacute v 4 n 3 3ordm quadrimestre de 2009 pp 36-54 p 39 147

VIEHWEG Theodor Toacutepica e Jurisprudecircncia uma contribuiccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo dos fundamentos

juriacutedico-cientiacuteficos trad Kelly Susane Alflen da Silva Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2008

p 39 148

ROESLER C ROp cit 2013 p 142 149

Sobre a importacircncia da toacutepica ciceroniana em Viehweg cf ROESLER C R CARVALHO Angelo

Gamba Prata de A recepccedilatildeo da Toacutepica ciceroniana em Theodor Viehweg In Direito amp Praxis vol 6 nordm

10 2015 p 26-48 150

A partir do trabalho de Viehweg surge na Alemanha a Escola de Mainz e a retoacuterica analiacutetica atraveacutes

de Ballweg e Sobota No Brasil Adeodato defende uma retoacuterica realista como meacutetodo para o estudo do

direito Cf ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Uma Teoria Retoacuterica da Norma Juriacutedica e do Direito Subjetivo

Satildeo Paulo Editora Noeses 2011 Sobre uma anaacutelise retoacuterica da corte constitucional brasileira e alematilde cf

65

De outra parte o modelo de anaacutelise de argumentos desenvolvido por Toulmin

realiza uma criacutetica ao modo pelo qual a loacutegica formal vinha sendo aplicada ao campo da

argumentaccedilatildeo Logo na abertura da sua obra ele demonstra a preocupaccedilatildeo pela maneira

como os argumentos satildeo utilizados na praacutetica e pela forma como satildeo teorizados151

Assim sua abordagem preocupa-se em desenvolver um modelo racional de anaacutelise com

o objetivo de alargar o campo da loacutegica isto eacute possibilitar ldquo[] uma transformaccedilatildeo da

loacutegica de ciecircncia formal em ciecircncia praacuteticardquo152

Em seu conhecido layout de argumentos estatildeo presentes seis elementos uma

conclusatildeo ou alegaccedilatildeo (claim) que eacute afirmada com base em um dado (date) o qual eacute

uma informaccedilatildeo ou algo conhecido do qual se pode tirar uma conclusatildeo uma garantia

(warrant) que eacute considerada uma lei de passagem isto eacute ela autoriza o passo

argumentativo entre o dado e a alegaccedilatildeoconclusatildeo um suporte (backing) que por

vezes eacute necessaacuterio para reforccedilar a garantia um modalizador ou qualificador (qualifier)

que eacute uma espeacutecie de atenuante (ldquomitigadorrdquo) entre a passagem dos dados para a

conclusatildeo e a refutaccedilatildeorestriccedilatildeo (rebuttal) que satildeo aplicadas agrave garantia a fim de retirar

sua autoridade geral

Apoacutes descrever tais elementos natildeo eacute preciso ir mais longe para observar que

este modelo natildeo busca analisar a dimensatildeo emotiva do discurso Por meio dele eacute

possiacutevel fazer certos tipos de anaacutelise mas natildeo a que noacutes pretendemos realizar As

noccedilotildees de orador e de auditoacuterio estatildeo ausentes natildeo havendo a integraccedilatildeo de tal layout a

um esquema comunicativo153

E eacute por isso que se coloca Toulmin mais perto da

dialeacutetica do que da retoacuterica

Por sua vez em relaccedilatildeo ao modelo de Perelman-Tyteca a influecircncia da retoacuterica

eacute observada de imediato no proacuteprio tiacutetulo do trabalho ldquoTratado da Argumentaccedilatildeo ou a

Nova Retoacutericardquo O desenvolvimento de sua Nova Retoacuterica representa uma criacutetica ao

racionalismo cartesiano conforme eacute deixado claro logo no iniacutecio da obra ldquoa publicaccedilatildeo

de um tratado consagrado agrave argumentaccedilatildeo e sua vinculaccedilatildeo a uma velha tradiccedilatildeo a da

a tese de doutorado de Isaac Costa Reis Limites agrave legitimidade da jurisdiccedilatildeo constitucional anaacutelise

retoacuterica das cortes constitucionais do Brasil e da Alemanha 2013 Recife UFPE 151

TOULMIN Stephen E Os usos do argumento trad Reinaldo Guarany Satildeo Paulo Martins Fontes

2006 p 2 152

BRETON Philippe GAUTHIER Gilles Histoacuteria das teorias da argumentaccedilatildeo trad Maria

Carvalho Lisboa Editorial Bizacircncio 2001 p 75-76 153

MICHELI Raphaeumll Lrsquoeacutemotion argumenteacutee lrsquoabolition de la peine de mort dans le deacutebat

parlamentaire franccedilais Paris Les Eacuteditions du Cerf 2010a p 73

66

retoacuterica e da dialeacutetica gregas constituem uma ruptura com uma concepccedilatildeo da razatildeo e do

raciociacutenio oriunda de Descartes []rdquo154

Assim Perelman-Tyteca retomam as noccedilotildees de orador e de auditoacuterio afirmando

expressamente que este eacute o campo da retoacuterica tradicional que especialmente lhes atrai

atenccedilatildeo Todo discurso se dirige a um determinado grupo de indiviacuteduos Todo texto

escrito ainda que redigido solitariamente imagina dirigir-se a algueacutem A maacute-fama da

retoacuterica na Antiguidade estava ligada ao fato de que buscava persuadir um puacuteblico de

ignorantes e de que natildeo realizava um trabalho de investigaccedilatildeo seacuterio155

Os referidos autores realizam a distinccedilatildeo entre persuadir e convencer vinculada agrave

noccedilatildeo de auditoacuterio universal O convencimento estaacute preocupado com o caraacuteter racional

da argumentaccedilatildeo e por isso a persuasatildeo guarda um estatuto teoacuterico inferior Uma

argumentaccedilatildeo persuasiva eacute dirigida a um auditoacuterio particular enquanto uma

argumentaccedilatildeo convincente busca a adesatildeo de todo o conjunto de seres racionais Ao

argumentar para o auditoacuterio universal o sujeito deve convencer ldquo[] do caraacuteter coercivo

das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta

independentemente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo156

Particularmente quanto agraves emoccedilotildees todavia natildeo houve nenhuma recepccedilatildeo da

retoacuterica antiga No sumaacuterio da obra natildeo haacute qualquer referecircncia ao tema Se numa

pesquisa para a palavra ldquorazatildeordquo encontramos 396 (trezentos e noventa e seis)

referecircncias para a palavra ldquoemoccedilatildeordquo encontramos 13 (treze) referecircncias

Ainda assim Plantin identifica esparsamente as seguintes perspectivas sobre as

emoccedilotildees na Nova Retoacuterica (i) uma abordagem psicoloacutegica para a qual as emoccedilotildees satildeo

elementos de perturbaccedilatildeo do discurso (i) uma abordagem filosoacutefica fundada no topos

ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo (iii) uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor por meio do qual este

uacuteltimo eacute visto como menos pejorativo e (iv) um recurso que pode demonstrar

sinceridade157

Sob a influecircncia da psicologia da eacutepoca que entendia as emoccedilotildees como

perturbadoras da accedilatildeo158

o Tratado da Argumentaccedilatildeo esposa em certo trecho uma

compreensatildeo das emoccedilotildees como degradaccedilatildeo do ato linguiacutestico ldquoos indiacutecios de paixatildeo

154

PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo a nova retoacuterica

trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 p 1 155

Id ibid p 7 156

Id ibid p 35 157

PLANTIN Christian Les bonnes raisons des eacutemotions principes et meacutethode pour lrsquoeacutetude du

discours eacutemotionneacute Berne Peter Lang 2011 p 49 158

Id ibid p 49

67

podem pois dar azo a figuras a hesitaccedilatildeo o hipeacuterbato ou inversatildeo que substitui a

ordem natural da frase por uma ordem nascida da paixatildeordquo159

Em outra parte da obra

anota-se que a excitaccedilatildeo decorrente das emoccedilotildees deturpa a argumentaccedilatildeo do homem

apaixonado que soacute se preocupa consigo mesmo e perde a noccedilatildeo das pessoas a quem seu

discurso se destina ldquoo homem apaixonado enquanto argumenta o faz sem levar

suficientemente em conta o auditoacuterio a que se dirigerdquo160

Numa outra perspectiva realiza-se uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor do

seguinte modo as emoccedilotildees podem possuir uma acepccedilatildeo negativa sendo obstaacuteculos na

argumentaccedilatildeo ou podem servir de suporte para uma argumentaccedilatildeo positiva Nesta

uacuteltima hipoacutetese a fim de se livrarem de sua carga semacircntica negativa as emoccedilotildees seratildeo

nomeadas de valores ldquohaacute que notar que as paixotildees enquanto obstaacuteculo natildeo devem ser

confundidas com as paixotildees que servem de apoio a uma argumentaccedilatildeo positiva e que

habitualmente seratildeo qualificadas por meio de um termo menos pejorativo como

valorrdquo161

A despeito dos trechos acima citados que demonstram uma concepccedilatildeo negativa

das emoccedilotildees natildeo existe nenhum tratamento sistemaacutetico do assunto natildeo tendo a retoacuterica

antiga sido recepcionada neste ponto Todavia considerando que a obra sob anaacutelise se

trata de uma ldquoNova Retoacutericardquo a ausecircncia de um tema que Aristoacuteteles dedicou tanto

espaccedilo conforme visto no Capiacutetulo I natildeo deixa de ser simboacutelica Mesmo que o objetivo

da obra de Perelman-Tyteca consista no alargamento do campo da racionalidade parece

estar impliacutecito que o orador da Nova Retoacuterica deve convencer sem se emocionar

Por uacuteltimo eacute preciso dizer que natildeo surpreende o fato de que os autores acima

estudados natildeo se interessaram pelo estudo das emoccedilotildees Considerando o contexto em

que as obras emergiram tal como discutido no toacutepico precedente este tema era um

interdito para eacutepoca Aliaacutes Perelman-Tyteca tinham plena consciecircncia de que estavam

vivendo no seacuteculo da publicidade e da propaganda como afirmam no iniacutecio da sua

obra162

Portanto pode-se afirmar que o trabalho dos ldquopais fundadoresrdquo se situa melhor

num campo de reflexatildeo sobre o logos

159

PERELMAN C Op cit p 518 160

PERELMAN C Op cit p 27 161

PERELMAN COp cit p 539 162

PERELMAN C Op cit p 5

68

23 As emoccedilotildees falaciosas

Antes de dar o proacuteximo passo e realizar no toacutepico subsequente um estudo

acerca de uma abordagem normativa sobre as emoccedilotildees eacute preciso discutir neste toacutepico

a questatildeo das falaacutecias e a sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees

As falaacutecias satildeo um dos temas centrais para qualquer teoria da argumentaccedilatildeo

Eemeren aponta que a qualidade de uma teoria da argumentaccedilatildeo estaacute diretamente

relacionada agrave maneira pela qual ela compreende as falaacutecias Assim ldquose uma teoria da

argumentaccedilatildeo consegue lidar com as falaacutecias de um modo satisfatoacuterio trata-se de um

teste positivo para o alcance e para o poder de explanaccedilatildeo de tal teoriardquo163

Isso porque uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa necessariamente oferecer

criteacuterios e normas para avaliar quando argumentaccedilotildees satildeo ou natildeo razoaacuteveis Desse

modo diz-se que as falaacutecias satildeo ardis contaminantes da argumentaccedilatildeo que caso

passem despercebidas deturpam completamente a racionalidade do discurso Em outras

palavras satildeo perigosas camuflagens que necessitam ser identificadas na

argumentaccedilatildeo164

Natildeo haacute em grego uma palavra que corresponda exatamente ao vocaacutebulo

ldquofalaacuteciardquo o seu correspondente seria ldquosofismardquo165

Falaacutecia portanto deriva do termo

em latim ldquofallaciardquo que por sua vez tem sua origem no verbo grego ldquosphalrdquo que

significa ldquocausar uma quedardquo Walton destaca que este significado eacute consistente com a

ideia aristoteacutelica de refutaccedilatildeo sofiacutestica como algo intencionalmente enganoso ou um

truque argumentativo utilizado com o objetivo de ldquocausar uma quedardquo no adversaacuterio166

Por sinal Aristoacuteteles eacute considerado um dos fundadores da disciplina Em sua

Refutaccedilotildees Sofiacutesticas ele oferece um tratamento sistemaacutetico para identificar quando um

argumento eacute incorreto ou enganoso Para o Estagirita uma falaacutecia eacute invariavelmente

uma inferecircncia que aparenta ser um silogismo poreacutem sem ser conclusivo Portanto

163

ldquoIf an argumentation theory can deal with fallacies in a satisfactory way this is a positive test as to the

scope and explanatory power of that theoryrdquo (trad livre) EEMEREN Frans van GARSSEN Bart

MEUFFELS Bert Fallacies and judgments of reasonableness empirical research concerning the

pragma-dialectics discussion rules New York Springer 2009 p 1 164

EEMEREN Frans H van et al Handbook of argumentation theory New York Springer 2014 p

25 165

HAMBLIN Charles L Fallacies London Methuen CO LTD 1970 p 50 166

WALTON Douglas The place of emotion in argument Pennsylvania The Pennsylvania State

University Press 1992 p 17

69

diante de uma falaacutecia o sujeito se encontra num estado de ilusatildeo porque imagina que a

conclusatildeo decorreu das premissas oferecidas167

Todavia o tratamento aristoteacutelico das falaacutecias foi modernamente objeto de

criacuteticas Ao utilizar conceitos metafiacutesicos como ldquopropriedade essencialrdquo ou

ldquopropriedade acidentalrdquo ou dirigir-se restritivamente apenas agrave dialeacutetica a abordagem

aristoteacutelica passou a ser considerada insuficiente para lidar com a complexidade do atual

estado de arte da argumentaccedilatildeo168

Uma das mais importantes contribuiccedilotildees acerca do tema em comentaacuterio e que

particularmente nos interessa consiste no desenvolvimento das chamadas ldquofalaacutecias adrdquo

Neste campo de estudo atribui-se a John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento

Humano de 1690 a invenccedilatildeo dos argumentos ad Tendo em vista a relevacircncia histoacuterica

para a mateacuteria transcreve-se a seguir o trecho em que o filoacutesofo anuncia o seu

pensamento

Antes de encerrar este assunto pode valer a pena utilizar o nosso

tempo para refletir um pouco sobre quatro tipos de argumentos que os

homens nos seus raciociacutenios com os outros normalmente fazem uso

para prevalecer o seu assentimento ou pelo menos para impressionaacute-

los assim como para silenciar sua oposiccedilatildeo

O primeiro eacute alegar as opiniotildees de homens cujas partes

aprendizagem eminecircncia poder ou alguma outra causa ganhou um

nome e estabeleceu sua reputaccedilatildeo no estima comum com algum tipo

de autoridade

[]

Isso eu acho que pode ser chamado de argumentum ad verecundiam

Em segundo lugar uma outra maneira que os homens normalmente

utilizam para conduzir os outros forccedilaacute-los a submeter aos seus juiacutezos

assim como receber a sua opiniatildeo em debate consiste em exigir que o

adversaacuterio admita como prova aquilo que eles alegam ou que

designem uma melhor E isto eu chamo argumentum ad ignorantiam

Uma terceira maneira eacute pressionar um homem com as consequecircncias

extraiacutedas de seus proacuteprios princiacutepios ou concessotildees Isto jaacute eacute

conhecido sob o nome de argumentum ad hominem

O quarto argumento sozinho nos avanccedila em direccedilatildeo ao conhecimento

e ao julgamento O quarto eacute usado de provas extraiacutedas de qualquer um

dos fundamentos do conhecimento ou probabilidade Isso eu chamo de

argumentum ad judicium Este por si soacute de todos os quatro traz a

verdadeira instruccedilatildeo com ela e nos avanccedila em nosso caminho para o

conhecimento169

167

RAPP C WAGNER T Op cit 2013 p 27 168

Id ibid p 27 169

ldquoBefore we quit this subject it may be worth our while a little to reflect on four sorts of arguments

that men in their reasonings with others do ordinarily make use of to prevail on their assent or at least to

awe them as to silence their opposition

The first is to allege the opinions of men whose parts learning eminency power or some other cause

has gained a name and settled their reputation in the common esteem with some kind of authority

70

Locke registra que estas espeacutecies de argumento (argumentum ad verecundiam

ad ignoratiam ad hominem) satildeo utilizadas geralmente quando algueacutem deseja obter

ecircxito na discussatildeo pois se destinam a impressionar a fazer prevalecer o entendimento

exposto e a emudecer o oponente Resta evidente que o filoacutesofo aqui se refere a um

modelo interativo de discurso (dialeacutetica) Ademais conveacutem notar que embora as obras

de loacutegica passaram a tratar tais argumentos como falaacutecias natildeo se observa qualquer

comentaacuterio em tal sentido pelo pensador inglecircs

Aleacutem disso eacute digno de nota o registro de Locke segundo o qual o argumento ad

hominem jaacute era conhecido agrave sua eacutepoca Mas era conhecido em qual sentido Era

conhecido em sua definiccedilatildeo ou na proacutepria expressatildeo ldquoad hominemrdquo Hamblin destaca

que provavelmente a inspiraccedilatildeo do termo vem da traduccedilatildeo em latim do seguinte trecho

das Refutaccedilotildees Sofiacutesticas de Aristoacuteteles ldquo[] estas pessoas dirigem suas soluccedilotildees

contra o homem natildeo contra o argumento []rdquo ldquo[] hi omnes non ad orationem sed ad

hominem solvunt []rdquo170

Em 1826 Whately por sua vez ao se referir aos argumentos ad populum ad

verecundiam ad hominem registra que quando ldquoinjustamente utilizadosrdquo eles satildeo

chamados falaciosos estabelecendo entatildeo uma conexatildeo com o tema das falaacutecias

Interessante salientar que o loacutegico inglecircs opotildee os argumentos anteriormente citados ao

argumentum ad rem171

Assim considerando que rem em latim significa coisa eacute

possiacutevel inferir que enquanto o argumento ad rem se direciona ao cerne da questatildeo ao

alvo argumentativo isto eacute ldquoagrave coisardquo os argumentos ad populum ad verecundiam ad

hominem representam um desvio do assunto pois se dirigem agrave pessoa ou a outras

fontes Acrescente-se ainda que Whately afirma que provavelmente o argumento ad

rem significa aquilo que outros autores (Locke por exemplo) chamam de argumento ad

judicium

Secondly Another way that men ordinarily use to drive others and force them to submit to their

judgments and receive their opinion in debate is to require the adversary to admit what they allege as a

proof or to assign a better And this I call argumentum ad ignorantiam

A third way is to press a man with consequences drawn from his own principles or concessions This is

already known under the name of argumentum ad hominem

he fourth alone advances us in knowledge and judgment The fourth is the using of proofs drawn from

any of the foundations of knowledge or probability This I call argumentum adjudicium This alone of all

the four brings true instruction with it and advances us in our way to knowledgerdquo (trad livre) LOCKE

John The Works of John Locke London C Baldwin 1824 p 260-261 170

ldquo[] these persons direct their solutions against the man not against his argumentrdquo (trad livre)

HAMBLIN C Op cit p 161-162 171

WHATELY Richard Logic London John Joseph Griffin amp CO 1849 p 80

71

Ademais se pensarmos que neste caso a palavra ldquoargumentumrdquo pode ser

substituiacuteda com sucesso pela palavra ldquoapelordquo e sabendo que o termo em latim ldquoadrdquo

denota ldquoem direccedilatildeo ardquo ldquoparardquo pode-se afirmar que o argumento ad populum significa

apelo ao povo ou aos sentimentos do povo o argumento ad verecundiam apelo agrave

modeacutestia ou agrave autoridade o argumento ad hominem apelo ao caraacuteter ou agraves

caracteriacutesticas do sujeito Estes apelos portanto natildeo estariam dirigidos a ldquoevidecircncias

objetivasrdquo mas a subjetividades algo presente na mente ou melhor na fantasia das

pessoas172

Recentemente o estudo das falaacutecias alcanccedilou notaacutevel desenvolvimento graccedilas

ao trabalho pioneiro de Charles Hamblin que em 1970 publicou a sua obra ldquoFalaacuteciasrdquo

Neste estudo o filoacutesofo australiano comeccedila com uma forte criacutetica em relaccedilatildeo agrave forccedila

que em nosso tempo a tradiccedilatildeo ainda vinha desempenhando sobre o assunto a despeito

de tantos avanccedilos na loacutegica e em outras aacutereas ldquodepois de dois milecircnios de estudo ativo

de loacutegica e em particular depois de transcorrido mais da metade daquele que eacute

considerado o mais iconoclasta dos seacuteculos o XX dC ainda encontramos as falaacutecias

sendo classificadas apresentadas e estudadas da mesma maneira antigardquo173

Eemeren destaca que eacute enorme a importacircncia de Hamblin para o assunto sendo

o seu livro uma soacutelida referecircncia pois realiza um rigoroso apanhado histoacuterico sobre as

falaacutecias elenca as deficiecircncias no tratamento da mateacuteria oferece a sua pessoal

contribuiccedilatildeo teoacuterica e sistematiza o tema Assim ainda que tenha sido objeto de criacuteticas

a sua obra eacute considerada ao mesmo tempo um ponto de partida e o tratamento standard

da disciplina174

Ao fazer uma sistematizaccedilatildeo sobre as ldquofalaacutecias adrdquo Hamblin esboccedila uma

abundante classificaccedilatildeo do tema sendo que tendo em vista a importacircncia para o nosso

trabalho destacamos as seguintes falaacutecias

(i) apelo agrave inveja argumentum ad invidiam

(ii) apelo ao medo argumentum ad metum

(iii) apelo ao oacutedio argumentum ad odium

(iv) apelo ao orgulho argumentum ad superbiam

(v) apelo agrave amizade argumentum ad amicitiam

172

WALTON D Op cit p 4-9 173

ldquoAfter two millennia of active study of logic and in particular after over half of that most iconoclastic

of centuries the twentieth AD we still find fallacies classified presented and studied in much the same

old wayrdquo (trad livre) HAMBLIN C Op cit p 9 174

EEMEREN F Op cit 2009 p 12

72

(vi) apelo agrave compaixatildeo argumentum ad misericordiam

(vii) apelo agraves emoccedilotildees em geral argumentum ad passiones

Aleacutem destas tambeacutem se destacam as seguintes falaacutecias ad verecundiam ad

ignorantiam ad hominem ad baculum (apelo agrave ameaccedila) ad superstitionem (apelo agrave

supersticcedilatildeo) ad imaginationem (apelo agrave imaginaccedilatildeo) ad nauseam (apelo agrave prova por

repeticcedilatildeo) ad fidem (apelo agrave feacute) ad socordiam (apelo agrave estupidez) ad ludicrum (apelo

ao teatralismo) ad captandum vulgus ad fulmen ad vertiginem a carcere175

Natildeo eacute coincidecircncia que para cada emoccedilatildeo da retoacuterica estudada no Capiacutetulo I

agora exista uma ldquofalaacutecia adrdquo correspondente E ainda que eventualmente venha lhe

faltar uma classificaccedilatildeo apropriada a expressatildeo guarda-chuva ldquoargumentum ad

passionerdquo iraacute capturar alguma emoccedilatildeo fugitiva Aliaacutes eacute essa a ideia apresentada pelo

loacutegico inglecircs Issac Watz citado por Hamblin senatildeo vejamos

Haacute ainda um outro ranking de argumentos que tecircm nomes latinos sua

verdadeira distinccedilatildeo deriva dos toacutepicos ou meios-termos que satildeo

usados neles eles satildeo chamados de apelos para o nosso julgamento

para a nossa feacute para a nossa ignoracircncia para a nossa profissatildeo para a

nossa modeacutestia e para as nossas emoccedilotildees

[]

6 Acrescento por fim quando um argumento eacute emprestado de algum

toacutepico que se preste a atrair as inclinaccedilotildees e as emoccedilotildees dos ouvintes

para o lado do orador em vez de convencer o julgamento ele eacute

chamado argumentum ad passiones um apelo para as emoccedilotildees176

Por tambeacutem termos estudado o pensamento estoico no Capiacutetulo I agora tambeacutem

podemos afirmar que isso eacute uma forma estoica de pensar Obviamente natildeo no sentido

de que tal pensamento derive da escola estoica Poreacutem numa acepccedilatildeo mais ampla no

sentido de sua hostilidade em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees ou de que conveacutem eliminaacute-las do

discurso por serem irracionais enganadoras excessivas No entanto tal pensamento

parece ser demasiadamente simploacuterio porque natildeo consegue indagar se as emoccedilotildees

eventualmente podem ser razoaacuteveis na argumentaccedilatildeo Existiriam criteacuterios para

distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees no discurso

175

HAMBLIN C Op cit p 41 176

ldquoThere is yet another rank of arguments which have latin names their true distinction is derived from

the Topics or middle Terms which are used in them tho they are called an Address to our Judgment our

Faith our Ignorance our Profession our Modesty and our Passions [hellip]6 I add finally when an

argument is borrowed from any topics which are suited to engage the inclinations and passions of the

hearers on the side of the speaker rather than to convince the judgment this is argumentum ad passiones

an address to the passionsrdquo (trad livre)WATZ Issac Logic or the right use of reason in the inquiry

after truth Boston West amp Richardson 1842 p 242

73

Eacute claro que a disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo natildeo nos exige que deixemos de sentir o

que sentimos uma vez que poderiacuteamos imaginar que existe separadamente o campo do

discurso e existe o campo do sujeito de modo que o objetivo da estudada classificaccedilatildeo

consiste em despir a estrutura do discurso do uso das emoccedilotildees e dos seus efeitos

negativos quanto agrave relaccedilatildeo de inferecircncias Mas considerando que o homem vive na

linguagem eacute possiacutevel de modo plausiacutevel pensar que existam certas e profundas

conexotildees entre essas coisas

Sobre este ponto Plantin destaca que eacute justamente na questatildeo do sujeito e das

emoccedilotildees que existe uma forte ruptura entre a MTA e a retoacuterica A teoria standard da

argumentaccedilatildeo ao introduzir a noccedilatildeo de falaacutecia ad passiones erigiu as emoccedilotildees como

um dos principais inimigos da argumentaccedilatildeo ldquoa teoria das falaacutecias eacute a uacutenica parte da

teoria da argumentaccedilatildeo que se ocupa realmente das emoccedilotildees mas para removecirc-las

como se o discurso argumentativo para ser admissiacutevel devesse primeiro expulsar seus

atoresrdquo177

O linguista francecircs assevera que essa invariaacutevel exigecircncia normativa exalta a

argumentaccedilatildeo apaacutetica como um modelo desejado de discurso178

Assim pathos parece

retomar um dos seus sentidos originais presente na Greacutecia antiga isto eacute o de

patoloacutegico de sofrimento

Eacute interessante igualmente notar a maciccedila presenccedila de termos em latim na

classificaccedilatildeo das ldquofalaacutecias adrdquo Eacute sabido que na eacutepoca moderna o latim teve uma

grande importacircncia para o estudo do direito da filosofia e da loacutegica Mas o seu

constante emprego para tratar do presente tema quando se dispotildee de suficiente

vocabulaacuterio para abordar o assunto parece querer doar desnecessariamente um grau de

sofisticaccedilatildeo ou de autoridade agrave disciplina A este respeito Plantin endereccedila forte criacutetica

ldquo[] em inuacutemeros casos esse latim de ocasiatildeo aparece como defeituoso gratuito

pedante e finalmente ridiacuteculo []rdquo179

Por fim tendo em vista que este Capiacutetulo se destina a investigar a importacircncia

das emoccedilotildees para a MTA pode-se dizer agora que pelo menos para a teoria standard

da argumentaccedilatildeo as emoccedilotildees tecircm uma funccedilatildeo negativa no discurso O uacutenico local em

que as emoccedilotildees guardam um relativo espaccedilo para tematizaccedilatildeo eacute no estudo das falaacutecias

177

ldquola theacuteorie des fallacies est la seule theorie de largumentation qui socuppe reellement des eacutemotions

mais cest pour les eacuteliminer comme si le discours argumentatif pour etre recevable devait dabord

expulser ses acteursrdquo (trad livre) PLANTIN C Op cit 2011 p 63 178

Id ibid p 63 179

ldquo[hellip] dans de nombreux cas cest latin doccasion apparaicirct comme fautif gratuit jargonnant et

finalemente ridicule [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 66

74

Poreacutem tal posicionamento parece sofrer de ausecircncia de complexidade jaacute que natildeo

consegue fornecer nenhum criteacuterio para distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees

na argumentaccedilatildeo nem consequentemente consegue encontrar um razoaacutevel papel para

elas no discurso Portanto diante do exposto parece que o debate acerca das emoccedilotildees

restou significativamente empobrecido

24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso

Aleacutem de evidenciar a estreita e difiacutecil relaccedilatildeo existente entre a disciplina das

falaacutecias e o estudo das emoccedilotildees um dos objetivos do toacutepico precedente tambeacutem foi

preparar-nos para neste espaccedilo examinar e compreender o pensamento de Douglas

Walton

Em 1992 Walton insatisfeito com a forma pela qual o tratamento standard das

falaacutecias compreendia o fenocircmeno emotivo publicou uma obra (O Lugar da Emoccedilatildeo no

Argumento) dedicada a aprofundar o tema Ainda que o modelo utilizado pelo

canadense seja dirigido ao discurso dialeacutetico e natildeo se ocupe especificamente do

domiacutenio juriacutedico embora tambeacutem o abranja as suas observaccedilotildees satildeo bastante uacuteteis e

aplicaacuteveis para os objetivos deste trabalho quais sejam construir um espaccedilo para a

discussatildeo das emoccedilotildees no discurso juriacutedico e localizar criteacuterios para avaliaccedilatildeo do uso

das emoccedilotildees Ademais e a fim de organizar a apresentaccedilatildeo deste toacutepico pretendemos

expor as premissas os escopos as criacuteticas e as conclusotildees do teoacuterico canadense

Dito isso Walton afirma que uma boa teoria da argumentaccedilatildeo precisa natildeo

apenas se posicionar de maneira clara sobre as emoccedilotildees mas tambeacutem levaacute-las a seacuterio

Assim eacute fraca e implausiacutevel uma teoria que expulse previamente as emoccedilotildees para fora

do seu acircmbito ou que nomeie indistintamente de falaciosa qualquer conclusatildeo que se

sustente ainda que parcialmente em um apelo emotivo ldquoqualquer teoria da

argumentaccedilatildeo que exclua tais apelos por inteiro deve ser uma teoria muito limitada

inaplicaacutevel para vaacuterios e significantes argumentos do dia-a-diardquo180

Assim reconhece-se que o fenocircmeno emotivo faz parte do discurso porque

decidimos tambeacutem com base em emoccedilotildees em importantes momentos de nossas vidas

A abertura para a sensibilidade da ocasiatildeo para as nossas proacuteprias emoccedilotildees e para as

180

ldquoany theory of argument that rules such appeals out of court altogether must be very limited theory

inapplicable to many significant everyday argumentsrdquo (trad livre) WALTON D Op cit p 69

75

emoccedilotildees dos outros pode permear de maneira saudaacutevel decisotildees importantes em

sociedade181

Exemplificativamente diante de discussotildees de ordem poliacutetica ou juriacutedica em

que esteja no cerne do debate o caraacuteter ou a moralidade de um participante pode-se

cogitar que seja natildeo apenas relevante o uso de um argumento emotivo (ad hominem por

exemplo) mas extremamente necessaacuterio para responder adequadamente uma

alegaccedilatildeo182

De outra parte a despeito de admitir o uso de argumentos emotivos por

entender que eles satildeo importantes e legiacutetimos no diaacutelogo persuasivo Walton aconselha

cautela na sua utilizaccedilatildeo porque eles tambeacutem podem ser usados falaciosamente183

Assim a seu ver dois fatores combinados aumentam a possibilidade de que tais

argumentos sejam mal utilizados (i) primeiramente o apelo agrave emoccedilatildeo pode ter pouca

relevacircncia para o caso pois pode natildeo contribuir para os fins do diaacutelogo no qual os seus

participantes estejam comprometidos convertendo-se inclusive em instrumento para

bloquear os objetivos do discurso (ii) os argumentos baseados em emoccedilotildees possuem

uma tendecircncia de serem logicamente fracos no sentido de que sua premissa natildeo

sustenta de modo suficientemente forte a conclusatildeo e por isso natildeo preencha

adequadamente o ocircnus da prova184

Assim o uso falacioso das emoccedilotildees estaacute presente

quando ldquo[] o proponente explora o impacto do apelo para disfarccedilar a fraqueza ou a

irrelevacircncia do argumentordquo185

Poreacutem como determinar em concreto tais paracircmetros Advertindo que o seu

estudo natildeo eacute uma tese de psicologia empiacuterica mas uma abordagem normativa da

argumentaccedilatildeo cujo principal objetivo consiste em possibilitar a identificaccedilatildeo de usos

corretos e incorretos das emoccedilotildees no discurso186

o autor propotildee o estudo de quatro

ldquofalaacutecias adrdquo que na sua oacutetica satildeo extremamente fortes quanto agrave possibilidade de

aticcedilar os sentimentos e as mais profundas inclinaccedilotildees emotivas do puacuteblico argumentum

ad populum argumentum ad misericordiam argumentum ad baculum e argumentum ad

hominem

181

Id ibid p 69 182

Id ibid p 68 183

Id ibid p 1 184

Id ibid p 1-2 e 28 185

ldquo[hellip] the proponent exploits the impact of the appeal to disguise the weakness andor irrelevance of an

argumentrdquo Id ibid p 2 186

Id ibid p 28

76

Para nosso trabalho no entanto e a fim de delimitar a nossa competecircncia de

estudo eacute suficiente comentar os aspectos mais importantes relacionados ao uso do apelo

agrave compaixatildeo do apelo ao caraacuteter e do apelo agrave ameaccedila Poreacutem antes de prosseguir eacute

preciso explanar previamente e de modo breve alguns conceitos empregados na teoria

em comentaacuterio

Primeiramente conveacutem ser dito que a abordagem normativa em estudo estaacute

estruturada em funccedilatildeo de uma especiacutefica classificaccedilatildeo de tipos de diaacutelogo

Um diaacutelogo eacute considerado ldquo[] uma troca de atos de fala em sequecircncia

alternada entre dois parceiros de discurso a fim de alcanccedilar um objetivo comumrdquo187

Assim a coerecircncia do diaacutelogo depende de que o ato de fala individual se adeque ao fim

comum do tipo de diaacutelogo em que os participantes estejam atrelados Ademais tendo

em vista que em alguns tipos de diaacutelogo os participantes necessitam provar alguma

coisa surge a noccedilatildeo de ocircnus de prova que ldquo[] eacute um peso de presunccedilatildeo alocado

idealmente no estaacutegio inicial do diaacutelogordquo188

e que se mostra um recurso uacutetil para que o

diaacutelogo chegue num prazo razoaacutevel ao fim

Entre os tipos de diaacutelogo destacam-se

(i) o diaacutelogo persuasivo (discussatildeo criacutetica) os participantes utilizando como

premissas as proposiccedilotildees em que a outra parte esteja comprometida

(commitment) procuram convencer um ao outro a respeito de uma tese189

(ii) o diaacutelogo investigativo ldquoo objetivo da investigaccedilatildeo eacute provar que uma

particular proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa ou que natildeo existe evidecircncia

suficiente para provar que tal proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsardquo190

(iii) a negociaccedilatildeo o objetivo das partes consiste em por meio de barganha em

cima de interesses e de bens de concessatildeo de certas coisas e de insistecircncia em

outras fechar um acordo diferentemente do diaacutelogo persuasivo ou do

investigativo a verificaccedilatildeo da veracidade ou falsidade de proposiccedilotildees ainda

que em alguma medida relevante eacute algo secundaacuterio pois a finalidade consiste

187

ldquo[] an exchange of speech acts between two speech partners in turn-taking sequence aimed at a

collective goalrdquo (trad livre) Id ibid p 19 188

ldquo[] a weight of presumption allocated ideally at the opening stage of the dialoguerdquo (trad livre) Id

ibid p 20 189

WALTON Douglas The New dialectic conversational contexts of argument TorontoLondon

University of Toronto Press 1998 p 37-40 190

ldquothe goal of the inquiry is to prove that a particular proposition is true or false or that there is

insufficient evidence to prove that this proposition is either true or falserdquo Id ibid p 70

77

em realizar um bom negoacutecio que geralmente recai em cima de dinheiro certos

tipos de bens ou outros itens de valor191

e

(iv) a briga (quarrel) eacute um tipo de diaacutelogo eriacutestico cujo objetivo de cada parte

reside em atingir verbalmente a outra os argumentos natildeo possuem valor em si

mesmo senatildeo para golpear o adversaacuterio Tal ldquodiaacutelogordquo tem uma relevante funccedilatildeo

cataacutertica ao possibilitar que profundas emoccedilotildees sejam liberadas evitando um

confronto fiacutesico192

Esta classificaccedilatildeo eacute importante por dois motivos primeiramente ela possibilita

compreender quando existe uma mudanccedila iliacutecita de tipo de diaacutelogo (dialectical shifts)

um diaacutelogo investigativo natildeo pode se transformar num diaacutelogo persuasivo (discussatildeo

criacutetica) porque os objetivos e os meacutetodos de cada qual satildeo diversos e por isso os

argumentos tambeacutem o satildeo Em segundo lugar compreende-se que eacute no diaacutelogo

persuasivo que as emoccedilotildees tecircm o seu habitat especiacutefico podendo ser positivas e

contribuiacuterem com os objetivos da discussatildeo Todavia entende-se que nos outros tipos

de diaacutelogo (negociaccedilatildeo por exemplo) e a depender do caso elas tambeacutem podem ser

legiacutetimas193

Por uacuteltimo antes de adentrar no estudo das falaacutecias conveacutem enfatizar que a

noccedilatildeo de raciociacutenio presuntivo tem um destacado papel neste modelo de anaacutelise do

discurso argumentativo porque possibilita que a discussatildeo caminhe em direccedilatildeo ao fim

mesmo quando no estado de conhecimento as evidecircncias satildeo insuficientes e as

premissas fracas ldquoa presunccedilatildeo no diaacutelogo permite que a argumentaccedilatildeo avance de um

modo uacutetil e revelador mesmo se evidecircncia suficiente natildeo estaacute disponiacutevel para permitir

que cada lado se comprometa categoricamente a certas premissas especiacuteficasrdquo194

Assim uma vez finalizada a exposiccedilatildeo de tais conceitos passa-se agrave explanaccedilatildeo

do apelo agrave compaixatildeo

Para saber quando o apelo agrave compaixatildeo eacute ou natildeo usado falaciosamente a

abordagem tradicional recomenda distinguir se um caso diz respeito a fatos ou a

sentimentos Caso o problema envolva mateacuteria factual o apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso

sendo adequado de seu turno caso apenas envolva sentimentos195

191

Id ibid p 100 192

WALTON D Op cit 1992 p 21-23 193

Id ibid p 23-24 194

ldquopresumption in dialogue enables argumentation to move forward in a revealing and useful way even

if sufficient evidence is not available to enable either side to commit itself categorically to some particular

premisesrdquo Id ibid p 57 195

Id ibid p 106

78

Em relaccedilatildeo a esta bifurcaccedilatildeo Walton endereccedila forte criacutetica pois a compreende

muito otimista em achar que fatos e sentimentos satildeo coisas totalmente isoladas Por

exemplo em casos como aborto e eutanaacutesia natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo apenas

facticidades E sentimentos satildeo muito importantes embora tambeacutem possam ser

excessivos ou inadequados Assim para alegar que um apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso

precisa-se demonstrar a sua irrelevacircncia ou inadequaccedilatildeo para a hipoacutetese tratada196

Exemplificativamente no seguinte caso ocorrido na Casa dos Comuns do

Canadaacute em 1987 eacute relatado que um parlamentar durante o debate poliacutetico solicitou

fundos do governo federal para finalizar um projeto de enciclopeacutedia pertencente ao Sr

Joey Smallwood uma figura poliacutetica canadense ldquorespeitadardquo e ldquobem-conhecidardquo

considerado um dos uacuteltimos ldquoPais da Confederaccedilatildeordquo ainda vivos Ademais eacute dito que

Smallwood estaacute por volta dos seus 80 (oitenta) anos num estado de sauacutede debilitado e

mereceria ter seu projeto que se revelaraacute num inestimaacutevel recurso para o povo

canadense ser concluiacutedo em vida ldquoeacute uma grande distorccedilatildeo ver uma das lendas vivas do

Canadaacute sendo forccedilado a lidar com xerifes na sua idade avanccedilada e em seu mau estado

de sauacutede Certamente o governo pode encontraacute-lo em seu coraccedilatildeo agorardquo diz o

deputado197

Walton diz que a questatildeo central no caso consiste em saber se tal projeto de

enciclopeacutedia eacute valoroso o suficiente para merecer ser financiado com dinheiro puacuteblico

Assim caso apenas o apelo agrave compaixatildeo esteja suportando a conclusatildeo de que o projeto

vale a pena ser financiado entatildeo tal emoccedilatildeo natildeo eacute relevante ou uacutetil pois eacute preciso

questionar em si mesmo o meacuterito do projeto Poreacutem na presunccedilatildeo de que o projeto

realmente valha a pena a compaixatildeo pode ser um argumento adequado fazendo parte

de um argumento maior a respeito do merecimento do projeto198

Este eacute um caso de forte apelo emocional que envolve sentimentos patrioacuteticos em

relaccedilatildeo a uma pessoa admirada por muitas outras num paiacutes Poreacutem a despeito da

tradiccedilatildeo de nomear tal tipo de argumentaccedilatildeo de falaciosa Walton entende que eacute preciso

atentar para a questatildeo do contexto em que tal discurso foi produzido Assim

considerando que ele foi declamado numa especiacutefica sessatildeo da Casa dos Comuns

196

Id ibid p 106-107 197

ldquoit is a great travesty to see one of Canadas living legends being forced to deal with sheriffs at his

advanced age and in his poor state of health Surely the government can find it in its heart nowrdquo (trad

livre) Id ibid p 111 198

Id ibid p 111

79

destinada a fazer recomendaccedilotildees de financiamento de projetos a emoccedilatildeo empregada eacute

adequada agraves regras do debate e natildeo destoa do tipo de discurso utilizado

Ademais Walton reforccedila que a proacutepria noccedilatildeo de apelo agrave compaixatildeo por estar

amarrada a conotaccedilotildees pejorativas quanto a sentimentos de pena influencia o

entendimento de que por si soacute jaacute seria errado inadequado ou falacioso utilizaacute-lo ldquose

perguntado se eles querem compaixatildeo pessoas deficientes ou veteranos de guerra

provavelmente diratildeo lsquonatildeorsquo porque lsquocompaixatildeorsquo tem conotaccedilotildees de

condescendecircnciardquo199

Assim a seu ver seria mais apropriado chamar de ldquoapelo agrave

simpatiardquo do que ldquoapelo agrave compaixatildeordquo o que evitaria tal carga semacircntica negativa

Em outro exemplo em 1987 tambeacutem na Casa dos Comuns do Canadaacute discute-

se um projeto de lei cujo texto busca regulamentar o uso de cigarro em locais puacuteblicos

bem como restringir a sua publicidade

Na fala do parlamentar Brud Bradley que se posiciona contra tal projeto de lei

o apelo agrave misericoacuterdia se corporifica na visualizaccedilatildeo das consequecircncias negativas sobre

todo um grupo de pessoas que depende da induacutestria do tabaco para sobreviver Apoacutes

relatar a difiacutecil saga dos produtores de tabaco muitos deles constituiacutedos por imigrantes

que chegaram ao Canadaacute e conseguiram criar sem nenhuma ajuda uma atividade que

rende bilhotildees para o paiacutes questiona-se a difiacutecil situaccedilatildeo em que todos esses cidadatildeos

ficaratildeo ldquonas aacutereas de cultivo de tabaco do Canadaacute temos falecircncias desagregaccedilatildeo

familiar e suiciacutedio E quanto a esses agricultores E sobre os 2600 produtores de tabaco

dedicados no Canadaacute O que a legislaccedilatildeo faz por elesrdquo200

Em resposta Dan Heap defendendo o ato alega que o que se estaacute em discussatildeo

eacute o direito agrave sauacutede que em seu olhar eacute muito mais importante do que o direito de ser

um produtor de tabaco Aleacutem disso 35000 pessoas morrem anualmente no Canadaacute de

doenccedilas relacionadas ao cigarro o que eacute um nuacutemero bem superior aos 2600 produtores

de tabaco

Walton analisando o caso registra que ambas as alegaccedilotildees apelam para

argumentos de consequecircncia Enquanto Bradley advoga as consequecircncias negativas do

projeto de lei Heap busca explorar as positivas O problema eacute que o argumento

utilizado por Bradley eacute fraco e altamente unilateral embora natildeo deva ser rejeitado como

199

ldquoIf asked whether they want pity disabled persons or returning war veterans will probably say lsquonorsquo

for pity has connotations of condescensionrdquo (trad livre) Id ibid p 112 200

ldquoin the tobacco growing areas of Canada we have bankruptcies family breakdown and suicide What

about those farmers What about the 2600 dedicated tobacco farmers in Canada What does the

legislation do for themrdquo (trad livre) Id ibid p 124

80

um todo porque eacute razoaacutevel tambeacutem se preocupar com as consequecircncias sociais

negativas geradas pela nova legislaccedilatildeo Ademais falta evidecircncia que suporte a relaccedilatildeo

causal entre a legislaccedilatildeo tabagista e a alegada falecircncia desagregaccedilatildeo familiar e suiciacutedio

de produtores de tabaco que tambeacutem ocorre em outras culturas agriacutecolas do Canadaacute

Assim tendo em vista que para bem deliberar acerca de um projeto de lei eacute preciso

visualizar todas as consequecircncias possiacuteveis da nova legislaccedilatildeo a extrema

unilateralidade do argumento utilizado por Bradley prejudica o objetivo da discussatildeo

Apoacutes analisar outros casos Walton estabelece a seguinte classificaccedilatildeo para

avaliar o uso do apelo agrave compaixatildeo

(i) razoaacutevel adequado ao contexto do diaacutelogo

(ii) fraco mas natildeo irrelevante ou falacioso quando o apelo eacute unilateral e estaacute

aberto a questionamento criacutetico

(iii) irrelevante o apelo agrave compaixatildeo eacute irrelevante por exemplo numa

investigaccedilatildeo cientiacutefica cujo objetivo eacute reunir evidecircncias para provar se uma

proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa e

(iv) falacioso o uso do apelo eacute fraco e utilizado agressivamente para bloquear os

fins do diaacutelogo e se proteger de questionamentos criacuteticos201

Aleacutem disso mais importante do que determinar se um uso eacute falacioso consiste

em saber como reagir adequadamente ao uso de tal emoccedilatildeo Para isso fornece-se o

seguinte checklist com sete fatores

(i) contexto identificar o contexto do diaacutelogo indagar se o uso da emoccedilatildeo eacute

adequado para aquele contexto e se contribui para os fins da discussatildeo

(ii) peso identificar o tamanho da importacircncia a ser dado ao uso do apelo no

caso em questatildeo o apelo agrave compaixatildeo eacute a questatildeo central do problema ou eacute

apenas algo secundaacuterio

(iii) neutralizaccedilatildeo caso o apelo seja o objeto central da discussatildeo eacute necessaacuterio

reagir energeticamente

(iv) outras consideraccedilotildees importantes caso o apelo agrave misericoacuterdia seja algo

secundaacuterio determinar quais satildeo as questotildees principais para o caso

(v) sopesamento quando o apelo agrave misericoacuterdia eacute utilizado por meio de

argumento por consequecircncias eacute necessaacuterio sopesar ambos os lados

201

Id ibid p 140

81

(vi) presunccedilotildees inadequadas os casos falaciosos geralmente se apresentam

quando o proponente por meio do apelo insere agressivamente uma presunccedilatildeo

com o objetivo de mascarar a necessidade de argumentar adequadamente e

(vii) mais informaccedilotildees ao inveacutes de precipitadamente taxar uma argumentaccedilatildeo

de ldquofalaciosardquo conveacutem requerer mais informaccedilotildees sobre as particularidades do

caso202

De outra parte em relaccedilatildeo ao apelo ao caraacuteter (ad hominem) Walton

diferentemente da abordagem tradicional da loacutegica que o presume sempre falacioso

defende que em determinados casos ele eacute adequado porque no cerne da questatildeo pode

interessar saber questotildees relacionadas ao caraacuteter da pessoa203

Eacute conveniente primeiramente notar que o apelo ao caraacuteter natildeo eacute em si mesmo

uma emoccedilatildeo A inclusatildeo entre as falaacutecias emocionais se justifica por conta dos seus

efeitos isto eacute pela sua capacidade de instigar os acircnimos emotivos nos seus

destinataacuterios204

Assim por exemplo no tribunal podem emergir duacutevidas razoaacuteveis sobre a

credibilidade do depoimento de uma testemunha A sua confiabilidade pode restar

prejudicada diante de inconsistecircncias de afirmaccedilotildees diante da demonstraccedilatildeo de que se

trata de uma pessoa tendenciosa ou de que eacute possuidora de mau caraacuteter Em todas essas

hipoacuteteses eacute razoaacutevel o uso de argumentos que coloque em cheque o caraacuteter da

pessoa205

Em campanhas poliacuteticas depois da chamada ldquoonda eacuteticardquo passou-se a

considerar que questotildees ligadas ao caraacuteter do candidato satildeo de interesse puacuteblico de

modo que eacute razoaacutevel em debates explorar inconsistecircncia de afirmaccedilotildees problemas de

conduta no passado do candidato financiamentos de campanha duvidosos206

O grande problema de argumentos que se destinem a atingir o caraacuteter de outra

pessoa estaacute na sua propensatildeo em transformar um diaacutelogo criacutetico em uma verdadeira luta

verbal em que os acircnimos dos participantes se elevam aos piores niacuteveis ldquode fato o que

acontece muito frequentemente eacute que o diaacutelogo criacutetico original se deteriora num diaacutelogo

eriacutestico ou em espeacutecies de lsquocombate verbalrsquo em que o senso criacutetico eacute deixado para traacutes e

202

Id ibid p 141-142 203

Id ibid p 193 204

Id ibid p p 259-260 205

Id ibid p 195-196 206

Id ibid p 193-194

82

o uacutenico objetivo eacute lsquogolpearrsquo verbalmente a outra parte para lhe ferirrdquo207

Neste caso o

uso do apelo ao caraacuteter eacute considerado falacioso porque altera ilicitamente um diaacutelogo

criacutetico para uma briga verbal (quarrel)208

Por uacuteltimo em relaccedilatildeo ao apelo agrave ameaccedila Walton diz que ele pode ser imoral

ilegal repulsivo brutal sem ser falacioso Para resultar numa falaacutecia ele precisa ir

contra os objetivos do diaacutelogo ldquomuito frequentemente os textos simplesmente

presumem que dado um brutal ou repulsivo ou moralmente repugnante apelo agrave forccedila os

estudantes ou os leitores natildeo necessitaratildeo de mais nenhum esforccedilo persuasivo para

classificaacute-lo como falaacuteciardquo209

Poreacutem em negociaccedilotildees diplomaacuteticas tais apelos satildeo adequados porque este tipo

de diaacutelogo normalmente envolve ameaccedila de sanccedilotildees de retaliaccedilotildees de rompimento de

relaccedilotildees econocircmicas etc Assim eacute preciso estar atento para o tipo de diaacutelogo e o

contexto em que o apelo foi utilizado Ademais eacute necessaacuterio observar se a forma pela

qual foi utilizado objetivou bloquear os objetivos do diaacutelogo Portanto para avaliar a

adequaccedilatildeo do uso da emoccedilatildeo faz toda diferenccedila se as partes se encontram numa

negociaccedilatildeo ou num diaacutelogo persuasivo210

Tendo realizada essa breve exposiccedilatildeo das falaacutecias parte-se agora para os

comentaacuterios finais acerca do modelo de anaacutelise de argumentos em comentaacuterio

Em primeiro lugar eacute preciso dizer que Walton se mostra bastante consciente a

respeito de duas abordagens que podem ser utilizadas para pensar as emoccedilotildees Assim eacute

possiacutevel entendecirc-las como contraacuterias agrave razatildeo e por isso natildeo lhes confiar nenhum

espaccedilo na argumentaccedilatildeo porque o seu uso de todo modo seria suspeito211

Neste

uacuteltimo modelo imperaria o paradigma da loacutegica fria (cold logic) isto eacute uma maneira de

pensar desapaixonada calma e fundada na loacutegica212

De outra parte eacute possiacutevel pensar

que as emoccedilotildees possuem uma funccedilatildeo importante em discussotildees eacuteticas poliacuteticas em

assuntos em que natildeo existe conhecimento conclusivo sobre o meacuterito da questatildeo213

207

ldquoIn fact too often what happens is that the original critical discussion deteriorates into an eristic

dialogue or species of lsquoverbal combatrsquo where critic restraint is left behind and the only aim is to lsquohit outrsquo

verbally to injure the other partyrdquo (trad livre) Id ibid p 192 208

Id ibid p 216 209

ldquoToo often the texts simply presume that given a brutal or repulsive or morally repugnant appeal to

force the students or readers of the text will need no further persuasion to classify it as fallacyrdquo Id ibid

p 78 210

Id ibid p 159 211

Id ibid p 67 212

Id ibid p 2 213

Id ibid p 67

83

Essas duas formas de pensar as emoccedilotildees estatildeo presentes respectivamente na

filosofia de Aristoacuteteles e dos estoicos Se pudeacutessemos realizar uma aproximaccedilatildeo entre

tais formas de pensar com o modelo que aqui expusemos afirmariacuteamos que Walton estaacute

proacuteximo do pensamento de Aristoacuteteles Poreacutem natildeo do pensamento presente na retoacuterica

aristoteacutelica mas da abordagem emotiva construiacuteda na Eacutetica a Nicocircmaco que

compreende que a boa medida das emoccedilotildees ocorre quando elas satildeo sentidas

adequadamente e isso significa dizer que elas devem ser experimentadas no momento

certo de modo correto em relaccedilatildeo agraves pessoas e aos fins certos Em outras palavras as

emoccedilotildees podem ser adequadas ou inadequadas de acordo com as circunstacircncias

Walton admite que as emoccedilotildees podem desempenhar uma importante funccedilatildeo na

argumentaccedilatildeo mas eacute preciso ter cautela porque elas tambeacutem podem ser mal utilizadas

Assim satildeo fornecidos alguns paracircmetros para verificar o seu grau de adequaccedilatildeo ou

inadequaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo

para o impacto do uso da emoccedilatildeo e para o contexto em que satildeo utilizadas Quando bem

empregadas elas satildeo legiacutetimas e importantes para uma boa decisatildeo

Ademais o canadense tambeacutem informa que essa ldquodisputardquo estre aristoteacutelicos e

estoicos a respeito das emoccedilotildees continua nos dias de hoje a exercer a sua influecircncia e

deu azo para que Brinton justificasse a criaccedilatildeo do argumentum ad indignationem Como

se sabe sentir raiva para a eacutetica estoica eacute terminantemente proibido sob qualquer

circunstacircncia mas para Aristoacuteteles natildeo sentir raiva em relaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo que

merecesse seria uma falha de caraacuteter Adotando este uacuteltimo posicionamento o

argumentum ad indignationem seria o uso da raiva na argumentaccedilatildeo na medida

adequada agrave situaccedilatildeo214

Walton justifica que estudar os aspectos falhos da argumentaccedilatildeo e

principalmente compreender quando as emoccedilotildees satildeo utilizadas inadequadamente eacute um

exerciacutecio importante para o aperfeiccediloamento da praacutetica argumentativa porque em

assuntos polecircmicos e difiacuteceis geralmente ficamos presos a inclinaccedilotildees pessoais

tornamo-nos facilmente apaixonados e perdemos a perspectiva criacutetica ldquoataques

pessoais diversatildeo emocional e outras tentaccedilotildees satildeo caracteriacutesticas mais frequentes da

argumentaccedilatildeo humana do que o uso de argumentos corretos e friamente imparciaisrdquo215

214

Id ibid p 68 215

ldquopersonal attack emotional diversion and other temptations are more often characteristic of human

reasoning than correct and coolly impartial argumentsrdquo (trad livre) Id ibid p 64

84

Por derradeiro registre-se que ao tentar encontrar um lugar para as emoccedilotildees na

argumentaccedilatildeo como o proacuteprio tiacutetulo da sua obra sugere Walton procura devolver

complexidade agrave mateacuteria evitando o impulso de previamente classificar qualquer apelo

emotivo como falacioso Desse modo a abordagem sob comento concilia-se com alguns

aspectos da argumentaccedilatildeo praacutetica mas frise-se sem perder a perspectiva criacutetica jaacute que

natildeo abandona a censura quanto ao mau uso das emoccedilotildees no discurso

De outra parte por ser um estudo criacutetico em relaccedilatildeo agraves ldquofalaacutecias adrdquo Walton

fica preso a este paradigma classificatoacuterio e por isso natildeo explora algumas questotildees

importantes para a mateacuteria Por exemplo como identificar as emoccedilotildees no discurso De

que modo elas podem se apresentar Tentar responder tais perguntas consiste no

objetivo do proacuteximo toacutepico

25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees

Localizar as emoccedilotildees no discurso natildeo eacute uma atividade oacutebvia e a linguiacutestica

recentemente tem envidado relevante esforccedilo para encontraacute-las embora nem sempre

tenha sido assim

Kerbrat-Orechionni afirma que o espaccedilo para as emoccedilotildees na linguiacutestica do sec

XX foi miacutenima216

Desse modo falando em nome de toda uma geraccedilatildeo Saphir em

1921 diz que o material da liacutengua satildeo os conceitos as ideias e a realidade objetiva

sendo que as emoccedilotildees satildeo consideradas subjetividades linguiacutesticas de importacircncia

secundaacuteria que tentam expressar questotildees interiores do homem O linguista alematildeo

categoricamente afirma que as emoccedilotildees na qualidade de manifestaccedilotildees instintivas que

partilhamos com os seres irracionais natildeo podem ldquo[] ser consideradas como fazendo

parte da concepccedilatildeo cultural essencial da linguagemrdquo217

Fazendo um contraste com esta afirmaccedilatildeo e jaacute num outro momento do seacuteculo

XX Schieffelin e Ochs em 1989 defendem que para aleacutem da funccedilatildeo de comunicar

informaccedilotildees referenciais a liacutengua eacute veiacuteculo fundamental na transmissatildeo de sentimentos

estados de espiacuterito e disposiccedilotildees ldquoesta necessidade eacute tatildeo criacutetica e tatildeo humana quanto

216

ORECCHIONI-KERBRAT Catherine Quelle place pour les eacutemotions dans la linguistique du XXe

siegravecle Remarques et aperccedilus In PLANTIN Christian DOURY Marianne TRAVERSO Veacuteronique

(dir) Les eacutemotions dans les interations Lyon Presses Universitaires de Lyon 2000 p 33 217

ldquothey cannot be considered as forming part of the essential cultural conception of languagerdquo (trad

livre) SAPHIR Edward Language an introduction to the study of speech New York Hartcourt Brace

and Company 1921 p 40

85

aquela de descrever eventosrdquo218

Assim separando os canais de transmissatildeo dos afetos

entre verbais e natildeo-verbais (expressotildees faciais gestos etc) os mencionados autores

concentram os seus estudos nos meios verbais de expressatildeo A conclusatildeo alcanccedilada eacute

que a liacutengua como um todo eacute um campo do afeto inclusive aquelas aacutereas

tradicionalmente consideradas circunscriccedilotildees exclusivas da loacutegica

Natildeo se pode arguir por exemplo que a sintaxe sirva exclusivamente a

funccedilotildees loacutegicas enquanto as funccedilotildees afetivas satildeo realizadas pela

entonaccedilatildeo e pelo leacutexico O afeto permeia o sistema linguiacutestico por

inteiro Praticamente qualquer aspecto do sistema linguiacutestico que eacute

variaacutevel eacute candidato a expressar afeto219

Eacute sobre esse tema que a escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo tem se preocupado

nos uacuteltimos tempos sendo Plantin um dos pioneiros no estudo das emoccedilotildees no discurso

Assim no intento de buscar referecircncias de anaacutelise para o exame de decisotildees judiciais a

ser realizado no Capiacutetulo III iremos abordar a classificaccedilatildeo proposta por Micheli um

dos representantes de tal escola

Eemeren conforme vimos anteriormente afirma que o ldquoteste aacutecidordquo de uma

teoria da argumentaccedilatildeo diz respeito agrave sua compreensatildeo sobre as falaacutecias Se ela passar

nessa difiacutecil prova pode-se dizer que estamos diante de uma teoria da argumentaccedilatildeo

com bom poder de explanaccedilatildeo e de alcance

Assim se levarmos rigorosamente tal afirmaccedilatildeo em consideraccedilatildeo podemos

dizer que iremos analisar uma teoria da argumentaccedilatildeo que perdeu o seu ldquoinstintordquo uma

vez que a abordagem utilizada eacute puramente descritiva A despeito disso abordagens

descritivas tecircm o seu papel pois procurando narrar os eventos do mundo de maneira

mais interessante podem organizar melhor determinados temas ou ateacute possibilitarem

melhores insights prescritivos

Dito isso Micheli considera que um dos grandes problemas em relaccedilatildeo ao

exame das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade O objetivo do seu

trabalho portanto consiste em fornecer um modelo que possibilite analisar e distinguir

o complexo processo em que as emoccedilotildees satildeo semiotizadas no discurso Para isso

apresenta-se uma tipologia classificatoacuteria econocircmica mas ao mesmo tempo

218

ldquoThis need is as critical and as human as that of describing eventsrdquo (trad livre) OCHS Elinor

SCHIEFFELIN Bambi Language has a heart In Interdisciplinary journal for the study of discourse 7-

26 p9 219

ldquoOne cannot argue for example that syntax exclusively serves logical functions while affective

functions are carried out by intonation and the lexico Affect permeates the entire linguistic system

Almost any aspect of the linguistic system that is variable is a candidate for expressing affectrdquo (trad

livre) Id ibid p 22

86

teoricamente forte o suficiente para descrever satisfatoriamente o fenocircmeno em

comentaacuterio220

Primeiramente adverte-se que tal modelo natildeo se interessaraacute pelas emoccedilotildees

efetivamente experimentadas pelos sujeitos do discurso Assim natildeo seraacute objeto de

especulaccedilatildeo se o sujeito realmente experimenta aquilo que ele exprime ou procura

suscitar no seu discurso (orador) nem seraacute o cerne da pesquisa saber se o destinataacuterio

do discurso de fato sente aquela emoccedilatildeo endereccedilada (auditoacuterio) porque poderaacute haver

discrepacircncias entre aquilo que eacute publicizado e o que eacute efetivamente sentido ldquoum estudo

da construccedilatildeo das emoccedilotildees no discurso natildeo concerne assim nem agrave emoccedilatildeo efetivamente

sentida pelo locutor nem aquela efetivamente suscitada no alocutaacuteriordquo221

Assim excluindo a categoria da emoccedilatildeo experimentada a tipologia apresentada

por Micheli para a anaacutelise do discurso emotivo eacute a seguinte a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo

demonstrada e a emoccedilatildeo suportada

Na categoria da emoccedilatildeo dita percebe-se a presenccedila de enunciados em cujo seio

se apresenta uma palavra do leacutexico que designa especificamente uma emoccedilatildeo (ldquoestes

problemas processuais me datildeo raivardquo ldquoo reacuteu estava indignadordquo) Uma das

caracteriacutesticas da emoccedilatildeo dita eacute que ela faz referecircncia a um ente que sente a emoccedilatildeo

(ldquomerdquo ldquoo reacuteurdquo) Assim natildeo pertencem a esta categoria aquelas hipoacuteteses em que uma

emoccedilatildeo eacute ela mesma objeto de descriccedilatildeo (ldquoa raiva eacute cegardquo ldquoo amor eacute capaz de tudordquo)

natildeo sendo estes enunciados hipoacuteteses de um discurso emotivo222

Desse modo na emoccedilatildeo dita eacute preciso que o item lexical designador de uma

emoccedilatildeo seja atribuiacutedo a uma entidade humana ou humanizaacutevel (ldquoo povordquo ldquoelerdquo ldquoeurdquo

algum animal etc) 223

Portanto uma das caracteriacutesticas do discurso que diz a emoccedilatildeo eacute

que ele tanto pode auto-atribuir a emoccedilatildeo (ldquoa situaccedilatildeo me deixa indignadordquo) quanto

pode alo-atribuiacute-la (ldquoa raiva tomou conta da meninardquo) Assim haacute uma relaccedilatildeo

predicativa entre duas expressotildees ldquouma que incorpora um termo emotivo e outro que

designa uma entidade humana ou humanizaacutevel que deveria sentir tal emoccedilatildeordquo224

220

MICHELI Raphaumlel Les eacutemotions dans les discours modegravele drsquoanalyse perspectives empiriques

Louvain-la-Neuve De Boeck Supeacuterieur 2014 p 11-12 221

ldquoUne eacutetude de la construction des eacutemotions dans le discours ne concerne ainsi ni lrsquoeacutemotion

effectivement ressentie par le locuteur ni celle effectivement susciteacuteeacute chez lrsquoallocutairerdquo (trad livre) Id

ibid p 118 222

Id ibid p 43 223

Id ibid p 43 224

ldquolrsquoune incorporant un terme drsquoeacutemotion lrsquoautre deacutesignant une entiteacute humaine ou humanisable censeacutee

ressentir cette eacutemotionrdquo (trad livre) Id ibid p 46

87

Ademais conveacutem registrar que existem fatores variaacuteveis nas declaraccedilotildees que

dizem uma emoccedilatildeo Por exemplo o termo emotivo pode pertencer a vaacuterias categorias

lexicais um nome (ldquoindignaccedilatildeordquo) um adjetivo (ldquoindignadordquo) um verbo (ldquoindignar-serdquo)

um adveacuterbio (ldquoindignadamenterdquo) De outra parte o termo emotivo pode ocupar

diferentes posiccedilotildees sintaacuteticas sujeito (ldquoa compaixatildeo se apoderou do juizrdquo)

complemento direto (ldquoele sentiu muita vergonhardquo) Vaacuterios verbos satildeo capazes de

facilitar esse processo ldquoinvadirrdquo ldquosubmergirrdquo ldquotomarrdquo ldquoterrdquo ldquoserrdquo ldquosentirrdquo

ldquoexperimentarrdquo ldquoexplodirrdquo etc (ldquoo depoimento da testemunha fez com que todos

explodissem de raivardquo)225

Se a emoccedilatildeo dita tem por sua caracteriacutestica o fato de ser mais facilmente

observaacutevel a categoria da emoccedilatildeo demonstrada carece de contornos precisos a sua

interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel apenas atraveacutes de indiacutecios que nos possibilitam inferir a

presenccedila de uma emoccedilatildeo ldquoenunciados que demonstrem uma emoccedilatildeo tecircm caracteriacutesticas

que embora potencialmente muito heterogecircneas satildeo todas passiacuteveis de uma

interpretaccedilatildeo indicialrdquo226

Assim na emoccedilatildeo demonstrada natildeo haacute a presenccedila de um expliacutecito termo

emotivo e por essa razatildeo inexiste uma relaccedilatildeo predicativa que a conecta a uma

entidade humana afetada pela emoccedilatildeo Por isso a sua interpretaccedilatildeo reside na procura de

indiacutecios ldquoIndiacuteciordquo aqui significa a presenccedila de um signo a partir do qual se infere a

presenccedila de determinado objeto porque normalmente diante da ocorrecircncia do

primeiro tambeacutem ocorre o segundo Em outras palavras pode-se afirmar que em face

da apresentaccedilatildeo de determinadas caracteriacutesticas discursivas eacute plausiacutevel inferir que ela eacute

causada por uma emoccedilatildeo supostamente sentida pelo locutor227

Registre-se que nesta categoria natildeo interessa saber a respeito da descriccedilatildeo de

processos fisioloacutegicos ou comportamentais da emoccedilatildeo (ldquoo coraccedilatildeo disparou os laacutebios

tremeram e ele sentiu um enorme frio na barrigardquo) pois se os indiacutecios satildeo verbalizados

e detalhados eles natildeo satildeo mais indiacutecios228

Assim a fim de esclarecer sem exaustividade quais indiacutecios satildeo importantes

para a categoria da emoccedilatildeo demonstrada oferecem-se alguns marcadores que precisam

ser interpretados dentro de um contexto situacional determinado a fim de compreender

225

Id ibid p 49-51 226

ldquoLes eacutenonceacutes qui montrent lrsquoeacutemotion preacutesentent des caracteacuteristiques qui bien que potentiellement tregraves

heacuteteacuterogegravenes sont toutes passibles drsquoune interpreacutetation indiciellerdquo (trad livre) Id ibid p 63 227

Id ibid p 64 228

Id ibid p 66-67

88

de que modo eles satildeo utilizados e a que espeacutecies de emoccedilatildeo eles se referem Por

exemplo (i) as interjeiccedilotildees (ldquonossa quanto processordquo ldquomeu deusrdquo ldquoahrdquo) (ii) a

exclamaccedilatildeo (ldquopreciso ir emborardquo ldquoque julgamentordquo) (iii) os enunciados eliacutepticos que

por meio de uma reduccedilatildeo sintaacutetica possibilitam a manifestaccedilatildeo indicial de uma emoccedilatildeo

(iv) os enunciados averbais (v) os enunciados deslocados agrave direita pois existe uma

relaccedilatildeo entre o modo de ordenar a frase dando ecircnfase a determinados elementos e as

emoccedilotildees (ldquoeacute muito trabalhador esse juizrdquo)229

Por uacuteltimo e de maior interesse para o nosso trabalho estaacute a ideia de emoccedilatildeo

suportada Nesta categoria eacute possiacutevel inferir que uma emoccedilatildeo fundamenta um

especiacutefico discurso natildeo porque ela seja nomeada explicitamente nem porque existam os

tipos de indiacutecios descritos logo acima mas porque a estrutura linguiacutestica do discurso

espelha ou ldquoesquematizardquo a estrutura cognitiva de uma determinada emoccedilatildeo

Primeiramente para explicar esta categoria Micheli fundamentado na

psicologia cognitiva especialmente na Teoria da Avaliaccedilatildeo que iremos abordar com

mais detalhes no proacuteximo toacutepico procura estabelecer uma relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a

avaliaccedilatildeo da realidade A experiecircncia emocional do sujeito estaacute diretamente relacionada

agrave avaliaccedilatildeo que ele faz de uma determinada situaccedilatildeo Dois indiviacuteduos podem avaliar

uma mesma situaccedilatildeo diferentemente e por isso obterem distintas respostas emocionais

Ademais baseando-se numa perspectiva socioloacutegica e antropoloacutegica enfatiza-se que o

contexto sociocultural tem destacada funccedilatildeo na forma pela qual o indiviacuteduo avalia a

realidade O pertencimento a uma determinada cultura pode explicar a preponderacircncia

de determinadas respostas emotivas em detrimento de outras230

Tais observaccedilotildees satildeo feitas com o objetivo de transpocirc-las para o campo da

anaacutelise do discurso ldquoa questatildeo agora eacute saber como tirar parte desses diversos trabalhos

numa oacutetica das ciecircncias da linguagem e para aquilo que nos interessa da anaacutelise do

discursordquo231

Para isso o autor recorre agrave noccedilatildeo de ldquoesquemardquo discursivo derivada de Grize O

esquema eacute uma especiacutefica forma de organizar a realidade fazecirc-la compreensiacutevel e

assim transmitir linguisticamente as emoccedilotildees Desse modo fornecem-se 7 (sete)

229

Id ibid p 75-95 230

Id ibid p 106-112 231

ldquoLa question est maintenant de savoir comment tirer parti de ces divers travaux dans une optique de

sciences du langage et pour ce qui nous concerne drsquoanalyse du discoursrdquo (trad livre) Id ibid p 112

89

criteacuterios de esquematizaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo emotiva derivados tanto da psicologia

cognitiva quanto dos trabalhos de Plantin

(i) as pessoas implicadas identificar quem satildeo as pessoas presentes no discurso

como elas satildeo representadas e nomeadas e quais papeis satildeo a elas associadas

(ii) as noccedilotildees de tempo e de espaccedilo identificar como a situaccedilatildeo eacute descrita no

tempo e no espaccedilo pelo locutor a fim de enfatizar os seus aspectos emotivos

ldquoontem mesmordquo ldquotodos os dias no Brasilrdquo

(iii) as consequecircncias e o grau de probabilidade identificar como o discurso

descreve as consequecircncias da situaccedilatildeo esquematizada e de que modo eacute

enfatizado o grau de probabilidade de seu acontecimento

(iv) a atribuiccedilatildeo causal e a autoria identificar se o discurso assinala uma causa

para a situaccedilatildeo esquematizada e se haacute um agente cuja accedilatildeo ou omissatildeo resultou

na hipoacutetese narrada por exemplo na indignaccedilatildeo a descriccedilatildeo do sofrimento de

um determinado sujeito eacute resultado de uma accedilatildeo ou de uma omissatildeo imputaacutevel a

um agente

(v) o potencial de controle identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo

emotiva eacute esquematizado O discurso pode enfatizar o grau de incontrolabilidade

de uma determinada situaccedilatildeo a fim de despertar o medo ou pode enfatizar a sua

controlabilidade para fundar sentimentos de aliacutevio e de alegria

(vi) a semelhanccedila identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute comparada com

outra situaccedilatildeo a fim de lhe emprestar conteuacutedo emocional Por exemplo

Micheli narra que em 1791 Robespierre no debate parlamentar a respeito da

aboliccedilatildeo da pena de morte na Franccedila lanccedila a seguinte comparaccedilatildeo a fim de

demonstrar a desproporcionalidade de forccedilas presente em duas situaccedilotildees um

homem que mata uma crianccedila a qual poderia ter sido simplesmente desarmada

parece ser um monstro um prisioneiro que a sociedade condena estaacute numa

situaccedilatildeo de maior fragilidade do que a de uma crianccedila ante a um adulto

(vii) a significaccedilatildeo normativa identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute

compatiacutevel ou incompatiacutevel com os valores e normas compartilhados em relaccedilatildeo

a um grupo de referecircncia A vergonha por exemplo atua diante da crenccedila da

incapacidade de atingir as normas de determinados grupos (profissional

familiar amigos etc)232

232

Id ibid p 115-119

90

Assim e a tiacutetulo comparativo na emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo eacute expressamente

designada por meio de um termo emotivo enquanto que na emoccedilatildeo demonstrada e

suportada a identificaccedilatildeo da emoccedilatildeo eacute alcanccedilada por meio de uma interpretaccedilatildeo

inferencial Por outro lado na emoccedilatildeo demonstrada parte-se de indiacutecios (signos) a fim

de se inferir a presenccedila de determinada emoccedilatildeo e na emoccedilatildeo suportada haacute uma

esquematizaccedilatildeo dos fundamentos de uma determinada emoccedilatildeo a partir do qual se infere

a sua presenccedila233

Ademais saliente-se que estas trecircs categorias (a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo

demonstrada e a emoccedilatildeo suportada) podem simultaneamente estar presentes num

mesmo discurso ou natildeo ou seja eacute possiacutevel que um discurso seja portador de uma

emoccedilatildeo sem que expressamente a mencione

Tendo finalizada a exposiccedilatildeo da classificaccedilatildeo elaborada por Micheli eacute preciso

registrar que um dos objetivos da abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees no discurso e que

vem ao encontro do escopo deste trabalho consiste em diminuir a forte separaccedilatildeo

atualmente existente entre logos e pathos

Nesse sentido Plantin destaca que em nossa eacutepoca os aspectos racionais e

emocionais andam tatildeo desconectados que ao se falar que um discurso tem caraacuteter

emotivo levanta-se automaticamente a suspeita de se estar tratando de algo em direccedilatildeo

oposta agrave razatildeo ldquoa antinomia racional e emocional estaacute tatildeo profundamente assentada que

caracterizar um discurso como lsquoemocionalrsquo equivale praticamente a dizer que ele natildeo eacute

racional Esta interpretaccedilatildeo deve ser fortemente rejeitadardquo234

Motivos para essa forte separaccedilatildeo com niacutetido prejuiacutezo para o estudo do campo

das emoccedilotildees natildeo faltam temos a longa tradiccedilatildeo pejorativa da retoacuterica as emoccedilotildees

foram intensamente utilizadas e associadas agrave propaganda de regimes totalitaacuterios a

disciplina das falaacutecias eacute o uacutenico espaccedilo dentro da teoria standard da argumentaccedilatildeo que

tematiza as emoccedilotildees e se pudermos refletir este assunto ainda mais distante no tempo

temos antigas tradiccedilotildees filosoacuteficas tal como a escola estoica que entendem as emoccedilotildees

como irracionais contraacuterias agrave natureza excessivas e que por isso deveriam ser

suprimidas a fim de compreendermos corretamente o mundo

233

Id ibid p 119-120 234

ldquoThe antonomy rationalemotional is so deeply grounded that characterizing a discourse as lsquoemotionalrsquo

practically amounts to implying that it is not rational Such an interpretation should be strongly rejectedrdquo

(trad livre) PLANTIN Christian On the Inseparability of Emotion and Reason in Argumentation In

WEIGAND Edda (ed) Emotion in dialogic interaction AmsterdamPhiladelphia John Benjamins

Publishing Company 2004 265-276 p 274

91

No entanto e sob a perspectiva argumentativa Plantin destaca que eacute

impraticaacutevel se livrar das emoccedilotildees na linguagem jaacute que o argumentar implica tambeacutem

assumir posiccedilotildees afetivas diante do mundo ldquoEacute impossiacutevel moldar linguisticamente um

evento sem no mesmo gesto mostrar uma atitude emocional em relaccedilatildeo a este evento

Manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees emocionais natildeo satildeo distintas das manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees

racionaisrdquo235

Destaque-se que na abordagem tradicional ou padratildeo da MTA as emoccedilotildees satildeo

vistas como ldquoreforccedilosrdquo ou ldquonatildeo-argumentosrdquo ocupam papel ldquoauxiliarrdquo no discurso satildeo

registradas como ldquoapelosrdquo e por isso tecircm um tratamento teoacuterico bem limitado

aparecendo no mais das vezes como erros de argumentaccedilatildeo na disciplina das ldquofalaacutecias

adrdquo

Contra este panorama Micheli advoga que as emoccedilotildees podem ser

argumentaacuteveis isto eacute elas mesmas podem ser objeto do discurso e por isso de

construccedilatildeo argumentativa ldquoa este respeito os falantes argumentam a favor ou contra

uma emoccedilatildeo eles datildeo razotildees para fundamentar por que eles sentem (ou natildeo sentem)

esta emoccedilatildeo e por que ela deveria (ou natildeo deveria) ser legitimamente sentidardquo236

Ao analisar os registros do debate parlamentar francecircs acerca da aboliccedilatildeo da

pena de morte entre 1791 ateacute 1981 Micheli anota que havia algo em comum entre

abolicionistas e anti-abolicionistas ambos forneciam razotildees para sentir ou natildeo sentir

uma determinada emoccedilatildeo

Por exemplo no debate de 1791 tanto os abolicionistas quanto os anti-

abolicionistas elaboram o sentimento de medo por meio de argumentos de

consequecircncia

Do lado abolicionista os efeitos do ldquoespetaacuteculo da execuccedilatildeordquo sobre o puacuteblico

satildeo construiacutedos argumentativamente do seguinte modo a pena de morte alimenta o

sentimento de crueldade nas pessoas porque ocorre um processo de dessensibilizaccedilatildeo

do ser humano ldquoo espetaacuteculo da execuccedilatildeo tem por efeito atenuar ou inibir as

disposiccedilotildees morais e afetivas saudaacuteveisrdquo237

Ademais a crueldade tornada puacuteblica eacute um

235

ldquoIt is impossible to linguistically shape an event without in the same gesture displaying an emotional

attitude towards this event Emotional manipulationsconstructions are not distinct from rational

manipulations constructionsrdquo (trad livre) Id ibid p 274 236

ldquoIn this respect speakers argue in favor of or against an emotion they give reasons supporting why

they feel (or do not feel) this emotion and why it should (or should not) be legitimately feltrdquo (trad livre)

MICHELI Raphaumlel Emotions as objects of argumentative constructions In Argumentation Journal

2010b vol 24 Issue 1 1ndash17 p 13 237

ldquole spectacle de lrsquoexeacutecution a pour effet drsquoatteacutenuer voire drsquoinhiber des dispositions morales et

affectives sainesrdquo (trad livre) MICHELI R op cit 2010a p 248

92

estiacutemulo para que pessoas perversas venham a cometer crimes ou seja cria-se um

ambiente propiacutecio ao cometimento de mais delitos238

Por sua vez do lado anti-abolicionista explora-se a ineficaacutecia das penas

alternativas em diminuir a criminalidade O criminoso potencial natildeo seraacute mais

atemorizado por nada o resultado disso eacute uma sociedade cheia de crimes e de

delinquentes

Em resumo por meio da construccedilatildeo de argumentos que antecipem as

consequecircncias negativas da nova legislaccedilatildeo cada parte do debate procurou estruturar o

sentimento de medo no discurso

Por uacuteltimo conveacutem registrar que embora a teoria desenvolvida por Micheli natildeo

tenha fornecido criteacuterios para a avaliaccedilatildeo do discurso emotivo ela significativamente

melhorou a visualizaccedilatildeo do tema ao possibilitar a organizaccedilatildeo do assunto por meio de

uma classificaccedilatildeo econocircmica compreensiacutevel e com capacidade descritiva Nesse ponto

eacute necessaacuterio reconhecer que aleacutem de natildeo se interessar pelo tema das emoccedilotildees a teoria

normativa da argumentaccedilatildeo parece tambeacutem sofrer de um deacuteficit descritivo

26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees

Enfrentar o tema das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo implica tambeacutem se posicionar a

respeito de problemas de psicologia e talvez resida neste especiacutefico ponto um dos

grandes diferenciais das escolas filosoacuteficas da Antiguidade Isso porque o pensamento

antigo era caracterizado por ser integral ou seja ele abrangia os mais diversos aspectos

do saber humano (eacutetica poliacutetica retoacuterica fiacutesica epistemologia etc) o que facilitava

significativamente o tratamento do presente assunto porque a proacutepria escola filosoacutefica

produzia a sua psicologia que depois era aplicada em outras aacutereas Desse modo tanto

Aristoacuteteles quanto os estoicos transitaram com autoridade sobre o tema das emoccedilotildees

justamente porque elaboraram sua proacutepria disciplina psicoloacutegica

Eacute certo que o forte desenvolvimento da ciecircncia moderna eacute tambeacutem resultado do

fenocircmeno da especializaccedilatildeo do saber o que permite por exemplo que uma pessoa

passe a sua vida inteira apenas pesquisando sobre as propriedades dos neutrinos Mas

por outro lado eacute razoaacutevel pensar que estes ldquodesligamentosrdquo entre as aacutereas provocaram

algumas fraturas de pensamento que hoje em dia a interdisciplinaridade procura um

pouco diminuir

238

Id ibid p 248-249

93

Desse modo a fim de possibilitar a compreensatildeo psicoloacutegica de nossa eacutepoca

acerca das emoccedilotildees nosso intento neste toacutepico consiste em apresentar alguns aspectos

principais da chamada Teoria da Avaliaccedilatildeo pertencente ao campo da psicologia

cognitiva

Assim em primeiro lugar situando historicamente o nascimento da Teoria da

Avaliaccedilatildeo interessa perceber que ateacute por volta de 1960 a importacircncia das emoccedilotildees

para a psicologia era praticamente nula devido agrave resistecircncia em relaccedilatildeo ao tema por

parte do behaviorismo e do positivismo loacutegico campos da psicologia predominantes na

eacutepoca A ecircnfase dos textos de psicologia era direcionada para a aprendizagem para a

personalidade para a motivaccedilatildeo para a percepccedilatildeo para a fisiologia e para a

psicopatologia239

Quando o presente tema era abordado a uacutenica emoccedilatildeo que ganhava algum

destaque por influecircncia freudiana era a anguacutestia entendida como emoccedilatildeo-chave para

explicar os transtornos de ordem mental as demais emoccedilotildees natildeo eram tematizadas

muito menos individualizadas Havia algum interesse em relaccedilatildeo agrave culpa tambeacutem por

influecircncia da psicanaacutelise e em relaccedilatildeo agrave depressatildeo mas esta uacuteltima natildeo eacute considerada

uma emoccedilatildeo mas um complexo processo mental em que vaacuterias emoccedilotildees negativas

estatildeo atuantes240

Outro pensamento influente era de que as emoccedilotildees natildeo passavam de

interrupccedilotildees das operaccedilotildees mentais natildeo merecendo por isso atenccedilatildeo241

Assim em

resumo ldquoos psicoacutelogos acadecircmicos pareciam estar pouco interessados nas emoccedilotildees e

uma vez que eles natildeo as incluiacuteam no curriacuteculo oficial eacute possiacutevel dizer que eles as

consideravam uma mateacuteria altamente especializada talvez ateacute exoacuteticardquo242

O pecircndulo da balanccedila comeccedilou a mudar em virtude dos trabalhos pioneiros de

Magda Arnold e de Richard S Lazarus na deacutecada de 1960 Assim divergindo do

paradigma da eacutepoca Arnold defendeu na sua teoria cognitiva que a deflagraccedilatildeo da

emoccedilatildeo depende em primeiro lugar da avaliaccedilatildeo feita pelo indiviacuteduo de uma

determinada situaccedilatildeo Por sua vez Lazarus realizando pesquisas entre a relaccedilatildeo das

239

LAZARUS Richard S Emotion amp adaptation New YorkOxford Oxford University Press 1991

p 4-5 240

Id ibid p 5 241

SCHOR Angela Appraisal the evolution of an idea In SCHERER Klaus R SCHORR Angela

JOHNSTONE Tom (ed) Appraisal processes in emotion theory methods research New York

Oxford University Press 2001 20-36 p 20 242

ldquoAcademic psychologists have seemed little interested in emotion and because they do not include it

in the core curriculum they could be said to regard it as a highly specialized perhaps even exotic topicrdquo

(trad livre) LAZARUS op cit p 5

94

emoccedilotildees com o stress utilizou tambeacutem a noccedilatildeo de avaliaccedilatildeo e de reavaliaccedilatildeo No

Simpoacutesio Loyola de 1970 Lazarus destaca

Estendendo a posiccedilatildeo de Magda Arnold apenas um pouco noacutes

argumentamos que o padratildeo de excitaccedilatildeo observada na emoccedilatildeo deriva

de impulsos para agir que satildeo gerados pela situaccedilatildeo avaliada pelo

indiviacuteduo e pelas possibilidades avaliadas disponiacuteveis para a accedilatildeo243

Assim foi a partir destes trabalhos que surgiu um novo campo de estudos sobre

as emoccedilotildees na psicologia cujo denominador comum consiste em colocar a ideia de

avaliaccedilatildeo no centro de suas pesquisas Em outras palavras as emoccedilotildees satildeo o resultado

de uma avaliaccedilatildeo acerca de uma determinada situaccedilatildeo realizada pelo sujeito

Antes de prosseguir a primeira observaccedilatildeo a ser feita em relaccedilatildeo a este

posicionamento diz respeito ao fato de que ele vai ao encontro do entendimento de

Crisipo que compreendia que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees sobre a realidade Esta

surpreendente coincidecircncia eacute expressamente notada por Scherer ldquoeste fenocircmeno jaacute

tinha sido descrito pelo filoacutesofo estoico Crisipo que pode muito bem ter sido o primeiro

verdadeiro teoacuterico da avaliaccedilatildeordquo244

Outro ponto digno de menccedilatildeo quanto a esse novo momento teoacuterico vivido na

psicologia foi o aparecimento do interesse por parte dos psicoacutelogos pelo estudo da obra

de Aristoacuteteles mais precisamente pelo Livro II da Retoacuterica parte em que satildeo tratadas as

emoccedilotildees sob uma oacutetica cognitiva Lazarus destaca que com algumas breves exceccedilotildees

na histoacuteria houve praticamente um intervalo de dois mil anos ateacute que o cognitivismo

emotivo pudesse ser novamente abordado245

O fato eacute que a construccedilatildeo teoacuterica realizada tanto por Aristoacuteteles quanto pelos

estoicos eacute de boa qualidade e a despeito do tempo continua a ser bastante atual e uma

preciosa referecircncia histoacuterica acerca do tema Relembrando o que dissemos o Estagirita

compreendia que a nossa visatildeo a respeito dos mais variados assuntos se altera de acordo

com os nossos estados emocionais Aleacutem disso esquematizou e individualizou a

243

ldquoExtending Magda Arnolds position just a bit we argue that the pattern of arousal observed in

emotion derives from impulses to action which are generated by the individuals appraised situation and

by the evaluated possibilities available for actionrdquo (trad livre) LAZARUS Richard S AVERILL James

R OPTON Edward M Torwards a cognitive theory of emotions in ARNOLD Magda (org) Feelings

and emotions the Loyola symposium New YorkLondon Academic Press 1970 207-232 p 218 244

ldquoThis phenomenon has already been described by the stoic philosopher Chrysippus who may well

have been the first real appraisal theoristrdquo (trad livre) SCHERER Klaus R The nature and study of

appraisal a review of the issues In SCHERER Klaus R SCHORR Angela JOHNSTONE Tom (ed)

Appraisal processes in emotion theory methods research New York Oxford University Press 2001

369-391 p 384 245

LAZARUS R Op cit p 14

95

estrutura de vaacuterias emoccedilotildees importantes sendo que os livros de psicologia cognitiva

tecircm adotado a mesma praacutetica hoje em dia Ademais conveacutem recordar que refinamentos

da psicologia aristoteacutelica tal como a ideia de phantasia explicam o surgimento e a

estruturaccedilatildeo das emoccedilotildees Do lado estoico pode-se dizer que o cognitivismo foi ainda

mais marcante porque natildeo fazia uso da ideia de sentimentos mistos (prazer e dor)

derivada de Platatildeo Por fim aleacutem de dizer que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees os estoicos

originalmente utilizaram a ideia de impulso de assentimento e de atribuiccedilatildeo de valores

para explicar o agrupamento de determinadas emoccedilotildees

Tendo registrado essas observaccedilotildees conveacutem agora compreender com mais

detalhes a abordagem da Teoria da Avaliaccedilatildeo delimitando a competecircncia da nossa

investigaccedilatildeo ao pensamento de Lazarus e de Scherer

Assim em primeiro lugar em relaccedilatildeo agrave sua deflagraccedilatildeo as emoccedilotildees satildeo

iniciadas apenas diante de eventos que de alguma forma avaliamos relevantes para a

nossa esfera pessoal Nesse sentido satildeo para noacutes subjetivamente importantes aspectos

factuais relacionados a valores necessidades objetivos ou bem-estar geral Quando

alguns destes fatores estatildeo em jogo numa dada situaccedilatildeo e a depender de como os

avaliamos deflagra-se uma especiacutefica resposta emocional (raiva oacutedio aliacutevio vergonha

alegria amor) Portanto o evento-gatilho da emoccedilatildeo precisa ser pessoalmente

significativo pois de outra forma haveraacute indiferenccedila emocional246

Aleacutem de avaliar se um evento eacute significativo ou natildeo surge uma outra etapa do

processo avaliativo em que ponderamos possiacuteveis opccedilotildees para lidar com a situaccedilatildeo Por

exemplo diante de um problema especiacutefico geralmente abrem-se duas estrateacutegias (i)

podemos tratar de solucionaacute-lo porque ele eacute da espeacutecie dos solucionaacuteveis (dialogar ou

entrar com uma medida judicial especiacutefica podem ser alternativas possiacuteveis para

resolver a raiva causada diante de um vizinho que continuamente desrespeite a lei do

silecircncio) (ii) podemos ter que trabalhar as nossas proacuteprias emoccedilotildees diante de

problemas resistentes ou insoluacuteveis (doenccedila crocircnica grave crise financeira etc) Assim

pode ser necessaacuterio a alteraccedilatildeo da significaccedilatildeo pessoal do evento por meio de uma

reavaliaccedilatildeo fundada em bases realiacutesticas Somos seres capazes de substituir

interpretaccedilotildees que deflagrem respostas emocionais disfuncionais e altamente destrutivas

por outras melhores247

246

LAZARUS Richard S LAZARUS Bernice N Passion amp reason making sense of our emotions

New YorkOxford Oxford University Press 1994 p 143 247

Id ibid p 152-161

96

Assim em resumo na avaliaccedilatildeo o sujeito natildeo se limita a ser um mero agente

passivo e receptor das informaccedilotildees externas mas tambeacutem possui um papel ativo na

forma como lida com os fatores ambientais podendo inclusive reavaliar a significaccedilatildeo

do evento ldquouma avaliaccedilatildeo ndash de que as emoccedilotildees satildeo dependentes ndash eacute muitas vezes um

julgamento complexo sobre como estamos nos relacionando com o ambiente e com as

nossas vidas em geral e como lidar com potenciais prejuiacutezos e benefiacuteciosrdquo248

Acrescente-se que no complexo momento avaliativo compreende-se que vaacuterias

escalas de julgamento satildeo possiacuteveis isto eacute podem ocorrer desde avaliaccedilotildees impliacutecitas e

automaacuteticas ateacute aquelas com alto niacutevel de consciecircncia portando conteuacutedo conceitual e

proposicional249

Aleacutem do sistema avaliativo acima descrito destacam-se tambeacutem os seguintes

componentes que estatildeo presentes no processo emotivo (i) componente motivacional

situaccedilotildees emocionalmente relevantes satildeo motivacionais de modo que nos impelem a

alterar o nosso curso de accedilatildeo a fim de adequaacute-lo agraves novas circunstacircncias (ii)

componente orgacircnico o nosso organismo (sistema motor somato-visceral atenccedilatildeo

expressatildeo accedilatildeo) fica integralmente comprometido com a situaccedilatildeo significativa (iii)

componente prioritaacuterio situaccedilotildees emotivas reclamam precedecircncia sobre a nossa atenccedilatildeo

e sobre o nosso controle comportamental250

Uma especiacutefica preocupaccedilatildeo dos teoacutericos da Teoria da Avaliaccedilatildeo diz respeito agrave

verificaccedilatildeo da correccedilatildeo da ideia segundo a qual maacutes decisotildees estatildeo fundadas em

emoccedilotildees e boas decisotildees estatildeo baseadas em razatildeo pura Esta eacute uma questatildeo que

tambeacutem especialmente nos interessa porque via de regra a resistecircncia quanto ao

tratamento teoacuterico das emoccedilotildees estaacute assentada na forte dicotomia ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo

Primeiramente eacute preciso ter em mente que apoacutes a emoccedilatildeo ter sido deflagrada o

controle da resposta emocional por intermeacutedio de avaliaccedilotildees a respeito de que modo

iremos lidar com as tendecircncias de accedilatildeo geradas pela emoccedilatildeo eacute um momento em que a

racionalidade se faz presente Uma accedilatildeo cujas consequecircncias sejam socialmente

destrutivas deve ser num juiacutezo avaliativo repelida Essa ideia de controle emocional

por intermeacutedio da razatildeo natildeo eacute desconhecida e de certo modo esse jaacute era o

248

ldquoAn appraisalmdashon which emotions dependmdashis often a complex judgment about how we are doing in

an encounter with the environment and in our lives overall and how to deal with potential harms and

benefitsrdquo (trad livre) Id ibid p 144 249

SCHERER Klaus R What are emotions And how can they be measured In Social Science

Information vol 44 n 4 2005 695-729 p 701 250

SCHERER Klaus R On the rationality of emotions or when are emotions rational In Social

Science Information vol 50 2011 330-350 p 334-335

97

posicionamento de Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando diz que as emoccedilotildees tecircm a

capacidade de ouvir a razatildeo

Todavia Lazarus afirma que a racionalidade tambeacutem se faz presente no primeiro

momento do processo emotivo o surgimento de uma emoccedilatildeo soacute ocorre porque uma

avaliaccedilatildeo compreende que certos objetivos valores ou crenccedilas acerca do mundo estatildeo

sendo numa determinada situaccedilatildeo prejudicados ou beneficiados Esta avaliaccedilatildeo

depende de racionalidade e vem acompanhada de pensamentos ainda que o raciociacutenio

em que tal julgamento seja embasado possa ser agraves vezes equivocado251

Sob tal perspectiva pode-se dizer que as emoccedilotildees estatildeo fundadas em razotildees

porque elas repousam numa loacutegica proacutepria A raiva de um determinado sujeito pode

soar desarrazoada para um estranho e de fato as atitudes geradas pela referida emoccedilatildeo

podem trazer um grande prejuiacutezo social por falta de adequado controle mas uma

pesquisa mais detalhada dos seus motivos revela que uma avaliaccedilatildeo conduziu a esta

resposta emocional especiacutefica porque entendeu que valores objetivos ou necessidades

do sujeito foram prejudicados numa determinada situaccedilatildeo

Assim anota Lazarus a razatildeo estaacute presente em todos os estaacutegios do processo

emotivo mas isso natildeo significa dizer que haja uma supremacia da razatildeo sobre a

emoccedilatildeo porque entre as duas haacute uma relaccedilatildeo de dupla dependecircncia natildeo apenas a

emoccedilatildeo precisa de aspectos racionais para o seu surgimento e para o seu controle mas a

razatildeo soacute eacute proveitosa diante do balanceamento da emoccedilatildeo Nesse sentido pontua

ldquoexiste algo de equiliacutebrio entre a razatildeo e a emoccedilatildeo Caso contraacuterio aiacute reside a

loucurardquo252

As emoccedilotildees assim tecircm uma funccedilatildeo primordial na sobrevivecircncia na

adaptaccedilatildeo no conhecimento e na qualidade de vida do indiviacuteduo

Uma consequecircncia de tal abordagem reside na reduccedilatildeo da dicotomia ldquorazatildeo vs

emoccedilatildeordquo porque ainda que a avaliaccedilatildeo em que se fundou a emoccedilatildeo seja pouco realista

natildeo-saacutebia e ateacute tola eacute possiacutevel extrair racionalidade que vincula o seu surgimento a

objetivos e crenccedilas do indiviacuteduo Desse modo ao inveacutes de insistir na mencionada

dicotomia eacute mais interessante tentar identificar quando raciociacutenios em que se baseiam

as emoccedilotildees satildeo considerados razoaacuteveis ou natildeo

Lazarus nesse intento relaciona uma lista de motivos que geralmente resultam

num erro de avaliaccedilatildeo (i) retardaccedilatildeo mental psicose e danos cerebrais (ii) falta de

251

LAZARUS R Op cit 1994 p 199-200 252

ldquoThere is something of a balance between them If not there lies madnessrdquo (trad livre) Id ibid p

203

98

conhecimento (iii) crenccedilas pessoais (iv) ambiguidade (v) falta de atenccedilatildeo (vi)

rejeiccedilatildeo253

Por exemplo um relevante segmento da populaccedilatildeo pode avaliar que a presenccedila

de imigrantes estaacute relacionada ao crescimento do cometimento dos mais diversos crimes

e agrave perda da identidade cultural da naccedilatildeo deflagrando-se um generalizado medo social

contra pessoas oriundas de outros paiacuteses Para solucionar tal problema avalia-se que a

melhor accedilatildeo a ser tomada consiste no enrijecimento da poliacutetica de imigraccedilatildeo do paiacutes

Essa avaliaccedilatildeo generalizada pode estar fundada em vaacuterios erros de julgamento

como a falta de conhecimento de estatiacutesticas que comprovem que natildeo apenas o nuacutemero

de imigrantes seja iacutenfimo mas que o nuacutemero de crimes praticados por imigrantes seja

muito irrelevante Ela pode estar pouco atenta ao fato de que o paiacutes natildeo tem uma

poliacutetica de integraccedilatildeo de imigrantes fazendo que muitos deles permaneccedilam excluiacutedos

da sociedade Ela pode desconsiderar o fato de que o paiacutes precisa de matildeo-de-obra

imigrante para o setor de serviccedilos e consequentemente para o seu crescimento

econocircmico E pode ateacute desconhecer que alguns imigrantes estavam em condiccedilatildeo de

risco em seus paiacuteses de origem Assim um trabalho de investigaccedilatildeo estaacute comprometido

em identificar em que se sustenta esse medo para possibilitar a criaccedilatildeo de poliacuteticas

puacuteblicas especiacuteficas que busquem desconfirmar as razotildees que o suportam

Scherer por sua vez ressalta que o paradigma da racionalidade perfeita em que

teriacuteamos todo o tempo possiacutevel para tomar decisotildees e disporiacuteamos de abundantes e

conclusivas informaccedilotildees a respeito do assunto objeto de deliberaccedilatildeo raramente eacute

atingido nas condiccedilotildees da vida praacutetica em que geralmente temos limitado prazo para

solucionar algo e natildeo possuiacutemos tantas informaccedilotildees quanto gostariacuteamos Assim no

mundo real em que vivemos as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas agrave

situaccedilatildeo satildeo bons suportes para decisotildees e compatiacuteveis com as concepccedilotildees de

racionalidade usualmente aceitas (instrumental inferencial e consensual) A seu ver a

tentativa de enquadraacute-las como irracionais eacute incompatiacutevel com a sua importacircncia

o sistema emotivo eacute um dos mais eficientes mecanismos

filogeneticamente evoluiacutedos para a adaptaccedilatildeo em organismos

superiores Mais especificamente pode-se mostrar que foi o

desenvolvimento das emoccedilotildees que libertou os organismos do riacutegido

controle de estiacutemulos proporcionando assim um repertoacuterio

comportamental altamente flexiacutevel e portanto uma oacutetima adaptaccedilatildeo

253

Id ibid p 208-213

99

para um ambiente de constante mudanccedila e de muacuteltiplos contextos

sociais254

Assim diante do modelo teoacuterico exposto parece-nos que uma abordagem que

leve em consideraccedilatildeo as emoccedilotildees natildeo pode partir do pressuposto de que elas natildeo satildeo

dignas de tematizaccedilatildeo por sua manifesta irracionalidade Ademais uma teoria da

argumentaccedilatildeo que encare seriamente o fenocircmeno emotivo precisa acessar um saber

psicoloacutegico sob pena de se construir em cima de bases artificiais

254

ldquoThe emotion system is one of the most efficient phylogenetically evolved mechanisms for adaptation

in higher organisms More specifically it can be shown that it was the development of emotion that freed

organisms from rigid stimulus control thus providing for a highly flexible behavioral repertoire and thus

optimal adaptation to an ever-changing environment and multiple social contextsrdquo (trad livre)

SCHERER K Op cit 2011 p 331

100

3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO

31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito

Se no Capiacutetulo I examinamos a importacircncia do estudo das emoccedilotildees na

Antiguidade o Capiacutetulo II foi dedicado a investigar a sua recepccedilatildeo pela MTA com o

objetivo de inclusive coletar criteacuterios para anaacutelise e para avaliaccedilatildeo de decisotildees

judiciais Nesse intuito construiacutemos o ambiente histoacuterico do surgimento da MTA

observamos a abordagem teoacuterica dos ldquopais fundadoresrdquo examinamos o tema na

disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo percebemos a reaccedilatildeo teoacuterica de Douglas Walton Por fim

analisamos uma abordagem linguiacutestica e descritiva do discurso emotivo bem como o

posicionamento da psicologia cognitiva especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo a

respeito deste assunto

Este Capiacutetulo por sua vez busca refletir especificamente a importacircncia das

emoccedilotildees no acircmbito do direito Assim este toacutepico buscaraacute responder agrave pergunta mais

baacutesica sobre esse tema eacute possiacutevel pensar o fenocircmeno juriacutedico sem as emoccedilotildees Qual a

sua relevacircncia

Um possiacutevel ponto de partida para refletir este toacutepico seria pensarmos a partir do

proacuteprio desenvolvimento teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo e as suas respectivas

consequecircncias na aacuterea do direito Conforme vimos as emoccedilotildees satildeo deflagradas diante

de eventos que avaliamos relevantes do ponto de vista de valores crenccedilas objetivos

bem-estar geral Em outras palavras as emoccedilotildees encontram terreno feacutertil para serem

iniciadas apenas em face de eventos significativamente salientes A este respeito

poderiacuteamos desde jaacute elucubrar que o direito seria o haacutebitat especiacutefico deste tema

porque os assuntos de que ele se ocupa em grande parte nos tocam profundamente e

satildeo deflagradores de fortes emoccedilotildees crimes hediondos homiciacutedio latrociacutenio

maioridade penal direito de famiacutelia divoacutercio adoccedilatildeo uniatildeo homoafetiva direitos

humanos cotas raciais direito do consumidor aborto eutanaacutesia direito agrave sauacutede

indenizaccedilatildeo moral e tantos outros

Contra esta ideia e prosseguindo no raciociacutenio eacute possiacutevel arguir de maneira

plausiacutevel que natildeo deveriacuteamos nos guiar por nenhuma dessas emoccedilotildees eventualmente

suscitadas caso contraacuterio os efeitos seriam catastroacuteficos Assim pessoas com

descontrolaacutevel raiva munidas de tremendo oacutedio e de indignaccedilatildeo ou melhor

101

apaixonadas estatildeo desprovidas da capacidade de raciociacutenio e por isso natildeo podem ser

paracircmetro de direcionamento nem para a legislaccedilatildeo nem para a decisatildeo judicial

O direito estaria assim exclusivamente no campo de uma racionalidade strictu

sensu natildeo lhe sendo admitida a intromissatildeo de qualquer elemento exoacutegeno Nussbaum

nesse ponto diz que uma possiacutevel reaccedilatildeo em face da tentativa de introduzir elementos

emotivos no acircmbito juriacutedico seria alegar a sua completa irracionalidade e por isso a

impossibilidade de levaacute-los em consideraccedilatildeo ldquoexiste um famoso lugar-comum no

sentido de que o direito eacute baseado na razatildeo e natildeo na paixatildeordquo255

Eacute possiacutevel chamar a

tradiccedilatildeo legal que compreende as emoccedilotildees como estranhas ao direito de proposta ldquonatildeo-

emotivardquo Poreacutem um tal posicionamento simplesmente desqualifica tanto o debate

teoacuterico e praacutetico acerca do direito ldquoem primeiro lugar o direito sem apelo agrave emoccedilatildeo eacute

virtualmente impensaacutevelrdquo256

A introduccedilatildeo de uma abordagem emotiva no direito eacute necessaacuteria agrave compreensatildeo

do fenocircmeno juriacutedico em vaacuterios sentidos conseguimos entender por que alguns tipos de

danos contra nossa esfera privada e coletiva satildeo condenados e outros natildeo por que

algumas leis adquirem determinada forma por que decisotildees judiciais podem levar em

consideraccedilatildeo certos tipos de emoccedilatildeo ldquomais profundamente eacute difiacutecil compreender a

racionalidade de muitas das nossas praacuteticas juriacutedicas a menos que levemos em

consideraccedilatildeo as emoccedilotildeesrdquo257

Uma maneira adequada para compreender essa relaccedilatildeo em comentaacuterio consiste

em observar que o direito soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres passiacuteveis de vulnerabilidade

isto eacute a existecircncia de proteccedilatildeo legal apenas pode resguardar sujeitos cujas vidas

possam de algum modo sofrer certos tipos de danos ou contingecircncias Assim num

exerciacutecio de imaginaccedilatildeo natildeo faria sentido uma norma cujo conteuacutedo protegesse seres

invulneraacuteveis autossuficientes imortais porque eles natildeo podem sofrer nenhum

prejuiacutezo nada lhes pode ferir ou causar qualquer espeacutecie de estrago258

E somente em relaccedilatildeo a seres cuja constituiccedilatildeo seja caracterizada pela

vulnerabilidade eacute que as emoccedilotildees fazem sentido Assim as emoccedilotildees satildeo respostas agraves

mais diversas fragilidades existentes no ser humano Por exemplo uma vez que a nossa

255

ldquoThere is a popular commonplace to the effect that the law is based on reason and not passionrdquo (trad

livre) NUSSBAUM Martha Hiding from humanity disgust shame and the law PrincetonOxford

Princeton University Press 2004 p 5 256

ldquoFirst of all law without appeals to emotion is virtually unthinkablerdquo (trad livre) Id ibid p 5 257

ldquoMore deeply it is hard to understand the rationale for many of our legal practices unless we do take

emotions into accountrdquo (trad livre) Id ibid p 6 258

Id ibid p 6

102

reputaccedilatildeo eacute vulneraacutevel e por isso pode ser socialmente destruiacuteda estamos sujeitos agrave

vergonha e a lei penal nos protege por meio da tipificaccedilatildeo dos crimes de caluacutenia de

difamaccedilatildeo ou de injuacuteria A lei penal tambeacutem nos protege do medo de eventualmente

termos nossa integridade fiacutesica psiacutequica patrimonial violada porque em todas essas

aacutereas somos sujeitos a vaacuterias espeacutecies de danos

Assim um ser cuja constituiccedilatildeo natildeo possa de alguma forma sofrer danos natildeo

poderaacute experimentar uma resposta emotiva Nada lhe deflagraraacute medo jaacute que nenhum

mal pode lhe sobrevir Nada lhe provocaraacute vergonha raiva ou qualquer sorte de emoccedilatildeo

deflagrada pela razoaacutevel possibilidade de ocorrer prejuiacutezos agrave sua esfera pessoal ldquoeles

natildeo possuiriam razotildees para ter tristeza porque sendo autossuficientes natildeo amariam

nada fora de si pelo menos natildeo com o necessaacuterio tipo de amor humano que daacute origem a

uma profunda perda e depressatildeordquo259

Neste momento parece-nos apropriado retomar a ideia estoica de apatheia

Conforme vimos os estoicos possuiacuteam uma escala de valores bem singular a uacutenica

coisa boa que existe eacute a virtude e a uacutenica ruim eacute o viacutecio a virtude se confunde com a

felicidade e o viacutecio com a infelicidade Assim sauacutede beleza riqueza fama bens

materiais satildeo considerados indiferentes eacute certo que alguns satildeo preferiacuteveis (sauacutede por

exemplo) e outros natildeo-preferiacuteveis mas ainda assim todos satildeo indiferentes porque a

sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a conquista da felicidade Eacute possiacutevel ser feliz na miseacuteria

na doenccedila na tortura Poreacutem eacute impossiacutevel ser feliz caso o indiviacuteduo natildeo possua virtude

Os indiferentes se caracterizam pela sua contingecircncia e pela sua ambiguidade isto eacute

eles satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna mundana aleacutem de poderem ser tanto beneacuteficos

quanto maleacuteficos Nessa ordem de ideias ateacute a sauacutede pode ser mal utilizada caso a

detenccedilatildeo de boa sauacutede seja instrumentalizada para objetivos ruins (participar de roubos

assaltos etc)

Nesse modelo teoacuterico as emoccedilotildees precisam ser eliminadas porque quem

experimenta as emoccedilotildees do homem comum valora equivocadamente o que de fato eacute

bom ou ruim O saacutebio estoico tendo atingido a suma racionalidade no caminho para a

compreensatildeo do mundo corretamente livrou-se de todas as emoccedilotildees desvinculou-se

dos bens externos (indiferentes) e tornou-se um ser autossuficiente e virtuoso ldquoos

filoacutesofos estoicos gregos e romanos recorreram a esta ideia ao pedir na medida em que

259

ldquoThey would have no reasons for grief because being self-sufficient they would not love anything

outside themselves at least not with the needy human type of love that gives rise to profound loss and

depressionrdquo (trad livre) Id ibid p 6

103

pudermos para nos tornarmos pessoas autossuficientes extirpando as emoccedilotildees de

nossas vidasrdquo260

Diante de tal concepccedilatildeo eacute possiacutevel indagar o modelo estoico da apatheia eacute uma

abordagem plausiacutevel para a compreensatildeo do sistema juriacutedico tal qual o conhecemos

Certamente natildeo

O sistema juriacutedico eacute um conjunto de regras e princiacutepios que tutela os nossos bens

materiais a nossa integridade fiacutesica e psiacutequica a nossa sauacutede a nossa esteacutetica o nosso

patrimocircnio cultural a nossa intimidade a nossa reputaccedilatildeo social e identidade E assim o

faz porque atribuiacutemos enorme valor a todos esses aspectos de nossa existecircncia

Ademais por valorarmos todos esses aspectos e por temermos possiacuteveis prejuiacutezos ou

danos em relaccedilatildeo a eles o direito leva em consideraccedilatildeo as nossas emoccedilotildees

Se desprezarmos todas as respostas emocionais que nos ligam a este

mundo daquilo que os estoicos chamavam de lsquobens externosrsquo

deixamos de lado uma grande parte da nossa humanidade e uma parte

que estaacute no cerne de explicar por que temos leis civis e criminais e

que forma elas tomam261

Assim qualquer ordenamento juriacutedico apenas adquire contorno apoacutes a seleccedilatildeo

das condutas e dos bens (materiais e imateriais) em virtude dos quais as nossas

respostas emotivas satildeo relevantes A estrutura das leis criminais e civis espelha o medo

social de sua eacutepoca As leis que protegem a vida expressam a medida desse temor e

declaram a indignaccedilatildeo contra condutas que se contraponham aos seus mandamentos

ldquotoda a estrutura do direito penal pode-se dizer que implica uma imagem do que temos

razotildees para estar zangado ou temerosordquo262

Mas a questatildeo natildeo se restringe apenas agrave formataccedilatildeo da legislaccedilatildeo Por exemplo

em 1976 a Suprema Corte americana declarou inconstitucional a lei da Carolina do

Norte que estabelecia pena de morte porque natildeo possibilitava que o reacuteu apresentasse a

sua histoacuteria de vida nem apelasse agrave compaixatildeo dos jurados nos seguintes termos

Um processo que atribui nenhum significado para relevantes facetas

de caraacuteter e os antecedentes do infrator ou as circunstacircncias de

determinado delito exclui de consideraccedilatildeo na fixaccedilatildeo da pena de

morte a possibilidade de fatores de compaixatildeo ou atenuantes

decorrentes das diversas fragilidades do ser humano Ele trata todas as

260

ldquoThe Greek and Roman Stoic philosophers draw on this idea when they ask us all to become such self-

sufficient people insofar as we can extirpating the emotions from our livesrdquo (trad livre) Id ibid p 6 261

ldquoIf we leave out all the emotional responses that connect us to this world of what the Stoics called

lsquoexternal goodsrsquo we leave out a great part of our humanity and a part that lies at the heart of explaining

why we have civil and criminal laws and what shape they takerdquo (trad livre) Id ibid p 7 262

the whole structure of criminal law might be said to imply a picture of what we have reason to be

angry at what we have reason to fear (trad livre) Id ibid p 11

104

pessoas condenadas por um delito natildeo como seres humanos

unicamente individuais mas como membros de uma indiferenciada

massa sem rosto para serem submetidos agrave imposiccedilatildeo cega da pena de

morte263

De outra parte no direito norte-americano o acusado de crime de homiciacutedio

voluntaacuterio pode obter uma reduccedilatildeo penal caso prove que o homiciacutedio tenha sido

cometido em resposta a uma provocaccedilatildeo da viacutetima que tal provocaccedilatildeo tenha sido

ldquoadequadardquo que a raiva do acusado possa ser enquadrada como uma raiva atribuiacutevel a

um homem-meacutedio e que o homiciacutedio tenha sido cometido no calor da emoccedilatildeo sem

tempo suficiente para reflexatildeo264

No Brasil de seu turno uma violenta emoccedilatildeo eacute causa

atenuante da pena de acordo com os arts 65 III ldquocrdquo 121 sect 1ordm e 129 sect 9ordm do Coacutedigo

Penal

Para a configuraccedilatildeo da legiacutetima defesa exige-se que ela seja praticada em face

de uma conduta que provoque medo razoaacutevel de modo que o medo precisa ser

argumentado para fins da decisatildeo judicial Ademais o apelo agrave compaixatildeo eacute largamente

admitido no direito penal norte-americano ldquomesmo os juristas mais cautelosos

concordam que a compaixatildeo eacute construiacuteda no processo de condenaccedilatildeo e qualquer

tentativa de eliminaacute-la viola os direitos fundamentaisrdquo265

Nussbaum partindo dos estoicos e da filosofia claacutessica recorre ao modelo da

psicologia cognitiva a fim de utilizar um paradigma teoacuterico acerca das emoccedilotildees

passiacutevel de ser empregado para compreender o direito Assim a seu ver as emoccedilotildees satildeo

resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos Apenas temos respostas

emocionais diante de algo ou de uma situaccedilatildeo significativamente relevante para a nossa

esfera pessoal Caso a situaccedilatildeo envolva banalidades ela seraacute emocionalmente

irrelevante Desse modo diferentemente da propagada ideia popular que as

compreende como meros impulsos instintuais ou algo desprovido de qualquer

raciociacutenio as emoccedilotildees natildeo podem ser consideradas irracionais num sentido descritivo

embora elas o possam ser num sentido normativo isto eacute quando fundadas em crenccedilas

263

Trata-se do caso Woodson v North Carolina (1976) citado por Nussbaum ldquoA process that accords no

significance to relevant facets of the character and record of the individual offender or the circumstances

of the particular offense excludes from consideration in fixing the ultimate punishment of death the

possibility of compassionate or mitigating factors stemming from the diverse frailties of humankind It

treats all persons convicted of a designated offense not as uniquely individual human beings but as

members of a faceless undifferentiated mass to be subjected to the blind infliction of the penalty of

deathrdquo Id ibid p 21 264

Id ibid p 37 265

ldquoeven the most cautious jurists agree that compassion is built into the sentencing process and that any

attempt to eliminate it violates fundamental rightsrdquo Id ibid p 56

105

ou pensamentos equivocados (racismo sexismo etc)266

ldquopodemos destacar quando a

emoccedilatildeo de algueacutem repousa sobre crenccedilas que satildeo verdadeiras ou falsas e (um ponto

separado) razoaacutevel ou natildeo razoaacutevelrdquo267

No entanto o mais importante a ser destacado eacute que elas satildeo factiacuteveis de

observaccedilatildeo e de discussatildeo criacutetica Para aleacutem de tal constataccedilatildeo descritiva (as emoccedilotildees

satildeo resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos) tambeacutem eacute possiacutevel

avaliar as emoccedilotildees vale dizer eacute aceitaacutevel ponderar o papel que elas desempenham em

determinados ramos do direito e de que modo elas poderiam ser o nossos guias na vida

puacuteblica restabelecendo assim o debate aristoteacutelico entre emoccedilotildees

adequadasinadequadas de acordo com as circunstacircncias e as emoccedilotildees perversas isto eacute

aquelas que natildeo deveriam ser os nossos paracircmetros em nenhuma hipoacutetese

Exemplificativamente a repugnacircncia268

eacute uma emoccedilatildeo bastante marcante na

vida do ser humano e na constituiccedilatildeo da formaccedilatildeo cultural de uma sociedade Ela estaacute

relacionada ao acircmbito de nossas necessidades iacutentimas ao que entendemos por limpeza

por sujeira ou imundiacutecie agrave maneira pela qual administramos os resiacuteduos fecais a urina

os gases puacutetridos as secreccedilotildees o lixo ela gerencia os odores suportaacuteveis e natildeo

suportaacuteveis do indiviacuteduo estaacute relacionada ao que entendemos por nojento repulsivo

asqueroso tem uma funccedilatildeo na fisiologia humana porque nos adverte sobre possiacuteveis

contaminantes existentes no ambiente (comida liacutequido etc) que podem nos infectar

provocando doenccedilas e ateacute a morte Em resumo a repugnacircncia nos guia na nossa rotina

diaacuteria de limpezas escovaccedilotildees asseios lavagens isolamentos embalagens

organizaccedilotildees no uso de bactericidas de inseticidas de perfumes de aromatizantes etc

Mas para aleacutem do acircmbito das intimidades e da funccedilatildeo fisioloacutegica a repugnacircncia

invade outras aacutereas da existecircncia humana Assim a nossa vida moral eacute tambeacutem

constituiacuteda por essa emoccedilatildeo que nos conduz a fazer certas escolhas no domiacutenio privado

e puacuteblico Por consequecircncia (e inevitavelmente) ela adentra no acircmbito do direito ldquoa

repugnacircncia tambeacutem desempenha um papel poderoso no direito Ela aparece em

primeiro lugar como a principal ou mesmo a uacutenica justificaccedilatildeo para tornar algumas

condutas ilegaisrdquo269

266

Id ibid p 10-11 267

ldquoWe can point out that someonersquos emotion rests on beliefs that are true or false and (a separate point)

reasonable or unreasonablerdquo (trad livre) Id ibid p 31 268

O termo inglecircs eacute disgust cuja traduccedilatildeo tambeacutem pode ser vertida por nojo ou por aversatildeo mas que

preferimos a expressatildeo ldquorepugnacircnciardquo por acharmos mais adequada agrave nossa cultura emocional 269

ldquoDisgust also plays a powerful role in the law It figures first as the primary or even the sole

justification for making some acts illegalrdquo (trad livre) Id ibid p 72

106

Assim a lei que regula os atos obscenos eacute guiada em grande parte pelos

pensamentos de repugnacircncia prevalecentes no padratildeo moral da sociedade de sua eacutepoca

A Suprema Corte americana observou quando da aplicaccedilatildeo da lei de atos obscenos que

a proacutepria palavra ldquoobscenordquo deriva do latim caenum cujo significado eacute repugnante A

repugnacircncia do criminoso em relaccedilatildeo a uma viacutetima homossexual jaacute foi considerada fator

atenuante em crime de homiciacutedio Aleacutem disso a repugnacircncia do juiz ou do juacuteri tambeacutem

eacute considerada um guia para ponderar na decisatildeo a presenccedila de potenciais fatores

agravantes no fato delituoso270

Na comissatildeo de exame de assuntos eacuteticos do governo americano acerca das

pesquisas de ceacutelulas-tronco o especialista em bioeacutetica Leon Kass argumentou que as

novas possibilidades da medicina deveriam ser submetidas agrave ldquosabedoria da

repugnacircnciardquo a fim de alcanccedilarmos uma conclusatildeo eacutetica sobre o seu disciplinamento

juriacutedico Quanto agrave possibilidade de clonagem humana o seu banimento foi justificado

por idecircntico motivo271

No Brasil a repugnacircncia eacute criteacuterio expresso em nossa legislaccedilatildeo para a criaccedilatildeo

de fatos tiacutepicos Assim os crimes hediondos satildeo aqueles que nos provocam repulsa

repugnacircncia nojo aversatildeo Hediondo vem da palavra em latim ldquofoetibundusrdquo que

significa ldquoo que cheira malrdquo a outra palavra relacionada em latim eacute ldquofoetererdquo que

significa ldquofeder ter mau cheirordquo

Em defesa da repugnacircncia como guia na vida puacuteblica podem-se colher os

seguintes argumentos (i) toda sociedade tem o direito agrave autopreservaccedilatildeo moral e para

isso as leis devem ser elaboradas levando em consideraccedilatildeo as respostas emotivas de

repugnacircncia dos seus membros (ii) a repugnacircncia eacute uma sabedoria social que nos

impede transgredir o que eacute moralmente profundo numa determinada comunidade (iii) eacute

preciso combater os viacutecios de uma determinada sociedade por meio de sentimentos de

repugnacircncia e (iv) a repugnacircncia eacute essencial para condenar e reprimir crueldades272

Todavia alega Nussbaum a repugnacircncia nunca deveria ser paracircmetro para

elaboraccedilatildeo de leis pois tal emoccedilatildeo estaacute ligada a pensamentos de pureza de

contaminaccedilatildeo de contaacutegio Do ponto de vista teoacuterico estaacute conectada agrave ideia do

decaimento das condiccedilotildees naturais do nosso corpo da nossa mortalidade da nossa

animalidade A repugnacircncia historicamente foi direcionada a certos grupos sociais

270

Id ibid p 72 271

Id ibid p 72-73 272

Id ibid p 73

107

(mulheres homossexuais negros etc) que eram associados a todos os predicados

(imundos sujos nojentos fedorentos) respeitantes a tal emoccedilatildeo

ao longo da histoacuteria certas propriedades repugnantes ndash viscosidade

fedor ligosidade decadecircncia imundiacutecie ndash tecircm repetida e

monotonamente sido associadas ou melhor projetadas em grupos de

referecircncia a quem os grupos privilegiados procuram contrastar o seu

estado humano superior Judeus mulheres homossexuais intocaacuteveis

pessoas de classe baixa todos eles satildeo imaginados como maculados

pela sujeira do corpo273

Outra emoccedilatildeo fortemente relacionada ao direito eacute a vergonha No direito norte-

americano discute-se a imposiccedilatildeo de penalidades que tenha a capacidade de

profundamente envergonhar o cidadatildeo em substituiccedilatildeo agraves denominadas ldquopenas

alternativasrdquo (penas pecuniaacuterias ou prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade) jaacute que estas

natildeo tecircm a aptidatildeo de gerar a transformaccedilatildeo do caraacuteter do indiviacuteduo Ateacute a cadeia

ambiente em que o indiviacuteduo estaacute longe do olhar social punitivo natildeo tem a capacidade

de lhe humilhar Assim as penalidades que imponham severos sentimentos de vergonha

conseguiriam atingir de maneira muito mais eficiente o propoacutesito de retribuiccedilatildeo de

dissuasatildeo de expressatildeo e de reforma ou reintegraccedilatildeo necessaacuterios para a vida em

sociedade274

Com efeito os exemplos acima descritos demonstram que a relaccedilatildeo entre o

direito e as emoccedilotildees eacute muito mais profunda do que se pode a princiacutepio imaginar

Ademais eacute interessante notar que essa constataccedilatildeo tem sido objeto de investigaccedilatildeo nos

EUA haacute algum tempo originando um campo de estudo hoje denominado de ldquoLaw and

Emotionrdquo em cujo contexto a obra de Nussbaum estaacute inserida

Maroney destaca que a trajetoacuteria do movimento ldquoLaw and Emotionrdquo tem sido

dura porque a construccedilatildeo teoacuterica da modernidade juriacutedica estaacute fundada na ideia de que

a razatildeo e a emoccedilatildeo se localizam em campos tatildeo distintos que eacute necessaacuterio eficiente

policiamento a fim de que as emoccedilotildees natildeo escorreguem no campo do direito e

corrompam o discurso juriacutedico ldquoEste modelo teoacuterico tem persistido apesar de sua

273

ldquothroughout history certain disgust propertiesmdashsliminess bad smell stickiness decay foulnessmdash

have repeatedly and monotonously been associated with indeed projected onto groups by reference to

whom privileged groups seek to define their superior human status Jews women homosexuals

untouchables lower-class peoplemdashall these are imagined as tainted by the dirt of the bodyrdquo (trad livre)

Id ibid p 108 274

Id ibid p 227-228

108

implausibilidade como modelo de como os seres humanos vivem ou de como o nosso

direito eacute estruturado e administradordquo275

Natildeo obstante esse novo campo de estudo em que a interdisciplinaridade se faz

fortemente presente recentemente tem conseguido cada vez mais adeptos sendo

possiacutevel visualizar as seguintes abordagens teoacutericas sugeridas por Maroney

Haacute um interesse no estudo das emoccedilotildees em si mesmas isto eacute investiga-se de

que modo emoccedilotildees especiacuteficas influenciam ou deveriam influenciar a elaboraccedilatildeo de

leis Assim conforme visto a repugnacircncia a vergonha e o medo satildeo exemplos de

emoccedilotildees que despertam curiosidade de anaacutelise e de criacutetica

O medo por exemplo aumenta sentimentos de percepccedilatildeo de risco e gera

demanda por novos mecanismos de seguranccedila promovendo significativas alteraccedilotildees

juriacutedicas ldquoo medo torna os indiviacuteduos mais propensos a apoiar medidas de seguranccedila

em detrimento de outras liberdades importantes e incentiva o apoio a poliacuteticas

conservadoras em geralrdquo276

Por outro lado exemplificativamente discute-se como o

medo decorrente da ldquosiacutendrome das mulheres agredidasrdquo isto eacute uma especial condiccedilatildeo

mental presente em mulheres constantemente viacutetimas de agressatildeo por seus

companheiros deve ser considerado na defesa do processo penal para configuraccedilatildeo da

legiacutetima defesa277

Tambeacutem eacute objeto de preocupaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma teoria das emoccedilotildees com

metodologia categorias e conceitos proacuteprios a fim de possibilitar uma aplicaccedilatildeo

sistemaacutetica e coesa ao direito278

Existe a chamada abordagem doutrinaacuteria em que se estuda como uma especiacutefica

aacuterea do direito incorpora poderia ou deveria incorporar uma determinada emoccedilatildeo Haacute a

abordagem da teoria juriacutedica que analisa criticamente sob o seu ponto de vista a teoria

das emoccedilotildees E haacute uma abordagem sobre a influecircncia das emoccedilotildees sobre o papel dos

atores juriacutedicos ldquoa abordagem do ator-juriacutedico enfatiza os seres humanos que povoam

275

ldquoThis theoretical model has persisted despite its implausibility as a model of either how humans live or

how our law is structured and administeredrdquo (trad livre) MARONEY Terry A Law and Emotion A

Proposed Taxonomy of an Emerging Field In Law and Human Behavior vol 30 2006 119-142 p

120-121 Disponiacutevel em httpssrncomabstract=726864 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 276

PIZARRO David We cannot be emotionless but we are capable of rational debate Disponiacutevel

em httpwwwtheglobeandmailcomglobe-debatewe-cannot-be-emotionless-but-we-are-capable-of-

rational-debatearticle4310309 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 277

MARONEY T Op cit p 126 278

Id ibid p 126

109

os sistemas juriacutedicos e explora como a emoccedilatildeo influecircncia e informa ou deveria

influenciar ou informar o desempenho da funccedilatildeo legal atribuiacuteda a essas pessoasrdquo279

Portanto ao contraacuterio do que poderia aparentar agrave primeira vista as emoccedilotildees

participam em vaacuterios niacuteveis da constituiccedilatildeo do direito e de sua praacutetica de modo que

uma abordagem que tambeacutem privilegie o seu estudo permitiraacute uma melhor compreensatildeo

da dinacircmica do fenocircmeno juriacutedico possibilitando proveitosamente novas formas de

criacutetica teoacuterica agrave maneira pela qual o direito eacute estruturado

32 Anaacutelise

Uma vez exploradas algumas conexotildees existentes entre o direito e as emoccedilotildees

parte-se agora para a anaacutelise de trecircs decisotildees judiciais do STF em cujo corpo

procuraremos demonstrar a presenccedila de argumentos emotivos Escolhemos os julgados

pela sua repercussatildeo social assim como para demonstrar que as emoccedilotildees estatildeo

presentes ao contraacuterio do que se poderia imaginar nos mais variados temas juriacutedicos

Neste toacutepico nosso intuito consiste em realizar um exame argumentativo apenas

sob um vieacutes descritivo utilizando como auxiacutelio a classificaccedilatildeo argumentativa proposta

por Micheli no Capiacutetulo II Conforme vimos na referida classificaccedilatildeo existe a emoccedilatildeo

dita a emoccedilatildeo demonstrada e a emoccedilatildeo suportada Embora ao longo de nossa anaacutelise

iremos destacar quando presentes as emoccedilotildees ditas e as demonstradas o nosso

objetivo consiste em evidenciar de que modo as emoccedilotildees satildeo suportadas no discurso

Ademais conveacutem registrar que considerando a grande extensatildeo dos votos seratildeo

selecionados os principais argumentos utilizados pelos ministros para sustentar uma

determinada emoccedilatildeo

321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo

Na Arguiccedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental ndash ADPF nordm 101 (DJ

2462009) ajuizada pelo Presidente da Repuacuteblica estava em discussatildeo a

constitucionalidade da importaccedilatildeo de pneus usados e remoldados em territoacuterio nacional

O julgamento era necessaacuterio porque numerosas decisotildees proferidas por juiacutezes federais

das Seccedilotildees Judiciaacuterias do Cearaacute do Espiacuterito Santo de Minas Gerais do Paranaacute do Rio

279

ldquoThe legal-actor approach focuses on the humans that populate legal systems and explores how

emotion influences and informs or should influence or inform those personsrsquo performance of the

assigned legal functionrdquo (trad livre) Id ibid p 131

110

de Janeiro e de Satildeo Paulo amparavam a importaccedilatildeo de tais pneus que segundo o autor

da accedilatildeo violava preceitos fundamentais da Constituiccedilatildeo Federal ndash CF tais como dentre

outros o direito agrave sauacutede e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art 196 e 225

da CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencido o ministro Marco Aureacutelio

A seguir iremos analisar mais detidamente o voto da relatora da accedilatildeo a

ministra Caacutermen Luacutecia que foi acompanhada pelos demais ministros e em seguida

resumidamente os votos dos ministros Gilmar Mendes Carlos Ayres Brito e Joaquim

Barbosa Por uacuteltimo mencionamos o posicionamento do ministro Marco Aureacutelio

A ministra Caacutermen Luacutecia apoacutes cuidar de questotildees formais em toacutepicos

direcionados ao ldquoobjeto da accedilatildeordquo agrave ldquoadequaccedilatildeo da accedilatildeordquo e agrave ldquoexclusatildeo de alguns

arguidosrdquo bem como apoacutes apresentar algumas questotildees preparatoacuterias para o

enfrentamento do problema num toacutepico denominado ldquobreve histoacuterico da legislaccedilatildeo da

mateacuteriardquo inicia a sua argumentaccedilatildeo propriamente dita na seccedilatildeo destinada a dissertar

sobre o ldquopneurdquo

A partir daiacute a ministra utiliza para fundamentar a sua decisatildeo da estrutura

cognitiva tiacutepica do medo isto eacute argumentos de consequecircncia negativa Walton destaca

que o medo eacute estruturado do ponto de vista argumentativo por meio de consequecircncias

negativas ldquoo argumento do tipo apelo ao medo [] eacute uma espeacutecie de argumento de

consequecircncias negativasrdquo280

Diferenciando o apelo ao medo do apelo agrave ameaccedila cuja estrutura eacute mais

complexa porque conteacutem mais um elemento que eacute a ameaccedila do proponente Walton

observa que ambos satildeo argumentos de consequecircncia ldquoeacute o argumento de consequecircncias

como a estrutura subjacente na qual tanto o apelo ao medo quanto o apelo agrave ameaccedila satildeo

construiacutedos que explica a real relaccedilatildeo entre os doisrdquo281

Aleacutem disso de acordo com os criteacuterios apresentados por Micheli outro ponto a

ser observado consiste em identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo narrada eacute

esquematizado pois a avaliaccedilatildeo acerca da incapacidade de controle de algo negativo eacute

condizente com a deflagraccedilatildeo e a majoraccedilatildeo de sentimentos de medo

Assim estabelecidas essas premissas adentra-se agora nos argumentos do

julgado

280

ldquothe fear appeal type of argument [hellip] is a species of argument from negative consequencesrdquo (trad

livre) WALTON Douglas Scare tactics arguments that appeal to fear and threats Springer 2000 p

143 281

ldquoit is argument from consequences as the underlying structure upon which both appeal to fear and

appeal to threat are built that explains the real relationship between the twordquo (trad livre) Id ibid p

139

111

Inicialmente a ministra num toacutepico destinado a discorrer sobre ldquoa induacutestria

automobiliacutestica e o resiacuteduo da borrachardquo estabelece que haacute uma enorme quantidade de

pneus vulcanizados em circulaccedilatildeo no mundo ressaltando um primeiro problema que eacute

a difiacutecil decomposiccedilatildeo do seu material e enfatizando a incapacidade de controle de sua

destinaccedilatildeo apoacutes o uso ldquoresultado haacute um total de aproximadamente 4 bilhotildees de pneus

novos em circulaccedilatildeo pelo mundo feito de borracha vulcanizada que eacute um material de

difiacutecil decomposiccedilatildeo e de mais difiacutecil ainda gestatildeo de sua destinaccedilatildeo apoacutes o usordquo

Ao enfrentar o argumento da defesa segundo o qual um dos melhores meios

para superar a questatildeo referente agrave destinaccedilatildeo dos pneus usados consiste em reutilizaacute-los

na manta asfaacuteltica adverte-se que tal mistura resulta na maior emissatildeo de poluentes no

momento em que a roda do automoacutevel entra em fricccedilatildeo com o asfalto advindo a partir

daiacute consequecircncias negativas ldquoentretanto emite mais poluentes no momento da fricccedilatildeo

do pneu aleacutem de ser mais oneroso e com probabilidade de ocasionar doenccedilas de

natureza ocupacionalrdquo

Quanto agrave chamada reciclagem energeacutetica dos pneus para fins de geraccedilatildeo de

calor tambeacutem se enfatiza a sua incontrolabilidade ldquotodavia tambeacutem aqui se depara

com o problema da administraccedilatildeo dos resiacuteduos decorrentes dessa incineraccedilatildeordquo

Assim a tecnologia das incineradoras natildeo controla a situaccedilatildeo porque eacute incapaz

de zerar a emissatildeo de material queimado e a consequecircncia disso eacute que materiais

poluentes metais pesados e compostos toacutexicos (dioxinas e furanos) satildeo liberados na

atmosfera

O que se constatou eacute que apesar de eficiente a queima em

incineradoras dedicadas nunca lsquozerarsquo o material queimado dele

podem resultar efluentes soacutelidos e gasosos que aleacutem de conterem

material poluente podem se apresentar com alto grau de

contaminaccedilatildeo de metais pesados aleacutem de compostos orgacircnicos

toacutexicos em especial dioxinas e furanos

Desse modo em face de liberaccedilatildeo de tais poluentes na atmosfera e com o

consequente processamento quiacutemico dos compostos o efeito negativo reside na

formaccedilatildeo de chuvas aacutecidas

o ponto negativo desse tipo de destinaccedilatildeo dada aos pneus eacute que

produz poluiccedilatildeo ambiental pois nesse processo satildeo emitidos gases

toacutexicos em especial o dioacutexido de enxofre e a amocircnia que em

contato com as partiacuteculas de aacutegua suspensas no ar provocam o

fenocircmeno denominado chuva aacutecida

112

Por sua vez a chuva aacutecida eacute causadora de consequecircncias deleteacuterias numa seacuterie

de oacuterbitas ldquoa chuva aacutecida eacute responsaacutevel por grandes formas de aniquilamento do meio

ambiente por provocar danos nos lagos rios florestas e nos animais bem como nos

monumentos e obras construiacutedos pelos homensrdquo

Outra possiacutevel destinaccedilatildeo para os pneus seria o seu uso na co-incineraccedilatildeo

principalmente nas faacutebricas de cimento todavia novamente outra consequecircncia

negativa ldquosob altas temperaturas esses materiais datildeo origem agraves dioxinas e furanos

considerados substacircncias canceriacutegenasrdquo

Num outro momento do julgado jaacute apoacutes discorrer sobre normas constitucionais

respeitantes ao assunto a rel novamente aborda as consequecircncias negativas do descarte

de pneus usados mas agora se enfatiza o aparecimento de doenccedilas tropicais tal como a

dengue e o subsequente risco agrave vida das pessoas

Constatado que o depoacutesito de pneus ao ar livre ndash a que se chega

inexoravelmente com a falta de utilizaccedilatildeo dos pneus inserviacuteveis

mormente quando se daacute a sua importaccedilatildeo nos termos pretendidos por

algumas empresas - eacute fator de disseminaccedilatildeo de doenccedilas tropicais

[]

Entretanto as pesquisas e as estatiacutesticas satildeo taxativas ao comprovar os

riscos agrave vida acarretados pelas doenccedilas tropicais em especial a

dengue que tem como uma de suas principais causas exatamente a

presenccedila de resiacuteduos soacutelidos como os pneus natildeo utilizados e natildeo

descartados de forma a garantir a salubridade

A seguir enfatiza-se a fragilidade do controle em relaccedilatildeo ao armazenamento dos

pneus usados

A ceacutelere urbanizaccedilatildeo aliada agrave maacute qualidade da limpeza urbana

sem adequados procedimentos de remoccedilatildeo de entulhos em

especial pneus velhos eacute responsaacutevel pelo aparecimento de

criadouros de mosquitos

Alerta-se quanto a outro possiacutevel efeito negativo pois considerando o formato

oval do pneu um ambiente ideal para armazenar organismos vivos eacute possiacutevel que

doenccedilas sequer imaginadas ou ateacute jaacute erradicadas sejam trazidas para o nosso paiacutes

trazendo sofrimento e risco de perda de vida de cidadatildeos

Informa-se ainda que os pneus usados que chegam de outros Paiacuteses

podem conter ovos de insetos transmissores de doenccedilas ateacute agora

natildeo incidentes no Brasil ou jaacute erradicadas no Paiacutes o que demandaria

ndash aleacutem de maior sofrimento das pessoas - mais gastos estatais com a

jaacute precaacuteria condiccedilatildeo da sauacutede puacuteblica no Brasil sem falar insista-se

no risco de perda de vida de cidadatildeos

113

Ademais o aumento de doenccedilas e a consequente fragilizaccedilatildeo da sauacutede da

populaccedilatildeo tecircm uma seacuterie de efeitos negativos para o paiacutes sendo um deles a perda do seu

potencial econocircmico Em outras palavras ateacute o produto interno bruto eacute atingido quando

um governo eacute incapaz de promover uma boa poliacutetica de sauacutede para os seus cidadatildeos

A cada ano a Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ndash ONU elabora uma

classificaccedilatildeo dos Paiacuteses e mede a qualidade vida em pelo menos trecircs

elementos sauacutede educaccedilatildeo e produto interno bruto Jaacute se concluiu

que enquanto um Paiacutes natildeo tiver resolvido problemas relacionados

agrave sauacutede (saneamento baacutesico incluiacutedo) e agrave educaccedilatildeo da populaccedilatildeo

natildeo haacute como elevar o seu produto interno bruto

De seu turno o ministro Gilmar Mendes tambeacutem fundamenta o seu

posicionamento por meio de argumentos da mesma espeacutecie isto eacute apontam-se as

consequecircncias negativas (ldquoproliferaccedilatildeo de doenccedilasrdquo ldquosubstacircncias nocivas agrave sauacutede e ao

meio ambienterdquo ldquomaterial de difiacutecil composiccedilatildeordquo) e a ausecircncia de controle acerca da

situaccedilatildeo avaliada como negativa (ldquofalta de meacutetodo atualmente eficiente de controlerdquo)

resumindo assim alguns dos argumentos presentes no voto da ministra Caacutermen Luacutecia

O grau de nocividade a falta de meacutetodo atualmente eficiente de

controle da eliminaccedilatildeo das substacircncias nocivas agrave sauacutede e ao meio

ambiente (constataccedilatildeo de descumprimento reiterado da Resoluccedilatildeo

CONAMA nordm 25899) a proliferaccedilatildeo potencial de vetores de

doenccedilas e outros agravos e o aumento do passivo ambiental de

material inserviacutevel de difiacutecil decomposiccedilatildeo satildeo elementos que

constituem a formaccedilatildeo do convencimento juriacutedico acerca do

conhecimento cientiacutefico existente sobre a potencialidade dos danos

ambientais decorrentes do descarte irregular dos pneus usados

O ministro Carlos Ayres apoacutes destacar que os pneus natildeo satildeo biodegradaacuteveis

enfatiza cinco consequecircncias negativas em relaccedilatildeo agrave importaccedilatildeo de pneus usados e

remoldados (i) ocupaccedilatildeo de consideraacutevel espaccedilo fiacutesico para sua armazenagem (ii) risco

de faacutecil combustatildeo (iii) poluiccedilatildeo de rios lagos e correntes de aacutegua (iv) transmissatildeo de

doenccedila por insetos (incluindo a dengue que ele qualifica ser ldquotatildeo temida entre noacutesrdquo) (v)

e os pneus remoldados tem vida uacutetil muito curta e se tornam mais rapidamente um

passivo ambiental O referido ministro tambeacutem expressa indignaccedilatildeo com o fato de que

nos paiacuteses de origem tais pneus natildeo passam de ldquolixo ambientalrdquo e a sua importaccedilatildeo faz

do Brasil ldquouma espeacutecie de quintal do mundordquo com graves danos a bens juriacutedicos (sauacutede

e meio ambiente) tutelados pela Constituiccedilatildeo Federal

Por sua vez o ministro Joaquim Barbosa enfatiza a incontrolabilidade de

situaccedilotildees negativas natildeo haacute meacutetodo eficaz para lidar com os resiacuteduos dos pneus o que

114

ocasiona danos diretos ao meio ambiente natildeo haacute controle sobre o empilhamento e

descarte de pneus o que aumenta a proliferaccedilatildeo de vetores de doenccedila Aleacutem disso alega

a existecircncia de risco de aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees no campo das relaccedilotildees internacionais por

desobediecircncia agraves normas da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio - OMC

Por uacuteltimo destaque-se que o ministro Marco Aureacutelio entendeu que para proibir

a importaccedilatildeo de tais pneus deveria haver lei especiacutefica nesse sentido Ademais procura

deslegitimar os argumentos de consequecircncia negativa acima deduzidos ao dizer que a

mera proibiccedilatildeo de importaccedilatildeo natildeo seria suficiente para ldquosalvar a Matildee Terrardquo ldquo[] como

disse e parece que encerrado este julgamento estaraacute salva - a Matildee Terrardquo

Com efeito a argumentaccedilatildeo vencedora no presente caso eacute consistente com a

descriccedilatildeo do medo realizada por Aristoacuteteles em sua retoacuterica isto eacute a possibilidade de

acontecimento de algo ruim que tenha a capacidade de nos provocar danos ou seacuterios

prejuiacutezos Nesta mesma direccedilatildeo Walton enfatiza que o argumento que apela ao medo

envolve a demonstraccedilatildeo da existecircncia de algum perigo que pode ou poderaacute causar

prejuiacutezos a um determinado sujeito implicando a ideia de que eacute necessaacuterio tomar

alguma accedilatildeo para evitaacute-lo282

Portanto na referida decisatildeo estatildeo em consideraccedilatildeo perigos que iratildeo atingir a

ldquopopulaccedilatildeordquo os ldquocidadatildeosrdquo e o ldquomeio-ambienterdquo do Brasil E os males capazes de

atingi-los satildeo muitos materiais poluentes gases toacutexicos dioxinas e furanos substacircncias

canceriacutegenas metais pesados compostos orgacircnicos toacutexicos doenccedilas de natureza

ocupacional ovos de inseto doenccedilas tropicais e desconhecidas poluiccedilatildeo de rios lagos e

correntes de aacutegua chuva aacutecida dengue aumento de gastos estatais para tratar novas

doenccedilas e ateacute o impacto na economia Ademais eacute expressamente dito que tais perigos

tecircm a capacidade de ldquoaniquilarrdquo o meio ambiente e pocircr em risco a vida das pessoas

Tendo em vista a ausecircncia de tecnologia ou de fiscalizaccedilatildeo que tivesse a capacidade de

controlar tais consequecircncias negativas a procedecircncia da accedilatildeo buscou fundar

sentimentos de aliacutevio

Por uacuteltimo eacute interessante tambeacutem notar que embora as palavras ldquoperigordquo ou

ldquoperigosordquo apareccedilam com frequecircncia na decisatildeo a palavra ldquomedordquo natildeo eacute em si mesma

dita mas a despeito disso observa-se que o medo foi argumentado por meio de

argumentos de consequecircncia negativa isto eacute ele foi o suporte emotivo da decisatildeo

282

Id ibid p 143

115

322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo

Na ADPF nordm 54 (DJ 1242012) ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos

Trabalhadores na Sauacutede ndash CNTS estava sob julgamento a possibilidade juriacutedica da

antecipaccedilatildeo terapecircutica do parto na hipoacutetese de fetos anenceacutefalos uma vez que diversos

juiacutezes e tribunais negavam tal pleito agraves gestantes com fundamento nos dispositivos que

regem o crime de aborto no Coacutedigo Penal Os preceitos fundamentais da CF apontados

como violados foram a dignidade da pessoa humana o princiacutepio da legalidade da

liberdade da autonomia da vontade e o direito agrave sauacutede (arts 1ordm IV 5ordm II 6ordm e 196 da

CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencidos os ministros Ceacutesar Peluso e

Ricardo Lewandowski

Primeiramente iremos analisar a argumentaccedilatildeo do voto do ministro Peluso

Poreacutem para entender a construccedilatildeo argumentativa do referido ministro eacute necessaacuterio

expor a estrutura cognitiva da indignaccedilatildeo

Para nosso objetivo pode-se dizer que tal emoccedilatildeo eacute deflagrada mediante a

avaliaccedilatildeo negativa de uma situaccedilatildeo (accedilatildeoomissatildeo) geradora de sofrimento e danos cuja

responsabilidade causal eacute passiacutevel de imputaccedilatildeo a um agente culpaacutevel Assim existe

uma accedilatildeoomissatildeo atribuiacutevel a algueacutem que eacute julgada condenaacutevel injusta pois causa

um especiacutefico prejuiacutezodanosofrimento a um sujeito283

Portanto a fim de caracterizar a indignaccedilatildeo no discurso eacute preciso analisar como

a accedilatildeoomissatildeo eacute narrada quem eacute o agente responsaacutevel como ele eacute caracterizado no

discurso quem eacute o sujeito passivo e como ele eacute caracterizado no discurso Neste julgado

especiacutefico os dois atores objeto de predicaccedilatildeo satildeo a gestante (a matildee) e o feto

Assim posto isso conveacutem dizer que apoacutes estabelecer que ldquotodos os fetos

anenceacutefalos [] satildeo inequivocamente dotados dessa capacidade de movimento

autoacutegeno vinculada ao processo contiacutenuo da vida e regida pela lei natural que lhe eacute

imanenterdquo o ministro afirma que o aborto de feto anecenfaacutelico eacute conduta criminosa

No seguinte trecho em que o ministro conclui com uma notaacutevel exclamaccedilatildeo

(emoccedilatildeo demonstrada) a conduta condenaacutevel e injusta eacute narrada como ldquofunestamente

danosa agrave vida ou agrave incolumidade fiacutesica alheiardquo caracterizando sofrimento e dano ao

feto ldquonatildeo se concebe nem entende em termos teacutecnico-juriacutedicos uacutenicos apropriados ao

283

Nesse sentido cf MICHELI R op cit 2014 p 113 e NUSSBAUM M op cit 2004 p 99 e 166

A raiva e a indignaccedilatildeo tecircm basicamente a mesma estrutura cognitiva de modo que poderiacuteamos utilizar

tanto uma quanto a outra emoccedilatildeo

116

caso direito subjetivo de escolha [] de comportamento funestamente danoso agrave vida

ou agrave incolumidade fiacutesica alheia e como tal tido por criminoso Eacute coisa abstrusardquo

No seguinte trecho haacute a estrutura completa da indignaccedilatildeo isto eacute o agente

culpado (a gestante) eacute caracterizado como algueacutem com poder desproporcional agrave viacutetima

(ldquoser poderoso superior detentor de toda forccedilardquo) existe a conduta condenaacutevel e

geradora de danos e sofrimentos que eacute comparada a um ato brutal de violecircncia

(ldquoextermiacuteniordquo ldquopena de morterdquo) e existe o sujeito passivo que eacute descrito como algueacutem

totalmente indefeso ldquono caso do extermiacutenio do anenceacutefalo encena-se a atuaccedilatildeo

avassaladora do ser poderoso superior que detentor de toda a forccedila inflige a pena

de morte ao incapaz de pressentir a agressatildeo e de esboccedilar-lhe qualquer defesardquo

A conduta da gestante eacute caracterizada como condenaacutevel injusta e infligidora de

sofrimento vaacuterias vezes Assim a fim de lhe emprestar conteuacutedo emotivo tal

procedimento eacute comparado com situaccedilotildees que via de regra nos provocam ou deveriam

provocar indignaccedilatildeo e raiva tais como a ldquopena capitalrdquo o ldquoracismo sexismo e

especismordquo e ateacute o nazismo Aleacutem disso tal conduta nominada de ldquoodiosardquo reduz o

feto ldquoagrave condiccedilatildeo de lixordquo

[] ao feto reduzido no fim das contas agrave condiccedilatildeo de lixo ou de

outra coisa imprestaacutevel e incocircmoda natildeo eacute dispensada de nenhum

acircngulo a menor consideraccedilatildeo eacutetica ou juriacutedica

[]

Essa forma odiosa de discriminaccedilatildeo que a tanto equivale nas suas

consequecircncias a formulaccedilatildeo criticada em nada difere do racismo do

sexismo e do chamado especismo Todos esses casos retratam a

absurda defesa e absolviccedilatildeo do uso injusto da superioridade de

alguns (em regra brancos de estirpe ariana homens e seres humanos)

sobre outros (negros judeus mulheres e animais respectivamente)

Em outra passagem novamente a conduta eacute comparada com situaccedilotildees que nos

provocam ou deveriam provocar sentimentos de indignaccedilatildeo e raiva podendo-se

inclusive cogitar que a argumentaccedilatildeo implica o medo de que um passado baacuterbaro da

nossa histoacuteria volte novamente a se repetir O ministro demonstra ao final a emoccedilatildeo

com uma exclamaccedilatildeo Confira-se

Faz muito a civilizaccedilatildeo sepultou a praacutetica ominosa de sacrificar

segregar ou abandonar crianccedilas receacutem-nascidas deficientes ou de

aspecto repulsivo como as disformes aleijadas surdas albinas ou

leprosas soacute porque eram consideradas ineptas para a vida e

improdutivas do ponto de vista econocircmico e social

117

Num toacutepico que trata sobre ldquoriscos de eugeniardquo o ministro tambeacutem utiliza de

argumentos de consequecircncia negativa (medo) a fim de demonstrar os perigos que

poderatildeo advir caso a accedilatildeo seja julgada procedente O primeiro deles seria permitir que

outras mulheres possam pleitear tratamento juriacutedico semelhante sob qualquer motivo

(anomalia fetal social econocircmico familiar) implicando a ideia de que novamente seraacute

infligido sofrimento a outros seres inocentes

Eacute possiacutevel imaginar o ponderaacutevel risco de que julgada procedente

esta ADPF mulheres entrem a pleitear igual tratamento juriacutedico a

hipoacuteteses de outras anomalias natildeo menos graves ou porque a gravidez

seja indesejada em si mesma ou porque agrave conta de fatores

econocircmicos sociais familiares etc seria insuportaacutevel ou

insustentaacutevel ter um filho

A ausecircncia de tecnologia meacutedica que permita diagnoacutestico 100 seguro eacute

apontada como outro fator de risco em relaccedilatildeo agrave permissatildeo de tal espeacutecie de aborto

demonstrando assim a incontrolabilidade da situaccedilatildeo sob julgamento

E o que surpreende e admira eacute que quem a invoca parece ignorar que

a temaacutetica estaacute indissociavelmente vinculada ao problema da

dificuldade teacutecnico-cientiacutefica de se detectar com precisatildeo absoluta

quais casos satildeo de anencefalia de modo a diferenciaacute-los de outras

afecccedilotildees da mesma classe nosoloacutegica das quais se distingue apenas

por questatildeo de grau

[]

Por que se evite possibilidade concreta de em decorrecircncia das

incertezas teacutecnico-cientiacuteficas e da consequente falibilidade dos

diagnoacutesticos eliminarem-se arbitrariamente fetos acometidos de

malformaccedilotildees diversas da anencefalia eacute imperioso proibir-lhes o

aborto ainda em tais casos

Ademais para o ministro Peluso a matildee ao pretender a permissatildeo juriacutedica para a

praacutetica do referido aborto configura-se um ser ldquoegocecircntricordquo e ldquoindividualistardquo que em

nome do ldquoprinciacutepio do prazerrdquo e a fim de evitar seu sofrimento psiacutequico e suas

anguacutestias recusa o oferecimento de compaixatildeo e piedade a quem na verdade eacute

merecedor desses sentimentos isto eacute o feto

[] reflete apenas uma atitude individualista e egocecircntrica enquanto

sugere praacutetica cocircmoda de que se vale a gestante para se livrar do

sofrimento e da anguacutestia

[]

Tal ansiedade que voltada para si mesma depende da histoacuteria e da

conformaccedilatildeo psiacutequicas de cada gestante eacute exaltada na proposta em

detrimento do afeto da piedade da compaixatildeo da doaccedilatildeo e da

abnegaccedilatildeo que participam da dimensatildeo de grandeza do espiacuterito

humano

118

Por outro lado se nos votos dos demais ministros eram claramente divergentes

as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do iniacutecio da vida ou do que eacute a vida da laicidade

estatal de questotildees penais de princiacutepios juriacutedicos (dignidade da pessoa humana

autonomia da vontade etc) parece que havia pelo menos um ponto de consenso que

era a necessidade de se ter compaixatildeo para com o sofrimento vivido pela gestante

Lazarus destaca que o tema nuacutecleo da compaixatildeo consiste em ser movido pelo

sofrimento alheio284

Por sua vez na estrutura cognitiva da compaixatildeo existe uma

avaliaccedilatildeo acerca da seriedade do sofrimento vivido por determinado sujeito e de certo

modo estatildeo ausentes consideraccedilotildees acerca da culpa do proacuteprio sujeito por estar em tal

situaccedilatildeo aflitiva285

Assim no voto do relator ministro Marco Aureacutelio realiza-se uma comparaccedilatildeo

entre as emoccedilotildees positivas que geralmente se fazem presentes numa gestaccedilatildeo normal e

as emoccedilotildees negativas que a gestante tem que suportar na hipoacutetese de anencefalia do

feto

Enquanto numa gestaccedilatildeo normal satildeo nove meses de

acompanhamento minuto a minuto de avanccedilos com a predominacircncia

do amor em que a alteraccedilatildeo esteacutetica eacute suplantada pela alegre

expectativa do nascimento da crianccedila na gestaccedilatildeo do feto anenceacutefalo

no mais das vezes reinam sentimentos moacuterbidos de dor de

anguacutestia de impotecircncia de tristeza de luto de desespero dada a

certeza do oacutebito

Assim conclui-se pela impossibilidade de se exigir que a matildee suporte tamanho

sofrimento a que se compara agrave tortura

O ato de obrigar a mulher a manter a gestaccedilatildeo colocando-a em uma

espeacutecie de caacutercere privado em seu proacuteprio corpo desprovida do

miacutenimo essencial de autodeterminaccedilatildeo e liberdade assemelha-se agrave

tortura ou a um sacrifiacutecio que natildeo pode ser pedido a qualquer pessoa

ou dela exigido

Mostra-se inadmissiacutevel fechar os olhos e o coraccedilatildeo ao que vivenciado

diuturnamente por essas mulheres seus companheiros e suas famiacutelias

Igualmente o ministro Joaquim Barbosa anota a presenccedila de um conjunto de

emoccedilotildees negativas (culpa raiva tristeza etc) deflagradas para os pais quando do

diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal concluindo com uma pergunta retoacuterica (emoccedilatildeo

demonstrada)

as reaccedilotildees emocionais dos pais apoacutes o diagnoacutestico de malformaccedilatildeo

fetal abrangem conjuntamente ou natildeo os seguintes sentimentos

284

LAZARUS R Op cit 1991 p 289 285

NUSSBAUM M Op cit 2004 p 49-50

119

ambivalecircncia culpa impotecircncia perda do objeto amado choque

raiva tristeza e frustraccedilatildeo Eacute facilmente perceptiacutevel a enorme

dificuldade de se enfrentar um diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal E eacute

possiacutevel imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que

passam aqueles que de suacutebito se veem diante do dilema moral de

interromper uma gestaccedilatildeo unicamente porque nada se pode fazer para

salvar a vida do feto Seria reprovaacutevel uma decisatildeo pela

interrupccedilatildeo da gestaccedilatildeo nesse caso

Por sua vez a ministra Caacutermen Luacutecia expressamente se refere agrave necessidade de

se ter compaixatildeo para com a gestante tendo em vista o enorme sofrimento gerado pela

presenccedila de inuacutemeras emoccedilotildees negativas (medo vergonha anguacutestia) atribuiacutedas agrave

mulher

A mulher que natildeo pode interromper essa gravidez tem o medo do que

vai acontecer o medo de que lhe pode ser acometido o medo fiacutesico o

medo psiacutequico e o medo ainda de vir a ser punida penalmente por

uma conduta que ela venha a adotar

[]

Natildeo se haacute negar compaixatildeo porque seria injusticcedila menos ainda o

direito porque seria antijuriacutedico agrave mulher que trazendo um pequeno

caixatildeo no que eacute o seu berccedilo fiacutesico vai agraves portas do Judiciaacuterio a

suplicar pela sua vida

[]

A mulher gestante de feto anenceacutefalo vive anguacutestia que natildeo eacute

partilhaacutevel pelo que ao Estado natildeo compete intervir vedando o que

natildeo eacute constitucionalmente admissiacutevel como proibido

Em igual sentido o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux assinalam a

necessidade de se levar em consideraccedilatildeo para a soluccedilatildeo da controveacutersia o sofrimento

que a mulher tem que passar nesse percurso de gestaccedilatildeo

Entrementes o aborto do feto anenceacutefalo tem por objetivo preciacutepuo

zelar pela sauacutede psiacutequica da gestante uma vez que desde o

diagnoacutestico da anomalia (que pode ocorrer a partir do terceiro mecircs de

gestaccedilatildeo) ateacute o parto a mulher conviveraacute com o sofrimento de

carregar consigo um feto que natildeo conseguiraacute sobreviver segundo a

medicina afirma com elevadiacutessimo grau de certeza (ministro Gilmar

Mendes)

[] levar a gestaccedilatildeo ateacute os seus uacuteltimos termos causa na mulher um

sofrimento incalculaacutevel do qual resultam chagas eternas que podem

ser minimizadas caso interrompida a gravidez de plano (ministro

Luiz Fux)

O ministro Carlos Ayres o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber

enfatizam o mesmo aspecto isto eacute o sofrimento pelo qual a mulher passa eacute

desnecessaacuterio comparando-o novamente a uma tortura

120

Daiacute que vedar agrave gestante a opccedilatildeo pelo aborto caracteriza um modo

cruel de ignorar sentimentos que somatizados tem a forccedila de derruir

qualquer feminino estado de sauacutede fiacutesica psiacutequica e moral aqui

embutida a perda ou a sensiacutevel diminuiccedilatildeo da autoestima

[]

Por isso que levar agraves uacuteltimas consequecircncias esse martiacuterio contra a

vontade da mulher corresponde agrave tortura a tratamento cruel

Ningueacutem pode impor a outrem que se assuma enquanto maacutertir o

martiacuterio eacute voluntaacuterio (ministro Carlos Ayres)

Nessa especiacutefica situaccedilatildeo a causa supralegal mencionada traduziraacute

hipoacutetese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa uma

vez que inexistente em tal contexto motivo racional justo e legiacutetimo

que possa obrigar a mulher a prolongar inutilmente a gestaccedilatildeo e a

expor-se a desnecessaacuterio sofrimento fiacutesico eou psiacutequico com grave

dano agrave sua sauacutede e com possibilidade ateacute mesmo de risco de morte

consoante esclarecido na Audiecircncia Puacuteblica que se realizou em funccedilatildeo

deste processo (ministro Celso de Mello)

[] a imposiccedilatildeo da gestaccedilatildeo contra a vontade da mulher eacute tortura

fiacutesica e psicoloacutegica em razatildeo de crenccedila (natildeo importa se

institucionalizada por meio de lei ou de decisatildeo juriacutedica ainda eacute mera

crenccedila) nos exatos termos da Lei dos Crimes de Tortura (ministra

Rosa Weber)

Assim sob uma anaacutelise emotiva pode-se dizer que enquanto o voto do ministro

Ceacutesar Peluso construiacutedo atraveacutes de uma forte predicaccedilatildeo contra o aborto de feto

anenceacutefalo era fundado na indignaccedilatildeoraiva direcionado agrave conduta da gestante no

medo em relaccedilatildeo agraves consequecircncias do julgamento e na tentativa de criar compaixatildeo para

com o feto os votos dos demais ministros forneciam razotildees para se ter compaixatildeo para

com o sofrimento da matildee que era descrito como uma tortura um sofrimento a que ela

natildeo deu causa um martiacuterio desnecessaacuterio Desse modo observa-se que as emoccedilotildees

foram argumentadas por meio de suas estruturas cognitivas e muitas vezes

expressamente ditas e atribuiacutedas aos atores (gestante feto) objetos de consideraccedilatildeo no

julgamento

323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo

A ADI nordm 4976 (DJ 1052014) foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repuacuteblica

contra dentre outros dispositivos os arts 37 a 47 da Lei nordm 12663 de 5 de junho de

2012 que concediam aos jogadores titulares ou reservas das seleccedilotildees brasileiras

campeatildes das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970

121

um precircmio em dinheiro no valor fixo de R$ 10000000 (cem mil reais) e um auxiacutelio

especial mensal para jogadores sem recursos ou com recursos limitados De acordo com

a argumentaccedilatildeo presente na peticcedilatildeo inicial da referida ADI a concessatildeo de tais

benefiacutecios financeiros ao referido grupo de jogadores violaria o princiacutepio da isonomia

A ADI neste ponto foi julgada por unanimidade improcedente

No voto do rel ministro Ricardo Lewandowski apoacutes ser destacado que a CF

por meio do art 217 fomenta as praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais protege e

incentiva as manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacional e atraveacutes do art 215 e 216

salvaguarda as manifestaccedilotildees da cultura popular e os bens de natureza imaterial chega-

se agrave conclusatildeo que o fundamento para desequiparaccedilatildeo consiste no fato de que tais

atletas conseguiram uma ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo Aleacutem do

mais em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com

recursos limitados sustenta-se que a ldquoextrema penuacuteria materialrdquo vivida por alguns

colocaria em xeque o ldquoprofundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras

que disputaram as Copas do Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFArdquo

Diante dessas diretrizes constitucionais parece-me plenamente

justificada a iniciativa dos legisladores federais - legiacutetimos

representantes que satildeo da vontade popular - em premiar materialmente

a incalculaacutevel visibilidade internacional positiva proporcionada por

esse grupo especiacutefico e restrito de atletas bem como em evitar que a

extrema penuacuteria material enfrentada por alguns deles ou por suas

famiacutelias ndash com a perda de dignidade pessoal que acompanha essas

circunstacircncias ndash ponha em xeque o profundo sentimento nacional

em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras que disputaram as Copas do

Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFA as quais representam ainda

hoje uma das expressotildees mais relevantes conspiacutecuas e populares

da identidade nacional

Nesse pequeno trecho esboccedila-se a presenccedila de vaacuterias emoccedilotildees que

fundamentam a desequiparaccedilatildeo a ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo e a

ldquoidentidade nacionalrdquo satildeo expressivas do sentimento do orgulho a ldquoextrema penuacuteria

materialrdquo diz respeito agrave compaixatildeo ldquoo profundo sentimento nacionalrdquo faz uso do apelo

aos sentimentos do povo

Lazarus destaca que o nuacutecleo temaacutetico do orgulho diz respeito agrave ldquomelhoria da

identidade do ego de algueacutem tomando creacutedito um objeto valioso ou uma conquista seja

a nossa proacutepria ou a de algueacutem ou a de um grupo com o qual nos identificamos - por

122

exemplo um compatriota um membro da famiacutelia ou um grupo socialrdquo286

Assim no

orgulho estaacute presente uma avaliaccedilatildeo positiva de que nossa imagemidentidade foi

significativamente melhorada e engrandecida em virtude da conquista por noacutes mesmos

ou por outros com qual nos identificamos de algo socialmente relevante O evento

deflagrador do orgulho aleacutem de ser considerado positivo aumenta o valor da nossa

imagem

Em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com

recursos limitados a desequiparaccedilatildeo tambeacutem eacute justificada a tiacutetulo de compaixatildeo

porque os ldquojogadores daquela eacutepocardquo natildeo ganhavam o suficiente para uma

aposentadoria digna

Recordo nesse sentido que a final da Copa do Mundo de 1950 entre

as seleccedilotildees brasileira e uruguaia realizada no Rio de Janeiro ndash oito

anos portanto antes do primeiro tiacutetulo nacional ndash teve o maior

puacuteblico da histoacuteria do Estaacutedio do Maracanatilde superando 200 mil

pessoas Natildeo obstante como eacute notoacuterio poucos foram os jogadores

daquela eacutepoca mesmo os de maior renome que obtiveram

rendimentos suficientes para garantir na inatividade um sustento

digno para si e seus familiares

No voto do ministro Luiz Fux os ex-campeotildees satildeo descritos como ldquoverdadeiros

heroacuteis do paiacutesrdquo Por sua vez as suas conquistas construiacuteram o ldquonosso patrimocircnio

histoacuterico nacionalrdquo e ldquoalccedilaram o Brasil a outro patamar em termos desportivosrdquo de

modo que natildeo existe agressatildeo agrave isonomia em razatildeo do reconhecimento por ldquotamanho

feitordquo

[] as consequecircncias dos mundiais de 1958 na Sueacutecia de 62 no

Chile e de 70 no Meacutexico foram decisivas para a construccedilatildeo desse

patrimocircnio histoacuterico nacional

Daiacute por que natildeo haacute qualquer ofensa agrave Lei fundamental de 1988 em

especial ao princiacutepio da isonomia quando o Estado promove por

meio de concessatildeo do benefiacutecio ora previsto o reconhecimento por

tamanho feito

Natildeo se pode negligenciar que esses atletas ao representarem o paiacutes

em tais mundiais alccedilaram o Brasil a outro patamar em termos

desportivos

O ministro diz que a importacircncia da conquista de tais jogadores eacute enorme

porque fez com que abandonaacutessemos o complexo de que ldquosoacute seriamos uma paacutetria que

286

ldquoenhancement of ones ego-identity by taking credit for a valued object or achievement either our

own or that of someone or group with whom we identify mdash for example a compatriot a member of the

family or a social grouprdquo (tradlivre) LAZARUS R Op cit p 271

123

calccedila chuteirasrdquo Assim alegar a inconstitucionalidade de tal norma significa ir de

encontro agraves conquistas de que ldquoo povo brasileiro tanto se orgulhardquo

reconhecer a importacircncia dos atores dessa transmudaccedilatildeo por que

passou o Brasil e a identificaccedilatildeo do paiacutes com o futebol abandonando

o complexo de que noacutes soacute seriacuteamos uma Paacutetria que calccedila

chuteiras evidencia a implementaccedilatildeo de poliacutetica puacuteblico-estatal de

reconhecimento que contempla o princiacutepio da isonomia

Afirmar a inconstitucionalidade de tais preceitos concessa venia eacute

desestimular e depreciar as conquistas das quais o povo brasileiro

tanto se orgulha

Quanto agrave atual situaccedilatildeo de miseacuteria de alguns jogadores ela eacute justificada pela

ausecircncia de profissionalismo no futebol de antigamente Ademais tal condiccedilatildeo de

penuacuteria eacute atestada pelos telejornais e pela rede mundial de computadores

Natildeo havia o profissionalismo que vivenciamos nos dias de hoje e

justamente por isso - esse eacute um argumento talvez interdisciplinar ndash

muitos desses verdadeiros heroacuteis do paiacutes natildeo possuem condiccedilotildees

materiais miacutenimas para a sua subsistecircncia Natildeo raro haacute relatos nos

telejornais e na proacutepria rede mundial de computadores de ex-

campeotildees do mundo vivendo em completo esquecimento e ateacute

mesmo na miseacuteria de maneira que merece ser festejada e natildeo

tripudiada a iniciativa do Estado Brasileiro

Ao final do seu voto o ministro Fux atribui ao povo brasileiro mais duas

emoccedilotildees positivas relacionadas aos feitos dos ex-atletas (alegria e gratidatildeo)

Por fim Senhor Presidente egreacutegia Corte eu tenho certeza de que o

povo brasileiro por todas as alegrias que esses atletas

proporcionaram tem uma diacutevida de gratidatildeo e natildeo repudiaraacute a justa e

merecida homenagem feita pela lei

Para o ministro Luiacutes Barroso inexiste violaccedilatildeo agrave isonomia porque a concessatildeo

de tal premiaccedilatildeo e do auxiacutelio-especial estaacute fundada na ldquoavaliaccedilatildeo poliacutetica de que os

referidos jogadores realizaram um feito notaacutevel contribuindo para desenvolver um

traccedilo marcante da cultura nacional e difundir o nome do Brasil no mundordquo De resto

observa que alguns ex-jogadores enfrentam ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo e que na

deacutecada de 50 60 70 natildeo se retirava proveito econocircmico da atividade esportiva como

hoje em dia

Por sua vez o ministro Dias Toffoli oferece outra razatildeo para se ter orgulho das

conquistas dos ex-jogadores qual seja apoacutes ser campeatildeo contra a Sueacutecia em 1958 as

empresas suecas ldquodescobriram o Paiacutesrdquo o que resultou em ldquoriquezas para a Naccedilatildeo

brasileirardquo

124

Em 1958 quando o paiacutes vivia aquele processo de industrializaccedilatildeo da

eacutepoca de Juscelino Kubitschek as induacutestrias suecas olharam para o

Brasil exatamente quando viram o Brasil jogar na Sueacutecia e ser

campeatildeo numa final da Copa do Mundo contra a Sueacutecia As grandes

empresas suecas na aacuterea de tecnologia na aacuterea automobiliacutestica que

se instalaram haacute cinquenta anos no Brasil descobriram o Paiacutes por

conta do futebol o que resultou em riquezas para a Naccedilatildeo

brasileira com a geraccedilatildeo de empregos e de desenvolvimento

Indagado se o Brasil era de fato desconhecido do mundo antes de 1958 o

ministro Toffoli diz que a industrializaccedilatildeo sueca estaacute registrada nos livros Ademais

tais conquistas no futebol resultaram no soft power brasileiro no mundo

Ah eu natildeo vou citar os nomes das empresas mas isso estaacute nos livros

Estaacute na histoacuteria do desenvolvimento brasileiro basta ler Senhor

Presidente Basta ler a histoacuteria do desenvolvimento brasileiro

Verifique se tinha induacutestria sueca antes de 58 investindo no Brasil e

verifique depois

[]

[] a muacutesica brasileira traz retorno ao Brasil a cultura brasileira as

novelas brasileiras que passam no exterior trazem um capital agregado

ao Brasil

Isso eacute o soft power Trata-se do soft power

[]

esse chamado soft power ele traz um retorno agrave Naccedilatildeo brasileira ele

traz dividendos que extrapolam a proacutepria aacuterea do futebol a proacutepria

aacuterea do desporto e agrega valor a toda a Naccedilatildeo brasileira e repercute

na economia de modo geral Como eacute um fato - isso eacute um fato eacute um

dado histoacuterico - que muitas empresas suecas que hoje estatildeo

instaladas haacute mais de cinquenta anos no Brasil olharam para o

Brasil apoacutes a Copa de 1958 laacute organizada

De seu turno o ministro Gilmar Mendes alega que a hegemonia no futebol eacute

benfazeja simpaacutetica no mundo e eacute disso que se trata o soft power Embora natildeo se refira

expressamente aos dispositivos constitucionais acima mencionados ele chega a destacar

que caso bem aproveitada a Copa serviria para ldquorevirar esse complexo de vira-latardquo E

o ministro Marco Aureacutelio alega que o reconhecimento dos ex-atletas eacute justo embora

tenha vindo tarde (cinquenta e quatro anos depois)

Observa-se portanto que a estrutura cognitiva do orgulho se fez bastante

presente na argumentaccedilatildeo desenvolvida pois para fins de justificar a desequiparaccedilatildeo de

tratamento legislativo se avaliou que a imagem do Brasil ou a identidade brasileira foi

significativamente melhorada (e ateacute construiacuteda) apoacutes a vitoacuteria nas copas mundiais

masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970 Vaacuterias descriccedilotildees a respeito

de tal conquista confirmam isso ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo

125

ldquotamanho feitordquo ldquofeito notaacutevel ldquoalccedilou o Brasil em outro patamar em termos

desportivosrdquo ldquoabandonou o complexo de que seriacuteamos uma paacutetria que soacute calccedila

chuteirasrdquo ldquoas grandes empresas suecas descobriram o Brasilrdquo ldquosoft power mundialrdquo

ldquoagrega valor a toda Naccedilatildeo brasileirardquo Desse modo o orgulho foi uma emoccedilatildeo

expressamente atribuiacuteda agrave populaccedilatildeo e extensamente argumentada pelos votos

Por outro lado a estrutura cognitiva da compaixatildeo tambeacutem esteve presente pois

o sofrimento dos ex-jogadores eacute descrito como ldquoextrema penuacuteria materialrdquo ldquomiseacuteriardquo

ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo tudo isso atestado pelos ldquotelejornaisrdquo e pela ldquorede

mundial de computadoresrdquo Tambeacutem estava fora de consideraccedilatildeo questotildees acerca da

culpa dos proacuteprios jogadores para estarem em tal estado de miserabilidade jaacute que via

de regra os ministros avaliaram que naquela eacutepoca natildeo se ganhava tanto dinheiro

quanto hoje em dia Ademais vimos que a alegria e a gratidatildeo foram emoccedilotildees

expressamente atribuiacutedas agrave populaccedilatildeo

33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Este uacuteltimo toacutepico estaraacute divido em trecircs momentos O primeiro busca responder

se eacute possiacutevel uma retoacuterica estoica no direito O segundo tece consideraccedilotildees criacuteticas

sobre os julgados a fim de tentar explicitar em que medida os argumentos emotivos

colaboraram positivamente ou natildeo para a decisatildeo Sobre esse segundo momento eacute

preciso ressaltar que no atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo natildeo conseguimos

identificar criteacuterios que pudessem ser aplicados de maneira sistemaacutetica e coesa

resultando numa rigorosa metodologia de avaliaccedilatildeo de argumentos emotivos Desse

modo sobre este especiacutefico momento avaliativo eacute preciso registrar que muito se tem

para evoluir sobre o tema e por isso natildeo faremos mais do que esparsamente e sem o

rigor desejado ponderar a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum a relevacircncia

dos argumentos identificados e a sua integraccedilatildeo no contexto de uma argumentaccedilatildeo

juriacutedica Portanto intencionamos natildeo mais do que coletar alguns criteacuterios miacutenimos que

pudessem servir para ulterior desenvolvimento teoacuterico acerca da avaliaccedilatildeo de

argumentos Por fim o terceiro momento tentaraacute responder se existe uma eacutetica no uso

das emoccedilotildees na decisatildeo juriacutedica buscando construir paracircmetros de neutralidade para o

julgador

Inicialmente em relaccedilatildeo ao primeiro ponto conveacutem relembrar que a eacutetica

estoica influenciou fortemente a formataccedilatildeo de sua retoacuterica que era considerada uma

126

ciecircncia e uma virtude (diferentemente do que entendia todas as escolas filosoacuteficas da

antiguidade) No entanto a retoacuterica estoica tinha uma seacuterie de peculiaridades pois ao

inveacutes de propoacutesitos persuasivos buscava a correccedilatildeo do discurso Assim para atingir tal

desiderato natildeo utilizava ornamentos valorizava ao maacuteximo a brevidade e o apuro

gramatical repudiava coloquialismos e sobretudo natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero

descrevia esse estilo como seco severo compacto e apaacutetico Em suma o discurso

retoacuterico estoico absorvido na sua dialeacutetica era apresentado destituiacutedo de carga emotiva

para ser assentido pelo puacuteblico

No entanto a utilizaccedilatildeo desse modelo de discurso como paradigma para o

direito especialmente no que tange agraves emoccedilotildees natildeo eacute viaacutevel por uma seacuterie de motivos

Inicialmente se formos realmente radicais nessa ideia ela teria que ser bem

sucedida em sua capacidade de esvaziamento da linguagem de seu conteuacutedo emotivo

Mas isso seria impossiacutevel desde que as palavras se destinam a carregar uma constelaccedilatildeo

de informaccedilotildees experiecircncias e emoccedilotildees por detraacutes delas Seria inclusive desnorteante

retirar o peso emotivo de palavras teacutecnicas e eacuteticas do direito tais como boa-feacute

dignidade da pessoa humana direitos humanos etc Tais palavras tecircm uma dimensatildeo

emotiva forte e por isso satildeo causas de agir isto eacute nos impulsionam em suas

prescriccedilotildees conforme destaca Stevenson ldquodefiniccedilotildees eacuteticas envolvem um casamento de

significado descritivo e emotivo e consequentemente possuem um uso frequente no

redirecionamento e intensificaccedilatildeo de atitudesrdquo287

Ademais Fillmore destaca que toda definiccedilatildeo eacute composta por duas partes uma

parte descritiva relacionada ao significado de uma palavra especiacutefica sendo que esta

parte eacute dependente de outra qual seja o fundo de conhecimento culturalmente

compartilhado da palavra Assim toda palavra eacute dependente de frame isto eacute ldquouma

estrutura de conhecimento ou de conceituaccedilatildeo que subjaz ao significado de um conjunto

de itens lexicais que em certos sentidos apelam para essa mesma estruturardquo288

Portanto um projeto de apatia do discurso juriacutedico precisaria elaborar uma eficiente

287

ldquoethical definitions involve a wedding of descriptive and emotive meaning and accordingly have a

frequent use in redirecting and intensifying attitudesrdquo (trad livre) STEVENSON Charles L Ethics and

language New Haven Yale University Press 1944 p 210 Sobre a importacircncia da linguagem emotiva

na argumentaccedilatildeo cf WALTON Douglas MACAGNO Fabrizio Emotive language in argumentation

New York Cambridge 2014 288

ldquoby frame I mean a structure of knowledge or conceptualization that underlies the meaning of a set of

lexical items that in some ways appeal to that same structurerdquo (trad livre) FILLMORE Charles J

Double-decker definitions the role of frames in meaning explanations In Sign language studies

vol3 2003 p 267

127

terapecircutica para se livrar das caracteriacutesticas da proacutepria linguagem e dos seus anseios

comunicacionais mais baacutesicos

Todavia a impossibilidade de uma retoacuterica estoica no direito ultrapassa uma

questatildeo estritamente linguiacutestica Conforme vimos o direito leva em consideraccedilatildeo as

nossas emoccedilotildees porque a proteccedilatildeo juriacutedica soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres cuja

constituiccedilatildeo seja passiacutevel de danos pois eacute a partir dessa fragilidade constitutiva que se

deflagram respostas emocionais juridicamente relevantes O direito assim se constroacutei

atraveacutes de um conjunto de normas e decisotildees que fornecem elementos para entendermos

com que tipos de danos temos razatildeo para nos indignar ou para ter raiva ou que tipos de

sofrimento nos habilitam a buscar prestaccedilatildeo jurisdicional Portanto existe uma eacutetica

emotiva que informa a elaboraccedilatildeo das leis instrumentaliza-se processualmente e muitas

vezes ingressa no discurso juriacutedico Em outras palavras o direito eacute um sistema de

normas fundado em emoccedilotildees

Isso estaacute intrinsicamente conectado com a anaacutelise das decisotildees que apresentamos

no toacutepico anterior e que agora passamos a discutir

Por exemplo no ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo natildeo faria o menor sentido utilizar a

estrutura cognitiva do medo (argumentos de consequecircncia negativa) caso a existecircncia

de determinados perigos natildeo tivesse a possibilidade de realmente provocar seacuterios

danos a sujeitos e bens juridicamente tutelados pela CF isto eacute a sauacutede da populaccedilatildeo e o

equiliacutebrio do meio-ambiente

Desse modo o uso de argumentos de medo se fez necessaacuterio porque estava em

discussatildeo a presenccedila de riscos juridicamente relevantes que precisavam ser

evidenciados e ponderados Na audiecircncia puacuteblica realizada em 9 de junho de 2008

diversos especialistas manifestaram posicionamentos a favor e contra a importaccedilatildeo dos

pneus usados e remoldados de sorte que para uma boa soluccedilatildeo da questatildeo a

visualizaccedilatildeo de perigos relacionados agrave referida importaccedilatildeo era fundamental

Conveacutem destacar que na decisatildeo o uso de argumentos de medo estava

embasado em material teacutecnico elaborado por especialistas Ademais os referidos

argumentos estavam integrados dentro de uma argumentaccedilatildeo juriacutedica porque os

ministros desenvolveram a ideia de que aqueles perigos contrariavam dispositivos

constitucionais relacionados ao tema tais como o direito ao meio-ambiente

ecologicamente equilibrado o princiacutepio da precauccedilatildeo e o direito agrave sauacutede Por exemplo

em relaccedilatildeo ao art 225 da CF destaca-se o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado o que impotildee ao poder puacuteblico o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as

128

presentes e futuras geraccedilotildees O princiacutepio da precauccedilatildeo exige a necessidade de prevenir-

se contra riscos de danos previsiacuteveis quanto ao art 196 da CF enfatiza-se o dever de

atuaccedilatildeo do poder puacuteblico em face de riscos agrave sauacutede da populaccedilatildeo

Assim tal argumentaccedilatildeo demonstra a atualidade da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica de que

o medo pode ser beneacutefico para a deliberaccedilatildeo de determinados assuntos que envolvam

perigos Walton tambeacutem evidencia este aspecto ao dizer que argumentos que apelem ao

medo satildeo legiacutetimos e racionais quando a decisatildeo envolva a necessidade de ponderar as

consequecircncias de determinadas escolhas ou mais especificamente quando existe um

dilema entre manter um benefiacutecio atual ou visualizar aspectos de seguranccedila a longo-

prazo ldquoestes argumentos frequentemente envolvem uma escolha entre a seguranccedila a

longo-prazo e a gratificaccedilatildeo imediatardquo289

No presente caso pode-se dizer que estava em

discussatildeo a seguranccedila a longo prazo da populaccedilatildeo e do meio-ambiente em face da

manutenccedilatildeo dos interesses econocircmicos de certas empresas290

De outra parte analisando o ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958

1962 e 1970rdquo entendemos que os argumentos emotivos foram mal utilizados pelos

motivos a seguir desenvolvidos

Em primeiro lugar antes de prosseguir eacute preciso registrar que homenagens

puacuteblicas (sem premiaccedilatildeo em dinheiro) a cidadatildeos brasileiros que alcanccedilaram relevante

ecircxito em suas aacutereas de atuaccedilatildeo profissional (artiacutestica cultural cientiacutefica esportiva etc)

e divulgaram positivamente o nome do Paiacutes satildeo comuns e fazem parte da conduta da

Administraccedilatildeo Puacuteblica Todavia na referida ADI natildeo estava em discussatildeo uma mera

homenagem mas a constitucionalidade de dispositivos da Lei nordm 12663 de 2012 que

destinavam a especiacuteficos ex-jogadores a tiacutetulo de premiaccedilatildeo um relevante montante de

dinheiro puacuteblico no valor total de R$ 52 milhotildees de reais aleacutem de um auxiacutelio especial

Assim considerando a singularidade da homenagem seria necessaacuterio demonstrar que o

uso do dinheiro puacuteblico no caso buscava atingir algum propoacutesito constitucional

bastante relevante

289

ldquoThese arguments frequently involve a choice between long-term safety and immediate gratificationrdquo

(trad livre) WALTON D Op cit 2000 p 23 290

Sunstein em obra especiacutefica explora a relaccedilatildeo entre o medo e o princiacutepio da precauccedilatildeo Em contextos

altamente emotivos o autor argumenta que ocorre o fenocircmeno da negligecircncia probabiliacutestica isto eacute as

pessoas tendem a ignorar a real probabilidade de acontecimento dos riscos imaginados tomando assim

decisotildees irracionais Cf SUNSTEIN Cass R Laws of fear beyond the precautionary principle New

York Cambridge University Press 2005

129

Todavia da leitura dos votos dos ministros observa-se que o uso de argumentos

emotivos suplantou qualquer tentativa de desenvolvimento argumentativo a respeito dos

motivos constitucionais que fundamentariam tal premiaccedilatildeo

Apenas o relator o ministro Lewandowski conseguiu desenvolver um pouco

alguns suportes constitucionais para a decisatildeo mas ainda assim de maneira

problemaacutetica

No primeiro suporte cita-se o art 217 da CF cujo caput diz que eacute dever do

Estado fomentar praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais a autorizaccedilatildeo para a

referida homenagem estaria no inciso IV deste dispositivo o qual diz que devem ser

observados ldquoa proteccedilatildeo e o incentivo agraves manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacionalrdquo

Todavia a expressatildeo ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo que parece indicar a necessidade de proteccedilatildeo

de manifestaccedilotildees desportivas criadasoriginadas no Brasil eacute entendida em outro sentido

Assim ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo eacute compreendida no sentido de ldquoincorporada aos costumes

nacionaisrdquo

Desse modo o ministro Lewadowski chega agrave conclusatildeo de que o futebol como

esporte incorporado ao costume nacional ldquodeve ser protegido e incentivado por

expressa imposiccedilatildeo constitucional mediante qualquer meio que a Administraccedilatildeo

Puacuteblica considerar apropriadordquo Em outras palavras a Administraccedilatildeo Puacuteblica natildeo

estaria sujeita a limites quando no intuito de fomentar determinada praacutetica desportiva

a protege e incentiva com dinheiro puacuteblico inclusive atraveacutes de homenagens a pessoas

especiacuteficas Parece que tal conclusatildeo natildeo estaacute condizente com a ideia de limites

juriacutedicos presente num Estado Democraacutetico de Direito

O segundo suporte seria uma combinaccedilatildeo do art 215 sect1ordm com o art 216 da CF

Aquele primeiro dispositivo reza que ldquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas

populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo

civilizatoacuterio nacionalrdquo Assim o sect 1ordm do art 215 preocupa-se com as manifestaccedilotildees das

culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do

processo civilizatoacuterio nacional porque compreende que a vulnerabilidade de culturas

pertencentes a grupos minoritaacuterios necessita de proteccedilatildeo estatal diferenciada para natildeo

desaparecerem

Todavia o ministro Lewandowski realiza uma ablaccedilatildeo no referido dispositivo

ao retirar a parte que fala de ldquo[] indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos

participantes do processo civilizatoacuterio nacionalrdquo Na sua decisatildeo aparece apenas um

pedaccedilo do dispositivo senatildeo vejamos ldquovale lembrar ainda nesse diapasatildeo que o art

130

215 sect 1ordm da Carta Magna dispotildee que lsquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas

popularesrsquordquo

O art 216 por sua vez declara que o patrimocircnio cultural brasileiro eacute

constituiacutedo por bens de natureza material e imaterial ldquo[] tomados individualmente ou

em conjunto portadores de referecircncia agrave identidade agrave accedilatildeo agrave memoacuteria dos diferentes

grupos formadores da sociedade brasileirardquo Assim o ministro Lewandowski chega agrave

conclusatildeo de que o futebol eacute um bem de natureza imaterial e faz referecircncia aos incisos I

e II deste artigo quais sejam ldquoformas de expressatildeordquo e ldquoos modos de criar fazer e

viverrdquo

Poreacutem no direito brasileiro eacute preciso ressaltar que para ganhar tal alcunha os

bens culturais de natureza imaterial por expressa determinaccedilatildeo do art 216 sect 1ordm da CF

estatildeo sujeitos a processo de registro e de reconhecimento especiacutefico pelo Instituto de

Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional - IPHAN regulamentado pelo Decreto nordm

3551 de 4 de agosto de 2000291

Assim ateacute hoje foram registrados pelo IPHAN os seguintes bens culturais de

natureza imaterial ofiacutecio das paneleiras de goiabeiras kusiwa (linguagem e arte graacutefica

Wajatildepi) ciacuterio de Nossa Senhora de Nazareacute samba de roda do recocircncavo baiano modo

de fazer viola-de-cocho ofiacutecio das baianas de acarajeacute jongo no Sudeste modo artesanal

de fazer queijo de Minas samba do Rio de Janeiro frevo cachoeira de Iauaretecirc (lugar

sagrado dos povos indiacutegenas dos Rios Uaupeacutes e Papuri) feira de Caruaru e roda de

capoeira toque dos sinos em Minas Gerais ofiacutecio de Sineiro festa do Divino Espiacuterito

Santo de Pirenoacutepolis Rtixogravekograve (expressatildeo artiacutestica e cosmoloacutegica do Povo Karajaacute)

etc292

A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura ndash

UNESCO apenas reconhece como patrimocircnio cultural imaterial da humanidade os

seguintes elementos do Brasil roda de capoeira frevo yaokwa (ritual do povo

enawene) expressotildees orais e graacuteficas dos wajapis e samba de roda do recocircncavo

baiano293

291

Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimocircnio cultural

brasileiro cria o Programa Nacional do Patrimocircnio Imaterial e daacute outras providecircncias 292

Cf em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid=12456ampretorno=paginaIphan

Acesso em 19 de marccedilo de 2015 293

Cf em httpwwwunescoorgnewptbrasiliacultureworld-heritageintangible-cultural-heritage-list-

brazilc1414250 Acesso em 19 de marccedilo de 2015

131

De toda sorte todos os dispositivos acima citados pelo ministro satildeo brevemente

desenvolvidos na argumentaccedilatildeo e mesmo assim natildeo parecem conceder uma

autorizaccedilatildeo para a dita homenagem com o uso de dinheiro puacuteblico

A partir de entatildeo apenas surgem argumentos emotivos que procuram dar razotildees

para se ter orgulho e compaixatildeo pelos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e

1970 Todavia a questatildeo eacute que tais argumentos desconectam-se dos seus motivos

juriacutedicos afastam-se da questatildeo central em discussatildeo que era a verificaccedilatildeo do

atingimento de propoacutesitos constitucionais e adquirem um peso desproporcional na

argumentaccedilatildeo passando a ser irrelevantes

Conveacutem destacar que a argumentaccedilatildeo realizada pelo ministro Luiz Fux chega a

apresentar as caracteriacutesticas do que seria uma patologia do orgulho Segundo Lazarus o

orgulho pode demonstrar uma faceta doentia quando proveniente de uma identidade

extremante fraacutegil e em duacutevida sobre o seu proacuteprio valor294

Desse modo ao dizer que as

conquistas dos referidos jogadores fizeram com que abandonaacutessemos ldquoo complexo de

que noacutes soacute seriacuteamos uma paacutetria que calccedila chuteirasrdquo o ministro fornece um fundamento

patoloacutegico para a concessatildeo da premiaccedilatildeo Ademais dizer que as vitoacuterias da seleccedilatildeo

proporcionaram bastante alegria agrave populaccedilatildeo e que tal premiaccedilatildeo seria uma diacutevida de

gratidatildeo do povo brasileiro eacute irrelevante para a soluccedilatildeo juriacutedica do caso

O ministro Toffoli por sua vez destaca sem especificar fontes bibliograacuteficas

que a descoberta das empresas suecas pelo Brasil ocorreu em virtude da vitoacuteria de 1958

e seria um bom motivo para se orgulhar da seleccedilatildeo Tal argumento como tantos outros

foge da questatildeo central em julgamento e eacute igualmente irrelevante

De outra parte o uso da compaixatildeo que formatou a concessatildeo legislativa do

chamado auxiacutelio especial e ingressou nos argumentos juriacutedicos tambeacutem se mostra

problemaacutetico

Primeiramente eacute preciso dizer que a compaixatildeo eacute uma emoccedilatildeo de importante

cultivo na vida puacuteblica pois seria impossiacutevel conviver numa sociedade cujos membros

natildeo tivessem a capacidade de reconhecer a seriedade do sofrimento vivido pelos demais

e de lhes auxiliar Assim Nussbaum destaca que tal emoccedilatildeo quando bem utilizada

pode desempenhar relevante funccedilatildeo no direito ldquoela pode fornecer bases cruciais para

programas de assistecircncia social para a ajuda externa e outros esforccedilos para a justiccedila

294

LAZARUS R Op cit 1991 p 273

132

global e para muitas formas de mudanccedila social que abordam a opressatildeo e a

desigualdade de grupos vulneraacuteveisrdquo295

Todavia ela tambeacutem pode ser mal utilizada pelo Estado principalmente em

relaccedilatildeo a uma etapa da estrutura cognitiva da compaixatildeo que diz respeito ao julgamento

eudemonista isto eacute uma fase avaliativa em que aferimos a extensatildeo de pessoas que eacute

objeto de tal emoccedilatildeo296

Eacute caracteriacutestico do ser humano que ele tenha preocupaccedilatildeo

primeiramente por ele proacuteprio e depois por aqueles que lhes satildeo proacuteximos tendendo a

ser indiferente consequentemente com aqueles que estatildeo afastados de seu estreito

ciacuterculo de empatia Tal estrutura de pensamento estaacute presente na descriccedilatildeo da

compaixatildeo realizada por Aristoacuteteles em sua Retoacuterica

Um dos possiacuteveis erros nessa etapa alerta Nussbaum consiste em incluir uma

quantidade muito restrita de pessoas em tal ciacuterculo Ou seja geralmente ocorre que o

conjunto de indiviacuteduos digno de tal sentimento eacute aquele culturalmente proacuteximo ou

simpaacutetico de uma sociedade excluindo-se estranhos e pessoas que estatildeo distantes297

No

que tange agrave criaccedilatildeo de tais ciacuterculos a miacutedia possui um tremendo poder pois atraveacutes da

escolha de imagens e de narrativas e inclusive por pressotildees mercadoloacutegicas tem a

capacidade de produzir empatia e influenciar julgamentos eudemonistas298

Poreacutem o Estado quando se baliza pela compaixatildeo para direcionamento de

recursos puacuteblicos precisa estar atento a isso e realizar uma avaliaccedilatildeo autocriacutetica nessa

etapa de julgamento Estendendo tal raciociacutenio ao presente caso pode-se dizer que no

Brasil o exerciacutecio de compaixatildeo por jogadores campeotildees de futebol padece de um viacutecio

de circularidade cultural por parte do Estado

Assim utilizar argumentos de que determinados atletas mereceriam um auxiacutelio

financeiro porque na eacutepoca de suas atividades profissionais esportivas natildeo se retirava

proveito econocircmico como hoje em dia ou porque a presente situaccedilatildeo financeira de tais

ex-campeotildees colocaria em ldquoxeque o profundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves

seleccedilotildees brasileiras que disputaram a Copa do Mundo de 1958 1962 e 1970rdquo afronta a

isonomia em prejuiacutezo de atletas de outras modalidades excluiacutedas do ciacuterculo cultural da

295

ldquoIt can provide crucial underpinnings for social welfare programs for foreign aid and other efforts

toward global justice and for many forms of social change that address the oppression and inequality of

vulnerable groupsrdquo (trad livre) NUSSBAUM M Op cit p 55 296

Id ibid p 51 297

Id ibid p 346 298

NUSSBAUM Martha Upheavals of thought the intelligence of emotions Cambridge Cambridge

University Press 2001 p 434

133

simpatia social que tambeacutem alcanccedilaram feitos notaacuteveis para o Paiacutes e que atualmente

passam por iguais problemas financeiros

Acrescente-se que a isonomia eacute um instrumento juriacutedico de manutenccedilatildeo da

estabilidade emocional numa sociedade cujo direito valorize a igualdade Desse modo a

desequiparaccedilatildeo arbitraacuteria juridicamente desmotivada ou fraca deve ser evitada porque

deflagra reaccedilotildees juridicamente relevantes de raiva e de indignaccedilatildeo em face do Estado-

legislador

Por uacuteltimo no ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo tem-se um julgamento distinto dos

demais porque os argumentos emotivos ainda que salientes estavam diluiacutedos entre

uma seacuterie de outros argumentos acerca de questotildees penais de dignidade da pessoa

humana de laicidade estatal de autonomia do indiviacuteduo de definiccedilatildeo sobre o iniacutecio da

vida etc

Poreacutem conforme vimos os votos vencedores estavam em sintonia

argumentativa em pelo menos um aspecto qual seja o reconhecimento do sofrimento

da gestante que foi comparado muitas vezes a uma tortura a um martiacuterio revelando a

estrutura cognitiva da compaixatildeo Ademais vaacuterias emoccedilotildees negativas foram

expressamente atribuiacutedas agrave figura da matildee medo vergonha anguacutestia raiva tristeza

Ressalte-se que tal constataccedilatildeo tinha fundamento no depoimento de mulheres que

portaram fetos anenceacutefalos na opiniatildeo de meacutedicos (ginecologistas psiquiatras)

antropoacutelogos e demais especialistas ouvidos na audiecircncia puacuteblica

Acreditamos que tais argumentos eram juridicamente relevantes pelos seguintes

aspectos Primeiramente a demanda considerando o objeto da accedilatildeo soacute faria sentido

diante da seriedade do sofrimento experimentado pela gestante E isso estava

estreitamente conectado a questotildees juriacutedicas respeitantes agrave dignidade da pessoa humana

agrave liberdade e agrave autonomia da vontade ao direito agrave sauacutede que engloba a sauacutede fiacutesica e

psiacutequica

Obviamente a gravidade do sofrimento da gestante era apenas uma entre outras

questotildees que precisavam ser argumentadas e por isso haveria um erro de peso caso os

votos apenas se sustentassem nesse ponto o que natildeo aconteceu No entanto pode-se

dizer que a estrutura argumentativa do julgado estava fundada numa emoccedilatildeo especiacutefica

que era a compaixatildeo e que isso diante das caracteriacutesticas do problema e das normas

juriacutedicas invocadas tinha uma relevacircncia juriacutedica para o deslinde da controveacutersia

Tendo realizado essas observaccedilotildees em relaccedilatildeo aos trecircs julgados do STF

analisados no toacutepico anterior verifica-se que o estudo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo

134

juriacutedica e mais amplamente no direito se justifica pois a partir desta perspectiva eacute

possiacutevel compreender por que alguns julgamentos e ateacute por que algumas leis tomam

determinada formataccedilatildeo sendo admissiacutevel inclusive criticar o uso das emoccedilotildees no

discurso juriacutedico

No entanto para o fechamento deste toacutepico ainda resta discutir mais uma

problemaacutetica que se relaciona agrave eacutetica da utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e suas

implicaccedilotildees para um discurso juriacutedico que tenha a pretensatildeo de neutralidade e de

tecnicidade na soluccedilatildeo de problemas Assim a introduccedilatildeo de elementos emotivos numa

decisatildeo poderia representar uma ameaccedila agrave necessaacuteria imparcialidade exigida da figura

racional do juiz

Em parte pensamos jaacute ter respondido tal duacutevida tanto na exposiccedilatildeo que fizemos

da psicologia cognitiva quanto na anaacutelise das decisotildees judiciais do STF Para a Teoria

da Avaliaccedilatildeo natildeo haveria como falar de racionalidade dissociada das emoccedilotildees sendo

que muitas das boas decisotildees de nossa vida praacutetica estatildeo amparadas em suportes

emotivos

De outra parte vimos que em determinadas decisotildees judiciais seria ateacute

irracional decidir e fundamentar sem recorrer agraves emoccedilotildees como por exemplo no ldquocaso

dos pneumaacuteticosrdquo em que o medo se fez presente atraveacutes da visualizaccedilatildeo das

consequecircncias negativas (perigos) o que era extremamente adequado para a soluccedilatildeo do

problema

Ademais adicionamos que os argumentos emotivos precisam ser juridicamente

relevantes para o caso considerando tanto o conjunto de normas juriacutedicas invocado

quanto a especiacutefica problemaacutetica factual a ser enfrentada Por fim o peso de tais

argumentos precisa guardar uma relaccedilatildeo de proporccedilatildeo com outras questotildees que tambeacutem

precisem ser enfrentadas

Todavia aqui intencionamos tratar de algo diferente e expor um fictiacutecio modelo

humano que pudesse servir de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no julgamento porque

sabemos que elas tanto podem ser bem utilizadas quanto mal utilizadas

Em primeiro lugar o saacutebio estoico natildeo seria um bom paracircmetro de reflexatildeo

porque uma vez que se livrou das emoccedilotildees do homem comum e apenas possui uma

ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees (eupatheia) ele tem uma sistemaacutetica de valores que natildeo

coincide com a nossa e a do nosso ordenamento juriacutedico e provavelmente caso tivesse

que julgar o homem inferior teria uma difiacutecil compreensatildeo dos seus problemas juriacutedico-

mundanos

135

Vimos que Aristoacuteteles confere bastante importacircncia agraves emoccedilotildees em sua teoria

eacutetica e na retoacuterica aleacutem de possuir uma visatildeo sobre o tema que ainda permanece

bastante atual Ademais o homem aristoteacutelico tem a virtude completa porque nele a

parte racional e a parte natildeo-racional da alma desempenham bem a sua funccedilatildeo e atingem

os melhores padrotildees demonstrando corretamente que natildeo existe racionalidade sem

disposiccedilatildeo emocional Todavia vimos que Aristoacuteteles natildeo recepciona na retoacuterica a

classificaccedilatildeo emocional da Eacutetica a Nicocircmaco Aleacutem disso para o Estagirita a virtude

moral eacute conquistada pelo haacutebito o que embora concordemos em parte se distancia dos

propoacutesitos mais intelectuais aqui objetivados

Assim entendemos que um bom ponto de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no

direito e especificamente na decisatildeo juriacutedica seria o modelo do espectador imparcial de

Adam Smith

Na sua Teoria dos Sentimentos Morais Smith procura explanar a estrutura do

julgamento da vida moral na sociedade isto eacute o meio pelo qual aprovamos ou

reprovamos condutas de indiviacuteduos incluindo noacutes mesmos considerando a adequaccedilatildeo

da accedilatildeo de um determinado agente num determinado contexto Primeiramente julgamos

a correccedilatildeo das accedilotildees como espectadores diretos mas em busca de uma melhor

avaliaccedilatildeo tentamos recorrer a outros tipos de espectadores ateacute chegarmos agravequele que

seria o melhor tipo de julgador ou seja o espectador imparcial299

O ato de julgar eacute o desafio de conectar um conjunto de eventos marcados pela

fortuna e por isso pelas suas singularidades a um mundo que necessita ser regido por

padrotildees normativos em comum vale dizer ldquo[] um mundo de mentes que soacute pode ser

um mundo comum quando a imaginaccedilatildeo criativa estabelece normas comuns para a

forma de avaliar os motivos para a accedilatildeo ou seja o que deve ser considerado um motivo

adequado para a accedilatildeordquo300

A fim de realizar devidamente tais julgamentos o espectador precisa estar

munido de dois indispensaacuteveis instrumentos morais quais sejam a simpatia e a

imaginaccedilatildeo Por meio da imaginaccedilatildeo conseguimos superar a descontiguidade fiacutesica

que nos separa necessariamente dos outros homens e o hiato temporal que via de

regra nos aparta da situaccedilatildeo experimentada pelos outros permitindo-nos posicionar

299

SMITH Adam The theory of moral sentiments Cambridge Cambridge University Press 2002 p

XVI 300

ldquo[hellip] world of minds which can only be a common world when the creative imagination sets up

common standards for how to assess motives for action that is for what counts as a proper motive for

actionrdquo (trad livre) Introduccedilatildeo in Id ibid p XVII

136

num mundo de eventos que pessoalmente nunca vivenciamos mas que somos capazes

de reconstruir mentalmente e de alguma forma senti-lo

Como natildeo temos experiecircncia imediata do que os outros homens

sentem natildeo podemos formar uma ideia da forma como eles satildeo

afetados senatildeo concebendo o que noacutes sentiriacuteamos na situaccedilatildeo

semelhante

[]

Pela imaginaccedilatildeo nos colocamos em sua situaccedilatildeo concebemo-nos

suportando todos os mesmos tormentos entramos por assim dizer em

seu corpo e nos convertemos em alguma medida a mesma pessoa que

ele e daiacute formamos uma ideia de suas sensaccedilotildees podendo sentir algo

que embora em menor grau natildeo eacute totalmente contraacuterio ao deles301

Assim eacute atraveacutes da imaginaccedilatildeo baseada em evidecircncias em relaccedilatildeo ao evento

julgado que o espectador consegue compreender os motivos e as emoccedilotildees que

informaram a atitude do agente E a sua simpatia se funda nesta imaginaccedilatildeo pois apenas

ela permite ldquo[] levar para si mesmo cada pequena circunstacircncia de sofrimento que

pode eventualmente ocorrer a quem sofrerdquo302

Assim ao se imaginar na posiccedilatildeo do

agente o espectador iraacute avaliar se agiria da mesma forma simpatizando com os

sentimentos do agente e com a sua conduta

Poreacutem a despeito de o espectador imparcial possuir essa viacutevida qualidade de

imaginar a situaccedilatildeo alheia e por isso ter uma racionalidade composta por emoccedilotildees a

sua especial condiccedilatildeo lhe possibilita estar apartado da violecircncia dos sentimentos

alheios permitindo-lhe produzir julgamentos morais imparciais Assim anota Forman-

Barzilai ldquomas eacute fundamental notar que o modelo de simpatia eacute eficaz para Smith para

produzir juiacutezos morais imparciais porque o espectador eacute ao mesmo tempo envolvido e

desapegadordquo303

Assim o espectador imparcial que eacute a terceira pessoa ideal imaginaacuteria

consegue temperar as emoccedilotildees porque estaacute localizado num lugar que nem eacute

exatamente o nosso proacuteprio com as nossas eternas inclinaccedilotildees e preferecircncias pessoais

301

ldquoAs we have no immediate experience of what other men feel we can form no idea of the manner in

which they are affected but by conceiving what we ourselves should feel in the like situation [hellip] By the

imagination we place ourselves in his situation we conceive ourselves enduring all the same torments we

enter as it were into his body and become in some measure the same person with him and thence form

some idea of his sensations and even feel something which though weaker in degree is not altogether

unlike themrdquo (trad livre) Id ibid p 11-12 302

ldquo[hellip] to bring home to himself every little circumstance of distress which can possibly occur to the

suffererrdquo (trad livre) Id ibid p 26 303

ldquoBut it is key to note that the sympathy model is effective for Smith for producing impartial moral

judgments because the spectator is at once both involved and detachedrdquo FORMAN-BARZILAI Fonna

Adam Smith and the circles of sympathy cosmopolitanism and moral theory Cambridge Cambridge

University Press 2009 p 67

137

nem o da pessoa observada Conforme adverte Nussbaum a emoccedilatildeo precisa ser a

emoccedilatildeo de um espectador ldquoisso tambeacutem significa que noacutes temos que omitir essa parte

da emoccedilatildeo que deriva de um interesse pessoal em nossas proacuteprias metas e projetosrdquo304

Um tal modelo de espectador imparcial implica o desenvolvimento da

capacidade de autocriacutetica e de criacutetica porque lembra Pitts o nosso julgamento do que eacute

louvaacutevel eacute inserido sempre num determinado contexto social e eacute necessaacuterio aprender a

questionaacute-lo em seus preconceitos e nas suas parcialidades Assim ldquonoacutes desenvolvemos

uma concepccedilatildeo do que seria o julgamento de um espectador imparcial observando as

nossas proacuteprias opiniotildees e as de observadores reais ndash membros da nossa proacutepria

sociedade ndash e destes destilando um julgamento desapaixonado e imparcialrdquo305

Smith portanto estava preocupado com a manutenccedilatildeo da ordem social uma vez

que para ele a ausecircncia de determinados preceitos de justiccedila tem forte efeito

desintegrador sobre a sociedade306

Na preservaccedilatildeo dessa ordem confrontar as

inclinaccedilotildees emotivas eacute essencial e isso deve ser realizado numa dupla esfera

individualmente atraveacutes do escrutiacutenio das preferecircncias particularistas e coletivamente

por meio do exame das preferecircncias parciais de facccedilotildees civis e eclesiais que podem se

tornar extremamente fanaacuteticas307

Com efeito tendo visto o que seria o modelo de espectador imparcial de Smith

percebe-se que ele representa um bom ponto de reflexatildeo para pensar a eacutetica da

utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Primeiramente as emoccedilotildees natildeo podem ser aquelas resultantes dos proacuteprios

projetos e inclinaccedilotildees particulares do julgador e nessa medida ele precisa ter a

304

ldquoit also means that we have to omit that portion of the emotion that derives from a personal interest in

our own goals and projectsrdquo (trad livre) NUSSBAUM Martha Emotion in the language of judging

In St Johns Law Review vol 70 issue 1 1996 23-30 p 28 305

ldquoWe develop a conception of what the impartial spectatorrsquos judgments would be by observing our own

opinions and those of actual observers and from these distilling a dispassionate and unbiased judgmentrdquo

(trad livre) PITTS Jennifer A turn to empire the rise of imperial liberalism in Britain and France

PrincetonOxford Princeton University Press 2005 p 44 Neil Maccormick busca conciliar o

pensamento de Smith com o de Kant ao formular o seguinte imperativo categoacuterico smithiano ldquoEntre tatildeo

plenamente quanto possiacutevel nos sentimentos de todas as pessoas diretamente envolvidas ou afetadas por

um incidente ou por um relacionamento e imparcialmente forme uma maacutexima de julgamento sobre o que

eacute certo que todos pudessem aceitar se estivessem comprometidos com a manutenccedilatildeo de crenccedilas muacutetuas

estabelecendo um padratildeo comum de aprovaccedilatildeo entre sirdquo MACCORMICK Neil Practical reason in law

and morality OxfordNew York Oxford University Press 2008 p 64 Para uma anaacutelise da

argumentaccedilatildeo do STF e do STJ com base nos paracircmetros fornecidos por Maccormick cf ROESLER

Claudia LAGE Leonardo A argumentaccedilatildeo do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes

inimputaacuteveis e semi-imputaacuteveis In Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Ano 21 Vol 104 Out-

set 2013 pp 347-390 306

SMITH A Op cit p 101 307

FORMAN-BARZILAI F Op cit p 152

138

capacidade de filtrar as suas propensotildees pessoais e tambeacutem criticar as do grupo em que

esteja socialmente inserido e as de outros grupos sociais dominantes a fim de que as

emoccedilotildees alcanccediladas sejam a de um espectador imparcial Poreacutem a despeito disso sabe-

se que ele natildeo eacute um observador apaacutetico de modo que as emoccedilotildees quando juridicamente

relevantes e pertinentes ao conjunto normativo discutido podem ser argumentadas

desde que devidamente fundamentadas em evidecircncias Por fim eacute preciso acrescentar

que o julgador por meio de suas decisotildees eacute responsaacutevel por preservar um ambiente de

normatividade comum na sociedade

A manutenccedilatildeo da confianccedila social na figura do juiz reside na sua capacidade de

se colocar adequadamente nesse papel de espectador imparcial possibilitando a

conservaccedilatildeo do ideal da lei como limites

139

4 CONCLUSAtildeO

No Capiacutetulo I iniciamos este trabalho investigando a importacircncia conferida agraves

emoccedilotildees na Antiguidade precisamente na retoacuterica e na eacutetica da filosofia de Aristoacuteteles e

da escola estoica

Primeiramente contextualizamos o tema e observamos que as emoccedilotildees ganham

oportunidade para tematizaccedilatildeo apenas dentro de uma sociedade em que a cultura do

debate eacute valorizada A retoacuterica surge num ambiente em que a fala articulada se mostra

extremamente necessaacuteria para a soluccedilatildeo de problemas na vida comum nascendo a partir

daiacute a sua teorizaccedilatildeo e tambeacutem a sua criacutetica atraveacutes de Platatildeo que cunha o termo

ldquorhecirctorikecircrdquo Ademais a proacutepria literatura representada na sua maior qualidade pela

obra de Homero impulsiona e antecipa o desenvolvimento teoacuterico da retoacuterica

Por sua vez ao analisar a retoacuterica aristoteacutelica destacamos um ponto pouco

explorado do autor que diz respeito agrave sua mudanccedila de posicionamento acerca das

emoccedilotildees Se no Capiacutetulo I do Livro I da Retoacuterica observamos uma contundente criacutetica

ao uso das emoccedilotildees no discurso a partir do Capiacutetulo II as emoccedilotildees jaacute satildeo consideradas

um dos meios de convencimento e apoacutes dedica-se praticamente a metade do Livro II

para descrever com um grande grau de detalhes as emoccedilotildees em espeacutecie

Vimos tambeacutem que Aristoacuteteles foi influenciado pela evoluccedilatildeo do pensamento

platocircnico e incorpora em sua obra a ideia de sentimentos mistos pois para o

mencionado filoacutesofo as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer e de dor Ademais a fim

de explanar como ocorre o mecanismo de surgimento das emoccedilotildees o Estagirita recorre

agrave ideia de phantasia um termo teacutecnico emprestado de sua psicologia Uma curiosidade

identificada foi o fato de que o tema das emoccedilotildees que a rigor eacute um assunto proacuteprio da

psicologia natildeo eacute desenvolvido na obra aristoteacutelica supostamente adequada para tanto

que seria a ldquoDe Animardquo (Sobre a alma) evidenciando o quanto na sabedoria da eacutepoca

a retoacuterica jaacute estava vinculada a questotildees psicoloacutegicas

De outra parte nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles tambeacutem

confere bastante relevacircncia agraves emoccedilotildees O homem virtuoso aristoteacutelico possui a virtude

completa que eacute alcanccedilada pelo bom funcionamento da parte racional e da parte natildeo-

racional da alma A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que eacute atingida por meio

do haacutebito e ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que significa ser devidamente afetado

pelas emoccedilotildees eacute determinante para aquisiccedilatildeo de uma vida feliz Exploramos as

implicaccedilotildees morais desse modelo eacutetico ao dizer que uma falha na decisatildeo do curso da

140

accedilatildeo moral estaacute tambeacutem relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional do indiviacuteduo Aleacutem disso

constatamos que Aristoacuteteles realiza uma classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e

inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas sendo que estas

uacuteltimas natildeo devem ser sentidas em nenhuma circunstacircncia Por uacuteltimo ao compararmos

a classificaccedilatildeo emocional desenvolvida na Eacutetica a Nicocircmaco com o tratamento teoacuterico

da Retoacuterica percebemos que o orador eacute instruiacutedo a utilizar todas as emoccedilotildees no

discurso inclusive aquelas denominadas de perversas motivo pelo qual se pode dizer

que a retoacuterica foi erigida num domiacutenio proacuteprio

De seu turno os estoicos desenvolveram uma peculiar sistemaacutetica de

pensamento em que a uacutenica coisa considerada boa eacute a virtude que se confunde com a

felicidade e a uacutenica coisa ruim eacute o viacutecio que significa a infelicidade todo o resto

(reputaccedilatildeo riqueza sauacutede bom nascimento beleza etc) eacute considerado indiferente isto

eacute a sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a felicidade Ademais para os fundadores da escola

estoica a alma humana eacute monoliticamente constituiacuteda apenas pela razatildeo sem

possibilidade de haver conflito entre as partes Nessa ordem de ideias as emoccedilotildees que

satildeo entendidas como avaliaccedilotildees por Crisipo devem ser eliminadas da vida comum uma

vez que por meio delas estamos sempre valorando indevidamente a realidade Em seu

caminho para a aquisiccedilatildeo da autossuficiecircncia e para a compreensatildeo correta do mundo o

homem virtuoso estoico que eacute representado pela figura do saacutebio se livrou das emoccedilotildees

do ser humano inferior e adquiriu uma ldquoversatildeo corrigidardquo denominada eupatheia

A retoacuterica estoica por sua vez recebeu uma grande influecircncia da sua eacutetica e por

isso natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero nos traz um relato histoacuterico de oradores estoicos

romanos como figuras que embora haacutebeis na dialeacutetica e no uso de argumentos precisos

possuiacuteam um estilo seco severo apaacutetico e conciso A ineficaacutecia desse modelo de

discurso eacute relatada no julgamento de Rutilius Rufus que ao se defender no estilo estoico

de uma injusta acusaccedilatildeo foi condenado e exilado

Da exposiccedilatildeo da filosofia aristoteacutelica e estoica acerca das emoccedilotildees concluiacutemos

que o tema era extremamente relevante para as referidas escolas de pensamento e que

ambas natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar das emoccedilotildees Aristoacuteteles antes

de explanar sobre os entimemas que eacute a parte do logos na Retoacuterica ou antes de falar

sobre a parte racional da alma na Eacutetica a Nicocircmaco preferiu discursar primeiramente

sobre as emoccedilotildees conferindo uma precedecircncia e um significado simboacutelico ao assunto

Por sua vez ainda que os estoicos em virtude de sua axiologia ilustrassem uma visatildeo

141

negativa sobre as emoccedilotildees eles realizaram um debate de alto niacutevel e extremamente

atual para a reflexatildeo do assunto

No Capiacutetulo II buscamos investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a MTA

que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de Toulmin

e de Perelman-Tyteca Ademais tambeacutem procuramos identificar criteacuterios de anaacutelise e

de avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso Igualmente examinamos o

desenvolvimento teoacuterico das emoccedilotildees para a psicologia cognitiva especialmente para a

Teoria da Avaliaccedilatildeo Ressalte-se que um dos objetivos fundamentais de tal capiacutetulo foi

tambeacutem tentar compreender como o tema das emoccedilotildees que era considerado tatildeo vital

para o discurso e para a eacutetica na Antiguidade foi recepcionado pela MTA

Em primeiro lugar vimos que o surgimento da MTA ocorreu num contexto

histoacuterico bem especiacutefico em que os movimentos totalitaacuterios ingressaram no poder e

dominaram a vida poliacutetica europeia e mundial O tipo de discurso utilizado por tais

movimentos era a propaganda que empregava um forte apelo emocional para mobilizar

as massas A MTA surge com o objetivo de se afastar desse tipo de discurso e de fundar

um modelo de argumentaccedilatildeo racional que viabilizasse a existecircncia da democracia

Nesse sentido tanto Toulmin quanto Perelman-Tyteca natildeo esboccedilaram nenhum interesse

em falar sobre as emoccedilotildees Assim eacute interessante perceber que justamente na chamada

ldquoNova Retoacutericardquo nada sobre as emoccedilotildees da retoacuterica aristoteacutelica foi recepcionado Em

relaccedilatildeo a Viehweg embora o autor demonstre a relaccedilatildeo entre a toacutepica a retoacuterica e o

direito tambeacutem natildeo vimos nenhum interesse em dissertar sobre as emoccedilotildees

A disciplina responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees na MTA foi a teoria das

falaacutecias ldquoadrdquo Dessa forma toda emoccedilatildeo da retoacuterica antiga se transformou num erro de

loacutegica para a argumentaccedilatildeo de modo que o discurso apaacutetico tal como propugnado pela

retoacuterica estoica passou a ser um modelo ideal de argumentaccedilatildeo fazendo com que

pathos retomasse o seu sentido de patoloacutegico Todavia criticamos tal proposta

argumentativa pela ausecircncia de complexidade e por ser incapaz de discutir em que

medida as emoccedilotildees poderiam desempenhar um bom papel na argumentaccedilatildeo

Em resposta ao tratamento dispensado agraves emoccedilotildees pela disciplina das falaacutecias

ldquoadrdquo vimos que Douglas Walton reage com forte criacutetica Uma teoria da argumentaccedilatildeo

que exclua de suas consideraccedilotildees argumentos emotivos se mostra inaacutebil em

compreender a forma como argumentamos na praacutetica Todavia o teoacuterico canadense

alerta que as emoccedilotildees tambeacutem podem ser mal utilizadas pois argumentos emotivos

podem ser irrelevantes numa discussatildeo e o impacto do seu apelo pode querer disfarccedilar a

142

fraqueza da argumentaccedilatildeo Assim a fim de avaliar tais apelos eacute preciso estar atento

para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo para o impacto e para o contexto em

que satildeo utilizados

Em seguida analisamos a abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees desenvolvida por

Micheli representante da escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo que destaca que o

problema do estudo das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade Desse

modo o linguista suiacuteccedilo sistematiza os resultados encontrados na linguiacutestica e oferece

trecircs categorias para a identificaccedilatildeo das emoccedilotildees na liacutengua as emoccedilotildees ditas as emoccedilotildees

demonstradas e as emoccedilotildees suportadas Outrossim verificamos que as emoccedilotildees podem

ser objeto de argumentaccedilatildeo e que manipulaccedilotildees racionais natildeo satildeo distintas de

manipulaccedilotildees emocionais

Por fim considerando que o tema das emoccedilotildees eacute desde a antiguidade

profundamente conectado com a psicologia procuramos dar um suporte psicoloacutegico ao

nosso trabalho com o saber teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo que coloca a ideia de

avaliaccedilatildeo como o centro da deflagraccedilatildeo do processo emotivo

Nesse ponto observou-se a grande atualidade da abordagem aristoteacutelica e

estoica sobre as emoccedilotildees pois ambas tinham uma compreensatildeo cognitiva do assunto

sendo que Crisipo expressamente se pronunciou no sentido de que as emoccedilotildees satildeo

avaliaccedilotildees Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo dependentes da razatildeo para o seu

surgimento e para o seu controle poreacutem neste processo natildeo haacute uma prevalecircncia da

razatildeo porque esta uacuteltima para se manter equilibrada precisa da emoccedilatildeo

Observamos que as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas

atendem a criteacuterios usuais de racionalidade (instrumental inferencial e consensual) Ao

fim concluiacutemos que a construccedilatildeo de uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa tambeacutem

acessar um saber psicoloacutegico sob pena de ser um artefato teoacuterico artificial sobre como

os seres humanos decidem e argumentam

O Capiacutetulo III foi dividido em trecircs partes a primeira se destinou a evidenciar a

importacircncia das emoccedilotildees para o direito a segunda buscou aplicar os criteacuterios de anaacutelise

descritiva do discurso emotivo identificados no Capiacutetulo II a terceira procurou fazer

consideraccedilotildees criacuteticas ao uso das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Na primeira parte concluiacutemos que eacute impossiacutevel compreender a estruturaccedilatildeo do

direito sem estudar as emoccedilotildees pois estas satildeo causas para a elaboraccedilatildeo de leis para

ingressar com uma demanda em juiacutezo e para solucionar uma controveacutersia juriacutedica A

apatheia estoica eacute um modelo inadequado para explicar o direito porque o nosso

143

ordenamento juriacutedico valoriza e protege aqueles bens que os estoicos denominariam de

indiferentes Ademais as nossas emoccedilotildees satildeo respostas aos mais diversos tipos de

danos que a nossa vulneraacutevel constituiccedilatildeo fiacutesico-psiacutequica pode apresentar sendo que o

direito leva isso em consideraccedilatildeo quando socialmente relevante

Ao analisar descritivamente trecircs julgados do STF (ldquoo caso dos pneumaacuteticosrdquo

ldquoo caso dos fetos anenceacutefalosrdquo e o ldquocaso dos campeotildees da Copa do Mundo de 1958 de

1962 e de 1970rdquo) observamos o quanto as emoccedilotildees (medo raiva indignaccedilatildeo gratidatildeo

orgulho compaixatildeo) foram determinantes para a soluccedilatildeo do problema juriacutedico

Concluiacutemos que conhecer a estrutura cognitiva de tais emoccedilotildees eacute fundamental para

realizar uma boa descriccedilatildeo dos suportes emotivos do julgamento

Na terceira parte defendemos que uma retoacuterica estoica seria um modelo de

discurso inalcanccedilaacutevel para o direito seja pela impossibilidade de esvaziar o conteuacutedo

emotivo da linguagem seja pela forma como o direito eacute estruturado

Antes de realizar consideraccedilotildees criacuteticas aos julgados expusemos que no atual

estado de arte da teoria da argumentaccedilatildeo natildeo identificamos um meacutetodo para avaliaccedilatildeo

de argumentos emotivos Assim sem pretender efetuar uma avaliaccedilatildeo rigorosa

procuramos a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum identificar alguns criteacuterios

miacutenimos que pudessem ser uacuteteis a um trabalho criacutetico

Apoacutes isso expusemos que o modelo do espectador imparcial de Adam Smith

seria um oportuno ponto de reflexatildeo para compreendermos a eacutetica das emoccedilotildees na

decisatildeo juriacutedica porque as emoccedilotildees do julgador necessitam ser as de um espectador e

para tanto ele deve ter a capacidade de criticar as proacuteprias inclinaccedilotildees emotivas e as de

outros grupos sociais a fim de atingir um estado de imparcialidade e manter um

ambiente de normatividade comum na sociedade

Todavia ainda que seja um espectador imparcial compreendemos que o

julgador natildeo eacute apaacutetico de modo que quando juridicamente relevantes e fundadas em

evidecircncias as emoccedilotildees podem ser argumentadas e integradas dentro do contexto de um

discurso juriacutedico e em referecircncia a um conjunto de normas juriacutedicas

Ao final deste trabalho podemos dizer que natildeo haacute motivos para que as emoccedilotildees

natildeo sejam incorporadas numa Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e mais amplamente no

estudo do direito porque natildeo eacute possiacutevel falar de racionalidade sem falar de emoccedilotildees e

do seu respectivo controle Se existe um receio de que elas sejam elementos irracionais

e que corrompam o discurso juriacutedico acreditamos que tal avaliaccedilatildeo natildeo eacute condizente

com a importacircncia que as emoccedilotildees possuem na estruturaccedilatildeo da psique humana com a

144

forma pela qual o direito jaacute eacute construiacutedo e com a maneira que decidimos e

argumentamos na praacutetica

De outra parte este trabalho procurou tambeacutem evidenciar em que medida as

emoccedilotildees podem ser mal utilizadas a fim de manter uma postura criacutetica em relaccedilatildeo ao

tema Podem-se censurar as emoccedilotildees no direito de vaacuterias formas a partir dos seguintes

criteacuterios a sua relevacircncia juriacutedica a ausecircncia de evidecircncias a sua parcialidade o seu

peso na argumentaccedilatildeo equiacutevocos de avaliaccedilatildeo na estrutura cognitiva da emoccedilatildeo a

emoccedilatildeo em si mesma Tais criteacuterios diante do atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo

precisam ser desenvolvidos teoricamente a fim de resultar numa metodologia segura de

avaliaccedilatildeo

Assim pensamos que o desenvolvimento de uma pedagogia do uso das

emoccedilotildees que recupere o vocabulaacuterio emotivo atualmente perdido na argumentaccedilatildeo

juriacutedica e no direito eacute muito mais interessante do que o seu atual estado de silecircncio

145

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Marcelo Fernandes Pires dos Santos

Retoacuterica Teoria da Argumentaccedilatildeo e Pathos o problema das emoccedilotildees no discurso

juriacutedico

__________________________________________________

Professora Doutora Claudia Rosane Roesler

Orientadora

__________________________________________________

Professor Doutor Alexandre Veronese Aguiar

Examinador interno (UnB)

__________________________________________________

Professor Doutor Isaac Costa Reis

Examinador externo (UFSBA)

__________________________________________________

Professor Doutor Argemiro Cardoso Martins

Suplente (Unb)

Brasiacutelia 27 de maio de 2015

Para os meus pais

AGRADECIMENTOS

Agrave Prof Dra Claudia Rosane Roesler pela orientaccedilatildeo pelos ensinamentos

acerca do direito e da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica pelas observaccedilotildees precisas

durante a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo pela paciecircncia e pela convivecircncia acadecircmica nestes

dois uacuteltimos anos Serei sempre grato

Ao Prof Dr Guy Hamelin do Departamento de Filosofia da Universidade de

Brasiacutelia - UnB pelas inspiradoras aulas sobre Aristoacuteteles e os estoicos

Ao Prof Dr Marcelo Neves pelo seu trabalho teoacuterico criacutetico em relaccedilatildeo agrave

praacutetica juriacutedica brasileira e pelas instigantes aulas

Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisiccedilatildeo do

conhecimento Marcus Faro de Castro Juliano Zaiden Benvindo Argemiro Cardoso

Martins

Agrave Faculdade de Direito da UnB cujo processo seletivo me possibilitou realizar

esta dissertaccedilatildeo

Agrave Faculdade de Direito do Recife instituiccedilatildeo onde realizei a minha graduaccedilatildeo

A todos os amigos da Coordenaccedilatildeo-Geral Juriacutedica da Procuradoria-Geral da

Fazenda Nacional em especial Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa Vanessa

Silva de Almeida Ricardo Soriano de Alencar Daniel Neiva Freire Alexandre Budib

Henrique Crisoacutestomo de Macedo Aline Nascimento Cunha Mariana Massumi Maria

Emanuelle Pinheiro

Agrave minha famiacutelia pelo constante incentivo e apoio

Liacutengua aonde vais Salvar ou destruir a cidade

(proveacuterbio antigo)

ldquoPois o comeccedilo eacute tambeacutem um deus que enquanto permanece entre os homens tudo salvardquo

(Platatildeo Leis 775e)

7

Resumo

O projeto de racionalidade construiacutedo pela atual Teoria da Argumentaccedilatildeo

Juriacutedica eacute marcado fundamentalmente por um forte silecircncio a respeito das emoccedilotildees

um tema que passou a ser considerado nos tempos atuais um indiferente teoacuterico

embora tradicionalmente tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da eacutetica desde a

Antiguidade Essa moderna lacuna teoacuterica tem por consequecircncia a preocupante

incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar de avaliar e de

refletir a presenccedila das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e mais amplamente na praacutetica

juriacutedica Este estudo objetiva compreender por que as emoccedilotildees saiacuteram de cena da Teoria

da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e tentar fornecer razotildees para que elas sejam novamente

estudadas Assim eacute preciso investigar se elas seriam compatiacuteveis com uma

argumentaccedilatildeo juriacutedica racional e mais amplamente com a explanaccedilatildeo do sistema

juriacutedico Para atingir tal objetivo este estudo parte da filosofia antiga mais

especificamente do pensamento de Aristoacuteteles e da escola estoica a fim de entender

como ambos integraram a temaacutetica das emoccedilotildees na sua eacutetica e na sua retoacuterica Em

seguida investiga-se em que contexto histoacuterico surge a Moderna Teoria da

Argumentaccedilatildeo considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraccedilotildees

seguintes Almeja-se igualmente pesquisar a compreensatildeo da psicologia de nossa

eacutepoca sobre as emoccedilotildees Ao fim objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoccedilotildees

na argumentaccedilatildeo juriacutedica possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e

capacidade criacutetica a fim de melhorar a qualidade do discurso juriacutedico

Palavras-chave emoccedilotildees ndash teoria da argumentaccedilatildeo juriacutedica ndash retoacuterica ndash

psicologia ndash linguiacutestica

8

Abstract

The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is

marked fundamentally by strong silent about emotions a subject that has been

considered nowadays a theoretical indifferent although traditionally has been linked to

the study of speech and ethics since ancient times This modern theoretical gap has the

effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify

evaluate and reflect the presence of emotions in argument and more broadly in legal

practice This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation

Theory and try to provide reasons for them to be studied again Thus it is necessary to

investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and

more broadly with the explanation of the legal system To achieve this goal it is

necessary to study ancient philosophy specifically the thought of Aristotle and the Stoic

school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his

ethics and his rhetoric Then we investigate in which historical context comes the

Modern Theory of Argumentation considering the thought of its founders and the

following generations It aims also search to understand the psychology of our time on

emotions In the end the objective is to identify the good and bad use of emotions in

legal reasoning enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in

order to improve the quality of legal discourse

Key-words emotions ndash theory of legal argumentation ndash rhetoric ndash psychology ndash

linguistic

9

Lista de abreviaturas e siglas

ADI ndash Accedilatildeo direta de inconstitucionalidade

ADPF ndash Arguiccedilatildeo de descumprimento de preceito fundamental

CF ndash Constituiccedilatildeo Federal

MTA ndash Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica

SVF ndash Stoicorum Veterum Fragmenta

STF ndash Supremo Tribunal Federal

TAJ ndash Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica

10

SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 11

1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E

ESTOICA 14

11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees 14

12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos 19

13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica 30

14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica 40

2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A

INTERDISCIPLINARIDADE 57

21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo 57

22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as emoccedilotildees no

discurso 62

23 As emoccedilotildees falaciosas 68

24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso 74

25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees 84

26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees 92

3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO 100

31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito 100

32 Anaacutelise 109

321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo 109

322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo 115

323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo 120

33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica 125

4 CONCLUSAtildeO 139

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 145

11

INTRODUCcedilAtildeO

O atual interesse pela estrutura argumentativa das decisotildees judiciais eacute fruto da

crescente valorizaccedilatildeo no campo do direito da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica ndash TAJ

que nasceu na metade do seacuteculo XX pelos trabalhos de Theodor Viehweg Stephen

Toulmin Chaiumlm Perelman e Olbrechts-Tyteca

Pode-se dizer que o atual reconhecimento do caraacuteter argumentativo do direito

guarda relaccedilatildeo direta com a substantiva importacircncia adquirida pela TAJ Neste sentido

MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito eacute o fato de

ele ser uma disciplina argumentativa pois para tentar encontrar uma soluccedilatildeo juriacutedica

aos nossos problemas da vida comum precisamos primeiramente construir

proposiccedilotildees em consonacircncia com o sistema juriacutedico1

Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a

argumentaccedilatildeo das decisotildees judiciais com suporte no instrumental teoacuterico fornecido pela

TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padratildeo de racionalidade no

discurso juriacutedico Assim via de regra analisam-se em primeiro lugar os argumentos e

apoacutes procura-se avaliar se as decisotildees judiciais estatildeo adequadamente fundamentadas

investigam-se a coerecircncia interna da argumentaccedilatildeo a coerecircncia das decisotildees judiciais

dentro de um repertoacuterio de julgados assim como a capacidade de universalizaccedilatildeo das

premissas ao fim busca-se atingir um estado oacutetimo de consistecircncia argumentativa2

Todavia nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa natildeo ouvimos

falar a respeito das emoccedilotildees Nenhum dos atuais teoacutericos da TAJ disserta a respeito das

emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica teriam elas perdido definitivamente importacircncia na

vida do direito Eacute possiacutevel realizar uma anaacutelise e uma criacutetica do uso das emoccedilotildees numa

decisatildeo judicial As emoccedilotildees satildeo incompatiacuteveis com a TAJ e mais amplamente com a

racionalidade do direito As emoccedilotildees corromperiam o discurso juriacutedico e o ser humano

Este trabalho portanto insere-se na constataccedilatildeo de uma preocupante lacuna

teoacuterica da TAJ que consiste na ausecircncia de tematizaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees Assim com

o objetivo de tentar construir uma resposta que faccedila sentido para compreender por que

tal mateacuteria natildeo eacute mais teorizada e ao mesmo tempo por que ela deveria ser

(novamente) teorizada precisaremos realizar um especiacutefico percurso nos Capiacutetulos I e II

desta dissertaccedilatildeo

1 MACCORMICK Neil Rhetoric and the rule of law New York Oxford University Press 2010 p 14

2 ATIENZA Manuel Curso de argumentacioacuten juriacutedica Madrid Editorial Trotta 2013 p 553-557

12

No Capiacutetulo I propomos fazer um retorno agrave Antiguidade a fim de entender

primeiramente em que contexto histoacuterico surge e se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto a

discussatildeo das emoccedilotildees

Em seguida tendo em vista a sua importacircncia histoacuterica para a TAJ iremos

analisar o tema sob comento na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de examinar como o

Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto especialmente tentando identificar (i) a

importacircncia das emoccedilotildees na referida obra aristoteacutelica (ii) a concepccedilatildeo de emoccedilatildeo

utilizada (iii) as influecircncias filosoacuteficas de tal concepccedilatildeo (iv) a maneira pela qual as

emoccedilotildees devem ser utilizadas no discurso e (v) os fundamentos psicoloacutegicos do tema

Apoacutes iremos investigar nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco em que medida

as emoccedilotildees satildeo importantes para a vida moral do indiviacuteduo tentando entender se para

Aristoacuteteles eacute suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito

a aspectos estritamente racionais Nesse toacutepico iremos analisar como o Estagirita divide

a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua eacutetica das virtudes Ao fim

tentaremos identificar se o tratamento teoacuterico das emoccedilotildees na Eacutetica a Nicocircmaco eacute

compatiacutevel com aquele presente na retoacuterica

Tendo realizada a investigaccedilatildeo do tema na retoacuterica e na eacutetica aristoteacutelica iremos

realizar um contraponto teoacuterico com a filosofia estoica que advogava que as emoccedilotildees

deveriam ser eliminadas da vida comum Assim considerando a ausecircncia de

tematizaccedilatildeo contemporacircnea das emoccedilotildees tanto na TAJ quanto no direito tentar entender

por que aquela escola filosoacutefica firmou tal posicionamento contribui para a reflexatildeo

acerca de nossa atual compreensatildeo da mateacuteria Desse modo iremos analisar a eacutetica

estoica a fim de apreender a sua noccedilatildeo de virtude e de viacutecio os seus fundamentos

psicoloacutegicos e a construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio objetivando perceber de que

modo todo esse pensamento influenciou a retoacuterica estoica

Ao fim do Capiacutetulo I procuraremos realizar uma comparaccedilatildeo entre o

pensamento aristoteacutelico e o estoico tentando evidenciar o grau de importacircncia que

ambos conferiam agraves emoccedilotildees Ademais registre-se que o Capiacutetulo I forneceraacute o

fundamento filosoacutefico em relaccedilatildeo ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste

trabalho a fim de proporcionar reflexatildeo comparaccedilatildeo e criacutetica

O Capiacutetulo II teraacute um vieacutes mais praacutetico e examinaraacute especificamente a Moderna

Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash MTA com o objetivo de (i) compreender em que contexto

histoacuterico surge tal saber teoacuterico e qual tipo de discurso era predominante agrave sua eacutepoca

(ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoccedilotildees (iii) qual

13

disciplina especiacutefica foi responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees no acircmbito da MTA

(iv) quais as reaccedilotildees teoacutericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as

emoccedilotildees no acircmbito da MTA (v) o que a psicologia do nosso tempo mais

especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo (psicologia cognitiva) poderia nos informar

acerca da racionalidade das emoccedilotildees Destaque-se que este Capiacutetulo teraacute por objetivo

tambeacutem localizar criteacuterios para anaacutelise e avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso

juriacutedico

No Capiacutetulo III jaacute com a compreensatildeo teoacuterica possibilitada pelos Capiacutetulos I e

II iremos abordar no primeiro toacutepico a importacircncia das emoccedilotildees para o direito

tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de

nossa praacutetica juriacutedica Ademais tentaremos responder se o modelo estoico analisado no

Capiacutetulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturaccedilatildeo do ordenamento juriacutedico

No segundo toacutepico iremos examinar com suporte no instrumental colhido no Capiacutetulo

II trecircs julgados do Supremo Tribunal Federal no afatilde de explicitar a presenccedila de

argumentos emotivos O terceiro toacutepico estaraacute reservado a tecer consideraccedilotildees criacuteticas

aos julgados bem como tentar fornecer uma respostar teoacuterica acerca da eacutetica das

emoccedilotildees na decisatildeo e na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Ao fim deste trabalho aleacutem de responder os problemas acima elencados

procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relaccedilatildeo entre

as emoccedilotildees e o discurso juriacutedico e mais amplamente o direito a fim de possibilitar a

melhoria da qualidade do discurso juriacutedico brasileiro e o surgimento de um debate

qualificado com a manutenccedilatildeo de uma perspectiva criacutetica sobre o tema das emoccedilotildees

14

1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E

ESTOICA

11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees

O primeiro problema que se impotildee quando pretendemos falar a respeito da

origem da retoacuterica diz respeito ao proacuteprio significado da palavra ldquoretoacutericardquo Ou seja de

qual ldquoretoacutericardquo falamos quando investigamos sua origem A palavra nos dias de hoje

possui muacuteltiplos significados sendo sem duacutevida o mais saliente aquele em que

preponderam afetos negativos Assim retoacuterica eacute sobretudo usado para designar um

discurso vazio (sem conteuacutedo) mentiroso falacioso incoerente apenas ornamental isto

eacute uma mera fachada linguiacutestica para uma verdadeira armadilha de intenccedilotildees

Essa carga semacircntica pejorativa tambeacutem eacute denunciada por Knudsen que lista

trecircs atuais usos da expressatildeo 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e ao

mesmo tempo superficial que mascara um conteuacutedo vazio e enganoso normalmente

atribuiacutedo a um poliacutetico ou a um conferencista 2) um conjunto de figuras de linguagem

encontrado na literatura cuja aplicabilidade se limita ao espaccedilo de sala-de-aula 3) uma

significaccedilatildeo mais ampla para se referir a discursos especiacuteficos em relaccedilatildeo a um tema ou

a um autor ldquoa retoacuterica do oacutediordquo ldquoa retoacuterica do Supremo Tribunal Federalrdquo ldquoa retoacuterica

do Presidente Obamardquo3

Assim a fim de cumprir nosso intento um bom ponto de partida seria tentar

localizar a primeira vez em que a palavra retoacuterica foi utilizada num texto escrito

Segundo Timmerman-Schiappa e considerando os fragmentos textuais que nos foram

legados atraveacutes do tempo o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela primeira vez em Goacutergias de

Platatildeo no iniacutecio do seacuteculo IV aC sendo provaacutevel que o proacuteprio Platatildeo tenha

inventando o termo pois eacute atribuiacuteda ao autor da Repuacuteblica a criaccedilatildeo de uma seacuterie de

palavras com terminaccedilatildeo -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode

significar pessoa com uma especiacutefica habilidade)4

Fazendo referecircncia a uma pesquisa do vocabulaacuterio grego realizada por Pierre

Chantraine em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminaccedilatildeo -ikos

Schiappa lembra que mais de 250 natildeo foram localizadas antes de Platatildeo ldquoUma pesquisa

3 KNUDSEN Rachel Homeric speech and the origin of rhetoric Baltimore John Hopkins University

Press 2014 p 1 4 TIMMERMAN David M SCHIAPPA Edward Classical greek rhetorical theory and the

disciplining of discourse New York Cambridge University Press 2010 p 9

15

feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae

sugere que as palavras gregas para eriacutestica (eristikecirc) dialeacutetica (dialektikecirc) e antilogikecirc

assim como retoacuterica originaram-se nas obras de Platatildeordquo5

Desse modo e partindo das referidas fontes o termo rhecirctorikecirc foi primeiramente

utilizado por Platatildeo para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em

puacuteblico para fins de convencimento especialmente perante assembleias tribunais e

demais ocasiotildees especiais No Fedro por exemplo Soacutecrates destaca que a retoacuterica eacute

ldquo[] uma arte de conduzir as almas atraveacutes das palavras mediante o discurso []rdquo6 E

posteriormente em Aristoacuteteles ldquo[] a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada

caso com o fim de persuadirrdquo7 Assim a partir destes dois filoacutesofos a retoacuterica surge com

o status de um saber munido com vocabulaacuterio proacuteprio para anaacutelise do discurso

Eacute com Platatildeo tambeacutem que ocorre a conhecida cisatildeo entre retoacuterica e filosofia A

palavra rhecirctorikecirc jaacute no seu nascedouro surge para fins bem precisos isto eacute para

demarcar o campo de uma teacutecnica (techne) moralmente questionaacutevel que lida com a

opiniatildeo (doxa) e que leva atraveacutes da palavra as pessoas ao engano em contraste com a

refinada atividade do filoacutesofo cuja base de reflexatildeo estaacute fundada sob o domiacutenio da

verdade (aletheia) Em Goacutergias e no Fedro satildeo oferecidos vaacuterios exemplos da figura do

retoacuterico como algueacutem que obteacutem sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os

outros

Antes de rhecirctorikecirc o termo mais abrangente utilizado para se referir agrave atividade

do discurso nos textos do seacuteculo V era logos que possui distintos significados na

tradiccedilatildeo grega ldquoeacute qualquer coisa que eacute lsquoditarsquo mas isso pode ser uma palavra uma frase

uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteirordquo8 Logos estaacute assim

relacionado com o conteuacutedo e natildeo com aspectos estiliacutesticos ou esteacuteticos comporta a

ideia de razatildeo argumento ordem O ensino de artes verbais no seacuteculo V aC

associado ao logos portanto natildeo diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca

5 ldquoA computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the

Greek words for eristic (eristikecirc) dialectic (dialektikecirc) and antilogic (antilogikecirc) like rhetoric originate

in Platorsquos worksrdquo (trad livre) Id ibid p 9-10 No sentido de que o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela

primeira vez na obra platocircnica cf COLE Thomas The origins of rhetoric in ancient greek Baltimore

The John Hopkins University Press 1991 6 PLATAtildeO Fedro trad Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees editores 2000 p 90

7 ARISTOacuteTELES Retoacuterica trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 12 8 ldquoit is anything that is lsquosaidrsquo but that can be a word a sentence part of a speech or of a written work or a

whole speechrdquo (trad livre) KENNEDY George A A New History of classical rhetoric New Jersey

Princeton University Press 1994 p 11

16

pela verdade conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distinccedilatildeo platocircnica

entre os fins da retoacuterica e os fins da filosofia9

Assim enquanto a retoacuterica emerge firmemente relacionada com significados

pejorativos logos sempre desfrutou de uma boa reputaccedilatildeo Os sofistas exultavam o

poder que ele possuiacutea segundo Goacutergias logos podia espantar o medo e a tristeza

incutir a compaixatildeo e o prazer10

Isoacutecrates reforccedilava o seu poder e prestiacutegio na vida

puacuteblica ldquoaqueles que satildeo haacutebeis no discurso natildeo satildeo apenas homens de poder em suas

proacuteprias cidades mas satildeo tambeacutem tidos em grande estima em outros estadosrdquo11

Mas se eacute possiacutevel numa anaacutelise textual atribuir a cunhagem da palavra retoacuterica

a Platatildeo eacute possiacutevel inferir de outra parte que a referida palavra grega soacute pode surgir

quando a atividade a que se refere jaacute estava bem consolidada na sociedade Assim a

origem que buscamos passa a ser natildeo mais da palavra mas de eventos que

supostamente deram o iniacutecio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade

Foi na Siacutecilia por volta de 426 aC que ocorreu o evento que impulsionou a

fundaccedilatildeo da retoacuterica apoacutes a expulsatildeo de tiranos que dominavam politicamente a

mencionada regiatildeo as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e

tribunais a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime

ditatorial Os sicilianos Corax e Tiacutesias cientes desta necessidade foram os primeiros a

organizar isso num meacutetodo criando preceitos teoacutericos que almejavam o sucesso da fala

em puacuteblico por meio da divisatildeo do discurso do uso de argumentos de probabilidades e

de outras mateacuterias12

A novidade teoacuterica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Goacutergias quanto

pelo proacuteprio Tiacutesias que parece ter ensinado Liacutesias e Isoacutecrates Por sua vez o manual

(ou manuais) de Corax e Tiacutesias era conhecido por Aristoacuteteles que os resumiu em seu

perdido Synagoge Technon (Coleccedilatildeo de Artes) que a partir de entatildeo passou a ser o

referencial teoacuterico sobre o assunto13

Ciacutecero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa

anaacutelise das regras coletadas nos manuais antigos de retoacuterica incluindo o de Tiacutesias

9 TIMMERMAN D M op cit p 10-11

10 KENNEDY G Op cit p 25

11 ldquothose who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in

honour in other statesrdquo(48-51) (trad livre) Cf ISOCRATES Panegyricus New York Harvard

Univesity Press vol 1 trad George Norlin 1928 p 149 12

CICERO Brutus trad J L Hendrickson CambridgeLondon Harvard University Press 46 1962 p

49 13

GAGARIN Michael Background and origins oratory and rhetoric before the sophists in

WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p

30

17

tendo superado os autores originais em clareza brevidade e estilo motivo pelo qual

apenas os escritos aristoteacutelicos passaram a ser consultados14

Todavia essa tradicional explanaccedilatildeo sobre os primeiros organizadores da arte

retoacuterica tem sido recentemente objeto de revisatildeo em virtude da inconsistecircncia das

fontes histoacutericas Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para

Tiacutesias uma vez que alguns escritos apenas fazem referecircncia a este uacuteltimo ou se Corax

realmente existiu era preocupado com argumentos de probabilidade15

Essa polecircmica a respeito da real identidade dos autores poreacutem natildeo eacute oacutebice para

assinalar o que se procura aqui dizer a partir de um determinado momento o discurso

eficiente isto eacute a fala articulada que almeja persuasatildeo passou a ser extremamente

valorizada na cultura antiga Se pudermos conjecturar que ao reivindicar a reaquisiccedilatildeo

da propriedade perdida apoacutes a expulsatildeo dos tiranos na Siciacutelia uma pessoa poderia ter

melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do conteuacutedo do discurso podemos

entender o quatildeo dramaacutetica era a necessidade de aperfeiccediloamento desta atividade

Assim a expulsatildeo dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela

restauraccedilatildeo de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a

organizaccedilatildeo teoacuterica de uma atividade que posteriormente Platatildeo iraacute designar de

retoacuterica Mas ainda assim natildeo podemos relevar que no ambiente grego outros fatores

jaacute demarcavam a forte presenccedila do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade

Contra a tradicional tese de que a retoacuterica surgiu no seacuteculo V aC com Corax e

Tiacutesias ou de que a retoacuterica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de

Platatildeo e Aristoacuteteles no seacuteculo IV aC por meio de um vocabulaacuterio especiacutefico

governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas Knudsen advoga a ideia

de que o nascedouro da retoacuterica se localiza na obra de Homero

O seu posicionamento no entanto natildeo consiste na defesa de que Homero seria

uma inspiraccedilatildeo para a retoacuterica ou um exemplo da existecircncia na eacutepoca de uma forte

cultura de eloquecircncia mas de que o narrador homeacuterico jaacute apresenta o discurso como

ldquo[] uma habilidade teacutecnica que deve ser ensinada e aprendida e que varia de acordo

com o orador a situaccedilatildeo e o auditoacuteriordquo16

Assim os personagens de Homero na Iliacuteada

14

CICERO On Invention trad H M Hubbel CambridgeMassachusetts Harvard University Press

1949 (II 6) p 171 15

COLE Thomas Who was corax In Illinois classical studies vol 16 1991 p 65-84 16

ldquo[hellip] a technical skill one that must be taught and learned and one that varies according to speaker

situation and audiencerdquo KNUDSEN R Op cit p 4

18

apresentam a retoacuterica na praacutetica enquanto Aristoacuteteles posteriormente apresenta a

retoacuterica em teoria

No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero no seacuteculo II dC o pseudo-

Plutarco teria feito o registro mais antigo a respeito do viacutenculo da obra de Homero com

a retoacuterica

Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso

poliacutetico eacute uma funccedilatildeo da arte retoacuterica pois esta eacute o poder de falar de

maneira persuasiva e quem mais senatildeo Homero estabeleceu sua

proeminecircncia nisso Ele ultrapassou todos os outros em

grandiloquecircncia e seu pensamento dispotildee do mesmo poder que sua

dicccedilatildeo17

Por sua vez no seguinte trecho da Iliacuteada pode-se observar que as caracteriacutesticas

do discurso de Odisseu e de Menelau satildeo finamente analisadas pelo narrador

demonstrando que a fluecircncia a clareza a concisatildeo a prolixidade a objetividade a

gestualidade satildeo fatores jaacute claramente distinguiacuteveis na fala e na figura do orador

Quando urdiam discursos e expunham ideias

Menelau era fluente e claro mas conciso

natildeo sendo um homem multipalavroso nem

dispersivo e tambeacutem por ser ele o mais moccedilo

Quando Odisseu poreacutem multiardiloso punha-se

de peacute para falar fixava o olhar no chatildeo

mantendo o cetro imoacutevel (nem para traacutes nem

para diante o inclinava) parecia um ruacutestico

algueacutem desatinado ou fraco de cabeccedila

Mas quando a voz do peito emitia poderosa

palavras como copos-de-neve no inverno

ningueacutem nenhum mortal o igualaria18

Knudsen todavia vai aleacutem e se dedica a analisar os discursos diretos da Iliacuteada a

fim de demonstrar que todos os recursos retoacutericos (entimema paradigma diathesis

toacutepicos ethos etc) identificados por Aristoacuteteles jaacute estavam presentes na estrutura

literaacuteria de Homero19

Ao examinar outras obras literaacuterias do mundo antigo tais como a

Epopeacuteia de Gilgamesh o Shujing o Maabaacuterata demonstra que o emprego de recursos

17

ldquoPolitical discourse is a function of the craft (τέχνη) of rhetoric which Homer seems to have been the fi

rst to understand for if rhetoric is the power to speak persuasively who more than Homer has established

his preeminence in this He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same

power as his dictionrdquo (trad livre) PSEUDO-PLUTARCO Essays 161 apud KNUDSEN Id ibid p 22 18

HOMERO Iliacuteada trad Haroldo de Campos III vol 1 Satildeo Paulo Benviraacute 2002 p 212-223 19

ldquoMy overarching contention is that the Iliad through the direct speeches of its characters demonstrates

a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be

categorized as ldquorhetoricrdquo in the fourth century in particular these techniques closely match the system

explicated in Aristotlersquos Rhetoricrdquo KNUDSEN R Op cit p 84

19

retoacutericos nestas uacuteltimas eacute extremamente pobre se comparado agrave Iliacuteada Assim destaca

que natildeo se pode explicar o sofisticado sistema retoacuterico encontrado em Homero sob a

justificativa da existecircncia de um modelo retoacuterico universal Vale dizer a tese segundo a

qual haacute um padratildeo de convencimento supostamente presente em todos os discursos e

que seriam inerentes agrave natureza humana natildeo consegue ser extensiacutevel para a realidade

literaacuteria de outras obras antigas20

Assim esse hiperdesenvolvimento de um padratildeo retoacuterico nos discursos da Iliacuteada

pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favoraacutevel agrave cultura da

competiccedilatildeo do debate e da liberdade como ocorria de forma bastante original na

Greacutecia e natildeo encontrava correspondente em culturas orientais ldquodesde as primeiras

poesias gregas ateacute a oratoacuteria juriacutedica e poliacutetica da era claacutessica tardia [] a Greacutecia antiga

funcionava como uma lsquocultura de debatersquo em que o poder era conquistado e negociado

atraveacutes do discurso persuasivordquo 21

Segue-se por isso que eacute conveniente falar natildeo da ldquoorigemrdquo mas das ldquoorigensrdquo

da retoacuterica Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do

debate natildeo eacute de se impressionar que a retoacuterica tenha sido criada e amadurecida neste

ambiente havendo para ela portanto vaacuterios iniacutecios possiacuteveis vale dizer um iniacutecio na

filosofia um iniacutecio na poesia eacutepica um iniacutecio enquanto evento histoacuterico

No entanto para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quatildeo importante

era nas suas origens a necessidade de dominar na vida puacuteblica o discurso eficiente Eacute

por essa razatildeo que a anaacutelise das emoccedilotildees (pathos) emerge na obra aristoteacutelica jaacute que

apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e por isso retoacuterico a

compreensatildeo sobre as emoccedilotildees se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto

12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos

Preliminarmente e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar

mais de perto do tema central deste trabalho eacute oportuno registrar que a origem do termo

grego pathos sob cujo signo Aristoacuteteles trata o tema das emoccedilotildees se encontra no verbo

paschein que significa ldquosofrerrdquo e nessa medida explicita o caraacuteter passivo do

20

KNUDSEN R Op cit p 101 21

ldquoFrom the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and

much later the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic) ancient Greece functioned

as a ldquodebate culturerdquo one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive

speechrdquo (trad livre) KNUDSEN R Id ibid p 101

20

fenocircmeno emotivo22

Nos trechos a seguir transcritos observa-se que o Estagirita utiliza

o termo no sentido exposto ou seja em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees o sujeito estaacute em situaccedilatildeo

de passividade isto eacute ele eacute afetado movido por elas

Entatildeo um homem que enrubesce em virtude de vergonha natildeo eacute

chamado de enrubescido nem aquele que empalidece diante do medo

de paacutelido ao contraacuterio diz-se que ele foi de algum modo afetado

Portanto tais coisas satildeo chamadas de afecccedilotildees [pathecirc] e natildeo

qualidades23

Acrescente-se a estas consideraccedilotildees que dizemos que somos afetados

em funccedilatildeo das emoccedilotildees poreacutem natildeo dizemos que somos afetados em

funccedilatildeo das virtudes e dos viacutecios mas que nos dispomos de um certo

modo24

Saliente-se que aleacutem de ldquoemoccedilatildeordquo pathos tradicionalmente tambeacutem eacute traduzido

por ldquoafecccedilatildeordquo ou ldquoafeiccedilatildeordquo assim como tambeacutem por ldquopaixatildeordquo que vem do latim passio

sendo que nestas duas uacuteltimas traduccedilotildees (ldquoafecccedilatildeordquo e ldquopaixatildeordquo) diferentemente de

ldquoemoccedilatildeordquo persiste de certo modo aquele sentido de passividade25

De outra parte eacute interessante tambeacutem acrescentar que a temaacutetica das emoccedilotildees eacute

algo que perpassa toda a obra aristoteacutelica pois se encontra presente na Eacutetica na

Retoacuterica na Psicologia na Filosofia da Natureza na Teoria Poeacutetica Poreacutem a despeito

disso Aristoacuteteles natildeo apresenta nenhum conceito de emoccedilatildeo preferindo algumas

vezes introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos Por isso esclarece Rapp

natildeo se pode falar de boa consciecircncia de uma ldquoTeoria das Emoccedilotildees de Aristoacutetelesrdquo mas

de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26

Assim tendo realizado brevemente tais anotaccedilotildees preliminares conveacutem registrar

que eacute sobre o que convence em cada caso no discurso de que se ocupa a retoacuterica

Aristoacuteteles logo na abertura de sua obra afirma que todas as pessoas estatildeo submetidas

agraves regras da retoacuterica pois eacute impossiacutevel em vida natildeo passar pela experiecircncia de ter que

22

RAPP Cristof Aristoteles Bausteine fuumlr eine Theorie der Emotionen In LANDWEE Hilge RENZ

Ursula (hrsg) Klassische emotionstheorien von Platon bis Wittgenstein BerlinNew York Walter de

Gruyter 2008 p 48 23

ldquoThus a man who reddens through shame is not called ruddy nor one who pales in fright pallid rather

he is said to have been affected somehow Hence such things are called affections but not qualitiesrdquo (trad

livre) Cf ARISTOTELES Categories In BARNES J (ed) The complete works of Aristotle trad J

L Akrill (9b20-9b32) Princeton Princeton University Press 1991 p 17 24

ARISTOTELES Eacutethica nicomachea I13-III8 tratado da virtude moral trad Marco Zingano Satildeo

Paulo Odysseus 2008 p 48-49 (11065-7) 25

RAPP C Op cit p 48 Cf TIELEMAN Teun Chrysippusrsquo on affection reconstruction and

interpretation Leiden Brill 2003 p 15 26

RAPP C Op cit p 47 Adverte-se o leitor previamente que natildeo iremos utilizar neste trabalho um

conceito normativo de emoccedilatildeo Embora ao longo da obra algumas caracteriacutesticas das emoccedilotildees sejam

evidenciadas natildeo haveraacute o fechamento de um conceito

21

defender ou atacar argumentos Poreacutem enquanto alguns fazem esta atividade de forma

irrefletida ou entatildeo de modo mais consciente por meio de uma praacutetica conquistada pelo

haacutebito eacute possiacutevel fazecirc-la estruturadamente atraveacutes de um meacutetodo que analisaria por que

algumas pessoas obteacutem tanto sucesso ao discursarem Desse modo para Aristoacuteteles a

retoacuterica eacute uma arte (techne) ou seja ldquo[] um corpo de regras e princiacutepios gerais que

podem ser conhecidos pela razatildeordquo27

contrariando assim Platatildeo para quem a retoacuterica se

reduziria a uma mera habilidade que natildeo se submete agrave razatildeo nem consegue explicar as

causas e os motivos do que faz

Sobre a parte que especificamente eacute objeto de nosso interesse isto eacute a

explanaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees conveacutem examinar os Livros I e II da Retoacuterica

Primeiramente urge compreender como o assunto eacute introduzido no Capiacutetulo I do Livro

I e depois como ele eacute desenvolvido tanto no Capiacutetulo II por intermeacutedio da doutrina

dos meios de convencimento quanto no Livro II no detalhamento das emoccedilotildees em

espeacutecie O objetivo de nossa exposiccedilatildeo consiste em traccedilar um panorama geral das

emoccedilotildees no campo da retoacuterica

Com efeito Aristoacuteteles introduz o tema no Capiacutetulo I do Livro I por meio de

uma forte criacutetica aos tratados de retoacuterica de sua eacutepoca que se preocupavam mais em

instigar os acircnimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto

de controveacutersia Ele nomina essas distraccedilotildees do discurso como questotildees exteriores ou

natildeo essenciais ao assunto pois sobre a verdadeira substacircncia da persuasatildeo retoacuterica que

satildeo os entimemas tais manuais nada tratam

O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados que

ele natildeo menciona fossem aplicadas em todas as unidades poliacuteticas aqueles autores de

retoacuterica praticamente nada teriam a dizer Assim para Aristoacuteteles estaria

terminantemente proibido ldquoperverterrdquo o juiz atraveacutes da ira do oacutedio da compaixatildeo e de

outros estados da alma Enfatize-se que as traduccedilotildees aqui consultadas utilizam sempre a

palavra ldquoperverterrdquo que daacute ideia de corromper a cogniccedilatildeo do julgador porque a partir

do momento em que o julgador estiver possuiacutedo por determinado estado mental

(compaixatildeo ira etc) ele estaraacute impossibilitado de conhecer de modo isento o fato

Jaacute no Capiacutetulo II em prosseguimento Aristoacuteteles relaciona as emoccedilotildees como

um dos meios de prova na seguinte classificaccedilatildeo

27

ldquo[hellip] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by

reasonrdquo(trad livre) GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric I a commentary New York

Fordham University Press 1980 p 4

22

Das pisteis produzidas atraveacutes do discurso existem trecircs espeacutecies

algumas residem no caraacuteter [ecircthos] do orador outras na forma em que

dispotildeem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de espiacuterito e

outras no discurso [logos] em si demostrando ou aparentando

demostrar algo28

Eacute apropriado notar que Aristoacuteteles natildeo menciona explicitamente as emoccedilotildees

neste trecho Desse modo parece bastante pertinente a observaccedilatildeo de Knudsen que

prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis porque

literalmente eacute o termo utilizado no texto por Aristoacuteteles Assim diathesis eacute uma

expressatildeo mais abrangente que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade agrave

psicologia do auditoacuterio e nesse sentido englobaria pathos29

No entanto a despeito da observaccedilatildeo a respeito da palavra diathesis feita por

Knudsen Aristoacuteteles logo em seguida explana que ldquo[] persuade-se pela disposiccedilatildeo

dos ouvintes quando estes satildeo levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso []rdquo30

parecendo-nos portanto mais interessante insistir nesse uacuteltimo termo (pathos) como

meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago que

englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicoloacutegica

Em seguida isto eacute apoacutes vincular a ideia de persuasatildeo pela disposiccedilatildeo dos

ouvintes com as emoccedilotildees Aristoacuteteles conclui no sentindo de que nosso juiacutezo varia de

acordo com o nosso estado mental Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza

pelo amor ou pelo oacutedio estaacute diretamente relacionado ao juiacutezo que iremos formular sobre

o assunto

Logo aqui conveacutem registrar certa surpresa ao observar que a despeito da criacutetica

inicial no Capiacutetulo I Aristoacuteteles inclui sem diferenccedila hieraacuterquica as emoccedilotildees ao lado

do ethos e do logos como meios de convencimento O espanto no entanto apenas

aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retoacuterica se destina a tratar

em peacute de igualdade as emoccedilotildees com os entimemas Sobre essa suposta contradiccedilatildeo

muito pode ser comentado

Tentando compreender a questatildeo Fortenbaugh reuacutene trecircs respostas jaacute oferecidas

para esse problema A primeira hipoacutetese entende que no Capiacutetulo I do Livro I

Aristoacuteteles defende um modelo de retoacuterica ideal em que apenas sejam utilizados

argumentos que tratem do assunto objeto de controveacutersia sendo que este modelo ideal eacute

deixado de lado no Capiacutetulo II quando se fala do discurso poliacutetico em que se faria

28

ARISTOacuteTELES Retoacuterica apud KNUDSEN R Op cit p 39 29

KNUDSEN R Id ibid p 39 30

ARISTOacuteTELES Retoacuterica Op cit 2012 p 13

23

necessaacuterio o uso de apelos emotivos31

Na segunda hipoacutetese Aristoacuteteles dirigiria o seu

criticismo aos contemporacircneos que utilizam as emoccedilotildees por meios natildeo-discursivos

(choros laacutegrimas rostos irocircnicos)32

A terceira resposta preferida por Fortenbaugh seria no sentido de uma evoluccedilatildeo

do pensamento aristoteacutelico Inicialmente Aristoacuteteles teria visto as emoccedilotildees de uma

forma negativa e incompatiacutevel com uma argumentaccedilatildeo baseada na razatildeo Poreacutem

durante o periacuteodo em que frequentou a Academia de Platatildeo sabe-se que a relaccedilatildeo entre

emoccedilatildeo e pensamento era objeto de estudo o que provavelmente o levou a ter uma

visatildeo mais favoraacutevel sobre as emoccedilotildees Assim se a tarefa do orador eacute convencer o

ouvinte e isso eacute feito por intermeacutedio de uma mudanccedila de pensamento entatildeo nada

haveria de errado em fazecirc-lo por meio do emprego de argumentos razoaacuteveis que

resultaria numa resposta emocional positiva dos destinataacuterios33

Levando isso em

consideraccedilatildeo eacute possiacutevel que Aristoacuteteles tenha escrito suas primeiras criacuteticas agraves emoccedilotildees

num tratado hoje em dia perdido e posteriormente ao desenvolver a doutrina dos trecircs

meios de convencimento transferiu tais observaccedilotildees ao atual manual sem realizar uma

completa adaptaccedilatildeo do tema34

De outra parte tambeacutem se cogita que os capiacutetulos desenvolvidos por Aristoacuteteles

fossem na verdade alternativos sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou

entatildeo que o Capiacutetulo I era natildeo apenas inconsistente com o que segue (Capiacutetulo II) mas

que ambos se destinavam a puacuteblicos diferentes Konstan assevera que essa duacutevida talvez

seja impossiacutevel de solucionar embora seja razoaacutevel afirmar que ao tratar das emoccedilotildees

no Livro II Aristoacuteteles jaacute pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35

Frede por sua vez demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as

emoccedilotildees tenham recebido tanta atenccedilatildeo na Retoacuterica de modo que formula as seguintes

indagaccedilotildees ldquoIsso eacute uma mera concessatildeo com os maus caminhos do mundo realrdquo ldquoSe o

inimigo o faz devo estar preparado para tambeacutem fazerrdquo36

Ela no entanto registra que

em nenhum momento Aristoacuteteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o

discurso limitando-se a fazer um registro teacutecnico das emoccedilotildees

31

FORTENBAUGH W W Aristotlersquos art of rhetoric In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to

greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 117 32

Id ibid p 117 33

Id ibid p 118 34

Id ibid p 118 35

KONSTAN David Rhetoric and emotion In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek

rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 414 36

FREDE Dorothea Mixed feelings in Aristotlersquos rhetoric In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays

on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 264

24

De fato embora exista uma ruptura de pensamento entre a criacutetica inicial agraves

emoccedilotildees e o seu posterior desenvolvimento nos capiacutetulos subsequentes acreditamos

que natildeo haacute motivo para largar pelo menos aquela censura direcionada ao uso das

emoccedilotildees com o objetivo de fugir das questotildees essenciais objeto de controveacutersia De

todo modo tal mudanccedila de entendimento permanece de difiacutecil explicaccedilatildeo e conforme

assevera Hall o novo posicionamento fez com que Aristoacuteteles possivelmente

influenciado por Platatildeo tenha elegido as emoccedilotildees um dos objetos centrais da retoacuterica37

Ainda sobre a importacircncia quantitativa e qualitativa que as emoccedilotildees adquirem na

retoacuterica aristoteacutelica se pensarmos que pathos eacute tema especificamente pertencente a uma

das partes da alma e por isso esperariacuteamos encontrar na obra psicoloacutegica de

Aristoacuteteles que eacute a ldquoDe Animardquo (Sobre a Alma) o seu desenvolvimento mais completo

e detalhado teremos uma certa decepccedilatildeo ao observar que no seu suposto habitat

especiacutefico a mateacuteria encontra um tratamento extremamente acanhado

comparativamente agravequele encontrado na Retoacuterica A este respeito Cooper anota ser

desapontante a abordagem do tema em ldquoDe Animardquo38

e Konstan chega a dizer que

curiosamente o melhor local para encontrar uma boa discussatildeo sobre emoccedilotildees nas

obras antigas eacute justamente nos livros de retoacuterica

Se vocecirc deseja consultar uma discussatildeo grega ou romana sobre

emoccedilotildees o lugar para procurar natildeo eacute ndash como se poderia esperar ndash em

um tratado de psicologia ou em termos claacutessicos ldquoSobre a Almardquo

(por exemplo De anima de Aristoacuteteles) mas sim um ensaio sobre

retoacuterica Em primeiro lugar no lado grego haacute a proacutepria Retoacuterica de

Aristoacuteteles com o seu tratamento detalhado no Livro II de uma duacutezia

ou mais de diferentes emoccedilotildees Na literatura latina Ciacutecero examina as

emoccedilotildees no seu De inventione assim como em outros ensaios de

oratoacuteria embora tambeacutem as trate com algum detalhe no seu diaacutelogo

filosoacutefico As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4)

Mais tarde no seacuteculo III DC um tal Apsines ndash se este eacute o seu nome

verdadeiro ndash pesquisou as emoccedilotildees em elaborado detalhe como parte

de um extenso livro sobre retoacuterica (apenas uma porccedilatildeo restou

especialmente a parte que trata da compaixatildeo)39

37

HALL Jon Oratorical delivery and the emotions theory and practice In DOMINIK William HALL

Jon (ed) A companion to roman rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 232 38

COOPER John M An aristotelian theory of the emotions In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed)

Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 238 39

ldquoIf you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions the place to look is not

ndash as one might have expected ndash in a treatise on psychology or in classical terms lsquoOn the Soulrsquo (for

example Aristotlersquos De anima) but rather an essay on rhetoric First and foremost on the Greek side

there is Aristotlersquos own Rhetoric with its detailed treatment in Book 2 of a dozen or more different

passions In Latin literature Cicero examines the emotions in his youthful De inventione as well as in

other essays on oratory although he also treats them at some length in his philosophical dialogue The

Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4) As late as the third century AD a certain Apsines ndash if

that is his true name ndash surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on

25

Por sua vez passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II

Aristoacuteteles principia afirmando que por ser o objetivo da retoacuterica formar um juiacutezo no

ouvinte para a tomada de decisatildeo o orador natildeo deve apenas se concentrar na tarefa de

fazer criacutevel e persuasivo o seu argumento (logos) mas tambeacutem deve se preocupar tanto

com a sua proacutepria imagem tendo em vista que o seu caraacuteter (ethos) tambeacutem eacute objeto de

julgamento das pessoas quanto com a necessidade de colocar os destinataacuterios numa

determinada disposiccedilatildeo mental (pathos) reafirmando assim a doutrina dos trecircs meios

de convencimento Logo em seguida coloca esta uacuteltima forma de convencimento

(pathos) como de grande importacircncia para a oratoacuteria judicial

O relevo conferido ao trabalho retoacuterico dirigido agrave disposiccedilatildeo mental dos ouvintes

eacute devidamente esclarecido sem mais nenhuma ponderaccedilatildeo negativa da seguinte

maneira se algueacutem estiver sob o efeito do amor ou do oacutedio da indignaccedilatildeo ou da calma

os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo criteacuterio de grandeza

ldquoquem ama acha que o juiacutezo que deve formular sobre quem eacute julgado eacute de natildeo

culpabilidade ou de pouca culpabilidade por outro quem odeia acha o contraacuteriordquo40

Assim Aristoacuteteles estabelece uma funccedilatildeo cognitiva especiacutefica para as emoccedilotildees

vale dizer eacute em funccedilatildeo delas que alteramos nossos juiacutezos acerca do mundo Estar

afetado por uma emoccedilatildeo eacute a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de

algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade Desse modo por possuir

uma funccedilatildeo tatildeo determinante no discurso o orador precisa estar preparado para bem

utilizaacute-las o que soacute se alcanccedila atraveacutes de um profundo conhecimento sobre o ser

humano

A novidade poreacutem natildeo se encerra por aiacute pois Aristoacuteteles ao dissertar sobre a

natureza das emoccedilotildees afirma que elas satildeo compostas por prazer (hedonecirc) e por dor

(lupecirc) oferecendo mais complexidade ao tema

A ideia segundo a qual as emoccedilotildees comportam tal natureza complexa ou seja

de que satildeo formadas por sentimentos mistos eacute creditada a Platatildeo que ao longo de sua

obra filosoacutefica se deparou desde cedo com o problema do prazer no Feacutedon por

exemplo o autor da Repuacuteblica adverte que o verdadeiro filoacutesofo deveria se manter

distante do prazer que eacute fonte dos maiores males (83bd) Em Goacutergias aquele que vive

desmedidamente na busca do prazer eacute considerado uma pessoa infeliz pois tenta em vatildeo

rhetoric (only a portion survives chiefly the part dealing with pity)rdquo (trad livre) KONSTAN D Op

cit p 411 40

ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 84

26

preencher um jarro furado com uma peneira (493abd) Por sua vez no Filebo uma das

suas uacuteltimas obras a dor eacute definida como a desintegraccedilatildeo do estado de equiliacutebrio

natural enquanto o prazer agora numa visatildeo mais positiva busca recuperar a harmonia

perdida conforme se observa no seguinte trecho

SOCRATES O que eu afirmo eacute que quando encontramos

comprometida a harmonia nos seres vivos ao mesmo tempo haveraacute a

desintegraccedilatildeo da sua natureza e o aparecimento da dor

PROTARCO O que vocecirc diz eacute bastante plausiacutevel

SOCRATES Mas se o contraacuterio ocorre e a harmonia eacute recuperada e a

natureza inicial restabelecida precisamos dizer que o prazer surge se

devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as mateacuterias mais

difiacuteceis no menor tempo possiacutevel41

Com esta uacuteltima definiccedilatildeo Frede destaca que Platatildeo se concilia com alguns

aspectos da natureza humana jaacute que o prazer pelo menos agora tem uma funccedilatildeo

beneacutefica e terapecircutica para o indiviacuteduo Esta nova abordagem natildeo recorre mais agrave ideia

de que o prazer eacute um distuacuterbio ou uma doenccedila da alma e ao mesmo tempo possibilita

submeter os vaacuterios tipos de prazer a um conceito uacutenico explicando quando alguns satildeo

bons e outros natildeo (51b)42

Jaacute neste momento eacute oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento

platocircnico e o encontrado na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de observar que o Estagirita

recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definiccedilatildeo de prazer ldquoAdmitamos que

o prazer eacute um certo movimento da alma e um regresso total e sensiacutevel ao seu estado

natural e que a dor eacute o contraacuteriordquo(1370a)43

Platatildeo de outra parte apoacutes discutir vaacuterias formas de mistura de prazer e de dor

chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoccedilotildees na obra

aristoteacutelica Ele afirma que as emoccedilotildees tambeacutem se submetem a este mesmo fenocircmeno

misto e fornece uma lista de exemplo a ira o medo a saudade as lamentaccedilotildees o amor

a inveja a maliacutecia e outros sentimentos da mesma espeacutecie Num fragmento da Iliacuteada

citado no referido diaacutelogo a raiva eacute apresentada como algo que amarga a alma ateacute dos

41

ldquoSOCRATES What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted there will

at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain

PROTARCHUS What you say is very plausible

SOCRATES But if the reverse happens and harmony is regained and the former nature restored we

have to say that pleasure arises if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the

shortest possible timerdquo(31d) (trad livre) Cf PLATAtildeO PHILEBUS trad Dorothea Frede In COOPER

John M (ed) Plato complete works IndianapolisCambridge Hacket Publishing Company 1997 p

419 42

FREDE D Op cit p 262 43

ARISTOTELES Op cit 2012 p 56

27

mais saacutebios mas ao mesmo tempo provoca um dulccedilor maior do que o mel A amargura

da raiva reside na dor que ela provoca desequilibrando o estado natural do indiviacuteduo e a

doccedilura estaacute justamente na antecipaccedilatildeo mental do ato de vinganccedila que eacute a sua imensa

fonte de prazer Por sua vez o riso que eacute um prazer quando dirigido a uma infelicidade

do outro eacute fruto da maliacutecia (Schadenfreude)44

que eacute uma dor da alma (50a)45

Retornando novamente agrave Retoacuterica Aristoacuteteles oferece uma lista de emoccedilotildees

opostas (ira calma amizade e inimizade medo confianccedila vergonha desvergonha

benevolecircncia compaixatildeo indignaccedilatildeo inveja emulaccedilatildeo etc) que seraacute enquadrada no

referido modelo teoacuterico dos sentimentos mistos Ressalte-se poreacutem que em nenhum

momento Aristoacuteteles faz referecircncia expliacutecita agrave teoria platocircnica nem utiliza a palavra

ldquomistordquo ou ldquomisturardquo e neste aspecto esclarece poucos detalhes de sua abordagem

emotiva No entanto o cotejo a seguir realizado mostra que a influecircncia platocircnica tem

fundamento e a sua investigaccedilatildeo merece ser feita a fim de compreender como foi

moldada a primeira grande abordagem retoacuterica das emoccedilotildees de que temos notiacutecia

Assim a ira eacute acompanhada de dor em funccedilatildeo de um desprezo sem razatildeo

dirigido a noacutes ou a pessoas que temos estima e de prazer na esperanccedila de se vingar que

eacute representada mentalmente no indiviacuteduo provocando um deleite comparaacutevel agravequeles

encontrados nos sonhos (1378b) O medo eacute uma dor em virtude da representaccedilatildeo de um

mal vindouro (1382a) A causa da vergonha consiste numa dor em razatildeo de males

passados presentes ou futuros que satildeo passiacuteveis de destruir a nossa reputaccedilatildeo (1383b)

A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisiccedilatildeo de

bens desejaacuteveis ou seja o sucesso alheio eacute fonte de grande afliccedilatildeo e o prazer estaria na

possibilidade de observar o fracasso na aquisiccedilatildeo destes bens (1387b-1388a) De seu

turno na compaixatildeo a dor eacute resultado de um mal que recai naquele que natildeo a merece

fazendo-nos sofrer por extensatildeo (1385b) Na indignaccedilatildeo a dor estaacute em observar um

ecircxito imerecido (1386b) Jaacute o amor que eacute melhor tratado no Livro I nos provoca dor

diante da ausecircncia da pessoa amada cuja lembranccedila e a esperanccedila de reencontro nos

provocam prazer (1370a)

Eacute bem verdade que em relaccedilatildeo a algumas emoccedilotildees tais a amizade e a

benevolecircncia Aristoacuteteles natildeo chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas

envolvidos mas conforme nota Frede isso mostra que ele estava mais preocupado em

44

A palavra alematilde Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortuacutenio

alheio 45

PLATAtildeO Op cit 1997 p 439-440

28

mostrar quais emoccedilotildees o orador deveria dominar para ser convincente no

empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade teoacuterica46

De outra parte importa registrar que no detalhamento das emoccedilotildees trecircs

aspectos satildeo via de regra esclarecidos quais sejam o estado de espiacuterito em que

geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoccedilatildeo contra quem ou

o que costumam ter aquela reaccedilatildeo emotiva e em quais circunstacircncias ocorrem Sem

saber estes trecircs aspectos o orador natildeo estaraacute nas condiccedilotildees ideais de alcanccedilar ecircxito no

seu empreendimento de colocar o auditoacuterio numa determinada disposiccedilatildeo mental

Por exemplo como o medo estaacute relacionado agrave visualizaccedilatildeo da ocorrecircncia de um

mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequecircncias negativas na esfera

pessoal do indiviacuteduo o ouvinte deve estar num estado de espiacuterito que acredite que de

fato algo ruim iraacute lhe suceder Assim pessoas insensiacuteveis por jaacute terem vivenciado toda

sorte de desgraccedila na vida ou porque estatildeo muito confiantes em si mesmas por terem ou

acreditarem ter muitos amigos vigor fiacutesico prosperidade econocircmica ou outro motivo

que as fortaleccedila mentalmente natildeo sentiratildeo medo Logo a confianccedila eacute o contraacuterio do

medo e eacute um verdadeiro escudo contra o sentimento de inseguranccedila que aplaca o

medroso Por outro lado teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a noacutes e nesta

categoria encontram-se aqueles que satildeo injustos ou perversos desde que contem com

instrumentos para cometerem os seus atos de injusticcedila e de maldade aqueles que

provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que noacutes os nossos concorrentes

quando o objeto de conquista natildeo pode ser compartilhado os que foram viacutetimas de

injusticcedila por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem Por fim em

relaccedilatildeo agrave coisa que tememos ela deveraacute ter a capacidade de nos causar grande

penosidade inclusive a proacutepria destruiccedilatildeo sendo o seu aspecto temporal altamente

relevante jaacute que tendemos a ter medo em relaccedilatildeo a um mal iminente e natildeo sentirmos

temor quanto a algo que provavelmente se sucederaacute mas a sua ocorrecircncia se daraacute num

intervalo temporal muito longiacutenquo

Na posse de tais informaccedilotildees e tentando imaginar um orador que planeje incutir

medo num auditoacuterio formado por pessoas com alto niacutevel de confianccedila certamente o

passo inicial seraacute dessensibilizar os ouvintes Se por exemplo as pessoas forem

confiantes por possuiacuterem muita riqueza seraacute necessaacuterio demonstrar no discurso que os

seus bens materiais nada poderatildeo fazer contra o mal que se aproxima Se por outro

46

FREDE D Op cit p 271

29

lado o mal lhes parece distante o discurso deveraacute enfatizar que a distacircncia natildeo eacute tatildeo

grande quanto aparenta e deveraacute reforccedilar a capacidade destrutiva deste mal bem como

certificar que apesar de longiacutenquo o infortuacutenio ocorreraacute No entanto se o auditoacuterio

estiver experimentando um medo excessivo talvez seja necessaacuterio lhes transmitir

confianccedila demonstrando que o mal natildeo seja tatildeo grande quanto aparenta ou que as

pessoas dispotildeem de meios adequados para enfrentaacute-lo

Enfim eacute preciso realizar um minucioso estudo do auditoacuterio a fim de

compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (preacute-discurso)

continuar a percebecirc-lo durante o discurso tudo isso com o objetivo de conduzir os

ouvintes a uma pretendida disposiccedilatildeo mental Nesta perspectiva a retoacuterica eacute uma

teacutecnica fundada no profundo conhecimento teoacuterico do ser humano na aquisiccedilatildeo de

experiecircncia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especiacuteficas de um

determinado grupo social e na contiacutenua praacutetica discursiva

Cumpre acrescentar que no discurso retoacuterico haacute tambeacutem um intenso trabalho de

representaccedilatildeo mental ou melhor dizendo de imaginaccedilatildeo isto eacute phantasia As palavras

gregas phantasia e phantasma satildeo traduzidas por imagem imaginaccedilatildeo ou representaccedilatildeo

mental em diversas ocasiotildees da obra em comentaacuterio Eacute oportuno destacar que phantasia

eacute um termo teacutecnico da psicologia aristoteacutelica e natildeo se confunde com o uso atual da

palavra fantasia que significa invenccedilatildeo narrativa ficcional algo fora da realidade

A phantasia eacute uma faculdade da alma que natildeo eacute nem pensamento nem

percepccedilatildeo embora parta desta uacuteltima Ela visa dar conta de pelo menos dois

problemas a presenccedila na ausecircncia isto eacute a lembranccedila ou pensamento de objetos

ausentes a questatildeo do engano que natildeo consegue ser explicado pela ideia de que o

semelhante conhece o semelhante pois esta uacuteltima tese sustenta que o conhecimento se

identifica com os seus objetos (409b29-30) e por isso natildeo pode ldquo[] errar ou desviar

de como as coisas satildeordquo47

Assim para Aristoacuteteles a phantasia eacute uma faculdade

especiacutefica da alma que procura solucionar esse problema da cogniccedilatildeo tornando atraveacutes

da representaccedilatildeo mental o verdadeiro e o falso possiacuteveis

Desse modo Aristoacuteteles expotildee que ldquoo prazer consiste em sentir uma certa

emoccedilatildeo e a imaginaccedilatildeo [phantasia] eacute uma espeacutecie de sensaccedilatildeo enfraquecidardquo48

(1370a28-29) Ao falar acerca do prazer sentido na vitoacuteria assevera que todos gostam

47

ldquoit cannot err or deviate from the way things arerdquo CASTON Victor Aristotlersquos psychology In GILL

M L PELLEGRIN P (ed) The Blackwell Companion to Ancient Philosophy Oxford Blackwell

Publishing 2006 p 334 48

ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 57

30

de vencer porque criamos para noacutes mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade

em relaccedilatildeo aos outros (1370b33) A honra e a boa reputaccedilatildeo satildeo altamente prazerosas

porque atraveacutes delas imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma

pessoa virtuosa Na ira o prazer ocorre em face da representaccedilatildeo mental [phantasia] do

ato de vinganccedila (1378b) O medo eacute uma dor ocasionada pela representaccedilatildeo [phantasia]

de um mal iminente (1382a21) Na esperanccedila representamos mentalmente [phantasia]

que as coisas que nos transmitem seguranccedila estatildeo proacuteximas (1383a17) Por sua vez a

vergonha consiste na representaccedilatildeo imaginaacuteria [phantasia] da perda de reputaccedilatildeo pelo

indiviacuteduo (1384a24)49

Assim em vista dos trechos acima citados fica claro que phantasia tem um

papel essencial no trabalho retoacuterico porque atraveacutes de sua elaboraccedilatildeo discursiva seraacute

possiacutevel suscitar determinadas emoccedilotildees no auditoacuterio E isso porque conforme destaca

Rapp ldquomuitas emoccedilotildees surgem apenas atraveacutes da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo

(phantasia) natildeo necessitando de uma operaccedilatildeo cognitiva superior incluindo qualquer

julgamento compreendido este uacuteltimo como uma operaccedilatildeo sofisticadardquo50

Assim em

conclusatildeo a phantasia retoacuterica consiste na induccedilatildeo de uma determinada disposiccedilatildeo

mental por meio da produccedilatildeo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um

estado emocional especiacutefico

Desse modo tendo completado a exposiccedilatildeo do tema eacute possiacutevel agora notar a

evoluccedilatildeo do pensamento de Aristoacuteteles sobre as emoccedilotildees compreender de que modo

elas satildeo suscitadas entender a sua natureza complexa e a sua funccedilatildeo cognitiva precisar

quais delas satildeo importantes para o orador e por fim observar a sua centralidade dentro

da retoacuterica

13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica

Visto o delineamento do tema na retoacuterica aristoteacutelica e percebido o alto grau de

importacircncia que as emoccedilotildees adquirem no discurso persuasivo passamos agora a

investigaacute-las na eacutetica aristoteacutelica mais precisamente nos Livros I e II da Eacutetica a

Nicocircmaco

49

GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric II a commentary New York Fordham University

Press 1988 p 26 50

ldquoViele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande beduumlrfen

aber keiner houmlheren kognitiven Operation also auch keines Urteils falls darunter eine solche

anspruchsvollere Operation verstanden wirdrdquo (trad livre) RAPP C Op cit p 56

31

Aristoacuteteles inicia no Capiacutetulo II do Livro I dizendo que se houver um bem que

seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade uacuteltima

tal bem dada a sua importacircncia merece por razotildees praacuteticas ser estudado e conhecido

uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforccedilo na vida humana

Esse bem final ou supremo eacute relacionado agrave felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no

Capiacutetulo IV ldquoverbalmente eacute-nos possiacutevel quase afirmar que a maioria esmagadora da

espeacutecie humana estaacute de acordo no que tange a isso pois tanto a multidatildeo quanto as

pessoas refinadas a ele se referem como a felicidaderdquo51

(1095a17-19)

Apoacutes discorrer sobre vaacuterias concepccedilotildees correntes sobre felicidade (eudaimonia)

oferecendo-lhes criacutetica bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista Aristoacuteteles no

Capiacutetulo XIII afirma que ldquofelicidade eacute uma certa atividade da alma em conformidade

com a virtude perfeitardquo ou que a ldquofelicidade humana significa a excelecircncia da almardquo

justificando portanto a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para

melhor compreender a mateacuteria em exame

Por isso em seguida apresenta a divisatildeo da alma em uma parte dotada de razatildeo

(logon) e uma outra parte natildeo-racional (alogon) Primeiramente eacute detalhada a parte

natildeo-racional que se divide em duas uma porccedilatildeo cuida da nutriccedilatildeo e do crescimento e

por isso eacute partilhada com todos os seres vivos natildeo sendo caracteriacutestica apenas do ser

humano (parte vegetativa ou nutritiva) mas uma outra porccedilatildeo embora tambeacutem seja

natildeo-racional possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razatildeo Esta

uacuteltima porccedilatildeo eacute a sede dos desejos apetites e emoccedilotildees e geralmente eacute denominada de

parte apetitiva ou desiderativa

Poreacutem em prosseguimento sem se decidir ele observa que talvez seja mais

apropriado dividir a parte racional em duas uma que deteacutem o princiacutepio racional strictu

sensu e em si mesmo e a outra parte (a apetitiva) que natildeo possui razatildeo mas que eacute

capaz de ouvi-la ldquocomo um filho ao seu pairdquo Em ambos os casos seja a parte

irracional duplamente dividida seja a parte racional duplamente dividida uma coisa

permanece igual a parte apetitiva (desiderativa) natildeo deteacutem em si o princiacutepio racional

mas eacute capaz de escutar e obedecer a razatildeo conforme explana Rapp

Na verdade Aristoacuteteles diz que ou o sentido da frase lsquologo echonrsquo

(lsquoter razatildeorsquo) eacute bipartite ndash primeiro aquilo que tem razatildeo em sentido

estrito e a tem em si mesmo segundo aquilo que eacute capaz de obedecer

ou responder agrave razatildeo ndash ou que um elemento da parte natildeo-racional da

51

ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco trad Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2009 p 40

32

alma eacute capaz de ouvir obedecer ou responder agravequela parte da alma

que possui razatildeo em si mesma52

Mas qual eacute a principal finalidade em apresentar esta divisatildeo da alma em uma

parte racional e outra natildeo-racional Ora se lembrarmos que a felicidade eacute um estado de

excelecircncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita entatildeo do conhecimento

das partes da alma e da compreensatildeo do seu bom funcionamento dependem o excelente

desempenho da totalidade da alma Assim anota Pakaluk o pressuposto impliacutecito neste

capiacutetulo eacute que a virtude do todo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da distinccedilatildeo da virtude das

partes53

E tal portanto eacute a justificativa para apresentar a divisatildeo entre virtudes

intelectuais e virtudes morais ou eacuteticas As virtudes intelectuais satildeo aquelas pertencentes

ao campo da parte racional da alma e de seu turno as virtudes morais satildeo relacionadas

agrave parte natildeo-racional da alma mas que conforme visto tecircm a caracteriacutestica de poder

ouvir e obedecer agrave razatildeo

Interessante registrar o jogo ambiacuteguo que o vocaacutebulo ldquovirtuderdquo exerce no texto

Se num primeiro momento Aristoacuteteles usa ldquovirtuderdquo geralmente no singular para se

referir agrave felicidade conveacutem notar que agora ele passa a utilizar a palavra no plural

(virtudes intelectuais e virtudes morais) O termo grego aretecirc pode ser traduzido por

excelecircncia ou por virtude sendo que ao empregar a palavra no singular para definir a

felicidade o Estagirita quer se referir agrave atividade excelente da alma um estado que

exerce bem sua funccedilatildeo e atinge os melhores padrotildees Jaacute no segundo caso exemplificado

(plural) deseja aludir agraves virtudes individuais tais como popularmente as conhecemos

justiccedila moderaccedilatildeo coragem etc54

Assim tendo em vista tal classificaccedilatildeo o Livro II iraacute se ocupar da virtude moral

(no singular) ou seja procurar-se-aacute compreender de que maneira a parte natildeo-racional

da alma iraacute atingir o seu estado excelente enquanto as virtudes morais (no plural) iratildeo

ser exploradas em outro trecho da obra (III8-VI)

Neste propoacutesito no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral o

Estagirita abre a discussatildeo esclarecendo o seu modo de aquisiccedilatildeo a fim de diferenciar

tal virtude em relaccedilatildeo agrave virtude intelectual Enquanto esta uacuteltima se adquire pela

52

RAPP CPara que serve a doutrina aristoteacutelica do meio termo In ZINGANO Marco (org) Sobre a

eacutetica nicomaqueia de aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010 p 410 53

PAKALUK Michael On the unity of the nicomachean ethics In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos

nicomachean ethics a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 31 54

RAPP C Op cit 2010 p 407-408 Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea Op cit p 78

33

instruccedilatildeo aquela eacute produto do haacutebito (ethos) marcando com esta posiccedilatildeo clara

divergecircncia com o intelectualismo socraacutetico que entende que a virtude eacute adquirida por

meio do conhecimento vale dizer para praticar atos bons e ser considerado bom eacute

suficiente que o indiviacuteduo compreenda o que eacute bondade para ser justo eacute satisfatoacuterio

conhecer o que eacute justiccedila Diferentemente no modelo aristoteacutelico algueacutem soacute se torna

virtuoso caso realize atos em conformidade com a virtude Por conseguinte eacute preciso

realizar atos de coragem ou de justiccedila para por exemplo ser considerado corajoso ou

justo

Ademais as virtudes morais natildeo satildeo inatas natildeo satildeo geradas pela natureza

(phusei) nem satildeo contraacuterias agrave natureza (paraphisen) Embora nos sejam concedidas

como potecircncias (dynameis) necessitam ser exercidas para serem adquiridas e natildeo

permanecerem em eterno estado de latecircncia Isso porque a virtude eacute uma hexis

(disposiccedilatildeo) um estado de caraacuteter adquirido que se tornou estaacutevel fixo natildeo sujeito a

regressotildees55

Eacute por isso que a sua aquisiccedilatildeo soacute ocorre mediante a repeticcedilatildeo de vaacuterios

atos (haacutebito) necessitando tambeacutem que haja conhecimento e deliberaccedilatildeo na sua praacutetica

(1105a30-35)

Poreacutem onde se encaixam as emoccedilotildees neste modelo teoacuterico Qual eacute o papel que

desempenham para o atingimento do estado de excelecircncia da parte natildeo-racional da

alma

No Capiacutetulo I do Livro II Aristoacuteteles fornece o primeiro exemplo empiacuterico

relativo agrave importacircncia das emoccedilotildees para a o desenvolvimento do caraacuteter do indiviacuteduo

ldquoatraveacutes da accedilatildeo em situaccedilotildees arriscadas e ao formar o haacutebito do [sentimento] do medo

ou [aquele] da autoconfianccedila eacute que nos tornamos corajosos ou covardesrdquo56

No Capiacutetulo

II reafirma-se o mesmo exemplo a pessoa que sente medo em relaccedilatildeo a tudo querendo

fugir de todas as situaccedilotildees iraacute adquirir o caraacuteter de um covarde sendo que aquele que

natildeo vivencia medo em face de qualquer situaccedilatildeo um temeraacuterio

Apoacutes o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de

incidecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Assim em relaccedilatildeo a estas uacuteltimas estar na

posse de uma virtude moral significa que o indiviacuteduo se encontra bem ou mal disposto a

55

WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2013 p 69-70 56

ARISTOacuteTELES Op cit 2009 p 68

34

sofrer o governo das emoccedilotildees ldquoas disposiccedilotildees satildeo os estados de caraacuteter formados

devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relaccedilatildeo agraves paixotildeesrdquo57

Com efeito se pensarmos que a teoria moral aristoteacutelica concerne agraves emoccedilotildees e

o vocaacutebulo pathos derivado de paschein traz consigo a ideia de que o indiviacuteduo eacute

afetado por algo isto eacute ele sofre a accedilatildeo de uma emoccedilatildeo e por isso se encontra numa

condiccedilatildeo passiva e considerando que esta mesma teoria moral tambeacutem se preocupa

com a accedilatildeo (praxis) isto eacute quando o indiviacuteduo atua e respectivamente estaacute numa

posiccedilatildeo ativa o modelo eacutetico em comentaacuterio se preocupa natildeo apenas com o agir

devidamente mas tambeacutem com o ser afetado devidamente Assim a arte de viver bem

natildeo se resume a uma arte de agir adequadamente mas sobretudo a uma arte de sentir

de modo adequado as emoccedilotildees58

Dessa forma com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de

como atingir esse ponto de excelecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Aristoacuteteles

apresenta a doutrina do meio termo

Ora de tudo que eacute contiacutenuo e divisiacutevel eacute possiacutevel tomar a parte maior

ou a menor ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores

menores e iguais seja relativamente agrave proacutepria coisa ou relativamente a

noacutes a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficiecircncia

Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois

extremos o que eacute exatamente o mesmo para todos os seres humanos

pela mediania relativa a noacutes entendo aquela quantidade que nem eacute

excessivamente grande nem excessivamente pequena o que natildeo eacute

exatamente o mesmo para todos os seres humanos59

Assim em vista do modelo conceitual oferecido a excelecircncia eacutetica estaraacute no

distanciamento do muito e do muito pouco em direccedilatildeo ao centro isto eacute ao ponto

mediano A boa disposiccedilatildeo de caraacuteter eacute alcanccedilada quando se evita tanto o excesso

quanto a deficiecircncia que seriam modos de falhar tanto na accedilatildeo quanto na forma de

sentir a emoccedilatildeo

Rapp destaca que as interpretaccedilotildees normativas desta doutrina

tradicionalmente a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os

casos individuais e encontrar consequentemente uma soluccedilatildeo Assim ela tem sido

compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas accedilotildees ou emoccedilotildees sejam

57

Id ibid p 74 58

KOSMAN L A Beeing properly affected virtues and feelings in Aristotlersquos ethics In RORTY

Ameacutelie Oksenberg Essays on aristotlersquos ethics BerkeleyLos Angeles California University Press

1980 p 104-105 59

ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco Op cit p 76

35

moderadas (b) para que apenas selecionemos as accedilotildees ou as reaccedilotildees emotivas

equidistantes dos dois extremos60

Todavia a melhor saiacuteda seria observar o seu caraacuteter anti-dedutivo jaacute que no

campo eacutetico a infinidade de situaccedilotildees e peculiaridades desaprova uma leitura ldquoregra-

casordquo desse modelo teoacuterico ldquoo melhor que a teoria eacutetica pode fazer eacute formular

enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hocircs epi to polu) e natildeo em

geralrdquo61

Nesta aacuterea que natildeo eacute a do necessaacuterio natildeo se podem formular premissas

cogentes a partir das quais deduziriacuteamos soluccedilotildees firmes

Aristoacuteteles nesse ponto adiciona uma seacuterie de paracircmetros a fim de explanar

conceitualmente a boa medida da accedilatildeo ou da emoccedilatildeo experimentar uma emoccedilatildeo

adequadamente significa senti-la na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves

pessoas e aos fins certos e de maneira correta o que demonstra a complexidade do

aperfeiccediloamento eacutetico uma vez que se espera do indiviacuteduo uma grande sensibilidade agrave

experiecircncia concreta

Em tal perspectiva sentir uma emoccedilatildeo devidamente pode significar reagir de

modo eneacutergico porque uma situaccedilatildeo especiacutefica pode reclamar que a pessoa tenha uma

resposta emocional intensa Isso natildeo anula a noccedilatildeo de virtude moral esclarecida

conceitualmente pela doutrina do meio-termo porque a pessoa que natildeo reage de forma

adequada agrave ocasiatildeo em face daqueles paracircmetros expostos estaraacute ou falhando por

deficiecircncia ou por excesso Por exemplo o indiviacuteduo que frequentemente reaja com

raiva em relaccedilatildeo agraves pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira

equivocada ou natildeo reaja quando deveria estaraacute mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees62

Assim ateacute o momento o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira

algueacutem estaraacute bem ou mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees uma vez que conforme se

delineou a parte natildeo-racional da alma apenas exerce bem a sua funccedilatildeo quando ouve a

razatildeo e no campo das emoccedilotildees isso ocorre quando o indiviacuteduo as sente adequadamente

de acordo com as circunstacircncias

Poreacutem Aristoacuteteles demonstrando que no terreno da eacutetica as peculiaridades satildeo

muitas afirma que para determinadas emoccedilotildees (a inveja a malevolecircncia a impudiciacutecia

e outras semelhantes) o modelo da mediania eacute inuacutetil e os paracircmetros sequer aplicaacuteveis

60

RAPP C 2010 p 416 61

Id ibid p 419 62

RAPP COp cit 2008 p 66

36

porque tais paixotildees satildeo maacutes em si mesmas para elas soacute existe o erro pois natildeo haacute como

senti-las no momento certo quanto agrave pessoa certa ou de modo certo etc

Assim enquanto para uma gama de emoccedilotildees eacute possiacutevel afirmar que eacute possiacutevel

senti-las adequadamente e isso implica pressupor que quando apropriadamente

vivenciadas algo de bom teraacute ocorrido da sua fruiccedilatildeo para outras tal pensamento natildeo eacute

extensiacutevel

Temos que nos socorrer do Livro II da Retoacuterica a fim de evidenciar por que a

inveja seria do ponto de vista eacutetico uma emoccedilatildeo vil em si mesma o Estagirita afirma

que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia eacute aquela que sente inveja

da felicidade dos outros e consequentemente esta mesma pessoa teraacute grande regozijo

ao observar o fracasso alheio Enquanto a indignaccedilatildeo e a inveja partilham de um ponto

comum por serem emoccedilotildees penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia

entre elas existe uma destacada diferenccedila a indignaccedilatildeo eacute uma dor gerada pela

observaccedilatildeo de um sucesso imerecido (injusto) enquanto a inveja eacute uma dor provocada

pela conquista de um bem merecido (justo) Enquanto a indignaccedilatildeo e a compaixatildeo estatildeo

ligadas ao bom caraacuteter a inveja estaacute relacionada a pessoas de alma pequena

(mikropsykhoi) Ao comparar a emulaccedilatildeo com a inveja destaca que aquela eacute

experimentada por pessoas de bem de alma grande enquanto a uacuteltima por pessoas vis

despreziacuteveis que poderatildeo inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem

Enfim parece que natildeo foi agrave toa que Aristoacuteteles de forma inusual brigou com os poetas

no iniacutecio da Metafiacutesica ao dizer que eacute mais provaacutevel que eles sejam mentirosos

conforme profere o proveacuterbio do que os deuses invejosos (1386b10-25 1387b30-39

1388a30-37 983a1-5)

Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoccedilotildees que satildeo vis em si mesmas

fundamentando-se na palavra grega mochteria utilizada em trecho em que eacute discutido

este mesmo assunto na Eacutetica a Eudemo (1221b21)63

Eacute bem verdade que mochteria

tambeacutem foi vertida por ldquoviacuteciordquo em algumas traduccedilotildees deste mesmo trecho na referida

obra aristoteacutelica64

mas natildeo deixa de ser um uso interessante para a descriccedilatildeo das

mencionadas emoccedilotildees parecendo-nos oportuna a sua utilizaccedilatildeo65

63

LEIGHTON Stephen Inappropriate passion In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos nicomachean ethics

a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 211 64

ARISTOTLE Eudemian ethics trad Michael Woods Oxford Clarendon Press 2005 p 18 65

Cf a explanaccedilatildeo dada para mochteria ldquocorrupt corruption (mochtheros mochtheria) A strong term

used to describe vicious human beings Like the English term the Greek has a range of meanings from

morally bad or wicked to perverse or depraved in ones longings and the like it can also mean in non

moral contexts simply lsquodefectiversquo or lsquobad conditionrsquo In the Ethics mochtheria is sometimes used

37

Assim por exemplo a inveja eacute uma emoccedilatildeo perversa porque conforme se viu

eacute anti-meritoacuteria O sujeito invejoso natildeo consegue enxergar um valor positivo na

conquista alheia e espera pela sua desgraccedila Consequentemente eacute uma emoccedilatildeo

relacionada ao cometimento de injusticcedilas

Mas de um modo geral todas as emoccedilotildees perversas compartilham de algo em

comum elas satildeo incompatiacuteveis com o bom caraacuteter Consoante nota Leighton as

emoccedilotildees perversas ldquo[] natildeo contribuem em nada mas apenas inibem uma vida virtuosa

ou proacutespera Enquanto a maioria das emoccedilotildees eacute objeto de elogio ou de censura

conforme as circunstacircncias particulares em que se manifestam estas merecem censura

simplesmente por serem sentidasrdquo66

Ora pelo visto ateacute o presente momento Aristoacuteteles divide as emoccedilotildees em dois

grupos aquelas que podem ser adequadamente ou natildeo-adequadamente sentidas de

acordo com as circunstacircncias e aquelas que satildeo vis em si mesmas (perversas) Naquele

primeiro grupo de emoccedilotildees os indiviacuteduos virtuosos sentiratildeo as emoccedilotildees

adequadamente enquanto aqueles natildeo-virtuosos sentiratildeo inadequadamente No segundo

grupo apenas os sujeitos de caraacuteter falho (natildeo-virtuoso) as sentiratildeo67

Desse modo de

acordo com este modelo quando devidamente formadas na disposiccedilatildeo de caraacuteter do

indiviacuteduo as emoccedilotildees contribuiratildeo significativamente no alcance de uma vida feliz

Poreacutem a despeito disso quais satildeo as outras implicaccedilotildees deste modelo

O primeiro ponto consiste em perceber que vaacuterias questotildees essenciais para a

vida inclusive para a vida em sociedade natildeo estatildeo localizadas no acircmbito de uma

racionalidade strictu sensu Se o indiviacuteduo natildeo for por haacutebito levado a constituir uma

disposiccedilatildeo de caraacuteter que o faccedila detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos

perversos provavelmente seraacute indiferente emocionalmente a accedilotildees truculentas ou

brutas contra outras pessoas

Nesse sentido conforme pontua Striker a falha em perceber qual o melhor curso

de accedilatildeo a tomar diante de determinada situaccedilatildeo estaacute relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional

porque eacute esta que iraacute possibilitar ao indiviacuteduo ter uma boa perspectiva moral

permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que eacute o melhor em cada circunstacircncia Pessoas

synonymously with the word for lsquovicersquo and so can serve as the contrary of lsquovirtuersquordquo ARISTOacuteTELES

Aristotlersquos nichomachean ethics tradRobert Bartlett e Susan D Collins ChicagoLondon Chicago

University Press 2011 p 307 66

ldquoThey cannot contribute to but only inhibit a virtuous or flourishing life While most passions deserve

praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (indashiii) these deserve blame

simply for being feltrdquo (trad livre) LEIGHTON S Op cit p 215 67

LEIGHTON SId ibid p 226

38

incapazes de sentir adequadamente indignaccedilatildeo ou compaixatildeo seratildeo inaacutebeis em prevenir

ou aliviar o sofrimento alheio assim como natildeo estaratildeo interessadas em reparar uma

injusticcedila68

Ademais registre-se que sem medo a pessoa natildeo tem como deliberar

adequadamente diante de um perigo (1383a5) E por uacuteltimo a depender da situaccedilatildeo

talvez seja necessaacuterio responder com muita indignaccedilatildeo ou muita raiva porque a

conjuntura pode demandar uma resposta eneacutergica de modo que o ideal de que as

emoccedilotildees sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)

natildeo estaacute condizente com tal abordagem69

De outra parte conveacutem tambeacutem compreender de que maneira este modelo eacute

extensiacutevel a outros domiacutenios pois ateacute entatildeo a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e

perversas esteve atrelada ao prisma eacutetico da vida comum Mas conforme adverte

Leighton eacute possiacutevel pensar a questatildeo da adequaccedilatildeo e da perversidade das emoccedilotildees na

poliacutetica na retoacuterica na trageacutedia e nos demais domiacutenios70

Por exemplo segundo Aristoacuteteles na trageacutedia o medo e a compaixatildeo satildeo duas

emoccedilotildees-chaves e estrategicamente utilizadas para garantir o efeito cataacutertico sobre o

puacuteblico (1452a3-12) que eacute levado a se surpreender e se horrorizar com o destino do

personagem Neste acircmbito a adequaccedilatildeo de tais emoccedilotildees assim como de outras que

porventura emergirem (amor oacutedio etc) natildeo satildeo orientadas pelos criteacuterios eacuteticos da vida

comum mas pela forma poeacutetica O medo que se destina agrave catarse na trageacutedia exerce

outra funccedilatildeo na eacutetica da vida ordinaacuteria relacionando-se com a virtude da coragem Por

sua vez as emoccedilotildees adequadas agrave comeacutedia deveratildeo ser outras71

Assim como conciliar a inadequaccedilatildeo de uma emoccedilatildeo na vida ordinaacuteria e sua

adequaccedilatildeo em outro domiacutenio (trageacutedia comeacutedia poliacutetica retoacuterica etc) Leighton

oferece duas respostas

Primeiramente ele lembra que Aristoacuteteles provavelmente confiante no poder do

haacutebito de que a sua teoria moral eacute devota eacute um filoacutesofo bem mais otimista do que

Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave corrupccedilatildeo moral Por exemplo para o Estagirita uma pessoa

pode aproveitar dos prazeres de uma comeacutedia sem que o seu caraacuteter moral seja

68

STRIKER Gisela Emotions in context aristotlersquos treatment of the passions in the rhetoric and his

moral psychology In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos

Angeles California University Press 1996 p 298 69

RAPP COp cit 2008 p 66 70

LEIGHTON S Op cit p 226 71

Id ibid p 227

39

destruiacutedo porque ela jaacute eacute possuidora de uma disposiccedilatildeo fixa permanente Esta primeira

hipoacutetese enfatiza o impacto psicoloacutegico das emoccedilotildees sobre o puacuteblico72

Na segunda hipoacutetese a explicaccedilatildeo enfatiza a proacutepria ideia de domiacutenio ldquoas

circunstacircncias da vida mundana natildeo satildeo as mesmas da trageacutedia da comeacutedia da retoacuterica

e vice-versa a sua localizaccedilatildeo difere dentro do sistema teleoloacutegico aristoteacutelicordquo73

Assim eacute plenamente possiacutevel no pensamento aristoteacutelico algo ser inadequado numa

circunstacircncia e adequada em outra natildeo haacute uma pretensatildeo prima facie de que se algo eacute

inadequado num determinado domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro

Portanto a adequaccedilatildeoinadequaccedilatildeo estaacute relacionada com os fins e a forma de um

especiacutefico domiacutenio sendo que os criteacuterios de adequaccedilatildeo em cada acircmbito natildeo estatildeo em

competiccedilatildeo Conveacutem registrar poreacutem que pensar na pluralidade de domiacutenios e sua

respectiva independecircncia em termos de adequaccedilatildeo natildeo significa que eles sejam

completamente autocircnomos e desconectados pois em verdade todos os domiacutenios estatildeo

subordinados agrave teleologia aristoteacutelica do bem74

Assim Leighton afirma que uma explicaccedilatildeo baseada no domiacutenio prefere a uma

psicoloacutegica por trecircs motivos 1) explica por que Aristoacuteteles oferece diferentes criteacuterios

de adequaccedilatildeo para domiacutenios distintos 2) natildeo necessita recorrer agrave ideia de que se algo eacute

inadequado em um domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro 3) possibilita

que faccedila sentido a ideia aristoteacutelica de que a adequaccedilatildeo de determinadas atividades varia

de acordo com o domiacutenio Por outro lado uma explanaccedilatildeo psicoloacutegica falha por

tambeacutem trecircs motivos 1) embora seja coerente com a noccedilatildeo de haacutebito natildeo explica a

diferenccedila entre domiacutenios 2) natildeo deixa de carregar uma censura moral consigo 3) natildeo

compreende a visatildeo aristoteacutelica de adequaccedilatildeo emotiva por domiacutenios distintos75

De fato a explicaccedilatildeo por domiacutenios oferece uma boa compreensatildeo do tema em

relaccedilatildeo agravequelas emoccedilotildees enquadraacuteveis no grupo das adequadasinadequadas de acordo

com as circunstacircncias Poreacutem o que dizer das emoccedilotildees vis em si mesmas perversas A

inveja por exemplo pode eventualmente ser adequada por domiacutenio (poliacutetica retoacuterica

etc)

Leighton afirma que a rigor uma emoccedilatildeo perversa natildeo pode ser adequada em

nenhuma circunstacircncia nem em nenhum domiacutenio considerando todas as caracteriacutesticas

72

Id ibid p 230 73

ldquoThe circumstances of mundane life are not those of tragedy comedy rhetoric and vice versa their

placement within Aristotlersquos teleological framework differsrdquo (trad livre) Id ibid p 231 74

Id ibid p 231-232 75

Id ibid p 231

40

jaacute relacionadas a respeito de tais emoccedilotildees Poreacutem ele simplesmente natildeo consegue

explicar por que Aristoacuteteles endossa o uso das emoccedilotildees perversas na retoacuterica ldquonoacutes

entendemos melhor aquilo e por que os poetas estavam errados em atribuir a inveja agrave

natureza divina mas permanecemos desconcertados por que Aristoacuteteles nos prepara

para utilizar a inveja na retoacutericardquo76

Para tentar solucionar esse verdadeiro enigma de que tratamos no toacutepico

anterior e que agora novamente retorna Leighton deveria tambeacutem ter enfrentado o

problema da compatibilidade do pensamento aristoteacutelico nos Livros I e II da Retoacuterica

Conforme dissemos anteriormente a criacutetica inicial de Aristoacuteteles ao uso das emoccedilotildees no

Capiacutetulo I do Livro I eacute conflitante com o posicionamento oferecido no Livro II e por

isso sem pressupor alguma mudanccedila de entendimento no pensamento do Estagirita fica

difiacutecil uma boa explicaccedilatildeo

Ainda assim eacute razoaacutevel supor que Aristoacuteteles tenha permanecido criacutetico em

relaccedilatildeo a um uso retoacuterico das emoccedilotildees que conduzisse ao desvirtuamento do problema

enfrentado Poreacutem no Livro II da Retoacuterica ele prepara o orador para utilizar todas as

emoccedilotildees inclusive aquelas condenaacuteveis na eacutetica da vida comum De certa forma tendo

em vista os propoacutesitos da retoacuterica e considerando que a arena puacuteblica por vezes nos

reserva situaccedilotildees inesperadas e certamente desagradaacuteveis eacute mais desejaacutevel estar

preparado para usar todas as emoccedilotildees sem censuraacute-las previamente em si mesmas

Talvez sob esta perspectiva seja justificaacutevel a quebra de coerecircncia

Por fim como fechamento desta investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio registrar que a eacutetica

aristoteacutelica consegue ateacute hoje manter a sua atualidade pelo modo como integrou as

emoccedilotildees dentro de seu modelo de vida virtuosa Com exceccedilatildeo das emoccedilotildees perversas o

indiviacuteduo virtuoso aristoteacutelico sente as emoccedilotildees que todos noacutes sentimos na vida comum

embora ele tenha adquirido um grande diferencial sua resposta emocional eacute excelente

isto eacute ele sente medo raiva indignaccedilatildeo compaixatildeo amor mas numa intensidade

adequada agrave situaccedilatildeo experenciada

14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica

Apoacutes analisar as emoccedilotildees primeiramente na retoacuterica e depois na eacutetica

aristoteacutelica passa-se agora a investigaacute-las no acircmbito da teoria estoica Se em relaccedilatildeo agrave

76

ldquoWe understand better that and why the poets were wrong to attribute envy to the divine nature but

remain puzzled why Aristotle prepares us to deploy envy in rhetoricrdquo (trad livre) Id ibid p 235

41

obra do Estagirita percorremos o referido trajeto agora teremos que comeccedilar o estudo

pela eacutetica estoica para depois chegarmos agrave retoacuterica O motivo para a alteraccedilatildeo de

percurso reside no fato de que sabemos bem mais detalhes da eacutetica do que da retoacuterica

estoica Ademais registre-se que nada sobrou dos textos de Zenatildeo de Ciacutecio (334-262

aC) Cleanto de Assos (331- aC) e Crisipo de Soles (280-204 aC) os fundadores do

estoicismo

Embora o estoicismo tenha sido praticado por um longo periacuteodo que abrange

cinco seacuteculos foi a partir do seu decliacutenio no seacuteculo III dC que as suas obras

inaugurais deixaram de ser preservadas Hoje em dia o estudo dos fundadores da escola

se baseia exclusivamente em fontes indiretas de autores tardios e sobretudo por meio

de comentaacuterios de seus adversaacuterios77

Crisipo embora natildeo tenha iniciado a escola estoica foi o seu mais importante

pensador sendo que muito do que hoje imputamos genericamente ao estoicismo eacute na

verdade o seu pensamento Dos seus mais de 705 (setecentos) livros escritos que

incluem um tratado exclusivamente sobre retoacuterica e outro sobre as emoccedilotildees soacute restam

fragmentos ou comentaacuterios Credita-se sobretudo a ele o enorme desenvolvimento da

loacutegica estoica considerada uma verdadeira preciosidade pelos especialistas Brennan eacute

incisivo ao dizer que ldquoentre os antigos apenas Platatildeo e Aristoacuteteles o ultrapassam como

filoacutesofordquo78

Com efeito considerado o extenso periacuteodo de tempo abrangido eacute de se esperar

que o desenvolvimento da escola estoica tenha passado por fases distintas de modo que

a histoacuteria do estoicismo eacute tradicionalmente dividida em trecircs momentos (i) fase inicial

periacuteodo no qual estaacute inserida a figura de Crisipo e que vai da fundaccedilatildeo da escola por

Zenatildeo em torno do seacuteculo III aC ateacute o fim do seacuteculo II dC (ii) fase intermediaacuteria que

coincide com a era de Paneacutecio e Posidocircnio (iii) fase do estoicismo romano coincide

com o periacuteodo imperial romano e os autores principais satildeo Secircneca Epicteto e Marco

Aureacutelio79

A nossa abordagem poreacutem natildeo se interessaraacute em investigar o desenvolvimento

do tema a ser estudado desde os fundadores do estoicismo ateacute os seus autores tardios

77

TIELEMAN T Op cit p 1 CHAUIacute Marilena Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia as escolas

heleniacutesticas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 p 118 78

ldquoAmong the ancients only Plato and Aristotle surpass him as philosophersrdquo (trad livre) BRENNAN

Tad The stoic life emotions duties amp fate Oxford Clarendon Press p11 SEDLEY David The school

from zeno to arius didymus In INWOOD Brad (ed) The Cambridge companion to the stoics

Cambridge Cambridge University Press p 17 LAEacuteRCIO Dioacutegenes Lives of eminent philosophers

trad R D Ricks London William Heineman 1925 p 317 79

SEDLEY D Op cit p 7

42

(fase do estoicismo romano) nem explanar eventuais discordacircncia entre eles Ao inveacutes

disso revela-se suficiente empreender um estudo que possibilite a compreensatildeo

tradicional das emoccedilotildees no campo da eacutetica possibilitando visualizar os eventuais

reflexos sobre a retoacuterica estoica

Ainda assim a delimitaccedilatildeo da abordagem natildeo deixa de ser desafiadora dado o

impressionante grau de sistematicidade da teoria estoica Atento a isso Ciacutecero diz que eacute

difiacutecil tirar um uacutenico elemento da teoria estoica sem prejudicar todo o resto do sistema

a que ele compara a um edifiacutecio

Certamente nenhuma obra da natureza (embora nada seja mais

finamente disposto do que a natureza) ou produto fabricado revela

tamanha organizaccedilatildeo tamanha estrutura firmemente soldada

Conclusatildeo segue infalivelmente da premissa posterior

desenvolvimento da ideia inicial Vocecirc pode imaginar outro sistema

em que a remoccedilatildeo de uma uacutenica letra como uma peccedila de encaixe

faria com que todo o edifiacutecio viesse a baixo80

Desse modo a fim de iniciar a nossa explanaccedilatildeo conveacutem registrar

primeiramente que para os estoicos a virtude eacute a uacutenica coisa boa que existe e o viacutecio

que eacute o seu contraacuterio a uacutenica coisa maacute Excluindo as virtudes e os viacutecios todo o resto

estaacute incluiacutedo na categoria dos indiferentes Assim sauacutede beleza forccedila riqueza

reputaccedilatildeo nascimento nobre satildeo considerados indiferentes assim como os seus

opostos doenccedila pobreza feiura etc ldquoos estoicos jamais diriam que a riqueza algumas

vezes eacute boa ou que em algumas vezes participa do bem ou que eacute boa se usada

corretamenterdquo81

Isso porque para eles a riqueza eacute algo invariavelmente classificado

como indiferente Ademais anote-se que a posse de tais indiferentes que satildeo

considerados bens externos natildeo eacute necessaacuterio para o indiviacuteduo ser feliz

Dentro da categoria dos indiferentes nem todos estatildeo no mesmo patamar

porque alguns estatildeo em conformidade com a natureza outros contraacuterios agrave natureza e

outros nem um nem outro Sauacutede e beleza por exemplo satildeo indiferentes que estatildeo em

conformidade com a natureza e por isso satildeo valorados positivamente Diante da

possibilidade devemos selecionar os indiferentes em conformidade com a natureza e

80

ldquoSurely no work of nature (though nothing is more finely arranged than nature) or manufactured

product can reveal such organization such a firmly welded structure Conclusion unfailingly follows

from premise later development from initial idea Can you imagine any other system where the removal

of a single letter like an inter-locking piece would cause the whole edifice to come tumbling downrdquo

(trad livre) CICERO On Moral ends trad WOOLF Raphael Cambridge Cambridge University

Press 2004(III74) p 88 81

BRENNAN T Op cit p 120

43

natildeo selecionar os indiferentes contraacuterios agrave natureza que satildeo desvalorados Por sua vez

dentre os indiferentes em conformidade com a natureza alguns possuem mais valor do

que outros e logo satildeo considerados preferiacuteveis A mesma ideia eacute extensiacutevel aos

indiferentes contraacuterios agrave natureza alguns possuem mais desvalor do que outros e dessa

forma satildeo menos preferiacuteveis

Um primeiro problema em relaccedilatildeo aos indiferentes diz respeito agrave sua

incontrolabilidade uma vez que satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna e por isso agrave

contingecircncia82

Outro problema consiste na possibilidade de tanto causarem benefiacutecio

quanto prejuiacutezo Riqueza e sauacutede por exemplo natildeo satildeo bons em si mesmos porque

podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal e tudo aquilo que ostenta tal

possibilidade natildeo eacute bom Eacute melhor por exemplo natildeo ter sauacutede caso ela seja o

instrumento que possibilite a praacutetica de atos vis conforme explana Graver

Nem mesmo a sauacutede eacute beneacutefica o tempo todo Se um ditador violento

pretende recrutar vocecirc para se tornar parte de um esquadratildeo da morte

entatildeo eacute preferiacutevel natildeo estar fisicamente apto (Secircneca que teve

alguma experiecircncia com ditadores recomenda suiciacutedio em tais casos)

Por esta razatildeo os estoicos argumentam que nem sauacutede nem riqueza

nem qualquer outro objeto externo eacute verdadeiramente beneacutefico em

tudo e tambeacutem os seus opostos natildeo satildeo totalmente prejudiciais O

verdadeiro valor natildeo aparece e desaparece com a ocasiatildeo83

Tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que virtude e felicidade e por outro lado viacutecio e

infelicidade coincidem na eacutetica estoica sendo que a virtude eacute identificada como um

estado de caraacuteter consistente que deve ser escolhida por si mesma e natildeo por outro

objeto externo84

Plutarco destaca que em uacuteltima instacircncia eacute a razatildeo que possibilita a

aquisiccedilatildeo de tal caraacuteter ldquo[] todos esses homens concordam em considerar a virtude

como um certo caraacuteter e poder da faculdade-comandante da alma engendrada pela

razatildeo ou melhor um caraacuteter que eacute em si mesmo consistente firme e de razatildeo

imutaacutevel[]rdquo85

A palavra ldquohomologiardquo traduzida por ldquoconsistecircnciardquo apreende bem a

82

Id ibid p 122 83

ldquoNot even health is beneficial all the time If a brutal dictator is seeking to conscript you to become part

of a death squad then it is preferable not to be physically fit (Seneca who had some experience of

dictators recommends suicide in such instances) For this reason the Stoics argue neither health nor

wealth nor any other external object is truly beneficial at all and neither are their opposites harmful

Genuine value does not come and go with the occasionrdquo GRAVER Margaret R Stoicism and emotion

ChicagoLondon The University of Chicago Press 2007 p 49 84

LAEacuteRCIO Diogenes 789 (SVF 339) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers translations of the principal sources vol 1 Cambridge Cambridge University Press 1987

p 377 85

ldquo[hellip]All these men agree in taking virtue to be a certain character and power of the souls commanding-

faculty engendered by reason or rather a character which is itself consistent firm and unchangeable

44

essecircncia desse modelo de eacutetica pois homo-logia significa tambeacutem ldquoharmonia com a

razatildeordquo demonstrando que a virtude eacute uma consistecircncia racional86

Os estoicos advogam a tese da unidade da virtude pois quem possui uma possui

todas as virtudes87

Quem age de acordo com uma age de acordo com todas A perfeiccedilatildeo

eacute apenas atingida quando o homem possui todas as virtudes e as suas accedilotildees satildeo

praticadas de acordo com todas elas88

Ademais ter uma vida feliz significa viver em conformidade com a natureza

que implica ao mesmo tempo viver de acordo com a virtude Neste particular natureza

significa a do proacuteprio homem e de tudo que o circunda (o todo) sendo que em ambas

permeia a reta razatildeo89

A razatildeo eacute aquilo que haacute de melhor e mais peculiar aos seres

humanos Quando correta e perfeita eacute a soma total da felicidade humana90

Um ponto central na eacutetica estoica reside na construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio

O saacutebio estoico eacute o modelo do indiviacuteduo virtuoso e autossuficiente faz tudo de modo

correto consistente e seacuterio natildeo faz nada de que poderia se arrepender nem nada contra

a sua vontade natildeo eacute assustado por nada ainda que aconteccedila algo inesperado e estranho

ele vive consistentemente conforme agrave natureza e por isso estaacute sempre feliz ldquoeacute uma

faacutecil conclusatildeo para os estoicos uma vez que perceberam que o bem final eacute uma

conformidade com a natureza e viver consistentemente com a natureza o que eacute natildeo

apenas a funccedilatildeo proacutepria do homem saacutebio mas tambeacutem estaacute em seu poderrdquo91

Poreacutem para compreender as emoccedilotildees e entender melhor as caracteriacutesticas

atribuiacutedas ao saacutebio eacute preciso esclarecer alguns aspectos da psicologia estoica

especialmente os conceitos de assentimento de impressatildeo e de impulso

Ordinariamente assentir significa concordar com aderir a algo conceder

aprovaccedilatildeo No entanto na escola estoica assentir eacute um termo teacutecnico e portanto

desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica em sua sistemaacutetica filosoacutefica Assim de acordo com

reason[hellip]rdquo Cf PLUTARCO On moral virtue 44OE-441D In LONG A A SEDLEY D N The

Hellenistic philosophers p 378 86

Id ibid p 383 87

STOBAEUS 2636-24 (SVF 3280 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 379 88

PLUTARCO On Stoic self-contradictions 1046E-F (SVF 3299 243) In LONG A A SEDLEY D

N The Hellenistic philosophers p 379 89

LAEacuteRCIO Dioacutegenes 787-9 In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers p

395 90

SENECA Letters 769-10 (SVF 3200a) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 395 91

ldquoIt is an easy conclusion for the Stoics since they have perceived the final good to be agreement with

nature and living consistendy with nature which is not only the wise mans proper function but also in

his powerrdquo (trad livre) Cicero Tusculan disputations 581-2 In LONG A A SEDLEY D N The

Hellenistic philosophers p 398

45

os estoicos o objeto de assentimento eacute sempre uma impressatildeo que eacute a traduccedilatildeo do

termo grego phantasia Plutarco nos diz que uma impressatildeo eacute uma marca na alma92

sendo que Crisipo registra que eacute uma afecccedilatildeo ocorrida na alma93

quando atraveacutes da

visatildeo observamos um ramalhete de flores amarelas num vaso este objeto causa uma

modificaccedilatildeo na alma que eacute afetada provocando-nos a impressatildeo de que haacute um

ramalhete de flores amarela num vaso Assim o que eacute objeto de meu assentimento e

passa a ser a minha crenccedila eacute a impressatildeo de que existe um ramalhete de flores amarela

num vaso ldquoo ato de acreditar de assentir a uma impressatildeo eacute uma espeacutecie de aprovaccedilatildeo

agrave impressatildeo dizendo ldquosimrdquo a ela concordando que as coisas estejam certas que o

mundo realmente eacute como a impressatildeo retrata que sejardquo94

Como seria de se esperar o problema da impressatildeo e do assentimento diz

respeito agrave questatildeo do verdadeiro e do falso Se eu assentir a uma impressatildeo falsa terei

uma crenccedila falsa da realidade Por conseguinte o assentimento a uma impressatildeo

verdadeira iraacute originar uma crenccedila verdadeira sobre o mundo Poreacutem qual seria a este

respeito o criteacuterio que distinguiria o verdadeiro do falso

Nesse ponto entra em cena um tipo de impressatildeo que eacute o proacuteprio carro-chefe da

epistemologia estoica Chamada de phantasia kataleptike (impressatildeo cognitiva) ela

garante o conhecimento verdadeiro da realidade Eacute uma impressatildeo que apreende

precisamente o objeto tal qual ele eacute sem erros nem desvios conforme resume Sexto

Empiacuterico

A impressatildeo cognitiva eacute aquela que surge a partir do que eacute e eacute

marcada e impressa exatamente de acordo com o que eacute de tal modo

que natildeo poderia surgir a partir do que natildeo eacute Uma vez que eles [os

estoicos] sustentam que essa impressatildeo eacute capaz de apreender os

objetos com precisatildeo e eacute marcada com todas as suas peculiaridades de

forma artesanal eles dizem que tal impressatildeo tem cada um destes

fatores como atributo95

92

PLUTARCO On common conceptions 1084F-1085A (SVF 2847) In LONG A A SEDLEY D

N The Hellenistic philosophers p 238 93

AETIUS 4121-5 (SVF 254 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 237 94

ldquoThe act of believing of assenting to the impression is a kind of endorsement of the impression saying

lsquoyesrsquo to it agreeing that it gets things right that the world really is as the impression depicts it to berdquo

(trad livre) BRENNAN TOp cit p 59 95

ldquo(3) A cognitive impression is one which arises from what is and is stamped and impressed exactly in

accordance which what is of such a kind as could not arise from what is not Since they [the Stoics] hold

that this impression is capable of precisely grasping objects and is stamped with all their peculiarities in a

craftsmanlike way they say that it has each one of these as an attributerdquo EMPIRICUS Sextus Against

the professors 7247-52 (SVF 265) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers

p 243

46

Portanto enquanto muitas impressotildees satildeo falsas porque surgem a partir do que

natildeo eacute a impressatildeo cognitiva eacute veraz pois apenas surge a partir do que eacute De outra parte

ainda que surjam a partir do que eacute muitas impressotildees representam com falha o seu

objeto o que natildeo acontece com a impressatildeo cognitiva uma vez que o seu objeto

impressor eacute representado com exatidatildeo Assim phantasia kataleptike eacute gerada a partir

do que eacute e em perfeita correspondecircncia com o que eacute ldquopara ser kataleptic a impressatildeo

precisa ser acompanhada de um tipo de garantia se vocecirc estaacute experimentando esta

impressatildeo entatildeo as coisas satildeo realmente como a impressatildeo diz que elas satildeordquo96

E isso

soacute eacute possiacutevel porque para viver em conformidade com a natureza noacutes seres dotados de

razatildeo somos equipados pela proacutepria natureza com o instrumental necessaacuterio para

realizar distinccedilotildees precisas sobre as coisas97

Todavia eacute fundamental compreender que nem todo assentimento agraves impressotildees

eacute igual Um assentimento eacute considerado forte quando eacute insuscetiacutevel de ser alterado por

meio de questionamento racional Por sua vez a caracteriacutestica do assentimento fraco

reside na sua reversibilidade Essas diferenciaccedilotildees satildeo importantes para entender que

para os estoicos o conhecimento soacute eacute possiacutevel quando simultaneamente existe um

assentimento forte a uma impressatildeo cognitiva A ausecircncia de quaisquer destas

condiccedilotildees conduz agrave formaccedilatildeo de uma mera opiniatildeo (doxa)98

Registre-se que conceder assentimentos fortes a impressotildees cognitivas eacute algo

apenas reservado ao saacutebio o qual nunca tem opiniotildees nem estaacute sujeito ao engano99

Somente o saacutebio vive uma vida plena de coerecircncia racional pois nunca erra jamais seu

conjunto de crenccedilas incorre em contradiccedilatildeo muito menos concede assentimento a algo

caso exista a miacutenima possibilidade de que este assentimento possa ser revertido100

Uma

das consequecircncias desse alto grau de exigecircncia epistecircmica consiste no fato de que as

pessoas ordinaacuterias isto eacute todos noacutes inclusive os fundadores da escola estoica natildeo

temos conhecimento a respeito de nada pois soacute assentimos de modo fraco e por isso

possuiacutemos tatildeo-soacute opiniatildeo sobre as coisas101

96

ldquoTo be kataleptic the impression has to come with a sort of guarantee if you are having this

impression then things are really as the impression says they arerdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit

p 68 97

LONG A A SEDLEY D Op cit p 250 98

BRENNAN T Op cit p 69-70 LONG A A SEDLEY D Op cit p 256-257 99

CICERO Academica 141-2 (SVF 160) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 254 100

STOBAEUS 2111 18-1128 (SVF 3-548) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophershellip p 256 101

BRENNAN T Op cit p 72-73

47

Por uacuteltimo o impulso (hormecirc) pertence a uma especial classe de assentimento e

pode ser compreendido como o antecedente mental que gera uma accedilatildeo voluntaacuteria Antes

que no mundo externo uma accedilatildeo voluntaacuteria seja praticada deve ocorrer mentalmente

um evento que entenda que aquela accedilatildeo eacute apropriada para o caso Este evento eacute um

assentimento a uma impressatildeo ldquoimpulsoacuteriardquo102

Quando vejo um ramalhete de flores

amarelas numa loja e tenho a crenccedila de que ldquoseraacute uma boa coisa compraacute-la para colocar

no vaso da minha salardquo eu assinto a uma impressatildeo e minha mente se dirige para

realizar a accedilatildeo potencial contida na proposiccedilatildeo avaliativa da minha impressatildeo Por sua

vez o impulso como todo assentimento pode ser um episoacutedio de conhecimento ou de

opiniatildeo e por isso ldquoo Saacutebio deve-se dizer conhece o que ele estaacute fazendo e

especialmente o valor do que ele estaacute fazendo enquanto os natildeo-saacutebios desconhecem

tanto um quanto o outrordquo103

Com efeito na posse destes conceitos torna-se agora possiacutevel explanar

compreensivelmente o motivo pelo qual os estoicos desejam se livrar de todas as

emoccedilotildees (apatheia)

Primeiramente do ponto de vista linguiacutestico eacute necessaacuterio registrar que os

estoicos se referem ao presente tema por meio da palavra grega pathos cuja traduccedilatildeo

varia Long-Sedley verteram o termo por paixatildeo uma expressatildeo que hoje em dia para

a grande maioria das pessoas estranhas agrave sua etimologia jaacute natildeo reteacutem aquela ideia de

passividade derivada de passio uma vez que no uso comum da liacutengua inglesa e da

portuguesa paixatildeo busca designar de modo mais saliente um sentimento arrebatador

muitas vezes de caraacuteter eroacutetico Esta traduccedilatildeo pode se mostrar bastante conveniente ao

reduzir a uma questatildeo etimoloacutegica a disputa teoacuterica entre peripateacuteticos (metriopatheia) e

estoicos (apatheia) Ciente disso Tieleman prefere o termo ldquoafecccedilatildeordquo que natildeo tem os

problemas da atual significaccedilatildeo da palavra paixatildeo e ainda tem a vantagem de respeitar

a ideia de passividade e de um outro importante significado da palavra pathos que eacute a de

doenccedila Segundo defende eacute neste uacuteltimo sentido que em importantes aspectos Crisipo

utiliza o termo104

Neste mesmo sentido Buddensiek tambeacutem prefere o termo

afecccedilatildeo105

Preferimos no entanto utilizar o termo emoccedilatildeo porque concordando com

102

GRAVER M Op cit p 26-27 BRENNAN T Op cit p 86-88 103

ldquoThe Sage we might say knows what he is doing and especially the value of what he is doing while

the non-Sage knows neitherrdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit p 103 104

TIELEMAN T Op cit p 15-16 105

BUDDENSIEK Friedmann Stoa und epikur affect als defekte oder als weltbezug In

LANDWEER Hilge RENZ Ursula (hrsg) Klassische Emotionstheorien Von Platon bis Wittgenstein

BerlinNew York Walter de Gruyter 2008 p 69-93

48

Graver noacutes designariacuteamos com esta palavra os exemplos em que os estoicos utilizam o

termo pathos106

Ademais considerando que este trabalho natildeo trata exclusivamente

sobre a filosofia estoica utilizar o termo emoccedilatildeo se adequa aos propoacutesitos de

harmonizaccedilatildeo linguiacutestica do estudo

Dito isso para os estoicos as emoccedilotildees satildeo consideradas um ldquoimpulso que eacute

excessivo e desobediente aos ditados da razatildeo ou um movimento da alma que eacute

irracional e contraacuterio agrave naturezardquo107

Desta definiccedilatildeo muito se pode extrair

primeiramente as emoccedilotildees satildeo enquadradas como um impulso mas um impulso

qualificado de extravagante e por isso transborda os limites que a razatildeo prescreve

Num segundo momento diz-se que eacute o proacuteprio movimento irracional da alma que eacute

contraacuterio agrave natureza Em suma a referida conceituaccedilatildeo em poucas palavras demonstra

o quanto as emoccedilotildees estatildeo numa posiccedilatildeo antagocircnica aos fins da filosofia eacutetica estoica

porque elas contrariam tudo o que haacute de mais caro nesta escola de pensamento as

emoccedilotildees satildeo excessivas contraacuterias agrave natureza irracionais e desobedientes aos

comandos do logos

Uma singularidade do pensamento estoico que tambeacutem ajuda a compreender

esse posicionamento diz respeito agrave sua concepccedilatildeo de alma Conforme visto

anteriormente Aristoacuteteles concebe a alma dividida numa parte racional e numa parte

natildeo-racional sendo que uma porccedilatildeo desta uacuteltima tem a particularidade de ouvir e

obedecer a razatildeo Assim porque a virtude (excelecircncia) do todo depende da virtude

(excelecircncia) das partes o bom funcionamento da parte natildeo-racional eacute imprescindiacutevel na

eacutetica aristoteacutelica e por isso as emoccedilotildees tem um espaccedilo tatildeo importante e satildeo encaradas

de maneira positiva Ter uma boa disposiccedilatildeo emocional significa ser devidamente

afetado pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias e isso contribui decisivamente

para a aquisiccedilatildeo de uma vida feliz

Eacute bem verdade que as emoccedilotildees tambeacutem tecircm um espaccedilo muito importante na

filosofia estoica mas eacute difiacutecil afirmar que satildeo encaradas de maneira positiva a alma

estoica natildeo eacute dividida em partes nem haacute porccedilatildeo irracional pois ela eacute pura razatildeo Diz-se

entatildeo que ela eacute monoliacutetica sem possibilidade de haver conflito entre as partes ldquoos

estoicos tambeacutem afirmavam em oposiccedilatildeo aos platonistas e aos aristoteacutelicos que os

106

GRAVER M Op cit p 14-15 107

ldquoThey [the Stoics] say that passion is impulse which is excessive and disobedient to the dictates of

reason or a movement of soul which is irrational and contrary to naturerdquo (trad livre) STOBAEUS

2888-906 (SVF 3378 389 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers

p 410

49

homens satildeo racionais no sentido de que satildeo apenas racionaisrdquo108

Dessa forma as

emoccedilotildees tambeacutem se encontram em contrariedade agrave concepccedilatildeo de alma defendida pelos

fundadores estoicos

Os estoicos agrupam as emoccedilotildees em quatro grandes gecircneros dentro dos quais se

acomodam emoccedilotildees especiacuteficas

Desejo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja boa de modo que

devemos persegui-la

Medo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja ruim de modo que

devemos evitaacute-la

Prazer eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute boa de modo que

devemos ficar contentes com isso

Dor eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim de modo que

devemos ficar abatidos com isso109

Em primeiro lugar observa-se que a divisatildeo das emoccedilotildees eacute feita por criteacuterio

temporal e por criteacuterio valorativo o desejo (epithumia) e o medo (phobos) satildeo

direcionados a algo futuro enquanto o prazer (hedone) e a dor (lupe) concernem a algo

que transcorre no momento presente Por sua vez o desejo e o prazer atribuem a um

objeto um valor positivo (bom) enquanto o medo e a dor imputam a algo um valor

negativo (ruim) Em todos os casos estamos diante de uma opiniatildeo isto eacute um

assentimento fraco (reversiacutevel) a uma impressatildeo

Exemplificativamente dentro do gecircnero ldquodesejordquo enquadram-se as seguintes

emoccedilotildees em espeacutecie raiva rancor exasperaccedilatildeo amor eroacutetico saudade acircnsia No

gecircnero ldquomedordquo relutacircncia receio consternaccedilatildeo vergonha supersticcedilatildeo pavor pacircnico

No gecircnero ldquodorrdquo inveja rivalidade ciuacuteme compaixatildeo luto ansiedade preocupaccedilatildeo

anguacutestia tristeza agonia No gecircnero ldquoprazerrdquo schadenfreude encantamento etc110

Ora em vista das definiccedilotildees expostas para os estoicos as emoccedilotildees satildeo impulsos

(os antecedentes mentais da accedilatildeo) e natildeo passam de opiniatildeo isto eacute assentimento ao

falso assentimento fraco (aquele que natildeo sobrevive a questionamento racional) Assim

quem atua guiado pelas emoccedilotildees age mal porque estaraacute sempre incidindo em episoacutedios

108

ldquoThe Stoics also claimed in opposition to Platonists and Aristotelians that humans are rational in the

sense that they are only rationalrdquo (trad livre) BRENNAN Tad The old stoic theory of emotions In

SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy

Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 23 BUDDENSIEK F Op cit p 72-73 109

ldquoDesire is the opinion that some future thing is a good of such a sort that we should reach out for it

Fear is the opinion that some future thing is an evil of such a sort that we should avoid it Pleasure is the

opinion that some present thing is a good of such a sort that we should be elated about it Pain is the

opinion that some present thing is an evil of such a sort that we should be depressed about itrdquo (trad

livre) BRENNAN T Op cit 2005 p 93 110

CICERO Tusculan disputations trad Margaret Graver ChicagoLondon The University of Chicago

Press 2002 (416) p 45

50

de engano em relaccedilatildeo ao mundo arrependendo-se posteriormente do que fez Mas por

que isso ocorre

Segundo Crisipo emoccedilotildees satildeo sobretudo avaliaccedilotildees111

e por assim serem

atribuem um determinado valor a algo quando algueacutem deseja fama beleza riqueza

amor eroacutetico julga que estas coisas satildeo boas e necessaacuterias agrave sua felicidade e age em

direccedilatildeo agrave sua conquista Poreacutem ao assim proceder natildeo faz mais do que contrariar toda

eacutetica estoica porque tudo isso satildeo apenas indiferentes a uacutenica coisa boa eacute a virtude No

medo avaliamos equivocadamente a realidade entendendo que algo eacute ruim quando na

verdade o uacutenico mal eacute o viacutecio E ainda que algueacutem avalie algo adequadamente

atribuindo o valor a algo que verdadeiramente lhe corresponda as emoccedilotildees continuam

sendo irracionais porque o assentimento concedido eacute fraco e por isso vacilante

possibilitando que entremos em contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves nossas crenccedilas e condutas112

Enfim as emoccedilotildees satildeo inconsistentes e quem age impulsionado por elas eacute incapaz de

perceber as coisas como satildeo porque se encontra num estado de cegueira conforme

resume Crisipo

A raiva [orgecirc] eacute cega frequentemente impede que vejamos coisas que

satildeo oacutebvias e frequentemente se coloca no caminho de coisas que [jaacute]

estatildeo sendo compreendidasporque as emoccedilotildees tatildeo logo comecem a

atuar expulsam o raciociacutenio e as evidecircncias em contraacuterio e nos

empurram violentamente em direccedilatildeo a accedilotildees contraacuterias agrave razatildeo113

Essa explanaccedilatildeo nos leva a indagar o que efetivamente sentiria o saacutebio estoico

porque todas as emoccedilotildees acima definidas estatildeo em total contrariedade com as

caracteriacutesticas de sua figura Assim para natildeo tornaacute-lo um ser apaacutetico e insensiacutevel foi

construiacutedo um conjunto de sentimentos compatiacutevel com as qualidades do saacutebio A esta

ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees deu-se o nome de eupatheiai (eupatheia no singular)

que pode ser traduzido por ldquoboas emoccedilotildeesrdquo ou ldquosentimentos apropriadosrdquo mas que

Ciacutecero preferiu utilizar o termo ldquoconsistecircnciardquo (constatiae) Graver registra que isso

tanto pode ser uma traduccedilatildeo criativa do autor romano quanto uma terminologia

alternativa perdida do grego De toda forma consistecircncia acaba por descrever as

propriedades destes sentimentos do saacutebio que satildeo experimentados de forma racional

111

LAEacuteRCIO D Op cit (VII111) p 217 112

BRENNAN T Op cit 2005 p 96 113

ldquoAnger [orgecirc] is blind it often prevents our seeing things that are obvious and it often gets in the way

of things which are ltalreadygt being comprehended For the passions once they have started drive out

reasoning and contrary evidence and push forward violently towards actions contrary to reasonrdquo (trad

livre) PLUTARCO De virtute morali 10 (Mor 450c) apud HARRIS William V Restraining rage the

ideology of anger control in classical antiquity CambridgeMassachusetts Harvard University Press

2001 p 370

51

com prudecircncia sem engano em relaccedilatildeo agrave realidade e que atribuem os predicados de

bom e ruim agraves uacutenicas coisas que satildeo de fato boas e ruins (virtudes e viacutecios)

Assim o saacutebio natildeo sente medo mas cautela que eacute o conhecimento de um mal

futuro de modo a evitaacute-lo Natildeo haacute prazer no saacutebio mas alegria que eacute o conhecimento de

que alguma coisa presente eacute boa de sorte que se deve ficar contente com isso Ele natildeo

experimenta desejo mas vontade ou voliccedilatildeo (boulesis) que eacute o conhecimento de que

alguma coisa futura eacute boa de modo que se deve buscaacute-la114

Quanto agraves emoccedilotildees em

espeacutecie sobreviveram poucos exemplos a reverecircncia e a modeacutestia subordinam-se agrave

cautela Na alegria encontram-se o enlevo o contentamento e a equanimidade e por

fim na vontade benevolecircncia respeito amizade e afetuosidade Todavia em relaccedilatildeo agrave

dor (opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim) percebe-se que natildeo existe nenhum

eupatheia correspondente e a justificativa para isso reside no fato de que como a uacutenica

coisa ruim eacute o viacutecio e o saacutebio se livrou de todos os viacutecios ele simplesmente natildeo sente

que alguma ruim se passa com ele Assim diante da humilhaccedilatildeo da miseacuteria da fome

da doenccedila o saacutebio natildeo eacute tomado por emoccedilotildees dolorosas muito menos se torna um

sujeito infeliz porque ele adquiriu a autossuficiecircncia e sabe que tudo isso natildeo passa de

indiferentes

Frise-se que todos esses sentimentos estatildeo de acordo com a natureza e desde

que o saacutebio eacute o uacutenico que assente de modo forte a impressotildees cognitivas nunca se

arrepende posteriormente ao agir guiado por eupatheiai Ainda que algo

ordinariamente assustador se passe a exemplo de um suacutebito barulho amedrontador a

alma do saacutebio apenas se contrai leve e rapidamente por efeito de um movimento

involuntaacuterio mas muito logo percebe que nada tem para assentir nestas impressotildees e

por isso nenhum medo lhe transcorre porque ele natildeo experimenta as emoccedilotildees do

homem inferior

Assim tendo sido exposta a doutrina estoica das emoccedilotildees e percebido que o

saacutebio estoico atinge um estado que ao se livrar de toda pathecirc libertou-se do falso e

passou a atribuir valor agrave uacutenica coisa que realmente merece ser estimada (a virtude)

parte-se agora para compreender em que medida esse posicionamento influencia a

retoacuterica estoica considerando que as emoccedilotildees tradicionalmente participavam de

maneira bastante marcante da praacutetica do orador

114

BRENNAN T Op cit 2005 p 98 CIacuteCERO Op cit 2002 (412-14) p 44 GRAVER M Op

cit 2007 p 51-53 LAEacuteRCIO D Op cit VII114-117 p 221

52

Em anaacutelise da obra aristoteacutelica observou-se que embora inicialmente criacutetico de

uma retoacuterica exclusivamente centrada nas emoccedilotildees e que desviasse do assunto objeto de

controveacutersia o Estagirita muda de entendimento e faz uma explanaccedilatildeo detalhada das

emoccedilotildees e prepara satisfatoriamente o orador para utilizaacute-las em sua praxis Por sua

vez nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco as emoccedilotildees atuam destacadamente na

construccedilatildeo de uma vida virtuosa e sem elas eacute impossiacutevel tomar boas decisotildees na vida

comum Embora seja aceitaacutevel distinguir entre emoccedilotildees adequadas e inadequadas de

acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas tal classificaccedilatildeo natildeo invade o campo

da retoacuterica aristoteacutelica que se constitui num domiacutenio proacuteprio jaacute que o orador eacute

instruiacutedo para utilizar no discurso inclusive as emoccedilotildees perversas

No que concerne agrave retoacuterica estoica e comparativamente agrave obra estudada de

Aristoacuteteles dispotildee-se nitidamente de bem menos material para consulta Laeacutercio

aponta que tanto Zenatildeo quanto Crisipo escreveram manuais de retoacuterica poreacutem nada foi

preservado115

Assim o que de fato temos satildeo comentaacuterios especialmente em relaccedilatildeo

ao desempenho de oradores estoicos romanos que ajudam a construir apenas em linhas

bem gerais o que teria sido a teoria retoacuterica defendida pelos estoicos116

Primeiramente por Laeacutercio sabe-se que a retoacuterica eacute definida pelos estoicos

como a ciecircncia de bem falar numa narrativa contiacutenua e a dialeacutetica como a ciecircncia de

falar corretamente por meio de perguntas e respostas sendo que ambas compotildeem a

parte loacutegica da exposiccedilatildeo filosoacutefica A dialeacutetica eacute considerada uma virtude e por isso o

saacutebio que possui todas as virtudes tambeacutem eacute um mestre na dialeacutetica que o permite

diferenciar o verdadeiro do falso a perceber o que eacute meramente plausiacutevel e ambiacuteguo de

modo a nunca cair em truques argumentativos117

Zenatildeo informa Ciacutecero utiliza uma metaacutefora para explicar a diferenccedila entre a

dialeacutetica e a retoacuterica a dialeacutetica seria representada com uma matildeo de punhos cerrados

uma vez que o seu estilo eacute compacto Por sua vez a retoacuterica atraveacutes da palma da matildeo

aberta dado o estilo expansivo do discurso dos oradores Ele defendia tambeacutem que a

retoacuterica natildeo era algo exclusivo para oradores mas tambeacutem pertence ao domiacutenio dos

115

LAEacuteRCIO D Op cit (VII 4-5) p 115 201-202 e 317 116

ATHERTON Catherine Hand over fist the failure of stoic rhetoric In Classical quarterly 38

1988 p 393 117

LAEacuteRCIO D Op cit p 42 e 47-48

53

filoacutesofos118

Sobre este ponto Ciacutecero interessantemente relata que o estoicismo eacute a

uacutenica escola que considera a retoacuterica uma virtude e uma sabedoria119

E se de fato eacute uma virtude entatildeo a retoacuterica estoica por igual estaacute sob os

cuidados do saacutebio e em assim sendo eacute de se esperar que ela apresente pelo menos

algumas peculiaridades A primeira delas jaacute se pode antever pela proacutepria definiccedilatildeo

apresentada anteriormente por Laeacutercio natildeo encontramos referecircncia a qualquer

finalidade persuasiva em sua conceituaccedilatildeo como encontramos em Platatildeo Aristoacuteteles e

outros autores de modo que o orador estoico natildeo discursa para convencer mas para

bem falar no sentido de falar corretamente

Ciacutecero eacute enfaacutetico ao detalhar uma seacuterie de dificuldades nesta retoacuterica O primeiro

problema diz respeito agrave transferecircncia do modelo da dialeacutetica para a retoacuterica Nesse

sentido Brutus assevera ldquo[] praticamente todos os adeptos da escola estoica satildeo

muito haacutebeis em argumentos precisos trabalham por regras e sistema e satildeo bons

arquitetos no uso das palavras mas ao levaacute-los da discussatildeo para a oratoacuteria percebe-se

o quatildeo satildeo pobres e sem recursosrdquo120

Concordando com a afirmaccedilatildeo Ciacutecero diz que na

verdade a atenccedilatildeo dos estoicos estaacute absorvida na dialeacutetica e por isso utilizam um estilo

que eacute muito compacto e discursivo para o emprego no foacuterum judiciaacuterio ou na

assembleia popular121

Tambeacutem eacute na dialeacutetica e natildeo na retoacuterica que se concentra o ensino sobre as cinco

virtudes de estilo hellenismus que consiste no uso de uma linguagem sem erro

gramatical e livre de vulgaridades clareza que eacute o uso de uma linguagem apresentada

de maneira inteligiacutevel concisatildeo ou brevidade que eacute o emprego de palavras natildeo mais do

que o estritamente necessaacuterio para apresentar um tema adequaccedilatildeo o uso de um estilo

de linguagem apropriado ao tema distinccedilatildeo que consiste em evitar o coloquialismo122

Ao utilizar todas essas recomendaccedilotildees no terreno da oratoacuteria Ciacutecero diz que isso resulta

num estilo sem fluecircncia sem vida magro compacto e insignificante ldquose algum homem

118

CICERO Op cit 2004 II17 p 32 119

CICERO On the orator book III trad H Rackham CambridgeMassachusetts Harvard University

Press 1942 (III 65) p66 120

ldquo[] pratically all adherents of the Stoic school are very able in precise argument they work by rule

and system and are fairly architects in the use of the words but transfer them from discussion to

oratorical presentation and they are found poor and unresourcefulrdquo (trad livre) CICERO Op cit

1962 (118) p 107 121

CICERO Op cit 1962 (119-120) p 107-108 122

LAEacuteRCIO D Op cit (VII-59) p 167-168 ATHERTON C Op cit p 396

54

aconselhar esse estilo seria apenas no sentido de que ele eacute inadequado para um

oradorrdquo123

Todavia eacute no campo das emoccedilotildees que a eacutetica estoica tem sua influecircncia decisiva

para a retoacuterica Uma vez que a figura normativa do saacutebio se livrou de toda pathe a

retoacuterica estoica natildeo faz uso de emoccedilotildees tradicionalmente tatildeo importantes para o orador

tais como o medo a compaixatildeo a ira ou a indignaccedilatildeo porque tudo isso satildeo impulsos

excessivos irracionais contraacuterios agrave natureza sendo errado corromper a cogniccedilatildeo dos

destinataacuterios do discurso por meio de tais artifiacutecios Assim ldquoo assentimento do puacuteblico

natildeo pode ser conquistado pelo apelo agrave compaixatildeo ou agrave admiraccedilatildeo ou despertando a sua

ira ou jogando com o seu esnobismo estupidez ou vulgaridaderdquo124

Eacute certo que o saacutebio

experimenta alguns bons sentimentos (eupatheiai) mas ainda que permitido o seu uso

no discurso o seu efeito praacutetico eacute nulo

Embora expressamente nomeada como ldquoretoacutericardquo pelos estoicos eacute difiacutecil

encaixar esse modelo discursivo dentro do quadro de referecircncias que entendemos por

retoacuterica isto eacute uma disciplina preocupada em fornecer os instrumentos necessaacuterios agrave

persuasatildeo pelo discurso Atherton nesse sentido chega agrave conclusatildeo de que ldquo[] natildeo

existe tal coisa como uma lsquoretoacuterica estoicarsquo e discuti-la natildeo eacute possiacutevel natildeo (a desculpa

usual) porque inexiste evidecircncia mas porque natildeo existe nada para falar a seu

respeitordquo125

Por isso ao comentar sobre os manuais de retoacuterica de Crisipo e de

Cleantes Ciacutecero diz que eles satildeo muito bons para quem quisesse ficar calado126

Todavia a despeito do evidente paradoxo de ensinar uma retoacuterica que natildeo tinha

o miacutenimo interesse em persuadir existia de fato uma retoacuterica estoica e ela era objeto

de ensino e de praacutetica E tanto era levada a seacuterio que existiam oradores romanos que se

guiavam por este meacutetodo Ciacutecero cita os nomes de Tuberius Fannius Rutilius e Cato

Dentre estes o uacutenico estoico que tinha perfeita eloquecircncia (summam eloquentiam) era

Cato mas a justificativa para isto eacute bem simples Cato aprendeu o que tinha de bom

para aprender com a filosofia estoica mas a retoacuterica mesmo ele estudou e praticou com

123

ldquoif any man commends this style it will only be with the qualification that it is unsuitable to an oratorrdquo

(trad livre) CICERO On the orator book II trad E W Sutton CambridgeMassachusetts Harvard

University Press 1942 (159) p 313 124

ldquoan audiencersquos assent cannot be secured by winning its pity or admiration or by arousing its anger or

by playing on its snobbery or stupidity or vulgarityrdquo (trad livre) ATHERTON C Op cit p 411

Nesse mesmo sentido cf KONSTAN D Op cit p 421 125

ldquo[hellip] there is no such thing as lsquoStoic rhetoricrsquo and discussing it is not possible not (the usual excuse)

because there is no evidence but because there is nothing to talk aboutrdquo ATHERTON C Op cit p

426 126

CICERO Op cit 2004 (IV-7) p 91

55

os mestres do discurso Publius Rutilius Rufus num outro extremo entrou para histoacuteria

como um exemplo de fracasso desse meacutetodo ao se defender no estilo estoico (triste

seco e severo) de uma injusta acusaccedilatildeo de extorsatildeo se recusou a utilizar de eloquecircncia

ou fazer qualquer apelo emotivo e acabou condenado assim como Soacutecrates127

Uma vez finalizada a exposiccedilatildeo a respeito da eacutetica e da retoacuterica estoica

finalmente temos em matildeo o posicionamento a respeito das emoccedilotildees de duas respeitadas

fontes da Antiguidade

De um lado e em resumo temos a abordagem de Aristoacuteteles que tanto em sua

eacutetica quanto na sua retoacuterica esboccedila uma visatildeo positiva a respeito do tema Haacute uma forte

articulaccedilatildeo do Estagirita no sentido de destacar a relevacircncia das emoccedilotildees nestes dois

campos No fim do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco destaca-se que a virtude da totalidade

da alma eacute dependente da virtude de suas partes (uma racional e outra natildeo-racional) No

Livro II explana-se de que modo a parte natildeo-racional iraacute desempenhar bem a sua

funccedilatildeo Assim enfatiza-se o quatildeo importante eacute ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que

significa ser afetado adequadamente pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias

Desse modo as emoccedilotildees satildeo sumamente relevantes para uma boa decisatildeo eacutetica pois

para o agente moral aristoteacutelico eacute impossiacutevel deliberar bem apenas com racionalidade

strictu sensu Por outro lado conforme jaacute frisamos a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees

adequadas e inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas

realizada no Livro II da Eacutetica a Nicocircmaco natildeo invade o domiacutenio da retoacuterica muito

menos inviabiliza a tarefa persuasiva do orador

De seu turno o posicionamento estoico a respeito das emoccedilotildees necessita ser lido

de acordo com a sua peculiar sistemaacutetica filosoacutefica o fim do progresso para os estoicos

seria alcanccedilar a compreensatildeo correta do mundo128

e atingir uma felicidade

autossuficiente As emoccedilotildees portanto estatildeo na contramatildeo de tal propoacutesito porque por

meio delas sempre avaliamos equivocadamente a realidade atribuiacutemos valores a bens a

que natildeo deveriacuteamos dar a miacutenima importacircncia agimos sobretudo mal pois natildeo

percebemos as coisas como elas realmente satildeo No entanto todo esse sistema filosoacutefico

invadiu o domiacutenio da retoacuterica originando um meacutetodo no miacutenimo sui generis porque

estava em total contraposiccedilatildeo com os fins de um discurso persuasivo A retoacuterica estoica

127

CICERO Op cit 1942 (I-229-230) CICERO Op cit 1962 (113-116) p 103-105 128

ldquoFor the founding Stoics the endpoint of progress was simply that one should come to understand the

world correctlyrdquo GRAVER M Op cit p 210

56

natildeo emprega emoccedilotildees natildeo utiliza ornamentos valoriza o miacutenimo de palavras possiacutevel e

coloca secamente os fatos para serem assentidos pelo puacuteblico

Por uacuteltimo independentemente das peculiaridades de cada sistema filosoacutefico

exposto uma coisa havia em comum entre Aristoteacuteles e os estoicos as emoccedilotildees eram

levadas extremamente a seacuterio e ambos natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar

das emoccedilotildees Mesmo para o estoicismo que se mostra uma escola tatildeo sistemaacutetica tatildeo

loacutegica que valoriza tanto a coerecircncia e a consistecircncia racional natildeo se pode negar que as

emoccedilotildees (ainda que hostilmente) entrem de maneira destacada em seu sistema

filosoacutefico Conforme destaca Sorabji os estoicos realizaram um debate de alto niacutevel

sobre o tema e ateacute hoje satildeo lembrados por isso129

129

SORABJI Richard Chrysippus ndash Posidonius ndash Seneca a high-level debate on emotion In

SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy

Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 149

57

2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A

INTERDISCIPLINARIDADE

21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo

No Capiacutetulo anterior iniciamos a exposiccedilatildeo deste trabalho oferecendo um

panorama sobre as origens da retoacuterica O objetivo da contextualizaccedilatildeo foi evidenciar

que o desenvolvimento do estudo das emoccedilotildees no discurso soacute foi possiacutevel dentro de

uma atmosfera que valorizava o debate e a fala persuasiva em puacuteblico Portanto foi

neste ambiente Grego livre e altamente retoacuterico que se observou a necessidade de se

refletir a respeito da dimensatildeo emotiva do discurso porque se chegou agrave conclusatildeo de

que a formaccedilatildeo de um juiacutezo acerca de um determinado assunto eacute dependente do estado

emocional do sujeito

Jaacute este Capiacutetulo tem outro propoacutesito pois num vieacutes mais praacutetico objetiva

investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash

MTA130

que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de

Toulmin e de Perelman-Tyteca ambas datadas de 1958 (respectivamente Os Usos do

Argumento e o Tratado da Argumentaccedilatildeo ou a Nova Retoacuterica) Aleacutem de averiguar a

relevacircncia das emoccedilotildees na MTA tambeacutem procuraremos criteacuterios de anaacutelise e de

julgamento da dimensatildeo emotiva do discurso que possam ser uacuteteis para o Capiacutetulo III

momento em que iremos realizar a anaacutelise e a avaliaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo de decisotildees

do Supremo Tribunal Federal - STF

Assim tal como fizemos no Capiacutetulo anterior tentaremos fornecer alguma

contextualizaccedilatildeo ao aparecimento da MTA pois como natildeo existe conhecimento

humano a-histoacuterico toda novidade do pensamento vem comprometida com os seus

problemas de eacutepoca

Para tanto a nossa intenccedilatildeo consiste em perquirir que tipo de discurso

caracterizou o contexto poliacutetico europeu que precedeu o surgimento da MTA A poliacutetica

sempre seraacute uma influecircncia importante no que diz respeito a uma teoria que se proponha

agrave anaacutelise e agrave avaliaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo E isso natildeo apenas porque a retoacuterica que eacute o

seu antecedente teoacuterico considerava desde o iniacutecio o discurso poliacutetico como um dos

130

Utilizamos a expressatildeo ldquoModerna Teoria da Argumentaccedilatildeordquo para contrastar com a Teoria da

Argumentaccedilatildeo aristoteacutelica aderindo agrave terminologia de Cristof Rapp e Tim Wagner RAPP Cristof

WAGNER Tim On some aristotelian sources of modern argumentation theory In Argumentation

Journal vol 27 Issue 1 2013 p 7-30

58

seus gecircneros por excelecircncia de discurso mas porque o discurso da esfera poliacutetica por

ter a qualidade de atingir a todos indistintamente acaba por ser um ponto comum de

reflexatildeo sobre a forma de teorizar a argumentaccedilatildeo

Assim e considerando tal finalidade eacute difiacutecil escolher outro evento poliacutetico que

natildeo os movimentos totalitaacuterios para falar neste toacutepico E desde jaacute sobressai uma

especiacutefica forma de comunicaccedilatildeo atraveacutes do qual tais movimentos estabeleciam contato

com a massa a propaganda

Embora hoje a palavra ldquopropagandardquo seja frequentemente associada a uma

informaccedilatildeo de conteuacutedo enganoso Kallis lembra que no iniacutecio do seacuteculo XX ela natildeo

desfrutava de tatildeo maacute-fama pois era empregada de modo mais isento a fim de

descrever um modo de gestatildeo da informaccedilatildeo com o objetivo de comunicar a um grande

nuacutemero de indiviacuteduos e assim obter uma especiacutefica resposta destes Dessa forma a

propaganda como espeacutecie de comunicaccedilatildeo e de persuasatildeo caracteriacutestica da

modernidade aparece com o objetivo de (i) suprir a enorme demanda de informaccedilatildeo e

de formaccedilatildeo de opiniatildeo da crescente esfera puacuteblica (ii) facilitar atraveacutes de variados

meios a absorccedilatildeo de tais informaccedilotildees131

Poreacutem para aleacutem da simples difusatildeo de informaccedilatildeo a propaganda sendo

absorvida na engrenagem do Estado aparece com outros objetivos tais como a

integraccedilatildeo a orientaccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo a continuidade a diversatildeo Diante de

sociedades saturadas com tanta informaccedilatildeo a propaganda possibilita a criaccedilatildeo de um

ambiente comunicativo comum carregado de siacutembolos significados e desejos

compartilhados Ela tambeacutem orienta e mobiliza o indiviacuteduo em direccedilatildeo a determinados

comportamentos e accedilotildees traz uma narrativa que promove uma continuidade no tempo

conectando passado presente e futuro por fim tem a capacidade de promover diversatildeo

e relaxamento evitando o cansaccedilo132

Todos estes objetivos satildeo de suma importacircncia no contexto de naccedilotildees em guerra

e eacute em tal conjuntura histoacuterica que o debate acerca de uma abordagem sistemaacutetica sobre

a propaganda se desenvolve conforme explana Kallis

Natildeo eacute coincidecircncia que o debate sobre a formulaccedilatildeo de uma

abordagem sistemaacutetica para a lsquopropagandarsquo emergiu no contexto da

Primeira Guerra Mundial na Alemanha e em outros lugares Numa

eacutepoca de completa mobilizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo de um objetivo

nacional (tal como a vitoacuteria no confronto militar) a necessidade por

131

KALLIS Aristotle A Nazi propaganda and the second world war New York Palgrave

Macmillan 2005 p 1 132

Id ibid p 2

59

estrateacutegias de informaccedilatildeo metoacutedicas e eficientes que viessem reforccedilar

a moral do front nacional e mobilizassem toda a sociedade era

particularmente destacada133

Ellul ressalta que para atingir seus propoacutesitos comunicativos e ser de fato

efetiva a propaganda precisa ser total isto eacute ela necessita utilizar todas as miacutedias

disponiacuteveis no momento (televisatildeo raacutedio filme jornal revista internet etc) Uma vez

que cada tecnologia por suas proacuteprias caracteriacutesticas tem uma esfera de alcance

limitada haacute necessidade de que uma miacutedia complemente a outra de modo a realizar

uma completa dominaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo134

Em relaccedilatildeo aos efeitos sobre os seus destinataacuterios a propaganda eacute acusada de

irrestrita manipulaccedilatildeo Natildeo haacute mais pensamento e accedilatildeo orientados por uma ideologia

espontacircnea Tudo resta condicionado pela trilha deliberadamente condutora da

propaganda Atraveacutes da criaccedilatildeo de estereoacutetipos enfraquece-se a capacidade de criacutetica e

de reflexatildeo da populaccedilatildeo Os detalhes e as contradiccedilotildees de opiniotildees individuais satildeo

eliminados a fim de que tudo reste homogeneizado Quanto mais potente a propaganda

mais fraco eacute o dissenso jaacute que o pensamento puacuteblico se esgota em raciociacutenios

simploacuterios maniqueiacutestas sem qualquer complexidade135

Ademais apoacutes a ingerecircncia da propaganda o que antes eram apenas sentimentos

sociais vagos e dispersos transformam-se em ideias delineadas Ellul aponta um dos

grandes trunfos para a propaganda atingir tamanho sucesso persuasivo o uso das

emoccedilotildees ldquoIsto eacute ainda mais notaacutevel porque a propaganda como vimos age muito mais

atraveacutes de choque emocional do que por convicccedilatildeo racionalrdquo136

Nada eacute mais interessante poreacutem do que ler os proacuteprios mentores da propaganda

discorrerem a respeito do tema a fim de realmente compreender de que modo eles

enxergavam o papel da propaganda no seu projeto poliacutetico e qual valor atribuiacuteam agraves

emoccedilotildees no intento persuasivo A este respeito no arquivo alematildeo de propaganda satildeo

valiosas as informaccedilotildees contidas no perioacutedico mensal do partido nazista Unser Wille

133

ldquoit is no coincidence that the debate about the formulation of a systematic approach to lsquopropagandarsquo

emerged in the context of the First World War in Germany and elsewhere At a time of full mobilisation

for the attainment of a national goal (such as victory in the military confrontation) the need for

methodical and efficient information strategies that would bolster the morale of the home front and

mobilise society was particularly highlightedrdquo (trad livre) Id ibid p 2 134

ELLUL Jacques Propaganda the formation of menrsquos attitudes trad Konrad Kellen e Jean Lerner

New York Vintage Book 1973 p 9 135

Id ibid p 201-206 136

ldquoThis is all the more remarkable because propaganda as we have seen acts much more through

emotional shock than through reasoned convictionrdquo (trad livre) Id ibid p 204

60

und Weg (Nosso Desejo e Caminho) publicado entre 1931 a 1941 e direcionado a

instruir os seus propagandistas

No perioacutedico de inauguraccedilatildeo em 1931 Goebbels foi bastante direto em afirmar

a suma importacircncia da propaganda no afatilde de alcanccedilar o almejado poder poliacutetico A

propaganda nacional socialista teria a missatildeo de transformar o caraacuteter da populaccedilatildeo e

para tanto precisaria traduzir numa linguagem clara e acessiacutevel toda a teoria nazista

Com a ajuda indispensaacutevel da engrenagem propagandiacutestica o partido ganharia novos

membros e eleitores e convenceria a todos a respeito do acerto de suas ideias

Assim a propaganda nacional-socialista eacute o aspecto mais importante

da nossa atividade poliacutetica Ela estaacute no primeiro plano dos nossos

objetivos praacuteticos Sem ela todo o nosso conhecimento seria inuacutetil

sem efeito

[]

A propaganda nacional-socialista serve para educar o povo Sua tarefa

natildeo eacute apenas ganhaacute-los para as tarefas de hoje mas ajudar na

transformaccedilatildeo de caraacuteter das grandes massas Estamos convencidos de

que uma nova poliacutetica na Alemanha soacute eacute possiacutevel apoacutes uma completa

transformaccedilatildeo do nosso caraacuteter nacional depois de toda uma nova

maneira nacional de pensar137

Em 1934 num artigo intitulado Politische Propaganda (Propaganda Poliacutetica)

Schulze-Wechsungen novamente enfatizou o papel da propaganda nacional socialista no

intuito de conquistar a populaccedilatildeo alematilde Para isso exalta-se o poder que a propaganda

possui de trabalhar as emoccedilotildees do povo pois sem isso restaria impossiacutevel atingir

convincentemente as massas

Poucas pessoas satildeo capazes de trazer o coraccedilatildeo e a mente em pleno

acordo A propaganda frequentemente tem particular importacircncia na

medida em que fala para as emoccedilotildees em vez de para o puro intelecto

O indiviacuteduo bem como as massas estatildeo sujeitos a lsquoatitudesrsquo suas

emoccedilotildees determinam sua condiccedilatildeo O poliacutetico natildeo pode friamente

ignorar essas emoccedilotildees ele deve reconhecer e compreendecirc-las se

deseja escolher o que eacute adequado da propaganda para atingir seus

objetivos138

137

ldquoThus National Socialist propaganda is the most important aspect of our political activity It is in the

foreground of our practical goals Without it all our knowledge would be fruitless without effect

[hellip]

National Socialist propaganda serves to educate the people Its task is not only to win them for the tasks

of today but to assist in the transformation of the character of the broad masses We are convinced that a

new politics in Germany is possible only after a complete transformation of our national character after

an entirely new national way of thinkingrdquo (trad livre) GOEBBELS Joseph Will and way In Wille und

Weg vol 1 1931 p 2-5 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-

archivewillehtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 138

ldquoFew people are able to bring heart and mind into full agreement Propaganda often has particular

importance in that it speaks to the emotions rather than to pure understanding The individual as well as

the masses are subject to lsquoattitudesrsquo their emotions determine their condition The politician may not

coldly ignore these emotions he must recognize and understand them if he is to choose the proper of

propaganda to reach his goalsrdquo (trad Livre) SCHULZE-WECHSUNGEN Politische propaganda In

61

Poreacutem eacute num artigo de tiacutetulo bastante sugestivo ldquoCoraccedilatildeo ou Razatildeordquo de 1937

direcionado para os oradores do partido que se discute espirituosamente qual eacute a

melhor forma de obter adesatildeo das pessoas que vatildeo aos encontros do partido Apoacutes

alguma explanaccedilatildeo realiza-se de iniacutecio uma forte criacutetica a certos oradores que buscam

apresentar as ideias do nacional-socialismo num estilo matemaacutetico por meio de

argumentos precisos de estatiacutestica cheios de detalhes tal como os oradores estoicos

talvez fariam ldquoexistem oradores que investigam e esculpem o seu assunto com exatidatildeo

quase cientiacutefica e esquecem totalmente que eles deveriam estar pregando uma visatildeo de

mundordquo139

Assim lembra-se que caso os primeiros oradores do partido nazista buscassem

novos adeptos por meio de um discurso cientiacutefico matemaacutetico cheios de detalhes eles

ainda estariam tentando conquistar o poder Portanto um discurso racional seria a pior

das opccedilotildees para os propoacutesitos do partido

Desse modo a soluccedilatildeo parece bastante evidente o discurso precisaria sair do

coraccedilatildeo do orador para o coraccedilatildeo dos seus destinataacuterios Em outras palavras caso

pretenda sucesso a comunicaccedilatildeo precisaria ser emotiva porque o ecircxito da fundaccedilatildeo do

partido assim como o caminho ateacute a conquista do poder ocorreu desta maneira O

convencimento do povo alematildeo natildeo poderia ser feito de modo racional

O orador e ele era a forccedila do corpo de oradores do nacional

socialismo natildeo falou para a razatildeo mas para o coraccedilatildeo Ele falou de

seu coraccedilatildeo para o coraccedilatildeo do seu ouvinte E tatildeo melhor ele

compreendeu como executar este apelo para o coraccedilatildeo tatildeo melhor ele

explorou isso e tatildeo mais receptivo foi o puacuteblico agrave sua mensagem

Naquele tempo algueacutem natildeo poderia completamente persuadir o povo

alematildeo pelo argumento racional as coisas funcionaram mal para os

partidos que tentaram essa abordagem As pessoas foram conquistadas

pelo homem que atingiu a corda que os outros tinham ignorado ndash as

sensaccedilotildees o sentimento ou como se queira chamaacute-lo o coraccedilatildeo140

Unser wille und weg vol 4 1934 p 323-332 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-

propaganda-archivepolprophtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 139

ldquoThere are speakers who investigate and carve up their subject with almost scientific exactitude and

utterly forget that they are supposed to be preaching a worldviewrdquo (trad livre) RINGLER Hugo Heart

or Reason what we donrsquot want from our speakers In Unser wille und weg vol 7 1937 p 245-249

Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-archiveringlerhtm Acesso em 11 de

janeiro de 2015 140

ldquoThe speaker and he was the strength of the National Socialist Speakerrsquos Corps spoke not to the

understanding but to the heart He spoke out of his heart into the heart of his listener And the better he

understood how to execute this appeal to the heart the more willingly he exploited it and the more

receptive was the audience to his message One could not at all at that time persuade the German people

by rational argument things worked out badly for parties that tried that approach The people were won

by the man who struck the chord that others had ignored mdash the feelings the sentiment or as one wants to

62

Diante de tudo o quanto foi aqui exposto se pudermos eleger algo traumaacutetico

com o qual a MTA teve que lidar jaacute no seu nascimento natildeo poderia haver melhor

candidato do que todo esse modelo de propaganda defendido pelos movimentos

totalitaacuterios e especialmente todo o forte apelo emotivo envolvido em seu discurso

Plantin baseado na classificaccedilatildeo encontrada na obra de Tchakhotine (ldquoa

violaccedilatildeo das massas pela propaganda poliacuteticardquo) lembra que a propaganda dos regimes

totalitaacuterios eacute considerada uma ldquosensopropagandardquo pois se caracteriza pelo apelo aos

sentimentos irracionais do indiviacuteduo Em contraposiccedilatildeo alega a existecircncia de uma

ldquoratiopropagandardquo isto eacute uma propaganda baseada na razatildeo141

Portanto eacute neste contexto pela busca de uma ldquoratiopropagandardquo e de um

repensar sobre o logos que os estudos da argumentaccedilatildeo reaparecem com o preciso fim

de rechaccedilar o modelo de discurso totalitaacuterio fundado em emoccedilotildees e possibilitar o

surgimento de um padratildeo de discurso racional que viabilizasse a democracia142

22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as

emoccedilotildees no discurso

Neste toacutepico iniciando efetivamente a busca por criteacuterios para anaacutelise e

avaliaccedilatildeo do discurso emotivo a ser realizado no Capiacutetulo III intencionamos realizar a

investigaccedilatildeo da importacircncia das emoccedilotildees para Viehweg Toulmin e Perelman-Tyteca

A nossa escolha por tais autores justifica-se por razotildees evidentes ao mesmo

tempo em que satildeo os precursores contemporacircneos de toda uma geraccedilatildeo de estudiosos da

argumentaccedilatildeo e da retoacuterica guardando por isso uma proeminente posiccedilatildeo simboacutelica

em qualquer estudo sobre o assunto tais autores chegaram a elaborar cada qual uma

abordagem teoacuterica proacutepria

Ressalte-se que o fato de termos no Capiacutetulo I investigado a importacircncia das

emoccedilotildees na retoacuterica aristoteacutelica nos coloca agora num local privilegiado Isso porque

natildeo apenas jaacute sabemos nesta altura do trabalho como foi elaborada teoricamente a

primeira abordagem emotiva do discurso em nosso pensamento ocidental mas tambeacutem

call it the heartrdquo (trad livre) Id ibid Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-

archiveringlerhtm Acesso em 11 de janeiro de 2015 141

PLANTIN Christian A argumentaccedilatildeo histoacuteria teorias perspectivas trad Marcos Marcionilo Satildeo

Paulo Paraacutebola Editorial 2013 p 20-21 142

Id ibid p 21

63

temos em matildeo um referencial fundamental para prosseguir nesta obra uma vez que

Aristoacuteteles foi o ponto de partida para a MTA

Isso natildeo significa dizer ressalta Rapp-Wagner que todos os teoacutericos da MTA

satildeo em um ou em outro sentido aristoteacutelicos mas que eles foram significativamente

influenciados pela teoria aristoteacutelica da argumentaccedilatildeo143

Em relaccedilatildeo a Toulmin e Perelman-Tyteca destaca-se que ldquoo programa que eacute

realizado no Usos do Argumento e na Nova Retoacuterica elabora algo como uma mistura da

Toacutepica e da Retoacuterica de Aristoacuteteles []rdquo144

Assim enquanto o esquema argumentativo

de Toulmin estaacute mais proacuteximo da Toacutepica o de Perelman-Tyteca estaacute da Retoacuterica Desse

modo a pergunta que fazemos eacute a seguinte teriam estes autores sido influenciados

tambeacutem pela abordagem aristoteacutelica das emoccedilotildees

Antes de analisar os chamados ldquopais fundadoresrdquo da Moderna Teoria da

Argumentaccedilatildeo (Toulmin e Perelman-Tyteca) conveacutem examinar em primeiro lugar o

pensamento de Viehweg que se natildeo eacute costumeiramente chamado de um fundador da

MTA pode-se dizer que foi um dos importantes precursores de tal movimento e

justifica uma anaacutelise neste mesmo toacutepico

Em 1953 Viehweg lanccedila a primeira ediccedilatildeo da sua obra Toacutepica e Jurisprudecircncia

que se dedica a investigar a relaccedilatildeo entre o saber juriacutedico e a retoacuterica Partindo do

trabalho de Vico ldquoDe nostre temporis studiorum rationerdquo que realiza uma comparaccedilatildeo

entre o meacutetodo de estudo da Antiguidade (retoacutericotoacutepico) e o da modernidade

(criacuteticocartesiano) a fim de demonstrar as desvantagens deste uacuteltimo e sua

inaplicabilidade agrave sabedoria praacutetica Viehweg problematiza a utilizaccedilatildeo dos modelos

oriundos das ciecircncias exatas para a estruturaccedilatildeo do pensamento juriacutedico conforme

expotildee Roesler

A partir da alusatildeo de Vico o problema que move a investigaccedilatildeo de

Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a

sistematizaccedilatildeo dedutiva pretendida pelos modelos matematizantes de

ciecircncia que predominaram a partir do seacuteculo XVII ser inadequada

para organizar o saber juriacutedico e dele retirar ou nele ocultar

caracteriacutesticas fundamentais145

Assim a preferecircncia do autor alematildeo pelo uso do vocaacutebulo ldquoJurisprudecircnciardquo um

termo que alude agrave eacutetica da Antiguidade claacutessica ao inveacutes de ldquoCiecircncia do Direitordquo o

143

RAPP C WAGNER T Op cit p 8 144

ldquothe program that is carried out in The Use of Arguments and in The New Rhetoric elaborates on

something like a blend of Aristotlersquos Topics and Rhetoric [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 8 145

ROESLER Claacuteudia Rosane Theodor Viehweg e a Ciecircncia do Direito toacutepica discurso racionalidade

Arraes Editores Belo Horizonte 2013 p 23

64

qual transmitiria a ideia de um saber rigorosamente cientiacutefico demostra a sua atitude

questionadora em relaccedilatildeo ao padratildeo cientiacutefico elaborado a partir de Descartes e

supostamente emprestaacutevel ao direito146

Resgatando o pensamento de Aristoacuteteles e de Ciacutecero e observando que o saber

juriacutedico eacute uma teacutecnica orientada para a soluccedilatildeo de problemas a tese de Viehweg se

funda na ideia de que a Jurisprudecircncia possui uma estrutura toacutepica Para o filoacutesofo

germacircnico o aspecto mais importante da toacutepica eacute ser uma teacutecnica de pensamento que

enfatiza os problemas ldquoa funccedilatildeo dos topoi e eacute indiferente que esses topoi se

apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais consiste pois no fato de servir

agrave discussatildeo dos problemasrdquo147

A relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia reside justamente nesse liame Ambas se

orientam pelo problema E por isso uma teacutecnica que privilegie o tratamento de

problemas se revela mais adequada ao direito

Se a Jurisprudecircncia for uma aacuterea de problemas na qual nunca se pode

afastar completamente a irrupccedilatildeo de questotildees novas e a necessidade

de reavaliar as premissas jaacute preparadas anteriormente ou seja na qual

o problema eacute um dado constante e natildeo eliminaacutevel entatildeo podemos

pensar que a toacutepica enquanto procedimento de busca de premissas

confere-lhe a estrutura fundamental148

Ora mas se Viehweg evidencia a relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia e

demonstra a partir do trabalho teoacuterico de Aristoacuteteles e de Ciacutecero a importacircncia da

retoacuterica para o direito ele natildeo chega a explorar o viacutenculo entre as emoccedilotildees e a

argumentaccedilatildeo juriacutedica149

Eacute verdade conforme enfatiza Roesler que o referido autor

natildeo propotildee realizar uma anaacutelise exaustiva sobre o tema Mas eacute certo dizer por outro

lado que natildeo temos na abordagem de Viehweg nenhuma tentativa de anaacutelise da

relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo juriacutedica150

146

ROESLER C R O papel de Theodor Viehweg na fundaccedilatildeo das teorias da argumentaccedilatildeo juriacutedica

Revista Eletrocircnica Direito e Poliacutetica Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Ciecircncia Juriacutedica da

UNIVALI Itajaiacute v 4 n 3 3ordm quadrimestre de 2009 pp 36-54 p 39 147

VIEHWEG Theodor Toacutepica e Jurisprudecircncia uma contribuiccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo dos fundamentos

juriacutedico-cientiacuteficos trad Kelly Susane Alflen da Silva Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2008

p 39 148

ROESLER C ROp cit 2013 p 142 149

Sobre a importacircncia da toacutepica ciceroniana em Viehweg cf ROESLER C R CARVALHO Angelo

Gamba Prata de A recepccedilatildeo da Toacutepica ciceroniana em Theodor Viehweg In Direito amp Praxis vol 6 nordm

10 2015 p 26-48 150

A partir do trabalho de Viehweg surge na Alemanha a Escola de Mainz e a retoacuterica analiacutetica atraveacutes

de Ballweg e Sobota No Brasil Adeodato defende uma retoacuterica realista como meacutetodo para o estudo do

direito Cf ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Uma Teoria Retoacuterica da Norma Juriacutedica e do Direito Subjetivo

Satildeo Paulo Editora Noeses 2011 Sobre uma anaacutelise retoacuterica da corte constitucional brasileira e alematilde cf

65

De outra parte o modelo de anaacutelise de argumentos desenvolvido por Toulmin

realiza uma criacutetica ao modo pelo qual a loacutegica formal vinha sendo aplicada ao campo da

argumentaccedilatildeo Logo na abertura da sua obra ele demonstra a preocupaccedilatildeo pela maneira

como os argumentos satildeo utilizados na praacutetica e pela forma como satildeo teorizados151

Assim sua abordagem preocupa-se em desenvolver um modelo racional de anaacutelise com

o objetivo de alargar o campo da loacutegica isto eacute possibilitar ldquo[] uma transformaccedilatildeo da

loacutegica de ciecircncia formal em ciecircncia praacuteticardquo152

Em seu conhecido layout de argumentos estatildeo presentes seis elementos uma

conclusatildeo ou alegaccedilatildeo (claim) que eacute afirmada com base em um dado (date) o qual eacute

uma informaccedilatildeo ou algo conhecido do qual se pode tirar uma conclusatildeo uma garantia

(warrant) que eacute considerada uma lei de passagem isto eacute ela autoriza o passo

argumentativo entre o dado e a alegaccedilatildeoconclusatildeo um suporte (backing) que por

vezes eacute necessaacuterio para reforccedilar a garantia um modalizador ou qualificador (qualifier)

que eacute uma espeacutecie de atenuante (ldquomitigadorrdquo) entre a passagem dos dados para a

conclusatildeo e a refutaccedilatildeorestriccedilatildeo (rebuttal) que satildeo aplicadas agrave garantia a fim de retirar

sua autoridade geral

Apoacutes descrever tais elementos natildeo eacute preciso ir mais longe para observar que

este modelo natildeo busca analisar a dimensatildeo emotiva do discurso Por meio dele eacute

possiacutevel fazer certos tipos de anaacutelise mas natildeo a que noacutes pretendemos realizar As

noccedilotildees de orador e de auditoacuterio estatildeo ausentes natildeo havendo a integraccedilatildeo de tal layout a

um esquema comunicativo153

E eacute por isso que se coloca Toulmin mais perto da

dialeacutetica do que da retoacuterica

Por sua vez em relaccedilatildeo ao modelo de Perelman-Tyteca a influecircncia da retoacuterica

eacute observada de imediato no proacuteprio tiacutetulo do trabalho ldquoTratado da Argumentaccedilatildeo ou a

Nova Retoacutericardquo O desenvolvimento de sua Nova Retoacuterica representa uma criacutetica ao

racionalismo cartesiano conforme eacute deixado claro logo no iniacutecio da obra ldquoa publicaccedilatildeo

de um tratado consagrado agrave argumentaccedilatildeo e sua vinculaccedilatildeo a uma velha tradiccedilatildeo a da

a tese de doutorado de Isaac Costa Reis Limites agrave legitimidade da jurisdiccedilatildeo constitucional anaacutelise

retoacuterica das cortes constitucionais do Brasil e da Alemanha 2013 Recife UFPE 151

TOULMIN Stephen E Os usos do argumento trad Reinaldo Guarany Satildeo Paulo Martins Fontes

2006 p 2 152

BRETON Philippe GAUTHIER Gilles Histoacuteria das teorias da argumentaccedilatildeo trad Maria

Carvalho Lisboa Editorial Bizacircncio 2001 p 75-76 153

MICHELI Raphaeumll Lrsquoeacutemotion argumenteacutee lrsquoabolition de la peine de mort dans le deacutebat

parlamentaire franccedilais Paris Les Eacuteditions du Cerf 2010a p 73

66

retoacuterica e da dialeacutetica gregas constituem uma ruptura com uma concepccedilatildeo da razatildeo e do

raciociacutenio oriunda de Descartes []rdquo154

Assim Perelman-Tyteca retomam as noccedilotildees de orador e de auditoacuterio afirmando

expressamente que este eacute o campo da retoacuterica tradicional que especialmente lhes atrai

atenccedilatildeo Todo discurso se dirige a um determinado grupo de indiviacuteduos Todo texto

escrito ainda que redigido solitariamente imagina dirigir-se a algueacutem A maacute-fama da

retoacuterica na Antiguidade estava ligada ao fato de que buscava persuadir um puacuteblico de

ignorantes e de que natildeo realizava um trabalho de investigaccedilatildeo seacuterio155

Os referidos autores realizam a distinccedilatildeo entre persuadir e convencer vinculada agrave

noccedilatildeo de auditoacuterio universal O convencimento estaacute preocupado com o caraacuteter racional

da argumentaccedilatildeo e por isso a persuasatildeo guarda um estatuto teoacuterico inferior Uma

argumentaccedilatildeo persuasiva eacute dirigida a um auditoacuterio particular enquanto uma

argumentaccedilatildeo convincente busca a adesatildeo de todo o conjunto de seres racionais Ao

argumentar para o auditoacuterio universal o sujeito deve convencer ldquo[] do caraacuteter coercivo

das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta

independentemente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo156

Particularmente quanto agraves emoccedilotildees todavia natildeo houve nenhuma recepccedilatildeo da

retoacuterica antiga No sumaacuterio da obra natildeo haacute qualquer referecircncia ao tema Se numa

pesquisa para a palavra ldquorazatildeordquo encontramos 396 (trezentos e noventa e seis)

referecircncias para a palavra ldquoemoccedilatildeordquo encontramos 13 (treze) referecircncias

Ainda assim Plantin identifica esparsamente as seguintes perspectivas sobre as

emoccedilotildees na Nova Retoacuterica (i) uma abordagem psicoloacutegica para a qual as emoccedilotildees satildeo

elementos de perturbaccedilatildeo do discurso (i) uma abordagem filosoacutefica fundada no topos

ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo (iii) uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor por meio do qual este

uacuteltimo eacute visto como menos pejorativo e (iv) um recurso que pode demonstrar

sinceridade157

Sob a influecircncia da psicologia da eacutepoca que entendia as emoccedilotildees como

perturbadoras da accedilatildeo158

o Tratado da Argumentaccedilatildeo esposa em certo trecho uma

compreensatildeo das emoccedilotildees como degradaccedilatildeo do ato linguiacutestico ldquoos indiacutecios de paixatildeo

154

PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo a nova retoacuterica

trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 p 1 155

Id ibid p 7 156

Id ibid p 35 157

PLANTIN Christian Les bonnes raisons des eacutemotions principes et meacutethode pour lrsquoeacutetude du

discours eacutemotionneacute Berne Peter Lang 2011 p 49 158

Id ibid p 49

67

podem pois dar azo a figuras a hesitaccedilatildeo o hipeacuterbato ou inversatildeo que substitui a

ordem natural da frase por uma ordem nascida da paixatildeordquo159

Em outra parte da obra

anota-se que a excitaccedilatildeo decorrente das emoccedilotildees deturpa a argumentaccedilatildeo do homem

apaixonado que soacute se preocupa consigo mesmo e perde a noccedilatildeo das pessoas a quem seu

discurso se destina ldquoo homem apaixonado enquanto argumenta o faz sem levar

suficientemente em conta o auditoacuterio a que se dirigerdquo160

Numa outra perspectiva realiza-se uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor do

seguinte modo as emoccedilotildees podem possuir uma acepccedilatildeo negativa sendo obstaacuteculos na

argumentaccedilatildeo ou podem servir de suporte para uma argumentaccedilatildeo positiva Nesta

uacuteltima hipoacutetese a fim de se livrarem de sua carga semacircntica negativa as emoccedilotildees seratildeo

nomeadas de valores ldquohaacute que notar que as paixotildees enquanto obstaacuteculo natildeo devem ser

confundidas com as paixotildees que servem de apoio a uma argumentaccedilatildeo positiva e que

habitualmente seratildeo qualificadas por meio de um termo menos pejorativo como

valorrdquo161

A despeito dos trechos acima citados que demonstram uma concepccedilatildeo negativa

das emoccedilotildees natildeo existe nenhum tratamento sistemaacutetico do assunto natildeo tendo a retoacuterica

antiga sido recepcionada neste ponto Todavia considerando que a obra sob anaacutelise se

trata de uma ldquoNova Retoacutericardquo a ausecircncia de um tema que Aristoacuteteles dedicou tanto

espaccedilo conforme visto no Capiacutetulo I natildeo deixa de ser simboacutelica Mesmo que o objetivo

da obra de Perelman-Tyteca consista no alargamento do campo da racionalidade parece

estar impliacutecito que o orador da Nova Retoacuterica deve convencer sem se emocionar

Por uacuteltimo eacute preciso dizer que natildeo surpreende o fato de que os autores acima

estudados natildeo se interessaram pelo estudo das emoccedilotildees Considerando o contexto em

que as obras emergiram tal como discutido no toacutepico precedente este tema era um

interdito para eacutepoca Aliaacutes Perelman-Tyteca tinham plena consciecircncia de que estavam

vivendo no seacuteculo da publicidade e da propaganda como afirmam no iniacutecio da sua

obra162

Portanto pode-se afirmar que o trabalho dos ldquopais fundadoresrdquo se situa melhor

num campo de reflexatildeo sobre o logos

159

PERELMAN C Op cit p 518 160

PERELMAN C Op cit p 27 161

PERELMAN COp cit p 539 162

PERELMAN C Op cit p 5

68

23 As emoccedilotildees falaciosas

Antes de dar o proacuteximo passo e realizar no toacutepico subsequente um estudo

acerca de uma abordagem normativa sobre as emoccedilotildees eacute preciso discutir neste toacutepico

a questatildeo das falaacutecias e a sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees

As falaacutecias satildeo um dos temas centrais para qualquer teoria da argumentaccedilatildeo

Eemeren aponta que a qualidade de uma teoria da argumentaccedilatildeo estaacute diretamente

relacionada agrave maneira pela qual ela compreende as falaacutecias Assim ldquose uma teoria da

argumentaccedilatildeo consegue lidar com as falaacutecias de um modo satisfatoacuterio trata-se de um

teste positivo para o alcance e para o poder de explanaccedilatildeo de tal teoriardquo163

Isso porque uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa necessariamente oferecer

criteacuterios e normas para avaliar quando argumentaccedilotildees satildeo ou natildeo razoaacuteveis Desse

modo diz-se que as falaacutecias satildeo ardis contaminantes da argumentaccedilatildeo que caso

passem despercebidas deturpam completamente a racionalidade do discurso Em outras

palavras satildeo perigosas camuflagens que necessitam ser identificadas na

argumentaccedilatildeo164

Natildeo haacute em grego uma palavra que corresponda exatamente ao vocaacutebulo

ldquofalaacuteciardquo o seu correspondente seria ldquosofismardquo165

Falaacutecia portanto deriva do termo

em latim ldquofallaciardquo que por sua vez tem sua origem no verbo grego ldquosphalrdquo que

significa ldquocausar uma quedardquo Walton destaca que este significado eacute consistente com a

ideia aristoteacutelica de refutaccedilatildeo sofiacutestica como algo intencionalmente enganoso ou um

truque argumentativo utilizado com o objetivo de ldquocausar uma quedardquo no adversaacuterio166

Por sinal Aristoacuteteles eacute considerado um dos fundadores da disciplina Em sua

Refutaccedilotildees Sofiacutesticas ele oferece um tratamento sistemaacutetico para identificar quando um

argumento eacute incorreto ou enganoso Para o Estagirita uma falaacutecia eacute invariavelmente

uma inferecircncia que aparenta ser um silogismo poreacutem sem ser conclusivo Portanto

163

ldquoIf an argumentation theory can deal with fallacies in a satisfactory way this is a positive test as to the

scope and explanatory power of that theoryrdquo (trad livre) EEMEREN Frans van GARSSEN Bart

MEUFFELS Bert Fallacies and judgments of reasonableness empirical research concerning the

pragma-dialectics discussion rules New York Springer 2009 p 1 164

EEMEREN Frans H van et al Handbook of argumentation theory New York Springer 2014 p

25 165

HAMBLIN Charles L Fallacies London Methuen CO LTD 1970 p 50 166

WALTON Douglas The place of emotion in argument Pennsylvania The Pennsylvania State

University Press 1992 p 17

69

diante de uma falaacutecia o sujeito se encontra num estado de ilusatildeo porque imagina que a

conclusatildeo decorreu das premissas oferecidas167

Todavia o tratamento aristoteacutelico das falaacutecias foi modernamente objeto de

criacuteticas Ao utilizar conceitos metafiacutesicos como ldquopropriedade essencialrdquo ou

ldquopropriedade acidentalrdquo ou dirigir-se restritivamente apenas agrave dialeacutetica a abordagem

aristoteacutelica passou a ser considerada insuficiente para lidar com a complexidade do atual

estado de arte da argumentaccedilatildeo168

Uma das mais importantes contribuiccedilotildees acerca do tema em comentaacuterio e que

particularmente nos interessa consiste no desenvolvimento das chamadas ldquofalaacutecias adrdquo

Neste campo de estudo atribui-se a John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento

Humano de 1690 a invenccedilatildeo dos argumentos ad Tendo em vista a relevacircncia histoacuterica

para a mateacuteria transcreve-se a seguir o trecho em que o filoacutesofo anuncia o seu

pensamento

Antes de encerrar este assunto pode valer a pena utilizar o nosso

tempo para refletir um pouco sobre quatro tipos de argumentos que os

homens nos seus raciociacutenios com os outros normalmente fazem uso

para prevalecer o seu assentimento ou pelo menos para impressionaacute-

los assim como para silenciar sua oposiccedilatildeo

O primeiro eacute alegar as opiniotildees de homens cujas partes

aprendizagem eminecircncia poder ou alguma outra causa ganhou um

nome e estabeleceu sua reputaccedilatildeo no estima comum com algum tipo

de autoridade

[]

Isso eu acho que pode ser chamado de argumentum ad verecundiam

Em segundo lugar uma outra maneira que os homens normalmente

utilizam para conduzir os outros forccedilaacute-los a submeter aos seus juiacutezos

assim como receber a sua opiniatildeo em debate consiste em exigir que o

adversaacuterio admita como prova aquilo que eles alegam ou que

designem uma melhor E isto eu chamo argumentum ad ignorantiam

Uma terceira maneira eacute pressionar um homem com as consequecircncias

extraiacutedas de seus proacuteprios princiacutepios ou concessotildees Isto jaacute eacute

conhecido sob o nome de argumentum ad hominem

O quarto argumento sozinho nos avanccedila em direccedilatildeo ao conhecimento

e ao julgamento O quarto eacute usado de provas extraiacutedas de qualquer um

dos fundamentos do conhecimento ou probabilidade Isso eu chamo de

argumentum ad judicium Este por si soacute de todos os quatro traz a

verdadeira instruccedilatildeo com ela e nos avanccedila em nosso caminho para o

conhecimento169

167

RAPP C WAGNER T Op cit 2013 p 27 168

Id ibid p 27 169

ldquoBefore we quit this subject it may be worth our while a little to reflect on four sorts of arguments

that men in their reasonings with others do ordinarily make use of to prevail on their assent or at least to

awe them as to silence their opposition

The first is to allege the opinions of men whose parts learning eminency power or some other cause

has gained a name and settled their reputation in the common esteem with some kind of authority

70

Locke registra que estas espeacutecies de argumento (argumentum ad verecundiam

ad ignoratiam ad hominem) satildeo utilizadas geralmente quando algueacutem deseja obter

ecircxito na discussatildeo pois se destinam a impressionar a fazer prevalecer o entendimento

exposto e a emudecer o oponente Resta evidente que o filoacutesofo aqui se refere a um

modelo interativo de discurso (dialeacutetica) Ademais conveacutem notar que embora as obras

de loacutegica passaram a tratar tais argumentos como falaacutecias natildeo se observa qualquer

comentaacuterio em tal sentido pelo pensador inglecircs

Aleacutem disso eacute digno de nota o registro de Locke segundo o qual o argumento ad

hominem jaacute era conhecido agrave sua eacutepoca Mas era conhecido em qual sentido Era

conhecido em sua definiccedilatildeo ou na proacutepria expressatildeo ldquoad hominemrdquo Hamblin destaca

que provavelmente a inspiraccedilatildeo do termo vem da traduccedilatildeo em latim do seguinte trecho

das Refutaccedilotildees Sofiacutesticas de Aristoacuteteles ldquo[] estas pessoas dirigem suas soluccedilotildees

contra o homem natildeo contra o argumento []rdquo ldquo[] hi omnes non ad orationem sed ad

hominem solvunt []rdquo170

Em 1826 Whately por sua vez ao se referir aos argumentos ad populum ad

verecundiam ad hominem registra que quando ldquoinjustamente utilizadosrdquo eles satildeo

chamados falaciosos estabelecendo entatildeo uma conexatildeo com o tema das falaacutecias

Interessante salientar que o loacutegico inglecircs opotildee os argumentos anteriormente citados ao

argumentum ad rem171

Assim considerando que rem em latim significa coisa eacute

possiacutevel inferir que enquanto o argumento ad rem se direciona ao cerne da questatildeo ao

alvo argumentativo isto eacute ldquoagrave coisardquo os argumentos ad populum ad verecundiam ad

hominem representam um desvio do assunto pois se dirigem agrave pessoa ou a outras

fontes Acrescente-se ainda que Whately afirma que provavelmente o argumento ad

rem significa aquilo que outros autores (Locke por exemplo) chamam de argumento ad

judicium

Secondly Another way that men ordinarily use to drive others and force them to submit to their

judgments and receive their opinion in debate is to require the adversary to admit what they allege as a

proof or to assign a better And this I call argumentum ad ignorantiam

A third way is to press a man with consequences drawn from his own principles or concessions This is

already known under the name of argumentum ad hominem

he fourth alone advances us in knowledge and judgment The fourth is the using of proofs drawn from

any of the foundations of knowledge or probability This I call argumentum adjudicium This alone of all

the four brings true instruction with it and advances us in our way to knowledgerdquo (trad livre) LOCKE

John The Works of John Locke London C Baldwin 1824 p 260-261 170

ldquo[] these persons direct their solutions against the man not against his argumentrdquo (trad livre)

HAMBLIN C Op cit p 161-162 171

WHATELY Richard Logic London John Joseph Griffin amp CO 1849 p 80

71

Ademais se pensarmos que neste caso a palavra ldquoargumentumrdquo pode ser

substituiacuteda com sucesso pela palavra ldquoapelordquo e sabendo que o termo em latim ldquoadrdquo

denota ldquoem direccedilatildeo ardquo ldquoparardquo pode-se afirmar que o argumento ad populum significa

apelo ao povo ou aos sentimentos do povo o argumento ad verecundiam apelo agrave

modeacutestia ou agrave autoridade o argumento ad hominem apelo ao caraacuteter ou agraves

caracteriacutesticas do sujeito Estes apelos portanto natildeo estariam dirigidos a ldquoevidecircncias

objetivasrdquo mas a subjetividades algo presente na mente ou melhor na fantasia das

pessoas172

Recentemente o estudo das falaacutecias alcanccedilou notaacutevel desenvolvimento graccedilas

ao trabalho pioneiro de Charles Hamblin que em 1970 publicou a sua obra ldquoFalaacuteciasrdquo

Neste estudo o filoacutesofo australiano comeccedila com uma forte criacutetica em relaccedilatildeo agrave forccedila

que em nosso tempo a tradiccedilatildeo ainda vinha desempenhando sobre o assunto a despeito

de tantos avanccedilos na loacutegica e em outras aacutereas ldquodepois de dois milecircnios de estudo ativo

de loacutegica e em particular depois de transcorrido mais da metade daquele que eacute

considerado o mais iconoclasta dos seacuteculos o XX dC ainda encontramos as falaacutecias

sendo classificadas apresentadas e estudadas da mesma maneira antigardquo173

Eemeren destaca que eacute enorme a importacircncia de Hamblin para o assunto sendo

o seu livro uma soacutelida referecircncia pois realiza um rigoroso apanhado histoacuterico sobre as

falaacutecias elenca as deficiecircncias no tratamento da mateacuteria oferece a sua pessoal

contribuiccedilatildeo teoacuterica e sistematiza o tema Assim ainda que tenha sido objeto de criacuteticas

a sua obra eacute considerada ao mesmo tempo um ponto de partida e o tratamento standard

da disciplina174

Ao fazer uma sistematizaccedilatildeo sobre as ldquofalaacutecias adrdquo Hamblin esboccedila uma

abundante classificaccedilatildeo do tema sendo que tendo em vista a importacircncia para o nosso

trabalho destacamos as seguintes falaacutecias

(i) apelo agrave inveja argumentum ad invidiam

(ii) apelo ao medo argumentum ad metum

(iii) apelo ao oacutedio argumentum ad odium

(iv) apelo ao orgulho argumentum ad superbiam

(v) apelo agrave amizade argumentum ad amicitiam

172

WALTON D Op cit p 4-9 173

ldquoAfter two millennia of active study of logic and in particular after over half of that most iconoclastic

of centuries the twentieth AD we still find fallacies classified presented and studied in much the same

old wayrdquo (trad livre) HAMBLIN C Op cit p 9 174

EEMEREN F Op cit 2009 p 12

72

(vi) apelo agrave compaixatildeo argumentum ad misericordiam

(vii) apelo agraves emoccedilotildees em geral argumentum ad passiones

Aleacutem destas tambeacutem se destacam as seguintes falaacutecias ad verecundiam ad

ignorantiam ad hominem ad baculum (apelo agrave ameaccedila) ad superstitionem (apelo agrave

supersticcedilatildeo) ad imaginationem (apelo agrave imaginaccedilatildeo) ad nauseam (apelo agrave prova por

repeticcedilatildeo) ad fidem (apelo agrave feacute) ad socordiam (apelo agrave estupidez) ad ludicrum (apelo

ao teatralismo) ad captandum vulgus ad fulmen ad vertiginem a carcere175

Natildeo eacute coincidecircncia que para cada emoccedilatildeo da retoacuterica estudada no Capiacutetulo I

agora exista uma ldquofalaacutecia adrdquo correspondente E ainda que eventualmente venha lhe

faltar uma classificaccedilatildeo apropriada a expressatildeo guarda-chuva ldquoargumentum ad

passionerdquo iraacute capturar alguma emoccedilatildeo fugitiva Aliaacutes eacute essa a ideia apresentada pelo

loacutegico inglecircs Issac Watz citado por Hamblin senatildeo vejamos

Haacute ainda um outro ranking de argumentos que tecircm nomes latinos sua

verdadeira distinccedilatildeo deriva dos toacutepicos ou meios-termos que satildeo

usados neles eles satildeo chamados de apelos para o nosso julgamento

para a nossa feacute para a nossa ignoracircncia para a nossa profissatildeo para a

nossa modeacutestia e para as nossas emoccedilotildees

[]

6 Acrescento por fim quando um argumento eacute emprestado de algum

toacutepico que se preste a atrair as inclinaccedilotildees e as emoccedilotildees dos ouvintes

para o lado do orador em vez de convencer o julgamento ele eacute

chamado argumentum ad passiones um apelo para as emoccedilotildees176

Por tambeacutem termos estudado o pensamento estoico no Capiacutetulo I agora tambeacutem

podemos afirmar que isso eacute uma forma estoica de pensar Obviamente natildeo no sentido

de que tal pensamento derive da escola estoica Poreacutem numa acepccedilatildeo mais ampla no

sentido de sua hostilidade em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees ou de que conveacutem eliminaacute-las do

discurso por serem irracionais enganadoras excessivas No entanto tal pensamento

parece ser demasiadamente simploacuterio porque natildeo consegue indagar se as emoccedilotildees

eventualmente podem ser razoaacuteveis na argumentaccedilatildeo Existiriam criteacuterios para

distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees no discurso

175

HAMBLIN C Op cit p 41 176

ldquoThere is yet another rank of arguments which have latin names their true distinction is derived from

the Topics or middle Terms which are used in them tho they are called an Address to our Judgment our

Faith our Ignorance our Profession our Modesty and our Passions [hellip]6 I add finally when an

argument is borrowed from any topics which are suited to engage the inclinations and passions of the

hearers on the side of the speaker rather than to convince the judgment this is argumentum ad passiones

an address to the passionsrdquo (trad livre)WATZ Issac Logic or the right use of reason in the inquiry

after truth Boston West amp Richardson 1842 p 242

73

Eacute claro que a disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo natildeo nos exige que deixemos de sentir o

que sentimos uma vez que poderiacuteamos imaginar que existe separadamente o campo do

discurso e existe o campo do sujeito de modo que o objetivo da estudada classificaccedilatildeo

consiste em despir a estrutura do discurso do uso das emoccedilotildees e dos seus efeitos

negativos quanto agrave relaccedilatildeo de inferecircncias Mas considerando que o homem vive na

linguagem eacute possiacutevel de modo plausiacutevel pensar que existam certas e profundas

conexotildees entre essas coisas

Sobre este ponto Plantin destaca que eacute justamente na questatildeo do sujeito e das

emoccedilotildees que existe uma forte ruptura entre a MTA e a retoacuterica A teoria standard da

argumentaccedilatildeo ao introduzir a noccedilatildeo de falaacutecia ad passiones erigiu as emoccedilotildees como

um dos principais inimigos da argumentaccedilatildeo ldquoa teoria das falaacutecias eacute a uacutenica parte da

teoria da argumentaccedilatildeo que se ocupa realmente das emoccedilotildees mas para removecirc-las

como se o discurso argumentativo para ser admissiacutevel devesse primeiro expulsar seus

atoresrdquo177

O linguista francecircs assevera que essa invariaacutevel exigecircncia normativa exalta a

argumentaccedilatildeo apaacutetica como um modelo desejado de discurso178

Assim pathos parece

retomar um dos seus sentidos originais presente na Greacutecia antiga isto eacute o de

patoloacutegico de sofrimento

Eacute interessante igualmente notar a maciccedila presenccedila de termos em latim na

classificaccedilatildeo das ldquofalaacutecias adrdquo Eacute sabido que na eacutepoca moderna o latim teve uma

grande importacircncia para o estudo do direito da filosofia e da loacutegica Mas o seu

constante emprego para tratar do presente tema quando se dispotildee de suficiente

vocabulaacuterio para abordar o assunto parece querer doar desnecessariamente um grau de

sofisticaccedilatildeo ou de autoridade agrave disciplina A este respeito Plantin endereccedila forte criacutetica

ldquo[] em inuacutemeros casos esse latim de ocasiatildeo aparece como defeituoso gratuito

pedante e finalmente ridiacuteculo []rdquo179

Por fim tendo em vista que este Capiacutetulo se destina a investigar a importacircncia

das emoccedilotildees para a MTA pode-se dizer agora que pelo menos para a teoria standard

da argumentaccedilatildeo as emoccedilotildees tecircm uma funccedilatildeo negativa no discurso O uacutenico local em

que as emoccedilotildees guardam um relativo espaccedilo para tematizaccedilatildeo eacute no estudo das falaacutecias

177

ldquola theacuteorie des fallacies est la seule theorie de largumentation qui socuppe reellement des eacutemotions

mais cest pour les eacuteliminer comme si le discours argumentatif pour etre recevable devait dabord

expulser ses acteursrdquo (trad livre) PLANTIN C Op cit 2011 p 63 178

Id ibid p 63 179

ldquo[hellip] dans de nombreux cas cest latin doccasion apparaicirct comme fautif gratuit jargonnant et

finalemente ridicule [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 66

74

Poreacutem tal posicionamento parece sofrer de ausecircncia de complexidade jaacute que natildeo

consegue fornecer nenhum criteacuterio para distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees

na argumentaccedilatildeo nem consequentemente consegue encontrar um razoaacutevel papel para

elas no discurso Portanto diante do exposto parece que o debate acerca das emoccedilotildees

restou significativamente empobrecido

24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso

Aleacutem de evidenciar a estreita e difiacutecil relaccedilatildeo existente entre a disciplina das

falaacutecias e o estudo das emoccedilotildees um dos objetivos do toacutepico precedente tambeacutem foi

preparar-nos para neste espaccedilo examinar e compreender o pensamento de Douglas

Walton

Em 1992 Walton insatisfeito com a forma pela qual o tratamento standard das

falaacutecias compreendia o fenocircmeno emotivo publicou uma obra (O Lugar da Emoccedilatildeo no

Argumento) dedicada a aprofundar o tema Ainda que o modelo utilizado pelo

canadense seja dirigido ao discurso dialeacutetico e natildeo se ocupe especificamente do

domiacutenio juriacutedico embora tambeacutem o abranja as suas observaccedilotildees satildeo bastante uacuteteis e

aplicaacuteveis para os objetivos deste trabalho quais sejam construir um espaccedilo para a

discussatildeo das emoccedilotildees no discurso juriacutedico e localizar criteacuterios para avaliaccedilatildeo do uso

das emoccedilotildees Ademais e a fim de organizar a apresentaccedilatildeo deste toacutepico pretendemos

expor as premissas os escopos as criacuteticas e as conclusotildees do teoacuterico canadense

Dito isso Walton afirma que uma boa teoria da argumentaccedilatildeo precisa natildeo

apenas se posicionar de maneira clara sobre as emoccedilotildees mas tambeacutem levaacute-las a seacuterio

Assim eacute fraca e implausiacutevel uma teoria que expulse previamente as emoccedilotildees para fora

do seu acircmbito ou que nomeie indistintamente de falaciosa qualquer conclusatildeo que se

sustente ainda que parcialmente em um apelo emotivo ldquoqualquer teoria da

argumentaccedilatildeo que exclua tais apelos por inteiro deve ser uma teoria muito limitada

inaplicaacutevel para vaacuterios e significantes argumentos do dia-a-diardquo180

Assim reconhece-se que o fenocircmeno emotivo faz parte do discurso porque

decidimos tambeacutem com base em emoccedilotildees em importantes momentos de nossas vidas

A abertura para a sensibilidade da ocasiatildeo para as nossas proacuteprias emoccedilotildees e para as

180

ldquoany theory of argument that rules such appeals out of court altogether must be very limited theory

inapplicable to many significant everyday argumentsrdquo (trad livre) WALTON D Op cit p 69

75

emoccedilotildees dos outros pode permear de maneira saudaacutevel decisotildees importantes em

sociedade181

Exemplificativamente diante de discussotildees de ordem poliacutetica ou juriacutedica em

que esteja no cerne do debate o caraacuteter ou a moralidade de um participante pode-se

cogitar que seja natildeo apenas relevante o uso de um argumento emotivo (ad hominem por

exemplo) mas extremamente necessaacuterio para responder adequadamente uma

alegaccedilatildeo182

De outra parte a despeito de admitir o uso de argumentos emotivos por

entender que eles satildeo importantes e legiacutetimos no diaacutelogo persuasivo Walton aconselha

cautela na sua utilizaccedilatildeo porque eles tambeacutem podem ser usados falaciosamente183

Assim a seu ver dois fatores combinados aumentam a possibilidade de que tais

argumentos sejam mal utilizados (i) primeiramente o apelo agrave emoccedilatildeo pode ter pouca

relevacircncia para o caso pois pode natildeo contribuir para os fins do diaacutelogo no qual os seus

participantes estejam comprometidos convertendo-se inclusive em instrumento para

bloquear os objetivos do discurso (ii) os argumentos baseados em emoccedilotildees possuem

uma tendecircncia de serem logicamente fracos no sentido de que sua premissa natildeo

sustenta de modo suficientemente forte a conclusatildeo e por isso natildeo preencha

adequadamente o ocircnus da prova184

Assim o uso falacioso das emoccedilotildees estaacute presente

quando ldquo[] o proponente explora o impacto do apelo para disfarccedilar a fraqueza ou a

irrelevacircncia do argumentordquo185

Poreacutem como determinar em concreto tais paracircmetros Advertindo que o seu

estudo natildeo eacute uma tese de psicologia empiacuterica mas uma abordagem normativa da

argumentaccedilatildeo cujo principal objetivo consiste em possibilitar a identificaccedilatildeo de usos

corretos e incorretos das emoccedilotildees no discurso186

o autor propotildee o estudo de quatro

ldquofalaacutecias adrdquo que na sua oacutetica satildeo extremamente fortes quanto agrave possibilidade de

aticcedilar os sentimentos e as mais profundas inclinaccedilotildees emotivas do puacuteblico argumentum

ad populum argumentum ad misericordiam argumentum ad baculum e argumentum ad

hominem

181

Id ibid p 69 182

Id ibid p 68 183

Id ibid p 1 184

Id ibid p 1-2 e 28 185

ldquo[hellip] the proponent exploits the impact of the appeal to disguise the weakness andor irrelevance of an

argumentrdquo Id ibid p 2 186

Id ibid p 28

76

Para nosso trabalho no entanto e a fim de delimitar a nossa competecircncia de

estudo eacute suficiente comentar os aspectos mais importantes relacionados ao uso do apelo

agrave compaixatildeo do apelo ao caraacuteter e do apelo agrave ameaccedila Poreacutem antes de prosseguir eacute

preciso explanar previamente e de modo breve alguns conceitos empregados na teoria

em comentaacuterio

Primeiramente conveacutem ser dito que a abordagem normativa em estudo estaacute

estruturada em funccedilatildeo de uma especiacutefica classificaccedilatildeo de tipos de diaacutelogo

Um diaacutelogo eacute considerado ldquo[] uma troca de atos de fala em sequecircncia

alternada entre dois parceiros de discurso a fim de alcanccedilar um objetivo comumrdquo187

Assim a coerecircncia do diaacutelogo depende de que o ato de fala individual se adeque ao fim

comum do tipo de diaacutelogo em que os participantes estejam atrelados Ademais tendo

em vista que em alguns tipos de diaacutelogo os participantes necessitam provar alguma

coisa surge a noccedilatildeo de ocircnus de prova que ldquo[] eacute um peso de presunccedilatildeo alocado

idealmente no estaacutegio inicial do diaacutelogordquo188

e que se mostra um recurso uacutetil para que o

diaacutelogo chegue num prazo razoaacutevel ao fim

Entre os tipos de diaacutelogo destacam-se

(i) o diaacutelogo persuasivo (discussatildeo criacutetica) os participantes utilizando como

premissas as proposiccedilotildees em que a outra parte esteja comprometida

(commitment) procuram convencer um ao outro a respeito de uma tese189

(ii) o diaacutelogo investigativo ldquoo objetivo da investigaccedilatildeo eacute provar que uma

particular proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa ou que natildeo existe evidecircncia

suficiente para provar que tal proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsardquo190

(iii) a negociaccedilatildeo o objetivo das partes consiste em por meio de barganha em

cima de interesses e de bens de concessatildeo de certas coisas e de insistecircncia em

outras fechar um acordo diferentemente do diaacutelogo persuasivo ou do

investigativo a verificaccedilatildeo da veracidade ou falsidade de proposiccedilotildees ainda

que em alguma medida relevante eacute algo secundaacuterio pois a finalidade consiste

187

ldquo[] an exchange of speech acts between two speech partners in turn-taking sequence aimed at a

collective goalrdquo (trad livre) Id ibid p 19 188

ldquo[] a weight of presumption allocated ideally at the opening stage of the dialoguerdquo (trad livre) Id

ibid p 20 189

WALTON Douglas The New dialectic conversational contexts of argument TorontoLondon

University of Toronto Press 1998 p 37-40 190

ldquothe goal of the inquiry is to prove that a particular proposition is true or false or that there is

insufficient evidence to prove that this proposition is either true or falserdquo Id ibid p 70

77

em realizar um bom negoacutecio que geralmente recai em cima de dinheiro certos

tipos de bens ou outros itens de valor191

e

(iv) a briga (quarrel) eacute um tipo de diaacutelogo eriacutestico cujo objetivo de cada parte

reside em atingir verbalmente a outra os argumentos natildeo possuem valor em si

mesmo senatildeo para golpear o adversaacuterio Tal ldquodiaacutelogordquo tem uma relevante funccedilatildeo

cataacutertica ao possibilitar que profundas emoccedilotildees sejam liberadas evitando um

confronto fiacutesico192

Esta classificaccedilatildeo eacute importante por dois motivos primeiramente ela possibilita

compreender quando existe uma mudanccedila iliacutecita de tipo de diaacutelogo (dialectical shifts)

um diaacutelogo investigativo natildeo pode se transformar num diaacutelogo persuasivo (discussatildeo

criacutetica) porque os objetivos e os meacutetodos de cada qual satildeo diversos e por isso os

argumentos tambeacutem o satildeo Em segundo lugar compreende-se que eacute no diaacutelogo

persuasivo que as emoccedilotildees tecircm o seu habitat especiacutefico podendo ser positivas e

contribuiacuterem com os objetivos da discussatildeo Todavia entende-se que nos outros tipos

de diaacutelogo (negociaccedilatildeo por exemplo) e a depender do caso elas tambeacutem podem ser

legiacutetimas193

Por uacuteltimo antes de adentrar no estudo das falaacutecias conveacutem enfatizar que a

noccedilatildeo de raciociacutenio presuntivo tem um destacado papel neste modelo de anaacutelise do

discurso argumentativo porque possibilita que a discussatildeo caminhe em direccedilatildeo ao fim

mesmo quando no estado de conhecimento as evidecircncias satildeo insuficientes e as

premissas fracas ldquoa presunccedilatildeo no diaacutelogo permite que a argumentaccedilatildeo avance de um

modo uacutetil e revelador mesmo se evidecircncia suficiente natildeo estaacute disponiacutevel para permitir

que cada lado se comprometa categoricamente a certas premissas especiacuteficasrdquo194

Assim uma vez finalizada a exposiccedilatildeo de tais conceitos passa-se agrave explanaccedilatildeo

do apelo agrave compaixatildeo

Para saber quando o apelo agrave compaixatildeo eacute ou natildeo usado falaciosamente a

abordagem tradicional recomenda distinguir se um caso diz respeito a fatos ou a

sentimentos Caso o problema envolva mateacuteria factual o apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso

sendo adequado de seu turno caso apenas envolva sentimentos195

191

Id ibid p 100 192

WALTON D Op cit 1992 p 21-23 193

Id ibid p 23-24 194

ldquopresumption in dialogue enables argumentation to move forward in a revealing and useful way even

if sufficient evidence is not available to enable either side to commit itself categorically to some particular

premisesrdquo Id ibid p 57 195

Id ibid p 106

78

Em relaccedilatildeo a esta bifurcaccedilatildeo Walton endereccedila forte criacutetica pois a compreende

muito otimista em achar que fatos e sentimentos satildeo coisas totalmente isoladas Por

exemplo em casos como aborto e eutanaacutesia natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo apenas

facticidades E sentimentos satildeo muito importantes embora tambeacutem possam ser

excessivos ou inadequados Assim para alegar que um apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso

precisa-se demonstrar a sua irrelevacircncia ou inadequaccedilatildeo para a hipoacutetese tratada196

Exemplificativamente no seguinte caso ocorrido na Casa dos Comuns do

Canadaacute em 1987 eacute relatado que um parlamentar durante o debate poliacutetico solicitou

fundos do governo federal para finalizar um projeto de enciclopeacutedia pertencente ao Sr

Joey Smallwood uma figura poliacutetica canadense ldquorespeitadardquo e ldquobem-conhecidardquo

considerado um dos uacuteltimos ldquoPais da Confederaccedilatildeordquo ainda vivos Ademais eacute dito que

Smallwood estaacute por volta dos seus 80 (oitenta) anos num estado de sauacutede debilitado e

mereceria ter seu projeto que se revelaraacute num inestimaacutevel recurso para o povo

canadense ser concluiacutedo em vida ldquoeacute uma grande distorccedilatildeo ver uma das lendas vivas do

Canadaacute sendo forccedilado a lidar com xerifes na sua idade avanccedilada e em seu mau estado

de sauacutede Certamente o governo pode encontraacute-lo em seu coraccedilatildeo agorardquo diz o

deputado197

Walton diz que a questatildeo central no caso consiste em saber se tal projeto de

enciclopeacutedia eacute valoroso o suficiente para merecer ser financiado com dinheiro puacuteblico

Assim caso apenas o apelo agrave compaixatildeo esteja suportando a conclusatildeo de que o projeto

vale a pena ser financiado entatildeo tal emoccedilatildeo natildeo eacute relevante ou uacutetil pois eacute preciso

questionar em si mesmo o meacuterito do projeto Poreacutem na presunccedilatildeo de que o projeto

realmente valha a pena a compaixatildeo pode ser um argumento adequado fazendo parte

de um argumento maior a respeito do merecimento do projeto198

Este eacute um caso de forte apelo emocional que envolve sentimentos patrioacuteticos em

relaccedilatildeo a uma pessoa admirada por muitas outras num paiacutes Poreacutem a despeito da

tradiccedilatildeo de nomear tal tipo de argumentaccedilatildeo de falaciosa Walton entende que eacute preciso

atentar para a questatildeo do contexto em que tal discurso foi produzido Assim

considerando que ele foi declamado numa especiacutefica sessatildeo da Casa dos Comuns

196

Id ibid p 106-107 197

ldquoit is a great travesty to see one of Canadas living legends being forced to deal with sheriffs at his

advanced age and in his poor state of health Surely the government can find it in its heart nowrdquo (trad

livre) Id ibid p 111 198

Id ibid p 111

79

destinada a fazer recomendaccedilotildees de financiamento de projetos a emoccedilatildeo empregada eacute

adequada agraves regras do debate e natildeo destoa do tipo de discurso utilizado

Ademais Walton reforccedila que a proacutepria noccedilatildeo de apelo agrave compaixatildeo por estar

amarrada a conotaccedilotildees pejorativas quanto a sentimentos de pena influencia o

entendimento de que por si soacute jaacute seria errado inadequado ou falacioso utilizaacute-lo ldquose

perguntado se eles querem compaixatildeo pessoas deficientes ou veteranos de guerra

provavelmente diratildeo lsquonatildeorsquo porque lsquocompaixatildeorsquo tem conotaccedilotildees de

condescendecircnciardquo199

Assim a seu ver seria mais apropriado chamar de ldquoapelo agrave

simpatiardquo do que ldquoapelo agrave compaixatildeordquo o que evitaria tal carga semacircntica negativa

Em outro exemplo em 1987 tambeacutem na Casa dos Comuns do Canadaacute discute-

se um projeto de lei cujo texto busca regulamentar o uso de cigarro em locais puacuteblicos

bem como restringir a sua publicidade

Na fala do parlamentar Brud Bradley que se posiciona contra tal projeto de lei

o apelo agrave misericoacuterdia se corporifica na visualizaccedilatildeo das consequecircncias negativas sobre

todo um grupo de pessoas que depende da induacutestria do tabaco para sobreviver Apoacutes

relatar a difiacutecil saga dos produtores de tabaco muitos deles constituiacutedos por imigrantes

que chegaram ao Canadaacute e conseguiram criar sem nenhuma ajuda uma atividade que

rende bilhotildees para o paiacutes questiona-se a difiacutecil situaccedilatildeo em que todos esses cidadatildeos

ficaratildeo ldquonas aacutereas de cultivo de tabaco do Canadaacute temos falecircncias desagregaccedilatildeo

familiar e suiciacutedio E quanto a esses agricultores E sobre os 2600 produtores de tabaco

dedicados no Canadaacute O que a legislaccedilatildeo faz por elesrdquo200

Em resposta Dan Heap defendendo o ato alega que o que se estaacute em discussatildeo

eacute o direito agrave sauacutede que em seu olhar eacute muito mais importante do que o direito de ser

um produtor de tabaco Aleacutem disso 35000 pessoas morrem anualmente no Canadaacute de

doenccedilas relacionadas ao cigarro o que eacute um nuacutemero bem superior aos 2600 produtores

de tabaco

Walton analisando o caso registra que ambas as alegaccedilotildees apelam para

argumentos de consequecircncia Enquanto Bradley advoga as consequecircncias negativas do

projeto de lei Heap busca explorar as positivas O problema eacute que o argumento

utilizado por Bradley eacute fraco e altamente unilateral embora natildeo deva ser rejeitado como

199

ldquoIf asked whether they want pity disabled persons or returning war veterans will probably say lsquonorsquo

for pity has connotations of condescensionrdquo (trad livre) Id ibid p 112 200

ldquoin the tobacco growing areas of Canada we have bankruptcies family breakdown and suicide What

about those farmers What about the 2600 dedicated tobacco farmers in Canada What does the

legislation do for themrdquo (trad livre) Id ibid p 124

80

um todo porque eacute razoaacutevel tambeacutem se preocupar com as consequecircncias sociais

negativas geradas pela nova legislaccedilatildeo Ademais falta evidecircncia que suporte a relaccedilatildeo

causal entre a legislaccedilatildeo tabagista e a alegada falecircncia desagregaccedilatildeo familiar e suiciacutedio

de produtores de tabaco que tambeacutem ocorre em outras culturas agriacutecolas do Canadaacute

Assim tendo em vista que para bem deliberar acerca de um projeto de lei eacute preciso

visualizar todas as consequecircncias possiacuteveis da nova legislaccedilatildeo a extrema

unilateralidade do argumento utilizado por Bradley prejudica o objetivo da discussatildeo

Apoacutes analisar outros casos Walton estabelece a seguinte classificaccedilatildeo para

avaliar o uso do apelo agrave compaixatildeo

(i) razoaacutevel adequado ao contexto do diaacutelogo

(ii) fraco mas natildeo irrelevante ou falacioso quando o apelo eacute unilateral e estaacute

aberto a questionamento criacutetico

(iii) irrelevante o apelo agrave compaixatildeo eacute irrelevante por exemplo numa

investigaccedilatildeo cientiacutefica cujo objetivo eacute reunir evidecircncias para provar se uma

proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa e

(iv) falacioso o uso do apelo eacute fraco e utilizado agressivamente para bloquear os

fins do diaacutelogo e se proteger de questionamentos criacuteticos201

Aleacutem disso mais importante do que determinar se um uso eacute falacioso consiste

em saber como reagir adequadamente ao uso de tal emoccedilatildeo Para isso fornece-se o

seguinte checklist com sete fatores

(i) contexto identificar o contexto do diaacutelogo indagar se o uso da emoccedilatildeo eacute

adequado para aquele contexto e se contribui para os fins da discussatildeo

(ii) peso identificar o tamanho da importacircncia a ser dado ao uso do apelo no

caso em questatildeo o apelo agrave compaixatildeo eacute a questatildeo central do problema ou eacute

apenas algo secundaacuterio

(iii) neutralizaccedilatildeo caso o apelo seja o objeto central da discussatildeo eacute necessaacuterio

reagir energeticamente

(iv) outras consideraccedilotildees importantes caso o apelo agrave misericoacuterdia seja algo

secundaacuterio determinar quais satildeo as questotildees principais para o caso

(v) sopesamento quando o apelo agrave misericoacuterdia eacute utilizado por meio de

argumento por consequecircncias eacute necessaacuterio sopesar ambos os lados

201

Id ibid p 140

81

(vi) presunccedilotildees inadequadas os casos falaciosos geralmente se apresentam

quando o proponente por meio do apelo insere agressivamente uma presunccedilatildeo

com o objetivo de mascarar a necessidade de argumentar adequadamente e

(vii) mais informaccedilotildees ao inveacutes de precipitadamente taxar uma argumentaccedilatildeo

de ldquofalaciosardquo conveacutem requerer mais informaccedilotildees sobre as particularidades do

caso202

De outra parte em relaccedilatildeo ao apelo ao caraacuteter (ad hominem) Walton

diferentemente da abordagem tradicional da loacutegica que o presume sempre falacioso

defende que em determinados casos ele eacute adequado porque no cerne da questatildeo pode

interessar saber questotildees relacionadas ao caraacuteter da pessoa203

Eacute conveniente primeiramente notar que o apelo ao caraacuteter natildeo eacute em si mesmo

uma emoccedilatildeo A inclusatildeo entre as falaacutecias emocionais se justifica por conta dos seus

efeitos isto eacute pela sua capacidade de instigar os acircnimos emotivos nos seus

destinataacuterios204

Assim por exemplo no tribunal podem emergir duacutevidas razoaacuteveis sobre a

credibilidade do depoimento de uma testemunha A sua confiabilidade pode restar

prejudicada diante de inconsistecircncias de afirmaccedilotildees diante da demonstraccedilatildeo de que se

trata de uma pessoa tendenciosa ou de que eacute possuidora de mau caraacuteter Em todas essas

hipoacuteteses eacute razoaacutevel o uso de argumentos que coloque em cheque o caraacuteter da

pessoa205

Em campanhas poliacuteticas depois da chamada ldquoonda eacuteticardquo passou-se a

considerar que questotildees ligadas ao caraacuteter do candidato satildeo de interesse puacuteblico de

modo que eacute razoaacutevel em debates explorar inconsistecircncia de afirmaccedilotildees problemas de

conduta no passado do candidato financiamentos de campanha duvidosos206

O grande problema de argumentos que se destinem a atingir o caraacuteter de outra

pessoa estaacute na sua propensatildeo em transformar um diaacutelogo criacutetico em uma verdadeira luta

verbal em que os acircnimos dos participantes se elevam aos piores niacuteveis ldquode fato o que

acontece muito frequentemente eacute que o diaacutelogo criacutetico original se deteriora num diaacutelogo

eriacutestico ou em espeacutecies de lsquocombate verbalrsquo em que o senso criacutetico eacute deixado para traacutes e

202

Id ibid p 141-142 203

Id ibid p 193 204

Id ibid p p 259-260 205

Id ibid p 195-196 206

Id ibid p 193-194

82

o uacutenico objetivo eacute lsquogolpearrsquo verbalmente a outra parte para lhe ferirrdquo207

Neste caso o

uso do apelo ao caraacuteter eacute considerado falacioso porque altera ilicitamente um diaacutelogo

criacutetico para uma briga verbal (quarrel)208

Por uacuteltimo em relaccedilatildeo ao apelo agrave ameaccedila Walton diz que ele pode ser imoral

ilegal repulsivo brutal sem ser falacioso Para resultar numa falaacutecia ele precisa ir

contra os objetivos do diaacutelogo ldquomuito frequentemente os textos simplesmente

presumem que dado um brutal ou repulsivo ou moralmente repugnante apelo agrave forccedila os

estudantes ou os leitores natildeo necessitaratildeo de mais nenhum esforccedilo persuasivo para

classificaacute-lo como falaacuteciardquo209

Poreacutem em negociaccedilotildees diplomaacuteticas tais apelos satildeo adequados porque este tipo

de diaacutelogo normalmente envolve ameaccedila de sanccedilotildees de retaliaccedilotildees de rompimento de

relaccedilotildees econocircmicas etc Assim eacute preciso estar atento para o tipo de diaacutelogo e o

contexto em que o apelo foi utilizado Ademais eacute necessaacuterio observar se a forma pela

qual foi utilizado objetivou bloquear os objetivos do diaacutelogo Portanto para avaliar a

adequaccedilatildeo do uso da emoccedilatildeo faz toda diferenccedila se as partes se encontram numa

negociaccedilatildeo ou num diaacutelogo persuasivo210

Tendo realizada essa breve exposiccedilatildeo das falaacutecias parte-se agora para os

comentaacuterios finais acerca do modelo de anaacutelise de argumentos em comentaacuterio

Em primeiro lugar eacute preciso dizer que Walton se mostra bastante consciente a

respeito de duas abordagens que podem ser utilizadas para pensar as emoccedilotildees Assim eacute

possiacutevel entendecirc-las como contraacuterias agrave razatildeo e por isso natildeo lhes confiar nenhum

espaccedilo na argumentaccedilatildeo porque o seu uso de todo modo seria suspeito211

Neste

uacuteltimo modelo imperaria o paradigma da loacutegica fria (cold logic) isto eacute uma maneira de

pensar desapaixonada calma e fundada na loacutegica212

De outra parte eacute possiacutevel pensar

que as emoccedilotildees possuem uma funccedilatildeo importante em discussotildees eacuteticas poliacuteticas em

assuntos em que natildeo existe conhecimento conclusivo sobre o meacuterito da questatildeo213

207

ldquoIn fact too often what happens is that the original critical discussion deteriorates into an eristic

dialogue or species of lsquoverbal combatrsquo where critic restraint is left behind and the only aim is to lsquohit outrsquo

verbally to injure the other partyrdquo (trad livre) Id ibid p 192 208

Id ibid p 216 209

ldquoToo often the texts simply presume that given a brutal or repulsive or morally repugnant appeal to

force the students or readers of the text will need no further persuasion to classify it as fallacyrdquo Id ibid

p 78 210

Id ibid p 159 211

Id ibid p 67 212

Id ibid p 2 213

Id ibid p 67

83

Essas duas formas de pensar as emoccedilotildees estatildeo presentes respectivamente na

filosofia de Aristoacuteteles e dos estoicos Se pudeacutessemos realizar uma aproximaccedilatildeo entre

tais formas de pensar com o modelo que aqui expusemos afirmariacuteamos que Walton estaacute

proacuteximo do pensamento de Aristoacuteteles Poreacutem natildeo do pensamento presente na retoacuterica

aristoteacutelica mas da abordagem emotiva construiacuteda na Eacutetica a Nicocircmaco que

compreende que a boa medida das emoccedilotildees ocorre quando elas satildeo sentidas

adequadamente e isso significa dizer que elas devem ser experimentadas no momento

certo de modo correto em relaccedilatildeo agraves pessoas e aos fins certos Em outras palavras as

emoccedilotildees podem ser adequadas ou inadequadas de acordo com as circunstacircncias

Walton admite que as emoccedilotildees podem desempenhar uma importante funccedilatildeo na

argumentaccedilatildeo mas eacute preciso ter cautela porque elas tambeacutem podem ser mal utilizadas

Assim satildeo fornecidos alguns paracircmetros para verificar o seu grau de adequaccedilatildeo ou

inadequaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo

para o impacto do uso da emoccedilatildeo e para o contexto em que satildeo utilizadas Quando bem

empregadas elas satildeo legiacutetimas e importantes para uma boa decisatildeo

Ademais o canadense tambeacutem informa que essa ldquodisputardquo estre aristoteacutelicos e

estoicos a respeito das emoccedilotildees continua nos dias de hoje a exercer a sua influecircncia e

deu azo para que Brinton justificasse a criaccedilatildeo do argumentum ad indignationem Como

se sabe sentir raiva para a eacutetica estoica eacute terminantemente proibido sob qualquer

circunstacircncia mas para Aristoacuteteles natildeo sentir raiva em relaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo que

merecesse seria uma falha de caraacuteter Adotando este uacuteltimo posicionamento o

argumentum ad indignationem seria o uso da raiva na argumentaccedilatildeo na medida

adequada agrave situaccedilatildeo214

Walton justifica que estudar os aspectos falhos da argumentaccedilatildeo e

principalmente compreender quando as emoccedilotildees satildeo utilizadas inadequadamente eacute um

exerciacutecio importante para o aperfeiccediloamento da praacutetica argumentativa porque em

assuntos polecircmicos e difiacuteceis geralmente ficamos presos a inclinaccedilotildees pessoais

tornamo-nos facilmente apaixonados e perdemos a perspectiva criacutetica ldquoataques

pessoais diversatildeo emocional e outras tentaccedilotildees satildeo caracteriacutesticas mais frequentes da

argumentaccedilatildeo humana do que o uso de argumentos corretos e friamente imparciaisrdquo215

214

Id ibid p 68 215

ldquopersonal attack emotional diversion and other temptations are more often characteristic of human

reasoning than correct and coolly impartial argumentsrdquo (trad livre) Id ibid p 64

84

Por derradeiro registre-se que ao tentar encontrar um lugar para as emoccedilotildees na

argumentaccedilatildeo como o proacuteprio tiacutetulo da sua obra sugere Walton procura devolver

complexidade agrave mateacuteria evitando o impulso de previamente classificar qualquer apelo

emotivo como falacioso Desse modo a abordagem sob comento concilia-se com alguns

aspectos da argumentaccedilatildeo praacutetica mas frise-se sem perder a perspectiva criacutetica jaacute que

natildeo abandona a censura quanto ao mau uso das emoccedilotildees no discurso

De outra parte por ser um estudo criacutetico em relaccedilatildeo agraves ldquofalaacutecias adrdquo Walton

fica preso a este paradigma classificatoacuterio e por isso natildeo explora algumas questotildees

importantes para a mateacuteria Por exemplo como identificar as emoccedilotildees no discurso De

que modo elas podem se apresentar Tentar responder tais perguntas consiste no

objetivo do proacuteximo toacutepico

25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees

Localizar as emoccedilotildees no discurso natildeo eacute uma atividade oacutebvia e a linguiacutestica

recentemente tem envidado relevante esforccedilo para encontraacute-las embora nem sempre

tenha sido assim

Kerbrat-Orechionni afirma que o espaccedilo para as emoccedilotildees na linguiacutestica do sec

XX foi miacutenima216

Desse modo falando em nome de toda uma geraccedilatildeo Saphir em

1921 diz que o material da liacutengua satildeo os conceitos as ideias e a realidade objetiva

sendo que as emoccedilotildees satildeo consideradas subjetividades linguiacutesticas de importacircncia

secundaacuteria que tentam expressar questotildees interiores do homem O linguista alematildeo

categoricamente afirma que as emoccedilotildees na qualidade de manifestaccedilotildees instintivas que

partilhamos com os seres irracionais natildeo podem ldquo[] ser consideradas como fazendo

parte da concepccedilatildeo cultural essencial da linguagemrdquo217

Fazendo um contraste com esta afirmaccedilatildeo e jaacute num outro momento do seacuteculo

XX Schieffelin e Ochs em 1989 defendem que para aleacutem da funccedilatildeo de comunicar

informaccedilotildees referenciais a liacutengua eacute veiacuteculo fundamental na transmissatildeo de sentimentos

estados de espiacuterito e disposiccedilotildees ldquoesta necessidade eacute tatildeo criacutetica e tatildeo humana quanto

216

ORECCHIONI-KERBRAT Catherine Quelle place pour les eacutemotions dans la linguistique du XXe

siegravecle Remarques et aperccedilus In PLANTIN Christian DOURY Marianne TRAVERSO Veacuteronique

(dir) Les eacutemotions dans les interations Lyon Presses Universitaires de Lyon 2000 p 33 217

ldquothey cannot be considered as forming part of the essential cultural conception of languagerdquo (trad

livre) SAPHIR Edward Language an introduction to the study of speech New York Hartcourt Brace

and Company 1921 p 40

85

aquela de descrever eventosrdquo218

Assim separando os canais de transmissatildeo dos afetos

entre verbais e natildeo-verbais (expressotildees faciais gestos etc) os mencionados autores

concentram os seus estudos nos meios verbais de expressatildeo A conclusatildeo alcanccedilada eacute

que a liacutengua como um todo eacute um campo do afeto inclusive aquelas aacutereas

tradicionalmente consideradas circunscriccedilotildees exclusivas da loacutegica

Natildeo se pode arguir por exemplo que a sintaxe sirva exclusivamente a

funccedilotildees loacutegicas enquanto as funccedilotildees afetivas satildeo realizadas pela

entonaccedilatildeo e pelo leacutexico O afeto permeia o sistema linguiacutestico por

inteiro Praticamente qualquer aspecto do sistema linguiacutestico que eacute

variaacutevel eacute candidato a expressar afeto219

Eacute sobre esse tema que a escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo tem se preocupado

nos uacuteltimos tempos sendo Plantin um dos pioneiros no estudo das emoccedilotildees no discurso

Assim no intento de buscar referecircncias de anaacutelise para o exame de decisotildees judiciais a

ser realizado no Capiacutetulo III iremos abordar a classificaccedilatildeo proposta por Micheli um

dos representantes de tal escola

Eemeren conforme vimos anteriormente afirma que o ldquoteste aacutecidordquo de uma

teoria da argumentaccedilatildeo diz respeito agrave sua compreensatildeo sobre as falaacutecias Se ela passar

nessa difiacutecil prova pode-se dizer que estamos diante de uma teoria da argumentaccedilatildeo

com bom poder de explanaccedilatildeo e de alcance

Assim se levarmos rigorosamente tal afirmaccedilatildeo em consideraccedilatildeo podemos

dizer que iremos analisar uma teoria da argumentaccedilatildeo que perdeu o seu ldquoinstintordquo uma

vez que a abordagem utilizada eacute puramente descritiva A despeito disso abordagens

descritivas tecircm o seu papel pois procurando narrar os eventos do mundo de maneira

mais interessante podem organizar melhor determinados temas ou ateacute possibilitarem

melhores insights prescritivos

Dito isso Micheli considera que um dos grandes problemas em relaccedilatildeo ao

exame das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade O objetivo do seu

trabalho portanto consiste em fornecer um modelo que possibilite analisar e distinguir

o complexo processo em que as emoccedilotildees satildeo semiotizadas no discurso Para isso

apresenta-se uma tipologia classificatoacuteria econocircmica mas ao mesmo tempo

218

ldquoThis need is as critical and as human as that of describing eventsrdquo (trad livre) OCHS Elinor

SCHIEFFELIN Bambi Language has a heart In Interdisciplinary journal for the study of discourse 7-

26 p9 219

ldquoOne cannot argue for example that syntax exclusively serves logical functions while affective

functions are carried out by intonation and the lexico Affect permeates the entire linguistic system

Almost any aspect of the linguistic system that is variable is a candidate for expressing affectrdquo (trad

livre) Id ibid p 22

86

teoricamente forte o suficiente para descrever satisfatoriamente o fenocircmeno em

comentaacuterio220

Primeiramente adverte-se que tal modelo natildeo se interessaraacute pelas emoccedilotildees

efetivamente experimentadas pelos sujeitos do discurso Assim natildeo seraacute objeto de

especulaccedilatildeo se o sujeito realmente experimenta aquilo que ele exprime ou procura

suscitar no seu discurso (orador) nem seraacute o cerne da pesquisa saber se o destinataacuterio

do discurso de fato sente aquela emoccedilatildeo endereccedilada (auditoacuterio) porque poderaacute haver

discrepacircncias entre aquilo que eacute publicizado e o que eacute efetivamente sentido ldquoum estudo

da construccedilatildeo das emoccedilotildees no discurso natildeo concerne assim nem agrave emoccedilatildeo efetivamente

sentida pelo locutor nem aquela efetivamente suscitada no alocutaacuteriordquo221

Assim excluindo a categoria da emoccedilatildeo experimentada a tipologia apresentada

por Micheli para a anaacutelise do discurso emotivo eacute a seguinte a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo

demonstrada e a emoccedilatildeo suportada

Na categoria da emoccedilatildeo dita percebe-se a presenccedila de enunciados em cujo seio

se apresenta uma palavra do leacutexico que designa especificamente uma emoccedilatildeo (ldquoestes

problemas processuais me datildeo raivardquo ldquoo reacuteu estava indignadordquo) Uma das

caracteriacutesticas da emoccedilatildeo dita eacute que ela faz referecircncia a um ente que sente a emoccedilatildeo

(ldquomerdquo ldquoo reacuteurdquo) Assim natildeo pertencem a esta categoria aquelas hipoacuteteses em que uma

emoccedilatildeo eacute ela mesma objeto de descriccedilatildeo (ldquoa raiva eacute cegardquo ldquoo amor eacute capaz de tudordquo)

natildeo sendo estes enunciados hipoacuteteses de um discurso emotivo222

Desse modo na emoccedilatildeo dita eacute preciso que o item lexical designador de uma

emoccedilatildeo seja atribuiacutedo a uma entidade humana ou humanizaacutevel (ldquoo povordquo ldquoelerdquo ldquoeurdquo

algum animal etc) 223

Portanto uma das caracteriacutesticas do discurso que diz a emoccedilatildeo eacute

que ele tanto pode auto-atribuir a emoccedilatildeo (ldquoa situaccedilatildeo me deixa indignadordquo) quanto

pode alo-atribuiacute-la (ldquoa raiva tomou conta da meninardquo) Assim haacute uma relaccedilatildeo

predicativa entre duas expressotildees ldquouma que incorpora um termo emotivo e outro que

designa uma entidade humana ou humanizaacutevel que deveria sentir tal emoccedilatildeordquo224

220

MICHELI Raphaumlel Les eacutemotions dans les discours modegravele drsquoanalyse perspectives empiriques

Louvain-la-Neuve De Boeck Supeacuterieur 2014 p 11-12 221

ldquoUne eacutetude de la construction des eacutemotions dans le discours ne concerne ainsi ni lrsquoeacutemotion

effectivement ressentie par le locuteur ni celle effectivement susciteacuteeacute chez lrsquoallocutairerdquo (trad livre) Id

ibid p 118 222

Id ibid p 43 223

Id ibid p 43 224

ldquolrsquoune incorporant un terme drsquoeacutemotion lrsquoautre deacutesignant une entiteacute humaine ou humanisable censeacutee

ressentir cette eacutemotionrdquo (trad livre) Id ibid p 46

87

Ademais conveacutem registrar que existem fatores variaacuteveis nas declaraccedilotildees que

dizem uma emoccedilatildeo Por exemplo o termo emotivo pode pertencer a vaacuterias categorias

lexicais um nome (ldquoindignaccedilatildeordquo) um adjetivo (ldquoindignadordquo) um verbo (ldquoindignar-serdquo)

um adveacuterbio (ldquoindignadamenterdquo) De outra parte o termo emotivo pode ocupar

diferentes posiccedilotildees sintaacuteticas sujeito (ldquoa compaixatildeo se apoderou do juizrdquo)

complemento direto (ldquoele sentiu muita vergonhardquo) Vaacuterios verbos satildeo capazes de

facilitar esse processo ldquoinvadirrdquo ldquosubmergirrdquo ldquotomarrdquo ldquoterrdquo ldquoserrdquo ldquosentirrdquo

ldquoexperimentarrdquo ldquoexplodirrdquo etc (ldquoo depoimento da testemunha fez com que todos

explodissem de raivardquo)225

Se a emoccedilatildeo dita tem por sua caracteriacutestica o fato de ser mais facilmente

observaacutevel a categoria da emoccedilatildeo demonstrada carece de contornos precisos a sua

interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel apenas atraveacutes de indiacutecios que nos possibilitam inferir a

presenccedila de uma emoccedilatildeo ldquoenunciados que demonstrem uma emoccedilatildeo tecircm caracteriacutesticas

que embora potencialmente muito heterogecircneas satildeo todas passiacuteveis de uma

interpretaccedilatildeo indicialrdquo226

Assim na emoccedilatildeo demonstrada natildeo haacute a presenccedila de um expliacutecito termo

emotivo e por essa razatildeo inexiste uma relaccedilatildeo predicativa que a conecta a uma

entidade humana afetada pela emoccedilatildeo Por isso a sua interpretaccedilatildeo reside na procura de

indiacutecios ldquoIndiacuteciordquo aqui significa a presenccedila de um signo a partir do qual se infere a

presenccedila de determinado objeto porque normalmente diante da ocorrecircncia do

primeiro tambeacutem ocorre o segundo Em outras palavras pode-se afirmar que em face

da apresentaccedilatildeo de determinadas caracteriacutesticas discursivas eacute plausiacutevel inferir que ela eacute

causada por uma emoccedilatildeo supostamente sentida pelo locutor227

Registre-se que nesta categoria natildeo interessa saber a respeito da descriccedilatildeo de

processos fisioloacutegicos ou comportamentais da emoccedilatildeo (ldquoo coraccedilatildeo disparou os laacutebios

tremeram e ele sentiu um enorme frio na barrigardquo) pois se os indiacutecios satildeo verbalizados

e detalhados eles natildeo satildeo mais indiacutecios228

Assim a fim de esclarecer sem exaustividade quais indiacutecios satildeo importantes

para a categoria da emoccedilatildeo demonstrada oferecem-se alguns marcadores que precisam

ser interpretados dentro de um contexto situacional determinado a fim de compreender

225

Id ibid p 49-51 226

ldquoLes eacutenonceacutes qui montrent lrsquoeacutemotion preacutesentent des caracteacuteristiques qui bien que potentiellement tregraves

heacuteteacuterogegravenes sont toutes passibles drsquoune interpreacutetation indiciellerdquo (trad livre) Id ibid p 63 227

Id ibid p 64 228

Id ibid p 66-67

88

de que modo eles satildeo utilizados e a que espeacutecies de emoccedilatildeo eles se referem Por

exemplo (i) as interjeiccedilotildees (ldquonossa quanto processordquo ldquomeu deusrdquo ldquoahrdquo) (ii) a

exclamaccedilatildeo (ldquopreciso ir emborardquo ldquoque julgamentordquo) (iii) os enunciados eliacutepticos que

por meio de uma reduccedilatildeo sintaacutetica possibilitam a manifestaccedilatildeo indicial de uma emoccedilatildeo

(iv) os enunciados averbais (v) os enunciados deslocados agrave direita pois existe uma

relaccedilatildeo entre o modo de ordenar a frase dando ecircnfase a determinados elementos e as

emoccedilotildees (ldquoeacute muito trabalhador esse juizrdquo)229

Por uacuteltimo e de maior interesse para o nosso trabalho estaacute a ideia de emoccedilatildeo

suportada Nesta categoria eacute possiacutevel inferir que uma emoccedilatildeo fundamenta um

especiacutefico discurso natildeo porque ela seja nomeada explicitamente nem porque existam os

tipos de indiacutecios descritos logo acima mas porque a estrutura linguiacutestica do discurso

espelha ou ldquoesquematizardquo a estrutura cognitiva de uma determinada emoccedilatildeo

Primeiramente para explicar esta categoria Micheli fundamentado na

psicologia cognitiva especialmente na Teoria da Avaliaccedilatildeo que iremos abordar com

mais detalhes no proacuteximo toacutepico procura estabelecer uma relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a

avaliaccedilatildeo da realidade A experiecircncia emocional do sujeito estaacute diretamente relacionada

agrave avaliaccedilatildeo que ele faz de uma determinada situaccedilatildeo Dois indiviacuteduos podem avaliar

uma mesma situaccedilatildeo diferentemente e por isso obterem distintas respostas emocionais

Ademais baseando-se numa perspectiva socioloacutegica e antropoloacutegica enfatiza-se que o

contexto sociocultural tem destacada funccedilatildeo na forma pela qual o indiviacuteduo avalia a

realidade O pertencimento a uma determinada cultura pode explicar a preponderacircncia

de determinadas respostas emotivas em detrimento de outras230

Tais observaccedilotildees satildeo feitas com o objetivo de transpocirc-las para o campo da

anaacutelise do discurso ldquoa questatildeo agora eacute saber como tirar parte desses diversos trabalhos

numa oacutetica das ciecircncias da linguagem e para aquilo que nos interessa da anaacutelise do

discursordquo231

Para isso o autor recorre agrave noccedilatildeo de ldquoesquemardquo discursivo derivada de Grize O

esquema eacute uma especiacutefica forma de organizar a realidade fazecirc-la compreensiacutevel e

assim transmitir linguisticamente as emoccedilotildees Desse modo fornecem-se 7 (sete)

229

Id ibid p 75-95 230

Id ibid p 106-112 231

ldquoLa question est maintenant de savoir comment tirer parti de ces divers travaux dans une optique de

sciences du langage et pour ce qui nous concerne drsquoanalyse du discoursrdquo (trad livre) Id ibid p 112

89

criteacuterios de esquematizaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo emotiva derivados tanto da psicologia

cognitiva quanto dos trabalhos de Plantin

(i) as pessoas implicadas identificar quem satildeo as pessoas presentes no discurso

como elas satildeo representadas e nomeadas e quais papeis satildeo a elas associadas

(ii) as noccedilotildees de tempo e de espaccedilo identificar como a situaccedilatildeo eacute descrita no

tempo e no espaccedilo pelo locutor a fim de enfatizar os seus aspectos emotivos

ldquoontem mesmordquo ldquotodos os dias no Brasilrdquo

(iii) as consequecircncias e o grau de probabilidade identificar como o discurso

descreve as consequecircncias da situaccedilatildeo esquematizada e de que modo eacute

enfatizado o grau de probabilidade de seu acontecimento

(iv) a atribuiccedilatildeo causal e a autoria identificar se o discurso assinala uma causa

para a situaccedilatildeo esquematizada e se haacute um agente cuja accedilatildeo ou omissatildeo resultou

na hipoacutetese narrada por exemplo na indignaccedilatildeo a descriccedilatildeo do sofrimento de

um determinado sujeito eacute resultado de uma accedilatildeo ou de uma omissatildeo imputaacutevel a

um agente

(v) o potencial de controle identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo

emotiva eacute esquematizado O discurso pode enfatizar o grau de incontrolabilidade

de uma determinada situaccedilatildeo a fim de despertar o medo ou pode enfatizar a sua

controlabilidade para fundar sentimentos de aliacutevio e de alegria

(vi) a semelhanccedila identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute comparada com

outra situaccedilatildeo a fim de lhe emprestar conteuacutedo emocional Por exemplo

Micheli narra que em 1791 Robespierre no debate parlamentar a respeito da

aboliccedilatildeo da pena de morte na Franccedila lanccedila a seguinte comparaccedilatildeo a fim de

demonstrar a desproporcionalidade de forccedilas presente em duas situaccedilotildees um

homem que mata uma crianccedila a qual poderia ter sido simplesmente desarmada

parece ser um monstro um prisioneiro que a sociedade condena estaacute numa

situaccedilatildeo de maior fragilidade do que a de uma crianccedila ante a um adulto

(vii) a significaccedilatildeo normativa identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute

compatiacutevel ou incompatiacutevel com os valores e normas compartilhados em relaccedilatildeo

a um grupo de referecircncia A vergonha por exemplo atua diante da crenccedila da

incapacidade de atingir as normas de determinados grupos (profissional

familiar amigos etc)232

232

Id ibid p 115-119

90

Assim e a tiacutetulo comparativo na emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo eacute expressamente

designada por meio de um termo emotivo enquanto que na emoccedilatildeo demonstrada e

suportada a identificaccedilatildeo da emoccedilatildeo eacute alcanccedilada por meio de uma interpretaccedilatildeo

inferencial Por outro lado na emoccedilatildeo demonstrada parte-se de indiacutecios (signos) a fim

de se inferir a presenccedila de determinada emoccedilatildeo e na emoccedilatildeo suportada haacute uma

esquematizaccedilatildeo dos fundamentos de uma determinada emoccedilatildeo a partir do qual se infere

a sua presenccedila233

Ademais saliente-se que estas trecircs categorias (a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo

demonstrada e a emoccedilatildeo suportada) podem simultaneamente estar presentes num

mesmo discurso ou natildeo ou seja eacute possiacutevel que um discurso seja portador de uma

emoccedilatildeo sem que expressamente a mencione

Tendo finalizada a exposiccedilatildeo da classificaccedilatildeo elaborada por Micheli eacute preciso

registrar que um dos objetivos da abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees no discurso e que

vem ao encontro do escopo deste trabalho consiste em diminuir a forte separaccedilatildeo

atualmente existente entre logos e pathos

Nesse sentido Plantin destaca que em nossa eacutepoca os aspectos racionais e

emocionais andam tatildeo desconectados que ao se falar que um discurso tem caraacuteter

emotivo levanta-se automaticamente a suspeita de se estar tratando de algo em direccedilatildeo

oposta agrave razatildeo ldquoa antinomia racional e emocional estaacute tatildeo profundamente assentada que

caracterizar um discurso como lsquoemocionalrsquo equivale praticamente a dizer que ele natildeo eacute

racional Esta interpretaccedilatildeo deve ser fortemente rejeitadardquo234

Motivos para essa forte separaccedilatildeo com niacutetido prejuiacutezo para o estudo do campo

das emoccedilotildees natildeo faltam temos a longa tradiccedilatildeo pejorativa da retoacuterica as emoccedilotildees

foram intensamente utilizadas e associadas agrave propaganda de regimes totalitaacuterios a

disciplina das falaacutecias eacute o uacutenico espaccedilo dentro da teoria standard da argumentaccedilatildeo que

tematiza as emoccedilotildees e se pudermos refletir este assunto ainda mais distante no tempo

temos antigas tradiccedilotildees filosoacuteficas tal como a escola estoica que entendem as emoccedilotildees

como irracionais contraacuterias agrave natureza excessivas e que por isso deveriam ser

suprimidas a fim de compreendermos corretamente o mundo

233

Id ibid p 119-120 234

ldquoThe antonomy rationalemotional is so deeply grounded that characterizing a discourse as lsquoemotionalrsquo

practically amounts to implying that it is not rational Such an interpretation should be strongly rejectedrdquo

(trad livre) PLANTIN Christian On the Inseparability of Emotion and Reason in Argumentation In

WEIGAND Edda (ed) Emotion in dialogic interaction AmsterdamPhiladelphia John Benjamins

Publishing Company 2004 265-276 p 274

91

No entanto e sob a perspectiva argumentativa Plantin destaca que eacute

impraticaacutevel se livrar das emoccedilotildees na linguagem jaacute que o argumentar implica tambeacutem

assumir posiccedilotildees afetivas diante do mundo ldquoEacute impossiacutevel moldar linguisticamente um

evento sem no mesmo gesto mostrar uma atitude emocional em relaccedilatildeo a este evento

Manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees emocionais natildeo satildeo distintas das manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees

racionaisrdquo235

Destaque-se que na abordagem tradicional ou padratildeo da MTA as emoccedilotildees satildeo

vistas como ldquoreforccedilosrdquo ou ldquonatildeo-argumentosrdquo ocupam papel ldquoauxiliarrdquo no discurso satildeo

registradas como ldquoapelosrdquo e por isso tecircm um tratamento teoacuterico bem limitado

aparecendo no mais das vezes como erros de argumentaccedilatildeo na disciplina das ldquofalaacutecias

adrdquo

Contra este panorama Micheli advoga que as emoccedilotildees podem ser

argumentaacuteveis isto eacute elas mesmas podem ser objeto do discurso e por isso de

construccedilatildeo argumentativa ldquoa este respeito os falantes argumentam a favor ou contra

uma emoccedilatildeo eles datildeo razotildees para fundamentar por que eles sentem (ou natildeo sentem)

esta emoccedilatildeo e por que ela deveria (ou natildeo deveria) ser legitimamente sentidardquo236

Ao analisar os registros do debate parlamentar francecircs acerca da aboliccedilatildeo da

pena de morte entre 1791 ateacute 1981 Micheli anota que havia algo em comum entre

abolicionistas e anti-abolicionistas ambos forneciam razotildees para sentir ou natildeo sentir

uma determinada emoccedilatildeo

Por exemplo no debate de 1791 tanto os abolicionistas quanto os anti-

abolicionistas elaboram o sentimento de medo por meio de argumentos de

consequecircncia

Do lado abolicionista os efeitos do ldquoespetaacuteculo da execuccedilatildeordquo sobre o puacuteblico

satildeo construiacutedos argumentativamente do seguinte modo a pena de morte alimenta o

sentimento de crueldade nas pessoas porque ocorre um processo de dessensibilizaccedilatildeo

do ser humano ldquoo espetaacuteculo da execuccedilatildeo tem por efeito atenuar ou inibir as

disposiccedilotildees morais e afetivas saudaacuteveisrdquo237

Ademais a crueldade tornada puacuteblica eacute um

235

ldquoIt is impossible to linguistically shape an event without in the same gesture displaying an emotional

attitude towards this event Emotional manipulationsconstructions are not distinct from rational

manipulations constructionsrdquo (trad livre) Id ibid p 274 236

ldquoIn this respect speakers argue in favor of or against an emotion they give reasons supporting why

they feel (or do not feel) this emotion and why it should (or should not) be legitimately feltrdquo (trad livre)

MICHELI Raphaumlel Emotions as objects of argumentative constructions In Argumentation Journal

2010b vol 24 Issue 1 1ndash17 p 13 237

ldquole spectacle de lrsquoexeacutecution a pour effet drsquoatteacutenuer voire drsquoinhiber des dispositions morales et

affectives sainesrdquo (trad livre) MICHELI R op cit 2010a p 248

92

estiacutemulo para que pessoas perversas venham a cometer crimes ou seja cria-se um

ambiente propiacutecio ao cometimento de mais delitos238

Por sua vez do lado anti-abolicionista explora-se a ineficaacutecia das penas

alternativas em diminuir a criminalidade O criminoso potencial natildeo seraacute mais

atemorizado por nada o resultado disso eacute uma sociedade cheia de crimes e de

delinquentes

Em resumo por meio da construccedilatildeo de argumentos que antecipem as

consequecircncias negativas da nova legislaccedilatildeo cada parte do debate procurou estruturar o

sentimento de medo no discurso

Por uacuteltimo conveacutem registrar que embora a teoria desenvolvida por Micheli natildeo

tenha fornecido criteacuterios para a avaliaccedilatildeo do discurso emotivo ela significativamente

melhorou a visualizaccedilatildeo do tema ao possibilitar a organizaccedilatildeo do assunto por meio de

uma classificaccedilatildeo econocircmica compreensiacutevel e com capacidade descritiva Nesse ponto

eacute necessaacuterio reconhecer que aleacutem de natildeo se interessar pelo tema das emoccedilotildees a teoria

normativa da argumentaccedilatildeo parece tambeacutem sofrer de um deacuteficit descritivo

26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees

Enfrentar o tema das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo implica tambeacutem se posicionar a

respeito de problemas de psicologia e talvez resida neste especiacutefico ponto um dos

grandes diferenciais das escolas filosoacuteficas da Antiguidade Isso porque o pensamento

antigo era caracterizado por ser integral ou seja ele abrangia os mais diversos aspectos

do saber humano (eacutetica poliacutetica retoacuterica fiacutesica epistemologia etc) o que facilitava

significativamente o tratamento do presente assunto porque a proacutepria escola filosoacutefica

produzia a sua psicologia que depois era aplicada em outras aacutereas Desse modo tanto

Aristoacuteteles quanto os estoicos transitaram com autoridade sobre o tema das emoccedilotildees

justamente porque elaboraram sua proacutepria disciplina psicoloacutegica

Eacute certo que o forte desenvolvimento da ciecircncia moderna eacute tambeacutem resultado do

fenocircmeno da especializaccedilatildeo do saber o que permite por exemplo que uma pessoa

passe a sua vida inteira apenas pesquisando sobre as propriedades dos neutrinos Mas

por outro lado eacute razoaacutevel pensar que estes ldquodesligamentosrdquo entre as aacutereas provocaram

algumas fraturas de pensamento que hoje em dia a interdisciplinaridade procura um

pouco diminuir

238

Id ibid p 248-249

93

Desse modo a fim de possibilitar a compreensatildeo psicoloacutegica de nossa eacutepoca

acerca das emoccedilotildees nosso intento neste toacutepico consiste em apresentar alguns aspectos

principais da chamada Teoria da Avaliaccedilatildeo pertencente ao campo da psicologia

cognitiva

Assim em primeiro lugar situando historicamente o nascimento da Teoria da

Avaliaccedilatildeo interessa perceber que ateacute por volta de 1960 a importacircncia das emoccedilotildees

para a psicologia era praticamente nula devido agrave resistecircncia em relaccedilatildeo ao tema por

parte do behaviorismo e do positivismo loacutegico campos da psicologia predominantes na

eacutepoca A ecircnfase dos textos de psicologia era direcionada para a aprendizagem para a

personalidade para a motivaccedilatildeo para a percepccedilatildeo para a fisiologia e para a

psicopatologia239

Quando o presente tema era abordado a uacutenica emoccedilatildeo que ganhava algum

destaque por influecircncia freudiana era a anguacutestia entendida como emoccedilatildeo-chave para

explicar os transtornos de ordem mental as demais emoccedilotildees natildeo eram tematizadas

muito menos individualizadas Havia algum interesse em relaccedilatildeo agrave culpa tambeacutem por

influecircncia da psicanaacutelise e em relaccedilatildeo agrave depressatildeo mas esta uacuteltima natildeo eacute considerada

uma emoccedilatildeo mas um complexo processo mental em que vaacuterias emoccedilotildees negativas

estatildeo atuantes240

Outro pensamento influente era de que as emoccedilotildees natildeo passavam de

interrupccedilotildees das operaccedilotildees mentais natildeo merecendo por isso atenccedilatildeo241

Assim em

resumo ldquoos psicoacutelogos acadecircmicos pareciam estar pouco interessados nas emoccedilotildees e

uma vez que eles natildeo as incluiacuteam no curriacuteculo oficial eacute possiacutevel dizer que eles as

consideravam uma mateacuteria altamente especializada talvez ateacute exoacuteticardquo242

O pecircndulo da balanccedila comeccedilou a mudar em virtude dos trabalhos pioneiros de

Magda Arnold e de Richard S Lazarus na deacutecada de 1960 Assim divergindo do

paradigma da eacutepoca Arnold defendeu na sua teoria cognitiva que a deflagraccedilatildeo da

emoccedilatildeo depende em primeiro lugar da avaliaccedilatildeo feita pelo indiviacuteduo de uma

determinada situaccedilatildeo Por sua vez Lazarus realizando pesquisas entre a relaccedilatildeo das

239

LAZARUS Richard S Emotion amp adaptation New YorkOxford Oxford University Press 1991

p 4-5 240

Id ibid p 5 241

SCHOR Angela Appraisal the evolution of an idea In SCHERER Klaus R SCHORR Angela

JOHNSTONE Tom (ed) Appraisal processes in emotion theory methods research New York

Oxford University Press 2001 20-36 p 20 242

ldquoAcademic psychologists have seemed little interested in emotion and because they do not include it

in the core curriculum they could be said to regard it as a highly specialized perhaps even exotic topicrdquo

(trad livre) LAZARUS op cit p 5

94

emoccedilotildees com o stress utilizou tambeacutem a noccedilatildeo de avaliaccedilatildeo e de reavaliaccedilatildeo No

Simpoacutesio Loyola de 1970 Lazarus destaca

Estendendo a posiccedilatildeo de Magda Arnold apenas um pouco noacutes

argumentamos que o padratildeo de excitaccedilatildeo observada na emoccedilatildeo deriva

de impulsos para agir que satildeo gerados pela situaccedilatildeo avaliada pelo

indiviacuteduo e pelas possibilidades avaliadas disponiacuteveis para a accedilatildeo243

Assim foi a partir destes trabalhos que surgiu um novo campo de estudos sobre

as emoccedilotildees na psicologia cujo denominador comum consiste em colocar a ideia de

avaliaccedilatildeo no centro de suas pesquisas Em outras palavras as emoccedilotildees satildeo o resultado

de uma avaliaccedilatildeo acerca de uma determinada situaccedilatildeo realizada pelo sujeito

Antes de prosseguir a primeira observaccedilatildeo a ser feita em relaccedilatildeo a este

posicionamento diz respeito ao fato de que ele vai ao encontro do entendimento de

Crisipo que compreendia que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees sobre a realidade Esta

surpreendente coincidecircncia eacute expressamente notada por Scherer ldquoeste fenocircmeno jaacute

tinha sido descrito pelo filoacutesofo estoico Crisipo que pode muito bem ter sido o primeiro

verdadeiro teoacuterico da avaliaccedilatildeordquo244

Outro ponto digno de menccedilatildeo quanto a esse novo momento teoacuterico vivido na

psicologia foi o aparecimento do interesse por parte dos psicoacutelogos pelo estudo da obra

de Aristoacuteteles mais precisamente pelo Livro II da Retoacuterica parte em que satildeo tratadas as

emoccedilotildees sob uma oacutetica cognitiva Lazarus destaca que com algumas breves exceccedilotildees

na histoacuteria houve praticamente um intervalo de dois mil anos ateacute que o cognitivismo

emotivo pudesse ser novamente abordado245

O fato eacute que a construccedilatildeo teoacuterica realizada tanto por Aristoacuteteles quanto pelos

estoicos eacute de boa qualidade e a despeito do tempo continua a ser bastante atual e uma

preciosa referecircncia histoacuterica acerca do tema Relembrando o que dissemos o Estagirita

compreendia que a nossa visatildeo a respeito dos mais variados assuntos se altera de acordo

com os nossos estados emocionais Aleacutem disso esquematizou e individualizou a

243

ldquoExtending Magda Arnolds position just a bit we argue that the pattern of arousal observed in

emotion derives from impulses to action which are generated by the individuals appraised situation and

by the evaluated possibilities available for actionrdquo (trad livre) LAZARUS Richard S AVERILL James

R OPTON Edward M Torwards a cognitive theory of emotions in ARNOLD Magda (org) Feelings

and emotions the Loyola symposium New YorkLondon Academic Press 1970 207-232 p 218 244

ldquoThis phenomenon has already been described by the stoic philosopher Chrysippus who may well

have been the first real appraisal theoristrdquo (trad livre) SCHERER Klaus R The nature and study of

appraisal a review of the issues In SCHERER Klaus R SCHORR Angela JOHNSTONE Tom (ed)

Appraisal processes in emotion theory methods research New York Oxford University Press 2001

369-391 p 384 245

LAZARUS R Op cit p 14

95

estrutura de vaacuterias emoccedilotildees importantes sendo que os livros de psicologia cognitiva

tecircm adotado a mesma praacutetica hoje em dia Ademais conveacutem recordar que refinamentos

da psicologia aristoteacutelica tal como a ideia de phantasia explicam o surgimento e a

estruturaccedilatildeo das emoccedilotildees Do lado estoico pode-se dizer que o cognitivismo foi ainda

mais marcante porque natildeo fazia uso da ideia de sentimentos mistos (prazer e dor)

derivada de Platatildeo Por fim aleacutem de dizer que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees os estoicos

originalmente utilizaram a ideia de impulso de assentimento e de atribuiccedilatildeo de valores

para explicar o agrupamento de determinadas emoccedilotildees

Tendo registrado essas observaccedilotildees conveacutem agora compreender com mais

detalhes a abordagem da Teoria da Avaliaccedilatildeo delimitando a competecircncia da nossa

investigaccedilatildeo ao pensamento de Lazarus e de Scherer

Assim em primeiro lugar em relaccedilatildeo agrave sua deflagraccedilatildeo as emoccedilotildees satildeo

iniciadas apenas diante de eventos que de alguma forma avaliamos relevantes para a

nossa esfera pessoal Nesse sentido satildeo para noacutes subjetivamente importantes aspectos

factuais relacionados a valores necessidades objetivos ou bem-estar geral Quando

alguns destes fatores estatildeo em jogo numa dada situaccedilatildeo e a depender de como os

avaliamos deflagra-se uma especiacutefica resposta emocional (raiva oacutedio aliacutevio vergonha

alegria amor) Portanto o evento-gatilho da emoccedilatildeo precisa ser pessoalmente

significativo pois de outra forma haveraacute indiferenccedila emocional246

Aleacutem de avaliar se um evento eacute significativo ou natildeo surge uma outra etapa do

processo avaliativo em que ponderamos possiacuteveis opccedilotildees para lidar com a situaccedilatildeo Por

exemplo diante de um problema especiacutefico geralmente abrem-se duas estrateacutegias (i)

podemos tratar de solucionaacute-lo porque ele eacute da espeacutecie dos solucionaacuteveis (dialogar ou

entrar com uma medida judicial especiacutefica podem ser alternativas possiacuteveis para

resolver a raiva causada diante de um vizinho que continuamente desrespeite a lei do

silecircncio) (ii) podemos ter que trabalhar as nossas proacuteprias emoccedilotildees diante de

problemas resistentes ou insoluacuteveis (doenccedila crocircnica grave crise financeira etc) Assim

pode ser necessaacuterio a alteraccedilatildeo da significaccedilatildeo pessoal do evento por meio de uma

reavaliaccedilatildeo fundada em bases realiacutesticas Somos seres capazes de substituir

interpretaccedilotildees que deflagrem respostas emocionais disfuncionais e altamente destrutivas

por outras melhores247

246

LAZARUS Richard S LAZARUS Bernice N Passion amp reason making sense of our emotions

New YorkOxford Oxford University Press 1994 p 143 247

Id ibid p 152-161

96

Assim em resumo na avaliaccedilatildeo o sujeito natildeo se limita a ser um mero agente

passivo e receptor das informaccedilotildees externas mas tambeacutem possui um papel ativo na

forma como lida com os fatores ambientais podendo inclusive reavaliar a significaccedilatildeo

do evento ldquouma avaliaccedilatildeo ndash de que as emoccedilotildees satildeo dependentes ndash eacute muitas vezes um

julgamento complexo sobre como estamos nos relacionando com o ambiente e com as

nossas vidas em geral e como lidar com potenciais prejuiacutezos e benefiacuteciosrdquo248

Acrescente-se que no complexo momento avaliativo compreende-se que vaacuterias

escalas de julgamento satildeo possiacuteveis isto eacute podem ocorrer desde avaliaccedilotildees impliacutecitas e

automaacuteticas ateacute aquelas com alto niacutevel de consciecircncia portando conteuacutedo conceitual e

proposicional249

Aleacutem do sistema avaliativo acima descrito destacam-se tambeacutem os seguintes

componentes que estatildeo presentes no processo emotivo (i) componente motivacional

situaccedilotildees emocionalmente relevantes satildeo motivacionais de modo que nos impelem a

alterar o nosso curso de accedilatildeo a fim de adequaacute-lo agraves novas circunstacircncias (ii)

componente orgacircnico o nosso organismo (sistema motor somato-visceral atenccedilatildeo

expressatildeo accedilatildeo) fica integralmente comprometido com a situaccedilatildeo significativa (iii)

componente prioritaacuterio situaccedilotildees emotivas reclamam precedecircncia sobre a nossa atenccedilatildeo

e sobre o nosso controle comportamental250

Uma especiacutefica preocupaccedilatildeo dos teoacutericos da Teoria da Avaliaccedilatildeo diz respeito agrave

verificaccedilatildeo da correccedilatildeo da ideia segundo a qual maacutes decisotildees estatildeo fundadas em

emoccedilotildees e boas decisotildees estatildeo baseadas em razatildeo pura Esta eacute uma questatildeo que

tambeacutem especialmente nos interessa porque via de regra a resistecircncia quanto ao

tratamento teoacuterico das emoccedilotildees estaacute assentada na forte dicotomia ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo

Primeiramente eacute preciso ter em mente que apoacutes a emoccedilatildeo ter sido deflagrada o

controle da resposta emocional por intermeacutedio de avaliaccedilotildees a respeito de que modo

iremos lidar com as tendecircncias de accedilatildeo geradas pela emoccedilatildeo eacute um momento em que a

racionalidade se faz presente Uma accedilatildeo cujas consequecircncias sejam socialmente

destrutivas deve ser num juiacutezo avaliativo repelida Essa ideia de controle emocional

por intermeacutedio da razatildeo natildeo eacute desconhecida e de certo modo esse jaacute era o

248

ldquoAn appraisalmdashon which emotions dependmdashis often a complex judgment about how we are doing in

an encounter with the environment and in our lives overall and how to deal with potential harms and

benefitsrdquo (trad livre) Id ibid p 144 249

SCHERER Klaus R What are emotions And how can they be measured In Social Science

Information vol 44 n 4 2005 695-729 p 701 250

SCHERER Klaus R On the rationality of emotions or when are emotions rational In Social

Science Information vol 50 2011 330-350 p 334-335

97

posicionamento de Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando diz que as emoccedilotildees tecircm a

capacidade de ouvir a razatildeo

Todavia Lazarus afirma que a racionalidade tambeacutem se faz presente no primeiro

momento do processo emotivo o surgimento de uma emoccedilatildeo soacute ocorre porque uma

avaliaccedilatildeo compreende que certos objetivos valores ou crenccedilas acerca do mundo estatildeo

sendo numa determinada situaccedilatildeo prejudicados ou beneficiados Esta avaliaccedilatildeo

depende de racionalidade e vem acompanhada de pensamentos ainda que o raciociacutenio

em que tal julgamento seja embasado possa ser agraves vezes equivocado251

Sob tal perspectiva pode-se dizer que as emoccedilotildees estatildeo fundadas em razotildees

porque elas repousam numa loacutegica proacutepria A raiva de um determinado sujeito pode

soar desarrazoada para um estranho e de fato as atitudes geradas pela referida emoccedilatildeo

podem trazer um grande prejuiacutezo social por falta de adequado controle mas uma

pesquisa mais detalhada dos seus motivos revela que uma avaliaccedilatildeo conduziu a esta

resposta emocional especiacutefica porque entendeu que valores objetivos ou necessidades

do sujeito foram prejudicados numa determinada situaccedilatildeo

Assim anota Lazarus a razatildeo estaacute presente em todos os estaacutegios do processo

emotivo mas isso natildeo significa dizer que haja uma supremacia da razatildeo sobre a

emoccedilatildeo porque entre as duas haacute uma relaccedilatildeo de dupla dependecircncia natildeo apenas a

emoccedilatildeo precisa de aspectos racionais para o seu surgimento e para o seu controle mas a

razatildeo soacute eacute proveitosa diante do balanceamento da emoccedilatildeo Nesse sentido pontua

ldquoexiste algo de equiliacutebrio entre a razatildeo e a emoccedilatildeo Caso contraacuterio aiacute reside a

loucurardquo252

As emoccedilotildees assim tecircm uma funccedilatildeo primordial na sobrevivecircncia na

adaptaccedilatildeo no conhecimento e na qualidade de vida do indiviacuteduo

Uma consequecircncia de tal abordagem reside na reduccedilatildeo da dicotomia ldquorazatildeo vs

emoccedilatildeordquo porque ainda que a avaliaccedilatildeo em que se fundou a emoccedilatildeo seja pouco realista

natildeo-saacutebia e ateacute tola eacute possiacutevel extrair racionalidade que vincula o seu surgimento a

objetivos e crenccedilas do indiviacuteduo Desse modo ao inveacutes de insistir na mencionada

dicotomia eacute mais interessante tentar identificar quando raciociacutenios em que se baseiam

as emoccedilotildees satildeo considerados razoaacuteveis ou natildeo

Lazarus nesse intento relaciona uma lista de motivos que geralmente resultam

num erro de avaliaccedilatildeo (i) retardaccedilatildeo mental psicose e danos cerebrais (ii) falta de

251

LAZARUS R Op cit 1994 p 199-200 252

ldquoThere is something of a balance between them If not there lies madnessrdquo (trad livre) Id ibid p

203

98

conhecimento (iii) crenccedilas pessoais (iv) ambiguidade (v) falta de atenccedilatildeo (vi)

rejeiccedilatildeo253

Por exemplo um relevante segmento da populaccedilatildeo pode avaliar que a presenccedila

de imigrantes estaacute relacionada ao crescimento do cometimento dos mais diversos crimes

e agrave perda da identidade cultural da naccedilatildeo deflagrando-se um generalizado medo social

contra pessoas oriundas de outros paiacuteses Para solucionar tal problema avalia-se que a

melhor accedilatildeo a ser tomada consiste no enrijecimento da poliacutetica de imigraccedilatildeo do paiacutes

Essa avaliaccedilatildeo generalizada pode estar fundada em vaacuterios erros de julgamento

como a falta de conhecimento de estatiacutesticas que comprovem que natildeo apenas o nuacutemero

de imigrantes seja iacutenfimo mas que o nuacutemero de crimes praticados por imigrantes seja

muito irrelevante Ela pode estar pouco atenta ao fato de que o paiacutes natildeo tem uma

poliacutetica de integraccedilatildeo de imigrantes fazendo que muitos deles permaneccedilam excluiacutedos

da sociedade Ela pode desconsiderar o fato de que o paiacutes precisa de matildeo-de-obra

imigrante para o setor de serviccedilos e consequentemente para o seu crescimento

econocircmico E pode ateacute desconhecer que alguns imigrantes estavam em condiccedilatildeo de

risco em seus paiacuteses de origem Assim um trabalho de investigaccedilatildeo estaacute comprometido

em identificar em que se sustenta esse medo para possibilitar a criaccedilatildeo de poliacuteticas

puacuteblicas especiacuteficas que busquem desconfirmar as razotildees que o suportam

Scherer por sua vez ressalta que o paradigma da racionalidade perfeita em que

teriacuteamos todo o tempo possiacutevel para tomar decisotildees e disporiacuteamos de abundantes e

conclusivas informaccedilotildees a respeito do assunto objeto de deliberaccedilatildeo raramente eacute

atingido nas condiccedilotildees da vida praacutetica em que geralmente temos limitado prazo para

solucionar algo e natildeo possuiacutemos tantas informaccedilotildees quanto gostariacuteamos Assim no

mundo real em que vivemos as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas agrave

situaccedilatildeo satildeo bons suportes para decisotildees e compatiacuteveis com as concepccedilotildees de

racionalidade usualmente aceitas (instrumental inferencial e consensual) A seu ver a

tentativa de enquadraacute-las como irracionais eacute incompatiacutevel com a sua importacircncia

o sistema emotivo eacute um dos mais eficientes mecanismos

filogeneticamente evoluiacutedos para a adaptaccedilatildeo em organismos

superiores Mais especificamente pode-se mostrar que foi o

desenvolvimento das emoccedilotildees que libertou os organismos do riacutegido

controle de estiacutemulos proporcionando assim um repertoacuterio

comportamental altamente flexiacutevel e portanto uma oacutetima adaptaccedilatildeo

253

Id ibid p 208-213

99

para um ambiente de constante mudanccedila e de muacuteltiplos contextos

sociais254

Assim diante do modelo teoacuterico exposto parece-nos que uma abordagem que

leve em consideraccedilatildeo as emoccedilotildees natildeo pode partir do pressuposto de que elas natildeo satildeo

dignas de tematizaccedilatildeo por sua manifesta irracionalidade Ademais uma teoria da

argumentaccedilatildeo que encare seriamente o fenocircmeno emotivo precisa acessar um saber

psicoloacutegico sob pena de se construir em cima de bases artificiais

254

ldquoThe emotion system is one of the most efficient phylogenetically evolved mechanisms for adaptation

in higher organisms More specifically it can be shown that it was the development of emotion that freed

organisms from rigid stimulus control thus providing for a highly flexible behavioral repertoire and thus

optimal adaptation to an ever-changing environment and multiple social contextsrdquo (trad livre)

SCHERER K Op cit 2011 p 331

100

3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO

31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito

Se no Capiacutetulo I examinamos a importacircncia do estudo das emoccedilotildees na

Antiguidade o Capiacutetulo II foi dedicado a investigar a sua recepccedilatildeo pela MTA com o

objetivo de inclusive coletar criteacuterios para anaacutelise e para avaliaccedilatildeo de decisotildees

judiciais Nesse intuito construiacutemos o ambiente histoacuterico do surgimento da MTA

observamos a abordagem teoacuterica dos ldquopais fundadoresrdquo examinamos o tema na

disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo percebemos a reaccedilatildeo teoacuterica de Douglas Walton Por fim

analisamos uma abordagem linguiacutestica e descritiva do discurso emotivo bem como o

posicionamento da psicologia cognitiva especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo a

respeito deste assunto

Este Capiacutetulo por sua vez busca refletir especificamente a importacircncia das

emoccedilotildees no acircmbito do direito Assim este toacutepico buscaraacute responder agrave pergunta mais

baacutesica sobre esse tema eacute possiacutevel pensar o fenocircmeno juriacutedico sem as emoccedilotildees Qual a

sua relevacircncia

Um possiacutevel ponto de partida para refletir este toacutepico seria pensarmos a partir do

proacuteprio desenvolvimento teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo e as suas respectivas

consequecircncias na aacuterea do direito Conforme vimos as emoccedilotildees satildeo deflagradas diante

de eventos que avaliamos relevantes do ponto de vista de valores crenccedilas objetivos

bem-estar geral Em outras palavras as emoccedilotildees encontram terreno feacutertil para serem

iniciadas apenas em face de eventos significativamente salientes A este respeito

poderiacuteamos desde jaacute elucubrar que o direito seria o haacutebitat especiacutefico deste tema

porque os assuntos de que ele se ocupa em grande parte nos tocam profundamente e

satildeo deflagradores de fortes emoccedilotildees crimes hediondos homiciacutedio latrociacutenio

maioridade penal direito de famiacutelia divoacutercio adoccedilatildeo uniatildeo homoafetiva direitos

humanos cotas raciais direito do consumidor aborto eutanaacutesia direito agrave sauacutede

indenizaccedilatildeo moral e tantos outros

Contra esta ideia e prosseguindo no raciociacutenio eacute possiacutevel arguir de maneira

plausiacutevel que natildeo deveriacuteamos nos guiar por nenhuma dessas emoccedilotildees eventualmente

suscitadas caso contraacuterio os efeitos seriam catastroacuteficos Assim pessoas com

descontrolaacutevel raiva munidas de tremendo oacutedio e de indignaccedilatildeo ou melhor

101

apaixonadas estatildeo desprovidas da capacidade de raciociacutenio e por isso natildeo podem ser

paracircmetro de direcionamento nem para a legislaccedilatildeo nem para a decisatildeo judicial

O direito estaria assim exclusivamente no campo de uma racionalidade strictu

sensu natildeo lhe sendo admitida a intromissatildeo de qualquer elemento exoacutegeno Nussbaum

nesse ponto diz que uma possiacutevel reaccedilatildeo em face da tentativa de introduzir elementos

emotivos no acircmbito juriacutedico seria alegar a sua completa irracionalidade e por isso a

impossibilidade de levaacute-los em consideraccedilatildeo ldquoexiste um famoso lugar-comum no

sentido de que o direito eacute baseado na razatildeo e natildeo na paixatildeordquo255

Eacute possiacutevel chamar a

tradiccedilatildeo legal que compreende as emoccedilotildees como estranhas ao direito de proposta ldquonatildeo-

emotivardquo Poreacutem um tal posicionamento simplesmente desqualifica tanto o debate

teoacuterico e praacutetico acerca do direito ldquoem primeiro lugar o direito sem apelo agrave emoccedilatildeo eacute

virtualmente impensaacutevelrdquo256

A introduccedilatildeo de uma abordagem emotiva no direito eacute necessaacuteria agrave compreensatildeo

do fenocircmeno juriacutedico em vaacuterios sentidos conseguimos entender por que alguns tipos de

danos contra nossa esfera privada e coletiva satildeo condenados e outros natildeo por que

algumas leis adquirem determinada forma por que decisotildees judiciais podem levar em

consideraccedilatildeo certos tipos de emoccedilatildeo ldquomais profundamente eacute difiacutecil compreender a

racionalidade de muitas das nossas praacuteticas juriacutedicas a menos que levemos em

consideraccedilatildeo as emoccedilotildeesrdquo257

Uma maneira adequada para compreender essa relaccedilatildeo em comentaacuterio consiste

em observar que o direito soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres passiacuteveis de vulnerabilidade

isto eacute a existecircncia de proteccedilatildeo legal apenas pode resguardar sujeitos cujas vidas

possam de algum modo sofrer certos tipos de danos ou contingecircncias Assim num

exerciacutecio de imaginaccedilatildeo natildeo faria sentido uma norma cujo conteuacutedo protegesse seres

invulneraacuteveis autossuficientes imortais porque eles natildeo podem sofrer nenhum

prejuiacutezo nada lhes pode ferir ou causar qualquer espeacutecie de estrago258

E somente em relaccedilatildeo a seres cuja constituiccedilatildeo seja caracterizada pela

vulnerabilidade eacute que as emoccedilotildees fazem sentido Assim as emoccedilotildees satildeo respostas agraves

mais diversas fragilidades existentes no ser humano Por exemplo uma vez que a nossa

255

ldquoThere is a popular commonplace to the effect that the law is based on reason and not passionrdquo (trad

livre) NUSSBAUM Martha Hiding from humanity disgust shame and the law PrincetonOxford

Princeton University Press 2004 p 5 256

ldquoFirst of all law without appeals to emotion is virtually unthinkablerdquo (trad livre) Id ibid p 5 257

ldquoMore deeply it is hard to understand the rationale for many of our legal practices unless we do take

emotions into accountrdquo (trad livre) Id ibid p 6 258

Id ibid p 6

102

reputaccedilatildeo eacute vulneraacutevel e por isso pode ser socialmente destruiacuteda estamos sujeitos agrave

vergonha e a lei penal nos protege por meio da tipificaccedilatildeo dos crimes de caluacutenia de

difamaccedilatildeo ou de injuacuteria A lei penal tambeacutem nos protege do medo de eventualmente

termos nossa integridade fiacutesica psiacutequica patrimonial violada porque em todas essas

aacutereas somos sujeitos a vaacuterias espeacutecies de danos

Assim um ser cuja constituiccedilatildeo natildeo possa de alguma forma sofrer danos natildeo

poderaacute experimentar uma resposta emotiva Nada lhe deflagraraacute medo jaacute que nenhum

mal pode lhe sobrevir Nada lhe provocaraacute vergonha raiva ou qualquer sorte de emoccedilatildeo

deflagrada pela razoaacutevel possibilidade de ocorrer prejuiacutezos agrave sua esfera pessoal ldquoeles

natildeo possuiriam razotildees para ter tristeza porque sendo autossuficientes natildeo amariam

nada fora de si pelo menos natildeo com o necessaacuterio tipo de amor humano que daacute origem a

uma profunda perda e depressatildeordquo259

Neste momento parece-nos apropriado retomar a ideia estoica de apatheia

Conforme vimos os estoicos possuiacuteam uma escala de valores bem singular a uacutenica

coisa boa que existe eacute a virtude e a uacutenica ruim eacute o viacutecio a virtude se confunde com a

felicidade e o viacutecio com a infelicidade Assim sauacutede beleza riqueza fama bens

materiais satildeo considerados indiferentes eacute certo que alguns satildeo preferiacuteveis (sauacutede por

exemplo) e outros natildeo-preferiacuteveis mas ainda assim todos satildeo indiferentes porque a

sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a conquista da felicidade Eacute possiacutevel ser feliz na miseacuteria

na doenccedila na tortura Poreacutem eacute impossiacutevel ser feliz caso o indiviacuteduo natildeo possua virtude

Os indiferentes se caracterizam pela sua contingecircncia e pela sua ambiguidade isto eacute

eles satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna mundana aleacutem de poderem ser tanto beneacuteficos

quanto maleacuteficos Nessa ordem de ideias ateacute a sauacutede pode ser mal utilizada caso a

detenccedilatildeo de boa sauacutede seja instrumentalizada para objetivos ruins (participar de roubos

assaltos etc)

Nesse modelo teoacuterico as emoccedilotildees precisam ser eliminadas porque quem

experimenta as emoccedilotildees do homem comum valora equivocadamente o que de fato eacute

bom ou ruim O saacutebio estoico tendo atingido a suma racionalidade no caminho para a

compreensatildeo do mundo corretamente livrou-se de todas as emoccedilotildees desvinculou-se

dos bens externos (indiferentes) e tornou-se um ser autossuficiente e virtuoso ldquoos

filoacutesofos estoicos gregos e romanos recorreram a esta ideia ao pedir na medida em que

259

ldquoThey would have no reasons for grief because being self-sufficient they would not love anything

outside themselves at least not with the needy human type of love that gives rise to profound loss and

depressionrdquo (trad livre) Id ibid p 6

103

pudermos para nos tornarmos pessoas autossuficientes extirpando as emoccedilotildees de

nossas vidasrdquo260

Diante de tal concepccedilatildeo eacute possiacutevel indagar o modelo estoico da apatheia eacute uma

abordagem plausiacutevel para a compreensatildeo do sistema juriacutedico tal qual o conhecemos

Certamente natildeo

O sistema juriacutedico eacute um conjunto de regras e princiacutepios que tutela os nossos bens

materiais a nossa integridade fiacutesica e psiacutequica a nossa sauacutede a nossa esteacutetica o nosso

patrimocircnio cultural a nossa intimidade a nossa reputaccedilatildeo social e identidade E assim o

faz porque atribuiacutemos enorme valor a todos esses aspectos de nossa existecircncia

Ademais por valorarmos todos esses aspectos e por temermos possiacuteveis prejuiacutezos ou

danos em relaccedilatildeo a eles o direito leva em consideraccedilatildeo as nossas emoccedilotildees

Se desprezarmos todas as respostas emocionais que nos ligam a este

mundo daquilo que os estoicos chamavam de lsquobens externosrsquo

deixamos de lado uma grande parte da nossa humanidade e uma parte

que estaacute no cerne de explicar por que temos leis civis e criminais e

que forma elas tomam261

Assim qualquer ordenamento juriacutedico apenas adquire contorno apoacutes a seleccedilatildeo

das condutas e dos bens (materiais e imateriais) em virtude dos quais as nossas

respostas emotivas satildeo relevantes A estrutura das leis criminais e civis espelha o medo

social de sua eacutepoca As leis que protegem a vida expressam a medida desse temor e

declaram a indignaccedilatildeo contra condutas que se contraponham aos seus mandamentos

ldquotoda a estrutura do direito penal pode-se dizer que implica uma imagem do que temos

razotildees para estar zangado ou temerosordquo262

Mas a questatildeo natildeo se restringe apenas agrave formataccedilatildeo da legislaccedilatildeo Por exemplo

em 1976 a Suprema Corte americana declarou inconstitucional a lei da Carolina do

Norte que estabelecia pena de morte porque natildeo possibilitava que o reacuteu apresentasse a

sua histoacuteria de vida nem apelasse agrave compaixatildeo dos jurados nos seguintes termos

Um processo que atribui nenhum significado para relevantes facetas

de caraacuteter e os antecedentes do infrator ou as circunstacircncias de

determinado delito exclui de consideraccedilatildeo na fixaccedilatildeo da pena de

morte a possibilidade de fatores de compaixatildeo ou atenuantes

decorrentes das diversas fragilidades do ser humano Ele trata todas as

260

ldquoThe Greek and Roman Stoic philosophers draw on this idea when they ask us all to become such self-

sufficient people insofar as we can extirpating the emotions from our livesrdquo (trad livre) Id ibid p 6 261

ldquoIf we leave out all the emotional responses that connect us to this world of what the Stoics called

lsquoexternal goodsrsquo we leave out a great part of our humanity and a part that lies at the heart of explaining

why we have civil and criminal laws and what shape they takerdquo (trad livre) Id ibid p 7 262

the whole structure of criminal law might be said to imply a picture of what we have reason to be

angry at what we have reason to fear (trad livre) Id ibid p 11

104

pessoas condenadas por um delito natildeo como seres humanos

unicamente individuais mas como membros de uma indiferenciada

massa sem rosto para serem submetidos agrave imposiccedilatildeo cega da pena de

morte263

De outra parte no direito norte-americano o acusado de crime de homiciacutedio

voluntaacuterio pode obter uma reduccedilatildeo penal caso prove que o homiciacutedio tenha sido

cometido em resposta a uma provocaccedilatildeo da viacutetima que tal provocaccedilatildeo tenha sido

ldquoadequadardquo que a raiva do acusado possa ser enquadrada como uma raiva atribuiacutevel a

um homem-meacutedio e que o homiciacutedio tenha sido cometido no calor da emoccedilatildeo sem

tempo suficiente para reflexatildeo264

No Brasil de seu turno uma violenta emoccedilatildeo eacute causa

atenuante da pena de acordo com os arts 65 III ldquocrdquo 121 sect 1ordm e 129 sect 9ordm do Coacutedigo

Penal

Para a configuraccedilatildeo da legiacutetima defesa exige-se que ela seja praticada em face

de uma conduta que provoque medo razoaacutevel de modo que o medo precisa ser

argumentado para fins da decisatildeo judicial Ademais o apelo agrave compaixatildeo eacute largamente

admitido no direito penal norte-americano ldquomesmo os juristas mais cautelosos

concordam que a compaixatildeo eacute construiacuteda no processo de condenaccedilatildeo e qualquer

tentativa de eliminaacute-la viola os direitos fundamentaisrdquo265

Nussbaum partindo dos estoicos e da filosofia claacutessica recorre ao modelo da

psicologia cognitiva a fim de utilizar um paradigma teoacuterico acerca das emoccedilotildees

passiacutevel de ser empregado para compreender o direito Assim a seu ver as emoccedilotildees satildeo

resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos Apenas temos respostas

emocionais diante de algo ou de uma situaccedilatildeo significativamente relevante para a nossa

esfera pessoal Caso a situaccedilatildeo envolva banalidades ela seraacute emocionalmente

irrelevante Desse modo diferentemente da propagada ideia popular que as

compreende como meros impulsos instintuais ou algo desprovido de qualquer

raciociacutenio as emoccedilotildees natildeo podem ser consideradas irracionais num sentido descritivo

embora elas o possam ser num sentido normativo isto eacute quando fundadas em crenccedilas

263

Trata-se do caso Woodson v North Carolina (1976) citado por Nussbaum ldquoA process that accords no

significance to relevant facets of the character and record of the individual offender or the circumstances

of the particular offense excludes from consideration in fixing the ultimate punishment of death the

possibility of compassionate or mitigating factors stemming from the diverse frailties of humankind It

treats all persons convicted of a designated offense not as uniquely individual human beings but as

members of a faceless undifferentiated mass to be subjected to the blind infliction of the penalty of

deathrdquo Id ibid p 21 264

Id ibid p 37 265

ldquoeven the most cautious jurists agree that compassion is built into the sentencing process and that any

attempt to eliminate it violates fundamental rightsrdquo Id ibid p 56

105

ou pensamentos equivocados (racismo sexismo etc)266

ldquopodemos destacar quando a

emoccedilatildeo de algueacutem repousa sobre crenccedilas que satildeo verdadeiras ou falsas e (um ponto

separado) razoaacutevel ou natildeo razoaacutevelrdquo267

No entanto o mais importante a ser destacado eacute que elas satildeo factiacuteveis de

observaccedilatildeo e de discussatildeo criacutetica Para aleacutem de tal constataccedilatildeo descritiva (as emoccedilotildees

satildeo resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos) tambeacutem eacute possiacutevel

avaliar as emoccedilotildees vale dizer eacute aceitaacutevel ponderar o papel que elas desempenham em

determinados ramos do direito e de que modo elas poderiam ser o nossos guias na vida

puacuteblica restabelecendo assim o debate aristoteacutelico entre emoccedilotildees

adequadasinadequadas de acordo com as circunstacircncias e as emoccedilotildees perversas isto eacute

aquelas que natildeo deveriam ser os nossos paracircmetros em nenhuma hipoacutetese

Exemplificativamente a repugnacircncia268

eacute uma emoccedilatildeo bastante marcante na

vida do ser humano e na constituiccedilatildeo da formaccedilatildeo cultural de uma sociedade Ela estaacute

relacionada ao acircmbito de nossas necessidades iacutentimas ao que entendemos por limpeza

por sujeira ou imundiacutecie agrave maneira pela qual administramos os resiacuteduos fecais a urina

os gases puacutetridos as secreccedilotildees o lixo ela gerencia os odores suportaacuteveis e natildeo

suportaacuteveis do indiviacuteduo estaacute relacionada ao que entendemos por nojento repulsivo

asqueroso tem uma funccedilatildeo na fisiologia humana porque nos adverte sobre possiacuteveis

contaminantes existentes no ambiente (comida liacutequido etc) que podem nos infectar

provocando doenccedilas e ateacute a morte Em resumo a repugnacircncia nos guia na nossa rotina

diaacuteria de limpezas escovaccedilotildees asseios lavagens isolamentos embalagens

organizaccedilotildees no uso de bactericidas de inseticidas de perfumes de aromatizantes etc

Mas para aleacutem do acircmbito das intimidades e da funccedilatildeo fisioloacutegica a repugnacircncia

invade outras aacutereas da existecircncia humana Assim a nossa vida moral eacute tambeacutem

constituiacuteda por essa emoccedilatildeo que nos conduz a fazer certas escolhas no domiacutenio privado

e puacuteblico Por consequecircncia (e inevitavelmente) ela adentra no acircmbito do direito ldquoa

repugnacircncia tambeacutem desempenha um papel poderoso no direito Ela aparece em

primeiro lugar como a principal ou mesmo a uacutenica justificaccedilatildeo para tornar algumas

condutas ilegaisrdquo269

266

Id ibid p 10-11 267

ldquoWe can point out that someonersquos emotion rests on beliefs that are true or false and (a separate point)

reasonable or unreasonablerdquo (trad livre) Id ibid p 31 268

O termo inglecircs eacute disgust cuja traduccedilatildeo tambeacutem pode ser vertida por nojo ou por aversatildeo mas que

preferimos a expressatildeo ldquorepugnacircnciardquo por acharmos mais adequada agrave nossa cultura emocional 269

ldquoDisgust also plays a powerful role in the law It figures first as the primary or even the sole

justification for making some acts illegalrdquo (trad livre) Id ibid p 72

106

Assim a lei que regula os atos obscenos eacute guiada em grande parte pelos

pensamentos de repugnacircncia prevalecentes no padratildeo moral da sociedade de sua eacutepoca

A Suprema Corte americana observou quando da aplicaccedilatildeo da lei de atos obscenos que

a proacutepria palavra ldquoobscenordquo deriva do latim caenum cujo significado eacute repugnante A

repugnacircncia do criminoso em relaccedilatildeo a uma viacutetima homossexual jaacute foi considerada fator

atenuante em crime de homiciacutedio Aleacutem disso a repugnacircncia do juiz ou do juacuteri tambeacutem

eacute considerada um guia para ponderar na decisatildeo a presenccedila de potenciais fatores

agravantes no fato delituoso270

Na comissatildeo de exame de assuntos eacuteticos do governo americano acerca das

pesquisas de ceacutelulas-tronco o especialista em bioeacutetica Leon Kass argumentou que as

novas possibilidades da medicina deveriam ser submetidas agrave ldquosabedoria da

repugnacircnciardquo a fim de alcanccedilarmos uma conclusatildeo eacutetica sobre o seu disciplinamento

juriacutedico Quanto agrave possibilidade de clonagem humana o seu banimento foi justificado

por idecircntico motivo271

No Brasil a repugnacircncia eacute criteacuterio expresso em nossa legislaccedilatildeo para a criaccedilatildeo

de fatos tiacutepicos Assim os crimes hediondos satildeo aqueles que nos provocam repulsa

repugnacircncia nojo aversatildeo Hediondo vem da palavra em latim ldquofoetibundusrdquo que

significa ldquoo que cheira malrdquo a outra palavra relacionada em latim eacute ldquofoetererdquo que

significa ldquofeder ter mau cheirordquo

Em defesa da repugnacircncia como guia na vida puacuteblica podem-se colher os

seguintes argumentos (i) toda sociedade tem o direito agrave autopreservaccedilatildeo moral e para

isso as leis devem ser elaboradas levando em consideraccedilatildeo as respostas emotivas de

repugnacircncia dos seus membros (ii) a repugnacircncia eacute uma sabedoria social que nos

impede transgredir o que eacute moralmente profundo numa determinada comunidade (iii) eacute

preciso combater os viacutecios de uma determinada sociedade por meio de sentimentos de

repugnacircncia e (iv) a repugnacircncia eacute essencial para condenar e reprimir crueldades272

Todavia alega Nussbaum a repugnacircncia nunca deveria ser paracircmetro para

elaboraccedilatildeo de leis pois tal emoccedilatildeo estaacute ligada a pensamentos de pureza de

contaminaccedilatildeo de contaacutegio Do ponto de vista teoacuterico estaacute conectada agrave ideia do

decaimento das condiccedilotildees naturais do nosso corpo da nossa mortalidade da nossa

animalidade A repugnacircncia historicamente foi direcionada a certos grupos sociais

270

Id ibid p 72 271

Id ibid p 72-73 272

Id ibid p 73

107

(mulheres homossexuais negros etc) que eram associados a todos os predicados

(imundos sujos nojentos fedorentos) respeitantes a tal emoccedilatildeo

ao longo da histoacuteria certas propriedades repugnantes ndash viscosidade

fedor ligosidade decadecircncia imundiacutecie ndash tecircm repetida e

monotonamente sido associadas ou melhor projetadas em grupos de

referecircncia a quem os grupos privilegiados procuram contrastar o seu

estado humano superior Judeus mulheres homossexuais intocaacuteveis

pessoas de classe baixa todos eles satildeo imaginados como maculados

pela sujeira do corpo273

Outra emoccedilatildeo fortemente relacionada ao direito eacute a vergonha No direito norte-

americano discute-se a imposiccedilatildeo de penalidades que tenha a capacidade de

profundamente envergonhar o cidadatildeo em substituiccedilatildeo agraves denominadas ldquopenas

alternativasrdquo (penas pecuniaacuterias ou prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade) jaacute que estas

natildeo tecircm a aptidatildeo de gerar a transformaccedilatildeo do caraacuteter do indiviacuteduo Ateacute a cadeia

ambiente em que o indiviacuteduo estaacute longe do olhar social punitivo natildeo tem a capacidade

de lhe humilhar Assim as penalidades que imponham severos sentimentos de vergonha

conseguiriam atingir de maneira muito mais eficiente o propoacutesito de retribuiccedilatildeo de

dissuasatildeo de expressatildeo e de reforma ou reintegraccedilatildeo necessaacuterios para a vida em

sociedade274

Com efeito os exemplos acima descritos demonstram que a relaccedilatildeo entre o

direito e as emoccedilotildees eacute muito mais profunda do que se pode a princiacutepio imaginar

Ademais eacute interessante notar que essa constataccedilatildeo tem sido objeto de investigaccedilatildeo nos

EUA haacute algum tempo originando um campo de estudo hoje denominado de ldquoLaw and

Emotionrdquo em cujo contexto a obra de Nussbaum estaacute inserida

Maroney destaca que a trajetoacuteria do movimento ldquoLaw and Emotionrdquo tem sido

dura porque a construccedilatildeo teoacuterica da modernidade juriacutedica estaacute fundada na ideia de que

a razatildeo e a emoccedilatildeo se localizam em campos tatildeo distintos que eacute necessaacuterio eficiente

policiamento a fim de que as emoccedilotildees natildeo escorreguem no campo do direito e

corrompam o discurso juriacutedico ldquoEste modelo teoacuterico tem persistido apesar de sua

273

ldquothroughout history certain disgust propertiesmdashsliminess bad smell stickiness decay foulnessmdash

have repeatedly and monotonously been associated with indeed projected onto groups by reference to

whom privileged groups seek to define their superior human status Jews women homosexuals

untouchables lower-class peoplemdashall these are imagined as tainted by the dirt of the bodyrdquo (trad livre)

Id ibid p 108 274

Id ibid p 227-228

108

implausibilidade como modelo de como os seres humanos vivem ou de como o nosso

direito eacute estruturado e administradordquo275

Natildeo obstante esse novo campo de estudo em que a interdisciplinaridade se faz

fortemente presente recentemente tem conseguido cada vez mais adeptos sendo

possiacutevel visualizar as seguintes abordagens teoacutericas sugeridas por Maroney

Haacute um interesse no estudo das emoccedilotildees em si mesmas isto eacute investiga-se de

que modo emoccedilotildees especiacuteficas influenciam ou deveriam influenciar a elaboraccedilatildeo de

leis Assim conforme visto a repugnacircncia a vergonha e o medo satildeo exemplos de

emoccedilotildees que despertam curiosidade de anaacutelise e de criacutetica

O medo por exemplo aumenta sentimentos de percepccedilatildeo de risco e gera

demanda por novos mecanismos de seguranccedila promovendo significativas alteraccedilotildees

juriacutedicas ldquoo medo torna os indiviacuteduos mais propensos a apoiar medidas de seguranccedila

em detrimento de outras liberdades importantes e incentiva o apoio a poliacuteticas

conservadoras em geralrdquo276

Por outro lado exemplificativamente discute-se como o

medo decorrente da ldquosiacutendrome das mulheres agredidasrdquo isto eacute uma especial condiccedilatildeo

mental presente em mulheres constantemente viacutetimas de agressatildeo por seus

companheiros deve ser considerado na defesa do processo penal para configuraccedilatildeo da

legiacutetima defesa277

Tambeacutem eacute objeto de preocupaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma teoria das emoccedilotildees com

metodologia categorias e conceitos proacuteprios a fim de possibilitar uma aplicaccedilatildeo

sistemaacutetica e coesa ao direito278

Existe a chamada abordagem doutrinaacuteria em que se estuda como uma especiacutefica

aacuterea do direito incorpora poderia ou deveria incorporar uma determinada emoccedilatildeo Haacute a

abordagem da teoria juriacutedica que analisa criticamente sob o seu ponto de vista a teoria

das emoccedilotildees E haacute uma abordagem sobre a influecircncia das emoccedilotildees sobre o papel dos

atores juriacutedicos ldquoa abordagem do ator-juriacutedico enfatiza os seres humanos que povoam

275

ldquoThis theoretical model has persisted despite its implausibility as a model of either how humans live or

how our law is structured and administeredrdquo (trad livre) MARONEY Terry A Law and Emotion A

Proposed Taxonomy of an Emerging Field In Law and Human Behavior vol 30 2006 119-142 p

120-121 Disponiacutevel em httpssrncomabstract=726864 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 276

PIZARRO David We cannot be emotionless but we are capable of rational debate Disponiacutevel

em httpwwwtheglobeandmailcomglobe-debatewe-cannot-be-emotionless-but-we-are-capable-of-

rational-debatearticle4310309 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 277

MARONEY T Op cit p 126 278

Id ibid p 126

109

os sistemas juriacutedicos e explora como a emoccedilatildeo influecircncia e informa ou deveria

influenciar ou informar o desempenho da funccedilatildeo legal atribuiacuteda a essas pessoasrdquo279

Portanto ao contraacuterio do que poderia aparentar agrave primeira vista as emoccedilotildees

participam em vaacuterios niacuteveis da constituiccedilatildeo do direito e de sua praacutetica de modo que

uma abordagem que tambeacutem privilegie o seu estudo permitiraacute uma melhor compreensatildeo

da dinacircmica do fenocircmeno juriacutedico possibilitando proveitosamente novas formas de

criacutetica teoacuterica agrave maneira pela qual o direito eacute estruturado

32 Anaacutelise

Uma vez exploradas algumas conexotildees existentes entre o direito e as emoccedilotildees

parte-se agora para a anaacutelise de trecircs decisotildees judiciais do STF em cujo corpo

procuraremos demonstrar a presenccedila de argumentos emotivos Escolhemos os julgados

pela sua repercussatildeo social assim como para demonstrar que as emoccedilotildees estatildeo

presentes ao contraacuterio do que se poderia imaginar nos mais variados temas juriacutedicos

Neste toacutepico nosso intuito consiste em realizar um exame argumentativo apenas

sob um vieacutes descritivo utilizando como auxiacutelio a classificaccedilatildeo argumentativa proposta

por Micheli no Capiacutetulo II Conforme vimos na referida classificaccedilatildeo existe a emoccedilatildeo

dita a emoccedilatildeo demonstrada e a emoccedilatildeo suportada Embora ao longo de nossa anaacutelise

iremos destacar quando presentes as emoccedilotildees ditas e as demonstradas o nosso

objetivo consiste em evidenciar de que modo as emoccedilotildees satildeo suportadas no discurso

Ademais conveacutem registrar que considerando a grande extensatildeo dos votos seratildeo

selecionados os principais argumentos utilizados pelos ministros para sustentar uma

determinada emoccedilatildeo

321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo

Na Arguiccedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental ndash ADPF nordm 101 (DJ

2462009) ajuizada pelo Presidente da Repuacuteblica estava em discussatildeo a

constitucionalidade da importaccedilatildeo de pneus usados e remoldados em territoacuterio nacional

O julgamento era necessaacuterio porque numerosas decisotildees proferidas por juiacutezes federais

das Seccedilotildees Judiciaacuterias do Cearaacute do Espiacuterito Santo de Minas Gerais do Paranaacute do Rio

279

ldquoThe legal-actor approach focuses on the humans that populate legal systems and explores how

emotion influences and informs or should influence or inform those personsrsquo performance of the

assigned legal functionrdquo (trad livre) Id ibid p 131

110

de Janeiro e de Satildeo Paulo amparavam a importaccedilatildeo de tais pneus que segundo o autor

da accedilatildeo violava preceitos fundamentais da Constituiccedilatildeo Federal ndash CF tais como dentre

outros o direito agrave sauacutede e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art 196 e 225

da CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencido o ministro Marco Aureacutelio

A seguir iremos analisar mais detidamente o voto da relatora da accedilatildeo a

ministra Caacutermen Luacutecia que foi acompanhada pelos demais ministros e em seguida

resumidamente os votos dos ministros Gilmar Mendes Carlos Ayres Brito e Joaquim

Barbosa Por uacuteltimo mencionamos o posicionamento do ministro Marco Aureacutelio

A ministra Caacutermen Luacutecia apoacutes cuidar de questotildees formais em toacutepicos

direcionados ao ldquoobjeto da accedilatildeordquo agrave ldquoadequaccedilatildeo da accedilatildeordquo e agrave ldquoexclusatildeo de alguns

arguidosrdquo bem como apoacutes apresentar algumas questotildees preparatoacuterias para o

enfrentamento do problema num toacutepico denominado ldquobreve histoacuterico da legislaccedilatildeo da

mateacuteriardquo inicia a sua argumentaccedilatildeo propriamente dita na seccedilatildeo destinada a dissertar

sobre o ldquopneurdquo

A partir daiacute a ministra utiliza para fundamentar a sua decisatildeo da estrutura

cognitiva tiacutepica do medo isto eacute argumentos de consequecircncia negativa Walton destaca

que o medo eacute estruturado do ponto de vista argumentativo por meio de consequecircncias

negativas ldquoo argumento do tipo apelo ao medo [] eacute uma espeacutecie de argumento de

consequecircncias negativasrdquo280

Diferenciando o apelo ao medo do apelo agrave ameaccedila cuja estrutura eacute mais

complexa porque conteacutem mais um elemento que eacute a ameaccedila do proponente Walton

observa que ambos satildeo argumentos de consequecircncia ldquoeacute o argumento de consequecircncias

como a estrutura subjacente na qual tanto o apelo ao medo quanto o apelo agrave ameaccedila satildeo

construiacutedos que explica a real relaccedilatildeo entre os doisrdquo281

Aleacutem disso de acordo com os criteacuterios apresentados por Micheli outro ponto a

ser observado consiste em identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo narrada eacute

esquematizado pois a avaliaccedilatildeo acerca da incapacidade de controle de algo negativo eacute

condizente com a deflagraccedilatildeo e a majoraccedilatildeo de sentimentos de medo

Assim estabelecidas essas premissas adentra-se agora nos argumentos do

julgado

280

ldquothe fear appeal type of argument [hellip] is a species of argument from negative consequencesrdquo (trad

livre) WALTON Douglas Scare tactics arguments that appeal to fear and threats Springer 2000 p

143 281

ldquoit is argument from consequences as the underlying structure upon which both appeal to fear and

appeal to threat are built that explains the real relationship between the twordquo (trad livre) Id ibid p

139

111

Inicialmente a ministra num toacutepico destinado a discorrer sobre ldquoa induacutestria

automobiliacutestica e o resiacuteduo da borrachardquo estabelece que haacute uma enorme quantidade de

pneus vulcanizados em circulaccedilatildeo no mundo ressaltando um primeiro problema que eacute

a difiacutecil decomposiccedilatildeo do seu material e enfatizando a incapacidade de controle de sua

destinaccedilatildeo apoacutes o uso ldquoresultado haacute um total de aproximadamente 4 bilhotildees de pneus

novos em circulaccedilatildeo pelo mundo feito de borracha vulcanizada que eacute um material de

difiacutecil decomposiccedilatildeo e de mais difiacutecil ainda gestatildeo de sua destinaccedilatildeo apoacutes o usordquo

Ao enfrentar o argumento da defesa segundo o qual um dos melhores meios

para superar a questatildeo referente agrave destinaccedilatildeo dos pneus usados consiste em reutilizaacute-los

na manta asfaacuteltica adverte-se que tal mistura resulta na maior emissatildeo de poluentes no

momento em que a roda do automoacutevel entra em fricccedilatildeo com o asfalto advindo a partir

daiacute consequecircncias negativas ldquoentretanto emite mais poluentes no momento da fricccedilatildeo

do pneu aleacutem de ser mais oneroso e com probabilidade de ocasionar doenccedilas de

natureza ocupacionalrdquo

Quanto agrave chamada reciclagem energeacutetica dos pneus para fins de geraccedilatildeo de

calor tambeacutem se enfatiza a sua incontrolabilidade ldquotodavia tambeacutem aqui se depara

com o problema da administraccedilatildeo dos resiacuteduos decorrentes dessa incineraccedilatildeordquo

Assim a tecnologia das incineradoras natildeo controla a situaccedilatildeo porque eacute incapaz

de zerar a emissatildeo de material queimado e a consequecircncia disso eacute que materiais

poluentes metais pesados e compostos toacutexicos (dioxinas e furanos) satildeo liberados na

atmosfera

O que se constatou eacute que apesar de eficiente a queima em

incineradoras dedicadas nunca lsquozerarsquo o material queimado dele

podem resultar efluentes soacutelidos e gasosos que aleacutem de conterem

material poluente podem se apresentar com alto grau de

contaminaccedilatildeo de metais pesados aleacutem de compostos orgacircnicos

toacutexicos em especial dioxinas e furanos

Desse modo em face de liberaccedilatildeo de tais poluentes na atmosfera e com o

consequente processamento quiacutemico dos compostos o efeito negativo reside na

formaccedilatildeo de chuvas aacutecidas

o ponto negativo desse tipo de destinaccedilatildeo dada aos pneus eacute que

produz poluiccedilatildeo ambiental pois nesse processo satildeo emitidos gases

toacutexicos em especial o dioacutexido de enxofre e a amocircnia que em

contato com as partiacuteculas de aacutegua suspensas no ar provocam o

fenocircmeno denominado chuva aacutecida

112

Por sua vez a chuva aacutecida eacute causadora de consequecircncias deleteacuterias numa seacuterie

de oacuterbitas ldquoa chuva aacutecida eacute responsaacutevel por grandes formas de aniquilamento do meio

ambiente por provocar danos nos lagos rios florestas e nos animais bem como nos

monumentos e obras construiacutedos pelos homensrdquo

Outra possiacutevel destinaccedilatildeo para os pneus seria o seu uso na co-incineraccedilatildeo

principalmente nas faacutebricas de cimento todavia novamente outra consequecircncia

negativa ldquosob altas temperaturas esses materiais datildeo origem agraves dioxinas e furanos

considerados substacircncias canceriacutegenasrdquo

Num outro momento do julgado jaacute apoacutes discorrer sobre normas constitucionais

respeitantes ao assunto a rel novamente aborda as consequecircncias negativas do descarte

de pneus usados mas agora se enfatiza o aparecimento de doenccedilas tropicais tal como a

dengue e o subsequente risco agrave vida das pessoas

Constatado que o depoacutesito de pneus ao ar livre ndash a que se chega

inexoravelmente com a falta de utilizaccedilatildeo dos pneus inserviacuteveis

mormente quando se daacute a sua importaccedilatildeo nos termos pretendidos por

algumas empresas - eacute fator de disseminaccedilatildeo de doenccedilas tropicais

[]

Entretanto as pesquisas e as estatiacutesticas satildeo taxativas ao comprovar os

riscos agrave vida acarretados pelas doenccedilas tropicais em especial a

dengue que tem como uma de suas principais causas exatamente a

presenccedila de resiacuteduos soacutelidos como os pneus natildeo utilizados e natildeo

descartados de forma a garantir a salubridade

A seguir enfatiza-se a fragilidade do controle em relaccedilatildeo ao armazenamento dos

pneus usados

A ceacutelere urbanizaccedilatildeo aliada agrave maacute qualidade da limpeza urbana

sem adequados procedimentos de remoccedilatildeo de entulhos em

especial pneus velhos eacute responsaacutevel pelo aparecimento de

criadouros de mosquitos

Alerta-se quanto a outro possiacutevel efeito negativo pois considerando o formato

oval do pneu um ambiente ideal para armazenar organismos vivos eacute possiacutevel que

doenccedilas sequer imaginadas ou ateacute jaacute erradicadas sejam trazidas para o nosso paiacutes

trazendo sofrimento e risco de perda de vida de cidadatildeos

Informa-se ainda que os pneus usados que chegam de outros Paiacuteses

podem conter ovos de insetos transmissores de doenccedilas ateacute agora

natildeo incidentes no Brasil ou jaacute erradicadas no Paiacutes o que demandaria

ndash aleacutem de maior sofrimento das pessoas - mais gastos estatais com a

jaacute precaacuteria condiccedilatildeo da sauacutede puacuteblica no Brasil sem falar insista-se

no risco de perda de vida de cidadatildeos

113

Ademais o aumento de doenccedilas e a consequente fragilizaccedilatildeo da sauacutede da

populaccedilatildeo tecircm uma seacuterie de efeitos negativos para o paiacutes sendo um deles a perda do seu

potencial econocircmico Em outras palavras ateacute o produto interno bruto eacute atingido quando

um governo eacute incapaz de promover uma boa poliacutetica de sauacutede para os seus cidadatildeos

A cada ano a Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ndash ONU elabora uma

classificaccedilatildeo dos Paiacuteses e mede a qualidade vida em pelo menos trecircs

elementos sauacutede educaccedilatildeo e produto interno bruto Jaacute se concluiu

que enquanto um Paiacutes natildeo tiver resolvido problemas relacionados

agrave sauacutede (saneamento baacutesico incluiacutedo) e agrave educaccedilatildeo da populaccedilatildeo

natildeo haacute como elevar o seu produto interno bruto

De seu turno o ministro Gilmar Mendes tambeacutem fundamenta o seu

posicionamento por meio de argumentos da mesma espeacutecie isto eacute apontam-se as

consequecircncias negativas (ldquoproliferaccedilatildeo de doenccedilasrdquo ldquosubstacircncias nocivas agrave sauacutede e ao

meio ambienterdquo ldquomaterial de difiacutecil composiccedilatildeordquo) e a ausecircncia de controle acerca da

situaccedilatildeo avaliada como negativa (ldquofalta de meacutetodo atualmente eficiente de controlerdquo)

resumindo assim alguns dos argumentos presentes no voto da ministra Caacutermen Luacutecia

O grau de nocividade a falta de meacutetodo atualmente eficiente de

controle da eliminaccedilatildeo das substacircncias nocivas agrave sauacutede e ao meio

ambiente (constataccedilatildeo de descumprimento reiterado da Resoluccedilatildeo

CONAMA nordm 25899) a proliferaccedilatildeo potencial de vetores de

doenccedilas e outros agravos e o aumento do passivo ambiental de

material inserviacutevel de difiacutecil decomposiccedilatildeo satildeo elementos que

constituem a formaccedilatildeo do convencimento juriacutedico acerca do

conhecimento cientiacutefico existente sobre a potencialidade dos danos

ambientais decorrentes do descarte irregular dos pneus usados

O ministro Carlos Ayres apoacutes destacar que os pneus natildeo satildeo biodegradaacuteveis

enfatiza cinco consequecircncias negativas em relaccedilatildeo agrave importaccedilatildeo de pneus usados e

remoldados (i) ocupaccedilatildeo de consideraacutevel espaccedilo fiacutesico para sua armazenagem (ii) risco

de faacutecil combustatildeo (iii) poluiccedilatildeo de rios lagos e correntes de aacutegua (iv) transmissatildeo de

doenccedila por insetos (incluindo a dengue que ele qualifica ser ldquotatildeo temida entre noacutesrdquo) (v)

e os pneus remoldados tem vida uacutetil muito curta e se tornam mais rapidamente um

passivo ambiental O referido ministro tambeacutem expressa indignaccedilatildeo com o fato de que

nos paiacuteses de origem tais pneus natildeo passam de ldquolixo ambientalrdquo e a sua importaccedilatildeo faz

do Brasil ldquouma espeacutecie de quintal do mundordquo com graves danos a bens juriacutedicos (sauacutede

e meio ambiente) tutelados pela Constituiccedilatildeo Federal

Por sua vez o ministro Joaquim Barbosa enfatiza a incontrolabilidade de

situaccedilotildees negativas natildeo haacute meacutetodo eficaz para lidar com os resiacuteduos dos pneus o que

114

ocasiona danos diretos ao meio ambiente natildeo haacute controle sobre o empilhamento e

descarte de pneus o que aumenta a proliferaccedilatildeo de vetores de doenccedila Aleacutem disso alega

a existecircncia de risco de aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees no campo das relaccedilotildees internacionais por

desobediecircncia agraves normas da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio - OMC

Por uacuteltimo destaque-se que o ministro Marco Aureacutelio entendeu que para proibir

a importaccedilatildeo de tais pneus deveria haver lei especiacutefica nesse sentido Ademais procura

deslegitimar os argumentos de consequecircncia negativa acima deduzidos ao dizer que a

mera proibiccedilatildeo de importaccedilatildeo natildeo seria suficiente para ldquosalvar a Matildee Terrardquo ldquo[] como

disse e parece que encerrado este julgamento estaraacute salva - a Matildee Terrardquo

Com efeito a argumentaccedilatildeo vencedora no presente caso eacute consistente com a

descriccedilatildeo do medo realizada por Aristoacuteteles em sua retoacuterica isto eacute a possibilidade de

acontecimento de algo ruim que tenha a capacidade de nos provocar danos ou seacuterios

prejuiacutezos Nesta mesma direccedilatildeo Walton enfatiza que o argumento que apela ao medo

envolve a demonstraccedilatildeo da existecircncia de algum perigo que pode ou poderaacute causar

prejuiacutezos a um determinado sujeito implicando a ideia de que eacute necessaacuterio tomar

alguma accedilatildeo para evitaacute-lo282

Portanto na referida decisatildeo estatildeo em consideraccedilatildeo perigos que iratildeo atingir a

ldquopopulaccedilatildeordquo os ldquocidadatildeosrdquo e o ldquomeio-ambienterdquo do Brasil E os males capazes de

atingi-los satildeo muitos materiais poluentes gases toacutexicos dioxinas e furanos substacircncias

canceriacutegenas metais pesados compostos orgacircnicos toacutexicos doenccedilas de natureza

ocupacional ovos de inseto doenccedilas tropicais e desconhecidas poluiccedilatildeo de rios lagos e

correntes de aacutegua chuva aacutecida dengue aumento de gastos estatais para tratar novas

doenccedilas e ateacute o impacto na economia Ademais eacute expressamente dito que tais perigos

tecircm a capacidade de ldquoaniquilarrdquo o meio ambiente e pocircr em risco a vida das pessoas

Tendo em vista a ausecircncia de tecnologia ou de fiscalizaccedilatildeo que tivesse a capacidade de

controlar tais consequecircncias negativas a procedecircncia da accedilatildeo buscou fundar

sentimentos de aliacutevio

Por uacuteltimo eacute interessante tambeacutem notar que embora as palavras ldquoperigordquo ou

ldquoperigosordquo apareccedilam com frequecircncia na decisatildeo a palavra ldquomedordquo natildeo eacute em si mesma

dita mas a despeito disso observa-se que o medo foi argumentado por meio de

argumentos de consequecircncia negativa isto eacute ele foi o suporte emotivo da decisatildeo

282

Id ibid p 143

115

322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo

Na ADPF nordm 54 (DJ 1242012) ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos

Trabalhadores na Sauacutede ndash CNTS estava sob julgamento a possibilidade juriacutedica da

antecipaccedilatildeo terapecircutica do parto na hipoacutetese de fetos anenceacutefalos uma vez que diversos

juiacutezes e tribunais negavam tal pleito agraves gestantes com fundamento nos dispositivos que

regem o crime de aborto no Coacutedigo Penal Os preceitos fundamentais da CF apontados

como violados foram a dignidade da pessoa humana o princiacutepio da legalidade da

liberdade da autonomia da vontade e o direito agrave sauacutede (arts 1ordm IV 5ordm II 6ordm e 196 da

CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencidos os ministros Ceacutesar Peluso e

Ricardo Lewandowski

Primeiramente iremos analisar a argumentaccedilatildeo do voto do ministro Peluso

Poreacutem para entender a construccedilatildeo argumentativa do referido ministro eacute necessaacuterio

expor a estrutura cognitiva da indignaccedilatildeo

Para nosso objetivo pode-se dizer que tal emoccedilatildeo eacute deflagrada mediante a

avaliaccedilatildeo negativa de uma situaccedilatildeo (accedilatildeoomissatildeo) geradora de sofrimento e danos cuja

responsabilidade causal eacute passiacutevel de imputaccedilatildeo a um agente culpaacutevel Assim existe

uma accedilatildeoomissatildeo atribuiacutevel a algueacutem que eacute julgada condenaacutevel injusta pois causa

um especiacutefico prejuiacutezodanosofrimento a um sujeito283

Portanto a fim de caracterizar a indignaccedilatildeo no discurso eacute preciso analisar como

a accedilatildeoomissatildeo eacute narrada quem eacute o agente responsaacutevel como ele eacute caracterizado no

discurso quem eacute o sujeito passivo e como ele eacute caracterizado no discurso Neste julgado

especiacutefico os dois atores objeto de predicaccedilatildeo satildeo a gestante (a matildee) e o feto

Assim posto isso conveacutem dizer que apoacutes estabelecer que ldquotodos os fetos

anenceacutefalos [] satildeo inequivocamente dotados dessa capacidade de movimento

autoacutegeno vinculada ao processo contiacutenuo da vida e regida pela lei natural que lhe eacute

imanenterdquo o ministro afirma que o aborto de feto anecenfaacutelico eacute conduta criminosa

No seguinte trecho em que o ministro conclui com uma notaacutevel exclamaccedilatildeo

(emoccedilatildeo demonstrada) a conduta condenaacutevel e injusta eacute narrada como ldquofunestamente

danosa agrave vida ou agrave incolumidade fiacutesica alheiardquo caracterizando sofrimento e dano ao

feto ldquonatildeo se concebe nem entende em termos teacutecnico-juriacutedicos uacutenicos apropriados ao

283

Nesse sentido cf MICHELI R op cit 2014 p 113 e NUSSBAUM M op cit 2004 p 99 e 166

A raiva e a indignaccedilatildeo tecircm basicamente a mesma estrutura cognitiva de modo que poderiacuteamos utilizar

tanto uma quanto a outra emoccedilatildeo

116

caso direito subjetivo de escolha [] de comportamento funestamente danoso agrave vida

ou agrave incolumidade fiacutesica alheia e como tal tido por criminoso Eacute coisa abstrusardquo

No seguinte trecho haacute a estrutura completa da indignaccedilatildeo isto eacute o agente

culpado (a gestante) eacute caracterizado como algueacutem com poder desproporcional agrave viacutetima

(ldquoser poderoso superior detentor de toda forccedilardquo) existe a conduta condenaacutevel e

geradora de danos e sofrimentos que eacute comparada a um ato brutal de violecircncia

(ldquoextermiacuteniordquo ldquopena de morterdquo) e existe o sujeito passivo que eacute descrito como algueacutem

totalmente indefeso ldquono caso do extermiacutenio do anenceacutefalo encena-se a atuaccedilatildeo

avassaladora do ser poderoso superior que detentor de toda a forccedila inflige a pena

de morte ao incapaz de pressentir a agressatildeo e de esboccedilar-lhe qualquer defesardquo

A conduta da gestante eacute caracterizada como condenaacutevel injusta e infligidora de

sofrimento vaacuterias vezes Assim a fim de lhe emprestar conteuacutedo emotivo tal

procedimento eacute comparado com situaccedilotildees que via de regra nos provocam ou deveriam

provocar indignaccedilatildeo e raiva tais como a ldquopena capitalrdquo o ldquoracismo sexismo e

especismordquo e ateacute o nazismo Aleacutem disso tal conduta nominada de ldquoodiosardquo reduz o

feto ldquoagrave condiccedilatildeo de lixordquo

[] ao feto reduzido no fim das contas agrave condiccedilatildeo de lixo ou de

outra coisa imprestaacutevel e incocircmoda natildeo eacute dispensada de nenhum

acircngulo a menor consideraccedilatildeo eacutetica ou juriacutedica

[]

Essa forma odiosa de discriminaccedilatildeo que a tanto equivale nas suas

consequecircncias a formulaccedilatildeo criticada em nada difere do racismo do

sexismo e do chamado especismo Todos esses casos retratam a

absurda defesa e absolviccedilatildeo do uso injusto da superioridade de

alguns (em regra brancos de estirpe ariana homens e seres humanos)

sobre outros (negros judeus mulheres e animais respectivamente)

Em outra passagem novamente a conduta eacute comparada com situaccedilotildees que nos

provocam ou deveriam provocar sentimentos de indignaccedilatildeo e raiva podendo-se

inclusive cogitar que a argumentaccedilatildeo implica o medo de que um passado baacuterbaro da

nossa histoacuteria volte novamente a se repetir O ministro demonstra ao final a emoccedilatildeo

com uma exclamaccedilatildeo Confira-se

Faz muito a civilizaccedilatildeo sepultou a praacutetica ominosa de sacrificar

segregar ou abandonar crianccedilas receacutem-nascidas deficientes ou de

aspecto repulsivo como as disformes aleijadas surdas albinas ou

leprosas soacute porque eram consideradas ineptas para a vida e

improdutivas do ponto de vista econocircmico e social

117

Num toacutepico que trata sobre ldquoriscos de eugeniardquo o ministro tambeacutem utiliza de

argumentos de consequecircncia negativa (medo) a fim de demonstrar os perigos que

poderatildeo advir caso a accedilatildeo seja julgada procedente O primeiro deles seria permitir que

outras mulheres possam pleitear tratamento juriacutedico semelhante sob qualquer motivo

(anomalia fetal social econocircmico familiar) implicando a ideia de que novamente seraacute

infligido sofrimento a outros seres inocentes

Eacute possiacutevel imaginar o ponderaacutevel risco de que julgada procedente

esta ADPF mulheres entrem a pleitear igual tratamento juriacutedico a

hipoacuteteses de outras anomalias natildeo menos graves ou porque a gravidez

seja indesejada em si mesma ou porque agrave conta de fatores

econocircmicos sociais familiares etc seria insuportaacutevel ou

insustentaacutevel ter um filho

A ausecircncia de tecnologia meacutedica que permita diagnoacutestico 100 seguro eacute

apontada como outro fator de risco em relaccedilatildeo agrave permissatildeo de tal espeacutecie de aborto

demonstrando assim a incontrolabilidade da situaccedilatildeo sob julgamento

E o que surpreende e admira eacute que quem a invoca parece ignorar que

a temaacutetica estaacute indissociavelmente vinculada ao problema da

dificuldade teacutecnico-cientiacutefica de se detectar com precisatildeo absoluta

quais casos satildeo de anencefalia de modo a diferenciaacute-los de outras

afecccedilotildees da mesma classe nosoloacutegica das quais se distingue apenas

por questatildeo de grau

[]

Por que se evite possibilidade concreta de em decorrecircncia das

incertezas teacutecnico-cientiacuteficas e da consequente falibilidade dos

diagnoacutesticos eliminarem-se arbitrariamente fetos acometidos de

malformaccedilotildees diversas da anencefalia eacute imperioso proibir-lhes o

aborto ainda em tais casos

Ademais para o ministro Peluso a matildee ao pretender a permissatildeo juriacutedica para a

praacutetica do referido aborto configura-se um ser ldquoegocecircntricordquo e ldquoindividualistardquo que em

nome do ldquoprinciacutepio do prazerrdquo e a fim de evitar seu sofrimento psiacutequico e suas

anguacutestias recusa o oferecimento de compaixatildeo e piedade a quem na verdade eacute

merecedor desses sentimentos isto eacute o feto

[] reflete apenas uma atitude individualista e egocecircntrica enquanto

sugere praacutetica cocircmoda de que se vale a gestante para se livrar do

sofrimento e da anguacutestia

[]

Tal ansiedade que voltada para si mesma depende da histoacuteria e da

conformaccedilatildeo psiacutequicas de cada gestante eacute exaltada na proposta em

detrimento do afeto da piedade da compaixatildeo da doaccedilatildeo e da

abnegaccedilatildeo que participam da dimensatildeo de grandeza do espiacuterito

humano

118

Por outro lado se nos votos dos demais ministros eram claramente divergentes

as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do iniacutecio da vida ou do que eacute a vida da laicidade

estatal de questotildees penais de princiacutepios juriacutedicos (dignidade da pessoa humana

autonomia da vontade etc) parece que havia pelo menos um ponto de consenso que

era a necessidade de se ter compaixatildeo para com o sofrimento vivido pela gestante

Lazarus destaca que o tema nuacutecleo da compaixatildeo consiste em ser movido pelo

sofrimento alheio284

Por sua vez na estrutura cognitiva da compaixatildeo existe uma

avaliaccedilatildeo acerca da seriedade do sofrimento vivido por determinado sujeito e de certo

modo estatildeo ausentes consideraccedilotildees acerca da culpa do proacuteprio sujeito por estar em tal

situaccedilatildeo aflitiva285

Assim no voto do relator ministro Marco Aureacutelio realiza-se uma comparaccedilatildeo

entre as emoccedilotildees positivas que geralmente se fazem presentes numa gestaccedilatildeo normal e

as emoccedilotildees negativas que a gestante tem que suportar na hipoacutetese de anencefalia do

feto

Enquanto numa gestaccedilatildeo normal satildeo nove meses de

acompanhamento minuto a minuto de avanccedilos com a predominacircncia

do amor em que a alteraccedilatildeo esteacutetica eacute suplantada pela alegre

expectativa do nascimento da crianccedila na gestaccedilatildeo do feto anenceacutefalo

no mais das vezes reinam sentimentos moacuterbidos de dor de

anguacutestia de impotecircncia de tristeza de luto de desespero dada a

certeza do oacutebito

Assim conclui-se pela impossibilidade de se exigir que a matildee suporte tamanho

sofrimento a que se compara agrave tortura

O ato de obrigar a mulher a manter a gestaccedilatildeo colocando-a em uma

espeacutecie de caacutercere privado em seu proacuteprio corpo desprovida do

miacutenimo essencial de autodeterminaccedilatildeo e liberdade assemelha-se agrave

tortura ou a um sacrifiacutecio que natildeo pode ser pedido a qualquer pessoa

ou dela exigido

Mostra-se inadmissiacutevel fechar os olhos e o coraccedilatildeo ao que vivenciado

diuturnamente por essas mulheres seus companheiros e suas famiacutelias

Igualmente o ministro Joaquim Barbosa anota a presenccedila de um conjunto de

emoccedilotildees negativas (culpa raiva tristeza etc) deflagradas para os pais quando do

diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal concluindo com uma pergunta retoacuterica (emoccedilatildeo

demonstrada)

as reaccedilotildees emocionais dos pais apoacutes o diagnoacutestico de malformaccedilatildeo

fetal abrangem conjuntamente ou natildeo os seguintes sentimentos

284

LAZARUS R Op cit 1991 p 289 285

NUSSBAUM M Op cit 2004 p 49-50

119

ambivalecircncia culpa impotecircncia perda do objeto amado choque

raiva tristeza e frustraccedilatildeo Eacute facilmente perceptiacutevel a enorme

dificuldade de se enfrentar um diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal E eacute

possiacutevel imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que

passam aqueles que de suacutebito se veem diante do dilema moral de

interromper uma gestaccedilatildeo unicamente porque nada se pode fazer para

salvar a vida do feto Seria reprovaacutevel uma decisatildeo pela

interrupccedilatildeo da gestaccedilatildeo nesse caso

Por sua vez a ministra Caacutermen Luacutecia expressamente se refere agrave necessidade de

se ter compaixatildeo para com a gestante tendo em vista o enorme sofrimento gerado pela

presenccedila de inuacutemeras emoccedilotildees negativas (medo vergonha anguacutestia) atribuiacutedas agrave

mulher

A mulher que natildeo pode interromper essa gravidez tem o medo do que

vai acontecer o medo de que lhe pode ser acometido o medo fiacutesico o

medo psiacutequico e o medo ainda de vir a ser punida penalmente por

uma conduta que ela venha a adotar

[]

Natildeo se haacute negar compaixatildeo porque seria injusticcedila menos ainda o

direito porque seria antijuriacutedico agrave mulher que trazendo um pequeno

caixatildeo no que eacute o seu berccedilo fiacutesico vai agraves portas do Judiciaacuterio a

suplicar pela sua vida

[]

A mulher gestante de feto anenceacutefalo vive anguacutestia que natildeo eacute

partilhaacutevel pelo que ao Estado natildeo compete intervir vedando o que

natildeo eacute constitucionalmente admissiacutevel como proibido

Em igual sentido o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux assinalam a

necessidade de se levar em consideraccedilatildeo para a soluccedilatildeo da controveacutersia o sofrimento

que a mulher tem que passar nesse percurso de gestaccedilatildeo

Entrementes o aborto do feto anenceacutefalo tem por objetivo preciacutepuo

zelar pela sauacutede psiacutequica da gestante uma vez que desde o

diagnoacutestico da anomalia (que pode ocorrer a partir do terceiro mecircs de

gestaccedilatildeo) ateacute o parto a mulher conviveraacute com o sofrimento de

carregar consigo um feto que natildeo conseguiraacute sobreviver segundo a

medicina afirma com elevadiacutessimo grau de certeza (ministro Gilmar

Mendes)

[] levar a gestaccedilatildeo ateacute os seus uacuteltimos termos causa na mulher um

sofrimento incalculaacutevel do qual resultam chagas eternas que podem

ser minimizadas caso interrompida a gravidez de plano (ministro

Luiz Fux)

O ministro Carlos Ayres o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber

enfatizam o mesmo aspecto isto eacute o sofrimento pelo qual a mulher passa eacute

desnecessaacuterio comparando-o novamente a uma tortura

120

Daiacute que vedar agrave gestante a opccedilatildeo pelo aborto caracteriza um modo

cruel de ignorar sentimentos que somatizados tem a forccedila de derruir

qualquer feminino estado de sauacutede fiacutesica psiacutequica e moral aqui

embutida a perda ou a sensiacutevel diminuiccedilatildeo da autoestima

[]

Por isso que levar agraves uacuteltimas consequecircncias esse martiacuterio contra a

vontade da mulher corresponde agrave tortura a tratamento cruel

Ningueacutem pode impor a outrem que se assuma enquanto maacutertir o

martiacuterio eacute voluntaacuterio (ministro Carlos Ayres)

Nessa especiacutefica situaccedilatildeo a causa supralegal mencionada traduziraacute

hipoacutetese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa uma

vez que inexistente em tal contexto motivo racional justo e legiacutetimo

que possa obrigar a mulher a prolongar inutilmente a gestaccedilatildeo e a

expor-se a desnecessaacuterio sofrimento fiacutesico eou psiacutequico com grave

dano agrave sua sauacutede e com possibilidade ateacute mesmo de risco de morte

consoante esclarecido na Audiecircncia Puacuteblica que se realizou em funccedilatildeo

deste processo (ministro Celso de Mello)

[] a imposiccedilatildeo da gestaccedilatildeo contra a vontade da mulher eacute tortura

fiacutesica e psicoloacutegica em razatildeo de crenccedila (natildeo importa se

institucionalizada por meio de lei ou de decisatildeo juriacutedica ainda eacute mera

crenccedila) nos exatos termos da Lei dos Crimes de Tortura (ministra

Rosa Weber)

Assim sob uma anaacutelise emotiva pode-se dizer que enquanto o voto do ministro

Ceacutesar Peluso construiacutedo atraveacutes de uma forte predicaccedilatildeo contra o aborto de feto

anenceacutefalo era fundado na indignaccedilatildeoraiva direcionado agrave conduta da gestante no

medo em relaccedilatildeo agraves consequecircncias do julgamento e na tentativa de criar compaixatildeo para

com o feto os votos dos demais ministros forneciam razotildees para se ter compaixatildeo para

com o sofrimento da matildee que era descrito como uma tortura um sofrimento a que ela

natildeo deu causa um martiacuterio desnecessaacuterio Desse modo observa-se que as emoccedilotildees

foram argumentadas por meio de suas estruturas cognitivas e muitas vezes

expressamente ditas e atribuiacutedas aos atores (gestante feto) objetos de consideraccedilatildeo no

julgamento

323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo

A ADI nordm 4976 (DJ 1052014) foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repuacuteblica

contra dentre outros dispositivos os arts 37 a 47 da Lei nordm 12663 de 5 de junho de

2012 que concediam aos jogadores titulares ou reservas das seleccedilotildees brasileiras

campeatildes das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970

121

um precircmio em dinheiro no valor fixo de R$ 10000000 (cem mil reais) e um auxiacutelio

especial mensal para jogadores sem recursos ou com recursos limitados De acordo com

a argumentaccedilatildeo presente na peticcedilatildeo inicial da referida ADI a concessatildeo de tais

benefiacutecios financeiros ao referido grupo de jogadores violaria o princiacutepio da isonomia

A ADI neste ponto foi julgada por unanimidade improcedente

No voto do rel ministro Ricardo Lewandowski apoacutes ser destacado que a CF

por meio do art 217 fomenta as praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais protege e

incentiva as manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacional e atraveacutes do art 215 e 216

salvaguarda as manifestaccedilotildees da cultura popular e os bens de natureza imaterial chega-

se agrave conclusatildeo que o fundamento para desequiparaccedilatildeo consiste no fato de que tais

atletas conseguiram uma ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo Aleacutem do

mais em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com

recursos limitados sustenta-se que a ldquoextrema penuacuteria materialrdquo vivida por alguns

colocaria em xeque o ldquoprofundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras

que disputaram as Copas do Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFArdquo

Diante dessas diretrizes constitucionais parece-me plenamente

justificada a iniciativa dos legisladores federais - legiacutetimos

representantes que satildeo da vontade popular - em premiar materialmente

a incalculaacutevel visibilidade internacional positiva proporcionada por

esse grupo especiacutefico e restrito de atletas bem como em evitar que a

extrema penuacuteria material enfrentada por alguns deles ou por suas

famiacutelias ndash com a perda de dignidade pessoal que acompanha essas

circunstacircncias ndash ponha em xeque o profundo sentimento nacional

em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras que disputaram as Copas do

Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFA as quais representam ainda

hoje uma das expressotildees mais relevantes conspiacutecuas e populares

da identidade nacional

Nesse pequeno trecho esboccedila-se a presenccedila de vaacuterias emoccedilotildees que

fundamentam a desequiparaccedilatildeo a ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo e a

ldquoidentidade nacionalrdquo satildeo expressivas do sentimento do orgulho a ldquoextrema penuacuteria

materialrdquo diz respeito agrave compaixatildeo ldquoo profundo sentimento nacionalrdquo faz uso do apelo

aos sentimentos do povo

Lazarus destaca que o nuacutecleo temaacutetico do orgulho diz respeito agrave ldquomelhoria da

identidade do ego de algueacutem tomando creacutedito um objeto valioso ou uma conquista seja

a nossa proacutepria ou a de algueacutem ou a de um grupo com o qual nos identificamos - por

122

exemplo um compatriota um membro da famiacutelia ou um grupo socialrdquo286

Assim no

orgulho estaacute presente uma avaliaccedilatildeo positiva de que nossa imagemidentidade foi

significativamente melhorada e engrandecida em virtude da conquista por noacutes mesmos

ou por outros com qual nos identificamos de algo socialmente relevante O evento

deflagrador do orgulho aleacutem de ser considerado positivo aumenta o valor da nossa

imagem

Em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com

recursos limitados a desequiparaccedilatildeo tambeacutem eacute justificada a tiacutetulo de compaixatildeo

porque os ldquojogadores daquela eacutepocardquo natildeo ganhavam o suficiente para uma

aposentadoria digna

Recordo nesse sentido que a final da Copa do Mundo de 1950 entre

as seleccedilotildees brasileira e uruguaia realizada no Rio de Janeiro ndash oito

anos portanto antes do primeiro tiacutetulo nacional ndash teve o maior

puacuteblico da histoacuteria do Estaacutedio do Maracanatilde superando 200 mil

pessoas Natildeo obstante como eacute notoacuterio poucos foram os jogadores

daquela eacutepoca mesmo os de maior renome que obtiveram

rendimentos suficientes para garantir na inatividade um sustento

digno para si e seus familiares

No voto do ministro Luiz Fux os ex-campeotildees satildeo descritos como ldquoverdadeiros

heroacuteis do paiacutesrdquo Por sua vez as suas conquistas construiacuteram o ldquonosso patrimocircnio

histoacuterico nacionalrdquo e ldquoalccedilaram o Brasil a outro patamar em termos desportivosrdquo de

modo que natildeo existe agressatildeo agrave isonomia em razatildeo do reconhecimento por ldquotamanho

feitordquo

[] as consequecircncias dos mundiais de 1958 na Sueacutecia de 62 no

Chile e de 70 no Meacutexico foram decisivas para a construccedilatildeo desse

patrimocircnio histoacuterico nacional

Daiacute por que natildeo haacute qualquer ofensa agrave Lei fundamental de 1988 em

especial ao princiacutepio da isonomia quando o Estado promove por

meio de concessatildeo do benefiacutecio ora previsto o reconhecimento por

tamanho feito

Natildeo se pode negligenciar que esses atletas ao representarem o paiacutes

em tais mundiais alccedilaram o Brasil a outro patamar em termos

desportivos

O ministro diz que a importacircncia da conquista de tais jogadores eacute enorme

porque fez com que abandonaacutessemos o complexo de que ldquosoacute seriamos uma paacutetria que

286

ldquoenhancement of ones ego-identity by taking credit for a valued object or achievement either our

own or that of someone or group with whom we identify mdash for example a compatriot a member of the

family or a social grouprdquo (tradlivre) LAZARUS R Op cit p 271

123

calccedila chuteirasrdquo Assim alegar a inconstitucionalidade de tal norma significa ir de

encontro agraves conquistas de que ldquoo povo brasileiro tanto se orgulhardquo

reconhecer a importacircncia dos atores dessa transmudaccedilatildeo por que

passou o Brasil e a identificaccedilatildeo do paiacutes com o futebol abandonando

o complexo de que noacutes soacute seriacuteamos uma Paacutetria que calccedila

chuteiras evidencia a implementaccedilatildeo de poliacutetica puacuteblico-estatal de

reconhecimento que contempla o princiacutepio da isonomia

Afirmar a inconstitucionalidade de tais preceitos concessa venia eacute

desestimular e depreciar as conquistas das quais o povo brasileiro

tanto se orgulha

Quanto agrave atual situaccedilatildeo de miseacuteria de alguns jogadores ela eacute justificada pela

ausecircncia de profissionalismo no futebol de antigamente Ademais tal condiccedilatildeo de

penuacuteria eacute atestada pelos telejornais e pela rede mundial de computadores

Natildeo havia o profissionalismo que vivenciamos nos dias de hoje e

justamente por isso - esse eacute um argumento talvez interdisciplinar ndash

muitos desses verdadeiros heroacuteis do paiacutes natildeo possuem condiccedilotildees

materiais miacutenimas para a sua subsistecircncia Natildeo raro haacute relatos nos

telejornais e na proacutepria rede mundial de computadores de ex-

campeotildees do mundo vivendo em completo esquecimento e ateacute

mesmo na miseacuteria de maneira que merece ser festejada e natildeo

tripudiada a iniciativa do Estado Brasileiro

Ao final do seu voto o ministro Fux atribui ao povo brasileiro mais duas

emoccedilotildees positivas relacionadas aos feitos dos ex-atletas (alegria e gratidatildeo)

Por fim Senhor Presidente egreacutegia Corte eu tenho certeza de que o

povo brasileiro por todas as alegrias que esses atletas

proporcionaram tem uma diacutevida de gratidatildeo e natildeo repudiaraacute a justa e

merecida homenagem feita pela lei

Para o ministro Luiacutes Barroso inexiste violaccedilatildeo agrave isonomia porque a concessatildeo

de tal premiaccedilatildeo e do auxiacutelio-especial estaacute fundada na ldquoavaliaccedilatildeo poliacutetica de que os

referidos jogadores realizaram um feito notaacutevel contribuindo para desenvolver um

traccedilo marcante da cultura nacional e difundir o nome do Brasil no mundordquo De resto

observa que alguns ex-jogadores enfrentam ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo e que na

deacutecada de 50 60 70 natildeo se retirava proveito econocircmico da atividade esportiva como

hoje em dia

Por sua vez o ministro Dias Toffoli oferece outra razatildeo para se ter orgulho das

conquistas dos ex-jogadores qual seja apoacutes ser campeatildeo contra a Sueacutecia em 1958 as

empresas suecas ldquodescobriram o Paiacutesrdquo o que resultou em ldquoriquezas para a Naccedilatildeo

brasileirardquo

124

Em 1958 quando o paiacutes vivia aquele processo de industrializaccedilatildeo da

eacutepoca de Juscelino Kubitschek as induacutestrias suecas olharam para o

Brasil exatamente quando viram o Brasil jogar na Sueacutecia e ser

campeatildeo numa final da Copa do Mundo contra a Sueacutecia As grandes

empresas suecas na aacuterea de tecnologia na aacuterea automobiliacutestica que

se instalaram haacute cinquenta anos no Brasil descobriram o Paiacutes por

conta do futebol o que resultou em riquezas para a Naccedilatildeo

brasileira com a geraccedilatildeo de empregos e de desenvolvimento

Indagado se o Brasil era de fato desconhecido do mundo antes de 1958 o

ministro Toffoli diz que a industrializaccedilatildeo sueca estaacute registrada nos livros Ademais

tais conquistas no futebol resultaram no soft power brasileiro no mundo

Ah eu natildeo vou citar os nomes das empresas mas isso estaacute nos livros

Estaacute na histoacuteria do desenvolvimento brasileiro basta ler Senhor

Presidente Basta ler a histoacuteria do desenvolvimento brasileiro

Verifique se tinha induacutestria sueca antes de 58 investindo no Brasil e

verifique depois

[]

[] a muacutesica brasileira traz retorno ao Brasil a cultura brasileira as

novelas brasileiras que passam no exterior trazem um capital agregado

ao Brasil

Isso eacute o soft power Trata-se do soft power

[]

esse chamado soft power ele traz um retorno agrave Naccedilatildeo brasileira ele

traz dividendos que extrapolam a proacutepria aacuterea do futebol a proacutepria

aacuterea do desporto e agrega valor a toda a Naccedilatildeo brasileira e repercute

na economia de modo geral Como eacute um fato - isso eacute um fato eacute um

dado histoacuterico - que muitas empresas suecas que hoje estatildeo

instaladas haacute mais de cinquenta anos no Brasil olharam para o

Brasil apoacutes a Copa de 1958 laacute organizada

De seu turno o ministro Gilmar Mendes alega que a hegemonia no futebol eacute

benfazeja simpaacutetica no mundo e eacute disso que se trata o soft power Embora natildeo se refira

expressamente aos dispositivos constitucionais acima mencionados ele chega a destacar

que caso bem aproveitada a Copa serviria para ldquorevirar esse complexo de vira-latardquo E

o ministro Marco Aureacutelio alega que o reconhecimento dos ex-atletas eacute justo embora

tenha vindo tarde (cinquenta e quatro anos depois)

Observa-se portanto que a estrutura cognitiva do orgulho se fez bastante

presente na argumentaccedilatildeo desenvolvida pois para fins de justificar a desequiparaccedilatildeo de

tratamento legislativo se avaliou que a imagem do Brasil ou a identidade brasileira foi

significativamente melhorada (e ateacute construiacuteda) apoacutes a vitoacuteria nas copas mundiais

masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970 Vaacuterias descriccedilotildees a respeito

de tal conquista confirmam isso ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo

125

ldquotamanho feitordquo ldquofeito notaacutevel ldquoalccedilou o Brasil em outro patamar em termos

desportivosrdquo ldquoabandonou o complexo de que seriacuteamos uma paacutetria que soacute calccedila

chuteirasrdquo ldquoas grandes empresas suecas descobriram o Brasilrdquo ldquosoft power mundialrdquo

ldquoagrega valor a toda Naccedilatildeo brasileirardquo Desse modo o orgulho foi uma emoccedilatildeo

expressamente atribuiacuteda agrave populaccedilatildeo e extensamente argumentada pelos votos

Por outro lado a estrutura cognitiva da compaixatildeo tambeacutem esteve presente pois

o sofrimento dos ex-jogadores eacute descrito como ldquoextrema penuacuteria materialrdquo ldquomiseacuteriardquo

ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo tudo isso atestado pelos ldquotelejornaisrdquo e pela ldquorede

mundial de computadoresrdquo Tambeacutem estava fora de consideraccedilatildeo questotildees acerca da

culpa dos proacuteprios jogadores para estarem em tal estado de miserabilidade jaacute que via

de regra os ministros avaliaram que naquela eacutepoca natildeo se ganhava tanto dinheiro

quanto hoje em dia Ademais vimos que a alegria e a gratidatildeo foram emoccedilotildees

expressamente atribuiacutedas agrave populaccedilatildeo

33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Este uacuteltimo toacutepico estaraacute divido em trecircs momentos O primeiro busca responder

se eacute possiacutevel uma retoacuterica estoica no direito O segundo tece consideraccedilotildees criacuteticas

sobre os julgados a fim de tentar explicitar em que medida os argumentos emotivos

colaboraram positivamente ou natildeo para a decisatildeo Sobre esse segundo momento eacute

preciso ressaltar que no atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo natildeo conseguimos

identificar criteacuterios que pudessem ser aplicados de maneira sistemaacutetica e coesa

resultando numa rigorosa metodologia de avaliaccedilatildeo de argumentos emotivos Desse

modo sobre este especiacutefico momento avaliativo eacute preciso registrar que muito se tem

para evoluir sobre o tema e por isso natildeo faremos mais do que esparsamente e sem o

rigor desejado ponderar a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum a relevacircncia

dos argumentos identificados e a sua integraccedilatildeo no contexto de uma argumentaccedilatildeo

juriacutedica Portanto intencionamos natildeo mais do que coletar alguns criteacuterios miacutenimos que

pudessem servir para ulterior desenvolvimento teoacuterico acerca da avaliaccedilatildeo de

argumentos Por fim o terceiro momento tentaraacute responder se existe uma eacutetica no uso

das emoccedilotildees na decisatildeo juriacutedica buscando construir paracircmetros de neutralidade para o

julgador

Inicialmente em relaccedilatildeo ao primeiro ponto conveacutem relembrar que a eacutetica

estoica influenciou fortemente a formataccedilatildeo de sua retoacuterica que era considerada uma

126

ciecircncia e uma virtude (diferentemente do que entendia todas as escolas filosoacuteficas da

antiguidade) No entanto a retoacuterica estoica tinha uma seacuterie de peculiaridades pois ao

inveacutes de propoacutesitos persuasivos buscava a correccedilatildeo do discurso Assim para atingir tal

desiderato natildeo utilizava ornamentos valorizava ao maacuteximo a brevidade e o apuro

gramatical repudiava coloquialismos e sobretudo natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero

descrevia esse estilo como seco severo compacto e apaacutetico Em suma o discurso

retoacuterico estoico absorvido na sua dialeacutetica era apresentado destituiacutedo de carga emotiva

para ser assentido pelo puacuteblico

No entanto a utilizaccedilatildeo desse modelo de discurso como paradigma para o

direito especialmente no que tange agraves emoccedilotildees natildeo eacute viaacutevel por uma seacuterie de motivos

Inicialmente se formos realmente radicais nessa ideia ela teria que ser bem

sucedida em sua capacidade de esvaziamento da linguagem de seu conteuacutedo emotivo

Mas isso seria impossiacutevel desde que as palavras se destinam a carregar uma constelaccedilatildeo

de informaccedilotildees experiecircncias e emoccedilotildees por detraacutes delas Seria inclusive desnorteante

retirar o peso emotivo de palavras teacutecnicas e eacuteticas do direito tais como boa-feacute

dignidade da pessoa humana direitos humanos etc Tais palavras tecircm uma dimensatildeo

emotiva forte e por isso satildeo causas de agir isto eacute nos impulsionam em suas

prescriccedilotildees conforme destaca Stevenson ldquodefiniccedilotildees eacuteticas envolvem um casamento de

significado descritivo e emotivo e consequentemente possuem um uso frequente no

redirecionamento e intensificaccedilatildeo de atitudesrdquo287

Ademais Fillmore destaca que toda definiccedilatildeo eacute composta por duas partes uma

parte descritiva relacionada ao significado de uma palavra especiacutefica sendo que esta

parte eacute dependente de outra qual seja o fundo de conhecimento culturalmente

compartilhado da palavra Assim toda palavra eacute dependente de frame isto eacute ldquouma

estrutura de conhecimento ou de conceituaccedilatildeo que subjaz ao significado de um conjunto

de itens lexicais que em certos sentidos apelam para essa mesma estruturardquo288

Portanto um projeto de apatia do discurso juriacutedico precisaria elaborar uma eficiente

287

ldquoethical definitions involve a wedding of descriptive and emotive meaning and accordingly have a

frequent use in redirecting and intensifying attitudesrdquo (trad livre) STEVENSON Charles L Ethics and

language New Haven Yale University Press 1944 p 210 Sobre a importacircncia da linguagem emotiva

na argumentaccedilatildeo cf WALTON Douglas MACAGNO Fabrizio Emotive language in argumentation

New York Cambridge 2014 288

ldquoby frame I mean a structure of knowledge or conceptualization that underlies the meaning of a set of

lexical items that in some ways appeal to that same structurerdquo (trad livre) FILLMORE Charles J

Double-decker definitions the role of frames in meaning explanations In Sign language studies

vol3 2003 p 267

127

terapecircutica para se livrar das caracteriacutesticas da proacutepria linguagem e dos seus anseios

comunicacionais mais baacutesicos

Todavia a impossibilidade de uma retoacuterica estoica no direito ultrapassa uma

questatildeo estritamente linguiacutestica Conforme vimos o direito leva em consideraccedilatildeo as

nossas emoccedilotildees porque a proteccedilatildeo juriacutedica soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres cuja

constituiccedilatildeo seja passiacutevel de danos pois eacute a partir dessa fragilidade constitutiva que se

deflagram respostas emocionais juridicamente relevantes O direito assim se constroacutei

atraveacutes de um conjunto de normas e decisotildees que fornecem elementos para entendermos

com que tipos de danos temos razatildeo para nos indignar ou para ter raiva ou que tipos de

sofrimento nos habilitam a buscar prestaccedilatildeo jurisdicional Portanto existe uma eacutetica

emotiva que informa a elaboraccedilatildeo das leis instrumentaliza-se processualmente e muitas

vezes ingressa no discurso juriacutedico Em outras palavras o direito eacute um sistema de

normas fundado em emoccedilotildees

Isso estaacute intrinsicamente conectado com a anaacutelise das decisotildees que apresentamos

no toacutepico anterior e que agora passamos a discutir

Por exemplo no ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo natildeo faria o menor sentido utilizar a

estrutura cognitiva do medo (argumentos de consequecircncia negativa) caso a existecircncia

de determinados perigos natildeo tivesse a possibilidade de realmente provocar seacuterios

danos a sujeitos e bens juridicamente tutelados pela CF isto eacute a sauacutede da populaccedilatildeo e o

equiliacutebrio do meio-ambiente

Desse modo o uso de argumentos de medo se fez necessaacuterio porque estava em

discussatildeo a presenccedila de riscos juridicamente relevantes que precisavam ser

evidenciados e ponderados Na audiecircncia puacuteblica realizada em 9 de junho de 2008

diversos especialistas manifestaram posicionamentos a favor e contra a importaccedilatildeo dos

pneus usados e remoldados de sorte que para uma boa soluccedilatildeo da questatildeo a

visualizaccedilatildeo de perigos relacionados agrave referida importaccedilatildeo era fundamental

Conveacutem destacar que na decisatildeo o uso de argumentos de medo estava

embasado em material teacutecnico elaborado por especialistas Ademais os referidos

argumentos estavam integrados dentro de uma argumentaccedilatildeo juriacutedica porque os

ministros desenvolveram a ideia de que aqueles perigos contrariavam dispositivos

constitucionais relacionados ao tema tais como o direito ao meio-ambiente

ecologicamente equilibrado o princiacutepio da precauccedilatildeo e o direito agrave sauacutede Por exemplo

em relaccedilatildeo ao art 225 da CF destaca-se o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado o que impotildee ao poder puacuteblico o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as

128

presentes e futuras geraccedilotildees O princiacutepio da precauccedilatildeo exige a necessidade de prevenir-

se contra riscos de danos previsiacuteveis quanto ao art 196 da CF enfatiza-se o dever de

atuaccedilatildeo do poder puacuteblico em face de riscos agrave sauacutede da populaccedilatildeo

Assim tal argumentaccedilatildeo demonstra a atualidade da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica de que

o medo pode ser beneacutefico para a deliberaccedilatildeo de determinados assuntos que envolvam

perigos Walton tambeacutem evidencia este aspecto ao dizer que argumentos que apelem ao

medo satildeo legiacutetimos e racionais quando a decisatildeo envolva a necessidade de ponderar as

consequecircncias de determinadas escolhas ou mais especificamente quando existe um

dilema entre manter um benefiacutecio atual ou visualizar aspectos de seguranccedila a longo-

prazo ldquoestes argumentos frequentemente envolvem uma escolha entre a seguranccedila a

longo-prazo e a gratificaccedilatildeo imediatardquo289

No presente caso pode-se dizer que estava em

discussatildeo a seguranccedila a longo prazo da populaccedilatildeo e do meio-ambiente em face da

manutenccedilatildeo dos interesses econocircmicos de certas empresas290

De outra parte analisando o ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958

1962 e 1970rdquo entendemos que os argumentos emotivos foram mal utilizados pelos

motivos a seguir desenvolvidos

Em primeiro lugar antes de prosseguir eacute preciso registrar que homenagens

puacuteblicas (sem premiaccedilatildeo em dinheiro) a cidadatildeos brasileiros que alcanccedilaram relevante

ecircxito em suas aacutereas de atuaccedilatildeo profissional (artiacutestica cultural cientiacutefica esportiva etc)

e divulgaram positivamente o nome do Paiacutes satildeo comuns e fazem parte da conduta da

Administraccedilatildeo Puacuteblica Todavia na referida ADI natildeo estava em discussatildeo uma mera

homenagem mas a constitucionalidade de dispositivos da Lei nordm 12663 de 2012 que

destinavam a especiacuteficos ex-jogadores a tiacutetulo de premiaccedilatildeo um relevante montante de

dinheiro puacuteblico no valor total de R$ 52 milhotildees de reais aleacutem de um auxiacutelio especial

Assim considerando a singularidade da homenagem seria necessaacuterio demonstrar que o

uso do dinheiro puacuteblico no caso buscava atingir algum propoacutesito constitucional

bastante relevante

289

ldquoThese arguments frequently involve a choice between long-term safety and immediate gratificationrdquo

(trad livre) WALTON D Op cit 2000 p 23 290

Sunstein em obra especiacutefica explora a relaccedilatildeo entre o medo e o princiacutepio da precauccedilatildeo Em contextos

altamente emotivos o autor argumenta que ocorre o fenocircmeno da negligecircncia probabiliacutestica isto eacute as

pessoas tendem a ignorar a real probabilidade de acontecimento dos riscos imaginados tomando assim

decisotildees irracionais Cf SUNSTEIN Cass R Laws of fear beyond the precautionary principle New

York Cambridge University Press 2005

129

Todavia da leitura dos votos dos ministros observa-se que o uso de argumentos

emotivos suplantou qualquer tentativa de desenvolvimento argumentativo a respeito dos

motivos constitucionais que fundamentariam tal premiaccedilatildeo

Apenas o relator o ministro Lewandowski conseguiu desenvolver um pouco

alguns suportes constitucionais para a decisatildeo mas ainda assim de maneira

problemaacutetica

No primeiro suporte cita-se o art 217 da CF cujo caput diz que eacute dever do

Estado fomentar praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais a autorizaccedilatildeo para a

referida homenagem estaria no inciso IV deste dispositivo o qual diz que devem ser

observados ldquoa proteccedilatildeo e o incentivo agraves manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacionalrdquo

Todavia a expressatildeo ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo que parece indicar a necessidade de proteccedilatildeo

de manifestaccedilotildees desportivas criadasoriginadas no Brasil eacute entendida em outro sentido

Assim ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo eacute compreendida no sentido de ldquoincorporada aos costumes

nacionaisrdquo

Desse modo o ministro Lewadowski chega agrave conclusatildeo de que o futebol como

esporte incorporado ao costume nacional ldquodeve ser protegido e incentivado por

expressa imposiccedilatildeo constitucional mediante qualquer meio que a Administraccedilatildeo

Puacuteblica considerar apropriadordquo Em outras palavras a Administraccedilatildeo Puacuteblica natildeo

estaria sujeita a limites quando no intuito de fomentar determinada praacutetica desportiva

a protege e incentiva com dinheiro puacuteblico inclusive atraveacutes de homenagens a pessoas

especiacuteficas Parece que tal conclusatildeo natildeo estaacute condizente com a ideia de limites

juriacutedicos presente num Estado Democraacutetico de Direito

O segundo suporte seria uma combinaccedilatildeo do art 215 sect1ordm com o art 216 da CF

Aquele primeiro dispositivo reza que ldquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas

populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo

civilizatoacuterio nacionalrdquo Assim o sect 1ordm do art 215 preocupa-se com as manifestaccedilotildees das

culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do

processo civilizatoacuterio nacional porque compreende que a vulnerabilidade de culturas

pertencentes a grupos minoritaacuterios necessita de proteccedilatildeo estatal diferenciada para natildeo

desaparecerem

Todavia o ministro Lewandowski realiza uma ablaccedilatildeo no referido dispositivo

ao retirar a parte que fala de ldquo[] indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos

participantes do processo civilizatoacuterio nacionalrdquo Na sua decisatildeo aparece apenas um

pedaccedilo do dispositivo senatildeo vejamos ldquovale lembrar ainda nesse diapasatildeo que o art

130

215 sect 1ordm da Carta Magna dispotildee que lsquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas

popularesrsquordquo

O art 216 por sua vez declara que o patrimocircnio cultural brasileiro eacute

constituiacutedo por bens de natureza material e imaterial ldquo[] tomados individualmente ou

em conjunto portadores de referecircncia agrave identidade agrave accedilatildeo agrave memoacuteria dos diferentes

grupos formadores da sociedade brasileirardquo Assim o ministro Lewandowski chega agrave

conclusatildeo de que o futebol eacute um bem de natureza imaterial e faz referecircncia aos incisos I

e II deste artigo quais sejam ldquoformas de expressatildeordquo e ldquoos modos de criar fazer e

viverrdquo

Poreacutem no direito brasileiro eacute preciso ressaltar que para ganhar tal alcunha os

bens culturais de natureza imaterial por expressa determinaccedilatildeo do art 216 sect 1ordm da CF

estatildeo sujeitos a processo de registro e de reconhecimento especiacutefico pelo Instituto de

Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional - IPHAN regulamentado pelo Decreto nordm

3551 de 4 de agosto de 2000291

Assim ateacute hoje foram registrados pelo IPHAN os seguintes bens culturais de

natureza imaterial ofiacutecio das paneleiras de goiabeiras kusiwa (linguagem e arte graacutefica

Wajatildepi) ciacuterio de Nossa Senhora de Nazareacute samba de roda do recocircncavo baiano modo

de fazer viola-de-cocho ofiacutecio das baianas de acarajeacute jongo no Sudeste modo artesanal

de fazer queijo de Minas samba do Rio de Janeiro frevo cachoeira de Iauaretecirc (lugar

sagrado dos povos indiacutegenas dos Rios Uaupeacutes e Papuri) feira de Caruaru e roda de

capoeira toque dos sinos em Minas Gerais ofiacutecio de Sineiro festa do Divino Espiacuterito

Santo de Pirenoacutepolis Rtixogravekograve (expressatildeo artiacutestica e cosmoloacutegica do Povo Karajaacute)

etc292

A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura ndash

UNESCO apenas reconhece como patrimocircnio cultural imaterial da humanidade os

seguintes elementos do Brasil roda de capoeira frevo yaokwa (ritual do povo

enawene) expressotildees orais e graacuteficas dos wajapis e samba de roda do recocircncavo

baiano293

291

Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimocircnio cultural

brasileiro cria o Programa Nacional do Patrimocircnio Imaterial e daacute outras providecircncias 292

Cf em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid=12456ampretorno=paginaIphan

Acesso em 19 de marccedilo de 2015 293

Cf em httpwwwunescoorgnewptbrasiliacultureworld-heritageintangible-cultural-heritage-list-

brazilc1414250 Acesso em 19 de marccedilo de 2015

131

De toda sorte todos os dispositivos acima citados pelo ministro satildeo brevemente

desenvolvidos na argumentaccedilatildeo e mesmo assim natildeo parecem conceder uma

autorizaccedilatildeo para a dita homenagem com o uso de dinheiro puacuteblico

A partir de entatildeo apenas surgem argumentos emotivos que procuram dar razotildees

para se ter orgulho e compaixatildeo pelos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e

1970 Todavia a questatildeo eacute que tais argumentos desconectam-se dos seus motivos

juriacutedicos afastam-se da questatildeo central em discussatildeo que era a verificaccedilatildeo do

atingimento de propoacutesitos constitucionais e adquirem um peso desproporcional na

argumentaccedilatildeo passando a ser irrelevantes

Conveacutem destacar que a argumentaccedilatildeo realizada pelo ministro Luiz Fux chega a

apresentar as caracteriacutesticas do que seria uma patologia do orgulho Segundo Lazarus o

orgulho pode demonstrar uma faceta doentia quando proveniente de uma identidade

extremante fraacutegil e em duacutevida sobre o seu proacuteprio valor294

Desse modo ao dizer que as

conquistas dos referidos jogadores fizeram com que abandonaacutessemos ldquoo complexo de

que noacutes soacute seriacuteamos uma paacutetria que calccedila chuteirasrdquo o ministro fornece um fundamento

patoloacutegico para a concessatildeo da premiaccedilatildeo Ademais dizer que as vitoacuterias da seleccedilatildeo

proporcionaram bastante alegria agrave populaccedilatildeo e que tal premiaccedilatildeo seria uma diacutevida de

gratidatildeo do povo brasileiro eacute irrelevante para a soluccedilatildeo juriacutedica do caso

O ministro Toffoli por sua vez destaca sem especificar fontes bibliograacuteficas

que a descoberta das empresas suecas pelo Brasil ocorreu em virtude da vitoacuteria de 1958

e seria um bom motivo para se orgulhar da seleccedilatildeo Tal argumento como tantos outros

foge da questatildeo central em julgamento e eacute igualmente irrelevante

De outra parte o uso da compaixatildeo que formatou a concessatildeo legislativa do

chamado auxiacutelio especial e ingressou nos argumentos juriacutedicos tambeacutem se mostra

problemaacutetico

Primeiramente eacute preciso dizer que a compaixatildeo eacute uma emoccedilatildeo de importante

cultivo na vida puacuteblica pois seria impossiacutevel conviver numa sociedade cujos membros

natildeo tivessem a capacidade de reconhecer a seriedade do sofrimento vivido pelos demais

e de lhes auxiliar Assim Nussbaum destaca que tal emoccedilatildeo quando bem utilizada

pode desempenhar relevante funccedilatildeo no direito ldquoela pode fornecer bases cruciais para

programas de assistecircncia social para a ajuda externa e outros esforccedilos para a justiccedila

294

LAZARUS R Op cit 1991 p 273

132

global e para muitas formas de mudanccedila social que abordam a opressatildeo e a

desigualdade de grupos vulneraacuteveisrdquo295

Todavia ela tambeacutem pode ser mal utilizada pelo Estado principalmente em

relaccedilatildeo a uma etapa da estrutura cognitiva da compaixatildeo que diz respeito ao julgamento

eudemonista isto eacute uma fase avaliativa em que aferimos a extensatildeo de pessoas que eacute

objeto de tal emoccedilatildeo296

Eacute caracteriacutestico do ser humano que ele tenha preocupaccedilatildeo

primeiramente por ele proacuteprio e depois por aqueles que lhes satildeo proacuteximos tendendo a

ser indiferente consequentemente com aqueles que estatildeo afastados de seu estreito

ciacuterculo de empatia Tal estrutura de pensamento estaacute presente na descriccedilatildeo da

compaixatildeo realizada por Aristoacuteteles em sua Retoacuterica

Um dos possiacuteveis erros nessa etapa alerta Nussbaum consiste em incluir uma

quantidade muito restrita de pessoas em tal ciacuterculo Ou seja geralmente ocorre que o

conjunto de indiviacuteduos digno de tal sentimento eacute aquele culturalmente proacuteximo ou

simpaacutetico de uma sociedade excluindo-se estranhos e pessoas que estatildeo distantes297

No

que tange agrave criaccedilatildeo de tais ciacuterculos a miacutedia possui um tremendo poder pois atraveacutes da

escolha de imagens e de narrativas e inclusive por pressotildees mercadoloacutegicas tem a

capacidade de produzir empatia e influenciar julgamentos eudemonistas298

Poreacutem o Estado quando se baliza pela compaixatildeo para direcionamento de

recursos puacuteblicos precisa estar atento a isso e realizar uma avaliaccedilatildeo autocriacutetica nessa

etapa de julgamento Estendendo tal raciociacutenio ao presente caso pode-se dizer que no

Brasil o exerciacutecio de compaixatildeo por jogadores campeotildees de futebol padece de um viacutecio

de circularidade cultural por parte do Estado

Assim utilizar argumentos de que determinados atletas mereceriam um auxiacutelio

financeiro porque na eacutepoca de suas atividades profissionais esportivas natildeo se retirava

proveito econocircmico como hoje em dia ou porque a presente situaccedilatildeo financeira de tais

ex-campeotildees colocaria em ldquoxeque o profundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves

seleccedilotildees brasileiras que disputaram a Copa do Mundo de 1958 1962 e 1970rdquo afronta a

isonomia em prejuiacutezo de atletas de outras modalidades excluiacutedas do ciacuterculo cultural da

295

ldquoIt can provide crucial underpinnings for social welfare programs for foreign aid and other efforts

toward global justice and for many forms of social change that address the oppression and inequality of

vulnerable groupsrdquo (trad livre) NUSSBAUM M Op cit p 55 296

Id ibid p 51 297

Id ibid p 346 298

NUSSBAUM Martha Upheavals of thought the intelligence of emotions Cambridge Cambridge

University Press 2001 p 434

133

simpatia social que tambeacutem alcanccedilaram feitos notaacuteveis para o Paiacutes e que atualmente

passam por iguais problemas financeiros

Acrescente-se que a isonomia eacute um instrumento juriacutedico de manutenccedilatildeo da

estabilidade emocional numa sociedade cujo direito valorize a igualdade Desse modo a

desequiparaccedilatildeo arbitraacuteria juridicamente desmotivada ou fraca deve ser evitada porque

deflagra reaccedilotildees juridicamente relevantes de raiva e de indignaccedilatildeo em face do Estado-

legislador

Por uacuteltimo no ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo tem-se um julgamento distinto dos

demais porque os argumentos emotivos ainda que salientes estavam diluiacutedos entre

uma seacuterie de outros argumentos acerca de questotildees penais de dignidade da pessoa

humana de laicidade estatal de autonomia do indiviacuteduo de definiccedilatildeo sobre o iniacutecio da

vida etc

Poreacutem conforme vimos os votos vencedores estavam em sintonia

argumentativa em pelo menos um aspecto qual seja o reconhecimento do sofrimento

da gestante que foi comparado muitas vezes a uma tortura a um martiacuterio revelando a

estrutura cognitiva da compaixatildeo Ademais vaacuterias emoccedilotildees negativas foram

expressamente atribuiacutedas agrave figura da matildee medo vergonha anguacutestia raiva tristeza

Ressalte-se que tal constataccedilatildeo tinha fundamento no depoimento de mulheres que

portaram fetos anenceacutefalos na opiniatildeo de meacutedicos (ginecologistas psiquiatras)

antropoacutelogos e demais especialistas ouvidos na audiecircncia puacuteblica

Acreditamos que tais argumentos eram juridicamente relevantes pelos seguintes

aspectos Primeiramente a demanda considerando o objeto da accedilatildeo soacute faria sentido

diante da seriedade do sofrimento experimentado pela gestante E isso estava

estreitamente conectado a questotildees juriacutedicas respeitantes agrave dignidade da pessoa humana

agrave liberdade e agrave autonomia da vontade ao direito agrave sauacutede que engloba a sauacutede fiacutesica e

psiacutequica

Obviamente a gravidade do sofrimento da gestante era apenas uma entre outras

questotildees que precisavam ser argumentadas e por isso haveria um erro de peso caso os

votos apenas se sustentassem nesse ponto o que natildeo aconteceu No entanto pode-se

dizer que a estrutura argumentativa do julgado estava fundada numa emoccedilatildeo especiacutefica

que era a compaixatildeo e que isso diante das caracteriacutesticas do problema e das normas

juriacutedicas invocadas tinha uma relevacircncia juriacutedica para o deslinde da controveacutersia

Tendo realizado essas observaccedilotildees em relaccedilatildeo aos trecircs julgados do STF

analisados no toacutepico anterior verifica-se que o estudo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo

134

juriacutedica e mais amplamente no direito se justifica pois a partir desta perspectiva eacute

possiacutevel compreender por que alguns julgamentos e ateacute por que algumas leis tomam

determinada formataccedilatildeo sendo admissiacutevel inclusive criticar o uso das emoccedilotildees no

discurso juriacutedico

No entanto para o fechamento deste toacutepico ainda resta discutir mais uma

problemaacutetica que se relaciona agrave eacutetica da utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e suas

implicaccedilotildees para um discurso juriacutedico que tenha a pretensatildeo de neutralidade e de

tecnicidade na soluccedilatildeo de problemas Assim a introduccedilatildeo de elementos emotivos numa

decisatildeo poderia representar uma ameaccedila agrave necessaacuteria imparcialidade exigida da figura

racional do juiz

Em parte pensamos jaacute ter respondido tal duacutevida tanto na exposiccedilatildeo que fizemos

da psicologia cognitiva quanto na anaacutelise das decisotildees judiciais do STF Para a Teoria

da Avaliaccedilatildeo natildeo haveria como falar de racionalidade dissociada das emoccedilotildees sendo

que muitas das boas decisotildees de nossa vida praacutetica estatildeo amparadas em suportes

emotivos

De outra parte vimos que em determinadas decisotildees judiciais seria ateacute

irracional decidir e fundamentar sem recorrer agraves emoccedilotildees como por exemplo no ldquocaso

dos pneumaacuteticosrdquo em que o medo se fez presente atraveacutes da visualizaccedilatildeo das

consequecircncias negativas (perigos) o que era extremamente adequado para a soluccedilatildeo do

problema

Ademais adicionamos que os argumentos emotivos precisam ser juridicamente

relevantes para o caso considerando tanto o conjunto de normas juriacutedicas invocado

quanto a especiacutefica problemaacutetica factual a ser enfrentada Por fim o peso de tais

argumentos precisa guardar uma relaccedilatildeo de proporccedilatildeo com outras questotildees que tambeacutem

precisem ser enfrentadas

Todavia aqui intencionamos tratar de algo diferente e expor um fictiacutecio modelo

humano que pudesse servir de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no julgamento porque

sabemos que elas tanto podem ser bem utilizadas quanto mal utilizadas

Em primeiro lugar o saacutebio estoico natildeo seria um bom paracircmetro de reflexatildeo

porque uma vez que se livrou das emoccedilotildees do homem comum e apenas possui uma

ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees (eupatheia) ele tem uma sistemaacutetica de valores que natildeo

coincide com a nossa e a do nosso ordenamento juriacutedico e provavelmente caso tivesse

que julgar o homem inferior teria uma difiacutecil compreensatildeo dos seus problemas juriacutedico-

mundanos

135

Vimos que Aristoacuteteles confere bastante importacircncia agraves emoccedilotildees em sua teoria

eacutetica e na retoacuterica aleacutem de possuir uma visatildeo sobre o tema que ainda permanece

bastante atual Ademais o homem aristoteacutelico tem a virtude completa porque nele a

parte racional e a parte natildeo-racional da alma desempenham bem a sua funccedilatildeo e atingem

os melhores padrotildees demonstrando corretamente que natildeo existe racionalidade sem

disposiccedilatildeo emocional Todavia vimos que Aristoacuteteles natildeo recepciona na retoacuterica a

classificaccedilatildeo emocional da Eacutetica a Nicocircmaco Aleacutem disso para o Estagirita a virtude

moral eacute conquistada pelo haacutebito o que embora concordemos em parte se distancia dos

propoacutesitos mais intelectuais aqui objetivados

Assim entendemos que um bom ponto de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no

direito e especificamente na decisatildeo juriacutedica seria o modelo do espectador imparcial de

Adam Smith

Na sua Teoria dos Sentimentos Morais Smith procura explanar a estrutura do

julgamento da vida moral na sociedade isto eacute o meio pelo qual aprovamos ou

reprovamos condutas de indiviacuteduos incluindo noacutes mesmos considerando a adequaccedilatildeo

da accedilatildeo de um determinado agente num determinado contexto Primeiramente julgamos

a correccedilatildeo das accedilotildees como espectadores diretos mas em busca de uma melhor

avaliaccedilatildeo tentamos recorrer a outros tipos de espectadores ateacute chegarmos agravequele que

seria o melhor tipo de julgador ou seja o espectador imparcial299

O ato de julgar eacute o desafio de conectar um conjunto de eventos marcados pela

fortuna e por isso pelas suas singularidades a um mundo que necessita ser regido por

padrotildees normativos em comum vale dizer ldquo[] um mundo de mentes que soacute pode ser

um mundo comum quando a imaginaccedilatildeo criativa estabelece normas comuns para a

forma de avaliar os motivos para a accedilatildeo ou seja o que deve ser considerado um motivo

adequado para a accedilatildeordquo300

A fim de realizar devidamente tais julgamentos o espectador precisa estar

munido de dois indispensaacuteveis instrumentos morais quais sejam a simpatia e a

imaginaccedilatildeo Por meio da imaginaccedilatildeo conseguimos superar a descontiguidade fiacutesica

que nos separa necessariamente dos outros homens e o hiato temporal que via de

regra nos aparta da situaccedilatildeo experimentada pelos outros permitindo-nos posicionar

299

SMITH Adam The theory of moral sentiments Cambridge Cambridge University Press 2002 p

XVI 300

ldquo[hellip] world of minds which can only be a common world when the creative imagination sets up

common standards for how to assess motives for action that is for what counts as a proper motive for

actionrdquo (trad livre) Introduccedilatildeo in Id ibid p XVII

136

num mundo de eventos que pessoalmente nunca vivenciamos mas que somos capazes

de reconstruir mentalmente e de alguma forma senti-lo

Como natildeo temos experiecircncia imediata do que os outros homens

sentem natildeo podemos formar uma ideia da forma como eles satildeo

afetados senatildeo concebendo o que noacutes sentiriacuteamos na situaccedilatildeo

semelhante

[]

Pela imaginaccedilatildeo nos colocamos em sua situaccedilatildeo concebemo-nos

suportando todos os mesmos tormentos entramos por assim dizer em

seu corpo e nos convertemos em alguma medida a mesma pessoa que

ele e daiacute formamos uma ideia de suas sensaccedilotildees podendo sentir algo

que embora em menor grau natildeo eacute totalmente contraacuterio ao deles301

Assim eacute atraveacutes da imaginaccedilatildeo baseada em evidecircncias em relaccedilatildeo ao evento

julgado que o espectador consegue compreender os motivos e as emoccedilotildees que

informaram a atitude do agente E a sua simpatia se funda nesta imaginaccedilatildeo pois apenas

ela permite ldquo[] levar para si mesmo cada pequena circunstacircncia de sofrimento que

pode eventualmente ocorrer a quem sofrerdquo302

Assim ao se imaginar na posiccedilatildeo do

agente o espectador iraacute avaliar se agiria da mesma forma simpatizando com os

sentimentos do agente e com a sua conduta

Poreacutem a despeito de o espectador imparcial possuir essa viacutevida qualidade de

imaginar a situaccedilatildeo alheia e por isso ter uma racionalidade composta por emoccedilotildees a

sua especial condiccedilatildeo lhe possibilita estar apartado da violecircncia dos sentimentos

alheios permitindo-lhe produzir julgamentos morais imparciais Assim anota Forman-

Barzilai ldquomas eacute fundamental notar que o modelo de simpatia eacute eficaz para Smith para

produzir juiacutezos morais imparciais porque o espectador eacute ao mesmo tempo envolvido e

desapegadordquo303

Assim o espectador imparcial que eacute a terceira pessoa ideal imaginaacuteria

consegue temperar as emoccedilotildees porque estaacute localizado num lugar que nem eacute

exatamente o nosso proacuteprio com as nossas eternas inclinaccedilotildees e preferecircncias pessoais

301

ldquoAs we have no immediate experience of what other men feel we can form no idea of the manner in

which they are affected but by conceiving what we ourselves should feel in the like situation [hellip] By the

imagination we place ourselves in his situation we conceive ourselves enduring all the same torments we

enter as it were into his body and become in some measure the same person with him and thence form

some idea of his sensations and even feel something which though weaker in degree is not altogether

unlike themrdquo (trad livre) Id ibid p 11-12 302

ldquo[hellip] to bring home to himself every little circumstance of distress which can possibly occur to the

suffererrdquo (trad livre) Id ibid p 26 303

ldquoBut it is key to note that the sympathy model is effective for Smith for producing impartial moral

judgments because the spectator is at once both involved and detachedrdquo FORMAN-BARZILAI Fonna

Adam Smith and the circles of sympathy cosmopolitanism and moral theory Cambridge Cambridge

University Press 2009 p 67

137

nem o da pessoa observada Conforme adverte Nussbaum a emoccedilatildeo precisa ser a

emoccedilatildeo de um espectador ldquoisso tambeacutem significa que noacutes temos que omitir essa parte

da emoccedilatildeo que deriva de um interesse pessoal em nossas proacuteprias metas e projetosrdquo304

Um tal modelo de espectador imparcial implica o desenvolvimento da

capacidade de autocriacutetica e de criacutetica porque lembra Pitts o nosso julgamento do que eacute

louvaacutevel eacute inserido sempre num determinado contexto social e eacute necessaacuterio aprender a

questionaacute-lo em seus preconceitos e nas suas parcialidades Assim ldquonoacutes desenvolvemos

uma concepccedilatildeo do que seria o julgamento de um espectador imparcial observando as

nossas proacuteprias opiniotildees e as de observadores reais ndash membros da nossa proacutepria

sociedade ndash e destes destilando um julgamento desapaixonado e imparcialrdquo305

Smith portanto estava preocupado com a manutenccedilatildeo da ordem social uma vez

que para ele a ausecircncia de determinados preceitos de justiccedila tem forte efeito

desintegrador sobre a sociedade306

Na preservaccedilatildeo dessa ordem confrontar as

inclinaccedilotildees emotivas eacute essencial e isso deve ser realizado numa dupla esfera

individualmente atraveacutes do escrutiacutenio das preferecircncias particularistas e coletivamente

por meio do exame das preferecircncias parciais de facccedilotildees civis e eclesiais que podem se

tornar extremamente fanaacuteticas307

Com efeito tendo visto o que seria o modelo de espectador imparcial de Smith

percebe-se que ele representa um bom ponto de reflexatildeo para pensar a eacutetica da

utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Primeiramente as emoccedilotildees natildeo podem ser aquelas resultantes dos proacuteprios

projetos e inclinaccedilotildees particulares do julgador e nessa medida ele precisa ter a

304

ldquoit also means that we have to omit that portion of the emotion that derives from a personal interest in

our own goals and projectsrdquo (trad livre) NUSSBAUM Martha Emotion in the language of judging

In St Johns Law Review vol 70 issue 1 1996 23-30 p 28 305

ldquoWe develop a conception of what the impartial spectatorrsquos judgments would be by observing our own

opinions and those of actual observers and from these distilling a dispassionate and unbiased judgmentrdquo

(trad livre) PITTS Jennifer A turn to empire the rise of imperial liberalism in Britain and France

PrincetonOxford Princeton University Press 2005 p 44 Neil Maccormick busca conciliar o

pensamento de Smith com o de Kant ao formular o seguinte imperativo categoacuterico smithiano ldquoEntre tatildeo

plenamente quanto possiacutevel nos sentimentos de todas as pessoas diretamente envolvidas ou afetadas por

um incidente ou por um relacionamento e imparcialmente forme uma maacutexima de julgamento sobre o que

eacute certo que todos pudessem aceitar se estivessem comprometidos com a manutenccedilatildeo de crenccedilas muacutetuas

estabelecendo um padratildeo comum de aprovaccedilatildeo entre sirdquo MACCORMICK Neil Practical reason in law

and morality OxfordNew York Oxford University Press 2008 p 64 Para uma anaacutelise da

argumentaccedilatildeo do STF e do STJ com base nos paracircmetros fornecidos por Maccormick cf ROESLER

Claudia LAGE Leonardo A argumentaccedilatildeo do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes

inimputaacuteveis e semi-imputaacuteveis In Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Ano 21 Vol 104 Out-

set 2013 pp 347-390 306

SMITH A Op cit p 101 307

FORMAN-BARZILAI F Op cit p 152

138

capacidade de filtrar as suas propensotildees pessoais e tambeacutem criticar as do grupo em que

esteja socialmente inserido e as de outros grupos sociais dominantes a fim de que as

emoccedilotildees alcanccediladas sejam a de um espectador imparcial Poreacutem a despeito disso sabe-

se que ele natildeo eacute um observador apaacutetico de modo que as emoccedilotildees quando juridicamente

relevantes e pertinentes ao conjunto normativo discutido podem ser argumentadas

desde que devidamente fundamentadas em evidecircncias Por fim eacute preciso acrescentar

que o julgador por meio de suas decisotildees eacute responsaacutevel por preservar um ambiente de

normatividade comum na sociedade

A manutenccedilatildeo da confianccedila social na figura do juiz reside na sua capacidade de

se colocar adequadamente nesse papel de espectador imparcial possibilitando a

conservaccedilatildeo do ideal da lei como limites

139

4 CONCLUSAtildeO

No Capiacutetulo I iniciamos este trabalho investigando a importacircncia conferida agraves

emoccedilotildees na Antiguidade precisamente na retoacuterica e na eacutetica da filosofia de Aristoacuteteles e

da escola estoica

Primeiramente contextualizamos o tema e observamos que as emoccedilotildees ganham

oportunidade para tematizaccedilatildeo apenas dentro de uma sociedade em que a cultura do

debate eacute valorizada A retoacuterica surge num ambiente em que a fala articulada se mostra

extremamente necessaacuteria para a soluccedilatildeo de problemas na vida comum nascendo a partir

daiacute a sua teorizaccedilatildeo e tambeacutem a sua criacutetica atraveacutes de Platatildeo que cunha o termo

ldquorhecirctorikecircrdquo Ademais a proacutepria literatura representada na sua maior qualidade pela

obra de Homero impulsiona e antecipa o desenvolvimento teoacuterico da retoacuterica

Por sua vez ao analisar a retoacuterica aristoteacutelica destacamos um ponto pouco

explorado do autor que diz respeito agrave sua mudanccedila de posicionamento acerca das

emoccedilotildees Se no Capiacutetulo I do Livro I da Retoacuterica observamos uma contundente criacutetica

ao uso das emoccedilotildees no discurso a partir do Capiacutetulo II as emoccedilotildees jaacute satildeo consideradas

um dos meios de convencimento e apoacutes dedica-se praticamente a metade do Livro II

para descrever com um grande grau de detalhes as emoccedilotildees em espeacutecie

Vimos tambeacutem que Aristoacuteteles foi influenciado pela evoluccedilatildeo do pensamento

platocircnico e incorpora em sua obra a ideia de sentimentos mistos pois para o

mencionado filoacutesofo as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer e de dor Ademais a fim

de explanar como ocorre o mecanismo de surgimento das emoccedilotildees o Estagirita recorre

agrave ideia de phantasia um termo teacutecnico emprestado de sua psicologia Uma curiosidade

identificada foi o fato de que o tema das emoccedilotildees que a rigor eacute um assunto proacuteprio da

psicologia natildeo eacute desenvolvido na obra aristoteacutelica supostamente adequada para tanto

que seria a ldquoDe Animardquo (Sobre a alma) evidenciando o quanto na sabedoria da eacutepoca

a retoacuterica jaacute estava vinculada a questotildees psicoloacutegicas

De outra parte nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles tambeacutem

confere bastante relevacircncia agraves emoccedilotildees O homem virtuoso aristoteacutelico possui a virtude

completa que eacute alcanccedilada pelo bom funcionamento da parte racional e da parte natildeo-

racional da alma A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que eacute atingida por meio

do haacutebito e ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que significa ser devidamente afetado

pelas emoccedilotildees eacute determinante para aquisiccedilatildeo de uma vida feliz Exploramos as

implicaccedilotildees morais desse modelo eacutetico ao dizer que uma falha na decisatildeo do curso da

140

accedilatildeo moral estaacute tambeacutem relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional do indiviacuteduo Aleacutem disso

constatamos que Aristoacuteteles realiza uma classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e

inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas sendo que estas

uacuteltimas natildeo devem ser sentidas em nenhuma circunstacircncia Por uacuteltimo ao compararmos

a classificaccedilatildeo emocional desenvolvida na Eacutetica a Nicocircmaco com o tratamento teoacuterico

da Retoacuterica percebemos que o orador eacute instruiacutedo a utilizar todas as emoccedilotildees no

discurso inclusive aquelas denominadas de perversas motivo pelo qual se pode dizer

que a retoacuterica foi erigida num domiacutenio proacuteprio

De seu turno os estoicos desenvolveram uma peculiar sistemaacutetica de

pensamento em que a uacutenica coisa considerada boa eacute a virtude que se confunde com a

felicidade e a uacutenica coisa ruim eacute o viacutecio que significa a infelicidade todo o resto

(reputaccedilatildeo riqueza sauacutede bom nascimento beleza etc) eacute considerado indiferente isto

eacute a sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a felicidade Ademais para os fundadores da escola

estoica a alma humana eacute monoliticamente constituiacuteda apenas pela razatildeo sem

possibilidade de haver conflito entre as partes Nessa ordem de ideias as emoccedilotildees que

satildeo entendidas como avaliaccedilotildees por Crisipo devem ser eliminadas da vida comum uma

vez que por meio delas estamos sempre valorando indevidamente a realidade Em seu

caminho para a aquisiccedilatildeo da autossuficiecircncia e para a compreensatildeo correta do mundo o

homem virtuoso estoico que eacute representado pela figura do saacutebio se livrou das emoccedilotildees

do ser humano inferior e adquiriu uma ldquoversatildeo corrigidardquo denominada eupatheia

A retoacuterica estoica por sua vez recebeu uma grande influecircncia da sua eacutetica e por

isso natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero nos traz um relato histoacuterico de oradores estoicos

romanos como figuras que embora haacutebeis na dialeacutetica e no uso de argumentos precisos

possuiacuteam um estilo seco severo apaacutetico e conciso A ineficaacutecia desse modelo de

discurso eacute relatada no julgamento de Rutilius Rufus que ao se defender no estilo estoico

de uma injusta acusaccedilatildeo foi condenado e exilado

Da exposiccedilatildeo da filosofia aristoteacutelica e estoica acerca das emoccedilotildees concluiacutemos

que o tema era extremamente relevante para as referidas escolas de pensamento e que

ambas natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar das emoccedilotildees Aristoacuteteles antes

de explanar sobre os entimemas que eacute a parte do logos na Retoacuterica ou antes de falar

sobre a parte racional da alma na Eacutetica a Nicocircmaco preferiu discursar primeiramente

sobre as emoccedilotildees conferindo uma precedecircncia e um significado simboacutelico ao assunto

Por sua vez ainda que os estoicos em virtude de sua axiologia ilustrassem uma visatildeo

141

negativa sobre as emoccedilotildees eles realizaram um debate de alto niacutevel e extremamente

atual para a reflexatildeo do assunto

No Capiacutetulo II buscamos investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a MTA

que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de Toulmin

e de Perelman-Tyteca Ademais tambeacutem procuramos identificar criteacuterios de anaacutelise e

de avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso Igualmente examinamos o

desenvolvimento teoacuterico das emoccedilotildees para a psicologia cognitiva especialmente para a

Teoria da Avaliaccedilatildeo Ressalte-se que um dos objetivos fundamentais de tal capiacutetulo foi

tambeacutem tentar compreender como o tema das emoccedilotildees que era considerado tatildeo vital

para o discurso e para a eacutetica na Antiguidade foi recepcionado pela MTA

Em primeiro lugar vimos que o surgimento da MTA ocorreu num contexto

histoacuterico bem especiacutefico em que os movimentos totalitaacuterios ingressaram no poder e

dominaram a vida poliacutetica europeia e mundial O tipo de discurso utilizado por tais

movimentos era a propaganda que empregava um forte apelo emocional para mobilizar

as massas A MTA surge com o objetivo de se afastar desse tipo de discurso e de fundar

um modelo de argumentaccedilatildeo racional que viabilizasse a existecircncia da democracia

Nesse sentido tanto Toulmin quanto Perelman-Tyteca natildeo esboccedilaram nenhum interesse

em falar sobre as emoccedilotildees Assim eacute interessante perceber que justamente na chamada

ldquoNova Retoacutericardquo nada sobre as emoccedilotildees da retoacuterica aristoteacutelica foi recepcionado Em

relaccedilatildeo a Viehweg embora o autor demonstre a relaccedilatildeo entre a toacutepica a retoacuterica e o

direito tambeacutem natildeo vimos nenhum interesse em dissertar sobre as emoccedilotildees

A disciplina responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees na MTA foi a teoria das

falaacutecias ldquoadrdquo Dessa forma toda emoccedilatildeo da retoacuterica antiga se transformou num erro de

loacutegica para a argumentaccedilatildeo de modo que o discurso apaacutetico tal como propugnado pela

retoacuterica estoica passou a ser um modelo ideal de argumentaccedilatildeo fazendo com que

pathos retomasse o seu sentido de patoloacutegico Todavia criticamos tal proposta

argumentativa pela ausecircncia de complexidade e por ser incapaz de discutir em que

medida as emoccedilotildees poderiam desempenhar um bom papel na argumentaccedilatildeo

Em resposta ao tratamento dispensado agraves emoccedilotildees pela disciplina das falaacutecias

ldquoadrdquo vimos que Douglas Walton reage com forte criacutetica Uma teoria da argumentaccedilatildeo

que exclua de suas consideraccedilotildees argumentos emotivos se mostra inaacutebil em

compreender a forma como argumentamos na praacutetica Todavia o teoacuterico canadense

alerta que as emoccedilotildees tambeacutem podem ser mal utilizadas pois argumentos emotivos

podem ser irrelevantes numa discussatildeo e o impacto do seu apelo pode querer disfarccedilar a

142

fraqueza da argumentaccedilatildeo Assim a fim de avaliar tais apelos eacute preciso estar atento

para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo para o impacto e para o contexto em

que satildeo utilizados

Em seguida analisamos a abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees desenvolvida por

Micheli representante da escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo que destaca que o

problema do estudo das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade Desse

modo o linguista suiacuteccedilo sistematiza os resultados encontrados na linguiacutestica e oferece

trecircs categorias para a identificaccedilatildeo das emoccedilotildees na liacutengua as emoccedilotildees ditas as emoccedilotildees

demonstradas e as emoccedilotildees suportadas Outrossim verificamos que as emoccedilotildees podem

ser objeto de argumentaccedilatildeo e que manipulaccedilotildees racionais natildeo satildeo distintas de

manipulaccedilotildees emocionais

Por fim considerando que o tema das emoccedilotildees eacute desde a antiguidade

profundamente conectado com a psicologia procuramos dar um suporte psicoloacutegico ao

nosso trabalho com o saber teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo que coloca a ideia de

avaliaccedilatildeo como o centro da deflagraccedilatildeo do processo emotivo

Nesse ponto observou-se a grande atualidade da abordagem aristoteacutelica e

estoica sobre as emoccedilotildees pois ambas tinham uma compreensatildeo cognitiva do assunto

sendo que Crisipo expressamente se pronunciou no sentido de que as emoccedilotildees satildeo

avaliaccedilotildees Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo dependentes da razatildeo para o seu

surgimento e para o seu controle poreacutem neste processo natildeo haacute uma prevalecircncia da

razatildeo porque esta uacuteltima para se manter equilibrada precisa da emoccedilatildeo

Observamos que as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas

atendem a criteacuterios usuais de racionalidade (instrumental inferencial e consensual) Ao

fim concluiacutemos que a construccedilatildeo de uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa tambeacutem

acessar um saber psicoloacutegico sob pena de ser um artefato teoacuterico artificial sobre como

os seres humanos decidem e argumentam

O Capiacutetulo III foi dividido em trecircs partes a primeira se destinou a evidenciar a

importacircncia das emoccedilotildees para o direito a segunda buscou aplicar os criteacuterios de anaacutelise

descritiva do discurso emotivo identificados no Capiacutetulo II a terceira procurou fazer

consideraccedilotildees criacuteticas ao uso das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Na primeira parte concluiacutemos que eacute impossiacutevel compreender a estruturaccedilatildeo do

direito sem estudar as emoccedilotildees pois estas satildeo causas para a elaboraccedilatildeo de leis para

ingressar com uma demanda em juiacutezo e para solucionar uma controveacutersia juriacutedica A

apatheia estoica eacute um modelo inadequado para explicar o direito porque o nosso

143

ordenamento juriacutedico valoriza e protege aqueles bens que os estoicos denominariam de

indiferentes Ademais as nossas emoccedilotildees satildeo respostas aos mais diversos tipos de

danos que a nossa vulneraacutevel constituiccedilatildeo fiacutesico-psiacutequica pode apresentar sendo que o

direito leva isso em consideraccedilatildeo quando socialmente relevante

Ao analisar descritivamente trecircs julgados do STF (ldquoo caso dos pneumaacuteticosrdquo

ldquoo caso dos fetos anenceacutefalosrdquo e o ldquocaso dos campeotildees da Copa do Mundo de 1958 de

1962 e de 1970rdquo) observamos o quanto as emoccedilotildees (medo raiva indignaccedilatildeo gratidatildeo

orgulho compaixatildeo) foram determinantes para a soluccedilatildeo do problema juriacutedico

Concluiacutemos que conhecer a estrutura cognitiva de tais emoccedilotildees eacute fundamental para

realizar uma boa descriccedilatildeo dos suportes emotivos do julgamento

Na terceira parte defendemos que uma retoacuterica estoica seria um modelo de

discurso inalcanccedilaacutevel para o direito seja pela impossibilidade de esvaziar o conteuacutedo

emotivo da linguagem seja pela forma como o direito eacute estruturado

Antes de realizar consideraccedilotildees criacuteticas aos julgados expusemos que no atual

estado de arte da teoria da argumentaccedilatildeo natildeo identificamos um meacutetodo para avaliaccedilatildeo

de argumentos emotivos Assim sem pretender efetuar uma avaliaccedilatildeo rigorosa

procuramos a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum identificar alguns criteacuterios

miacutenimos que pudessem ser uacuteteis a um trabalho criacutetico

Apoacutes isso expusemos que o modelo do espectador imparcial de Adam Smith

seria um oportuno ponto de reflexatildeo para compreendermos a eacutetica das emoccedilotildees na

decisatildeo juriacutedica porque as emoccedilotildees do julgador necessitam ser as de um espectador e

para tanto ele deve ter a capacidade de criticar as proacuteprias inclinaccedilotildees emotivas e as de

outros grupos sociais a fim de atingir um estado de imparcialidade e manter um

ambiente de normatividade comum na sociedade

Todavia ainda que seja um espectador imparcial compreendemos que o

julgador natildeo eacute apaacutetico de modo que quando juridicamente relevantes e fundadas em

evidecircncias as emoccedilotildees podem ser argumentadas e integradas dentro do contexto de um

discurso juriacutedico e em referecircncia a um conjunto de normas juriacutedicas

Ao final deste trabalho podemos dizer que natildeo haacute motivos para que as emoccedilotildees

natildeo sejam incorporadas numa Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e mais amplamente no

estudo do direito porque natildeo eacute possiacutevel falar de racionalidade sem falar de emoccedilotildees e

do seu respectivo controle Se existe um receio de que elas sejam elementos irracionais

e que corrompam o discurso juriacutedico acreditamos que tal avaliaccedilatildeo natildeo eacute condizente

com a importacircncia que as emoccedilotildees possuem na estruturaccedilatildeo da psique humana com a

144

forma pela qual o direito jaacute eacute construiacutedo e com a maneira que decidimos e

argumentamos na praacutetica

De outra parte este trabalho procurou tambeacutem evidenciar em que medida as

emoccedilotildees podem ser mal utilizadas a fim de manter uma postura criacutetica em relaccedilatildeo ao

tema Podem-se censurar as emoccedilotildees no direito de vaacuterias formas a partir dos seguintes

criteacuterios a sua relevacircncia juriacutedica a ausecircncia de evidecircncias a sua parcialidade o seu

peso na argumentaccedilatildeo equiacutevocos de avaliaccedilatildeo na estrutura cognitiva da emoccedilatildeo a

emoccedilatildeo em si mesma Tais criteacuterios diante do atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo

precisam ser desenvolvidos teoricamente a fim de resultar numa metodologia segura de

avaliaccedilatildeo

Assim pensamos que o desenvolvimento de uma pedagogia do uso das

emoccedilotildees que recupere o vocabulaacuterio emotivo atualmente perdido na argumentaccedilatildeo

juriacutedica e no direito eacute muito mais interessante do que o seu atual estado de silecircncio

145

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Page 4: RETÓRICA, TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO E PATHOS: O PROBLEMA … · 2018. 9. 4. · Marcelo Fernandes Pires dos Santos Retórica, Teoria da Argumentação e Pathos: o problema das emoções

Para os meus pais

AGRADECIMENTOS

Agrave Prof Dra Claudia Rosane Roesler pela orientaccedilatildeo pelos ensinamentos

acerca do direito e da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica pelas observaccedilotildees precisas

durante a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo pela paciecircncia e pela convivecircncia acadecircmica nestes

dois uacuteltimos anos Serei sempre grato

Ao Prof Dr Guy Hamelin do Departamento de Filosofia da Universidade de

Brasiacutelia - UnB pelas inspiradoras aulas sobre Aristoacuteteles e os estoicos

Ao Prof Dr Marcelo Neves pelo seu trabalho teoacuterico criacutetico em relaccedilatildeo agrave

praacutetica juriacutedica brasileira e pelas instigantes aulas

Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisiccedilatildeo do

conhecimento Marcus Faro de Castro Juliano Zaiden Benvindo Argemiro Cardoso

Martins

Agrave Faculdade de Direito da UnB cujo processo seletivo me possibilitou realizar

esta dissertaccedilatildeo

Agrave Faculdade de Direito do Recife instituiccedilatildeo onde realizei a minha graduaccedilatildeo

A todos os amigos da Coordenaccedilatildeo-Geral Juriacutedica da Procuradoria-Geral da

Fazenda Nacional em especial Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa Vanessa

Silva de Almeida Ricardo Soriano de Alencar Daniel Neiva Freire Alexandre Budib

Henrique Crisoacutestomo de Macedo Aline Nascimento Cunha Mariana Massumi Maria

Emanuelle Pinheiro

Agrave minha famiacutelia pelo constante incentivo e apoio

Liacutengua aonde vais Salvar ou destruir a cidade

(proveacuterbio antigo)

ldquoPois o comeccedilo eacute tambeacutem um deus que enquanto permanece entre os homens tudo salvardquo

(Platatildeo Leis 775e)

7

Resumo

O projeto de racionalidade construiacutedo pela atual Teoria da Argumentaccedilatildeo

Juriacutedica eacute marcado fundamentalmente por um forte silecircncio a respeito das emoccedilotildees

um tema que passou a ser considerado nos tempos atuais um indiferente teoacuterico

embora tradicionalmente tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da eacutetica desde a

Antiguidade Essa moderna lacuna teoacuterica tem por consequecircncia a preocupante

incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar de avaliar e de

refletir a presenccedila das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e mais amplamente na praacutetica

juriacutedica Este estudo objetiva compreender por que as emoccedilotildees saiacuteram de cena da Teoria

da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e tentar fornecer razotildees para que elas sejam novamente

estudadas Assim eacute preciso investigar se elas seriam compatiacuteveis com uma

argumentaccedilatildeo juriacutedica racional e mais amplamente com a explanaccedilatildeo do sistema

juriacutedico Para atingir tal objetivo este estudo parte da filosofia antiga mais

especificamente do pensamento de Aristoacuteteles e da escola estoica a fim de entender

como ambos integraram a temaacutetica das emoccedilotildees na sua eacutetica e na sua retoacuterica Em

seguida investiga-se em que contexto histoacuterico surge a Moderna Teoria da

Argumentaccedilatildeo considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraccedilotildees

seguintes Almeja-se igualmente pesquisar a compreensatildeo da psicologia de nossa

eacutepoca sobre as emoccedilotildees Ao fim objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoccedilotildees

na argumentaccedilatildeo juriacutedica possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e

capacidade criacutetica a fim de melhorar a qualidade do discurso juriacutedico

Palavras-chave emoccedilotildees ndash teoria da argumentaccedilatildeo juriacutedica ndash retoacuterica ndash

psicologia ndash linguiacutestica

8

Abstract

The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is

marked fundamentally by strong silent about emotions a subject that has been

considered nowadays a theoretical indifferent although traditionally has been linked to

the study of speech and ethics since ancient times This modern theoretical gap has the

effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify

evaluate and reflect the presence of emotions in argument and more broadly in legal

practice This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation

Theory and try to provide reasons for them to be studied again Thus it is necessary to

investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and

more broadly with the explanation of the legal system To achieve this goal it is

necessary to study ancient philosophy specifically the thought of Aristotle and the Stoic

school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his

ethics and his rhetoric Then we investigate in which historical context comes the

Modern Theory of Argumentation considering the thought of its founders and the

following generations It aims also search to understand the psychology of our time on

emotions In the end the objective is to identify the good and bad use of emotions in

legal reasoning enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in

order to improve the quality of legal discourse

Key-words emotions ndash theory of legal argumentation ndash rhetoric ndash psychology ndash

linguistic

9

Lista de abreviaturas e siglas

ADI ndash Accedilatildeo direta de inconstitucionalidade

ADPF ndash Arguiccedilatildeo de descumprimento de preceito fundamental

CF ndash Constituiccedilatildeo Federal

MTA ndash Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica

SVF ndash Stoicorum Veterum Fragmenta

STF ndash Supremo Tribunal Federal

TAJ ndash Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica

10

SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 11

1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E

ESTOICA 14

11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees 14

12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos 19

13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica 30

14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica 40

2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A

INTERDISCIPLINARIDADE 57

21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo 57

22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as emoccedilotildees no

discurso 62

23 As emoccedilotildees falaciosas 68

24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso 74

25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees 84

26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees 92

3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO 100

31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito 100

32 Anaacutelise 109

321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo 109

322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo 115

323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo 120

33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica 125

4 CONCLUSAtildeO 139

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 145

11

INTRODUCcedilAtildeO

O atual interesse pela estrutura argumentativa das decisotildees judiciais eacute fruto da

crescente valorizaccedilatildeo no campo do direito da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica ndash TAJ

que nasceu na metade do seacuteculo XX pelos trabalhos de Theodor Viehweg Stephen

Toulmin Chaiumlm Perelman e Olbrechts-Tyteca

Pode-se dizer que o atual reconhecimento do caraacuteter argumentativo do direito

guarda relaccedilatildeo direta com a substantiva importacircncia adquirida pela TAJ Neste sentido

MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito eacute o fato de

ele ser uma disciplina argumentativa pois para tentar encontrar uma soluccedilatildeo juriacutedica

aos nossos problemas da vida comum precisamos primeiramente construir

proposiccedilotildees em consonacircncia com o sistema juriacutedico1

Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a

argumentaccedilatildeo das decisotildees judiciais com suporte no instrumental teoacuterico fornecido pela

TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padratildeo de racionalidade no

discurso juriacutedico Assim via de regra analisam-se em primeiro lugar os argumentos e

apoacutes procura-se avaliar se as decisotildees judiciais estatildeo adequadamente fundamentadas

investigam-se a coerecircncia interna da argumentaccedilatildeo a coerecircncia das decisotildees judiciais

dentro de um repertoacuterio de julgados assim como a capacidade de universalizaccedilatildeo das

premissas ao fim busca-se atingir um estado oacutetimo de consistecircncia argumentativa2

Todavia nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa natildeo ouvimos

falar a respeito das emoccedilotildees Nenhum dos atuais teoacutericos da TAJ disserta a respeito das

emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica teriam elas perdido definitivamente importacircncia na

vida do direito Eacute possiacutevel realizar uma anaacutelise e uma criacutetica do uso das emoccedilotildees numa

decisatildeo judicial As emoccedilotildees satildeo incompatiacuteveis com a TAJ e mais amplamente com a

racionalidade do direito As emoccedilotildees corromperiam o discurso juriacutedico e o ser humano

Este trabalho portanto insere-se na constataccedilatildeo de uma preocupante lacuna

teoacuterica da TAJ que consiste na ausecircncia de tematizaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees Assim com

o objetivo de tentar construir uma resposta que faccedila sentido para compreender por que

tal mateacuteria natildeo eacute mais teorizada e ao mesmo tempo por que ela deveria ser

(novamente) teorizada precisaremos realizar um especiacutefico percurso nos Capiacutetulos I e II

desta dissertaccedilatildeo

1 MACCORMICK Neil Rhetoric and the rule of law New York Oxford University Press 2010 p 14

2 ATIENZA Manuel Curso de argumentacioacuten juriacutedica Madrid Editorial Trotta 2013 p 553-557

12

No Capiacutetulo I propomos fazer um retorno agrave Antiguidade a fim de entender

primeiramente em que contexto histoacuterico surge e se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto a

discussatildeo das emoccedilotildees

Em seguida tendo em vista a sua importacircncia histoacuterica para a TAJ iremos

analisar o tema sob comento na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de examinar como o

Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto especialmente tentando identificar (i) a

importacircncia das emoccedilotildees na referida obra aristoteacutelica (ii) a concepccedilatildeo de emoccedilatildeo

utilizada (iii) as influecircncias filosoacuteficas de tal concepccedilatildeo (iv) a maneira pela qual as

emoccedilotildees devem ser utilizadas no discurso e (v) os fundamentos psicoloacutegicos do tema

Apoacutes iremos investigar nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco em que medida

as emoccedilotildees satildeo importantes para a vida moral do indiviacuteduo tentando entender se para

Aristoacuteteles eacute suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito

a aspectos estritamente racionais Nesse toacutepico iremos analisar como o Estagirita divide

a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua eacutetica das virtudes Ao fim

tentaremos identificar se o tratamento teoacuterico das emoccedilotildees na Eacutetica a Nicocircmaco eacute

compatiacutevel com aquele presente na retoacuterica

Tendo realizada a investigaccedilatildeo do tema na retoacuterica e na eacutetica aristoteacutelica iremos

realizar um contraponto teoacuterico com a filosofia estoica que advogava que as emoccedilotildees

deveriam ser eliminadas da vida comum Assim considerando a ausecircncia de

tematizaccedilatildeo contemporacircnea das emoccedilotildees tanto na TAJ quanto no direito tentar entender

por que aquela escola filosoacutefica firmou tal posicionamento contribui para a reflexatildeo

acerca de nossa atual compreensatildeo da mateacuteria Desse modo iremos analisar a eacutetica

estoica a fim de apreender a sua noccedilatildeo de virtude e de viacutecio os seus fundamentos

psicoloacutegicos e a construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio objetivando perceber de que

modo todo esse pensamento influenciou a retoacuterica estoica

Ao fim do Capiacutetulo I procuraremos realizar uma comparaccedilatildeo entre o

pensamento aristoteacutelico e o estoico tentando evidenciar o grau de importacircncia que

ambos conferiam agraves emoccedilotildees Ademais registre-se que o Capiacutetulo I forneceraacute o

fundamento filosoacutefico em relaccedilatildeo ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste

trabalho a fim de proporcionar reflexatildeo comparaccedilatildeo e criacutetica

O Capiacutetulo II teraacute um vieacutes mais praacutetico e examinaraacute especificamente a Moderna

Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash MTA com o objetivo de (i) compreender em que contexto

histoacuterico surge tal saber teoacuterico e qual tipo de discurso era predominante agrave sua eacutepoca

(ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoccedilotildees (iii) qual

13

disciplina especiacutefica foi responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees no acircmbito da MTA

(iv) quais as reaccedilotildees teoacutericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as

emoccedilotildees no acircmbito da MTA (v) o que a psicologia do nosso tempo mais

especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo (psicologia cognitiva) poderia nos informar

acerca da racionalidade das emoccedilotildees Destaque-se que este Capiacutetulo teraacute por objetivo

tambeacutem localizar criteacuterios para anaacutelise e avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso

juriacutedico

No Capiacutetulo III jaacute com a compreensatildeo teoacuterica possibilitada pelos Capiacutetulos I e

II iremos abordar no primeiro toacutepico a importacircncia das emoccedilotildees para o direito

tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de

nossa praacutetica juriacutedica Ademais tentaremos responder se o modelo estoico analisado no

Capiacutetulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturaccedilatildeo do ordenamento juriacutedico

No segundo toacutepico iremos examinar com suporte no instrumental colhido no Capiacutetulo

II trecircs julgados do Supremo Tribunal Federal no afatilde de explicitar a presenccedila de

argumentos emotivos O terceiro toacutepico estaraacute reservado a tecer consideraccedilotildees criacuteticas

aos julgados bem como tentar fornecer uma respostar teoacuterica acerca da eacutetica das

emoccedilotildees na decisatildeo e na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Ao fim deste trabalho aleacutem de responder os problemas acima elencados

procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relaccedilatildeo entre

as emoccedilotildees e o discurso juriacutedico e mais amplamente o direito a fim de possibilitar a

melhoria da qualidade do discurso juriacutedico brasileiro e o surgimento de um debate

qualificado com a manutenccedilatildeo de uma perspectiva criacutetica sobre o tema das emoccedilotildees

14

1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E

ESTOICA

11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees

O primeiro problema que se impotildee quando pretendemos falar a respeito da

origem da retoacuterica diz respeito ao proacuteprio significado da palavra ldquoretoacutericardquo Ou seja de

qual ldquoretoacutericardquo falamos quando investigamos sua origem A palavra nos dias de hoje

possui muacuteltiplos significados sendo sem duacutevida o mais saliente aquele em que

preponderam afetos negativos Assim retoacuterica eacute sobretudo usado para designar um

discurso vazio (sem conteuacutedo) mentiroso falacioso incoerente apenas ornamental isto

eacute uma mera fachada linguiacutestica para uma verdadeira armadilha de intenccedilotildees

Essa carga semacircntica pejorativa tambeacutem eacute denunciada por Knudsen que lista

trecircs atuais usos da expressatildeo 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e ao

mesmo tempo superficial que mascara um conteuacutedo vazio e enganoso normalmente

atribuiacutedo a um poliacutetico ou a um conferencista 2) um conjunto de figuras de linguagem

encontrado na literatura cuja aplicabilidade se limita ao espaccedilo de sala-de-aula 3) uma

significaccedilatildeo mais ampla para se referir a discursos especiacuteficos em relaccedilatildeo a um tema ou

a um autor ldquoa retoacuterica do oacutediordquo ldquoa retoacuterica do Supremo Tribunal Federalrdquo ldquoa retoacuterica

do Presidente Obamardquo3

Assim a fim de cumprir nosso intento um bom ponto de partida seria tentar

localizar a primeira vez em que a palavra retoacuterica foi utilizada num texto escrito

Segundo Timmerman-Schiappa e considerando os fragmentos textuais que nos foram

legados atraveacutes do tempo o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela primeira vez em Goacutergias de

Platatildeo no iniacutecio do seacuteculo IV aC sendo provaacutevel que o proacuteprio Platatildeo tenha

inventando o termo pois eacute atribuiacuteda ao autor da Repuacuteblica a criaccedilatildeo de uma seacuterie de

palavras com terminaccedilatildeo -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode

significar pessoa com uma especiacutefica habilidade)4

Fazendo referecircncia a uma pesquisa do vocabulaacuterio grego realizada por Pierre

Chantraine em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminaccedilatildeo -ikos

Schiappa lembra que mais de 250 natildeo foram localizadas antes de Platatildeo ldquoUma pesquisa

3 KNUDSEN Rachel Homeric speech and the origin of rhetoric Baltimore John Hopkins University

Press 2014 p 1 4 TIMMERMAN David M SCHIAPPA Edward Classical greek rhetorical theory and the

disciplining of discourse New York Cambridge University Press 2010 p 9

15

feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae

sugere que as palavras gregas para eriacutestica (eristikecirc) dialeacutetica (dialektikecirc) e antilogikecirc

assim como retoacuterica originaram-se nas obras de Platatildeordquo5

Desse modo e partindo das referidas fontes o termo rhecirctorikecirc foi primeiramente

utilizado por Platatildeo para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em

puacuteblico para fins de convencimento especialmente perante assembleias tribunais e

demais ocasiotildees especiais No Fedro por exemplo Soacutecrates destaca que a retoacuterica eacute

ldquo[] uma arte de conduzir as almas atraveacutes das palavras mediante o discurso []rdquo6 E

posteriormente em Aristoacuteteles ldquo[] a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada

caso com o fim de persuadirrdquo7 Assim a partir destes dois filoacutesofos a retoacuterica surge com

o status de um saber munido com vocabulaacuterio proacuteprio para anaacutelise do discurso

Eacute com Platatildeo tambeacutem que ocorre a conhecida cisatildeo entre retoacuterica e filosofia A

palavra rhecirctorikecirc jaacute no seu nascedouro surge para fins bem precisos isto eacute para

demarcar o campo de uma teacutecnica (techne) moralmente questionaacutevel que lida com a

opiniatildeo (doxa) e que leva atraveacutes da palavra as pessoas ao engano em contraste com a

refinada atividade do filoacutesofo cuja base de reflexatildeo estaacute fundada sob o domiacutenio da

verdade (aletheia) Em Goacutergias e no Fedro satildeo oferecidos vaacuterios exemplos da figura do

retoacuterico como algueacutem que obteacutem sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os

outros

Antes de rhecirctorikecirc o termo mais abrangente utilizado para se referir agrave atividade

do discurso nos textos do seacuteculo V era logos que possui distintos significados na

tradiccedilatildeo grega ldquoeacute qualquer coisa que eacute lsquoditarsquo mas isso pode ser uma palavra uma frase

uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteirordquo8 Logos estaacute assim

relacionado com o conteuacutedo e natildeo com aspectos estiliacutesticos ou esteacuteticos comporta a

ideia de razatildeo argumento ordem O ensino de artes verbais no seacuteculo V aC

associado ao logos portanto natildeo diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca

5 ldquoA computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the

Greek words for eristic (eristikecirc) dialectic (dialektikecirc) and antilogic (antilogikecirc) like rhetoric originate

in Platorsquos worksrdquo (trad livre) Id ibid p 9-10 No sentido de que o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela

primeira vez na obra platocircnica cf COLE Thomas The origins of rhetoric in ancient greek Baltimore

The John Hopkins University Press 1991 6 PLATAtildeO Fedro trad Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees editores 2000 p 90

7 ARISTOacuteTELES Retoacuterica trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 12 8 ldquoit is anything that is lsquosaidrsquo but that can be a word a sentence part of a speech or of a written work or a

whole speechrdquo (trad livre) KENNEDY George A A New History of classical rhetoric New Jersey

Princeton University Press 1994 p 11

16

pela verdade conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distinccedilatildeo platocircnica

entre os fins da retoacuterica e os fins da filosofia9

Assim enquanto a retoacuterica emerge firmemente relacionada com significados

pejorativos logos sempre desfrutou de uma boa reputaccedilatildeo Os sofistas exultavam o

poder que ele possuiacutea segundo Goacutergias logos podia espantar o medo e a tristeza

incutir a compaixatildeo e o prazer10

Isoacutecrates reforccedilava o seu poder e prestiacutegio na vida

puacuteblica ldquoaqueles que satildeo haacutebeis no discurso natildeo satildeo apenas homens de poder em suas

proacuteprias cidades mas satildeo tambeacutem tidos em grande estima em outros estadosrdquo11

Mas se eacute possiacutevel numa anaacutelise textual atribuir a cunhagem da palavra retoacuterica

a Platatildeo eacute possiacutevel inferir de outra parte que a referida palavra grega soacute pode surgir

quando a atividade a que se refere jaacute estava bem consolidada na sociedade Assim a

origem que buscamos passa a ser natildeo mais da palavra mas de eventos que

supostamente deram o iniacutecio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade

Foi na Siacutecilia por volta de 426 aC que ocorreu o evento que impulsionou a

fundaccedilatildeo da retoacuterica apoacutes a expulsatildeo de tiranos que dominavam politicamente a

mencionada regiatildeo as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e

tribunais a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime

ditatorial Os sicilianos Corax e Tiacutesias cientes desta necessidade foram os primeiros a

organizar isso num meacutetodo criando preceitos teoacutericos que almejavam o sucesso da fala

em puacuteblico por meio da divisatildeo do discurso do uso de argumentos de probabilidades e

de outras mateacuterias12

A novidade teoacuterica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Goacutergias quanto

pelo proacuteprio Tiacutesias que parece ter ensinado Liacutesias e Isoacutecrates Por sua vez o manual

(ou manuais) de Corax e Tiacutesias era conhecido por Aristoacuteteles que os resumiu em seu

perdido Synagoge Technon (Coleccedilatildeo de Artes) que a partir de entatildeo passou a ser o

referencial teoacuterico sobre o assunto13

Ciacutecero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa

anaacutelise das regras coletadas nos manuais antigos de retoacuterica incluindo o de Tiacutesias

9 TIMMERMAN D M op cit p 10-11

10 KENNEDY G Op cit p 25

11 ldquothose who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in

honour in other statesrdquo(48-51) (trad livre) Cf ISOCRATES Panegyricus New York Harvard

Univesity Press vol 1 trad George Norlin 1928 p 149 12

CICERO Brutus trad J L Hendrickson CambridgeLondon Harvard University Press 46 1962 p

49 13

GAGARIN Michael Background and origins oratory and rhetoric before the sophists in

WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p

30

17

tendo superado os autores originais em clareza brevidade e estilo motivo pelo qual

apenas os escritos aristoteacutelicos passaram a ser consultados14

Todavia essa tradicional explanaccedilatildeo sobre os primeiros organizadores da arte

retoacuterica tem sido recentemente objeto de revisatildeo em virtude da inconsistecircncia das

fontes histoacutericas Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para

Tiacutesias uma vez que alguns escritos apenas fazem referecircncia a este uacuteltimo ou se Corax

realmente existiu era preocupado com argumentos de probabilidade15

Essa polecircmica a respeito da real identidade dos autores poreacutem natildeo eacute oacutebice para

assinalar o que se procura aqui dizer a partir de um determinado momento o discurso

eficiente isto eacute a fala articulada que almeja persuasatildeo passou a ser extremamente

valorizada na cultura antiga Se pudermos conjecturar que ao reivindicar a reaquisiccedilatildeo

da propriedade perdida apoacutes a expulsatildeo dos tiranos na Siciacutelia uma pessoa poderia ter

melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do conteuacutedo do discurso podemos

entender o quatildeo dramaacutetica era a necessidade de aperfeiccediloamento desta atividade

Assim a expulsatildeo dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela

restauraccedilatildeo de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a

organizaccedilatildeo teoacuterica de uma atividade que posteriormente Platatildeo iraacute designar de

retoacuterica Mas ainda assim natildeo podemos relevar que no ambiente grego outros fatores

jaacute demarcavam a forte presenccedila do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade

Contra a tradicional tese de que a retoacuterica surgiu no seacuteculo V aC com Corax e

Tiacutesias ou de que a retoacuterica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de

Platatildeo e Aristoacuteteles no seacuteculo IV aC por meio de um vocabulaacuterio especiacutefico

governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas Knudsen advoga a ideia

de que o nascedouro da retoacuterica se localiza na obra de Homero

O seu posicionamento no entanto natildeo consiste na defesa de que Homero seria

uma inspiraccedilatildeo para a retoacuterica ou um exemplo da existecircncia na eacutepoca de uma forte

cultura de eloquecircncia mas de que o narrador homeacuterico jaacute apresenta o discurso como

ldquo[] uma habilidade teacutecnica que deve ser ensinada e aprendida e que varia de acordo

com o orador a situaccedilatildeo e o auditoacuteriordquo16

Assim os personagens de Homero na Iliacuteada

14

CICERO On Invention trad H M Hubbel CambridgeMassachusetts Harvard University Press

1949 (II 6) p 171 15

COLE Thomas Who was corax In Illinois classical studies vol 16 1991 p 65-84 16

ldquo[hellip] a technical skill one that must be taught and learned and one that varies according to speaker

situation and audiencerdquo KNUDSEN R Op cit p 4

18

apresentam a retoacuterica na praacutetica enquanto Aristoacuteteles posteriormente apresenta a

retoacuterica em teoria

No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero no seacuteculo II dC o pseudo-

Plutarco teria feito o registro mais antigo a respeito do viacutenculo da obra de Homero com

a retoacuterica

Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso

poliacutetico eacute uma funccedilatildeo da arte retoacuterica pois esta eacute o poder de falar de

maneira persuasiva e quem mais senatildeo Homero estabeleceu sua

proeminecircncia nisso Ele ultrapassou todos os outros em

grandiloquecircncia e seu pensamento dispotildee do mesmo poder que sua

dicccedilatildeo17

Por sua vez no seguinte trecho da Iliacuteada pode-se observar que as caracteriacutesticas

do discurso de Odisseu e de Menelau satildeo finamente analisadas pelo narrador

demonstrando que a fluecircncia a clareza a concisatildeo a prolixidade a objetividade a

gestualidade satildeo fatores jaacute claramente distinguiacuteveis na fala e na figura do orador

Quando urdiam discursos e expunham ideias

Menelau era fluente e claro mas conciso

natildeo sendo um homem multipalavroso nem

dispersivo e tambeacutem por ser ele o mais moccedilo

Quando Odisseu poreacutem multiardiloso punha-se

de peacute para falar fixava o olhar no chatildeo

mantendo o cetro imoacutevel (nem para traacutes nem

para diante o inclinava) parecia um ruacutestico

algueacutem desatinado ou fraco de cabeccedila

Mas quando a voz do peito emitia poderosa

palavras como copos-de-neve no inverno

ningueacutem nenhum mortal o igualaria18

Knudsen todavia vai aleacutem e se dedica a analisar os discursos diretos da Iliacuteada a

fim de demonstrar que todos os recursos retoacutericos (entimema paradigma diathesis

toacutepicos ethos etc) identificados por Aristoacuteteles jaacute estavam presentes na estrutura

literaacuteria de Homero19

Ao examinar outras obras literaacuterias do mundo antigo tais como a

Epopeacuteia de Gilgamesh o Shujing o Maabaacuterata demonstra que o emprego de recursos

17

ldquoPolitical discourse is a function of the craft (τέχνη) of rhetoric which Homer seems to have been the fi

rst to understand for if rhetoric is the power to speak persuasively who more than Homer has established

his preeminence in this He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same

power as his dictionrdquo (trad livre) PSEUDO-PLUTARCO Essays 161 apud KNUDSEN Id ibid p 22 18

HOMERO Iliacuteada trad Haroldo de Campos III vol 1 Satildeo Paulo Benviraacute 2002 p 212-223 19

ldquoMy overarching contention is that the Iliad through the direct speeches of its characters demonstrates

a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be

categorized as ldquorhetoricrdquo in the fourth century in particular these techniques closely match the system

explicated in Aristotlersquos Rhetoricrdquo KNUDSEN R Op cit p 84

19

retoacutericos nestas uacuteltimas eacute extremamente pobre se comparado agrave Iliacuteada Assim destaca

que natildeo se pode explicar o sofisticado sistema retoacuterico encontrado em Homero sob a

justificativa da existecircncia de um modelo retoacuterico universal Vale dizer a tese segundo a

qual haacute um padratildeo de convencimento supostamente presente em todos os discursos e

que seriam inerentes agrave natureza humana natildeo consegue ser extensiacutevel para a realidade

literaacuteria de outras obras antigas20

Assim esse hiperdesenvolvimento de um padratildeo retoacuterico nos discursos da Iliacuteada

pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favoraacutevel agrave cultura da

competiccedilatildeo do debate e da liberdade como ocorria de forma bastante original na

Greacutecia e natildeo encontrava correspondente em culturas orientais ldquodesde as primeiras

poesias gregas ateacute a oratoacuteria juriacutedica e poliacutetica da era claacutessica tardia [] a Greacutecia antiga

funcionava como uma lsquocultura de debatersquo em que o poder era conquistado e negociado

atraveacutes do discurso persuasivordquo 21

Segue-se por isso que eacute conveniente falar natildeo da ldquoorigemrdquo mas das ldquoorigensrdquo

da retoacuterica Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do

debate natildeo eacute de se impressionar que a retoacuterica tenha sido criada e amadurecida neste

ambiente havendo para ela portanto vaacuterios iniacutecios possiacuteveis vale dizer um iniacutecio na

filosofia um iniacutecio na poesia eacutepica um iniacutecio enquanto evento histoacuterico

No entanto para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quatildeo importante

era nas suas origens a necessidade de dominar na vida puacuteblica o discurso eficiente Eacute

por essa razatildeo que a anaacutelise das emoccedilotildees (pathos) emerge na obra aristoteacutelica jaacute que

apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e por isso retoacuterico a

compreensatildeo sobre as emoccedilotildees se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto

12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos

Preliminarmente e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar

mais de perto do tema central deste trabalho eacute oportuno registrar que a origem do termo

grego pathos sob cujo signo Aristoacuteteles trata o tema das emoccedilotildees se encontra no verbo

paschein que significa ldquosofrerrdquo e nessa medida explicita o caraacuteter passivo do

20

KNUDSEN R Op cit p 101 21

ldquoFrom the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and

much later the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic) ancient Greece functioned

as a ldquodebate culturerdquo one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive

speechrdquo (trad livre) KNUDSEN R Id ibid p 101

20

fenocircmeno emotivo22

Nos trechos a seguir transcritos observa-se que o Estagirita utiliza

o termo no sentido exposto ou seja em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees o sujeito estaacute em situaccedilatildeo

de passividade isto eacute ele eacute afetado movido por elas

Entatildeo um homem que enrubesce em virtude de vergonha natildeo eacute

chamado de enrubescido nem aquele que empalidece diante do medo

de paacutelido ao contraacuterio diz-se que ele foi de algum modo afetado

Portanto tais coisas satildeo chamadas de afecccedilotildees [pathecirc] e natildeo

qualidades23

Acrescente-se a estas consideraccedilotildees que dizemos que somos afetados

em funccedilatildeo das emoccedilotildees poreacutem natildeo dizemos que somos afetados em

funccedilatildeo das virtudes e dos viacutecios mas que nos dispomos de um certo

modo24

Saliente-se que aleacutem de ldquoemoccedilatildeordquo pathos tradicionalmente tambeacutem eacute traduzido

por ldquoafecccedilatildeordquo ou ldquoafeiccedilatildeordquo assim como tambeacutem por ldquopaixatildeordquo que vem do latim passio

sendo que nestas duas uacuteltimas traduccedilotildees (ldquoafecccedilatildeordquo e ldquopaixatildeordquo) diferentemente de

ldquoemoccedilatildeordquo persiste de certo modo aquele sentido de passividade25

De outra parte eacute interessante tambeacutem acrescentar que a temaacutetica das emoccedilotildees eacute

algo que perpassa toda a obra aristoteacutelica pois se encontra presente na Eacutetica na

Retoacuterica na Psicologia na Filosofia da Natureza na Teoria Poeacutetica Poreacutem a despeito

disso Aristoacuteteles natildeo apresenta nenhum conceito de emoccedilatildeo preferindo algumas

vezes introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos Por isso esclarece Rapp

natildeo se pode falar de boa consciecircncia de uma ldquoTeoria das Emoccedilotildees de Aristoacutetelesrdquo mas

de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26

Assim tendo realizado brevemente tais anotaccedilotildees preliminares conveacutem registrar

que eacute sobre o que convence em cada caso no discurso de que se ocupa a retoacuterica

Aristoacuteteles logo na abertura de sua obra afirma que todas as pessoas estatildeo submetidas

agraves regras da retoacuterica pois eacute impossiacutevel em vida natildeo passar pela experiecircncia de ter que

22

RAPP Cristof Aristoteles Bausteine fuumlr eine Theorie der Emotionen In LANDWEE Hilge RENZ

Ursula (hrsg) Klassische emotionstheorien von Platon bis Wittgenstein BerlinNew York Walter de

Gruyter 2008 p 48 23

ldquoThus a man who reddens through shame is not called ruddy nor one who pales in fright pallid rather

he is said to have been affected somehow Hence such things are called affections but not qualitiesrdquo (trad

livre) Cf ARISTOTELES Categories In BARNES J (ed) The complete works of Aristotle trad J

L Akrill (9b20-9b32) Princeton Princeton University Press 1991 p 17 24

ARISTOTELES Eacutethica nicomachea I13-III8 tratado da virtude moral trad Marco Zingano Satildeo

Paulo Odysseus 2008 p 48-49 (11065-7) 25

RAPP C Op cit p 48 Cf TIELEMAN Teun Chrysippusrsquo on affection reconstruction and

interpretation Leiden Brill 2003 p 15 26

RAPP C Op cit p 47 Adverte-se o leitor previamente que natildeo iremos utilizar neste trabalho um

conceito normativo de emoccedilatildeo Embora ao longo da obra algumas caracteriacutesticas das emoccedilotildees sejam

evidenciadas natildeo haveraacute o fechamento de um conceito

21

defender ou atacar argumentos Poreacutem enquanto alguns fazem esta atividade de forma

irrefletida ou entatildeo de modo mais consciente por meio de uma praacutetica conquistada pelo

haacutebito eacute possiacutevel fazecirc-la estruturadamente atraveacutes de um meacutetodo que analisaria por que

algumas pessoas obteacutem tanto sucesso ao discursarem Desse modo para Aristoacuteteles a

retoacuterica eacute uma arte (techne) ou seja ldquo[] um corpo de regras e princiacutepios gerais que

podem ser conhecidos pela razatildeordquo27

contrariando assim Platatildeo para quem a retoacuterica se

reduziria a uma mera habilidade que natildeo se submete agrave razatildeo nem consegue explicar as

causas e os motivos do que faz

Sobre a parte que especificamente eacute objeto de nosso interesse isto eacute a

explanaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees conveacutem examinar os Livros I e II da Retoacuterica

Primeiramente urge compreender como o assunto eacute introduzido no Capiacutetulo I do Livro

I e depois como ele eacute desenvolvido tanto no Capiacutetulo II por intermeacutedio da doutrina

dos meios de convencimento quanto no Livro II no detalhamento das emoccedilotildees em

espeacutecie O objetivo de nossa exposiccedilatildeo consiste em traccedilar um panorama geral das

emoccedilotildees no campo da retoacuterica

Com efeito Aristoacuteteles introduz o tema no Capiacutetulo I do Livro I por meio de

uma forte criacutetica aos tratados de retoacuterica de sua eacutepoca que se preocupavam mais em

instigar os acircnimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto

de controveacutersia Ele nomina essas distraccedilotildees do discurso como questotildees exteriores ou

natildeo essenciais ao assunto pois sobre a verdadeira substacircncia da persuasatildeo retoacuterica que

satildeo os entimemas tais manuais nada tratam

O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados que

ele natildeo menciona fossem aplicadas em todas as unidades poliacuteticas aqueles autores de

retoacuterica praticamente nada teriam a dizer Assim para Aristoacuteteles estaria

terminantemente proibido ldquoperverterrdquo o juiz atraveacutes da ira do oacutedio da compaixatildeo e de

outros estados da alma Enfatize-se que as traduccedilotildees aqui consultadas utilizam sempre a

palavra ldquoperverterrdquo que daacute ideia de corromper a cogniccedilatildeo do julgador porque a partir

do momento em que o julgador estiver possuiacutedo por determinado estado mental

(compaixatildeo ira etc) ele estaraacute impossibilitado de conhecer de modo isento o fato

Jaacute no Capiacutetulo II em prosseguimento Aristoacuteteles relaciona as emoccedilotildees como

um dos meios de prova na seguinte classificaccedilatildeo

27

ldquo[hellip] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by

reasonrdquo(trad livre) GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric I a commentary New York

Fordham University Press 1980 p 4

22

Das pisteis produzidas atraveacutes do discurso existem trecircs espeacutecies

algumas residem no caraacuteter [ecircthos] do orador outras na forma em que

dispotildeem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de espiacuterito e

outras no discurso [logos] em si demostrando ou aparentando

demostrar algo28

Eacute apropriado notar que Aristoacuteteles natildeo menciona explicitamente as emoccedilotildees

neste trecho Desse modo parece bastante pertinente a observaccedilatildeo de Knudsen que

prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis porque

literalmente eacute o termo utilizado no texto por Aristoacuteteles Assim diathesis eacute uma

expressatildeo mais abrangente que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade agrave

psicologia do auditoacuterio e nesse sentido englobaria pathos29

No entanto a despeito da observaccedilatildeo a respeito da palavra diathesis feita por

Knudsen Aristoacuteteles logo em seguida explana que ldquo[] persuade-se pela disposiccedilatildeo

dos ouvintes quando estes satildeo levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso []rdquo30

parecendo-nos portanto mais interessante insistir nesse uacuteltimo termo (pathos) como

meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago que

englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicoloacutegica

Em seguida isto eacute apoacutes vincular a ideia de persuasatildeo pela disposiccedilatildeo dos

ouvintes com as emoccedilotildees Aristoacuteteles conclui no sentindo de que nosso juiacutezo varia de

acordo com o nosso estado mental Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza

pelo amor ou pelo oacutedio estaacute diretamente relacionado ao juiacutezo que iremos formular sobre

o assunto

Logo aqui conveacutem registrar certa surpresa ao observar que a despeito da criacutetica

inicial no Capiacutetulo I Aristoacuteteles inclui sem diferenccedila hieraacuterquica as emoccedilotildees ao lado

do ethos e do logos como meios de convencimento O espanto no entanto apenas

aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retoacuterica se destina a tratar

em peacute de igualdade as emoccedilotildees com os entimemas Sobre essa suposta contradiccedilatildeo

muito pode ser comentado

Tentando compreender a questatildeo Fortenbaugh reuacutene trecircs respostas jaacute oferecidas

para esse problema A primeira hipoacutetese entende que no Capiacutetulo I do Livro I

Aristoacuteteles defende um modelo de retoacuterica ideal em que apenas sejam utilizados

argumentos que tratem do assunto objeto de controveacutersia sendo que este modelo ideal eacute

deixado de lado no Capiacutetulo II quando se fala do discurso poliacutetico em que se faria

28

ARISTOacuteTELES Retoacuterica apud KNUDSEN R Op cit p 39 29

KNUDSEN R Id ibid p 39 30

ARISTOacuteTELES Retoacuterica Op cit 2012 p 13

23

necessaacuterio o uso de apelos emotivos31

Na segunda hipoacutetese Aristoacuteteles dirigiria o seu

criticismo aos contemporacircneos que utilizam as emoccedilotildees por meios natildeo-discursivos

(choros laacutegrimas rostos irocircnicos)32

A terceira resposta preferida por Fortenbaugh seria no sentido de uma evoluccedilatildeo

do pensamento aristoteacutelico Inicialmente Aristoacuteteles teria visto as emoccedilotildees de uma

forma negativa e incompatiacutevel com uma argumentaccedilatildeo baseada na razatildeo Poreacutem

durante o periacuteodo em que frequentou a Academia de Platatildeo sabe-se que a relaccedilatildeo entre

emoccedilatildeo e pensamento era objeto de estudo o que provavelmente o levou a ter uma

visatildeo mais favoraacutevel sobre as emoccedilotildees Assim se a tarefa do orador eacute convencer o

ouvinte e isso eacute feito por intermeacutedio de uma mudanccedila de pensamento entatildeo nada

haveria de errado em fazecirc-lo por meio do emprego de argumentos razoaacuteveis que

resultaria numa resposta emocional positiva dos destinataacuterios33

Levando isso em

consideraccedilatildeo eacute possiacutevel que Aristoacuteteles tenha escrito suas primeiras criacuteticas agraves emoccedilotildees

num tratado hoje em dia perdido e posteriormente ao desenvolver a doutrina dos trecircs

meios de convencimento transferiu tais observaccedilotildees ao atual manual sem realizar uma

completa adaptaccedilatildeo do tema34

De outra parte tambeacutem se cogita que os capiacutetulos desenvolvidos por Aristoacuteteles

fossem na verdade alternativos sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou

entatildeo que o Capiacutetulo I era natildeo apenas inconsistente com o que segue (Capiacutetulo II) mas

que ambos se destinavam a puacuteblicos diferentes Konstan assevera que essa duacutevida talvez

seja impossiacutevel de solucionar embora seja razoaacutevel afirmar que ao tratar das emoccedilotildees

no Livro II Aristoacuteteles jaacute pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35

Frede por sua vez demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as

emoccedilotildees tenham recebido tanta atenccedilatildeo na Retoacuterica de modo que formula as seguintes

indagaccedilotildees ldquoIsso eacute uma mera concessatildeo com os maus caminhos do mundo realrdquo ldquoSe o

inimigo o faz devo estar preparado para tambeacutem fazerrdquo36

Ela no entanto registra que

em nenhum momento Aristoacuteteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o

discurso limitando-se a fazer um registro teacutecnico das emoccedilotildees

31

FORTENBAUGH W W Aristotlersquos art of rhetoric In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to

greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 117 32

Id ibid p 117 33

Id ibid p 118 34

Id ibid p 118 35

KONSTAN David Rhetoric and emotion In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek

rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 414 36

FREDE Dorothea Mixed feelings in Aristotlersquos rhetoric In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays

on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 264

24

De fato embora exista uma ruptura de pensamento entre a criacutetica inicial agraves

emoccedilotildees e o seu posterior desenvolvimento nos capiacutetulos subsequentes acreditamos

que natildeo haacute motivo para largar pelo menos aquela censura direcionada ao uso das

emoccedilotildees com o objetivo de fugir das questotildees essenciais objeto de controveacutersia De

todo modo tal mudanccedila de entendimento permanece de difiacutecil explicaccedilatildeo e conforme

assevera Hall o novo posicionamento fez com que Aristoacuteteles possivelmente

influenciado por Platatildeo tenha elegido as emoccedilotildees um dos objetos centrais da retoacuterica37

Ainda sobre a importacircncia quantitativa e qualitativa que as emoccedilotildees adquirem na

retoacuterica aristoteacutelica se pensarmos que pathos eacute tema especificamente pertencente a uma

das partes da alma e por isso esperariacuteamos encontrar na obra psicoloacutegica de

Aristoacuteteles que eacute a ldquoDe Animardquo (Sobre a Alma) o seu desenvolvimento mais completo

e detalhado teremos uma certa decepccedilatildeo ao observar que no seu suposto habitat

especiacutefico a mateacuteria encontra um tratamento extremamente acanhado

comparativamente agravequele encontrado na Retoacuterica A este respeito Cooper anota ser

desapontante a abordagem do tema em ldquoDe Animardquo38

e Konstan chega a dizer que

curiosamente o melhor local para encontrar uma boa discussatildeo sobre emoccedilotildees nas

obras antigas eacute justamente nos livros de retoacuterica

Se vocecirc deseja consultar uma discussatildeo grega ou romana sobre

emoccedilotildees o lugar para procurar natildeo eacute ndash como se poderia esperar ndash em

um tratado de psicologia ou em termos claacutessicos ldquoSobre a Almardquo

(por exemplo De anima de Aristoacuteteles) mas sim um ensaio sobre

retoacuterica Em primeiro lugar no lado grego haacute a proacutepria Retoacuterica de

Aristoacuteteles com o seu tratamento detalhado no Livro II de uma duacutezia

ou mais de diferentes emoccedilotildees Na literatura latina Ciacutecero examina as

emoccedilotildees no seu De inventione assim como em outros ensaios de

oratoacuteria embora tambeacutem as trate com algum detalhe no seu diaacutelogo

filosoacutefico As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4)

Mais tarde no seacuteculo III DC um tal Apsines ndash se este eacute o seu nome

verdadeiro ndash pesquisou as emoccedilotildees em elaborado detalhe como parte

de um extenso livro sobre retoacuterica (apenas uma porccedilatildeo restou

especialmente a parte que trata da compaixatildeo)39

37

HALL Jon Oratorical delivery and the emotions theory and practice In DOMINIK William HALL

Jon (ed) A companion to roman rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 232 38

COOPER John M An aristotelian theory of the emotions In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed)

Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 238 39

ldquoIf you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions the place to look is not

ndash as one might have expected ndash in a treatise on psychology or in classical terms lsquoOn the Soulrsquo (for

example Aristotlersquos De anima) but rather an essay on rhetoric First and foremost on the Greek side

there is Aristotlersquos own Rhetoric with its detailed treatment in Book 2 of a dozen or more different

passions In Latin literature Cicero examines the emotions in his youthful De inventione as well as in

other essays on oratory although he also treats them at some length in his philosophical dialogue The

Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4) As late as the third century AD a certain Apsines ndash if

that is his true name ndash surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on

25

Por sua vez passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II

Aristoacuteteles principia afirmando que por ser o objetivo da retoacuterica formar um juiacutezo no

ouvinte para a tomada de decisatildeo o orador natildeo deve apenas se concentrar na tarefa de

fazer criacutevel e persuasivo o seu argumento (logos) mas tambeacutem deve se preocupar tanto

com a sua proacutepria imagem tendo em vista que o seu caraacuteter (ethos) tambeacutem eacute objeto de

julgamento das pessoas quanto com a necessidade de colocar os destinataacuterios numa

determinada disposiccedilatildeo mental (pathos) reafirmando assim a doutrina dos trecircs meios

de convencimento Logo em seguida coloca esta uacuteltima forma de convencimento

(pathos) como de grande importacircncia para a oratoacuteria judicial

O relevo conferido ao trabalho retoacuterico dirigido agrave disposiccedilatildeo mental dos ouvintes

eacute devidamente esclarecido sem mais nenhuma ponderaccedilatildeo negativa da seguinte

maneira se algueacutem estiver sob o efeito do amor ou do oacutedio da indignaccedilatildeo ou da calma

os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo criteacuterio de grandeza

ldquoquem ama acha que o juiacutezo que deve formular sobre quem eacute julgado eacute de natildeo

culpabilidade ou de pouca culpabilidade por outro quem odeia acha o contraacuteriordquo40

Assim Aristoacuteteles estabelece uma funccedilatildeo cognitiva especiacutefica para as emoccedilotildees

vale dizer eacute em funccedilatildeo delas que alteramos nossos juiacutezos acerca do mundo Estar

afetado por uma emoccedilatildeo eacute a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de

algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade Desse modo por possuir

uma funccedilatildeo tatildeo determinante no discurso o orador precisa estar preparado para bem

utilizaacute-las o que soacute se alcanccedila atraveacutes de um profundo conhecimento sobre o ser

humano

A novidade poreacutem natildeo se encerra por aiacute pois Aristoacuteteles ao dissertar sobre a

natureza das emoccedilotildees afirma que elas satildeo compostas por prazer (hedonecirc) e por dor

(lupecirc) oferecendo mais complexidade ao tema

A ideia segundo a qual as emoccedilotildees comportam tal natureza complexa ou seja

de que satildeo formadas por sentimentos mistos eacute creditada a Platatildeo que ao longo de sua

obra filosoacutefica se deparou desde cedo com o problema do prazer no Feacutedon por

exemplo o autor da Repuacuteblica adverte que o verdadeiro filoacutesofo deveria se manter

distante do prazer que eacute fonte dos maiores males (83bd) Em Goacutergias aquele que vive

desmedidamente na busca do prazer eacute considerado uma pessoa infeliz pois tenta em vatildeo

rhetoric (only a portion survives chiefly the part dealing with pity)rdquo (trad livre) KONSTAN D Op

cit p 411 40

ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 84

26

preencher um jarro furado com uma peneira (493abd) Por sua vez no Filebo uma das

suas uacuteltimas obras a dor eacute definida como a desintegraccedilatildeo do estado de equiliacutebrio

natural enquanto o prazer agora numa visatildeo mais positiva busca recuperar a harmonia

perdida conforme se observa no seguinte trecho

SOCRATES O que eu afirmo eacute que quando encontramos

comprometida a harmonia nos seres vivos ao mesmo tempo haveraacute a

desintegraccedilatildeo da sua natureza e o aparecimento da dor

PROTARCO O que vocecirc diz eacute bastante plausiacutevel

SOCRATES Mas se o contraacuterio ocorre e a harmonia eacute recuperada e a

natureza inicial restabelecida precisamos dizer que o prazer surge se

devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as mateacuterias mais

difiacuteceis no menor tempo possiacutevel41

Com esta uacuteltima definiccedilatildeo Frede destaca que Platatildeo se concilia com alguns

aspectos da natureza humana jaacute que o prazer pelo menos agora tem uma funccedilatildeo

beneacutefica e terapecircutica para o indiviacuteduo Esta nova abordagem natildeo recorre mais agrave ideia

de que o prazer eacute um distuacuterbio ou uma doenccedila da alma e ao mesmo tempo possibilita

submeter os vaacuterios tipos de prazer a um conceito uacutenico explicando quando alguns satildeo

bons e outros natildeo (51b)42

Jaacute neste momento eacute oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento

platocircnico e o encontrado na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de observar que o Estagirita

recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definiccedilatildeo de prazer ldquoAdmitamos que

o prazer eacute um certo movimento da alma e um regresso total e sensiacutevel ao seu estado

natural e que a dor eacute o contraacuteriordquo(1370a)43

Platatildeo de outra parte apoacutes discutir vaacuterias formas de mistura de prazer e de dor

chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoccedilotildees na obra

aristoteacutelica Ele afirma que as emoccedilotildees tambeacutem se submetem a este mesmo fenocircmeno

misto e fornece uma lista de exemplo a ira o medo a saudade as lamentaccedilotildees o amor

a inveja a maliacutecia e outros sentimentos da mesma espeacutecie Num fragmento da Iliacuteada

citado no referido diaacutelogo a raiva eacute apresentada como algo que amarga a alma ateacute dos

41

ldquoSOCRATES What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted there will

at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain

PROTARCHUS What you say is very plausible

SOCRATES But if the reverse happens and harmony is regained and the former nature restored we

have to say that pleasure arises if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the

shortest possible timerdquo(31d) (trad livre) Cf PLATAtildeO PHILEBUS trad Dorothea Frede In COOPER

John M (ed) Plato complete works IndianapolisCambridge Hacket Publishing Company 1997 p

419 42

FREDE D Op cit p 262 43

ARISTOTELES Op cit 2012 p 56

27

mais saacutebios mas ao mesmo tempo provoca um dulccedilor maior do que o mel A amargura

da raiva reside na dor que ela provoca desequilibrando o estado natural do indiviacuteduo e a

doccedilura estaacute justamente na antecipaccedilatildeo mental do ato de vinganccedila que eacute a sua imensa

fonte de prazer Por sua vez o riso que eacute um prazer quando dirigido a uma infelicidade

do outro eacute fruto da maliacutecia (Schadenfreude)44

que eacute uma dor da alma (50a)45

Retornando novamente agrave Retoacuterica Aristoacuteteles oferece uma lista de emoccedilotildees

opostas (ira calma amizade e inimizade medo confianccedila vergonha desvergonha

benevolecircncia compaixatildeo indignaccedilatildeo inveja emulaccedilatildeo etc) que seraacute enquadrada no

referido modelo teoacuterico dos sentimentos mistos Ressalte-se poreacutem que em nenhum

momento Aristoacuteteles faz referecircncia expliacutecita agrave teoria platocircnica nem utiliza a palavra

ldquomistordquo ou ldquomisturardquo e neste aspecto esclarece poucos detalhes de sua abordagem

emotiva No entanto o cotejo a seguir realizado mostra que a influecircncia platocircnica tem

fundamento e a sua investigaccedilatildeo merece ser feita a fim de compreender como foi

moldada a primeira grande abordagem retoacuterica das emoccedilotildees de que temos notiacutecia

Assim a ira eacute acompanhada de dor em funccedilatildeo de um desprezo sem razatildeo

dirigido a noacutes ou a pessoas que temos estima e de prazer na esperanccedila de se vingar que

eacute representada mentalmente no indiviacuteduo provocando um deleite comparaacutevel agravequeles

encontrados nos sonhos (1378b) O medo eacute uma dor em virtude da representaccedilatildeo de um

mal vindouro (1382a) A causa da vergonha consiste numa dor em razatildeo de males

passados presentes ou futuros que satildeo passiacuteveis de destruir a nossa reputaccedilatildeo (1383b)

A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisiccedilatildeo de

bens desejaacuteveis ou seja o sucesso alheio eacute fonte de grande afliccedilatildeo e o prazer estaria na

possibilidade de observar o fracasso na aquisiccedilatildeo destes bens (1387b-1388a) De seu

turno na compaixatildeo a dor eacute resultado de um mal que recai naquele que natildeo a merece

fazendo-nos sofrer por extensatildeo (1385b) Na indignaccedilatildeo a dor estaacute em observar um

ecircxito imerecido (1386b) Jaacute o amor que eacute melhor tratado no Livro I nos provoca dor

diante da ausecircncia da pessoa amada cuja lembranccedila e a esperanccedila de reencontro nos

provocam prazer (1370a)

Eacute bem verdade que em relaccedilatildeo a algumas emoccedilotildees tais a amizade e a

benevolecircncia Aristoacuteteles natildeo chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas

envolvidos mas conforme nota Frede isso mostra que ele estava mais preocupado em

44

A palavra alematilde Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortuacutenio

alheio 45

PLATAtildeO Op cit 1997 p 439-440

28

mostrar quais emoccedilotildees o orador deveria dominar para ser convincente no

empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade teoacuterica46

De outra parte importa registrar que no detalhamento das emoccedilotildees trecircs

aspectos satildeo via de regra esclarecidos quais sejam o estado de espiacuterito em que

geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoccedilatildeo contra quem ou

o que costumam ter aquela reaccedilatildeo emotiva e em quais circunstacircncias ocorrem Sem

saber estes trecircs aspectos o orador natildeo estaraacute nas condiccedilotildees ideais de alcanccedilar ecircxito no

seu empreendimento de colocar o auditoacuterio numa determinada disposiccedilatildeo mental

Por exemplo como o medo estaacute relacionado agrave visualizaccedilatildeo da ocorrecircncia de um

mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequecircncias negativas na esfera

pessoal do indiviacuteduo o ouvinte deve estar num estado de espiacuterito que acredite que de

fato algo ruim iraacute lhe suceder Assim pessoas insensiacuteveis por jaacute terem vivenciado toda

sorte de desgraccedila na vida ou porque estatildeo muito confiantes em si mesmas por terem ou

acreditarem ter muitos amigos vigor fiacutesico prosperidade econocircmica ou outro motivo

que as fortaleccedila mentalmente natildeo sentiratildeo medo Logo a confianccedila eacute o contraacuterio do

medo e eacute um verdadeiro escudo contra o sentimento de inseguranccedila que aplaca o

medroso Por outro lado teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a noacutes e nesta

categoria encontram-se aqueles que satildeo injustos ou perversos desde que contem com

instrumentos para cometerem os seus atos de injusticcedila e de maldade aqueles que

provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que noacutes os nossos concorrentes

quando o objeto de conquista natildeo pode ser compartilhado os que foram viacutetimas de

injusticcedila por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem Por fim em

relaccedilatildeo agrave coisa que tememos ela deveraacute ter a capacidade de nos causar grande

penosidade inclusive a proacutepria destruiccedilatildeo sendo o seu aspecto temporal altamente

relevante jaacute que tendemos a ter medo em relaccedilatildeo a um mal iminente e natildeo sentirmos

temor quanto a algo que provavelmente se sucederaacute mas a sua ocorrecircncia se daraacute num

intervalo temporal muito longiacutenquo

Na posse de tais informaccedilotildees e tentando imaginar um orador que planeje incutir

medo num auditoacuterio formado por pessoas com alto niacutevel de confianccedila certamente o

passo inicial seraacute dessensibilizar os ouvintes Se por exemplo as pessoas forem

confiantes por possuiacuterem muita riqueza seraacute necessaacuterio demonstrar no discurso que os

seus bens materiais nada poderatildeo fazer contra o mal que se aproxima Se por outro

46

FREDE D Op cit p 271

29

lado o mal lhes parece distante o discurso deveraacute enfatizar que a distacircncia natildeo eacute tatildeo

grande quanto aparenta e deveraacute reforccedilar a capacidade destrutiva deste mal bem como

certificar que apesar de longiacutenquo o infortuacutenio ocorreraacute No entanto se o auditoacuterio

estiver experimentando um medo excessivo talvez seja necessaacuterio lhes transmitir

confianccedila demonstrando que o mal natildeo seja tatildeo grande quanto aparenta ou que as

pessoas dispotildeem de meios adequados para enfrentaacute-lo

Enfim eacute preciso realizar um minucioso estudo do auditoacuterio a fim de

compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (preacute-discurso)

continuar a percebecirc-lo durante o discurso tudo isso com o objetivo de conduzir os

ouvintes a uma pretendida disposiccedilatildeo mental Nesta perspectiva a retoacuterica eacute uma

teacutecnica fundada no profundo conhecimento teoacuterico do ser humano na aquisiccedilatildeo de

experiecircncia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especiacuteficas de um

determinado grupo social e na contiacutenua praacutetica discursiva

Cumpre acrescentar que no discurso retoacuterico haacute tambeacutem um intenso trabalho de

representaccedilatildeo mental ou melhor dizendo de imaginaccedilatildeo isto eacute phantasia As palavras

gregas phantasia e phantasma satildeo traduzidas por imagem imaginaccedilatildeo ou representaccedilatildeo

mental em diversas ocasiotildees da obra em comentaacuterio Eacute oportuno destacar que phantasia

eacute um termo teacutecnico da psicologia aristoteacutelica e natildeo se confunde com o uso atual da

palavra fantasia que significa invenccedilatildeo narrativa ficcional algo fora da realidade

A phantasia eacute uma faculdade da alma que natildeo eacute nem pensamento nem

percepccedilatildeo embora parta desta uacuteltima Ela visa dar conta de pelo menos dois

problemas a presenccedila na ausecircncia isto eacute a lembranccedila ou pensamento de objetos

ausentes a questatildeo do engano que natildeo consegue ser explicado pela ideia de que o

semelhante conhece o semelhante pois esta uacuteltima tese sustenta que o conhecimento se

identifica com os seus objetos (409b29-30) e por isso natildeo pode ldquo[] errar ou desviar

de como as coisas satildeordquo47

Assim para Aristoacuteteles a phantasia eacute uma faculdade

especiacutefica da alma que procura solucionar esse problema da cogniccedilatildeo tornando atraveacutes

da representaccedilatildeo mental o verdadeiro e o falso possiacuteveis

Desse modo Aristoacuteteles expotildee que ldquoo prazer consiste em sentir uma certa

emoccedilatildeo e a imaginaccedilatildeo [phantasia] eacute uma espeacutecie de sensaccedilatildeo enfraquecidardquo48

(1370a28-29) Ao falar acerca do prazer sentido na vitoacuteria assevera que todos gostam

47

ldquoit cannot err or deviate from the way things arerdquo CASTON Victor Aristotlersquos psychology In GILL

M L PELLEGRIN P (ed) The Blackwell Companion to Ancient Philosophy Oxford Blackwell

Publishing 2006 p 334 48

ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 57

30

de vencer porque criamos para noacutes mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade

em relaccedilatildeo aos outros (1370b33) A honra e a boa reputaccedilatildeo satildeo altamente prazerosas

porque atraveacutes delas imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma

pessoa virtuosa Na ira o prazer ocorre em face da representaccedilatildeo mental [phantasia] do

ato de vinganccedila (1378b) O medo eacute uma dor ocasionada pela representaccedilatildeo [phantasia]

de um mal iminente (1382a21) Na esperanccedila representamos mentalmente [phantasia]

que as coisas que nos transmitem seguranccedila estatildeo proacuteximas (1383a17) Por sua vez a

vergonha consiste na representaccedilatildeo imaginaacuteria [phantasia] da perda de reputaccedilatildeo pelo

indiviacuteduo (1384a24)49

Assim em vista dos trechos acima citados fica claro que phantasia tem um

papel essencial no trabalho retoacuterico porque atraveacutes de sua elaboraccedilatildeo discursiva seraacute

possiacutevel suscitar determinadas emoccedilotildees no auditoacuterio E isso porque conforme destaca

Rapp ldquomuitas emoccedilotildees surgem apenas atraveacutes da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo

(phantasia) natildeo necessitando de uma operaccedilatildeo cognitiva superior incluindo qualquer

julgamento compreendido este uacuteltimo como uma operaccedilatildeo sofisticadardquo50

Assim em

conclusatildeo a phantasia retoacuterica consiste na induccedilatildeo de uma determinada disposiccedilatildeo

mental por meio da produccedilatildeo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um

estado emocional especiacutefico

Desse modo tendo completado a exposiccedilatildeo do tema eacute possiacutevel agora notar a

evoluccedilatildeo do pensamento de Aristoacuteteles sobre as emoccedilotildees compreender de que modo

elas satildeo suscitadas entender a sua natureza complexa e a sua funccedilatildeo cognitiva precisar

quais delas satildeo importantes para o orador e por fim observar a sua centralidade dentro

da retoacuterica

13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica

Visto o delineamento do tema na retoacuterica aristoteacutelica e percebido o alto grau de

importacircncia que as emoccedilotildees adquirem no discurso persuasivo passamos agora a

investigaacute-las na eacutetica aristoteacutelica mais precisamente nos Livros I e II da Eacutetica a

Nicocircmaco

49

GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric II a commentary New York Fordham University

Press 1988 p 26 50

ldquoViele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande beduumlrfen

aber keiner houmlheren kognitiven Operation also auch keines Urteils falls darunter eine solche

anspruchsvollere Operation verstanden wirdrdquo (trad livre) RAPP C Op cit p 56

31

Aristoacuteteles inicia no Capiacutetulo II do Livro I dizendo que se houver um bem que

seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade uacuteltima

tal bem dada a sua importacircncia merece por razotildees praacuteticas ser estudado e conhecido

uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforccedilo na vida humana

Esse bem final ou supremo eacute relacionado agrave felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no

Capiacutetulo IV ldquoverbalmente eacute-nos possiacutevel quase afirmar que a maioria esmagadora da

espeacutecie humana estaacute de acordo no que tange a isso pois tanto a multidatildeo quanto as

pessoas refinadas a ele se referem como a felicidaderdquo51

(1095a17-19)

Apoacutes discorrer sobre vaacuterias concepccedilotildees correntes sobre felicidade (eudaimonia)

oferecendo-lhes criacutetica bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista Aristoacuteteles no

Capiacutetulo XIII afirma que ldquofelicidade eacute uma certa atividade da alma em conformidade

com a virtude perfeitardquo ou que a ldquofelicidade humana significa a excelecircncia da almardquo

justificando portanto a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para

melhor compreender a mateacuteria em exame

Por isso em seguida apresenta a divisatildeo da alma em uma parte dotada de razatildeo

(logon) e uma outra parte natildeo-racional (alogon) Primeiramente eacute detalhada a parte

natildeo-racional que se divide em duas uma porccedilatildeo cuida da nutriccedilatildeo e do crescimento e

por isso eacute partilhada com todos os seres vivos natildeo sendo caracteriacutestica apenas do ser

humano (parte vegetativa ou nutritiva) mas uma outra porccedilatildeo embora tambeacutem seja

natildeo-racional possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razatildeo Esta

uacuteltima porccedilatildeo eacute a sede dos desejos apetites e emoccedilotildees e geralmente eacute denominada de

parte apetitiva ou desiderativa

Poreacutem em prosseguimento sem se decidir ele observa que talvez seja mais

apropriado dividir a parte racional em duas uma que deteacutem o princiacutepio racional strictu

sensu e em si mesmo e a outra parte (a apetitiva) que natildeo possui razatildeo mas que eacute

capaz de ouvi-la ldquocomo um filho ao seu pairdquo Em ambos os casos seja a parte

irracional duplamente dividida seja a parte racional duplamente dividida uma coisa

permanece igual a parte apetitiva (desiderativa) natildeo deteacutem em si o princiacutepio racional

mas eacute capaz de escutar e obedecer a razatildeo conforme explana Rapp

Na verdade Aristoacuteteles diz que ou o sentido da frase lsquologo echonrsquo

(lsquoter razatildeorsquo) eacute bipartite ndash primeiro aquilo que tem razatildeo em sentido

estrito e a tem em si mesmo segundo aquilo que eacute capaz de obedecer

ou responder agrave razatildeo ndash ou que um elemento da parte natildeo-racional da

51

ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco trad Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2009 p 40

32

alma eacute capaz de ouvir obedecer ou responder agravequela parte da alma

que possui razatildeo em si mesma52

Mas qual eacute a principal finalidade em apresentar esta divisatildeo da alma em uma

parte racional e outra natildeo-racional Ora se lembrarmos que a felicidade eacute um estado de

excelecircncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita entatildeo do conhecimento

das partes da alma e da compreensatildeo do seu bom funcionamento dependem o excelente

desempenho da totalidade da alma Assim anota Pakaluk o pressuposto impliacutecito neste

capiacutetulo eacute que a virtude do todo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da distinccedilatildeo da virtude das

partes53

E tal portanto eacute a justificativa para apresentar a divisatildeo entre virtudes

intelectuais e virtudes morais ou eacuteticas As virtudes intelectuais satildeo aquelas pertencentes

ao campo da parte racional da alma e de seu turno as virtudes morais satildeo relacionadas

agrave parte natildeo-racional da alma mas que conforme visto tecircm a caracteriacutestica de poder

ouvir e obedecer agrave razatildeo

Interessante registrar o jogo ambiacuteguo que o vocaacutebulo ldquovirtuderdquo exerce no texto

Se num primeiro momento Aristoacuteteles usa ldquovirtuderdquo geralmente no singular para se

referir agrave felicidade conveacutem notar que agora ele passa a utilizar a palavra no plural

(virtudes intelectuais e virtudes morais) O termo grego aretecirc pode ser traduzido por

excelecircncia ou por virtude sendo que ao empregar a palavra no singular para definir a

felicidade o Estagirita quer se referir agrave atividade excelente da alma um estado que

exerce bem sua funccedilatildeo e atinge os melhores padrotildees Jaacute no segundo caso exemplificado

(plural) deseja aludir agraves virtudes individuais tais como popularmente as conhecemos

justiccedila moderaccedilatildeo coragem etc54

Assim tendo em vista tal classificaccedilatildeo o Livro II iraacute se ocupar da virtude moral

(no singular) ou seja procurar-se-aacute compreender de que maneira a parte natildeo-racional

da alma iraacute atingir o seu estado excelente enquanto as virtudes morais (no plural) iratildeo

ser exploradas em outro trecho da obra (III8-VI)

Neste propoacutesito no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral o

Estagirita abre a discussatildeo esclarecendo o seu modo de aquisiccedilatildeo a fim de diferenciar

tal virtude em relaccedilatildeo agrave virtude intelectual Enquanto esta uacuteltima se adquire pela

52

RAPP CPara que serve a doutrina aristoteacutelica do meio termo In ZINGANO Marco (org) Sobre a

eacutetica nicomaqueia de aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010 p 410 53

PAKALUK Michael On the unity of the nicomachean ethics In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos

nicomachean ethics a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 31 54

RAPP C Op cit 2010 p 407-408 Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea Op cit p 78

33

instruccedilatildeo aquela eacute produto do haacutebito (ethos) marcando com esta posiccedilatildeo clara

divergecircncia com o intelectualismo socraacutetico que entende que a virtude eacute adquirida por

meio do conhecimento vale dizer para praticar atos bons e ser considerado bom eacute

suficiente que o indiviacuteduo compreenda o que eacute bondade para ser justo eacute satisfatoacuterio

conhecer o que eacute justiccedila Diferentemente no modelo aristoteacutelico algueacutem soacute se torna

virtuoso caso realize atos em conformidade com a virtude Por conseguinte eacute preciso

realizar atos de coragem ou de justiccedila para por exemplo ser considerado corajoso ou

justo

Ademais as virtudes morais natildeo satildeo inatas natildeo satildeo geradas pela natureza

(phusei) nem satildeo contraacuterias agrave natureza (paraphisen) Embora nos sejam concedidas

como potecircncias (dynameis) necessitam ser exercidas para serem adquiridas e natildeo

permanecerem em eterno estado de latecircncia Isso porque a virtude eacute uma hexis

(disposiccedilatildeo) um estado de caraacuteter adquirido que se tornou estaacutevel fixo natildeo sujeito a

regressotildees55

Eacute por isso que a sua aquisiccedilatildeo soacute ocorre mediante a repeticcedilatildeo de vaacuterios

atos (haacutebito) necessitando tambeacutem que haja conhecimento e deliberaccedilatildeo na sua praacutetica

(1105a30-35)

Poreacutem onde se encaixam as emoccedilotildees neste modelo teoacuterico Qual eacute o papel que

desempenham para o atingimento do estado de excelecircncia da parte natildeo-racional da

alma

No Capiacutetulo I do Livro II Aristoacuteteles fornece o primeiro exemplo empiacuterico

relativo agrave importacircncia das emoccedilotildees para a o desenvolvimento do caraacuteter do indiviacuteduo

ldquoatraveacutes da accedilatildeo em situaccedilotildees arriscadas e ao formar o haacutebito do [sentimento] do medo

ou [aquele] da autoconfianccedila eacute que nos tornamos corajosos ou covardesrdquo56

No Capiacutetulo

II reafirma-se o mesmo exemplo a pessoa que sente medo em relaccedilatildeo a tudo querendo

fugir de todas as situaccedilotildees iraacute adquirir o caraacuteter de um covarde sendo que aquele que

natildeo vivencia medo em face de qualquer situaccedilatildeo um temeraacuterio

Apoacutes o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de

incidecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Assim em relaccedilatildeo a estas uacuteltimas estar na

posse de uma virtude moral significa que o indiviacuteduo se encontra bem ou mal disposto a

55

WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2013 p 69-70 56

ARISTOacuteTELES Op cit 2009 p 68

34

sofrer o governo das emoccedilotildees ldquoas disposiccedilotildees satildeo os estados de caraacuteter formados

devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relaccedilatildeo agraves paixotildeesrdquo57

Com efeito se pensarmos que a teoria moral aristoteacutelica concerne agraves emoccedilotildees e

o vocaacutebulo pathos derivado de paschein traz consigo a ideia de que o indiviacuteduo eacute

afetado por algo isto eacute ele sofre a accedilatildeo de uma emoccedilatildeo e por isso se encontra numa

condiccedilatildeo passiva e considerando que esta mesma teoria moral tambeacutem se preocupa

com a accedilatildeo (praxis) isto eacute quando o indiviacuteduo atua e respectivamente estaacute numa

posiccedilatildeo ativa o modelo eacutetico em comentaacuterio se preocupa natildeo apenas com o agir

devidamente mas tambeacutem com o ser afetado devidamente Assim a arte de viver bem

natildeo se resume a uma arte de agir adequadamente mas sobretudo a uma arte de sentir

de modo adequado as emoccedilotildees58

Dessa forma com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de

como atingir esse ponto de excelecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Aristoacuteteles

apresenta a doutrina do meio termo

Ora de tudo que eacute contiacutenuo e divisiacutevel eacute possiacutevel tomar a parte maior

ou a menor ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores

menores e iguais seja relativamente agrave proacutepria coisa ou relativamente a

noacutes a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficiecircncia

Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois

extremos o que eacute exatamente o mesmo para todos os seres humanos

pela mediania relativa a noacutes entendo aquela quantidade que nem eacute

excessivamente grande nem excessivamente pequena o que natildeo eacute

exatamente o mesmo para todos os seres humanos59

Assim em vista do modelo conceitual oferecido a excelecircncia eacutetica estaraacute no

distanciamento do muito e do muito pouco em direccedilatildeo ao centro isto eacute ao ponto

mediano A boa disposiccedilatildeo de caraacuteter eacute alcanccedilada quando se evita tanto o excesso

quanto a deficiecircncia que seriam modos de falhar tanto na accedilatildeo quanto na forma de

sentir a emoccedilatildeo

Rapp destaca que as interpretaccedilotildees normativas desta doutrina

tradicionalmente a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os

casos individuais e encontrar consequentemente uma soluccedilatildeo Assim ela tem sido

compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas accedilotildees ou emoccedilotildees sejam

57

Id ibid p 74 58

KOSMAN L A Beeing properly affected virtues and feelings in Aristotlersquos ethics In RORTY

Ameacutelie Oksenberg Essays on aristotlersquos ethics BerkeleyLos Angeles California University Press

1980 p 104-105 59

ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco Op cit p 76

35

moderadas (b) para que apenas selecionemos as accedilotildees ou as reaccedilotildees emotivas

equidistantes dos dois extremos60

Todavia a melhor saiacuteda seria observar o seu caraacuteter anti-dedutivo jaacute que no

campo eacutetico a infinidade de situaccedilotildees e peculiaridades desaprova uma leitura ldquoregra-

casordquo desse modelo teoacuterico ldquoo melhor que a teoria eacutetica pode fazer eacute formular

enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hocircs epi to polu) e natildeo em

geralrdquo61

Nesta aacuterea que natildeo eacute a do necessaacuterio natildeo se podem formular premissas

cogentes a partir das quais deduziriacuteamos soluccedilotildees firmes

Aristoacuteteles nesse ponto adiciona uma seacuterie de paracircmetros a fim de explanar

conceitualmente a boa medida da accedilatildeo ou da emoccedilatildeo experimentar uma emoccedilatildeo

adequadamente significa senti-la na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves

pessoas e aos fins certos e de maneira correta o que demonstra a complexidade do

aperfeiccediloamento eacutetico uma vez que se espera do indiviacuteduo uma grande sensibilidade agrave

experiecircncia concreta

Em tal perspectiva sentir uma emoccedilatildeo devidamente pode significar reagir de

modo eneacutergico porque uma situaccedilatildeo especiacutefica pode reclamar que a pessoa tenha uma

resposta emocional intensa Isso natildeo anula a noccedilatildeo de virtude moral esclarecida

conceitualmente pela doutrina do meio-termo porque a pessoa que natildeo reage de forma

adequada agrave ocasiatildeo em face daqueles paracircmetros expostos estaraacute ou falhando por

deficiecircncia ou por excesso Por exemplo o indiviacuteduo que frequentemente reaja com

raiva em relaccedilatildeo agraves pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira

equivocada ou natildeo reaja quando deveria estaraacute mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees62

Assim ateacute o momento o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira

algueacutem estaraacute bem ou mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees uma vez que conforme se

delineou a parte natildeo-racional da alma apenas exerce bem a sua funccedilatildeo quando ouve a

razatildeo e no campo das emoccedilotildees isso ocorre quando o indiviacuteduo as sente adequadamente

de acordo com as circunstacircncias

Poreacutem Aristoacuteteles demonstrando que no terreno da eacutetica as peculiaridades satildeo

muitas afirma que para determinadas emoccedilotildees (a inveja a malevolecircncia a impudiciacutecia

e outras semelhantes) o modelo da mediania eacute inuacutetil e os paracircmetros sequer aplicaacuteveis

60

RAPP C 2010 p 416 61

Id ibid p 419 62

RAPP COp cit 2008 p 66

36

porque tais paixotildees satildeo maacutes em si mesmas para elas soacute existe o erro pois natildeo haacute como

senti-las no momento certo quanto agrave pessoa certa ou de modo certo etc

Assim enquanto para uma gama de emoccedilotildees eacute possiacutevel afirmar que eacute possiacutevel

senti-las adequadamente e isso implica pressupor que quando apropriadamente

vivenciadas algo de bom teraacute ocorrido da sua fruiccedilatildeo para outras tal pensamento natildeo eacute

extensiacutevel

Temos que nos socorrer do Livro II da Retoacuterica a fim de evidenciar por que a

inveja seria do ponto de vista eacutetico uma emoccedilatildeo vil em si mesma o Estagirita afirma

que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia eacute aquela que sente inveja

da felicidade dos outros e consequentemente esta mesma pessoa teraacute grande regozijo

ao observar o fracasso alheio Enquanto a indignaccedilatildeo e a inveja partilham de um ponto

comum por serem emoccedilotildees penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia

entre elas existe uma destacada diferenccedila a indignaccedilatildeo eacute uma dor gerada pela

observaccedilatildeo de um sucesso imerecido (injusto) enquanto a inveja eacute uma dor provocada

pela conquista de um bem merecido (justo) Enquanto a indignaccedilatildeo e a compaixatildeo estatildeo

ligadas ao bom caraacuteter a inveja estaacute relacionada a pessoas de alma pequena

(mikropsykhoi) Ao comparar a emulaccedilatildeo com a inveja destaca que aquela eacute

experimentada por pessoas de bem de alma grande enquanto a uacuteltima por pessoas vis

despreziacuteveis que poderatildeo inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem

Enfim parece que natildeo foi agrave toa que Aristoacuteteles de forma inusual brigou com os poetas

no iniacutecio da Metafiacutesica ao dizer que eacute mais provaacutevel que eles sejam mentirosos

conforme profere o proveacuterbio do que os deuses invejosos (1386b10-25 1387b30-39

1388a30-37 983a1-5)

Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoccedilotildees que satildeo vis em si mesmas

fundamentando-se na palavra grega mochteria utilizada em trecho em que eacute discutido

este mesmo assunto na Eacutetica a Eudemo (1221b21)63

Eacute bem verdade que mochteria

tambeacutem foi vertida por ldquoviacuteciordquo em algumas traduccedilotildees deste mesmo trecho na referida

obra aristoteacutelica64

mas natildeo deixa de ser um uso interessante para a descriccedilatildeo das

mencionadas emoccedilotildees parecendo-nos oportuna a sua utilizaccedilatildeo65

63

LEIGHTON Stephen Inappropriate passion In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos nicomachean ethics

a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 211 64

ARISTOTLE Eudemian ethics trad Michael Woods Oxford Clarendon Press 2005 p 18 65

Cf a explanaccedilatildeo dada para mochteria ldquocorrupt corruption (mochtheros mochtheria) A strong term

used to describe vicious human beings Like the English term the Greek has a range of meanings from

morally bad or wicked to perverse or depraved in ones longings and the like it can also mean in non

moral contexts simply lsquodefectiversquo or lsquobad conditionrsquo In the Ethics mochtheria is sometimes used

37

Assim por exemplo a inveja eacute uma emoccedilatildeo perversa porque conforme se viu

eacute anti-meritoacuteria O sujeito invejoso natildeo consegue enxergar um valor positivo na

conquista alheia e espera pela sua desgraccedila Consequentemente eacute uma emoccedilatildeo

relacionada ao cometimento de injusticcedilas

Mas de um modo geral todas as emoccedilotildees perversas compartilham de algo em

comum elas satildeo incompatiacuteveis com o bom caraacuteter Consoante nota Leighton as

emoccedilotildees perversas ldquo[] natildeo contribuem em nada mas apenas inibem uma vida virtuosa

ou proacutespera Enquanto a maioria das emoccedilotildees eacute objeto de elogio ou de censura

conforme as circunstacircncias particulares em que se manifestam estas merecem censura

simplesmente por serem sentidasrdquo66

Ora pelo visto ateacute o presente momento Aristoacuteteles divide as emoccedilotildees em dois

grupos aquelas que podem ser adequadamente ou natildeo-adequadamente sentidas de

acordo com as circunstacircncias e aquelas que satildeo vis em si mesmas (perversas) Naquele

primeiro grupo de emoccedilotildees os indiviacuteduos virtuosos sentiratildeo as emoccedilotildees

adequadamente enquanto aqueles natildeo-virtuosos sentiratildeo inadequadamente No segundo

grupo apenas os sujeitos de caraacuteter falho (natildeo-virtuoso) as sentiratildeo67

Desse modo de

acordo com este modelo quando devidamente formadas na disposiccedilatildeo de caraacuteter do

indiviacuteduo as emoccedilotildees contribuiratildeo significativamente no alcance de uma vida feliz

Poreacutem a despeito disso quais satildeo as outras implicaccedilotildees deste modelo

O primeiro ponto consiste em perceber que vaacuterias questotildees essenciais para a

vida inclusive para a vida em sociedade natildeo estatildeo localizadas no acircmbito de uma

racionalidade strictu sensu Se o indiviacuteduo natildeo for por haacutebito levado a constituir uma

disposiccedilatildeo de caraacuteter que o faccedila detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos

perversos provavelmente seraacute indiferente emocionalmente a accedilotildees truculentas ou

brutas contra outras pessoas

Nesse sentido conforme pontua Striker a falha em perceber qual o melhor curso

de accedilatildeo a tomar diante de determinada situaccedilatildeo estaacute relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional

porque eacute esta que iraacute possibilitar ao indiviacuteduo ter uma boa perspectiva moral

permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que eacute o melhor em cada circunstacircncia Pessoas

synonymously with the word for lsquovicersquo and so can serve as the contrary of lsquovirtuersquordquo ARISTOacuteTELES

Aristotlersquos nichomachean ethics tradRobert Bartlett e Susan D Collins ChicagoLondon Chicago

University Press 2011 p 307 66

ldquoThey cannot contribute to but only inhibit a virtuous or flourishing life While most passions deserve

praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (indashiii) these deserve blame

simply for being feltrdquo (trad livre) LEIGHTON S Op cit p 215 67

LEIGHTON SId ibid p 226

38

incapazes de sentir adequadamente indignaccedilatildeo ou compaixatildeo seratildeo inaacutebeis em prevenir

ou aliviar o sofrimento alheio assim como natildeo estaratildeo interessadas em reparar uma

injusticcedila68

Ademais registre-se que sem medo a pessoa natildeo tem como deliberar

adequadamente diante de um perigo (1383a5) E por uacuteltimo a depender da situaccedilatildeo

talvez seja necessaacuterio responder com muita indignaccedilatildeo ou muita raiva porque a

conjuntura pode demandar uma resposta eneacutergica de modo que o ideal de que as

emoccedilotildees sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)

natildeo estaacute condizente com tal abordagem69

De outra parte conveacutem tambeacutem compreender de que maneira este modelo eacute

extensiacutevel a outros domiacutenios pois ateacute entatildeo a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e

perversas esteve atrelada ao prisma eacutetico da vida comum Mas conforme adverte

Leighton eacute possiacutevel pensar a questatildeo da adequaccedilatildeo e da perversidade das emoccedilotildees na

poliacutetica na retoacuterica na trageacutedia e nos demais domiacutenios70

Por exemplo segundo Aristoacuteteles na trageacutedia o medo e a compaixatildeo satildeo duas

emoccedilotildees-chaves e estrategicamente utilizadas para garantir o efeito cataacutertico sobre o

puacuteblico (1452a3-12) que eacute levado a se surpreender e se horrorizar com o destino do

personagem Neste acircmbito a adequaccedilatildeo de tais emoccedilotildees assim como de outras que

porventura emergirem (amor oacutedio etc) natildeo satildeo orientadas pelos criteacuterios eacuteticos da vida

comum mas pela forma poeacutetica O medo que se destina agrave catarse na trageacutedia exerce

outra funccedilatildeo na eacutetica da vida ordinaacuteria relacionando-se com a virtude da coragem Por

sua vez as emoccedilotildees adequadas agrave comeacutedia deveratildeo ser outras71

Assim como conciliar a inadequaccedilatildeo de uma emoccedilatildeo na vida ordinaacuteria e sua

adequaccedilatildeo em outro domiacutenio (trageacutedia comeacutedia poliacutetica retoacuterica etc) Leighton

oferece duas respostas

Primeiramente ele lembra que Aristoacuteteles provavelmente confiante no poder do

haacutebito de que a sua teoria moral eacute devota eacute um filoacutesofo bem mais otimista do que

Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave corrupccedilatildeo moral Por exemplo para o Estagirita uma pessoa

pode aproveitar dos prazeres de uma comeacutedia sem que o seu caraacuteter moral seja

68

STRIKER Gisela Emotions in context aristotlersquos treatment of the passions in the rhetoric and his

moral psychology In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos

Angeles California University Press 1996 p 298 69

RAPP COp cit 2008 p 66 70

LEIGHTON S Op cit p 226 71

Id ibid p 227

39

destruiacutedo porque ela jaacute eacute possuidora de uma disposiccedilatildeo fixa permanente Esta primeira

hipoacutetese enfatiza o impacto psicoloacutegico das emoccedilotildees sobre o puacuteblico72

Na segunda hipoacutetese a explicaccedilatildeo enfatiza a proacutepria ideia de domiacutenio ldquoas

circunstacircncias da vida mundana natildeo satildeo as mesmas da trageacutedia da comeacutedia da retoacuterica

e vice-versa a sua localizaccedilatildeo difere dentro do sistema teleoloacutegico aristoteacutelicordquo73

Assim eacute plenamente possiacutevel no pensamento aristoteacutelico algo ser inadequado numa

circunstacircncia e adequada em outra natildeo haacute uma pretensatildeo prima facie de que se algo eacute

inadequado num determinado domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro

Portanto a adequaccedilatildeoinadequaccedilatildeo estaacute relacionada com os fins e a forma de um

especiacutefico domiacutenio sendo que os criteacuterios de adequaccedilatildeo em cada acircmbito natildeo estatildeo em

competiccedilatildeo Conveacutem registrar poreacutem que pensar na pluralidade de domiacutenios e sua

respectiva independecircncia em termos de adequaccedilatildeo natildeo significa que eles sejam

completamente autocircnomos e desconectados pois em verdade todos os domiacutenios estatildeo

subordinados agrave teleologia aristoteacutelica do bem74

Assim Leighton afirma que uma explicaccedilatildeo baseada no domiacutenio prefere a uma

psicoloacutegica por trecircs motivos 1) explica por que Aristoacuteteles oferece diferentes criteacuterios

de adequaccedilatildeo para domiacutenios distintos 2) natildeo necessita recorrer agrave ideia de que se algo eacute

inadequado em um domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro 3) possibilita

que faccedila sentido a ideia aristoteacutelica de que a adequaccedilatildeo de determinadas atividades varia

de acordo com o domiacutenio Por outro lado uma explanaccedilatildeo psicoloacutegica falha por

tambeacutem trecircs motivos 1) embora seja coerente com a noccedilatildeo de haacutebito natildeo explica a

diferenccedila entre domiacutenios 2) natildeo deixa de carregar uma censura moral consigo 3) natildeo

compreende a visatildeo aristoteacutelica de adequaccedilatildeo emotiva por domiacutenios distintos75

De fato a explicaccedilatildeo por domiacutenios oferece uma boa compreensatildeo do tema em

relaccedilatildeo agravequelas emoccedilotildees enquadraacuteveis no grupo das adequadasinadequadas de acordo

com as circunstacircncias Poreacutem o que dizer das emoccedilotildees vis em si mesmas perversas A

inveja por exemplo pode eventualmente ser adequada por domiacutenio (poliacutetica retoacuterica

etc)

Leighton afirma que a rigor uma emoccedilatildeo perversa natildeo pode ser adequada em

nenhuma circunstacircncia nem em nenhum domiacutenio considerando todas as caracteriacutesticas

72

Id ibid p 230 73

ldquoThe circumstances of mundane life are not those of tragedy comedy rhetoric and vice versa their

placement within Aristotlersquos teleological framework differsrdquo (trad livre) Id ibid p 231 74

Id ibid p 231-232 75

Id ibid p 231

40

jaacute relacionadas a respeito de tais emoccedilotildees Poreacutem ele simplesmente natildeo consegue

explicar por que Aristoacuteteles endossa o uso das emoccedilotildees perversas na retoacuterica ldquonoacutes

entendemos melhor aquilo e por que os poetas estavam errados em atribuir a inveja agrave

natureza divina mas permanecemos desconcertados por que Aristoacuteteles nos prepara

para utilizar a inveja na retoacutericardquo76

Para tentar solucionar esse verdadeiro enigma de que tratamos no toacutepico

anterior e que agora novamente retorna Leighton deveria tambeacutem ter enfrentado o

problema da compatibilidade do pensamento aristoteacutelico nos Livros I e II da Retoacuterica

Conforme dissemos anteriormente a criacutetica inicial de Aristoacuteteles ao uso das emoccedilotildees no

Capiacutetulo I do Livro I eacute conflitante com o posicionamento oferecido no Livro II e por

isso sem pressupor alguma mudanccedila de entendimento no pensamento do Estagirita fica

difiacutecil uma boa explicaccedilatildeo

Ainda assim eacute razoaacutevel supor que Aristoacuteteles tenha permanecido criacutetico em

relaccedilatildeo a um uso retoacuterico das emoccedilotildees que conduzisse ao desvirtuamento do problema

enfrentado Poreacutem no Livro II da Retoacuterica ele prepara o orador para utilizar todas as

emoccedilotildees inclusive aquelas condenaacuteveis na eacutetica da vida comum De certa forma tendo

em vista os propoacutesitos da retoacuterica e considerando que a arena puacuteblica por vezes nos

reserva situaccedilotildees inesperadas e certamente desagradaacuteveis eacute mais desejaacutevel estar

preparado para usar todas as emoccedilotildees sem censuraacute-las previamente em si mesmas

Talvez sob esta perspectiva seja justificaacutevel a quebra de coerecircncia

Por fim como fechamento desta investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio registrar que a eacutetica

aristoteacutelica consegue ateacute hoje manter a sua atualidade pelo modo como integrou as

emoccedilotildees dentro de seu modelo de vida virtuosa Com exceccedilatildeo das emoccedilotildees perversas o

indiviacuteduo virtuoso aristoteacutelico sente as emoccedilotildees que todos noacutes sentimos na vida comum

embora ele tenha adquirido um grande diferencial sua resposta emocional eacute excelente

isto eacute ele sente medo raiva indignaccedilatildeo compaixatildeo amor mas numa intensidade

adequada agrave situaccedilatildeo experenciada

14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica

Apoacutes analisar as emoccedilotildees primeiramente na retoacuterica e depois na eacutetica

aristoteacutelica passa-se agora a investigaacute-las no acircmbito da teoria estoica Se em relaccedilatildeo agrave

76

ldquoWe understand better that and why the poets were wrong to attribute envy to the divine nature but

remain puzzled why Aristotle prepares us to deploy envy in rhetoricrdquo (trad livre) Id ibid p 235

41

obra do Estagirita percorremos o referido trajeto agora teremos que comeccedilar o estudo

pela eacutetica estoica para depois chegarmos agrave retoacuterica O motivo para a alteraccedilatildeo de

percurso reside no fato de que sabemos bem mais detalhes da eacutetica do que da retoacuterica

estoica Ademais registre-se que nada sobrou dos textos de Zenatildeo de Ciacutecio (334-262

aC) Cleanto de Assos (331- aC) e Crisipo de Soles (280-204 aC) os fundadores do

estoicismo

Embora o estoicismo tenha sido praticado por um longo periacuteodo que abrange

cinco seacuteculos foi a partir do seu decliacutenio no seacuteculo III dC que as suas obras

inaugurais deixaram de ser preservadas Hoje em dia o estudo dos fundadores da escola

se baseia exclusivamente em fontes indiretas de autores tardios e sobretudo por meio

de comentaacuterios de seus adversaacuterios77

Crisipo embora natildeo tenha iniciado a escola estoica foi o seu mais importante

pensador sendo que muito do que hoje imputamos genericamente ao estoicismo eacute na

verdade o seu pensamento Dos seus mais de 705 (setecentos) livros escritos que

incluem um tratado exclusivamente sobre retoacuterica e outro sobre as emoccedilotildees soacute restam

fragmentos ou comentaacuterios Credita-se sobretudo a ele o enorme desenvolvimento da

loacutegica estoica considerada uma verdadeira preciosidade pelos especialistas Brennan eacute

incisivo ao dizer que ldquoentre os antigos apenas Platatildeo e Aristoacuteteles o ultrapassam como

filoacutesofordquo78

Com efeito considerado o extenso periacuteodo de tempo abrangido eacute de se esperar

que o desenvolvimento da escola estoica tenha passado por fases distintas de modo que

a histoacuteria do estoicismo eacute tradicionalmente dividida em trecircs momentos (i) fase inicial

periacuteodo no qual estaacute inserida a figura de Crisipo e que vai da fundaccedilatildeo da escola por

Zenatildeo em torno do seacuteculo III aC ateacute o fim do seacuteculo II dC (ii) fase intermediaacuteria que

coincide com a era de Paneacutecio e Posidocircnio (iii) fase do estoicismo romano coincide

com o periacuteodo imperial romano e os autores principais satildeo Secircneca Epicteto e Marco

Aureacutelio79

A nossa abordagem poreacutem natildeo se interessaraacute em investigar o desenvolvimento

do tema a ser estudado desde os fundadores do estoicismo ateacute os seus autores tardios

77

TIELEMAN T Op cit p 1 CHAUIacute Marilena Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia as escolas

heleniacutesticas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 p 118 78

ldquoAmong the ancients only Plato and Aristotle surpass him as philosophersrdquo (trad livre) BRENNAN

Tad The stoic life emotions duties amp fate Oxford Clarendon Press p11 SEDLEY David The school

from zeno to arius didymus In INWOOD Brad (ed) The Cambridge companion to the stoics

Cambridge Cambridge University Press p 17 LAEacuteRCIO Dioacutegenes Lives of eminent philosophers

trad R D Ricks London William Heineman 1925 p 317 79

SEDLEY D Op cit p 7

42

(fase do estoicismo romano) nem explanar eventuais discordacircncia entre eles Ao inveacutes

disso revela-se suficiente empreender um estudo que possibilite a compreensatildeo

tradicional das emoccedilotildees no campo da eacutetica possibilitando visualizar os eventuais

reflexos sobre a retoacuterica estoica

Ainda assim a delimitaccedilatildeo da abordagem natildeo deixa de ser desafiadora dado o

impressionante grau de sistematicidade da teoria estoica Atento a isso Ciacutecero diz que eacute

difiacutecil tirar um uacutenico elemento da teoria estoica sem prejudicar todo o resto do sistema

a que ele compara a um edifiacutecio

Certamente nenhuma obra da natureza (embora nada seja mais

finamente disposto do que a natureza) ou produto fabricado revela

tamanha organizaccedilatildeo tamanha estrutura firmemente soldada

Conclusatildeo segue infalivelmente da premissa posterior

desenvolvimento da ideia inicial Vocecirc pode imaginar outro sistema

em que a remoccedilatildeo de uma uacutenica letra como uma peccedila de encaixe

faria com que todo o edifiacutecio viesse a baixo80

Desse modo a fim de iniciar a nossa explanaccedilatildeo conveacutem registrar

primeiramente que para os estoicos a virtude eacute a uacutenica coisa boa que existe e o viacutecio

que eacute o seu contraacuterio a uacutenica coisa maacute Excluindo as virtudes e os viacutecios todo o resto

estaacute incluiacutedo na categoria dos indiferentes Assim sauacutede beleza forccedila riqueza

reputaccedilatildeo nascimento nobre satildeo considerados indiferentes assim como os seus

opostos doenccedila pobreza feiura etc ldquoos estoicos jamais diriam que a riqueza algumas

vezes eacute boa ou que em algumas vezes participa do bem ou que eacute boa se usada

corretamenterdquo81

Isso porque para eles a riqueza eacute algo invariavelmente classificado

como indiferente Ademais anote-se que a posse de tais indiferentes que satildeo

considerados bens externos natildeo eacute necessaacuterio para o indiviacuteduo ser feliz

Dentro da categoria dos indiferentes nem todos estatildeo no mesmo patamar

porque alguns estatildeo em conformidade com a natureza outros contraacuterios agrave natureza e

outros nem um nem outro Sauacutede e beleza por exemplo satildeo indiferentes que estatildeo em

conformidade com a natureza e por isso satildeo valorados positivamente Diante da

possibilidade devemos selecionar os indiferentes em conformidade com a natureza e

80

ldquoSurely no work of nature (though nothing is more finely arranged than nature) or manufactured

product can reveal such organization such a firmly welded structure Conclusion unfailingly follows

from premise later development from initial idea Can you imagine any other system where the removal

of a single letter like an inter-locking piece would cause the whole edifice to come tumbling downrdquo

(trad livre) CICERO On Moral ends trad WOOLF Raphael Cambridge Cambridge University

Press 2004(III74) p 88 81

BRENNAN T Op cit p 120

43

natildeo selecionar os indiferentes contraacuterios agrave natureza que satildeo desvalorados Por sua vez

dentre os indiferentes em conformidade com a natureza alguns possuem mais valor do

que outros e logo satildeo considerados preferiacuteveis A mesma ideia eacute extensiacutevel aos

indiferentes contraacuterios agrave natureza alguns possuem mais desvalor do que outros e dessa

forma satildeo menos preferiacuteveis

Um primeiro problema em relaccedilatildeo aos indiferentes diz respeito agrave sua

incontrolabilidade uma vez que satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna e por isso agrave

contingecircncia82

Outro problema consiste na possibilidade de tanto causarem benefiacutecio

quanto prejuiacutezo Riqueza e sauacutede por exemplo natildeo satildeo bons em si mesmos porque

podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal e tudo aquilo que ostenta tal

possibilidade natildeo eacute bom Eacute melhor por exemplo natildeo ter sauacutede caso ela seja o

instrumento que possibilite a praacutetica de atos vis conforme explana Graver

Nem mesmo a sauacutede eacute beneacutefica o tempo todo Se um ditador violento

pretende recrutar vocecirc para se tornar parte de um esquadratildeo da morte

entatildeo eacute preferiacutevel natildeo estar fisicamente apto (Secircneca que teve

alguma experiecircncia com ditadores recomenda suiciacutedio em tais casos)

Por esta razatildeo os estoicos argumentam que nem sauacutede nem riqueza

nem qualquer outro objeto externo eacute verdadeiramente beneacutefico em

tudo e tambeacutem os seus opostos natildeo satildeo totalmente prejudiciais O

verdadeiro valor natildeo aparece e desaparece com a ocasiatildeo83

Tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que virtude e felicidade e por outro lado viacutecio e

infelicidade coincidem na eacutetica estoica sendo que a virtude eacute identificada como um

estado de caraacuteter consistente que deve ser escolhida por si mesma e natildeo por outro

objeto externo84

Plutarco destaca que em uacuteltima instacircncia eacute a razatildeo que possibilita a

aquisiccedilatildeo de tal caraacuteter ldquo[] todos esses homens concordam em considerar a virtude

como um certo caraacuteter e poder da faculdade-comandante da alma engendrada pela

razatildeo ou melhor um caraacuteter que eacute em si mesmo consistente firme e de razatildeo

imutaacutevel[]rdquo85

A palavra ldquohomologiardquo traduzida por ldquoconsistecircnciardquo apreende bem a

82

Id ibid p 122 83

ldquoNot even health is beneficial all the time If a brutal dictator is seeking to conscript you to become part

of a death squad then it is preferable not to be physically fit (Seneca who had some experience of

dictators recommends suicide in such instances) For this reason the Stoics argue neither health nor

wealth nor any other external object is truly beneficial at all and neither are their opposites harmful

Genuine value does not come and go with the occasionrdquo GRAVER Margaret R Stoicism and emotion

ChicagoLondon The University of Chicago Press 2007 p 49 84

LAEacuteRCIO Diogenes 789 (SVF 339) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers translations of the principal sources vol 1 Cambridge Cambridge University Press 1987

p 377 85

ldquo[hellip]All these men agree in taking virtue to be a certain character and power of the souls commanding-

faculty engendered by reason or rather a character which is itself consistent firm and unchangeable

44

essecircncia desse modelo de eacutetica pois homo-logia significa tambeacutem ldquoharmonia com a

razatildeordquo demonstrando que a virtude eacute uma consistecircncia racional86

Os estoicos advogam a tese da unidade da virtude pois quem possui uma possui

todas as virtudes87

Quem age de acordo com uma age de acordo com todas A perfeiccedilatildeo

eacute apenas atingida quando o homem possui todas as virtudes e as suas accedilotildees satildeo

praticadas de acordo com todas elas88

Ademais ter uma vida feliz significa viver em conformidade com a natureza

que implica ao mesmo tempo viver de acordo com a virtude Neste particular natureza

significa a do proacuteprio homem e de tudo que o circunda (o todo) sendo que em ambas

permeia a reta razatildeo89

A razatildeo eacute aquilo que haacute de melhor e mais peculiar aos seres

humanos Quando correta e perfeita eacute a soma total da felicidade humana90

Um ponto central na eacutetica estoica reside na construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio

O saacutebio estoico eacute o modelo do indiviacuteduo virtuoso e autossuficiente faz tudo de modo

correto consistente e seacuterio natildeo faz nada de que poderia se arrepender nem nada contra

a sua vontade natildeo eacute assustado por nada ainda que aconteccedila algo inesperado e estranho

ele vive consistentemente conforme agrave natureza e por isso estaacute sempre feliz ldquoeacute uma

faacutecil conclusatildeo para os estoicos uma vez que perceberam que o bem final eacute uma

conformidade com a natureza e viver consistentemente com a natureza o que eacute natildeo

apenas a funccedilatildeo proacutepria do homem saacutebio mas tambeacutem estaacute em seu poderrdquo91

Poreacutem para compreender as emoccedilotildees e entender melhor as caracteriacutesticas

atribuiacutedas ao saacutebio eacute preciso esclarecer alguns aspectos da psicologia estoica

especialmente os conceitos de assentimento de impressatildeo e de impulso

Ordinariamente assentir significa concordar com aderir a algo conceder

aprovaccedilatildeo No entanto na escola estoica assentir eacute um termo teacutecnico e portanto

desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica em sua sistemaacutetica filosoacutefica Assim de acordo com

reason[hellip]rdquo Cf PLUTARCO On moral virtue 44OE-441D In LONG A A SEDLEY D N The

Hellenistic philosophers p 378 86

Id ibid p 383 87

STOBAEUS 2636-24 (SVF 3280 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 379 88

PLUTARCO On Stoic self-contradictions 1046E-F (SVF 3299 243) In LONG A A SEDLEY D

N The Hellenistic philosophers p 379 89

LAEacuteRCIO Dioacutegenes 787-9 In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers p

395 90

SENECA Letters 769-10 (SVF 3200a) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 395 91

ldquoIt is an easy conclusion for the Stoics since they have perceived the final good to be agreement with

nature and living consistendy with nature which is not only the wise mans proper function but also in

his powerrdquo (trad livre) Cicero Tusculan disputations 581-2 In LONG A A SEDLEY D N The

Hellenistic philosophers p 398

45

os estoicos o objeto de assentimento eacute sempre uma impressatildeo que eacute a traduccedilatildeo do

termo grego phantasia Plutarco nos diz que uma impressatildeo eacute uma marca na alma92

sendo que Crisipo registra que eacute uma afecccedilatildeo ocorrida na alma93

quando atraveacutes da

visatildeo observamos um ramalhete de flores amarelas num vaso este objeto causa uma

modificaccedilatildeo na alma que eacute afetada provocando-nos a impressatildeo de que haacute um

ramalhete de flores amarela num vaso Assim o que eacute objeto de meu assentimento e

passa a ser a minha crenccedila eacute a impressatildeo de que existe um ramalhete de flores amarela

num vaso ldquoo ato de acreditar de assentir a uma impressatildeo eacute uma espeacutecie de aprovaccedilatildeo

agrave impressatildeo dizendo ldquosimrdquo a ela concordando que as coisas estejam certas que o

mundo realmente eacute como a impressatildeo retrata que sejardquo94

Como seria de se esperar o problema da impressatildeo e do assentimento diz

respeito agrave questatildeo do verdadeiro e do falso Se eu assentir a uma impressatildeo falsa terei

uma crenccedila falsa da realidade Por conseguinte o assentimento a uma impressatildeo

verdadeira iraacute originar uma crenccedila verdadeira sobre o mundo Poreacutem qual seria a este

respeito o criteacuterio que distinguiria o verdadeiro do falso

Nesse ponto entra em cena um tipo de impressatildeo que eacute o proacuteprio carro-chefe da

epistemologia estoica Chamada de phantasia kataleptike (impressatildeo cognitiva) ela

garante o conhecimento verdadeiro da realidade Eacute uma impressatildeo que apreende

precisamente o objeto tal qual ele eacute sem erros nem desvios conforme resume Sexto

Empiacuterico

A impressatildeo cognitiva eacute aquela que surge a partir do que eacute e eacute

marcada e impressa exatamente de acordo com o que eacute de tal modo

que natildeo poderia surgir a partir do que natildeo eacute Uma vez que eles [os

estoicos] sustentam que essa impressatildeo eacute capaz de apreender os

objetos com precisatildeo e eacute marcada com todas as suas peculiaridades de

forma artesanal eles dizem que tal impressatildeo tem cada um destes

fatores como atributo95

92

PLUTARCO On common conceptions 1084F-1085A (SVF 2847) In LONG A A SEDLEY D

N The Hellenistic philosophers p 238 93

AETIUS 4121-5 (SVF 254 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 237 94

ldquoThe act of believing of assenting to the impression is a kind of endorsement of the impression saying

lsquoyesrsquo to it agreeing that it gets things right that the world really is as the impression depicts it to berdquo

(trad livre) BRENNAN TOp cit p 59 95

ldquo(3) A cognitive impression is one which arises from what is and is stamped and impressed exactly in

accordance which what is of such a kind as could not arise from what is not Since they [the Stoics] hold

that this impression is capable of precisely grasping objects and is stamped with all their peculiarities in a

craftsmanlike way they say that it has each one of these as an attributerdquo EMPIRICUS Sextus Against

the professors 7247-52 (SVF 265) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers

p 243

46

Portanto enquanto muitas impressotildees satildeo falsas porque surgem a partir do que

natildeo eacute a impressatildeo cognitiva eacute veraz pois apenas surge a partir do que eacute De outra parte

ainda que surjam a partir do que eacute muitas impressotildees representam com falha o seu

objeto o que natildeo acontece com a impressatildeo cognitiva uma vez que o seu objeto

impressor eacute representado com exatidatildeo Assim phantasia kataleptike eacute gerada a partir

do que eacute e em perfeita correspondecircncia com o que eacute ldquopara ser kataleptic a impressatildeo

precisa ser acompanhada de um tipo de garantia se vocecirc estaacute experimentando esta

impressatildeo entatildeo as coisas satildeo realmente como a impressatildeo diz que elas satildeordquo96

E isso

soacute eacute possiacutevel porque para viver em conformidade com a natureza noacutes seres dotados de

razatildeo somos equipados pela proacutepria natureza com o instrumental necessaacuterio para

realizar distinccedilotildees precisas sobre as coisas97

Todavia eacute fundamental compreender que nem todo assentimento agraves impressotildees

eacute igual Um assentimento eacute considerado forte quando eacute insuscetiacutevel de ser alterado por

meio de questionamento racional Por sua vez a caracteriacutestica do assentimento fraco

reside na sua reversibilidade Essas diferenciaccedilotildees satildeo importantes para entender que

para os estoicos o conhecimento soacute eacute possiacutevel quando simultaneamente existe um

assentimento forte a uma impressatildeo cognitiva A ausecircncia de quaisquer destas

condiccedilotildees conduz agrave formaccedilatildeo de uma mera opiniatildeo (doxa)98

Registre-se que conceder assentimentos fortes a impressotildees cognitivas eacute algo

apenas reservado ao saacutebio o qual nunca tem opiniotildees nem estaacute sujeito ao engano99

Somente o saacutebio vive uma vida plena de coerecircncia racional pois nunca erra jamais seu

conjunto de crenccedilas incorre em contradiccedilatildeo muito menos concede assentimento a algo

caso exista a miacutenima possibilidade de que este assentimento possa ser revertido100

Uma

das consequecircncias desse alto grau de exigecircncia epistecircmica consiste no fato de que as

pessoas ordinaacuterias isto eacute todos noacutes inclusive os fundadores da escola estoica natildeo

temos conhecimento a respeito de nada pois soacute assentimos de modo fraco e por isso

possuiacutemos tatildeo-soacute opiniatildeo sobre as coisas101

96

ldquoTo be kataleptic the impression has to come with a sort of guarantee if you are having this

impression then things are really as the impression says they arerdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit

p 68 97

LONG A A SEDLEY D Op cit p 250 98

BRENNAN T Op cit p 69-70 LONG A A SEDLEY D Op cit p 256-257 99

CICERO Academica 141-2 (SVF 160) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 254 100

STOBAEUS 2111 18-1128 (SVF 3-548) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophershellip p 256 101

BRENNAN T Op cit p 72-73

47

Por uacuteltimo o impulso (hormecirc) pertence a uma especial classe de assentimento e

pode ser compreendido como o antecedente mental que gera uma accedilatildeo voluntaacuteria Antes

que no mundo externo uma accedilatildeo voluntaacuteria seja praticada deve ocorrer mentalmente

um evento que entenda que aquela accedilatildeo eacute apropriada para o caso Este evento eacute um

assentimento a uma impressatildeo ldquoimpulsoacuteriardquo102

Quando vejo um ramalhete de flores

amarelas numa loja e tenho a crenccedila de que ldquoseraacute uma boa coisa compraacute-la para colocar

no vaso da minha salardquo eu assinto a uma impressatildeo e minha mente se dirige para

realizar a accedilatildeo potencial contida na proposiccedilatildeo avaliativa da minha impressatildeo Por sua

vez o impulso como todo assentimento pode ser um episoacutedio de conhecimento ou de

opiniatildeo e por isso ldquoo Saacutebio deve-se dizer conhece o que ele estaacute fazendo e

especialmente o valor do que ele estaacute fazendo enquanto os natildeo-saacutebios desconhecem

tanto um quanto o outrordquo103

Com efeito na posse destes conceitos torna-se agora possiacutevel explanar

compreensivelmente o motivo pelo qual os estoicos desejam se livrar de todas as

emoccedilotildees (apatheia)

Primeiramente do ponto de vista linguiacutestico eacute necessaacuterio registrar que os

estoicos se referem ao presente tema por meio da palavra grega pathos cuja traduccedilatildeo

varia Long-Sedley verteram o termo por paixatildeo uma expressatildeo que hoje em dia para

a grande maioria das pessoas estranhas agrave sua etimologia jaacute natildeo reteacutem aquela ideia de

passividade derivada de passio uma vez que no uso comum da liacutengua inglesa e da

portuguesa paixatildeo busca designar de modo mais saliente um sentimento arrebatador

muitas vezes de caraacuteter eroacutetico Esta traduccedilatildeo pode se mostrar bastante conveniente ao

reduzir a uma questatildeo etimoloacutegica a disputa teoacuterica entre peripateacuteticos (metriopatheia) e

estoicos (apatheia) Ciente disso Tieleman prefere o termo ldquoafecccedilatildeordquo que natildeo tem os

problemas da atual significaccedilatildeo da palavra paixatildeo e ainda tem a vantagem de respeitar

a ideia de passividade e de um outro importante significado da palavra pathos que eacute a de

doenccedila Segundo defende eacute neste uacuteltimo sentido que em importantes aspectos Crisipo

utiliza o termo104

Neste mesmo sentido Buddensiek tambeacutem prefere o termo

afecccedilatildeo105

Preferimos no entanto utilizar o termo emoccedilatildeo porque concordando com

102

GRAVER M Op cit p 26-27 BRENNAN T Op cit p 86-88 103

ldquoThe Sage we might say knows what he is doing and especially the value of what he is doing while

the non-Sage knows neitherrdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit p 103 104

TIELEMAN T Op cit p 15-16 105

BUDDENSIEK Friedmann Stoa und epikur affect als defekte oder als weltbezug In

LANDWEER Hilge RENZ Ursula (hrsg) Klassische Emotionstheorien Von Platon bis Wittgenstein

BerlinNew York Walter de Gruyter 2008 p 69-93

48

Graver noacutes designariacuteamos com esta palavra os exemplos em que os estoicos utilizam o

termo pathos106

Ademais considerando que este trabalho natildeo trata exclusivamente

sobre a filosofia estoica utilizar o termo emoccedilatildeo se adequa aos propoacutesitos de

harmonizaccedilatildeo linguiacutestica do estudo

Dito isso para os estoicos as emoccedilotildees satildeo consideradas um ldquoimpulso que eacute

excessivo e desobediente aos ditados da razatildeo ou um movimento da alma que eacute

irracional e contraacuterio agrave naturezardquo107

Desta definiccedilatildeo muito se pode extrair

primeiramente as emoccedilotildees satildeo enquadradas como um impulso mas um impulso

qualificado de extravagante e por isso transborda os limites que a razatildeo prescreve

Num segundo momento diz-se que eacute o proacuteprio movimento irracional da alma que eacute

contraacuterio agrave natureza Em suma a referida conceituaccedilatildeo em poucas palavras demonstra

o quanto as emoccedilotildees estatildeo numa posiccedilatildeo antagocircnica aos fins da filosofia eacutetica estoica

porque elas contrariam tudo o que haacute de mais caro nesta escola de pensamento as

emoccedilotildees satildeo excessivas contraacuterias agrave natureza irracionais e desobedientes aos

comandos do logos

Uma singularidade do pensamento estoico que tambeacutem ajuda a compreender

esse posicionamento diz respeito agrave sua concepccedilatildeo de alma Conforme visto

anteriormente Aristoacuteteles concebe a alma dividida numa parte racional e numa parte

natildeo-racional sendo que uma porccedilatildeo desta uacuteltima tem a particularidade de ouvir e

obedecer a razatildeo Assim porque a virtude (excelecircncia) do todo depende da virtude

(excelecircncia) das partes o bom funcionamento da parte natildeo-racional eacute imprescindiacutevel na

eacutetica aristoteacutelica e por isso as emoccedilotildees tem um espaccedilo tatildeo importante e satildeo encaradas

de maneira positiva Ter uma boa disposiccedilatildeo emocional significa ser devidamente

afetado pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias e isso contribui decisivamente

para a aquisiccedilatildeo de uma vida feliz

Eacute bem verdade que as emoccedilotildees tambeacutem tecircm um espaccedilo muito importante na

filosofia estoica mas eacute difiacutecil afirmar que satildeo encaradas de maneira positiva a alma

estoica natildeo eacute dividida em partes nem haacute porccedilatildeo irracional pois ela eacute pura razatildeo Diz-se

entatildeo que ela eacute monoliacutetica sem possibilidade de haver conflito entre as partes ldquoos

estoicos tambeacutem afirmavam em oposiccedilatildeo aos platonistas e aos aristoteacutelicos que os

106

GRAVER M Op cit p 14-15 107

ldquoThey [the Stoics] say that passion is impulse which is excessive and disobedient to the dictates of

reason or a movement of soul which is irrational and contrary to naturerdquo (trad livre) STOBAEUS

2888-906 (SVF 3378 389 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers

p 410

49

homens satildeo racionais no sentido de que satildeo apenas racionaisrdquo108

Dessa forma as

emoccedilotildees tambeacutem se encontram em contrariedade agrave concepccedilatildeo de alma defendida pelos

fundadores estoicos

Os estoicos agrupam as emoccedilotildees em quatro grandes gecircneros dentro dos quais se

acomodam emoccedilotildees especiacuteficas

Desejo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja boa de modo que

devemos persegui-la

Medo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja ruim de modo que

devemos evitaacute-la

Prazer eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute boa de modo que

devemos ficar contentes com isso

Dor eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim de modo que

devemos ficar abatidos com isso109

Em primeiro lugar observa-se que a divisatildeo das emoccedilotildees eacute feita por criteacuterio

temporal e por criteacuterio valorativo o desejo (epithumia) e o medo (phobos) satildeo

direcionados a algo futuro enquanto o prazer (hedone) e a dor (lupe) concernem a algo

que transcorre no momento presente Por sua vez o desejo e o prazer atribuem a um

objeto um valor positivo (bom) enquanto o medo e a dor imputam a algo um valor

negativo (ruim) Em todos os casos estamos diante de uma opiniatildeo isto eacute um

assentimento fraco (reversiacutevel) a uma impressatildeo

Exemplificativamente dentro do gecircnero ldquodesejordquo enquadram-se as seguintes

emoccedilotildees em espeacutecie raiva rancor exasperaccedilatildeo amor eroacutetico saudade acircnsia No

gecircnero ldquomedordquo relutacircncia receio consternaccedilatildeo vergonha supersticcedilatildeo pavor pacircnico

No gecircnero ldquodorrdquo inveja rivalidade ciuacuteme compaixatildeo luto ansiedade preocupaccedilatildeo

anguacutestia tristeza agonia No gecircnero ldquoprazerrdquo schadenfreude encantamento etc110

Ora em vista das definiccedilotildees expostas para os estoicos as emoccedilotildees satildeo impulsos

(os antecedentes mentais da accedilatildeo) e natildeo passam de opiniatildeo isto eacute assentimento ao

falso assentimento fraco (aquele que natildeo sobrevive a questionamento racional) Assim

quem atua guiado pelas emoccedilotildees age mal porque estaraacute sempre incidindo em episoacutedios

108

ldquoThe Stoics also claimed in opposition to Platonists and Aristotelians that humans are rational in the

sense that they are only rationalrdquo (trad livre) BRENNAN Tad The old stoic theory of emotions In

SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy

Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 23 BUDDENSIEK F Op cit p 72-73 109

ldquoDesire is the opinion that some future thing is a good of such a sort that we should reach out for it

Fear is the opinion that some future thing is an evil of such a sort that we should avoid it Pleasure is the

opinion that some present thing is a good of such a sort that we should be elated about it Pain is the

opinion that some present thing is an evil of such a sort that we should be depressed about itrdquo (trad

livre) BRENNAN T Op cit 2005 p 93 110

CICERO Tusculan disputations trad Margaret Graver ChicagoLondon The University of Chicago

Press 2002 (416) p 45

50

de engano em relaccedilatildeo ao mundo arrependendo-se posteriormente do que fez Mas por

que isso ocorre

Segundo Crisipo emoccedilotildees satildeo sobretudo avaliaccedilotildees111

e por assim serem

atribuem um determinado valor a algo quando algueacutem deseja fama beleza riqueza

amor eroacutetico julga que estas coisas satildeo boas e necessaacuterias agrave sua felicidade e age em

direccedilatildeo agrave sua conquista Poreacutem ao assim proceder natildeo faz mais do que contrariar toda

eacutetica estoica porque tudo isso satildeo apenas indiferentes a uacutenica coisa boa eacute a virtude No

medo avaliamos equivocadamente a realidade entendendo que algo eacute ruim quando na

verdade o uacutenico mal eacute o viacutecio E ainda que algueacutem avalie algo adequadamente

atribuindo o valor a algo que verdadeiramente lhe corresponda as emoccedilotildees continuam

sendo irracionais porque o assentimento concedido eacute fraco e por isso vacilante

possibilitando que entremos em contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves nossas crenccedilas e condutas112

Enfim as emoccedilotildees satildeo inconsistentes e quem age impulsionado por elas eacute incapaz de

perceber as coisas como satildeo porque se encontra num estado de cegueira conforme

resume Crisipo

A raiva [orgecirc] eacute cega frequentemente impede que vejamos coisas que

satildeo oacutebvias e frequentemente se coloca no caminho de coisas que [jaacute]

estatildeo sendo compreendidasporque as emoccedilotildees tatildeo logo comecem a

atuar expulsam o raciociacutenio e as evidecircncias em contraacuterio e nos

empurram violentamente em direccedilatildeo a accedilotildees contraacuterias agrave razatildeo113

Essa explanaccedilatildeo nos leva a indagar o que efetivamente sentiria o saacutebio estoico

porque todas as emoccedilotildees acima definidas estatildeo em total contrariedade com as

caracteriacutesticas de sua figura Assim para natildeo tornaacute-lo um ser apaacutetico e insensiacutevel foi

construiacutedo um conjunto de sentimentos compatiacutevel com as qualidades do saacutebio A esta

ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees deu-se o nome de eupatheiai (eupatheia no singular)

que pode ser traduzido por ldquoboas emoccedilotildeesrdquo ou ldquosentimentos apropriadosrdquo mas que

Ciacutecero preferiu utilizar o termo ldquoconsistecircnciardquo (constatiae) Graver registra que isso

tanto pode ser uma traduccedilatildeo criativa do autor romano quanto uma terminologia

alternativa perdida do grego De toda forma consistecircncia acaba por descrever as

propriedades destes sentimentos do saacutebio que satildeo experimentados de forma racional

111

LAEacuteRCIO D Op cit (VII111) p 217 112

BRENNAN T Op cit 2005 p 96 113

ldquoAnger [orgecirc] is blind it often prevents our seeing things that are obvious and it often gets in the way

of things which are ltalreadygt being comprehended For the passions once they have started drive out

reasoning and contrary evidence and push forward violently towards actions contrary to reasonrdquo (trad

livre) PLUTARCO De virtute morali 10 (Mor 450c) apud HARRIS William V Restraining rage the

ideology of anger control in classical antiquity CambridgeMassachusetts Harvard University Press

2001 p 370

51

com prudecircncia sem engano em relaccedilatildeo agrave realidade e que atribuem os predicados de

bom e ruim agraves uacutenicas coisas que satildeo de fato boas e ruins (virtudes e viacutecios)

Assim o saacutebio natildeo sente medo mas cautela que eacute o conhecimento de um mal

futuro de modo a evitaacute-lo Natildeo haacute prazer no saacutebio mas alegria que eacute o conhecimento de

que alguma coisa presente eacute boa de sorte que se deve ficar contente com isso Ele natildeo

experimenta desejo mas vontade ou voliccedilatildeo (boulesis) que eacute o conhecimento de que

alguma coisa futura eacute boa de modo que se deve buscaacute-la114

Quanto agraves emoccedilotildees em

espeacutecie sobreviveram poucos exemplos a reverecircncia e a modeacutestia subordinam-se agrave

cautela Na alegria encontram-se o enlevo o contentamento e a equanimidade e por

fim na vontade benevolecircncia respeito amizade e afetuosidade Todavia em relaccedilatildeo agrave

dor (opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim) percebe-se que natildeo existe nenhum

eupatheia correspondente e a justificativa para isso reside no fato de que como a uacutenica

coisa ruim eacute o viacutecio e o saacutebio se livrou de todos os viacutecios ele simplesmente natildeo sente

que alguma ruim se passa com ele Assim diante da humilhaccedilatildeo da miseacuteria da fome

da doenccedila o saacutebio natildeo eacute tomado por emoccedilotildees dolorosas muito menos se torna um

sujeito infeliz porque ele adquiriu a autossuficiecircncia e sabe que tudo isso natildeo passa de

indiferentes

Frise-se que todos esses sentimentos estatildeo de acordo com a natureza e desde

que o saacutebio eacute o uacutenico que assente de modo forte a impressotildees cognitivas nunca se

arrepende posteriormente ao agir guiado por eupatheiai Ainda que algo

ordinariamente assustador se passe a exemplo de um suacutebito barulho amedrontador a

alma do saacutebio apenas se contrai leve e rapidamente por efeito de um movimento

involuntaacuterio mas muito logo percebe que nada tem para assentir nestas impressotildees e

por isso nenhum medo lhe transcorre porque ele natildeo experimenta as emoccedilotildees do

homem inferior

Assim tendo sido exposta a doutrina estoica das emoccedilotildees e percebido que o

saacutebio estoico atinge um estado que ao se livrar de toda pathecirc libertou-se do falso e

passou a atribuir valor agrave uacutenica coisa que realmente merece ser estimada (a virtude)

parte-se agora para compreender em que medida esse posicionamento influencia a

retoacuterica estoica considerando que as emoccedilotildees tradicionalmente participavam de

maneira bastante marcante da praacutetica do orador

114

BRENNAN T Op cit 2005 p 98 CIacuteCERO Op cit 2002 (412-14) p 44 GRAVER M Op

cit 2007 p 51-53 LAEacuteRCIO D Op cit VII114-117 p 221

52

Em anaacutelise da obra aristoteacutelica observou-se que embora inicialmente criacutetico de

uma retoacuterica exclusivamente centrada nas emoccedilotildees e que desviasse do assunto objeto de

controveacutersia o Estagirita muda de entendimento e faz uma explanaccedilatildeo detalhada das

emoccedilotildees e prepara satisfatoriamente o orador para utilizaacute-las em sua praxis Por sua

vez nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco as emoccedilotildees atuam destacadamente na

construccedilatildeo de uma vida virtuosa e sem elas eacute impossiacutevel tomar boas decisotildees na vida

comum Embora seja aceitaacutevel distinguir entre emoccedilotildees adequadas e inadequadas de

acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas tal classificaccedilatildeo natildeo invade o campo

da retoacuterica aristoteacutelica que se constitui num domiacutenio proacuteprio jaacute que o orador eacute

instruiacutedo para utilizar no discurso inclusive as emoccedilotildees perversas

No que concerne agrave retoacuterica estoica e comparativamente agrave obra estudada de

Aristoacuteteles dispotildee-se nitidamente de bem menos material para consulta Laeacutercio

aponta que tanto Zenatildeo quanto Crisipo escreveram manuais de retoacuterica poreacutem nada foi

preservado115

Assim o que de fato temos satildeo comentaacuterios especialmente em relaccedilatildeo

ao desempenho de oradores estoicos romanos que ajudam a construir apenas em linhas

bem gerais o que teria sido a teoria retoacuterica defendida pelos estoicos116

Primeiramente por Laeacutercio sabe-se que a retoacuterica eacute definida pelos estoicos

como a ciecircncia de bem falar numa narrativa contiacutenua e a dialeacutetica como a ciecircncia de

falar corretamente por meio de perguntas e respostas sendo que ambas compotildeem a

parte loacutegica da exposiccedilatildeo filosoacutefica A dialeacutetica eacute considerada uma virtude e por isso o

saacutebio que possui todas as virtudes tambeacutem eacute um mestre na dialeacutetica que o permite

diferenciar o verdadeiro do falso a perceber o que eacute meramente plausiacutevel e ambiacuteguo de

modo a nunca cair em truques argumentativos117

Zenatildeo informa Ciacutecero utiliza uma metaacutefora para explicar a diferenccedila entre a

dialeacutetica e a retoacuterica a dialeacutetica seria representada com uma matildeo de punhos cerrados

uma vez que o seu estilo eacute compacto Por sua vez a retoacuterica atraveacutes da palma da matildeo

aberta dado o estilo expansivo do discurso dos oradores Ele defendia tambeacutem que a

retoacuterica natildeo era algo exclusivo para oradores mas tambeacutem pertence ao domiacutenio dos

115

LAEacuteRCIO D Op cit (VII 4-5) p 115 201-202 e 317 116

ATHERTON Catherine Hand over fist the failure of stoic rhetoric In Classical quarterly 38

1988 p 393 117

LAEacuteRCIO D Op cit p 42 e 47-48

53

filoacutesofos118

Sobre este ponto Ciacutecero interessantemente relata que o estoicismo eacute a

uacutenica escola que considera a retoacuterica uma virtude e uma sabedoria119

E se de fato eacute uma virtude entatildeo a retoacuterica estoica por igual estaacute sob os

cuidados do saacutebio e em assim sendo eacute de se esperar que ela apresente pelo menos

algumas peculiaridades A primeira delas jaacute se pode antever pela proacutepria definiccedilatildeo

apresentada anteriormente por Laeacutercio natildeo encontramos referecircncia a qualquer

finalidade persuasiva em sua conceituaccedilatildeo como encontramos em Platatildeo Aristoacuteteles e

outros autores de modo que o orador estoico natildeo discursa para convencer mas para

bem falar no sentido de falar corretamente

Ciacutecero eacute enfaacutetico ao detalhar uma seacuterie de dificuldades nesta retoacuterica O primeiro

problema diz respeito agrave transferecircncia do modelo da dialeacutetica para a retoacuterica Nesse

sentido Brutus assevera ldquo[] praticamente todos os adeptos da escola estoica satildeo

muito haacutebeis em argumentos precisos trabalham por regras e sistema e satildeo bons

arquitetos no uso das palavras mas ao levaacute-los da discussatildeo para a oratoacuteria percebe-se

o quatildeo satildeo pobres e sem recursosrdquo120

Concordando com a afirmaccedilatildeo Ciacutecero diz que na

verdade a atenccedilatildeo dos estoicos estaacute absorvida na dialeacutetica e por isso utilizam um estilo

que eacute muito compacto e discursivo para o emprego no foacuterum judiciaacuterio ou na

assembleia popular121

Tambeacutem eacute na dialeacutetica e natildeo na retoacuterica que se concentra o ensino sobre as cinco

virtudes de estilo hellenismus que consiste no uso de uma linguagem sem erro

gramatical e livre de vulgaridades clareza que eacute o uso de uma linguagem apresentada

de maneira inteligiacutevel concisatildeo ou brevidade que eacute o emprego de palavras natildeo mais do

que o estritamente necessaacuterio para apresentar um tema adequaccedilatildeo o uso de um estilo

de linguagem apropriado ao tema distinccedilatildeo que consiste em evitar o coloquialismo122

Ao utilizar todas essas recomendaccedilotildees no terreno da oratoacuteria Ciacutecero diz que isso resulta

num estilo sem fluecircncia sem vida magro compacto e insignificante ldquose algum homem

118

CICERO Op cit 2004 II17 p 32 119

CICERO On the orator book III trad H Rackham CambridgeMassachusetts Harvard University

Press 1942 (III 65) p66 120

ldquo[] pratically all adherents of the Stoic school are very able in precise argument they work by rule

and system and are fairly architects in the use of the words but transfer them from discussion to

oratorical presentation and they are found poor and unresourcefulrdquo (trad livre) CICERO Op cit

1962 (118) p 107 121

CICERO Op cit 1962 (119-120) p 107-108 122

LAEacuteRCIO D Op cit (VII-59) p 167-168 ATHERTON C Op cit p 396

54

aconselhar esse estilo seria apenas no sentido de que ele eacute inadequado para um

oradorrdquo123

Todavia eacute no campo das emoccedilotildees que a eacutetica estoica tem sua influecircncia decisiva

para a retoacuterica Uma vez que a figura normativa do saacutebio se livrou de toda pathe a

retoacuterica estoica natildeo faz uso de emoccedilotildees tradicionalmente tatildeo importantes para o orador

tais como o medo a compaixatildeo a ira ou a indignaccedilatildeo porque tudo isso satildeo impulsos

excessivos irracionais contraacuterios agrave natureza sendo errado corromper a cogniccedilatildeo dos

destinataacuterios do discurso por meio de tais artifiacutecios Assim ldquoo assentimento do puacuteblico

natildeo pode ser conquistado pelo apelo agrave compaixatildeo ou agrave admiraccedilatildeo ou despertando a sua

ira ou jogando com o seu esnobismo estupidez ou vulgaridaderdquo124

Eacute certo que o saacutebio

experimenta alguns bons sentimentos (eupatheiai) mas ainda que permitido o seu uso

no discurso o seu efeito praacutetico eacute nulo

Embora expressamente nomeada como ldquoretoacutericardquo pelos estoicos eacute difiacutecil

encaixar esse modelo discursivo dentro do quadro de referecircncias que entendemos por

retoacuterica isto eacute uma disciplina preocupada em fornecer os instrumentos necessaacuterios agrave

persuasatildeo pelo discurso Atherton nesse sentido chega agrave conclusatildeo de que ldquo[] natildeo

existe tal coisa como uma lsquoretoacuterica estoicarsquo e discuti-la natildeo eacute possiacutevel natildeo (a desculpa

usual) porque inexiste evidecircncia mas porque natildeo existe nada para falar a seu

respeitordquo125

Por isso ao comentar sobre os manuais de retoacuterica de Crisipo e de

Cleantes Ciacutecero diz que eles satildeo muito bons para quem quisesse ficar calado126

Todavia a despeito do evidente paradoxo de ensinar uma retoacuterica que natildeo tinha

o miacutenimo interesse em persuadir existia de fato uma retoacuterica estoica e ela era objeto

de ensino e de praacutetica E tanto era levada a seacuterio que existiam oradores romanos que se

guiavam por este meacutetodo Ciacutecero cita os nomes de Tuberius Fannius Rutilius e Cato

Dentre estes o uacutenico estoico que tinha perfeita eloquecircncia (summam eloquentiam) era

Cato mas a justificativa para isto eacute bem simples Cato aprendeu o que tinha de bom

para aprender com a filosofia estoica mas a retoacuterica mesmo ele estudou e praticou com

123

ldquoif any man commends this style it will only be with the qualification that it is unsuitable to an oratorrdquo

(trad livre) CICERO On the orator book II trad E W Sutton CambridgeMassachusetts Harvard

University Press 1942 (159) p 313 124

ldquoan audiencersquos assent cannot be secured by winning its pity or admiration or by arousing its anger or

by playing on its snobbery or stupidity or vulgarityrdquo (trad livre) ATHERTON C Op cit p 411

Nesse mesmo sentido cf KONSTAN D Op cit p 421 125

ldquo[hellip] there is no such thing as lsquoStoic rhetoricrsquo and discussing it is not possible not (the usual excuse)

because there is no evidence but because there is nothing to talk aboutrdquo ATHERTON C Op cit p

426 126

CICERO Op cit 2004 (IV-7) p 91

55

os mestres do discurso Publius Rutilius Rufus num outro extremo entrou para histoacuteria

como um exemplo de fracasso desse meacutetodo ao se defender no estilo estoico (triste

seco e severo) de uma injusta acusaccedilatildeo de extorsatildeo se recusou a utilizar de eloquecircncia

ou fazer qualquer apelo emotivo e acabou condenado assim como Soacutecrates127

Uma vez finalizada a exposiccedilatildeo a respeito da eacutetica e da retoacuterica estoica

finalmente temos em matildeo o posicionamento a respeito das emoccedilotildees de duas respeitadas

fontes da Antiguidade

De um lado e em resumo temos a abordagem de Aristoacuteteles que tanto em sua

eacutetica quanto na sua retoacuterica esboccedila uma visatildeo positiva a respeito do tema Haacute uma forte

articulaccedilatildeo do Estagirita no sentido de destacar a relevacircncia das emoccedilotildees nestes dois

campos No fim do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco destaca-se que a virtude da totalidade

da alma eacute dependente da virtude de suas partes (uma racional e outra natildeo-racional) No

Livro II explana-se de que modo a parte natildeo-racional iraacute desempenhar bem a sua

funccedilatildeo Assim enfatiza-se o quatildeo importante eacute ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que

significa ser afetado adequadamente pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias

Desse modo as emoccedilotildees satildeo sumamente relevantes para uma boa decisatildeo eacutetica pois

para o agente moral aristoteacutelico eacute impossiacutevel deliberar bem apenas com racionalidade

strictu sensu Por outro lado conforme jaacute frisamos a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees

adequadas e inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas

realizada no Livro II da Eacutetica a Nicocircmaco natildeo invade o domiacutenio da retoacuterica muito

menos inviabiliza a tarefa persuasiva do orador

De seu turno o posicionamento estoico a respeito das emoccedilotildees necessita ser lido

de acordo com a sua peculiar sistemaacutetica filosoacutefica o fim do progresso para os estoicos

seria alcanccedilar a compreensatildeo correta do mundo128

e atingir uma felicidade

autossuficiente As emoccedilotildees portanto estatildeo na contramatildeo de tal propoacutesito porque por

meio delas sempre avaliamos equivocadamente a realidade atribuiacutemos valores a bens a

que natildeo deveriacuteamos dar a miacutenima importacircncia agimos sobretudo mal pois natildeo

percebemos as coisas como elas realmente satildeo No entanto todo esse sistema filosoacutefico

invadiu o domiacutenio da retoacuterica originando um meacutetodo no miacutenimo sui generis porque

estava em total contraposiccedilatildeo com os fins de um discurso persuasivo A retoacuterica estoica

127

CICERO Op cit 1942 (I-229-230) CICERO Op cit 1962 (113-116) p 103-105 128

ldquoFor the founding Stoics the endpoint of progress was simply that one should come to understand the

world correctlyrdquo GRAVER M Op cit p 210

56

natildeo emprega emoccedilotildees natildeo utiliza ornamentos valoriza o miacutenimo de palavras possiacutevel e

coloca secamente os fatos para serem assentidos pelo puacuteblico

Por uacuteltimo independentemente das peculiaridades de cada sistema filosoacutefico

exposto uma coisa havia em comum entre Aristoteacuteles e os estoicos as emoccedilotildees eram

levadas extremamente a seacuterio e ambos natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar

das emoccedilotildees Mesmo para o estoicismo que se mostra uma escola tatildeo sistemaacutetica tatildeo

loacutegica que valoriza tanto a coerecircncia e a consistecircncia racional natildeo se pode negar que as

emoccedilotildees (ainda que hostilmente) entrem de maneira destacada em seu sistema

filosoacutefico Conforme destaca Sorabji os estoicos realizaram um debate de alto niacutevel

sobre o tema e ateacute hoje satildeo lembrados por isso129

129

SORABJI Richard Chrysippus ndash Posidonius ndash Seneca a high-level debate on emotion In

SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy

Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 149

57

2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A

INTERDISCIPLINARIDADE

21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo

No Capiacutetulo anterior iniciamos a exposiccedilatildeo deste trabalho oferecendo um

panorama sobre as origens da retoacuterica O objetivo da contextualizaccedilatildeo foi evidenciar

que o desenvolvimento do estudo das emoccedilotildees no discurso soacute foi possiacutevel dentro de

uma atmosfera que valorizava o debate e a fala persuasiva em puacuteblico Portanto foi

neste ambiente Grego livre e altamente retoacuterico que se observou a necessidade de se

refletir a respeito da dimensatildeo emotiva do discurso porque se chegou agrave conclusatildeo de

que a formaccedilatildeo de um juiacutezo acerca de um determinado assunto eacute dependente do estado

emocional do sujeito

Jaacute este Capiacutetulo tem outro propoacutesito pois num vieacutes mais praacutetico objetiva

investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash

MTA130

que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de

Toulmin e de Perelman-Tyteca ambas datadas de 1958 (respectivamente Os Usos do

Argumento e o Tratado da Argumentaccedilatildeo ou a Nova Retoacuterica) Aleacutem de averiguar a

relevacircncia das emoccedilotildees na MTA tambeacutem procuraremos criteacuterios de anaacutelise e de

julgamento da dimensatildeo emotiva do discurso que possam ser uacuteteis para o Capiacutetulo III

momento em que iremos realizar a anaacutelise e a avaliaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo de decisotildees

do Supremo Tribunal Federal - STF

Assim tal como fizemos no Capiacutetulo anterior tentaremos fornecer alguma

contextualizaccedilatildeo ao aparecimento da MTA pois como natildeo existe conhecimento

humano a-histoacuterico toda novidade do pensamento vem comprometida com os seus

problemas de eacutepoca

Para tanto a nossa intenccedilatildeo consiste em perquirir que tipo de discurso

caracterizou o contexto poliacutetico europeu que precedeu o surgimento da MTA A poliacutetica

sempre seraacute uma influecircncia importante no que diz respeito a uma teoria que se proponha

agrave anaacutelise e agrave avaliaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo E isso natildeo apenas porque a retoacuterica que eacute o

seu antecedente teoacuterico considerava desde o iniacutecio o discurso poliacutetico como um dos

130

Utilizamos a expressatildeo ldquoModerna Teoria da Argumentaccedilatildeordquo para contrastar com a Teoria da

Argumentaccedilatildeo aristoteacutelica aderindo agrave terminologia de Cristof Rapp e Tim Wagner RAPP Cristof

WAGNER Tim On some aristotelian sources of modern argumentation theory In Argumentation

Journal vol 27 Issue 1 2013 p 7-30

58

seus gecircneros por excelecircncia de discurso mas porque o discurso da esfera poliacutetica por

ter a qualidade de atingir a todos indistintamente acaba por ser um ponto comum de

reflexatildeo sobre a forma de teorizar a argumentaccedilatildeo

Assim e considerando tal finalidade eacute difiacutecil escolher outro evento poliacutetico que

natildeo os movimentos totalitaacuterios para falar neste toacutepico E desde jaacute sobressai uma

especiacutefica forma de comunicaccedilatildeo atraveacutes do qual tais movimentos estabeleciam contato

com a massa a propaganda

Embora hoje a palavra ldquopropagandardquo seja frequentemente associada a uma

informaccedilatildeo de conteuacutedo enganoso Kallis lembra que no iniacutecio do seacuteculo XX ela natildeo

desfrutava de tatildeo maacute-fama pois era empregada de modo mais isento a fim de

descrever um modo de gestatildeo da informaccedilatildeo com o objetivo de comunicar a um grande

nuacutemero de indiviacuteduos e assim obter uma especiacutefica resposta destes Dessa forma a

propaganda como espeacutecie de comunicaccedilatildeo e de persuasatildeo caracteriacutestica da

modernidade aparece com o objetivo de (i) suprir a enorme demanda de informaccedilatildeo e

de formaccedilatildeo de opiniatildeo da crescente esfera puacuteblica (ii) facilitar atraveacutes de variados

meios a absorccedilatildeo de tais informaccedilotildees131

Poreacutem para aleacutem da simples difusatildeo de informaccedilatildeo a propaganda sendo

absorvida na engrenagem do Estado aparece com outros objetivos tais como a

integraccedilatildeo a orientaccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo a continuidade a diversatildeo Diante de

sociedades saturadas com tanta informaccedilatildeo a propaganda possibilita a criaccedilatildeo de um

ambiente comunicativo comum carregado de siacutembolos significados e desejos

compartilhados Ela tambeacutem orienta e mobiliza o indiviacuteduo em direccedilatildeo a determinados

comportamentos e accedilotildees traz uma narrativa que promove uma continuidade no tempo

conectando passado presente e futuro por fim tem a capacidade de promover diversatildeo

e relaxamento evitando o cansaccedilo132

Todos estes objetivos satildeo de suma importacircncia no contexto de naccedilotildees em guerra

e eacute em tal conjuntura histoacuterica que o debate acerca de uma abordagem sistemaacutetica sobre

a propaganda se desenvolve conforme explana Kallis

Natildeo eacute coincidecircncia que o debate sobre a formulaccedilatildeo de uma

abordagem sistemaacutetica para a lsquopropagandarsquo emergiu no contexto da

Primeira Guerra Mundial na Alemanha e em outros lugares Numa

eacutepoca de completa mobilizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo de um objetivo

nacional (tal como a vitoacuteria no confronto militar) a necessidade por

131

KALLIS Aristotle A Nazi propaganda and the second world war New York Palgrave

Macmillan 2005 p 1 132

Id ibid p 2

59

estrateacutegias de informaccedilatildeo metoacutedicas e eficientes que viessem reforccedilar

a moral do front nacional e mobilizassem toda a sociedade era

particularmente destacada133

Ellul ressalta que para atingir seus propoacutesitos comunicativos e ser de fato

efetiva a propaganda precisa ser total isto eacute ela necessita utilizar todas as miacutedias

disponiacuteveis no momento (televisatildeo raacutedio filme jornal revista internet etc) Uma vez

que cada tecnologia por suas proacuteprias caracteriacutesticas tem uma esfera de alcance

limitada haacute necessidade de que uma miacutedia complemente a outra de modo a realizar

uma completa dominaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo134

Em relaccedilatildeo aos efeitos sobre os seus destinataacuterios a propaganda eacute acusada de

irrestrita manipulaccedilatildeo Natildeo haacute mais pensamento e accedilatildeo orientados por uma ideologia

espontacircnea Tudo resta condicionado pela trilha deliberadamente condutora da

propaganda Atraveacutes da criaccedilatildeo de estereoacutetipos enfraquece-se a capacidade de criacutetica e

de reflexatildeo da populaccedilatildeo Os detalhes e as contradiccedilotildees de opiniotildees individuais satildeo

eliminados a fim de que tudo reste homogeneizado Quanto mais potente a propaganda

mais fraco eacute o dissenso jaacute que o pensamento puacuteblico se esgota em raciociacutenios

simploacuterios maniqueiacutestas sem qualquer complexidade135

Ademais apoacutes a ingerecircncia da propaganda o que antes eram apenas sentimentos

sociais vagos e dispersos transformam-se em ideias delineadas Ellul aponta um dos

grandes trunfos para a propaganda atingir tamanho sucesso persuasivo o uso das

emoccedilotildees ldquoIsto eacute ainda mais notaacutevel porque a propaganda como vimos age muito mais

atraveacutes de choque emocional do que por convicccedilatildeo racionalrdquo136

Nada eacute mais interessante poreacutem do que ler os proacuteprios mentores da propaganda

discorrerem a respeito do tema a fim de realmente compreender de que modo eles

enxergavam o papel da propaganda no seu projeto poliacutetico e qual valor atribuiacuteam agraves

emoccedilotildees no intento persuasivo A este respeito no arquivo alematildeo de propaganda satildeo

valiosas as informaccedilotildees contidas no perioacutedico mensal do partido nazista Unser Wille

133

ldquoit is no coincidence that the debate about the formulation of a systematic approach to lsquopropagandarsquo

emerged in the context of the First World War in Germany and elsewhere At a time of full mobilisation

for the attainment of a national goal (such as victory in the military confrontation) the need for

methodical and efficient information strategies that would bolster the morale of the home front and

mobilise society was particularly highlightedrdquo (trad livre) Id ibid p 2 134

ELLUL Jacques Propaganda the formation of menrsquos attitudes trad Konrad Kellen e Jean Lerner

New York Vintage Book 1973 p 9 135

Id ibid p 201-206 136

ldquoThis is all the more remarkable because propaganda as we have seen acts much more through

emotional shock than through reasoned convictionrdquo (trad livre) Id ibid p 204

60

und Weg (Nosso Desejo e Caminho) publicado entre 1931 a 1941 e direcionado a

instruir os seus propagandistas

No perioacutedico de inauguraccedilatildeo em 1931 Goebbels foi bastante direto em afirmar

a suma importacircncia da propaganda no afatilde de alcanccedilar o almejado poder poliacutetico A

propaganda nacional socialista teria a missatildeo de transformar o caraacuteter da populaccedilatildeo e

para tanto precisaria traduzir numa linguagem clara e acessiacutevel toda a teoria nazista

Com a ajuda indispensaacutevel da engrenagem propagandiacutestica o partido ganharia novos

membros e eleitores e convenceria a todos a respeito do acerto de suas ideias

Assim a propaganda nacional-socialista eacute o aspecto mais importante

da nossa atividade poliacutetica Ela estaacute no primeiro plano dos nossos

objetivos praacuteticos Sem ela todo o nosso conhecimento seria inuacutetil

sem efeito

[]

A propaganda nacional-socialista serve para educar o povo Sua tarefa

natildeo eacute apenas ganhaacute-los para as tarefas de hoje mas ajudar na

transformaccedilatildeo de caraacuteter das grandes massas Estamos convencidos de

que uma nova poliacutetica na Alemanha soacute eacute possiacutevel apoacutes uma completa

transformaccedilatildeo do nosso caraacuteter nacional depois de toda uma nova

maneira nacional de pensar137

Em 1934 num artigo intitulado Politische Propaganda (Propaganda Poliacutetica)

Schulze-Wechsungen novamente enfatizou o papel da propaganda nacional socialista no

intuito de conquistar a populaccedilatildeo alematilde Para isso exalta-se o poder que a propaganda

possui de trabalhar as emoccedilotildees do povo pois sem isso restaria impossiacutevel atingir

convincentemente as massas

Poucas pessoas satildeo capazes de trazer o coraccedilatildeo e a mente em pleno

acordo A propaganda frequentemente tem particular importacircncia na

medida em que fala para as emoccedilotildees em vez de para o puro intelecto

O indiviacuteduo bem como as massas estatildeo sujeitos a lsquoatitudesrsquo suas

emoccedilotildees determinam sua condiccedilatildeo O poliacutetico natildeo pode friamente

ignorar essas emoccedilotildees ele deve reconhecer e compreendecirc-las se

deseja escolher o que eacute adequado da propaganda para atingir seus

objetivos138

137

ldquoThus National Socialist propaganda is the most important aspect of our political activity It is in the

foreground of our practical goals Without it all our knowledge would be fruitless without effect

[hellip]

National Socialist propaganda serves to educate the people Its task is not only to win them for the tasks

of today but to assist in the transformation of the character of the broad masses We are convinced that a

new politics in Germany is possible only after a complete transformation of our national character after

an entirely new national way of thinkingrdquo (trad livre) GOEBBELS Joseph Will and way In Wille und

Weg vol 1 1931 p 2-5 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-

archivewillehtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 138

ldquoFew people are able to bring heart and mind into full agreement Propaganda often has particular

importance in that it speaks to the emotions rather than to pure understanding The individual as well as

the masses are subject to lsquoattitudesrsquo their emotions determine their condition The politician may not

coldly ignore these emotions he must recognize and understand them if he is to choose the proper of

propaganda to reach his goalsrdquo (trad Livre) SCHULZE-WECHSUNGEN Politische propaganda In

61

Poreacutem eacute num artigo de tiacutetulo bastante sugestivo ldquoCoraccedilatildeo ou Razatildeordquo de 1937

direcionado para os oradores do partido que se discute espirituosamente qual eacute a

melhor forma de obter adesatildeo das pessoas que vatildeo aos encontros do partido Apoacutes

alguma explanaccedilatildeo realiza-se de iniacutecio uma forte criacutetica a certos oradores que buscam

apresentar as ideias do nacional-socialismo num estilo matemaacutetico por meio de

argumentos precisos de estatiacutestica cheios de detalhes tal como os oradores estoicos

talvez fariam ldquoexistem oradores que investigam e esculpem o seu assunto com exatidatildeo

quase cientiacutefica e esquecem totalmente que eles deveriam estar pregando uma visatildeo de

mundordquo139

Assim lembra-se que caso os primeiros oradores do partido nazista buscassem

novos adeptos por meio de um discurso cientiacutefico matemaacutetico cheios de detalhes eles

ainda estariam tentando conquistar o poder Portanto um discurso racional seria a pior

das opccedilotildees para os propoacutesitos do partido

Desse modo a soluccedilatildeo parece bastante evidente o discurso precisaria sair do

coraccedilatildeo do orador para o coraccedilatildeo dos seus destinataacuterios Em outras palavras caso

pretenda sucesso a comunicaccedilatildeo precisaria ser emotiva porque o ecircxito da fundaccedilatildeo do

partido assim como o caminho ateacute a conquista do poder ocorreu desta maneira O

convencimento do povo alematildeo natildeo poderia ser feito de modo racional

O orador e ele era a forccedila do corpo de oradores do nacional

socialismo natildeo falou para a razatildeo mas para o coraccedilatildeo Ele falou de

seu coraccedilatildeo para o coraccedilatildeo do seu ouvinte E tatildeo melhor ele

compreendeu como executar este apelo para o coraccedilatildeo tatildeo melhor ele

explorou isso e tatildeo mais receptivo foi o puacuteblico agrave sua mensagem

Naquele tempo algueacutem natildeo poderia completamente persuadir o povo

alematildeo pelo argumento racional as coisas funcionaram mal para os

partidos que tentaram essa abordagem As pessoas foram conquistadas

pelo homem que atingiu a corda que os outros tinham ignorado ndash as

sensaccedilotildees o sentimento ou como se queira chamaacute-lo o coraccedilatildeo140

Unser wille und weg vol 4 1934 p 323-332 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-

propaganda-archivepolprophtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 139

ldquoThere are speakers who investigate and carve up their subject with almost scientific exactitude and

utterly forget that they are supposed to be preaching a worldviewrdquo (trad livre) RINGLER Hugo Heart

or Reason what we donrsquot want from our speakers In Unser wille und weg vol 7 1937 p 245-249

Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-archiveringlerhtm Acesso em 11 de

janeiro de 2015 140

ldquoThe speaker and he was the strength of the National Socialist Speakerrsquos Corps spoke not to the

understanding but to the heart He spoke out of his heart into the heart of his listener And the better he

understood how to execute this appeal to the heart the more willingly he exploited it and the more

receptive was the audience to his message One could not at all at that time persuade the German people

by rational argument things worked out badly for parties that tried that approach The people were won

by the man who struck the chord that others had ignored mdash the feelings the sentiment or as one wants to

62

Diante de tudo o quanto foi aqui exposto se pudermos eleger algo traumaacutetico

com o qual a MTA teve que lidar jaacute no seu nascimento natildeo poderia haver melhor

candidato do que todo esse modelo de propaganda defendido pelos movimentos

totalitaacuterios e especialmente todo o forte apelo emotivo envolvido em seu discurso

Plantin baseado na classificaccedilatildeo encontrada na obra de Tchakhotine (ldquoa

violaccedilatildeo das massas pela propaganda poliacuteticardquo) lembra que a propaganda dos regimes

totalitaacuterios eacute considerada uma ldquosensopropagandardquo pois se caracteriza pelo apelo aos

sentimentos irracionais do indiviacuteduo Em contraposiccedilatildeo alega a existecircncia de uma

ldquoratiopropagandardquo isto eacute uma propaganda baseada na razatildeo141

Portanto eacute neste contexto pela busca de uma ldquoratiopropagandardquo e de um

repensar sobre o logos que os estudos da argumentaccedilatildeo reaparecem com o preciso fim

de rechaccedilar o modelo de discurso totalitaacuterio fundado em emoccedilotildees e possibilitar o

surgimento de um padratildeo de discurso racional que viabilizasse a democracia142

22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as

emoccedilotildees no discurso

Neste toacutepico iniciando efetivamente a busca por criteacuterios para anaacutelise e

avaliaccedilatildeo do discurso emotivo a ser realizado no Capiacutetulo III intencionamos realizar a

investigaccedilatildeo da importacircncia das emoccedilotildees para Viehweg Toulmin e Perelman-Tyteca

A nossa escolha por tais autores justifica-se por razotildees evidentes ao mesmo

tempo em que satildeo os precursores contemporacircneos de toda uma geraccedilatildeo de estudiosos da

argumentaccedilatildeo e da retoacuterica guardando por isso uma proeminente posiccedilatildeo simboacutelica

em qualquer estudo sobre o assunto tais autores chegaram a elaborar cada qual uma

abordagem teoacuterica proacutepria

Ressalte-se que o fato de termos no Capiacutetulo I investigado a importacircncia das

emoccedilotildees na retoacuterica aristoteacutelica nos coloca agora num local privilegiado Isso porque

natildeo apenas jaacute sabemos nesta altura do trabalho como foi elaborada teoricamente a

primeira abordagem emotiva do discurso em nosso pensamento ocidental mas tambeacutem

call it the heartrdquo (trad livre) Id ibid Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-

archiveringlerhtm Acesso em 11 de janeiro de 2015 141

PLANTIN Christian A argumentaccedilatildeo histoacuteria teorias perspectivas trad Marcos Marcionilo Satildeo

Paulo Paraacutebola Editorial 2013 p 20-21 142

Id ibid p 21

63

temos em matildeo um referencial fundamental para prosseguir nesta obra uma vez que

Aristoacuteteles foi o ponto de partida para a MTA

Isso natildeo significa dizer ressalta Rapp-Wagner que todos os teoacutericos da MTA

satildeo em um ou em outro sentido aristoteacutelicos mas que eles foram significativamente

influenciados pela teoria aristoteacutelica da argumentaccedilatildeo143

Em relaccedilatildeo a Toulmin e Perelman-Tyteca destaca-se que ldquoo programa que eacute

realizado no Usos do Argumento e na Nova Retoacuterica elabora algo como uma mistura da

Toacutepica e da Retoacuterica de Aristoacuteteles []rdquo144

Assim enquanto o esquema argumentativo

de Toulmin estaacute mais proacuteximo da Toacutepica o de Perelman-Tyteca estaacute da Retoacuterica Desse

modo a pergunta que fazemos eacute a seguinte teriam estes autores sido influenciados

tambeacutem pela abordagem aristoteacutelica das emoccedilotildees

Antes de analisar os chamados ldquopais fundadoresrdquo da Moderna Teoria da

Argumentaccedilatildeo (Toulmin e Perelman-Tyteca) conveacutem examinar em primeiro lugar o

pensamento de Viehweg que se natildeo eacute costumeiramente chamado de um fundador da

MTA pode-se dizer que foi um dos importantes precursores de tal movimento e

justifica uma anaacutelise neste mesmo toacutepico

Em 1953 Viehweg lanccedila a primeira ediccedilatildeo da sua obra Toacutepica e Jurisprudecircncia

que se dedica a investigar a relaccedilatildeo entre o saber juriacutedico e a retoacuterica Partindo do

trabalho de Vico ldquoDe nostre temporis studiorum rationerdquo que realiza uma comparaccedilatildeo

entre o meacutetodo de estudo da Antiguidade (retoacutericotoacutepico) e o da modernidade

(criacuteticocartesiano) a fim de demonstrar as desvantagens deste uacuteltimo e sua

inaplicabilidade agrave sabedoria praacutetica Viehweg problematiza a utilizaccedilatildeo dos modelos

oriundos das ciecircncias exatas para a estruturaccedilatildeo do pensamento juriacutedico conforme

expotildee Roesler

A partir da alusatildeo de Vico o problema que move a investigaccedilatildeo de

Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a

sistematizaccedilatildeo dedutiva pretendida pelos modelos matematizantes de

ciecircncia que predominaram a partir do seacuteculo XVII ser inadequada

para organizar o saber juriacutedico e dele retirar ou nele ocultar

caracteriacutesticas fundamentais145

Assim a preferecircncia do autor alematildeo pelo uso do vocaacutebulo ldquoJurisprudecircnciardquo um

termo que alude agrave eacutetica da Antiguidade claacutessica ao inveacutes de ldquoCiecircncia do Direitordquo o

143

RAPP C WAGNER T Op cit p 8 144

ldquothe program that is carried out in The Use of Arguments and in The New Rhetoric elaborates on

something like a blend of Aristotlersquos Topics and Rhetoric [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 8 145

ROESLER Claacuteudia Rosane Theodor Viehweg e a Ciecircncia do Direito toacutepica discurso racionalidade

Arraes Editores Belo Horizonte 2013 p 23

64

qual transmitiria a ideia de um saber rigorosamente cientiacutefico demostra a sua atitude

questionadora em relaccedilatildeo ao padratildeo cientiacutefico elaborado a partir de Descartes e

supostamente emprestaacutevel ao direito146

Resgatando o pensamento de Aristoacuteteles e de Ciacutecero e observando que o saber

juriacutedico eacute uma teacutecnica orientada para a soluccedilatildeo de problemas a tese de Viehweg se

funda na ideia de que a Jurisprudecircncia possui uma estrutura toacutepica Para o filoacutesofo

germacircnico o aspecto mais importante da toacutepica eacute ser uma teacutecnica de pensamento que

enfatiza os problemas ldquoa funccedilatildeo dos topoi e eacute indiferente que esses topoi se

apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais consiste pois no fato de servir

agrave discussatildeo dos problemasrdquo147

A relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia reside justamente nesse liame Ambas se

orientam pelo problema E por isso uma teacutecnica que privilegie o tratamento de

problemas se revela mais adequada ao direito

Se a Jurisprudecircncia for uma aacuterea de problemas na qual nunca se pode

afastar completamente a irrupccedilatildeo de questotildees novas e a necessidade

de reavaliar as premissas jaacute preparadas anteriormente ou seja na qual

o problema eacute um dado constante e natildeo eliminaacutevel entatildeo podemos

pensar que a toacutepica enquanto procedimento de busca de premissas

confere-lhe a estrutura fundamental148

Ora mas se Viehweg evidencia a relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia e

demonstra a partir do trabalho teoacuterico de Aristoacuteteles e de Ciacutecero a importacircncia da

retoacuterica para o direito ele natildeo chega a explorar o viacutenculo entre as emoccedilotildees e a

argumentaccedilatildeo juriacutedica149

Eacute verdade conforme enfatiza Roesler que o referido autor

natildeo propotildee realizar uma anaacutelise exaustiva sobre o tema Mas eacute certo dizer por outro

lado que natildeo temos na abordagem de Viehweg nenhuma tentativa de anaacutelise da

relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo juriacutedica150

146

ROESLER C R O papel de Theodor Viehweg na fundaccedilatildeo das teorias da argumentaccedilatildeo juriacutedica

Revista Eletrocircnica Direito e Poliacutetica Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Ciecircncia Juriacutedica da

UNIVALI Itajaiacute v 4 n 3 3ordm quadrimestre de 2009 pp 36-54 p 39 147

VIEHWEG Theodor Toacutepica e Jurisprudecircncia uma contribuiccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo dos fundamentos

juriacutedico-cientiacuteficos trad Kelly Susane Alflen da Silva Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2008

p 39 148

ROESLER C ROp cit 2013 p 142 149

Sobre a importacircncia da toacutepica ciceroniana em Viehweg cf ROESLER C R CARVALHO Angelo

Gamba Prata de A recepccedilatildeo da Toacutepica ciceroniana em Theodor Viehweg In Direito amp Praxis vol 6 nordm

10 2015 p 26-48 150

A partir do trabalho de Viehweg surge na Alemanha a Escola de Mainz e a retoacuterica analiacutetica atraveacutes

de Ballweg e Sobota No Brasil Adeodato defende uma retoacuterica realista como meacutetodo para o estudo do

direito Cf ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Uma Teoria Retoacuterica da Norma Juriacutedica e do Direito Subjetivo

Satildeo Paulo Editora Noeses 2011 Sobre uma anaacutelise retoacuterica da corte constitucional brasileira e alematilde cf

65

De outra parte o modelo de anaacutelise de argumentos desenvolvido por Toulmin

realiza uma criacutetica ao modo pelo qual a loacutegica formal vinha sendo aplicada ao campo da

argumentaccedilatildeo Logo na abertura da sua obra ele demonstra a preocupaccedilatildeo pela maneira

como os argumentos satildeo utilizados na praacutetica e pela forma como satildeo teorizados151

Assim sua abordagem preocupa-se em desenvolver um modelo racional de anaacutelise com

o objetivo de alargar o campo da loacutegica isto eacute possibilitar ldquo[] uma transformaccedilatildeo da

loacutegica de ciecircncia formal em ciecircncia praacuteticardquo152

Em seu conhecido layout de argumentos estatildeo presentes seis elementos uma

conclusatildeo ou alegaccedilatildeo (claim) que eacute afirmada com base em um dado (date) o qual eacute

uma informaccedilatildeo ou algo conhecido do qual se pode tirar uma conclusatildeo uma garantia

(warrant) que eacute considerada uma lei de passagem isto eacute ela autoriza o passo

argumentativo entre o dado e a alegaccedilatildeoconclusatildeo um suporte (backing) que por

vezes eacute necessaacuterio para reforccedilar a garantia um modalizador ou qualificador (qualifier)

que eacute uma espeacutecie de atenuante (ldquomitigadorrdquo) entre a passagem dos dados para a

conclusatildeo e a refutaccedilatildeorestriccedilatildeo (rebuttal) que satildeo aplicadas agrave garantia a fim de retirar

sua autoridade geral

Apoacutes descrever tais elementos natildeo eacute preciso ir mais longe para observar que

este modelo natildeo busca analisar a dimensatildeo emotiva do discurso Por meio dele eacute

possiacutevel fazer certos tipos de anaacutelise mas natildeo a que noacutes pretendemos realizar As

noccedilotildees de orador e de auditoacuterio estatildeo ausentes natildeo havendo a integraccedilatildeo de tal layout a

um esquema comunicativo153

E eacute por isso que se coloca Toulmin mais perto da

dialeacutetica do que da retoacuterica

Por sua vez em relaccedilatildeo ao modelo de Perelman-Tyteca a influecircncia da retoacuterica

eacute observada de imediato no proacuteprio tiacutetulo do trabalho ldquoTratado da Argumentaccedilatildeo ou a

Nova Retoacutericardquo O desenvolvimento de sua Nova Retoacuterica representa uma criacutetica ao

racionalismo cartesiano conforme eacute deixado claro logo no iniacutecio da obra ldquoa publicaccedilatildeo

de um tratado consagrado agrave argumentaccedilatildeo e sua vinculaccedilatildeo a uma velha tradiccedilatildeo a da

a tese de doutorado de Isaac Costa Reis Limites agrave legitimidade da jurisdiccedilatildeo constitucional anaacutelise

retoacuterica das cortes constitucionais do Brasil e da Alemanha 2013 Recife UFPE 151

TOULMIN Stephen E Os usos do argumento trad Reinaldo Guarany Satildeo Paulo Martins Fontes

2006 p 2 152

BRETON Philippe GAUTHIER Gilles Histoacuteria das teorias da argumentaccedilatildeo trad Maria

Carvalho Lisboa Editorial Bizacircncio 2001 p 75-76 153

MICHELI Raphaeumll Lrsquoeacutemotion argumenteacutee lrsquoabolition de la peine de mort dans le deacutebat

parlamentaire franccedilais Paris Les Eacuteditions du Cerf 2010a p 73

66

retoacuterica e da dialeacutetica gregas constituem uma ruptura com uma concepccedilatildeo da razatildeo e do

raciociacutenio oriunda de Descartes []rdquo154

Assim Perelman-Tyteca retomam as noccedilotildees de orador e de auditoacuterio afirmando

expressamente que este eacute o campo da retoacuterica tradicional que especialmente lhes atrai

atenccedilatildeo Todo discurso se dirige a um determinado grupo de indiviacuteduos Todo texto

escrito ainda que redigido solitariamente imagina dirigir-se a algueacutem A maacute-fama da

retoacuterica na Antiguidade estava ligada ao fato de que buscava persuadir um puacuteblico de

ignorantes e de que natildeo realizava um trabalho de investigaccedilatildeo seacuterio155

Os referidos autores realizam a distinccedilatildeo entre persuadir e convencer vinculada agrave

noccedilatildeo de auditoacuterio universal O convencimento estaacute preocupado com o caraacuteter racional

da argumentaccedilatildeo e por isso a persuasatildeo guarda um estatuto teoacuterico inferior Uma

argumentaccedilatildeo persuasiva eacute dirigida a um auditoacuterio particular enquanto uma

argumentaccedilatildeo convincente busca a adesatildeo de todo o conjunto de seres racionais Ao

argumentar para o auditoacuterio universal o sujeito deve convencer ldquo[] do caraacuteter coercivo

das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta

independentemente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo156

Particularmente quanto agraves emoccedilotildees todavia natildeo houve nenhuma recepccedilatildeo da

retoacuterica antiga No sumaacuterio da obra natildeo haacute qualquer referecircncia ao tema Se numa

pesquisa para a palavra ldquorazatildeordquo encontramos 396 (trezentos e noventa e seis)

referecircncias para a palavra ldquoemoccedilatildeordquo encontramos 13 (treze) referecircncias

Ainda assim Plantin identifica esparsamente as seguintes perspectivas sobre as

emoccedilotildees na Nova Retoacuterica (i) uma abordagem psicoloacutegica para a qual as emoccedilotildees satildeo

elementos de perturbaccedilatildeo do discurso (i) uma abordagem filosoacutefica fundada no topos

ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo (iii) uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor por meio do qual este

uacuteltimo eacute visto como menos pejorativo e (iv) um recurso que pode demonstrar

sinceridade157

Sob a influecircncia da psicologia da eacutepoca que entendia as emoccedilotildees como

perturbadoras da accedilatildeo158

o Tratado da Argumentaccedilatildeo esposa em certo trecho uma

compreensatildeo das emoccedilotildees como degradaccedilatildeo do ato linguiacutestico ldquoos indiacutecios de paixatildeo

154

PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo a nova retoacuterica

trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 p 1 155

Id ibid p 7 156

Id ibid p 35 157

PLANTIN Christian Les bonnes raisons des eacutemotions principes et meacutethode pour lrsquoeacutetude du

discours eacutemotionneacute Berne Peter Lang 2011 p 49 158

Id ibid p 49

67

podem pois dar azo a figuras a hesitaccedilatildeo o hipeacuterbato ou inversatildeo que substitui a

ordem natural da frase por uma ordem nascida da paixatildeordquo159

Em outra parte da obra

anota-se que a excitaccedilatildeo decorrente das emoccedilotildees deturpa a argumentaccedilatildeo do homem

apaixonado que soacute se preocupa consigo mesmo e perde a noccedilatildeo das pessoas a quem seu

discurso se destina ldquoo homem apaixonado enquanto argumenta o faz sem levar

suficientemente em conta o auditoacuterio a que se dirigerdquo160

Numa outra perspectiva realiza-se uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor do

seguinte modo as emoccedilotildees podem possuir uma acepccedilatildeo negativa sendo obstaacuteculos na

argumentaccedilatildeo ou podem servir de suporte para uma argumentaccedilatildeo positiva Nesta

uacuteltima hipoacutetese a fim de se livrarem de sua carga semacircntica negativa as emoccedilotildees seratildeo

nomeadas de valores ldquohaacute que notar que as paixotildees enquanto obstaacuteculo natildeo devem ser

confundidas com as paixotildees que servem de apoio a uma argumentaccedilatildeo positiva e que

habitualmente seratildeo qualificadas por meio de um termo menos pejorativo como

valorrdquo161

A despeito dos trechos acima citados que demonstram uma concepccedilatildeo negativa

das emoccedilotildees natildeo existe nenhum tratamento sistemaacutetico do assunto natildeo tendo a retoacuterica

antiga sido recepcionada neste ponto Todavia considerando que a obra sob anaacutelise se

trata de uma ldquoNova Retoacutericardquo a ausecircncia de um tema que Aristoacuteteles dedicou tanto

espaccedilo conforme visto no Capiacutetulo I natildeo deixa de ser simboacutelica Mesmo que o objetivo

da obra de Perelman-Tyteca consista no alargamento do campo da racionalidade parece

estar impliacutecito que o orador da Nova Retoacuterica deve convencer sem se emocionar

Por uacuteltimo eacute preciso dizer que natildeo surpreende o fato de que os autores acima

estudados natildeo se interessaram pelo estudo das emoccedilotildees Considerando o contexto em

que as obras emergiram tal como discutido no toacutepico precedente este tema era um

interdito para eacutepoca Aliaacutes Perelman-Tyteca tinham plena consciecircncia de que estavam

vivendo no seacuteculo da publicidade e da propaganda como afirmam no iniacutecio da sua

obra162

Portanto pode-se afirmar que o trabalho dos ldquopais fundadoresrdquo se situa melhor

num campo de reflexatildeo sobre o logos

159

PERELMAN C Op cit p 518 160

PERELMAN C Op cit p 27 161

PERELMAN COp cit p 539 162

PERELMAN C Op cit p 5

68

23 As emoccedilotildees falaciosas

Antes de dar o proacuteximo passo e realizar no toacutepico subsequente um estudo

acerca de uma abordagem normativa sobre as emoccedilotildees eacute preciso discutir neste toacutepico

a questatildeo das falaacutecias e a sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees

As falaacutecias satildeo um dos temas centrais para qualquer teoria da argumentaccedilatildeo

Eemeren aponta que a qualidade de uma teoria da argumentaccedilatildeo estaacute diretamente

relacionada agrave maneira pela qual ela compreende as falaacutecias Assim ldquose uma teoria da

argumentaccedilatildeo consegue lidar com as falaacutecias de um modo satisfatoacuterio trata-se de um

teste positivo para o alcance e para o poder de explanaccedilatildeo de tal teoriardquo163

Isso porque uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa necessariamente oferecer

criteacuterios e normas para avaliar quando argumentaccedilotildees satildeo ou natildeo razoaacuteveis Desse

modo diz-se que as falaacutecias satildeo ardis contaminantes da argumentaccedilatildeo que caso

passem despercebidas deturpam completamente a racionalidade do discurso Em outras

palavras satildeo perigosas camuflagens que necessitam ser identificadas na

argumentaccedilatildeo164

Natildeo haacute em grego uma palavra que corresponda exatamente ao vocaacutebulo

ldquofalaacuteciardquo o seu correspondente seria ldquosofismardquo165

Falaacutecia portanto deriva do termo

em latim ldquofallaciardquo que por sua vez tem sua origem no verbo grego ldquosphalrdquo que

significa ldquocausar uma quedardquo Walton destaca que este significado eacute consistente com a

ideia aristoteacutelica de refutaccedilatildeo sofiacutestica como algo intencionalmente enganoso ou um

truque argumentativo utilizado com o objetivo de ldquocausar uma quedardquo no adversaacuterio166

Por sinal Aristoacuteteles eacute considerado um dos fundadores da disciplina Em sua

Refutaccedilotildees Sofiacutesticas ele oferece um tratamento sistemaacutetico para identificar quando um

argumento eacute incorreto ou enganoso Para o Estagirita uma falaacutecia eacute invariavelmente

uma inferecircncia que aparenta ser um silogismo poreacutem sem ser conclusivo Portanto

163

ldquoIf an argumentation theory can deal with fallacies in a satisfactory way this is a positive test as to the

scope and explanatory power of that theoryrdquo (trad livre) EEMEREN Frans van GARSSEN Bart

MEUFFELS Bert Fallacies and judgments of reasonableness empirical research concerning the

pragma-dialectics discussion rules New York Springer 2009 p 1 164

EEMEREN Frans H van et al Handbook of argumentation theory New York Springer 2014 p

25 165

HAMBLIN Charles L Fallacies London Methuen CO LTD 1970 p 50 166

WALTON Douglas The place of emotion in argument Pennsylvania The Pennsylvania State

University Press 1992 p 17

69

diante de uma falaacutecia o sujeito se encontra num estado de ilusatildeo porque imagina que a

conclusatildeo decorreu das premissas oferecidas167

Todavia o tratamento aristoteacutelico das falaacutecias foi modernamente objeto de

criacuteticas Ao utilizar conceitos metafiacutesicos como ldquopropriedade essencialrdquo ou

ldquopropriedade acidentalrdquo ou dirigir-se restritivamente apenas agrave dialeacutetica a abordagem

aristoteacutelica passou a ser considerada insuficiente para lidar com a complexidade do atual

estado de arte da argumentaccedilatildeo168

Uma das mais importantes contribuiccedilotildees acerca do tema em comentaacuterio e que

particularmente nos interessa consiste no desenvolvimento das chamadas ldquofalaacutecias adrdquo

Neste campo de estudo atribui-se a John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento

Humano de 1690 a invenccedilatildeo dos argumentos ad Tendo em vista a relevacircncia histoacuterica

para a mateacuteria transcreve-se a seguir o trecho em que o filoacutesofo anuncia o seu

pensamento

Antes de encerrar este assunto pode valer a pena utilizar o nosso

tempo para refletir um pouco sobre quatro tipos de argumentos que os

homens nos seus raciociacutenios com os outros normalmente fazem uso

para prevalecer o seu assentimento ou pelo menos para impressionaacute-

los assim como para silenciar sua oposiccedilatildeo

O primeiro eacute alegar as opiniotildees de homens cujas partes

aprendizagem eminecircncia poder ou alguma outra causa ganhou um

nome e estabeleceu sua reputaccedilatildeo no estima comum com algum tipo

de autoridade

[]

Isso eu acho que pode ser chamado de argumentum ad verecundiam

Em segundo lugar uma outra maneira que os homens normalmente

utilizam para conduzir os outros forccedilaacute-los a submeter aos seus juiacutezos

assim como receber a sua opiniatildeo em debate consiste em exigir que o

adversaacuterio admita como prova aquilo que eles alegam ou que

designem uma melhor E isto eu chamo argumentum ad ignorantiam

Uma terceira maneira eacute pressionar um homem com as consequecircncias

extraiacutedas de seus proacuteprios princiacutepios ou concessotildees Isto jaacute eacute

conhecido sob o nome de argumentum ad hominem

O quarto argumento sozinho nos avanccedila em direccedilatildeo ao conhecimento

e ao julgamento O quarto eacute usado de provas extraiacutedas de qualquer um

dos fundamentos do conhecimento ou probabilidade Isso eu chamo de

argumentum ad judicium Este por si soacute de todos os quatro traz a

verdadeira instruccedilatildeo com ela e nos avanccedila em nosso caminho para o

conhecimento169

167

RAPP C WAGNER T Op cit 2013 p 27 168

Id ibid p 27 169

ldquoBefore we quit this subject it may be worth our while a little to reflect on four sorts of arguments

that men in their reasonings with others do ordinarily make use of to prevail on their assent or at least to

awe them as to silence their opposition

The first is to allege the opinions of men whose parts learning eminency power or some other cause

has gained a name and settled their reputation in the common esteem with some kind of authority

70

Locke registra que estas espeacutecies de argumento (argumentum ad verecundiam

ad ignoratiam ad hominem) satildeo utilizadas geralmente quando algueacutem deseja obter

ecircxito na discussatildeo pois se destinam a impressionar a fazer prevalecer o entendimento

exposto e a emudecer o oponente Resta evidente que o filoacutesofo aqui se refere a um

modelo interativo de discurso (dialeacutetica) Ademais conveacutem notar que embora as obras

de loacutegica passaram a tratar tais argumentos como falaacutecias natildeo se observa qualquer

comentaacuterio em tal sentido pelo pensador inglecircs

Aleacutem disso eacute digno de nota o registro de Locke segundo o qual o argumento ad

hominem jaacute era conhecido agrave sua eacutepoca Mas era conhecido em qual sentido Era

conhecido em sua definiccedilatildeo ou na proacutepria expressatildeo ldquoad hominemrdquo Hamblin destaca

que provavelmente a inspiraccedilatildeo do termo vem da traduccedilatildeo em latim do seguinte trecho

das Refutaccedilotildees Sofiacutesticas de Aristoacuteteles ldquo[] estas pessoas dirigem suas soluccedilotildees

contra o homem natildeo contra o argumento []rdquo ldquo[] hi omnes non ad orationem sed ad

hominem solvunt []rdquo170

Em 1826 Whately por sua vez ao se referir aos argumentos ad populum ad

verecundiam ad hominem registra que quando ldquoinjustamente utilizadosrdquo eles satildeo

chamados falaciosos estabelecendo entatildeo uma conexatildeo com o tema das falaacutecias

Interessante salientar que o loacutegico inglecircs opotildee os argumentos anteriormente citados ao

argumentum ad rem171

Assim considerando que rem em latim significa coisa eacute

possiacutevel inferir que enquanto o argumento ad rem se direciona ao cerne da questatildeo ao

alvo argumentativo isto eacute ldquoagrave coisardquo os argumentos ad populum ad verecundiam ad

hominem representam um desvio do assunto pois se dirigem agrave pessoa ou a outras

fontes Acrescente-se ainda que Whately afirma que provavelmente o argumento ad

rem significa aquilo que outros autores (Locke por exemplo) chamam de argumento ad

judicium

Secondly Another way that men ordinarily use to drive others and force them to submit to their

judgments and receive their opinion in debate is to require the adversary to admit what they allege as a

proof or to assign a better And this I call argumentum ad ignorantiam

A third way is to press a man with consequences drawn from his own principles or concessions This is

already known under the name of argumentum ad hominem

he fourth alone advances us in knowledge and judgment The fourth is the using of proofs drawn from

any of the foundations of knowledge or probability This I call argumentum adjudicium This alone of all

the four brings true instruction with it and advances us in our way to knowledgerdquo (trad livre) LOCKE

John The Works of John Locke London C Baldwin 1824 p 260-261 170

ldquo[] these persons direct their solutions against the man not against his argumentrdquo (trad livre)

HAMBLIN C Op cit p 161-162 171

WHATELY Richard Logic London John Joseph Griffin amp CO 1849 p 80

71

Ademais se pensarmos que neste caso a palavra ldquoargumentumrdquo pode ser

substituiacuteda com sucesso pela palavra ldquoapelordquo e sabendo que o termo em latim ldquoadrdquo

denota ldquoem direccedilatildeo ardquo ldquoparardquo pode-se afirmar que o argumento ad populum significa

apelo ao povo ou aos sentimentos do povo o argumento ad verecundiam apelo agrave

modeacutestia ou agrave autoridade o argumento ad hominem apelo ao caraacuteter ou agraves

caracteriacutesticas do sujeito Estes apelos portanto natildeo estariam dirigidos a ldquoevidecircncias

objetivasrdquo mas a subjetividades algo presente na mente ou melhor na fantasia das

pessoas172

Recentemente o estudo das falaacutecias alcanccedilou notaacutevel desenvolvimento graccedilas

ao trabalho pioneiro de Charles Hamblin que em 1970 publicou a sua obra ldquoFalaacuteciasrdquo

Neste estudo o filoacutesofo australiano comeccedila com uma forte criacutetica em relaccedilatildeo agrave forccedila

que em nosso tempo a tradiccedilatildeo ainda vinha desempenhando sobre o assunto a despeito

de tantos avanccedilos na loacutegica e em outras aacutereas ldquodepois de dois milecircnios de estudo ativo

de loacutegica e em particular depois de transcorrido mais da metade daquele que eacute

considerado o mais iconoclasta dos seacuteculos o XX dC ainda encontramos as falaacutecias

sendo classificadas apresentadas e estudadas da mesma maneira antigardquo173

Eemeren destaca que eacute enorme a importacircncia de Hamblin para o assunto sendo

o seu livro uma soacutelida referecircncia pois realiza um rigoroso apanhado histoacuterico sobre as

falaacutecias elenca as deficiecircncias no tratamento da mateacuteria oferece a sua pessoal

contribuiccedilatildeo teoacuterica e sistematiza o tema Assim ainda que tenha sido objeto de criacuteticas

a sua obra eacute considerada ao mesmo tempo um ponto de partida e o tratamento standard

da disciplina174

Ao fazer uma sistematizaccedilatildeo sobre as ldquofalaacutecias adrdquo Hamblin esboccedila uma

abundante classificaccedilatildeo do tema sendo que tendo em vista a importacircncia para o nosso

trabalho destacamos as seguintes falaacutecias

(i) apelo agrave inveja argumentum ad invidiam

(ii) apelo ao medo argumentum ad metum

(iii) apelo ao oacutedio argumentum ad odium

(iv) apelo ao orgulho argumentum ad superbiam

(v) apelo agrave amizade argumentum ad amicitiam

172

WALTON D Op cit p 4-9 173

ldquoAfter two millennia of active study of logic and in particular after over half of that most iconoclastic

of centuries the twentieth AD we still find fallacies classified presented and studied in much the same

old wayrdquo (trad livre) HAMBLIN C Op cit p 9 174

EEMEREN F Op cit 2009 p 12

72

(vi) apelo agrave compaixatildeo argumentum ad misericordiam

(vii) apelo agraves emoccedilotildees em geral argumentum ad passiones

Aleacutem destas tambeacutem se destacam as seguintes falaacutecias ad verecundiam ad

ignorantiam ad hominem ad baculum (apelo agrave ameaccedila) ad superstitionem (apelo agrave

supersticcedilatildeo) ad imaginationem (apelo agrave imaginaccedilatildeo) ad nauseam (apelo agrave prova por

repeticcedilatildeo) ad fidem (apelo agrave feacute) ad socordiam (apelo agrave estupidez) ad ludicrum (apelo

ao teatralismo) ad captandum vulgus ad fulmen ad vertiginem a carcere175

Natildeo eacute coincidecircncia que para cada emoccedilatildeo da retoacuterica estudada no Capiacutetulo I

agora exista uma ldquofalaacutecia adrdquo correspondente E ainda que eventualmente venha lhe

faltar uma classificaccedilatildeo apropriada a expressatildeo guarda-chuva ldquoargumentum ad

passionerdquo iraacute capturar alguma emoccedilatildeo fugitiva Aliaacutes eacute essa a ideia apresentada pelo

loacutegico inglecircs Issac Watz citado por Hamblin senatildeo vejamos

Haacute ainda um outro ranking de argumentos que tecircm nomes latinos sua

verdadeira distinccedilatildeo deriva dos toacutepicos ou meios-termos que satildeo

usados neles eles satildeo chamados de apelos para o nosso julgamento

para a nossa feacute para a nossa ignoracircncia para a nossa profissatildeo para a

nossa modeacutestia e para as nossas emoccedilotildees

[]

6 Acrescento por fim quando um argumento eacute emprestado de algum

toacutepico que se preste a atrair as inclinaccedilotildees e as emoccedilotildees dos ouvintes

para o lado do orador em vez de convencer o julgamento ele eacute

chamado argumentum ad passiones um apelo para as emoccedilotildees176

Por tambeacutem termos estudado o pensamento estoico no Capiacutetulo I agora tambeacutem

podemos afirmar que isso eacute uma forma estoica de pensar Obviamente natildeo no sentido

de que tal pensamento derive da escola estoica Poreacutem numa acepccedilatildeo mais ampla no

sentido de sua hostilidade em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees ou de que conveacutem eliminaacute-las do

discurso por serem irracionais enganadoras excessivas No entanto tal pensamento

parece ser demasiadamente simploacuterio porque natildeo consegue indagar se as emoccedilotildees

eventualmente podem ser razoaacuteveis na argumentaccedilatildeo Existiriam criteacuterios para

distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees no discurso

175

HAMBLIN C Op cit p 41 176

ldquoThere is yet another rank of arguments which have latin names their true distinction is derived from

the Topics or middle Terms which are used in them tho they are called an Address to our Judgment our

Faith our Ignorance our Profession our Modesty and our Passions [hellip]6 I add finally when an

argument is borrowed from any topics which are suited to engage the inclinations and passions of the

hearers on the side of the speaker rather than to convince the judgment this is argumentum ad passiones

an address to the passionsrdquo (trad livre)WATZ Issac Logic or the right use of reason in the inquiry

after truth Boston West amp Richardson 1842 p 242

73

Eacute claro que a disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo natildeo nos exige que deixemos de sentir o

que sentimos uma vez que poderiacuteamos imaginar que existe separadamente o campo do

discurso e existe o campo do sujeito de modo que o objetivo da estudada classificaccedilatildeo

consiste em despir a estrutura do discurso do uso das emoccedilotildees e dos seus efeitos

negativos quanto agrave relaccedilatildeo de inferecircncias Mas considerando que o homem vive na

linguagem eacute possiacutevel de modo plausiacutevel pensar que existam certas e profundas

conexotildees entre essas coisas

Sobre este ponto Plantin destaca que eacute justamente na questatildeo do sujeito e das

emoccedilotildees que existe uma forte ruptura entre a MTA e a retoacuterica A teoria standard da

argumentaccedilatildeo ao introduzir a noccedilatildeo de falaacutecia ad passiones erigiu as emoccedilotildees como

um dos principais inimigos da argumentaccedilatildeo ldquoa teoria das falaacutecias eacute a uacutenica parte da

teoria da argumentaccedilatildeo que se ocupa realmente das emoccedilotildees mas para removecirc-las

como se o discurso argumentativo para ser admissiacutevel devesse primeiro expulsar seus

atoresrdquo177

O linguista francecircs assevera que essa invariaacutevel exigecircncia normativa exalta a

argumentaccedilatildeo apaacutetica como um modelo desejado de discurso178

Assim pathos parece

retomar um dos seus sentidos originais presente na Greacutecia antiga isto eacute o de

patoloacutegico de sofrimento

Eacute interessante igualmente notar a maciccedila presenccedila de termos em latim na

classificaccedilatildeo das ldquofalaacutecias adrdquo Eacute sabido que na eacutepoca moderna o latim teve uma

grande importacircncia para o estudo do direito da filosofia e da loacutegica Mas o seu

constante emprego para tratar do presente tema quando se dispotildee de suficiente

vocabulaacuterio para abordar o assunto parece querer doar desnecessariamente um grau de

sofisticaccedilatildeo ou de autoridade agrave disciplina A este respeito Plantin endereccedila forte criacutetica

ldquo[] em inuacutemeros casos esse latim de ocasiatildeo aparece como defeituoso gratuito

pedante e finalmente ridiacuteculo []rdquo179

Por fim tendo em vista que este Capiacutetulo se destina a investigar a importacircncia

das emoccedilotildees para a MTA pode-se dizer agora que pelo menos para a teoria standard

da argumentaccedilatildeo as emoccedilotildees tecircm uma funccedilatildeo negativa no discurso O uacutenico local em

que as emoccedilotildees guardam um relativo espaccedilo para tematizaccedilatildeo eacute no estudo das falaacutecias

177

ldquola theacuteorie des fallacies est la seule theorie de largumentation qui socuppe reellement des eacutemotions

mais cest pour les eacuteliminer comme si le discours argumentatif pour etre recevable devait dabord

expulser ses acteursrdquo (trad livre) PLANTIN C Op cit 2011 p 63 178

Id ibid p 63 179

ldquo[hellip] dans de nombreux cas cest latin doccasion apparaicirct comme fautif gratuit jargonnant et

finalemente ridicule [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 66

74

Poreacutem tal posicionamento parece sofrer de ausecircncia de complexidade jaacute que natildeo

consegue fornecer nenhum criteacuterio para distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees

na argumentaccedilatildeo nem consequentemente consegue encontrar um razoaacutevel papel para

elas no discurso Portanto diante do exposto parece que o debate acerca das emoccedilotildees

restou significativamente empobrecido

24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso

Aleacutem de evidenciar a estreita e difiacutecil relaccedilatildeo existente entre a disciplina das

falaacutecias e o estudo das emoccedilotildees um dos objetivos do toacutepico precedente tambeacutem foi

preparar-nos para neste espaccedilo examinar e compreender o pensamento de Douglas

Walton

Em 1992 Walton insatisfeito com a forma pela qual o tratamento standard das

falaacutecias compreendia o fenocircmeno emotivo publicou uma obra (O Lugar da Emoccedilatildeo no

Argumento) dedicada a aprofundar o tema Ainda que o modelo utilizado pelo

canadense seja dirigido ao discurso dialeacutetico e natildeo se ocupe especificamente do

domiacutenio juriacutedico embora tambeacutem o abranja as suas observaccedilotildees satildeo bastante uacuteteis e

aplicaacuteveis para os objetivos deste trabalho quais sejam construir um espaccedilo para a

discussatildeo das emoccedilotildees no discurso juriacutedico e localizar criteacuterios para avaliaccedilatildeo do uso

das emoccedilotildees Ademais e a fim de organizar a apresentaccedilatildeo deste toacutepico pretendemos

expor as premissas os escopos as criacuteticas e as conclusotildees do teoacuterico canadense

Dito isso Walton afirma que uma boa teoria da argumentaccedilatildeo precisa natildeo

apenas se posicionar de maneira clara sobre as emoccedilotildees mas tambeacutem levaacute-las a seacuterio

Assim eacute fraca e implausiacutevel uma teoria que expulse previamente as emoccedilotildees para fora

do seu acircmbito ou que nomeie indistintamente de falaciosa qualquer conclusatildeo que se

sustente ainda que parcialmente em um apelo emotivo ldquoqualquer teoria da

argumentaccedilatildeo que exclua tais apelos por inteiro deve ser uma teoria muito limitada

inaplicaacutevel para vaacuterios e significantes argumentos do dia-a-diardquo180

Assim reconhece-se que o fenocircmeno emotivo faz parte do discurso porque

decidimos tambeacutem com base em emoccedilotildees em importantes momentos de nossas vidas

A abertura para a sensibilidade da ocasiatildeo para as nossas proacuteprias emoccedilotildees e para as

180

ldquoany theory of argument that rules such appeals out of court altogether must be very limited theory

inapplicable to many significant everyday argumentsrdquo (trad livre) WALTON D Op cit p 69

75

emoccedilotildees dos outros pode permear de maneira saudaacutevel decisotildees importantes em

sociedade181

Exemplificativamente diante de discussotildees de ordem poliacutetica ou juriacutedica em

que esteja no cerne do debate o caraacuteter ou a moralidade de um participante pode-se

cogitar que seja natildeo apenas relevante o uso de um argumento emotivo (ad hominem por

exemplo) mas extremamente necessaacuterio para responder adequadamente uma

alegaccedilatildeo182

De outra parte a despeito de admitir o uso de argumentos emotivos por

entender que eles satildeo importantes e legiacutetimos no diaacutelogo persuasivo Walton aconselha

cautela na sua utilizaccedilatildeo porque eles tambeacutem podem ser usados falaciosamente183

Assim a seu ver dois fatores combinados aumentam a possibilidade de que tais

argumentos sejam mal utilizados (i) primeiramente o apelo agrave emoccedilatildeo pode ter pouca

relevacircncia para o caso pois pode natildeo contribuir para os fins do diaacutelogo no qual os seus

participantes estejam comprometidos convertendo-se inclusive em instrumento para

bloquear os objetivos do discurso (ii) os argumentos baseados em emoccedilotildees possuem

uma tendecircncia de serem logicamente fracos no sentido de que sua premissa natildeo

sustenta de modo suficientemente forte a conclusatildeo e por isso natildeo preencha

adequadamente o ocircnus da prova184

Assim o uso falacioso das emoccedilotildees estaacute presente

quando ldquo[] o proponente explora o impacto do apelo para disfarccedilar a fraqueza ou a

irrelevacircncia do argumentordquo185

Poreacutem como determinar em concreto tais paracircmetros Advertindo que o seu

estudo natildeo eacute uma tese de psicologia empiacuterica mas uma abordagem normativa da

argumentaccedilatildeo cujo principal objetivo consiste em possibilitar a identificaccedilatildeo de usos

corretos e incorretos das emoccedilotildees no discurso186

o autor propotildee o estudo de quatro

ldquofalaacutecias adrdquo que na sua oacutetica satildeo extremamente fortes quanto agrave possibilidade de

aticcedilar os sentimentos e as mais profundas inclinaccedilotildees emotivas do puacuteblico argumentum

ad populum argumentum ad misericordiam argumentum ad baculum e argumentum ad

hominem

181

Id ibid p 69 182

Id ibid p 68 183

Id ibid p 1 184

Id ibid p 1-2 e 28 185

ldquo[hellip] the proponent exploits the impact of the appeal to disguise the weakness andor irrelevance of an

argumentrdquo Id ibid p 2 186

Id ibid p 28

76

Para nosso trabalho no entanto e a fim de delimitar a nossa competecircncia de

estudo eacute suficiente comentar os aspectos mais importantes relacionados ao uso do apelo

agrave compaixatildeo do apelo ao caraacuteter e do apelo agrave ameaccedila Poreacutem antes de prosseguir eacute

preciso explanar previamente e de modo breve alguns conceitos empregados na teoria

em comentaacuterio

Primeiramente conveacutem ser dito que a abordagem normativa em estudo estaacute

estruturada em funccedilatildeo de uma especiacutefica classificaccedilatildeo de tipos de diaacutelogo

Um diaacutelogo eacute considerado ldquo[] uma troca de atos de fala em sequecircncia

alternada entre dois parceiros de discurso a fim de alcanccedilar um objetivo comumrdquo187

Assim a coerecircncia do diaacutelogo depende de que o ato de fala individual se adeque ao fim

comum do tipo de diaacutelogo em que os participantes estejam atrelados Ademais tendo

em vista que em alguns tipos de diaacutelogo os participantes necessitam provar alguma

coisa surge a noccedilatildeo de ocircnus de prova que ldquo[] eacute um peso de presunccedilatildeo alocado

idealmente no estaacutegio inicial do diaacutelogordquo188

e que se mostra um recurso uacutetil para que o

diaacutelogo chegue num prazo razoaacutevel ao fim

Entre os tipos de diaacutelogo destacam-se

(i) o diaacutelogo persuasivo (discussatildeo criacutetica) os participantes utilizando como

premissas as proposiccedilotildees em que a outra parte esteja comprometida

(commitment) procuram convencer um ao outro a respeito de uma tese189

(ii) o diaacutelogo investigativo ldquoo objetivo da investigaccedilatildeo eacute provar que uma

particular proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa ou que natildeo existe evidecircncia

suficiente para provar que tal proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsardquo190

(iii) a negociaccedilatildeo o objetivo das partes consiste em por meio de barganha em

cima de interesses e de bens de concessatildeo de certas coisas e de insistecircncia em

outras fechar um acordo diferentemente do diaacutelogo persuasivo ou do

investigativo a verificaccedilatildeo da veracidade ou falsidade de proposiccedilotildees ainda

que em alguma medida relevante eacute algo secundaacuterio pois a finalidade consiste

187

ldquo[] an exchange of speech acts between two speech partners in turn-taking sequence aimed at a

collective goalrdquo (trad livre) Id ibid p 19 188

ldquo[] a weight of presumption allocated ideally at the opening stage of the dialoguerdquo (trad livre) Id

ibid p 20 189

WALTON Douglas The New dialectic conversational contexts of argument TorontoLondon

University of Toronto Press 1998 p 37-40 190

ldquothe goal of the inquiry is to prove that a particular proposition is true or false or that there is

insufficient evidence to prove that this proposition is either true or falserdquo Id ibid p 70

77

em realizar um bom negoacutecio que geralmente recai em cima de dinheiro certos

tipos de bens ou outros itens de valor191

e

(iv) a briga (quarrel) eacute um tipo de diaacutelogo eriacutestico cujo objetivo de cada parte

reside em atingir verbalmente a outra os argumentos natildeo possuem valor em si

mesmo senatildeo para golpear o adversaacuterio Tal ldquodiaacutelogordquo tem uma relevante funccedilatildeo

cataacutertica ao possibilitar que profundas emoccedilotildees sejam liberadas evitando um

confronto fiacutesico192

Esta classificaccedilatildeo eacute importante por dois motivos primeiramente ela possibilita

compreender quando existe uma mudanccedila iliacutecita de tipo de diaacutelogo (dialectical shifts)

um diaacutelogo investigativo natildeo pode se transformar num diaacutelogo persuasivo (discussatildeo

criacutetica) porque os objetivos e os meacutetodos de cada qual satildeo diversos e por isso os

argumentos tambeacutem o satildeo Em segundo lugar compreende-se que eacute no diaacutelogo

persuasivo que as emoccedilotildees tecircm o seu habitat especiacutefico podendo ser positivas e

contribuiacuterem com os objetivos da discussatildeo Todavia entende-se que nos outros tipos

de diaacutelogo (negociaccedilatildeo por exemplo) e a depender do caso elas tambeacutem podem ser

legiacutetimas193

Por uacuteltimo antes de adentrar no estudo das falaacutecias conveacutem enfatizar que a

noccedilatildeo de raciociacutenio presuntivo tem um destacado papel neste modelo de anaacutelise do

discurso argumentativo porque possibilita que a discussatildeo caminhe em direccedilatildeo ao fim

mesmo quando no estado de conhecimento as evidecircncias satildeo insuficientes e as

premissas fracas ldquoa presunccedilatildeo no diaacutelogo permite que a argumentaccedilatildeo avance de um

modo uacutetil e revelador mesmo se evidecircncia suficiente natildeo estaacute disponiacutevel para permitir

que cada lado se comprometa categoricamente a certas premissas especiacuteficasrdquo194

Assim uma vez finalizada a exposiccedilatildeo de tais conceitos passa-se agrave explanaccedilatildeo

do apelo agrave compaixatildeo

Para saber quando o apelo agrave compaixatildeo eacute ou natildeo usado falaciosamente a

abordagem tradicional recomenda distinguir se um caso diz respeito a fatos ou a

sentimentos Caso o problema envolva mateacuteria factual o apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso

sendo adequado de seu turno caso apenas envolva sentimentos195

191

Id ibid p 100 192

WALTON D Op cit 1992 p 21-23 193

Id ibid p 23-24 194

ldquopresumption in dialogue enables argumentation to move forward in a revealing and useful way even

if sufficient evidence is not available to enable either side to commit itself categorically to some particular

premisesrdquo Id ibid p 57 195

Id ibid p 106

78

Em relaccedilatildeo a esta bifurcaccedilatildeo Walton endereccedila forte criacutetica pois a compreende

muito otimista em achar que fatos e sentimentos satildeo coisas totalmente isoladas Por

exemplo em casos como aborto e eutanaacutesia natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo apenas

facticidades E sentimentos satildeo muito importantes embora tambeacutem possam ser

excessivos ou inadequados Assim para alegar que um apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso

precisa-se demonstrar a sua irrelevacircncia ou inadequaccedilatildeo para a hipoacutetese tratada196

Exemplificativamente no seguinte caso ocorrido na Casa dos Comuns do

Canadaacute em 1987 eacute relatado que um parlamentar durante o debate poliacutetico solicitou

fundos do governo federal para finalizar um projeto de enciclopeacutedia pertencente ao Sr

Joey Smallwood uma figura poliacutetica canadense ldquorespeitadardquo e ldquobem-conhecidardquo

considerado um dos uacuteltimos ldquoPais da Confederaccedilatildeordquo ainda vivos Ademais eacute dito que

Smallwood estaacute por volta dos seus 80 (oitenta) anos num estado de sauacutede debilitado e

mereceria ter seu projeto que se revelaraacute num inestimaacutevel recurso para o povo

canadense ser concluiacutedo em vida ldquoeacute uma grande distorccedilatildeo ver uma das lendas vivas do

Canadaacute sendo forccedilado a lidar com xerifes na sua idade avanccedilada e em seu mau estado

de sauacutede Certamente o governo pode encontraacute-lo em seu coraccedilatildeo agorardquo diz o

deputado197

Walton diz que a questatildeo central no caso consiste em saber se tal projeto de

enciclopeacutedia eacute valoroso o suficiente para merecer ser financiado com dinheiro puacuteblico

Assim caso apenas o apelo agrave compaixatildeo esteja suportando a conclusatildeo de que o projeto

vale a pena ser financiado entatildeo tal emoccedilatildeo natildeo eacute relevante ou uacutetil pois eacute preciso

questionar em si mesmo o meacuterito do projeto Poreacutem na presunccedilatildeo de que o projeto

realmente valha a pena a compaixatildeo pode ser um argumento adequado fazendo parte

de um argumento maior a respeito do merecimento do projeto198

Este eacute um caso de forte apelo emocional que envolve sentimentos patrioacuteticos em

relaccedilatildeo a uma pessoa admirada por muitas outras num paiacutes Poreacutem a despeito da

tradiccedilatildeo de nomear tal tipo de argumentaccedilatildeo de falaciosa Walton entende que eacute preciso

atentar para a questatildeo do contexto em que tal discurso foi produzido Assim

considerando que ele foi declamado numa especiacutefica sessatildeo da Casa dos Comuns

196

Id ibid p 106-107 197

ldquoit is a great travesty to see one of Canadas living legends being forced to deal with sheriffs at his

advanced age and in his poor state of health Surely the government can find it in its heart nowrdquo (trad

livre) Id ibid p 111 198

Id ibid p 111

79

destinada a fazer recomendaccedilotildees de financiamento de projetos a emoccedilatildeo empregada eacute

adequada agraves regras do debate e natildeo destoa do tipo de discurso utilizado

Ademais Walton reforccedila que a proacutepria noccedilatildeo de apelo agrave compaixatildeo por estar

amarrada a conotaccedilotildees pejorativas quanto a sentimentos de pena influencia o

entendimento de que por si soacute jaacute seria errado inadequado ou falacioso utilizaacute-lo ldquose

perguntado se eles querem compaixatildeo pessoas deficientes ou veteranos de guerra

provavelmente diratildeo lsquonatildeorsquo porque lsquocompaixatildeorsquo tem conotaccedilotildees de

condescendecircnciardquo199

Assim a seu ver seria mais apropriado chamar de ldquoapelo agrave

simpatiardquo do que ldquoapelo agrave compaixatildeordquo o que evitaria tal carga semacircntica negativa

Em outro exemplo em 1987 tambeacutem na Casa dos Comuns do Canadaacute discute-

se um projeto de lei cujo texto busca regulamentar o uso de cigarro em locais puacuteblicos

bem como restringir a sua publicidade

Na fala do parlamentar Brud Bradley que se posiciona contra tal projeto de lei

o apelo agrave misericoacuterdia se corporifica na visualizaccedilatildeo das consequecircncias negativas sobre

todo um grupo de pessoas que depende da induacutestria do tabaco para sobreviver Apoacutes

relatar a difiacutecil saga dos produtores de tabaco muitos deles constituiacutedos por imigrantes

que chegaram ao Canadaacute e conseguiram criar sem nenhuma ajuda uma atividade que

rende bilhotildees para o paiacutes questiona-se a difiacutecil situaccedilatildeo em que todos esses cidadatildeos

ficaratildeo ldquonas aacutereas de cultivo de tabaco do Canadaacute temos falecircncias desagregaccedilatildeo

familiar e suiciacutedio E quanto a esses agricultores E sobre os 2600 produtores de tabaco

dedicados no Canadaacute O que a legislaccedilatildeo faz por elesrdquo200

Em resposta Dan Heap defendendo o ato alega que o que se estaacute em discussatildeo

eacute o direito agrave sauacutede que em seu olhar eacute muito mais importante do que o direito de ser

um produtor de tabaco Aleacutem disso 35000 pessoas morrem anualmente no Canadaacute de

doenccedilas relacionadas ao cigarro o que eacute um nuacutemero bem superior aos 2600 produtores

de tabaco

Walton analisando o caso registra que ambas as alegaccedilotildees apelam para

argumentos de consequecircncia Enquanto Bradley advoga as consequecircncias negativas do

projeto de lei Heap busca explorar as positivas O problema eacute que o argumento

utilizado por Bradley eacute fraco e altamente unilateral embora natildeo deva ser rejeitado como

199

ldquoIf asked whether they want pity disabled persons or returning war veterans will probably say lsquonorsquo

for pity has connotations of condescensionrdquo (trad livre) Id ibid p 112 200

ldquoin the tobacco growing areas of Canada we have bankruptcies family breakdown and suicide What

about those farmers What about the 2600 dedicated tobacco farmers in Canada What does the

legislation do for themrdquo (trad livre) Id ibid p 124

80

um todo porque eacute razoaacutevel tambeacutem se preocupar com as consequecircncias sociais

negativas geradas pela nova legislaccedilatildeo Ademais falta evidecircncia que suporte a relaccedilatildeo

causal entre a legislaccedilatildeo tabagista e a alegada falecircncia desagregaccedilatildeo familiar e suiciacutedio

de produtores de tabaco que tambeacutem ocorre em outras culturas agriacutecolas do Canadaacute

Assim tendo em vista que para bem deliberar acerca de um projeto de lei eacute preciso

visualizar todas as consequecircncias possiacuteveis da nova legislaccedilatildeo a extrema

unilateralidade do argumento utilizado por Bradley prejudica o objetivo da discussatildeo

Apoacutes analisar outros casos Walton estabelece a seguinte classificaccedilatildeo para

avaliar o uso do apelo agrave compaixatildeo

(i) razoaacutevel adequado ao contexto do diaacutelogo

(ii) fraco mas natildeo irrelevante ou falacioso quando o apelo eacute unilateral e estaacute

aberto a questionamento criacutetico

(iii) irrelevante o apelo agrave compaixatildeo eacute irrelevante por exemplo numa

investigaccedilatildeo cientiacutefica cujo objetivo eacute reunir evidecircncias para provar se uma

proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa e

(iv) falacioso o uso do apelo eacute fraco e utilizado agressivamente para bloquear os

fins do diaacutelogo e se proteger de questionamentos criacuteticos201

Aleacutem disso mais importante do que determinar se um uso eacute falacioso consiste

em saber como reagir adequadamente ao uso de tal emoccedilatildeo Para isso fornece-se o

seguinte checklist com sete fatores

(i) contexto identificar o contexto do diaacutelogo indagar se o uso da emoccedilatildeo eacute

adequado para aquele contexto e se contribui para os fins da discussatildeo

(ii) peso identificar o tamanho da importacircncia a ser dado ao uso do apelo no

caso em questatildeo o apelo agrave compaixatildeo eacute a questatildeo central do problema ou eacute

apenas algo secundaacuterio

(iii) neutralizaccedilatildeo caso o apelo seja o objeto central da discussatildeo eacute necessaacuterio

reagir energeticamente

(iv) outras consideraccedilotildees importantes caso o apelo agrave misericoacuterdia seja algo

secundaacuterio determinar quais satildeo as questotildees principais para o caso

(v) sopesamento quando o apelo agrave misericoacuterdia eacute utilizado por meio de

argumento por consequecircncias eacute necessaacuterio sopesar ambos os lados

201

Id ibid p 140

81

(vi) presunccedilotildees inadequadas os casos falaciosos geralmente se apresentam

quando o proponente por meio do apelo insere agressivamente uma presunccedilatildeo

com o objetivo de mascarar a necessidade de argumentar adequadamente e

(vii) mais informaccedilotildees ao inveacutes de precipitadamente taxar uma argumentaccedilatildeo

de ldquofalaciosardquo conveacutem requerer mais informaccedilotildees sobre as particularidades do

caso202

De outra parte em relaccedilatildeo ao apelo ao caraacuteter (ad hominem) Walton

diferentemente da abordagem tradicional da loacutegica que o presume sempre falacioso

defende que em determinados casos ele eacute adequado porque no cerne da questatildeo pode

interessar saber questotildees relacionadas ao caraacuteter da pessoa203

Eacute conveniente primeiramente notar que o apelo ao caraacuteter natildeo eacute em si mesmo

uma emoccedilatildeo A inclusatildeo entre as falaacutecias emocionais se justifica por conta dos seus

efeitos isto eacute pela sua capacidade de instigar os acircnimos emotivos nos seus

destinataacuterios204

Assim por exemplo no tribunal podem emergir duacutevidas razoaacuteveis sobre a

credibilidade do depoimento de uma testemunha A sua confiabilidade pode restar

prejudicada diante de inconsistecircncias de afirmaccedilotildees diante da demonstraccedilatildeo de que se

trata de uma pessoa tendenciosa ou de que eacute possuidora de mau caraacuteter Em todas essas

hipoacuteteses eacute razoaacutevel o uso de argumentos que coloque em cheque o caraacuteter da

pessoa205

Em campanhas poliacuteticas depois da chamada ldquoonda eacuteticardquo passou-se a

considerar que questotildees ligadas ao caraacuteter do candidato satildeo de interesse puacuteblico de

modo que eacute razoaacutevel em debates explorar inconsistecircncia de afirmaccedilotildees problemas de

conduta no passado do candidato financiamentos de campanha duvidosos206

O grande problema de argumentos que se destinem a atingir o caraacuteter de outra

pessoa estaacute na sua propensatildeo em transformar um diaacutelogo criacutetico em uma verdadeira luta

verbal em que os acircnimos dos participantes se elevam aos piores niacuteveis ldquode fato o que

acontece muito frequentemente eacute que o diaacutelogo criacutetico original se deteriora num diaacutelogo

eriacutestico ou em espeacutecies de lsquocombate verbalrsquo em que o senso criacutetico eacute deixado para traacutes e

202

Id ibid p 141-142 203

Id ibid p 193 204

Id ibid p p 259-260 205

Id ibid p 195-196 206

Id ibid p 193-194

82

o uacutenico objetivo eacute lsquogolpearrsquo verbalmente a outra parte para lhe ferirrdquo207

Neste caso o

uso do apelo ao caraacuteter eacute considerado falacioso porque altera ilicitamente um diaacutelogo

criacutetico para uma briga verbal (quarrel)208

Por uacuteltimo em relaccedilatildeo ao apelo agrave ameaccedila Walton diz que ele pode ser imoral

ilegal repulsivo brutal sem ser falacioso Para resultar numa falaacutecia ele precisa ir

contra os objetivos do diaacutelogo ldquomuito frequentemente os textos simplesmente

presumem que dado um brutal ou repulsivo ou moralmente repugnante apelo agrave forccedila os

estudantes ou os leitores natildeo necessitaratildeo de mais nenhum esforccedilo persuasivo para

classificaacute-lo como falaacuteciardquo209

Poreacutem em negociaccedilotildees diplomaacuteticas tais apelos satildeo adequados porque este tipo

de diaacutelogo normalmente envolve ameaccedila de sanccedilotildees de retaliaccedilotildees de rompimento de

relaccedilotildees econocircmicas etc Assim eacute preciso estar atento para o tipo de diaacutelogo e o

contexto em que o apelo foi utilizado Ademais eacute necessaacuterio observar se a forma pela

qual foi utilizado objetivou bloquear os objetivos do diaacutelogo Portanto para avaliar a

adequaccedilatildeo do uso da emoccedilatildeo faz toda diferenccedila se as partes se encontram numa

negociaccedilatildeo ou num diaacutelogo persuasivo210

Tendo realizada essa breve exposiccedilatildeo das falaacutecias parte-se agora para os

comentaacuterios finais acerca do modelo de anaacutelise de argumentos em comentaacuterio

Em primeiro lugar eacute preciso dizer que Walton se mostra bastante consciente a

respeito de duas abordagens que podem ser utilizadas para pensar as emoccedilotildees Assim eacute

possiacutevel entendecirc-las como contraacuterias agrave razatildeo e por isso natildeo lhes confiar nenhum

espaccedilo na argumentaccedilatildeo porque o seu uso de todo modo seria suspeito211

Neste

uacuteltimo modelo imperaria o paradigma da loacutegica fria (cold logic) isto eacute uma maneira de

pensar desapaixonada calma e fundada na loacutegica212

De outra parte eacute possiacutevel pensar

que as emoccedilotildees possuem uma funccedilatildeo importante em discussotildees eacuteticas poliacuteticas em

assuntos em que natildeo existe conhecimento conclusivo sobre o meacuterito da questatildeo213

207

ldquoIn fact too often what happens is that the original critical discussion deteriorates into an eristic

dialogue or species of lsquoverbal combatrsquo where critic restraint is left behind and the only aim is to lsquohit outrsquo

verbally to injure the other partyrdquo (trad livre) Id ibid p 192 208

Id ibid p 216 209

ldquoToo often the texts simply presume that given a brutal or repulsive or morally repugnant appeal to

force the students or readers of the text will need no further persuasion to classify it as fallacyrdquo Id ibid

p 78 210

Id ibid p 159 211

Id ibid p 67 212

Id ibid p 2 213

Id ibid p 67

83

Essas duas formas de pensar as emoccedilotildees estatildeo presentes respectivamente na

filosofia de Aristoacuteteles e dos estoicos Se pudeacutessemos realizar uma aproximaccedilatildeo entre

tais formas de pensar com o modelo que aqui expusemos afirmariacuteamos que Walton estaacute

proacuteximo do pensamento de Aristoacuteteles Poreacutem natildeo do pensamento presente na retoacuterica

aristoteacutelica mas da abordagem emotiva construiacuteda na Eacutetica a Nicocircmaco que

compreende que a boa medida das emoccedilotildees ocorre quando elas satildeo sentidas

adequadamente e isso significa dizer que elas devem ser experimentadas no momento

certo de modo correto em relaccedilatildeo agraves pessoas e aos fins certos Em outras palavras as

emoccedilotildees podem ser adequadas ou inadequadas de acordo com as circunstacircncias

Walton admite que as emoccedilotildees podem desempenhar uma importante funccedilatildeo na

argumentaccedilatildeo mas eacute preciso ter cautela porque elas tambeacutem podem ser mal utilizadas

Assim satildeo fornecidos alguns paracircmetros para verificar o seu grau de adequaccedilatildeo ou

inadequaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo

para o impacto do uso da emoccedilatildeo e para o contexto em que satildeo utilizadas Quando bem

empregadas elas satildeo legiacutetimas e importantes para uma boa decisatildeo

Ademais o canadense tambeacutem informa que essa ldquodisputardquo estre aristoteacutelicos e

estoicos a respeito das emoccedilotildees continua nos dias de hoje a exercer a sua influecircncia e

deu azo para que Brinton justificasse a criaccedilatildeo do argumentum ad indignationem Como

se sabe sentir raiva para a eacutetica estoica eacute terminantemente proibido sob qualquer

circunstacircncia mas para Aristoacuteteles natildeo sentir raiva em relaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo que

merecesse seria uma falha de caraacuteter Adotando este uacuteltimo posicionamento o

argumentum ad indignationem seria o uso da raiva na argumentaccedilatildeo na medida

adequada agrave situaccedilatildeo214

Walton justifica que estudar os aspectos falhos da argumentaccedilatildeo e

principalmente compreender quando as emoccedilotildees satildeo utilizadas inadequadamente eacute um

exerciacutecio importante para o aperfeiccediloamento da praacutetica argumentativa porque em

assuntos polecircmicos e difiacuteceis geralmente ficamos presos a inclinaccedilotildees pessoais

tornamo-nos facilmente apaixonados e perdemos a perspectiva criacutetica ldquoataques

pessoais diversatildeo emocional e outras tentaccedilotildees satildeo caracteriacutesticas mais frequentes da

argumentaccedilatildeo humana do que o uso de argumentos corretos e friamente imparciaisrdquo215

214

Id ibid p 68 215

ldquopersonal attack emotional diversion and other temptations are more often characteristic of human

reasoning than correct and coolly impartial argumentsrdquo (trad livre) Id ibid p 64

84

Por derradeiro registre-se que ao tentar encontrar um lugar para as emoccedilotildees na

argumentaccedilatildeo como o proacuteprio tiacutetulo da sua obra sugere Walton procura devolver

complexidade agrave mateacuteria evitando o impulso de previamente classificar qualquer apelo

emotivo como falacioso Desse modo a abordagem sob comento concilia-se com alguns

aspectos da argumentaccedilatildeo praacutetica mas frise-se sem perder a perspectiva criacutetica jaacute que

natildeo abandona a censura quanto ao mau uso das emoccedilotildees no discurso

De outra parte por ser um estudo criacutetico em relaccedilatildeo agraves ldquofalaacutecias adrdquo Walton

fica preso a este paradigma classificatoacuterio e por isso natildeo explora algumas questotildees

importantes para a mateacuteria Por exemplo como identificar as emoccedilotildees no discurso De

que modo elas podem se apresentar Tentar responder tais perguntas consiste no

objetivo do proacuteximo toacutepico

25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees

Localizar as emoccedilotildees no discurso natildeo eacute uma atividade oacutebvia e a linguiacutestica

recentemente tem envidado relevante esforccedilo para encontraacute-las embora nem sempre

tenha sido assim

Kerbrat-Orechionni afirma que o espaccedilo para as emoccedilotildees na linguiacutestica do sec

XX foi miacutenima216

Desse modo falando em nome de toda uma geraccedilatildeo Saphir em

1921 diz que o material da liacutengua satildeo os conceitos as ideias e a realidade objetiva

sendo que as emoccedilotildees satildeo consideradas subjetividades linguiacutesticas de importacircncia

secundaacuteria que tentam expressar questotildees interiores do homem O linguista alematildeo

categoricamente afirma que as emoccedilotildees na qualidade de manifestaccedilotildees instintivas que

partilhamos com os seres irracionais natildeo podem ldquo[] ser consideradas como fazendo

parte da concepccedilatildeo cultural essencial da linguagemrdquo217

Fazendo um contraste com esta afirmaccedilatildeo e jaacute num outro momento do seacuteculo

XX Schieffelin e Ochs em 1989 defendem que para aleacutem da funccedilatildeo de comunicar

informaccedilotildees referenciais a liacutengua eacute veiacuteculo fundamental na transmissatildeo de sentimentos

estados de espiacuterito e disposiccedilotildees ldquoesta necessidade eacute tatildeo criacutetica e tatildeo humana quanto

216

ORECCHIONI-KERBRAT Catherine Quelle place pour les eacutemotions dans la linguistique du XXe

siegravecle Remarques et aperccedilus In PLANTIN Christian DOURY Marianne TRAVERSO Veacuteronique

(dir) Les eacutemotions dans les interations Lyon Presses Universitaires de Lyon 2000 p 33 217

ldquothey cannot be considered as forming part of the essential cultural conception of languagerdquo (trad

livre) SAPHIR Edward Language an introduction to the study of speech New York Hartcourt Brace

and Company 1921 p 40

85

aquela de descrever eventosrdquo218

Assim separando os canais de transmissatildeo dos afetos

entre verbais e natildeo-verbais (expressotildees faciais gestos etc) os mencionados autores

concentram os seus estudos nos meios verbais de expressatildeo A conclusatildeo alcanccedilada eacute

que a liacutengua como um todo eacute um campo do afeto inclusive aquelas aacutereas

tradicionalmente consideradas circunscriccedilotildees exclusivas da loacutegica

Natildeo se pode arguir por exemplo que a sintaxe sirva exclusivamente a

funccedilotildees loacutegicas enquanto as funccedilotildees afetivas satildeo realizadas pela

entonaccedilatildeo e pelo leacutexico O afeto permeia o sistema linguiacutestico por

inteiro Praticamente qualquer aspecto do sistema linguiacutestico que eacute

variaacutevel eacute candidato a expressar afeto219

Eacute sobre esse tema que a escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo tem se preocupado

nos uacuteltimos tempos sendo Plantin um dos pioneiros no estudo das emoccedilotildees no discurso

Assim no intento de buscar referecircncias de anaacutelise para o exame de decisotildees judiciais a

ser realizado no Capiacutetulo III iremos abordar a classificaccedilatildeo proposta por Micheli um

dos representantes de tal escola

Eemeren conforme vimos anteriormente afirma que o ldquoteste aacutecidordquo de uma

teoria da argumentaccedilatildeo diz respeito agrave sua compreensatildeo sobre as falaacutecias Se ela passar

nessa difiacutecil prova pode-se dizer que estamos diante de uma teoria da argumentaccedilatildeo

com bom poder de explanaccedilatildeo e de alcance

Assim se levarmos rigorosamente tal afirmaccedilatildeo em consideraccedilatildeo podemos

dizer que iremos analisar uma teoria da argumentaccedilatildeo que perdeu o seu ldquoinstintordquo uma

vez que a abordagem utilizada eacute puramente descritiva A despeito disso abordagens

descritivas tecircm o seu papel pois procurando narrar os eventos do mundo de maneira

mais interessante podem organizar melhor determinados temas ou ateacute possibilitarem

melhores insights prescritivos

Dito isso Micheli considera que um dos grandes problemas em relaccedilatildeo ao

exame das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade O objetivo do seu

trabalho portanto consiste em fornecer um modelo que possibilite analisar e distinguir

o complexo processo em que as emoccedilotildees satildeo semiotizadas no discurso Para isso

apresenta-se uma tipologia classificatoacuteria econocircmica mas ao mesmo tempo

218

ldquoThis need is as critical and as human as that of describing eventsrdquo (trad livre) OCHS Elinor

SCHIEFFELIN Bambi Language has a heart In Interdisciplinary journal for the study of discourse 7-

26 p9 219

ldquoOne cannot argue for example that syntax exclusively serves logical functions while affective

functions are carried out by intonation and the lexico Affect permeates the entire linguistic system

Almost any aspect of the linguistic system that is variable is a candidate for expressing affectrdquo (trad

livre) Id ibid p 22

86

teoricamente forte o suficiente para descrever satisfatoriamente o fenocircmeno em

comentaacuterio220

Primeiramente adverte-se que tal modelo natildeo se interessaraacute pelas emoccedilotildees

efetivamente experimentadas pelos sujeitos do discurso Assim natildeo seraacute objeto de

especulaccedilatildeo se o sujeito realmente experimenta aquilo que ele exprime ou procura

suscitar no seu discurso (orador) nem seraacute o cerne da pesquisa saber se o destinataacuterio

do discurso de fato sente aquela emoccedilatildeo endereccedilada (auditoacuterio) porque poderaacute haver

discrepacircncias entre aquilo que eacute publicizado e o que eacute efetivamente sentido ldquoum estudo

da construccedilatildeo das emoccedilotildees no discurso natildeo concerne assim nem agrave emoccedilatildeo efetivamente

sentida pelo locutor nem aquela efetivamente suscitada no alocutaacuteriordquo221

Assim excluindo a categoria da emoccedilatildeo experimentada a tipologia apresentada

por Micheli para a anaacutelise do discurso emotivo eacute a seguinte a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo

demonstrada e a emoccedilatildeo suportada

Na categoria da emoccedilatildeo dita percebe-se a presenccedila de enunciados em cujo seio

se apresenta uma palavra do leacutexico que designa especificamente uma emoccedilatildeo (ldquoestes

problemas processuais me datildeo raivardquo ldquoo reacuteu estava indignadordquo) Uma das

caracteriacutesticas da emoccedilatildeo dita eacute que ela faz referecircncia a um ente que sente a emoccedilatildeo

(ldquomerdquo ldquoo reacuteurdquo) Assim natildeo pertencem a esta categoria aquelas hipoacuteteses em que uma

emoccedilatildeo eacute ela mesma objeto de descriccedilatildeo (ldquoa raiva eacute cegardquo ldquoo amor eacute capaz de tudordquo)

natildeo sendo estes enunciados hipoacuteteses de um discurso emotivo222

Desse modo na emoccedilatildeo dita eacute preciso que o item lexical designador de uma

emoccedilatildeo seja atribuiacutedo a uma entidade humana ou humanizaacutevel (ldquoo povordquo ldquoelerdquo ldquoeurdquo

algum animal etc) 223

Portanto uma das caracteriacutesticas do discurso que diz a emoccedilatildeo eacute

que ele tanto pode auto-atribuir a emoccedilatildeo (ldquoa situaccedilatildeo me deixa indignadordquo) quanto

pode alo-atribuiacute-la (ldquoa raiva tomou conta da meninardquo) Assim haacute uma relaccedilatildeo

predicativa entre duas expressotildees ldquouma que incorpora um termo emotivo e outro que

designa uma entidade humana ou humanizaacutevel que deveria sentir tal emoccedilatildeordquo224

220

MICHELI Raphaumlel Les eacutemotions dans les discours modegravele drsquoanalyse perspectives empiriques

Louvain-la-Neuve De Boeck Supeacuterieur 2014 p 11-12 221

ldquoUne eacutetude de la construction des eacutemotions dans le discours ne concerne ainsi ni lrsquoeacutemotion

effectivement ressentie par le locuteur ni celle effectivement susciteacuteeacute chez lrsquoallocutairerdquo (trad livre) Id

ibid p 118 222

Id ibid p 43 223

Id ibid p 43 224

ldquolrsquoune incorporant un terme drsquoeacutemotion lrsquoautre deacutesignant une entiteacute humaine ou humanisable censeacutee

ressentir cette eacutemotionrdquo (trad livre) Id ibid p 46

87

Ademais conveacutem registrar que existem fatores variaacuteveis nas declaraccedilotildees que

dizem uma emoccedilatildeo Por exemplo o termo emotivo pode pertencer a vaacuterias categorias

lexicais um nome (ldquoindignaccedilatildeordquo) um adjetivo (ldquoindignadordquo) um verbo (ldquoindignar-serdquo)

um adveacuterbio (ldquoindignadamenterdquo) De outra parte o termo emotivo pode ocupar

diferentes posiccedilotildees sintaacuteticas sujeito (ldquoa compaixatildeo se apoderou do juizrdquo)

complemento direto (ldquoele sentiu muita vergonhardquo) Vaacuterios verbos satildeo capazes de

facilitar esse processo ldquoinvadirrdquo ldquosubmergirrdquo ldquotomarrdquo ldquoterrdquo ldquoserrdquo ldquosentirrdquo

ldquoexperimentarrdquo ldquoexplodirrdquo etc (ldquoo depoimento da testemunha fez com que todos

explodissem de raivardquo)225

Se a emoccedilatildeo dita tem por sua caracteriacutestica o fato de ser mais facilmente

observaacutevel a categoria da emoccedilatildeo demonstrada carece de contornos precisos a sua

interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel apenas atraveacutes de indiacutecios que nos possibilitam inferir a

presenccedila de uma emoccedilatildeo ldquoenunciados que demonstrem uma emoccedilatildeo tecircm caracteriacutesticas

que embora potencialmente muito heterogecircneas satildeo todas passiacuteveis de uma

interpretaccedilatildeo indicialrdquo226

Assim na emoccedilatildeo demonstrada natildeo haacute a presenccedila de um expliacutecito termo

emotivo e por essa razatildeo inexiste uma relaccedilatildeo predicativa que a conecta a uma

entidade humana afetada pela emoccedilatildeo Por isso a sua interpretaccedilatildeo reside na procura de

indiacutecios ldquoIndiacuteciordquo aqui significa a presenccedila de um signo a partir do qual se infere a

presenccedila de determinado objeto porque normalmente diante da ocorrecircncia do

primeiro tambeacutem ocorre o segundo Em outras palavras pode-se afirmar que em face

da apresentaccedilatildeo de determinadas caracteriacutesticas discursivas eacute plausiacutevel inferir que ela eacute

causada por uma emoccedilatildeo supostamente sentida pelo locutor227

Registre-se que nesta categoria natildeo interessa saber a respeito da descriccedilatildeo de

processos fisioloacutegicos ou comportamentais da emoccedilatildeo (ldquoo coraccedilatildeo disparou os laacutebios

tremeram e ele sentiu um enorme frio na barrigardquo) pois se os indiacutecios satildeo verbalizados

e detalhados eles natildeo satildeo mais indiacutecios228

Assim a fim de esclarecer sem exaustividade quais indiacutecios satildeo importantes

para a categoria da emoccedilatildeo demonstrada oferecem-se alguns marcadores que precisam

ser interpretados dentro de um contexto situacional determinado a fim de compreender

225

Id ibid p 49-51 226

ldquoLes eacutenonceacutes qui montrent lrsquoeacutemotion preacutesentent des caracteacuteristiques qui bien que potentiellement tregraves

heacuteteacuterogegravenes sont toutes passibles drsquoune interpreacutetation indiciellerdquo (trad livre) Id ibid p 63 227

Id ibid p 64 228

Id ibid p 66-67

88

de que modo eles satildeo utilizados e a que espeacutecies de emoccedilatildeo eles se referem Por

exemplo (i) as interjeiccedilotildees (ldquonossa quanto processordquo ldquomeu deusrdquo ldquoahrdquo) (ii) a

exclamaccedilatildeo (ldquopreciso ir emborardquo ldquoque julgamentordquo) (iii) os enunciados eliacutepticos que

por meio de uma reduccedilatildeo sintaacutetica possibilitam a manifestaccedilatildeo indicial de uma emoccedilatildeo

(iv) os enunciados averbais (v) os enunciados deslocados agrave direita pois existe uma

relaccedilatildeo entre o modo de ordenar a frase dando ecircnfase a determinados elementos e as

emoccedilotildees (ldquoeacute muito trabalhador esse juizrdquo)229

Por uacuteltimo e de maior interesse para o nosso trabalho estaacute a ideia de emoccedilatildeo

suportada Nesta categoria eacute possiacutevel inferir que uma emoccedilatildeo fundamenta um

especiacutefico discurso natildeo porque ela seja nomeada explicitamente nem porque existam os

tipos de indiacutecios descritos logo acima mas porque a estrutura linguiacutestica do discurso

espelha ou ldquoesquematizardquo a estrutura cognitiva de uma determinada emoccedilatildeo

Primeiramente para explicar esta categoria Micheli fundamentado na

psicologia cognitiva especialmente na Teoria da Avaliaccedilatildeo que iremos abordar com

mais detalhes no proacuteximo toacutepico procura estabelecer uma relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a

avaliaccedilatildeo da realidade A experiecircncia emocional do sujeito estaacute diretamente relacionada

agrave avaliaccedilatildeo que ele faz de uma determinada situaccedilatildeo Dois indiviacuteduos podem avaliar

uma mesma situaccedilatildeo diferentemente e por isso obterem distintas respostas emocionais

Ademais baseando-se numa perspectiva socioloacutegica e antropoloacutegica enfatiza-se que o

contexto sociocultural tem destacada funccedilatildeo na forma pela qual o indiviacuteduo avalia a

realidade O pertencimento a uma determinada cultura pode explicar a preponderacircncia

de determinadas respostas emotivas em detrimento de outras230

Tais observaccedilotildees satildeo feitas com o objetivo de transpocirc-las para o campo da

anaacutelise do discurso ldquoa questatildeo agora eacute saber como tirar parte desses diversos trabalhos

numa oacutetica das ciecircncias da linguagem e para aquilo que nos interessa da anaacutelise do

discursordquo231

Para isso o autor recorre agrave noccedilatildeo de ldquoesquemardquo discursivo derivada de Grize O

esquema eacute uma especiacutefica forma de organizar a realidade fazecirc-la compreensiacutevel e

assim transmitir linguisticamente as emoccedilotildees Desse modo fornecem-se 7 (sete)

229

Id ibid p 75-95 230

Id ibid p 106-112 231

ldquoLa question est maintenant de savoir comment tirer parti de ces divers travaux dans une optique de

sciences du langage et pour ce qui nous concerne drsquoanalyse du discoursrdquo (trad livre) Id ibid p 112

89

criteacuterios de esquematizaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo emotiva derivados tanto da psicologia

cognitiva quanto dos trabalhos de Plantin

(i) as pessoas implicadas identificar quem satildeo as pessoas presentes no discurso

como elas satildeo representadas e nomeadas e quais papeis satildeo a elas associadas

(ii) as noccedilotildees de tempo e de espaccedilo identificar como a situaccedilatildeo eacute descrita no

tempo e no espaccedilo pelo locutor a fim de enfatizar os seus aspectos emotivos

ldquoontem mesmordquo ldquotodos os dias no Brasilrdquo

(iii) as consequecircncias e o grau de probabilidade identificar como o discurso

descreve as consequecircncias da situaccedilatildeo esquematizada e de que modo eacute

enfatizado o grau de probabilidade de seu acontecimento

(iv) a atribuiccedilatildeo causal e a autoria identificar se o discurso assinala uma causa

para a situaccedilatildeo esquematizada e se haacute um agente cuja accedilatildeo ou omissatildeo resultou

na hipoacutetese narrada por exemplo na indignaccedilatildeo a descriccedilatildeo do sofrimento de

um determinado sujeito eacute resultado de uma accedilatildeo ou de uma omissatildeo imputaacutevel a

um agente

(v) o potencial de controle identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo

emotiva eacute esquematizado O discurso pode enfatizar o grau de incontrolabilidade

de uma determinada situaccedilatildeo a fim de despertar o medo ou pode enfatizar a sua

controlabilidade para fundar sentimentos de aliacutevio e de alegria

(vi) a semelhanccedila identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute comparada com

outra situaccedilatildeo a fim de lhe emprestar conteuacutedo emocional Por exemplo

Micheli narra que em 1791 Robespierre no debate parlamentar a respeito da

aboliccedilatildeo da pena de morte na Franccedila lanccedila a seguinte comparaccedilatildeo a fim de

demonstrar a desproporcionalidade de forccedilas presente em duas situaccedilotildees um

homem que mata uma crianccedila a qual poderia ter sido simplesmente desarmada

parece ser um monstro um prisioneiro que a sociedade condena estaacute numa

situaccedilatildeo de maior fragilidade do que a de uma crianccedila ante a um adulto

(vii) a significaccedilatildeo normativa identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute

compatiacutevel ou incompatiacutevel com os valores e normas compartilhados em relaccedilatildeo

a um grupo de referecircncia A vergonha por exemplo atua diante da crenccedila da

incapacidade de atingir as normas de determinados grupos (profissional

familiar amigos etc)232

232

Id ibid p 115-119

90

Assim e a tiacutetulo comparativo na emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo eacute expressamente

designada por meio de um termo emotivo enquanto que na emoccedilatildeo demonstrada e

suportada a identificaccedilatildeo da emoccedilatildeo eacute alcanccedilada por meio de uma interpretaccedilatildeo

inferencial Por outro lado na emoccedilatildeo demonstrada parte-se de indiacutecios (signos) a fim

de se inferir a presenccedila de determinada emoccedilatildeo e na emoccedilatildeo suportada haacute uma

esquematizaccedilatildeo dos fundamentos de uma determinada emoccedilatildeo a partir do qual se infere

a sua presenccedila233

Ademais saliente-se que estas trecircs categorias (a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo

demonstrada e a emoccedilatildeo suportada) podem simultaneamente estar presentes num

mesmo discurso ou natildeo ou seja eacute possiacutevel que um discurso seja portador de uma

emoccedilatildeo sem que expressamente a mencione

Tendo finalizada a exposiccedilatildeo da classificaccedilatildeo elaborada por Micheli eacute preciso

registrar que um dos objetivos da abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees no discurso e que

vem ao encontro do escopo deste trabalho consiste em diminuir a forte separaccedilatildeo

atualmente existente entre logos e pathos

Nesse sentido Plantin destaca que em nossa eacutepoca os aspectos racionais e

emocionais andam tatildeo desconectados que ao se falar que um discurso tem caraacuteter

emotivo levanta-se automaticamente a suspeita de se estar tratando de algo em direccedilatildeo

oposta agrave razatildeo ldquoa antinomia racional e emocional estaacute tatildeo profundamente assentada que

caracterizar um discurso como lsquoemocionalrsquo equivale praticamente a dizer que ele natildeo eacute

racional Esta interpretaccedilatildeo deve ser fortemente rejeitadardquo234

Motivos para essa forte separaccedilatildeo com niacutetido prejuiacutezo para o estudo do campo

das emoccedilotildees natildeo faltam temos a longa tradiccedilatildeo pejorativa da retoacuterica as emoccedilotildees

foram intensamente utilizadas e associadas agrave propaganda de regimes totalitaacuterios a

disciplina das falaacutecias eacute o uacutenico espaccedilo dentro da teoria standard da argumentaccedilatildeo que

tematiza as emoccedilotildees e se pudermos refletir este assunto ainda mais distante no tempo

temos antigas tradiccedilotildees filosoacuteficas tal como a escola estoica que entendem as emoccedilotildees

como irracionais contraacuterias agrave natureza excessivas e que por isso deveriam ser

suprimidas a fim de compreendermos corretamente o mundo

233

Id ibid p 119-120 234

ldquoThe antonomy rationalemotional is so deeply grounded that characterizing a discourse as lsquoemotionalrsquo

practically amounts to implying that it is not rational Such an interpretation should be strongly rejectedrdquo

(trad livre) PLANTIN Christian On the Inseparability of Emotion and Reason in Argumentation In

WEIGAND Edda (ed) Emotion in dialogic interaction AmsterdamPhiladelphia John Benjamins

Publishing Company 2004 265-276 p 274

91

No entanto e sob a perspectiva argumentativa Plantin destaca que eacute

impraticaacutevel se livrar das emoccedilotildees na linguagem jaacute que o argumentar implica tambeacutem

assumir posiccedilotildees afetivas diante do mundo ldquoEacute impossiacutevel moldar linguisticamente um

evento sem no mesmo gesto mostrar uma atitude emocional em relaccedilatildeo a este evento

Manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees emocionais natildeo satildeo distintas das manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees

racionaisrdquo235

Destaque-se que na abordagem tradicional ou padratildeo da MTA as emoccedilotildees satildeo

vistas como ldquoreforccedilosrdquo ou ldquonatildeo-argumentosrdquo ocupam papel ldquoauxiliarrdquo no discurso satildeo

registradas como ldquoapelosrdquo e por isso tecircm um tratamento teoacuterico bem limitado

aparecendo no mais das vezes como erros de argumentaccedilatildeo na disciplina das ldquofalaacutecias

adrdquo

Contra este panorama Micheli advoga que as emoccedilotildees podem ser

argumentaacuteveis isto eacute elas mesmas podem ser objeto do discurso e por isso de

construccedilatildeo argumentativa ldquoa este respeito os falantes argumentam a favor ou contra

uma emoccedilatildeo eles datildeo razotildees para fundamentar por que eles sentem (ou natildeo sentem)

esta emoccedilatildeo e por que ela deveria (ou natildeo deveria) ser legitimamente sentidardquo236

Ao analisar os registros do debate parlamentar francecircs acerca da aboliccedilatildeo da

pena de morte entre 1791 ateacute 1981 Micheli anota que havia algo em comum entre

abolicionistas e anti-abolicionistas ambos forneciam razotildees para sentir ou natildeo sentir

uma determinada emoccedilatildeo

Por exemplo no debate de 1791 tanto os abolicionistas quanto os anti-

abolicionistas elaboram o sentimento de medo por meio de argumentos de

consequecircncia

Do lado abolicionista os efeitos do ldquoespetaacuteculo da execuccedilatildeordquo sobre o puacuteblico

satildeo construiacutedos argumentativamente do seguinte modo a pena de morte alimenta o

sentimento de crueldade nas pessoas porque ocorre um processo de dessensibilizaccedilatildeo

do ser humano ldquoo espetaacuteculo da execuccedilatildeo tem por efeito atenuar ou inibir as

disposiccedilotildees morais e afetivas saudaacuteveisrdquo237

Ademais a crueldade tornada puacuteblica eacute um

235

ldquoIt is impossible to linguistically shape an event without in the same gesture displaying an emotional

attitude towards this event Emotional manipulationsconstructions are not distinct from rational

manipulations constructionsrdquo (trad livre) Id ibid p 274 236

ldquoIn this respect speakers argue in favor of or against an emotion they give reasons supporting why

they feel (or do not feel) this emotion and why it should (or should not) be legitimately feltrdquo (trad livre)

MICHELI Raphaumlel Emotions as objects of argumentative constructions In Argumentation Journal

2010b vol 24 Issue 1 1ndash17 p 13 237

ldquole spectacle de lrsquoexeacutecution a pour effet drsquoatteacutenuer voire drsquoinhiber des dispositions morales et

affectives sainesrdquo (trad livre) MICHELI R op cit 2010a p 248

92

estiacutemulo para que pessoas perversas venham a cometer crimes ou seja cria-se um

ambiente propiacutecio ao cometimento de mais delitos238

Por sua vez do lado anti-abolicionista explora-se a ineficaacutecia das penas

alternativas em diminuir a criminalidade O criminoso potencial natildeo seraacute mais

atemorizado por nada o resultado disso eacute uma sociedade cheia de crimes e de

delinquentes

Em resumo por meio da construccedilatildeo de argumentos que antecipem as

consequecircncias negativas da nova legislaccedilatildeo cada parte do debate procurou estruturar o

sentimento de medo no discurso

Por uacuteltimo conveacutem registrar que embora a teoria desenvolvida por Micheli natildeo

tenha fornecido criteacuterios para a avaliaccedilatildeo do discurso emotivo ela significativamente

melhorou a visualizaccedilatildeo do tema ao possibilitar a organizaccedilatildeo do assunto por meio de

uma classificaccedilatildeo econocircmica compreensiacutevel e com capacidade descritiva Nesse ponto

eacute necessaacuterio reconhecer que aleacutem de natildeo se interessar pelo tema das emoccedilotildees a teoria

normativa da argumentaccedilatildeo parece tambeacutem sofrer de um deacuteficit descritivo

26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees

Enfrentar o tema das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo implica tambeacutem se posicionar a

respeito de problemas de psicologia e talvez resida neste especiacutefico ponto um dos

grandes diferenciais das escolas filosoacuteficas da Antiguidade Isso porque o pensamento

antigo era caracterizado por ser integral ou seja ele abrangia os mais diversos aspectos

do saber humano (eacutetica poliacutetica retoacuterica fiacutesica epistemologia etc) o que facilitava

significativamente o tratamento do presente assunto porque a proacutepria escola filosoacutefica

produzia a sua psicologia que depois era aplicada em outras aacutereas Desse modo tanto

Aristoacuteteles quanto os estoicos transitaram com autoridade sobre o tema das emoccedilotildees

justamente porque elaboraram sua proacutepria disciplina psicoloacutegica

Eacute certo que o forte desenvolvimento da ciecircncia moderna eacute tambeacutem resultado do

fenocircmeno da especializaccedilatildeo do saber o que permite por exemplo que uma pessoa

passe a sua vida inteira apenas pesquisando sobre as propriedades dos neutrinos Mas

por outro lado eacute razoaacutevel pensar que estes ldquodesligamentosrdquo entre as aacutereas provocaram

algumas fraturas de pensamento que hoje em dia a interdisciplinaridade procura um

pouco diminuir

238

Id ibid p 248-249

93

Desse modo a fim de possibilitar a compreensatildeo psicoloacutegica de nossa eacutepoca

acerca das emoccedilotildees nosso intento neste toacutepico consiste em apresentar alguns aspectos

principais da chamada Teoria da Avaliaccedilatildeo pertencente ao campo da psicologia

cognitiva

Assim em primeiro lugar situando historicamente o nascimento da Teoria da

Avaliaccedilatildeo interessa perceber que ateacute por volta de 1960 a importacircncia das emoccedilotildees

para a psicologia era praticamente nula devido agrave resistecircncia em relaccedilatildeo ao tema por

parte do behaviorismo e do positivismo loacutegico campos da psicologia predominantes na

eacutepoca A ecircnfase dos textos de psicologia era direcionada para a aprendizagem para a

personalidade para a motivaccedilatildeo para a percepccedilatildeo para a fisiologia e para a

psicopatologia239

Quando o presente tema era abordado a uacutenica emoccedilatildeo que ganhava algum

destaque por influecircncia freudiana era a anguacutestia entendida como emoccedilatildeo-chave para

explicar os transtornos de ordem mental as demais emoccedilotildees natildeo eram tematizadas

muito menos individualizadas Havia algum interesse em relaccedilatildeo agrave culpa tambeacutem por

influecircncia da psicanaacutelise e em relaccedilatildeo agrave depressatildeo mas esta uacuteltima natildeo eacute considerada

uma emoccedilatildeo mas um complexo processo mental em que vaacuterias emoccedilotildees negativas

estatildeo atuantes240

Outro pensamento influente era de que as emoccedilotildees natildeo passavam de

interrupccedilotildees das operaccedilotildees mentais natildeo merecendo por isso atenccedilatildeo241

Assim em

resumo ldquoos psicoacutelogos acadecircmicos pareciam estar pouco interessados nas emoccedilotildees e

uma vez que eles natildeo as incluiacuteam no curriacuteculo oficial eacute possiacutevel dizer que eles as

consideravam uma mateacuteria altamente especializada talvez ateacute exoacuteticardquo242

O pecircndulo da balanccedila comeccedilou a mudar em virtude dos trabalhos pioneiros de

Magda Arnold e de Richard S Lazarus na deacutecada de 1960 Assim divergindo do

paradigma da eacutepoca Arnold defendeu na sua teoria cognitiva que a deflagraccedilatildeo da

emoccedilatildeo depende em primeiro lugar da avaliaccedilatildeo feita pelo indiviacuteduo de uma

determinada situaccedilatildeo Por sua vez Lazarus realizando pesquisas entre a relaccedilatildeo das

239

LAZARUS Richard S Emotion amp adaptation New YorkOxford Oxford University Press 1991

p 4-5 240

Id ibid p 5 241

SCHOR Angela Appraisal the evolution of an idea In SCHERER Klaus R SCHORR Angela

JOHNSTONE Tom (ed) Appraisal processes in emotion theory methods research New York

Oxford University Press 2001 20-36 p 20 242

ldquoAcademic psychologists have seemed little interested in emotion and because they do not include it

in the core curriculum they could be said to regard it as a highly specialized perhaps even exotic topicrdquo

(trad livre) LAZARUS op cit p 5

94

emoccedilotildees com o stress utilizou tambeacutem a noccedilatildeo de avaliaccedilatildeo e de reavaliaccedilatildeo No

Simpoacutesio Loyola de 1970 Lazarus destaca

Estendendo a posiccedilatildeo de Magda Arnold apenas um pouco noacutes

argumentamos que o padratildeo de excitaccedilatildeo observada na emoccedilatildeo deriva

de impulsos para agir que satildeo gerados pela situaccedilatildeo avaliada pelo

indiviacuteduo e pelas possibilidades avaliadas disponiacuteveis para a accedilatildeo243

Assim foi a partir destes trabalhos que surgiu um novo campo de estudos sobre

as emoccedilotildees na psicologia cujo denominador comum consiste em colocar a ideia de

avaliaccedilatildeo no centro de suas pesquisas Em outras palavras as emoccedilotildees satildeo o resultado

de uma avaliaccedilatildeo acerca de uma determinada situaccedilatildeo realizada pelo sujeito

Antes de prosseguir a primeira observaccedilatildeo a ser feita em relaccedilatildeo a este

posicionamento diz respeito ao fato de que ele vai ao encontro do entendimento de

Crisipo que compreendia que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees sobre a realidade Esta

surpreendente coincidecircncia eacute expressamente notada por Scherer ldquoeste fenocircmeno jaacute

tinha sido descrito pelo filoacutesofo estoico Crisipo que pode muito bem ter sido o primeiro

verdadeiro teoacuterico da avaliaccedilatildeordquo244

Outro ponto digno de menccedilatildeo quanto a esse novo momento teoacuterico vivido na

psicologia foi o aparecimento do interesse por parte dos psicoacutelogos pelo estudo da obra

de Aristoacuteteles mais precisamente pelo Livro II da Retoacuterica parte em que satildeo tratadas as

emoccedilotildees sob uma oacutetica cognitiva Lazarus destaca que com algumas breves exceccedilotildees

na histoacuteria houve praticamente um intervalo de dois mil anos ateacute que o cognitivismo

emotivo pudesse ser novamente abordado245

O fato eacute que a construccedilatildeo teoacuterica realizada tanto por Aristoacuteteles quanto pelos

estoicos eacute de boa qualidade e a despeito do tempo continua a ser bastante atual e uma

preciosa referecircncia histoacuterica acerca do tema Relembrando o que dissemos o Estagirita

compreendia que a nossa visatildeo a respeito dos mais variados assuntos se altera de acordo

com os nossos estados emocionais Aleacutem disso esquematizou e individualizou a

243

ldquoExtending Magda Arnolds position just a bit we argue that the pattern of arousal observed in

emotion derives from impulses to action which are generated by the individuals appraised situation and

by the evaluated possibilities available for actionrdquo (trad livre) LAZARUS Richard S AVERILL James

R OPTON Edward M Torwards a cognitive theory of emotions in ARNOLD Magda (org) Feelings

and emotions the Loyola symposium New YorkLondon Academic Press 1970 207-232 p 218 244

ldquoThis phenomenon has already been described by the stoic philosopher Chrysippus who may well

have been the first real appraisal theoristrdquo (trad livre) SCHERER Klaus R The nature and study of

appraisal a review of the issues In SCHERER Klaus R SCHORR Angela JOHNSTONE Tom (ed)

Appraisal processes in emotion theory methods research New York Oxford University Press 2001

369-391 p 384 245

LAZARUS R Op cit p 14

95

estrutura de vaacuterias emoccedilotildees importantes sendo que os livros de psicologia cognitiva

tecircm adotado a mesma praacutetica hoje em dia Ademais conveacutem recordar que refinamentos

da psicologia aristoteacutelica tal como a ideia de phantasia explicam o surgimento e a

estruturaccedilatildeo das emoccedilotildees Do lado estoico pode-se dizer que o cognitivismo foi ainda

mais marcante porque natildeo fazia uso da ideia de sentimentos mistos (prazer e dor)

derivada de Platatildeo Por fim aleacutem de dizer que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees os estoicos

originalmente utilizaram a ideia de impulso de assentimento e de atribuiccedilatildeo de valores

para explicar o agrupamento de determinadas emoccedilotildees

Tendo registrado essas observaccedilotildees conveacutem agora compreender com mais

detalhes a abordagem da Teoria da Avaliaccedilatildeo delimitando a competecircncia da nossa

investigaccedilatildeo ao pensamento de Lazarus e de Scherer

Assim em primeiro lugar em relaccedilatildeo agrave sua deflagraccedilatildeo as emoccedilotildees satildeo

iniciadas apenas diante de eventos que de alguma forma avaliamos relevantes para a

nossa esfera pessoal Nesse sentido satildeo para noacutes subjetivamente importantes aspectos

factuais relacionados a valores necessidades objetivos ou bem-estar geral Quando

alguns destes fatores estatildeo em jogo numa dada situaccedilatildeo e a depender de como os

avaliamos deflagra-se uma especiacutefica resposta emocional (raiva oacutedio aliacutevio vergonha

alegria amor) Portanto o evento-gatilho da emoccedilatildeo precisa ser pessoalmente

significativo pois de outra forma haveraacute indiferenccedila emocional246

Aleacutem de avaliar se um evento eacute significativo ou natildeo surge uma outra etapa do

processo avaliativo em que ponderamos possiacuteveis opccedilotildees para lidar com a situaccedilatildeo Por

exemplo diante de um problema especiacutefico geralmente abrem-se duas estrateacutegias (i)

podemos tratar de solucionaacute-lo porque ele eacute da espeacutecie dos solucionaacuteveis (dialogar ou

entrar com uma medida judicial especiacutefica podem ser alternativas possiacuteveis para

resolver a raiva causada diante de um vizinho que continuamente desrespeite a lei do

silecircncio) (ii) podemos ter que trabalhar as nossas proacuteprias emoccedilotildees diante de

problemas resistentes ou insoluacuteveis (doenccedila crocircnica grave crise financeira etc) Assim

pode ser necessaacuterio a alteraccedilatildeo da significaccedilatildeo pessoal do evento por meio de uma

reavaliaccedilatildeo fundada em bases realiacutesticas Somos seres capazes de substituir

interpretaccedilotildees que deflagrem respostas emocionais disfuncionais e altamente destrutivas

por outras melhores247

246

LAZARUS Richard S LAZARUS Bernice N Passion amp reason making sense of our emotions

New YorkOxford Oxford University Press 1994 p 143 247

Id ibid p 152-161

96

Assim em resumo na avaliaccedilatildeo o sujeito natildeo se limita a ser um mero agente

passivo e receptor das informaccedilotildees externas mas tambeacutem possui um papel ativo na

forma como lida com os fatores ambientais podendo inclusive reavaliar a significaccedilatildeo

do evento ldquouma avaliaccedilatildeo ndash de que as emoccedilotildees satildeo dependentes ndash eacute muitas vezes um

julgamento complexo sobre como estamos nos relacionando com o ambiente e com as

nossas vidas em geral e como lidar com potenciais prejuiacutezos e benefiacuteciosrdquo248

Acrescente-se que no complexo momento avaliativo compreende-se que vaacuterias

escalas de julgamento satildeo possiacuteveis isto eacute podem ocorrer desde avaliaccedilotildees impliacutecitas e

automaacuteticas ateacute aquelas com alto niacutevel de consciecircncia portando conteuacutedo conceitual e

proposicional249

Aleacutem do sistema avaliativo acima descrito destacam-se tambeacutem os seguintes

componentes que estatildeo presentes no processo emotivo (i) componente motivacional

situaccedilotildees emocionalmente relevantes satildeo motivacionais de modo que nos impelem a

alterar o nosso curso de accedilatildeo a fim de adequaacute-lo agraves novas circunstacircncias (ii)

componente orgacircnico o nosso organismo (sistema motor somato-visceral atenccedilatildeo

expressatildeo accedilatildeo) fica integralmente comprometido com a situaccedilatildeo significativa (iii)

componente prioritaacuterio situaccedilotildees emotivas reclamam precedecircncia sobre a nossa atenccedilatildeo

e sobre o nosso controle comportamental250

Uma especiacutefica preocupaccedilatildeo dos teoacutericos da Teoria da Avaliaccedilatildeo diz respeito agrave

verificaccedilatildeo da correccedilatildeo da ideia segundo a qual maacutes decisotildees estatildeo fundadas em

emoccedilotildees e boas decisotildees estatildeo baseadas em razatildeo pura Esta eacute uma questatildeo que

tambeacutem especialmente nos interessa porque via de regra a resistecircncia quanto ao

tratamento teoacuterico das emoccedilotildees estaacute assentada na forte dicotomia ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo

Primeiramente eacute preciso ter em mente que apoacutes a emoccedilatildeo ter sido deflagrada o

controle da resposta emocional por intermeacutedio de avaliaccedilotildees a respeito de que modo

iremos lidar com as tendecircncias de accedilatildeo geradas pela emoccedilatildeo eacute um momento em que a

racionalidade se faz presente Uma accedilatildeo cujas consequecircncias sejam socialmente

destrutivas deve ser num juiacutezo avaliativo repelida Essa ideia de controle emocional

por intermeacutedio da razatildeo natildeo eacute desconhecida e de certo modo esse jaacute era o

248

ldquoAn appraisalmdashon which emotions dependmdashis often a complex judgment about how we are doing in

an encounter with the environment and in our lives overall and how to deal with potential harms and

benefitsrdquo (trad livre) Id ibid p 144 249

SCHERER Klaus R What are emotions And how can they be measured In Social Science

Information vol 44 n 4 2005 695-729 p 701 250

SCHERER Klaus R On the rationality of emotions or when are emotions rational In Social

Science Information vol 50 2011 330-350 p 334-335

97

posicionamento de Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando diz que as emoccedilotildees tecircm a

capacidade de ouvir a razatildeo

Todavia Lazarus afirma que a racionalidade tambeacutem se faz presente no primeiro

momento do processo emotivo o surgimento de uma emoccedilatildeo soacute ocorre porque uma

avaliaccedilatildeo compreende que certos objetivos valores ou crenccedilas acerca do mundo estatildeo

sendo numa determinada situaccedilatildeo prejudicados ou beneficiados Esta avaliaccedilatildeo

depende de racionalidade e vem acompanhada de pensamentos ainda que o raciociacutenio

em que tal julgamento seja embasado possa ser agraves vezes equivocado251

Sob tal perspectiva pode-se dizer que as emoccedilotildees estatildeo fundadas em razotildees

porque elas repousam numa loacutegica proacutepria A raiva de um determinado sujeito pode

soar desarrazoada para um estranho e de fato as atitudes geradas pela referida emoccedilatildeo

podem trazer um grande prejuiacutezo social por falta de adequado controle mas uma

pesquisa mais detalhada dos seus motivos revela que uma avaliaccedilatildeo conduziu a esta

resposta emocional especiacutefica porque entendeu que valores objetivos ou necessidades

do sujeito foram prejudicados numa determinada situaccedilatildeo

Assim anota Lazarus a razatildeo estaacute presente em todos os estaacutegios do processo

emotivo mas isso natildeo significa dizer que haja uma supremacia da razatildeo sobre a

emoccedilatildeo porque entre as duas haacute uma relaccedilatildeo de dupla dependecircncia natildeo apenas a

emoccedilatildeo precisa de aspectos racionais para o seu surgimento e para o seu controle mas a

razatildeo soacute eacute proveitosa diante do balanceamento da emoccedilatildeo Nesse sentido pontua

ldquoexiste algo de equiliacutebrio entre a razatildeo e a emoccedilatildeo Caso contraacuterio aiacute reside a

loucurardquo252

As emoccedilotildees assim tecircm uma funccedilatildeo primordial na sobrevivecircncia na

adaptaccedilatildeo no conhecimento e na qualidade de vida do indiviacuteduo

Uma consequecircncia de tal abordagem reside na reduccedilatildeo da dicotomia ldquorazatildeo vs

emoccedilatildeordquo porque ainda que a avaliaccedilatildeo em que se fundou a emoccedilatildeo seja pouco realista

natildeo-saacutebia e ateacute tola eacute possiacutevel extrair racionalidade que vincula o seu surgimento a

objetivos e crenccedilas do indiviacuteduo Desse modo ao inveacutes de insistir na mencionada

dicotomia eacute mais interessante tentar identificar quando raciociacutenios em que se baseiam

as emoccedilotildees satildeo considerados razoaacuteveis ou natildeo

Lazarus nesse intento relaciona uma lista de motivos que geralmente resultam

num erro de avaliaccedilatildeo (i) retardaccedilatildeo mental psicose e danos cerebrais (ii) falta de

251

LAZARUS R Op cit 1994 p 199-200 252

ldquoThere is something of a balance between them If not there lies madnessrdquo (trad livre) Id ibid p

203

98

conhecimento (iii) crenccedilas pessoais (iv) ambiguidade (v) falta de atenccedilatildeo (vi)

rejeiccedilatildeo253

Por exemplo um relevante segmento da populaccedilatildeo pode avaliar que a presenccedila

de imigrantes estaacute relacionada ao crescimento do cometimento dos mais diversos crimes

e agrave perda da identidade cultural da naccedilatildeo deflagrando-se um generalizado medo social

contra pessoas oriundas de outros paiacuteses Para solucionar tal problema avalia-se que a

melhor accedilatildeo a ser tomada consiste no enrijecimento da poliacutetica de imigraccedilatildeo do paiacutes

Essa avaliaccedilatildeo generalizada pode estar fundada em vaacuterios erros de julgamento

como a falta de conhecimento de estatiacutesticas que comprovem que natildeo apenas o nuacutemero

de imigrantes seja iacutenfimo mas que o nuacutemero de crimes praticados por imigrantes seja

muito irrelevante Ela pode estar pouco atenta ao fato de que o paiacutes natildeo tem uma

poliacutetica de integraccedilatildeo de imigrantes fazendo que muitos deles permaneccedilam excluiacutedos

da sociedade Ela pode desconsiderar o fato de que o paiacutes precisa de matildeo-de-obra

imigrante para o setor de serviccedilos e consequentemente para o seu crescimento

econocircmico E pode ateacute desconhecer que alguns imigrantes estavam em condiccedilatildeo de

risco em seus paiacuteses de origem Assim um trabalho de investigaccedilatildeo estaacute comprometido

em identificar em que se sustenta esse medo para possibilitar a criaccedilatildeo de poliacuteticas

puacuteblicas especiacuteficas que busquem desconfirmar as razotildees que o suportam

Scherer por sua vez ressalta que o paradigma da racionalidade perfeita em que

teriacuteamos todo o tempo possiacutevel para tomar decisotildees e disporiacuteamos de abundantes e

conclusivas informaccedilotildees a respeito do assunto objeto de deliberaccedilatildeo raramente eacute

atingido nas condiccedilotildees da vida praacutetica em que geralmente temos limitado prazo para

solucionar algo e natildeo possuiacutemos tantas informaccedilotildees quanto gostariacuteamos Assim no

mundo real em que vivemos as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas agrave

situaccedilatildeo satildeo bons suportes para decisotildees e compatiacuteveis com as concepccedilotildees de

racionalidade usualmente aceitas (instrumental inferencial e consensual) A seu ver a

tentativa de enquadraacute-las como irracionais eacute incompatiacutevel com a sua importacircncia

o sistema emotivo eacute um dos mais eficientes mecanismos

filogeneticamente evoluiacutedos para a adaptaccedilatildeo em organismos

superiores Mais especificamente pode-se mostrar que foi o

desenvolvimento das emoccedilotildees que libertou os organismos do riacutegido

controle de estiacutemulos proporcionando assim um repertoacuterio

comportamental altamente flexiacutevel e portanto uma oacutetima adaptaccedilatildeo

253

Id ibid p 208-213

99

para um ambiente de constante mudanccedila e de muacuteltiplos contextos

sociais254

Assim diante do modelo teoacuterico exposto parece-nos que uma abordagem que

leve em consideraccedilatildeo as emoccedilotildees natildeo pode partir do pressuposto de que elas natildeo satildeo

dignas de tematizaccedilatildeo por sua manifesta irracionalidade Ademais uma teoria da

argumentaccedilatildeo que encare seriamente o fenocircmeno emotivo precisa acessar um saber

psicoloacutegico sob pena de se construir em cima de bases artificiais

254

ldquoThe emotion system is one of the most efficient phylogenetically evolved mechanisms for adaptation

in higher organisms More specifically it can be shown that it was the development of emotion that freed

organisms from rigid stimulus control thus providing for a highly flexible behavioral repertoire and thus

optimal adaptation to an ever-changing environment and multiple social contextsrdquo (trad livre)

SCHERER K Op cit 2011 p 331

100

3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO

31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito

Se no Capiacutetulo I examinamos a importacircncia do estudo das emoccedilotildees na

Antiguidade o Capiacutetulo II foi dedicado a investigar a sua recepccedilatildeo pela MTA com o

objetivo de inclusive coletar criteacuterios para anaacutelise e para avaliaccedilatildeo de decisotildees

judiciais Nesse intuito construiacutemos o ambiente histoacuterico do surgimento da MTA

observamos a abordagem teoacuterica dos ldquopais fundadoresrdquo examinamos o tema na

disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo percebemos a reaccedilatildeo teoacuterica de Douglas Walton Por fim

analisamos uma abordagem linguiacutestica e descritiva do discurso emotivo bem como o

posicionamento da psicologia cognitiva especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo a

respeito deste assunto

Este Capiacutetulo por sua vez busca refletir especificamente a importacircncia das

emoccedilotildees no acircmbito do direito Assim este toacutepico buscaraacute responder agrave pergunta mais

baacutesica sobre esse tema eacute possiacutevel pensar o fenocircmeno juriacutedico sem as emoccedilotildees Qual a

sua relevacircncia

Um possiacutevel ponto de partida para refletir este toacutepico seria pensarmos a partir do

proacuteprio desenvolvimento teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo e as suas respectivas

consequecircncias na aacuterea do direito Conforme vimos as emoccedilotildees satildeo deflagradas diante

de eventos que avaliamos relevantes do ponto de vista de valores crenccedilas objetivos

bem-estar geral Em outras palavras as emoccedilotildees encontram terreno feacutertil para serem

iniciadas apenas em face de eventos significativamente salientes A este respeito

poderiacuteamos desde jaacute elucubrar que o direito seria o haacutebitat especiacutefico deste tema

porque os assuntos de que ele se ocupa em grande parte nos tocam profundamente e

satildeo deflagradores de fortes emoccedilotildees crimes hediondos homiciacutedio latrociacutenio

maioridade penal direito de famiacutelia divoacutercio adoccedilatildeo uniatildeo homoafetiva direitos

humanos cotas raciais direito do consumidor aborto eutanaacutesia direito agrave sauacutede

indenizaccedilatildeo moral e tantos outros

Contra esta ideia e prosseguindo no raciociacutenio eacute possiacutevel arguir de maneira

plausiacutevel que natildeo deveriacuteamos nos guiar por nenhuma dessas emoccedilotildees eventualmente

suscitadas caso contraacuterio os efeitos seriam catastroacuteficos Assim pessoas com

descontrolaacutevel raiva munidas de tremendo oacutedio e de indignaccedilatildeo ou melhor

101

apaixonadas estatildeo desprovidas da capacidade de raciociacutenio e por isso natildeo podem ser

paracircmetro de direcionamento nem para a legislaccedilatildeo nem para a decisatildeo judicial

O direito estaria assim exclusivamente no campo de uma racionalidade strictu

sensu natildeo lhe sendo admitida a intromissatildeo de qualquer elemento exoacutegeno Nussbaum

nesse ponto diz que uma possiacutevel reaccedilatildeo em face da tentativa de introduzir elementos

emotivos no acircmbito juriacutedico seria alegar a sua completa irracionalidade e por isso a

impossibilidade de levaacute-los em consideraccedilatildeo ldquoexiste um famoso lugar-comum no

sentido de que o direito eacute baseado na razatildeo e natildeo na paixatildeordquo255

Eacute possiacutevel chamar a

tradiccedilatildeo legal que compreende as emoccedilotildees como estranhas ao direito de proposta ldquonatildeo-

emotivardquo Poreacutem um tal posicionamento simplesmente desqualifica tanto o debate

teoacuterico e praacutetico acerca do direito ldquoem primeiro lugar o direito sem apelo agrave emoccedilatildeo eacute

virtualmente impensaacutevelrdquo256

A introduccedilatildeo de uma abordagem emotiva no direito eacute necessaacuteria agrave compreensatildeo

do fenocircmeno juriacutedico em vaacuterios sentidos conseguimos entender por que alguns tipos de

danos contra nossa esfera privada e coletiva satildeo condenados e outros natildeo por que

algumas leis adquirem determinada forma por que decisotildees judiciais podem levar em

consideraccedilatildeo certos tipos de emoccedilatildeo ldquomais profundamente eacute difiacutecil compreender a

racionalidade de muitas das nossas praacuteticas juriacutedicas a menos que levemos em

consideraccedilatildeo as emoccedilotildeesrdquo257

Uma maneira adequada para compreender essa relaccedilatildeo em comentaacuterio consiste

em observar que o direito soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres passiacuteveis de vulnerabilidade

isto eacute a existecircncia de proteccedilatildeo legal apenas pode resguardar sujeitos cujas vidas

possam de algum modo sofrer certos tipos de danos ou contingecircncias Assim num

exerciacutecio de imaginaccedilatildeo natildeo faria sentido uma norma cujo conteuacutedo protegesse seres

invulneraacuteveis autossuficientes imortais porque eles natildeo podem sofrer nenhum

prejuiacutezo nada lhes pode ferir ou causar qualquer espeacutecie de estrago258

E somente em relaccedilatildeo a seres cuja constituiccedilatildeo seja caracterizada pela

vulnerabilidade eacute que as emoccedilotildees fazem sentido Assim as emoccedilotildees satildeo respostas agraves

mais diversas fragilidades existentes no ser humano Por exemplo uma vez que a nossa

255

ldquoThere is a popular commonplace to the effect that the law is based on reason and not passionrdquo (trad

livre) NUSSBAUM Martha Hiding from humanity disgust shame and the law PrincetonOxford

Princeton University Press 2004 p 5 256

ldquoFirst of all law without appeals to emotion is virtually unthinkablerdquo (trad livre) Id ibid p 5 257

ldquoMore deeply it is hard to understand the rationale for many of our legal practices unless we do take

emotions into accountrdquo (trad livre) Id ibid p 6 258

Id ibid p 6

102

reputaccedilatildeo eacute vulneraacutevel e por isso pode ser socialmente destruiacuteda estamos sujeitos agrave

vergonha e a lei penal nos protege por meio da tipificaccedilatildeo dos crimes de caluacutenia de

difamaccedilatildeo ou de injuacuteria A lei penal tambeacutem nos protege do medo de eventualmente

termos nossa integridade fiacutesica psiacutequica patrimonial violada porque em todas essas

aacutereas somos sujeitos a vaacuterias espeacutecies de danos

Assim um ser cuja constituiccedilatildeo natildeo possa de alguma forma sofrer danos natildeo

poderaacute experimentar uma resposta emotiva Nada lhe deflagraraacute medo jaacute que nenhum

mal pode lhe sobrevir Nada lhe provocaraacute vergonha raiva ou qualquer sorte de emoccedilatildeo

deflagrada pela razoaacutevel possibilidade de ocorrer prejuiacutezos agrave sua esfera pessoal ldquoeles

natildeo possuiriam razotildees para ter tristeza porque sendo autossuficientes natildeo amariam

nada fora de si pelo menos natildeo com o necessaacuterio tipo de amor humano que daacute origem a

uma profunda perda e depressatildeordquo259

Neste momento parece-nos apropriado retomar a ideia estoica de apatheia

Conforme vimos os estoicos possuiacuteam uma escala de valores bem singular a uacutenica

coisa boa que existe eacute a virtude e a uacutenica ruim eacute o viacutecio a virtude se confunde com a

felicidade e o viacutecio com a infelicidade Assim sauacutede beleza riqueza fama bens

materiais satildeo considerados indiferentes eacute certo que alguns satildeo preferiacuteveis (sauacutede por

exemplo) e outros natildeo-preferiacuteveis mas ainda assim todos satildeo indiferentes porque a

sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a conquista da felicidade Eacute possiacutevel ser feliz na miseacuteria

na doenccedila na tortura Poreacutem eacute impossiacutevel ser feliz caso o indiviacuteduo natildeo possua virtude

Os indiferentes se caracterizam pela sua contingecircncia e pela sua ambiguidade isto eacute

eles satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna mundana aleacutem de poderem ser tanto beneacuteficos

quanto maleacuteficos Nessa ordem de ideias ateacute a sauacutede pode ser mal utilizada caso a

detenccedilatildeo de boa sauacutede seja instrumentalizada para objetivos ruins (participar de roubos

assaltos etc)

Nesse modelo teoacuterico as emoccedilotildees precisam ser eliminadas porque quem

experimenta as emoccedilotildees do homem comum valora equivocadamente o que de fato eacute

bom ou ruim O saacutebio estoico tendo atingido a suma racionalidade no caminho para a

compreensatildeo do mundo corretamente livrou-se de todas as emoccedilotildees desvinculou-se

dos bens externos (indiferentes) e tornou-se um ser autossuficiente e virtuoso ldquoos

filoacutesofos estoicos gregos e romanos recorreram a esta ideia ao pedir na medida em que

259

ldquoThey would have no reasons for grief because being self-sufficient they would not love anything

outside themselves at least not with the needy human type of love that gives rise to profound loss and

depressionrdquo (trad livre) Id ibid p 6

103

pudermos para nos tornarmos pessoas autossuficientes extirpando as emoccedilotildees de

nossas vidasrdquo260

Diante de tal concepccedilatildeo eacute possiacutevel indagar o modelo estoico da apatheia eacute uma

abordagem plausiacutevel para a compreensatildeo do sistema juriacutedico tal qual o conhecemos

Certamente natildeo

O sistema juriacutedico eacute um conjunto de regras e princiacutepios que tutela os nossos bens

materiais a nossa integridade fiacutesica e psiacutequica a nossa sauacutede a nossa esteacutetica o nosso

patrimocircnio cultural a nossa intimidade a nossa reputaccedilatildeo social e identidade E assim o

faz porque atribuiacutemos enorme valor a todos esses aspectos de nossa existecircncia

Ademais por valorarmos todos esses aspectos e por temermos possiacuteveis prejuiacutezos ou

danos em relaccedilatildeo a eles o direito leva em consideraccedilatildeo as nossas emoccedilotildees

Se desprezarmos todas as respostas emocionais que nos ligam a este

mundo daquilo que os estoicos chamavam de lsquobens externosrsquo

deixamos de lado uma grande parte da nossa humanidade e uma parte

que estaacute no cerne de explicar por que temos leis civis e criminais e

que forma elas tomam261

Assim qualquer ordenamento juriacutedico apenas adquire contorno apoacutes a seleccedilatildeo

das condutas e dos bens (materiais e imateriais) em virtude dos quais as nossas

respostas emotivas satildeo relevantes A estrutura das leis criminais e civis espelha o medo

social de sua eacutepoca As leis que protegem a vida expressam a medida desse temor e

declaram a indignaccedilatildeo contra condutas que se contraponham aos seus mandamentos

ldquotoda a estrutura do direito penal pode-se dizer que implica uma imagem do que temos

razotildees para estar zangado ou temerosordquo262

Mas a questatildeo natildeo se restringe apenas agrave formataccedilatildeo da legislaccedilatildeo Por exemplo

em 1976 a Suprema Corte americana declarou inconstitucional a lei da Carolina do

Norte que estabelecia pena de morte porque natildeo possibilitava que o reacuteu apresentasse a

sua histoacuteria de vida nem apelasse agrave compaixatildeo dos jurados nos seguintes termos

Um processo que atribui nenhum significado para relevantes facetas

de caraacuteter e os antecedentes do infrator ou as circunstacircncias de

determinado delito exclui de consideraccedilatildeo na fixaccedilatildeo da pena de

morte a possibilidade de fatores de compaixatildeo ou atenuantes

decorrentes das diversas fragilidades do ser humano Ele trata todas as

260

ldquoThe Greek and Roman Stoic philosophers draw on this idea when they ask us all to become such self-

sufficient people insofar as we can extirpating the emotions from our livesrdquo (trad livre) Id ibid p 6 261

ldquoIf we leave out all the emotional responses that connect us to this world of what the Stoics called

lsquoexternal goodsrsquo we leave out a great part of our humanity and a part that lies at the heart of explaining

why we have civil and criminal laws and what shape they takerdquo (trad livre) Id ibid p 7 262

the whole structure of criminal law might be said to imply a picture of what we have reason to be

angry at what we have reason to fear (trad livre) Id ibid p 11

104

pessoas condenadas por um delito natildeo como seres humanos

unicamente individuais mas como membros de uma indiferenciada

massa sem rosto para serem submetidos agrave imposiccedilatildeo cega da pena de

morte263

De outra parte no direito norte-americano o acusado de crime de homiciacutedio

voluntaacuterio pode obter uma reduccedilatildeo penal caso prove que o homiciacutedio tenha sido

cometido em resposta a uma provocaccedilatildeo da viacutetima que tal provocaccedilatildeo tenha sido

ldquoadequadardquo que a raiva do acusado possa ser enquadrada como uma raiva atribuiacutevel a

um homem-meacutedio e que o homiciacutedio tenha sido cometido no calor da emoccedilatildeo sem

tempo suficiente para reflexatildeo264

No Brasil de seu turno uma violenta emoccedilatildeo eacute causa

atenuante da pena de acordo com os arts 65 III ldquocrdquo 121 sect 1ordm e 129 sect 9ordm do Coacutedigo

Penal

Para a configuraccedilatildeo da legiacutetima defesa exige-se que ela seja praticada em face

de uma conduta que provoque medo razoaacutevel de modo que o medo precisa ser

argumentado para fins da decisatildeo judicial Ademais o apelo agrave compaixatildeo eacute largamente

admitido no direito penal norte-americano ldquomesmo os juristas mais cautelosos

concordam que a compaixatildeo eacute construiacuteda no processo de condenaccedilatildeo e qualquer

tentativa de eliminaacute-la viola os direitos fundamentaisrdquo265

Nussbaum partindo dos estoicos e da filosofia claacutessica recorre ao modelo da

psicologia cognitiva a fim de utilizar um paradigma teoacuterico acerca das emoccedilotildees

passiacutevel de ser empregado para compreender o direito Assim a seu ver as emoccedilotildees satildeo

resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos Apenas temos respostas

emocionais diante de algo ou de uma situaccedilatildeo significativamente relevante para a nossa

esfera pessoal Caso a situaccedilatildeo envolva banalidades ela seraacute emocionalmente

irrelevante Desse modo diferentemente da propagada ideia popular que as

compreende como meros impulsos instintuais ou algo desprovido de qualquer

raciociacutenio as emoccedilotildees natildeo podem ser consideradas irracionais num sentido descritivo

embora elas o possam ser num sentido normativo isto eacute quando fundadas em crenccedilas

263

Trata-se do caso Woodson v North Carolina (1976) citado por Nussbaum ldquoA process that accords no

significance to relevant facets of the character and record of the individual offender or the circumstances

of the particular offense excludes from consideration in fixing the ultimate punishment of death the

possibility of compassionate or mitigating factors stemming from the diverse frailties of humankind It

treats all persons convicted of a designated offense not as uniquely individual human beings but as

members of a faceless undifferentiated mass to be subjected to the blind infliction of the penalty of

deathrdquo Id ibid p 21 264

Id ibid p 37 265

ldquoeven the most cautious jurists agree that compassion is built into the sentencing process and that any

attempt to eliminate it violates fundamental rightsrdquo Id ibid p 56

105

ou pensamentos equivocados (racismo sexismo etc)266

ldquopodemos destacar quando a

emoccedilatildeo de algueacutem repousa sobre crenccedilas que satildeo verdadeiras ou falsas e (um ponto

separado) razoaacutevel ou natildeo razoaacutevelrdquo267

No entanto o mais importante a ser destacado eacute que elas satildeo factiacuteveis de

observaccedilatildeo e de discussatildeo criacutetica Para aleacutem de tal constataccedilatildeo descritiva (as emoccedilotildees

satildeo resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos) tambeacutem eacute possiacutevel

avaliar as emoccedilotildees vale dizer eacute aceitaacutevel ponderar o papel que elas desempenham em

determinados ramos do direito e de que modo elas poderiam ser o nossos guias na vida

puacuteblica restabelecendo assim o debate aristoteacutelico entre emoccedilotildees

adequadasinadequadas de acordo com as circunstacircncias e as emoccedilotildees perversas isto eacute

aquelas que natildeo deveriam ser os nossos paracircmetros em nenhuma hipoacutetese

Exemplificativamente a repugnacircncia268

eacute uma emoccedilatildeo bastante marcante na

vida do ser humano e na constituiccedilatildeo da formaccedilatildeo cultural de uma sociedade Ela estaacute

relacionada ao acircmbito de nossas necessidades iacutentimas ao que entendemos por limpeza

por sujeira ou imundiacutecie agrave maneira pela qual administramos os resiacuteduos fecais a urina

os gases puacutetridos as secreccedilotildees o lixo ela gerencia os odores suportaacuteveis e natildeo

suportaacuteveis do indiviacuteduo estaacute relacionada ao que entendemos por nojento repulsivo

asqueroso tem uma funccedilatildeo na fisiologia humana porque nos adverte sobre possiacuteveis

contaminantes existentes no ambiente (comida liacutequido etc) que podem nos infectar

provocando doenccedilas e ateacute a morte Em resumo a repugnacircncia nos guia na nossa rotina

diaacuteria de limpezas escovaccedilotildees asseios lavagens isolamentos embalagens

organizaccedilotildees no uso de bactericidas de inseticidas de perfumes de aromatizantes etc

Mas para aleacutem do acircmbito das intimidades e da funccedilatildeo fisioloacutegica a repugnacircncia

invade outras aacutereas da existecircncia humana Assim a nossa vida moral eacute tambeacutem

constituiacuteda por essa emoccedilatildeo que nos conduz a fazer certas escolhas no domiacutenio privado

e puacuteblico Por consequecircncia (e inevitavelmente) ela adentra no acircmbito do direito ldquoa

repugnacircncia tambeacutem desempenha um papel poderoso no direito Ela aparece em

primeiro lugar como a principal ou mesmo a uacutenica justificaccedilatildeo para tornar algumas

condutas ilegaisrdquo269

266

Id ibid p 10-11 267

ldquoWe can point out that someonersquos emotion rests on beliefs that are true or false and (a separate point)

reasonable or unreasonablerdquo (trad livre) Id ibid p 31 268

O termo inglecircs eacute disgust cuja traduccedilatildeo tambeacutem pode ser vertida por nojo ou por aversatildeo mas que

preferimos a expressatildeo ldquorepugnacircnciardquo por acharmos mais adequada agrave nossa cultura emocional 269

ldquoDisgust also plays a powerful role in the law It figures first as the primary or even the sole

justification for making some acts illegalrdquo (trad livre) Id ibid p 72

106

Assim a lei que regula os atos obscenos eacute guiada em grande parte pelos

pensamentos de repugnacircncia prevalecentes no padratildeo moral da sociedade de sua eacutepoca

A Suprema Corte americana observou quando da aplicaccedilatildeo da lei de atos obscenos que

a proacutepria palavra ldquoobscenordquo deriva do latim caenum cujo significado eacute repugnante A

repugnacircncia do criminoso em relaccedilatildeo a uma viacutetima homossexual jaacute foi considerada fator

atenuante em crime de homiciacutedio Aleacutem disso a repugnacircncia do juiz ou do juacuteri tambeacutem

eacute considerada um guia para ponderar na decisatildeo a presenccedila de potenciais fatores

agravantes no fato delituoso270

Na comissatildeo de exame de assuntos eacuteticos do governo americano acerca das

pesquisas de ceacutelulas-tronco o especialista em bioeacutetica Leon Kass argumentou que as

novas possibilidades da medicina deveriam ser submetidas agrave ldquosabedoria da

repugnacircnciardquo a fim de alcanccedilarmos uma conclusatildeo eacutetica sobre o seu disciplinamento

juriacutedico Quanto agrave possibilidade de clonagem humana o seu banimento foi justificado

por idecircntico motivo271

No Brasil a repugnacircncia eacute criteacuterio expresso em nossa legislaccedilatildeo para a criaccedilatildeo

de fatos tiacutepicos Assim os crimes hediondos satildeo aqueles que nos provocam repulsa

repugnacircncia nojo aversatildeo Hediondo vem da palavra em latim ldquofoetibundusrdquo que

significa ldquoo que cheira malrdquo a outra palavra relacionada em latim eacute ldquofoetererdquo que

significa ldquofeder ter mau cheirordquo

Em defesa da repugnacircncia como guia na vida puacuteblica podem-se colher os

seguintes argumentos (i) toda sociedade tem o direito agrave autopreservaccedilatildeo moral e para

isso as leis devem ser elaboradas levando em consideraccedilatildeo as respostas emotivas de

repugnacircncia dos seus membros (ii) a repugnacircncia eacute uma sabedoria social que nos

impede transgredir o que eacute moralmente profundo numa determinada comunidade (iii) eacute

preciso combater os viacutecios de uma determinada sociedade por meio de sentimentos de

repugnacircncia e (iv) a repugnacircncia eacute essencial para condenar e reprimir crueldades272

Todavia alega Nussbaum a repugnacircncia nunca deveria ser paracircmetro para

elaboraccedilatildeo de leis pois tal emoccedilatildeo estaacute ligada a pensamentos de pureza de

contaminaccedilatildeo de contaacutegio Do ponto de vista teoacuterico estaacute conectada agrave ideia do

decaimento das condiccedilotildees naturais do nosso corpo da nossa mortalidade da nossa

animalidade A repugnacircncia historicamente foi direcionada a certos grupos sociais

270

Id ibid p 72 271

Id ibid p 72-73 272

Id ibid p 73

107

(mulheres homossexuais negros etc) que eram associados a todos os predicados

(imundos sujos nojentos fedorentos) respeitantes a tal emoccedilatildeo

ao longo da histoacuteria certas propriedades repugnantes ndash viscosidade

fedor ligosidade decadecircncia imundiacutecie ndash tecircm repetida e

monotonamente sido associadas ou melhor projetadas em grupos de

referecircncia a quem os grupos privilegiados procuram contrastar o seu

estado humano superior Judeus mulheres homossexuais intocaacuteveis

pessoas de classe baixa todos eles satildeo imaginados como maculados

pela sujeira do corpo273

Outra emoccedilatildeo fortemente relacionada ao direito eacute a vergonha No direito norte-

americano discute-se a imposiccedilatildeo de penalidades que tenha a capacidade de

profundamente envergonhar o cidadatildeo em substituiccedilatildeo agraves denominadas ldquopenas

alternativasrdquo (penas pecuniaacuterias ou prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade) jaacute que estas

natildeo tecircm a aptidatildeo de gerar a transformaccedilatildeo do caraacuteter do indiviacuteduo Ateacute a cadeia

ambiente em que o indiviacuteduo estaacute longe do olhar social punitivo natildeo tem a capacidade

de lhe humilhar Assim as penalidades que imponham severos sentimentos de vergonha

conseguiriam atingir de maneira muito mais eficiente o propoacutesito de retribuiccedilatildeo de

dissuasatildeo de expressatildeo e de reforma ou reintegraccedilatildeo necessaacuterios para a vida em

sociedade274

Com efeito os exemplos acima descritos demonstram que a relaccedilatildeo entre o

direito e as emoccedilotildees eacute muito mais profunda do que se pode a princiacutepio imaginar

Ademais eacute interessante notar que essa constataccedilatildeo tem sido objeto de investigaccedilatildeo nos

EUA haacute algum tempo originando um campo de estudo hoje denominado de ldquoLaw and

Emotionrdquo em cujo contexto a obra de Nussbaum estaacute inserida

Maroney destaca que a trajetoacuteria do movimento ldquoLaw and Emotionrdquo tem sido

dura porque a construccedilatildeo teoacuterica da modernidade juriacutedica estaacute fundada na ideia de que

a razatildeo e a emoccedilatildeo se localizam em campos tatildeo distintos que eacute necessaacuterio eficiente

policiamento a fim de que as emoccedilotildees natildeo escorreguem no campo do direito e

corrompam o discurso juriacutedico ldquoEste modelo teoacuterico tem persistido apesar de sua

273

ldquothroughout history certain disgust propertiesmdashsliminess bad smell stickiness decay foulnessmdash

have repeatedly and monotonously been associated with indeed projected onto groups by reference to

whom privileged groups seek to define their superior human status Jews women homosexuals

untouchables lower-class peoplemdashall these are imagined as tainted by the dirt of the bodyrdquo (trad livre)

Id ibid p 108 274

Id ibid p 227-228

108

implausibilidade como modelo de como os seres humanos vivem ou de como o nosso

direito eacute estruturado e administradordquo275

Natildeo obstante esse novo campo de estudo em que a interdisciplinaridade se faz

fortemente presente recentemente tem conseguido cada vez mais adeptos sendo

possiacutevel visualizar as seguintes abordagens teoacutericas sugeridas por Maroney

Haacute um interesse no estudo das emoccedilotildees em si mesmas isto eacute investiga-se de

que modo emoccedilotildees especiacuteficas influenciam ou deveriam influenciar a elaboraccedilatildeo de

leis Assim conforme visto a repugnacircncia a vergonha e o medo satildeo exemplos de

emoccedilotildees que despertam curiosidade de anaacutelise e de criacutetica

O medo por exemplo aumenta sentimentos de percepccedilatildeo de risco e gera

demanda por novos mecanismos de seguranccedila promovendo significativas alteraccedilotildees

juriacutedicas ldquoo medo torna os indiviacuteduos mais propensos a apoiar medidas de seguranccedila

em detrimento de outras liberdades importantes e incentiva o apoio a poliacuteticas

conservadoras em geralrdquo276

Por outro lado exemplificativamente discute-se como o

medo decorrente da ldquosiacutendrome das mulheres agredidasrdquo isto eacute uma especial condiccedilatildeo

mental presente em mulheres constantemente viacutetimas de agressatildeo por seus

companheiros deve ser considerado na defesa do processo penal para configuraccedilatildeo da

legiacutetima defesa277

Tambeacutem eacute objeto de preocupaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma teoria das emoccedilotildees com

metodologia categorias e conceitos proacuteprios a fim de possibilitar uma aplicaccedilatildeo

sistemaacutetica e coesa ao direito278

Existe a chamada abordagem doutrinaacuteria em que se estuda como uma especiacutefica

aacuterea do direito incorpora poderia ou deveria incorporar uma determinada emoccedilatildeo Haacute a

abordagem da teoria juriacutedica que analisa criticamente sob o seu ponto de vista a teoria

das emoccedilotildees E haacute uma abordagem sobre a influecircncia das emoccedilotildees sobre o papel dos

atores juriacutedicos ldquoa abordagem do ator-juriacutedico enfatiza os seres humanos que povoam

275

ldquoThis theoretical model has persisted despite its implausibility as a model of either how humans live or

how our law is structured and administeredrdquo (trad livre) MARONEY Terry A Law and Emotion A

Proposed Taxonomy of an Emerging Field In Law and Human Behavior vol 30 2006 119-142 p

120-121 Disponiacutevel em httpssrncomabstract=726864 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 276

PIZARRO David We cannot be emotionless but we are capable of rational debate Disponiacutevel

em httpwwwtheglobeandmailcomglobe-debatewe-cannot-be-emotionless-but-we-are-capable-of-

rational-debatearticle4310309 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 277

MARONEY T Op cit p 126 278

Id ibid p 126

109

os sistemas juriacutedicos e explora como a emoccedilatildeo influecircncia e informa ou deveria

influenciar ou informar o desempenho da funccedilatildeo legal atribuiacuteda a essas pessoasrdquo279

Portanto ao contraacuterio do que poderia aparentar agrave primeira vista as emoccedilotildees

participam em vaacuterios niacuteveis da constituiccedilatildeo do direito e de sua praacutetica de modo que

uma abordagem que tambeacutem privilegie o seu estudo permitiraacute uma melhor compreensatildeo

da dinacircmica do fenocircmeno juriacutedico possibilitando proveitosamente novas formas de

criacutetica teoacuterica agrave maneira pela qual o direito eacute estruturado

32 Anaacutelise

Uma vez exploradas algumas conexotildees existentes entre o direito e as emoccedilotildees

parte-se agora para a anaacutelise de trecircs decisotildees judiciais do STF em cujo corpo

procuraremos demonstrar a presenccedila de argumentos emotivos Escolhemos os julgados

pela sua repercussatildeo social assim como para demonstrar que as emoccedilotildees estatildeo

presentes ao contraacuterio do que se poderia imaginar nos mais variados temas juriacutedicos

Neste toacutepico nosso intuito consiste em realizar um exame argumentativo apenas

sob um vieacutes descritivo utilizando como auxiacutelio a classificaccedilatildeo argumentativa proposta

por Micheli no Capiacutetulo II Conforme vimos na referida classificaccedilatildeo existe a emoccedilatildeo

dita a emoccedilatildeo demonstrada e a emoccedilatildeo suportada Embora ao longo de nossa anaacutelise

iremos destacar quando presentes as emoccedilotildees ditas e as demonstradas o nosso

objetivo consiste em evidenciar de que modo as emoccedilotildees satildeo suportadas no discurso

Ademais conveacutem registrar que considerando a grande extensatildeo dos votos seratildeo

selecionados os principais argumentos utilizados pelos ministros para sustentar uma

determinada emoccedilatildeo

321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo

Na Arguiccedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental ndash ADPF nordm 101 (DJ

2462009) ajuizada pelo Presidente da Repuacuteblica estava em discussatildeo a

constitucionalidade da importaccedilatildeo de pneus usados e remoldados em territoacuterio nacional

O julgamento era necessaacuterio porque numerosas decisotildees proferidas por juiacutezes federais

das Seccedilotildees Judiciaacuterias do Cearaacute do Espiacuterito Santo de Minas Gerais do Paranaacute do Rio

279

ldquoThe legal-actor approach focuses on the humans that populate legal systems and explores how

emotion influences and informs or should influence or inform those personsrsquo performance of the

assigned legal functionrdquo (trad livre) Id ibid p 131

110

de Janeiro e de Satildeo Paulo amparavam a importaccedilatildeo de tais pneus que segundo o autor

da accedilatildeo violava preceitos fundamentais da Constituiccedilatildeo Federal ndash CF tais como dentre

outros o direito agrave sauacutede e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art 196 e 225

da CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencido o ministro Marco Aureacutelio

A seguir iremos analisar mais detidamente o voto da relatora da accedilatildeo a

ministra Caacutermen Luacutecia que foi acompanhada pelos demais ministros e em seguida

resumidamente os votos dos ministros Gilmar Mendes Carlos Ayres Brito e Joaquim

Barbosa Por uacuteltimo mencionamos o posicionamento do ministro Marco Aureacutelio

A ministra Caacutermen Luacutecia apoacutes cuidar de questotildees formais em toacutepicos

direcionados ao ldquoobjeto da accedilatildeordquo agrave ldquoadequaccedilatildeo da accedilatildeordquo e agrave ldquoexclusatildeo de alguns

arguidosrdquo bem como apoacutes apresentar algumas questotildees preparatoacuterias para o

enfrentamento do problema num toacutepico denominado ldquobreve histoacuterico da legislaccedilatildeo da

mateacuteriardquo inicia a sua argumentaccedilatildeo propriamente dita na seccedilatildeo destinada a dissertar

sobre o ldquopneurdquo

A partir daiacute a ministra utiliza para fundamentar a sua decisatildeo da estrutura

cognitiva tiacutepica do medo isto eacute argumentos de consequecircncia negativa Walton destaca

que o medo eacute estruturado do ponto de vista argumentativo por meio de consequecircncias

negativas ldquoo argumento do tipo apelo ao medo [] eacute uma espeacutecie de argumento de

consequecircncias negativasrdquo280

Diferenciando o apelo ao medo do apelo agrave ameaccedila cuja estrutura eacute mais

complexa porque conteacutem mais um elemento que eacute a ameaccedila do proponente Walton

observa que ambos satildeo argumentos de consequecircncia ldquoeacute o argumento de consequecircncias

como a estrutura subjacente na qual tanto o apelo ao medo quanto o apelo agrave ameaccedila satildeo

construiacutedos que explica a real relaccedilatildeo entre os doisrdquo281

Aleacutem disso de acordo com os criteacuterios apresentados por Micheli outro ponto a

ser observado consiste em identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo narrada eacute

esquematizado pois a avaliaccedilatildeo acerca da incapacidade de controle de algo negativo eacute

condizente com a deflagraccedilatildeo e a majoraccedilatildeo de sentimentos de medo

Assim estabelecidas essas premissas adentra-se agora nos argumentos do

julgado

280

ldquothe fear appeal type of argument [hellip] is a species of argument from negative consequencesrdquo (trad

livre) WALTON Douglas Scare tactics arguments that appeal to fear and threats Springer 2000 p

143 281

ldquoit is argument from consequences as the underlying structure upon which both appeal to fear and

appeal to threat are built that explains the real relationship between the twordquo (trad livre) Id ibid p

139

111

Inicialmente a ministra num toacutepico destinado a discorrer sobre ldquoa induacutestria

automobiliacutestica e o resiacuteduo da borrachardquo estabelece que haacute uma enorme quantidade de

pneus vulcanizados em circulaccedilatildeo no mundo ressaltando um primeiro problema que eacute

a difiacutecil decomposiccedilatildeo do seu material e enfatizando a incapacidade de controle de sua

destinaccedilatildeo apoacutes o uso ldquoresultado haacute um total de aproximadamente 4 bilhotildees de pneus

novos em circulaccedilatildeo pelo mundo feito de borracha vulcanizada que eacute um material de

difiacutecil decomposiccedilatildeo e de mais difiacutecil ainda gestatildeo de sua destinaccedilatildeo apoacutes o usordquo

Ao enfrentar o argumento da defesa segundo o qual um dos melhores meios

para superar a questatildeo referente agrave destinaccedilatildeo dos pneus usados consiste em reutilizaacute-los

na manta asfaacuteltica adverte-se que tal mistura resulta na maior emissatildeo de poluentes no

momento em que a roda do automoacutevel entra em fricccedilatildeo com o asfalto advindo a partir

daiacute consequecircncias negativas ldquoentretanto emite mais poluentes no momento da fricccedilatildeo

do pneu aleacutem de ser mais oneroso e com probabilidade de ocasionar doenccedilas de

natureza ocupacionalrdquo

Quanto agrave chamada reciclagem energeacutetica dos pneus para fins de geraccedilatildeo de

calor tambeacutem se enfatiza a sua incontrolabilidade ldquotodavia tambeacutem aqui se depara

com o problema da administraccedilatildeo dos resiacuteduos decorrentes dessa incineraccedilatildeordquo

Assim a tecnologia das incineradoras natildeo controla a situaccedilatildeo porque eacute incapaz

de zerar a emissatildeo de material queimado e a consequecircncia disso eacute que materiais

poluentes metais pesados e compostos toacutexicos (dioxinas e furanos) satildeo liberados na

atmosfera

O que se constatou eacute que apesar de eficiente a queima em

incineradoras dedicadas nunca lsquozerarsquo o material queimado dele

podem resultar efluentes soacutelidos e gasosos que aleacutem de conterem

material poluente podem se apresentar com alto grau de

contaminaccedilatildeo de metais pesados aleacutem de compostos orgacircnicos

toacutexicos em especial dioxinas e furanos

Desse modo em face de liberaccedilatildeo de tais poluentes na atmosfera e com o

consequente processamento quiacutemico dos compostos o efeito negativo reside na

formaccedilatildeo de chuvas aacutecidas

o ponto negativo desse tipo de destinaccedilatildeo dada aos pneus eacute que

produz poluiccedilatildeo ambiental pois nesse processo satildeo emitidos gases

toacutexicos em especial o dioacutexido de enxofre e a amocircnia que em

contato com as partiacuteculas de aacutegua suspensas no ar provocam o

fenocircmeno denominado chuva aacutecida

112

Por sua vez a chuva aacutecida eacute causadora de consequecircncias deleteacuterias numa seacuterie

de oacuterbitas ldquoa chuva aacutecida eacute responsaacutevel por grandes formas de aniquilamento do meio

ambiente por provocar danos nos lagos rios florestas e nos animais bem como nos

monumentos e obras construiacutedos pelos homensrdquo

Outra possiacutevel destinaccedilatildeo para os pneus seria o seu uso na co-incineraccedilatildeo

principalmente nas faacutebricas de cimento todavia novamente outra consequecircncia

negativa ldquosob altas temperaturas esses materiais datildeo origem agraves dioxinas e furanos

considerados substacircncias canceriacutegenasrdquo

Num outro momento do julgado jaacute apoacutes discorrer sobre normas constitucionais

respeitantes ao assunto a rel novamente aborda as consequecircncias negativas do descarte

de pneus usados mas agora se enfatiza o aparecimento de doenccedilas tropicais tal como a

dengue e o subsequente risco agrave vida das pessoas

Constatado que o depoacutesito de pneus ao ar livre ndash a que se chega

inexoravelmente com a falta de utilizaccedilatildeo dos pneus inserviacuteveis

mormente quando se daacute a sua importaccedilatildeo nos termos pretendidos por

algumas empresas - eacute fator de disseminaccedilatildeo de doenccedilas tropicais

[]

Entretanto as pesquisas e as estatiacutesticas satildeo taxativas ao comprovar os

riscos agrave vida acarretados pelas doenccedilas tropicais em especial a

dengue que tem como uma de suas principais causas exatamente a

presenccedila de resiacuteduos soacutelidos como os pneus natildeo utilizados e natildeo

descartados de forma a garantir a salubridade

A seguir enfatiza-se a fragilidade do controle em relaccedilatildeo ao armazenamento dos

pneus usados

A ceacutelere urbanizaccedilatildeo aliada agrave maacute qualidade da limpeza urbana

sem adequados procedimentos de remoccedilatildeo de entulhos em

especial pneus velhos eacute responsaacutevel pelo aparecimento de

criadouros de mosquitos

Alerta-se quanto a outro possiacutevel efeito negativo pois considerando o formato

oval do pneu um ambiente ideal para armazenar organismos vivos eacute possiacutevel que

doenccedilas sequer imaginadas ou ateacute jaacute erradicadas sejam trazidas para o nosso paiacutes

trazendo sofrimento e risco de perda de vida de cidadatildeos

Informa-se ainda que os pneus usados que chegam de outros Paiacuteses

podem conter ovos de insetos transmissores de doenccedilas ateacute agora

natildeo incidentes no Brasil ou jaacute erradicadas no Paiacutes o que demandaria

ndash aleacutem de maior sofrimento das pessoas - mais gastos estatais com a

jaacute precaacuteria condiccedilatildeo da sauacutede puacuteblica no Brasil sem falar insista-se

no risco de perda de vida de cidadatildeos

113

Ademais o aumento de doenccedilas e a consequente fragilizaccedilatildeo da sauacutede da

populaccedilatildeo tecircm uma seacuterie de efeitos negativos para o paiacutes sendo um deles a perda do seu

potencial econocircmico Em outras palavras ateacute o produto interno bruto eacute atingido quando

um governo eacute incapaz de promover uma boa poliacutetica de sauacutede para os seus cidadatildeos

A cada ano a Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ndash ONU elabora uma

classificaccedilatildeo dos Paiacuteses e mede a qualidade vida em pelo menos trecircs

elementos sauacutede educaccedilatildeo e produto interno bruto Jaacute se concluiu

que enquanto um Paiacutes natildeo tiver resolvido problemas relacionados

agrave sauacutede (saneamento baacutesico incluiacutedo) e agrave educaccedilatildeo da populaccedilatildeo

natildeo haacute como elevar o seu produto interno bruto

De seu turno o ministro Gilmar Mendes tambeacutem fundamenta o seu

posicionamento por meio de argumentos da mesma espeacutecie isto eacute apontam-se as

consequecircncias negativas (ldquoproliferaccedilatildeo de doenccedilasrdquo ldquosubstacircncias nocivas agrave sauacutede e ao

meio ambienterdquo ldquomaterial de difiacutecil composiccedilatildeordquo) e a ausecircncia de controle acerca da

situaccedilatildeo avaliada como negativa (ldquofalta de meacutetodo atualmente eficiente de controlerdquo)

resumindo assim alguns dos argumentos presentes no voto da ministra Caacutermen Luacutecia

O grau de nocividade a falta de meacutetodo atualmente eficiente de

controle da eliminaccedilatildeo das substacircncias nocivas agrave sauacutede e ao meio

ambiente (constataccedilatildeo de descumprimento reiterado da Resoluccedilatildeo

CONAMA nordm 25899) a proliferaccedilatildeo potencial de vetores de

doenccedilas e outros agravos e o aumento do passivo ambiental de

material inserviacutevel de difiacutecil decomposiccedilatildeo satildeo elementos que

constituem a formaccedilatildeo do convencimento juriacutedico acerca do

conhecimento cientiacutefico existente sobre a potencialidade dos danos

ambientais decorrentes do descarte irregular dos pneus usados

O ministro Carlos Ayres apoacutes destacar que os pneus natildeo satildeo biodegradaacuteveis

enfatiza cinco consequecircncias negativas em relaccedilatildeo agrave importaccedilatildeo de pneus usados e

remoldados (i) ocupaccedilatildeo de consideraacutevel espaccedilo fiacutesico para sua armazenagem (ii) risco

de faacutecil combustatildeo (iii) poluiccedilatildeo de rios lagos e correntes de aacutegua (iv) transmissatildeo de

doenccedila por insetos (incluindo a dengue que ele qualifica ser ldquotatildeo temida entre noacutesrdquo) (v)

e os pneus remoldados tem vida uacutetil muito curta e se tornam mais rapidamente um

passivo ambiental O referido ministro tambeacutem expressa indignaccedilatildeo com o fato de que

nos paiacuteses de origem tais pneus natildeo passam de ldquolixo ambientalrdquo e a sua importaccedilatildeo faz

do Brasil ldquouma espeacutecie de quintal do mundordquo com graves danos a bens juriacutedicos (sauacutede

e meio ambiente) tutelados pela Constituiccedilatildeo Federal

Por sua vez o ministro Joaquim Barbosa enfatiza a incontrolabilidade de

situaccedilotildees negativas natildeo haacute meacutetodo eficaz para lidar com os resiacuteduos dos pneus o que

114

ocasiona danos diretos ao meio ambiente natildeo haacute controle sobre o empilhamento e

descarte de pneus o que aumenta a proliferaccedilatildeo de vetores de doenccedila Aleacutem disso alega

a existecircncia de risco de aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees no campo das relaccedilotildees internacionais por

desobediecircncia agraves normas da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio - OMC

Por uacuteltimo destaque-se que o ministro Marco Aureacutelio entendeu que para proibir

a importaccedilatildeo de tais pneus deveria haver lei especiacutefica nesse sentido Ademais procura

deslegitimar os argumentos de consequecircncia negativa acima deduzidos ao dizer que a

mera proibiccedilatildeo de importaccedilatildeo natildeo seria suficiente para ldquosalvar a Matildee Terrardquo ldquo[] como

disse e parece que encerrado este julgamento estaraacute salva - a Matildee Terrardquo

Com efeito a argumentaccedilatildeo vencedora no presente caso eacute consistente com a

descriccedilatildeo do medo realizada por Aristoacuteteles em sua retoacuterica isto eacute a possibilidade de

acontecimento de algo ruim que tenha a capacidade de nos provocar danos ou seacuterios

prejuiacutezos Nesta mesma direccedilatildeo Walton enfatiza que o argumento que apela ao medo

envolve a demonstraccedilatildeo da existecircncia de algum perigo que pode ou poderaacute causar

prejuiacutezos a um determinado sujeito implicando a ideia de que eacute necessaacuterio tomar

alguma accedilatildeo para evitaacute-lo282

Portanto na referida decisatildeo estatildeo em consideraccedilatildeo perigos que iratildeo atingir a

ldquopopulaccedilatildeordquo os ldquocidadatildeosrdquo e o ldquomeio-ambienterdquo do Brasil E os males capazes de

atingi-los satildeo muitos materiais poluentes gases toacutexicos dioxinas e furanos substacircncias

canceriacutegenas metais pesados compostos orgacircnicos toacutexicos doenccedilas de natureza

ocupacional ovos de inseto doenccedilas tropicais e desconhecidas poluiccedilatildeo de rios lagos e

correntes de aacutegua chuva aacutecida dengue aumento de gastos estatais para tratar novas

doenccedilas e ateacute o impacto na economia Ademais eacute expressamente dito que tais perigos

tecircm a capacidade de ldquoaniquilarrdquo o meio ambiente e pocircr em risco a vida das pessoas

Tendo em vista a ausecircncia de tecnologia ou de fiscalizaccedilatildeo que tivesse a capacidade de

controlar tais consequecircncias negativas a procedecircncia da accedilatildeo buscou fundar

sentimentos de aliacutevio

Por uacuteltimo eacute interessante tambeacutem notar que embora as palavras ldquoperigordquo ou

ldquoperigosordquo apareccedilam com frequecircncia na decisatildeo a palavra ldquomedordquo natildeo eacute em si mesma

dita mas a despeito disso observa-se que o medo foi argumentado por meio de

argumentos de consequecircncia negativa isto eacute ele foi o suporte emotivo da decisatildeo

282

Id ibid p 143

115

322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo

Na ADPF nordm 54 (DJ 1242012) ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos

Trabalhadores na Sauacutede ndash CNTS estava sob julgamento a possibilidade juriacutedica da

antecipaccedilatildeo terapecircutica do parto na hipoacutetese de fetos anenceacutefalos uma vez que diversos

juiacutezes e tribunais negavam tal pleito agraves gestantes com fundamento nos dispositivos que

regem o crime de aborto no Coacutedigo Penal Os preceitos fundamentais da CF apontados

como violados foram a dignidade da pessoa humana o princiacutepio da legalidade da

liberdade da autonomia da vontade e o direito agrave sauacutede (arts 1ordm IV 5ordm II 6ordm e 196 da

CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencidos os ministros Ceacutesar Peluso e

Ricardo Lewandowski

Primeiramente iremos analisar a argumentaccedilatildeo do voto do ministro Peluso

Poreacutem para entender a construccedilatildeo argumentativa do referido ministro eacute necessaacuterio

expor a estrutura cognitiva da indignaccedilatildeo

Para nosso objetivo pode-se dizer que tal emoccedilatildeo eacute deflagrada mediante a

avaliaccedilatildeo negativa de uma situaccedilatildeo (accedilatildeoomissatildeo) geradora de sofrimento e danos cuja

responsabilidade causal eacute passiacutevel de imputaccedilatildeo a um agente culpaacutevel Assim existe

uma accedilatildeoomissatildeo atribuiacutevel a algueacutem que eacute julgada condenaacutevel injusta pois causa

um especiacutefico prejuiacutezodanosofrimento a um sujeito283

Portanto a fim de caracterizar a indignaccedilatildeo no discurso eacute preciso analisar como

a accedilatildeoomissatildeo eacute narrada quem eacute o agente responsaacutevel como ele eacute caracterizado no

discurso quem eacute o sujeito passivo e como ele eacute caracterizado no discurso Neste julgado

especiacutefico os dois atores objeto de predicaccedilatildeo satildeo a gestante (a matildee) e o feto

Assim posto isso conveacutem dizer que apoacutes estabelecer que ldquotodos os fetos

anenceacutefalos [] satildeo inequivocamente dotados dessa capacidade de movimento

autoacutegeno vinculada ao processo contiacutenuo da vida e regida pela lei natural que lhe eacute

imanenterdquo o ministro afirma que o aborto de feto anecenfaacutelico eacute conduta criminosa

No seguinte trecho em que o ministro conclui com uma notaacutevel exclamaccedilatildeo

(emoccedilatildeo demonstrada) a conduta condenaacutevel e injusta eacute narrada como ldquofunestamente

danosa agrave vida ou agrave incolumidade fiacutesica alheiardquo caracterizando sofrimento e dano ao

feto ldquonatildeo se concebe nem entende em termos teacutecnico-juriacutedicos uacutenicos apropriados ao

283

Nesse sentido cf MICHELI R op cit 2014 p 113 e NUSSBAUM M op cit 2004 p 99 e 166

A raiva e a indignaccedilatildeo tecircm basicamente a mesma estrutura cognitiva de modo que poderiacuteamos utilizar

tanto uma quanto a outra emoccedilatildeo

116

caso direito subjetivo de escolha [] de comportamento funestamente danoso agrave vida

ou agrave incolumidade fiacutesica alheia e como tal tido por criminoso Eacute coisa abstrusardquo

No seguinte trecho haacute a estrutura completa da indignaccedilatildeo isto eacute o agente

culpado (a gestante) eacute caracterizado como algueacutem com poder desproporcional agrave viacutetima

(ldquoser poderoso superior detentor de toda forccedilardquo) existe a conduta condenaacutevel e

geradora de danos e sofrimentos que eacute comparada a um ato brutal de violecircncia

(ldquoextermiacuteniordquo ldquopena de morterdquo) e existe o sujeito passivo que eacute descrito como algueacutem

totalmente indefeso ldquono caso do extermiacutenio do anenceacutefalo encena-se a atuaccedilatildeo

avassaladora do ser poderoso superior que detentor de toda a forccedila inflige a pena

de morte ao incapaz de pressentir a agressatildeo e de esboccedilar-lhe qualquer defesardquo

A conduta da gestante eacute caracterizada como condenaacutevel injusta e infligidora de

sofrimento vaacuterias vezes Assim a fim de lhe emprestar conteuacutedo emotivo tal

procedimento eacute comparado com situaccedilotildees que via de regra nos provocam ou deveriam

provocar indignaccedilatildeo e raiva tais como a ldquopena capitalrdquo o ldquoracismo sexismo e

especismordquo e ateacute o nazismo Aleacutem disso tal conduta nominada de ldquoodiosardquo reduz o

feto ldquoagrave condiccedilatildeo de lixordquo

[] ao feto reduzido no fim das contas agrave condiccedilatildeo de lixo ou de

outra coisa imprestaacutevel e incocircmoda natildeo eacute dispensada de nenhum

acircngulo a menor consideraccedilatildeo eacutetica ou juriacutedica

[]

Essa forma odiosa de discriminaccedilatildeo que a tanto equivale nas suas

consequecircncias a formulaccedilatildeo criticada em nada difere do racismo do

sexismo e do chamado especismo Todos esses casos retratam a

absurda defesa e absolviccedilatildeo do uso injusto da superioridade de

alguns (em regra brancos de estirpe ariana homens e seres humanos)

sobre outros (negros judeus mulheres e animais respectivamente)

Em outra passagem novamente a conduta eacute comparada com situaccedilotildees que nos

provocam ou deveriam provocar sentimentos de indignaccedilatildeo e raiva podendo-se

inclusive cogitar que a argumentaccedilatildeo implica o medo de que um passado baacuterbaro da

nossa histoacuteria volte novamente a se repetir O ministro demonstra ao final a emoccedilatildeo

com uma exclamaccedilatildeo Confira-se

Faz muito a civilizaccedilatildeo sepultou a praacutetica ominosa de sacrificar

segregar ou abandonar crianccedilas receacutem-nascidas deficientes ou de

aspecto repulsivo como as disformes aleijadas surdas albinas ou

leprosas soacute porque eram consideradas ineptas para a vida e

improdutivas do ponto de vista econocircmico e social

117

Num toacutepico que trata sobre ldquoriscos de eugeniardquo o ministro tambeacutem utiliza de

argumentos de consequecircncia negativa (medo) a fim de demonstrar os perigos que

poderatildeo advir caso a accedilatildeo seja julgada procedente O primeiro deles seria permitir que

outras mulheres possam pleitear tratamento juriacutedico semelhante sob qualquer motivo

(anomalia fetal social econocircmico familiar) implicando a ideia de que novamente seraacute

infligido sofrimento a outros seres inocentes

Eacute possiacutevel imaginar o ponderaacutevel risco de que julgada procedente

esta ADPF mulheres entrem a pleitear igual tratamento juriacutedico a

hipoacuteteses de outras anomalias natildeo menos graves ou porque a gravidez

seja indesejada em si mesma ou porque agrave conta de fatores

econocircmicos sociais familiares etc seria insuportaacutevel ou

insustentaacutevel ter um filho

A ausecircncia de tecnologia meacutedica que permita diagnoacutestico 100 seguro eacute

apontada como outro fator de risco em relaccedilatildeo agrave permissatildeo de tal espeacutecie de aborto

demonstrando assim a incontrolabilidade da situaccedilatildeo sob julgamento

E o que surpreende e admira eacute que quem a invoca parece ignorar que

a temaacutetica estaacute indissociavelmente vinculada ao problema da

dificuldade teacutecnico-cientiacutefica de se detectar com precisatildeo absoluta

quais casos satildeo de anencefalia de modo a diferenciaacute-los de outras

afecccedilotildees da mesma classe nosoloacutegica das quais se distingue apenas

por questatildeo de grau

[]

Por que se evite possibilidade concreta de em decorrecircncia das

incertezas teacutecnico-cientiacuteficas e da consequente falibilidade dos

diagnoacutesticos eliminarem-se arbitrariamente fetos acometidos de

malformaccedilotildees diversas da anencefalia eacute imperioso proibir-lhes o

aborto ainda em tais casos

Ademais para o ministro Peluso a matildee ao pretender a permissatildeo juriacutedica para a

praacutetica do referido aborto configura-se um ser ldquoegocecircntricordquo e ldquoindividualistardquo que em

nome do ldquoprinciacutepio do prazerrdquo e a fim de evitar seu sofrimento psiacutequico e suas

anguacutestias recusa o oferecimento de compaixatildeo e piedade a quem na verdade eacute

merecedor desses sentimentos isto eacute o feto

[] reflete apenas uma atitude individualista e egocecircntrica enquanto

sugere praacutetica cocircmoda de que se vale a gestante para se livrar do

sofrimento e da anguacutestia

[]

Tal ansiedade que voltada para si mesma depende da histoacuteria e da

conformaccedilatildeo psiacutequicas de cada gestante eacute exaltada na proposta em

detrimento do afeto da piedade da compaixatildeo da doaccedilatildeo e da

abnegaccedilatildeo que participam da dimensatildeo de grandeza do espiacuterito

humano

118

Por outro lado se nos votos dos demais ministros eram claramente divergentes

as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do iniacutecio da vida ou do que eacute a vida da laicidade

estatal de questotildees penais de princiacutepios juriacutedicos (dignidade da pessoa humana

autonomia da vontade etc) parece que havia pelo menos um ponto de consenso que

era a necessidade de se ter compaixatildeo para com o sofrimento vivido pela gestante

Lazarus destaca que o tema nuacutecleo da compaixatildeo consiste em ser movido pelo

sofrimento alheio284

Por sua vez na estrutura cognitiva da compaixatildeo existe uma

avaliaccedilatildeo acerca da seriedade do sofrimento vivido por determinado sujeito e de certo

modo estatildeo ausentes consideraccedilotildees acerca da culpa do proacuteprio sujeito por estar em tal

situaccedilatildeo aflitiva285

Assim no voto do relator ministro Marco Aureacutelio realiza-se uma comparaccedilatildeo

entre as emoccedilotildees positivas que geralmente se fazem presentes numa gestaccedilatildeo normal e

as emoccedilotildees negativas que a gestante tem que suportar na hipoacutetese de anencefalia do

feto

Enquanto numa gestaccedilatildeo normal satildeo nove meses de

acompanhamento minuto a minuto de avanccedilos com a predominacircncia

do amor em que a alteraccedilatildeo esteacutetica eacute suplantada pela alegre

expectativa do nascimento da crianccedila na gestaccedilatildeo do feto anenceacutefalo

no mais das vezes reinam sentimentos moacuterbidos de dor de

anguacutestia de impotecircncia de tristeza de luto de desespero dada a

certeza do oacutebito

Assim conclui-se pela impossibilidade de se exigir que a matildee suporte tamanho

sofrimento a que se compara agrave tortura

O ato de obrigar a mulher a manter a gestaccedilatildeo colocando-a em uma

espeacutecie de caacutercere privado em seu proacuteprio corpo desprovida do

miacutenimo essencial de autodeterminaccedilatildeo e liberdade assemelha-se agrave

tortura ou a um sacrifiacutecio que natildeo pode ser pedido a qualquer pessoa

ou dela exigido

Mostra-se inadmissiacutevel fechar os olhos e o coraccedilatildeo ao que vivenciado

diuturnamente por essas mulheres seus companheiros e suas famiacutelias

Igualmente o ministro Joaquim Barbosa anota a presenccedila de um conjunto de

emoccedilotildees negativas (culpa raiva tristeza etc) deflagradas para os pais quando do

diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal concluindo com uma pergunta retoacuterica (emoccedilatildeo

demonstrada)

as reaccedilotildees emocionais dos pais apoacutes o diagnoacutestico de malformaccedilatildeo

fetal abrangem conjuntamente ou natildeo os seguintes sentimentos

284

LAZARUS R Op cit 1991 p 289 285

NUSSBAUM M Op cit 2004 p 49-50

119

ambivalecircncia culpa impotecircncia perda do objeto amado choque

raiva tristeza e frustraccedilatildeo Eacute facilmente perceptiacutevel a enorme

dificuldade de se enfrentar um diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal E eacute

possiacutevel imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que

passam aqueles que de suacutebito se veem diante do dilema moral de

interromper uma gestaccedilatildeo unicamente porque nada se pode fazer para

salvar a vida do feto Seria reprovaacutevel uma decisatildeo pela

interrupccedilatildeo da gestaccedilatildeo nesse caso

Por sua vez a ministra Caacutermen Luacutecia expressamente se refere agrave necessidade de

se ter compaixatildeo para com a gestante tendo em vista o enorme sofrimento gerado pela

presenccedila de inuacutemeras emoccedilotildees negativas (medo vergonha anguacutestia) atribuiacutedas agrave

mulher

A mulher que natildeo pode interromper essa gravidez tem o medo do que

vai acontecer o medo de que lhe pode ser acometido o medo fiacutesico o

medo psiacutequico e o medo ainda de vir a ser punida penalmente por

uma conduta que ela venha a adotar

[]

Natildeo se haacute negar compaixatildeo porque seria injusticcedila menos ainda o

direito porque seria antijuriacutedico agrave mulher que trazendo um pequeno

caixatildeo no que eacute o seu berccedilo fiacutesico vai agraves portas do Judiciaacuterio a

suplicar pela sua vida

[]

A mulher gestante de feto anenceacutefalo vive anguacutestia que natildeo eacute

partilhaacutevel pelo que ao Estado natildeo compete intervir vedando o que

natildeo eacute constitucionalmente admissiacutevel como proibido

Em igual sentido o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux assinalam a

necessidade de se levar em consideraccedilatildeo para a soluccedilatildeo da controveacutersia o sofrimento

que a mulher tem que passar nesse percurso de gestaccedilatildeo

Entrementes o aborto do feto anenceacutefalo tem por objetivo preciacutepuo

zelar pela sauacutede psiacutequica da gestante uma vez que desde o

diagnoacutestico da anomalia (que pode ocorrer a partir do terceiro mecircs de

gestaccedilatildeo) ateacute o parto a mulher conviveraacute com o sofrimento de

carregar consigo um feto que natildeo conseguiraacute sobreviver segundo a

medicina afirma com elevadiacutessimo grau de certeza (ministro Gilmar

Mendes)

[] levar a gestaccedilatildeo ateacute os seus uacuteltimos termos causa na mulher um

sofrimento incalculaacutevel do qual resultam chagas eternas que podem

ser minimizadas caso interrompida a gravidez de plano (ministro

Luiz Fux)

O ministro Carlos Ayres o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber

enfatizam o mesmo aspecto isto eacute o sofrimento pelo qual a mulher passa eacute

desnecessaacuterio comparando-o novamente a uma tortura

120

Daiacute que vedar agrave gestante a opccedilatildeo pelo aborto caracteriza um modo

cruel de ignorar sentimentos que somatizados tem a forccedila de derruir

qualquer feminino estado de sauacutede fiacutesica psiacutequica e moral aqui

embutida a perda ou a sensiacutevel diminuiccedilatildeo da autoestima

[]

Por isso que levar agraves uacuteltimas consequecircncias esse martiacuterio contra a

vontade da mulher corresponde agrave tortura a tratamento cruel

Ningueacutem pode impor a outrem que se assuma enquanto maacutertir o

martiacuterio eacute voluntaacuterio (ministro Carlos Ayres)

Nessa especiacutefica situaccedilatildeo a causa supralegal mencionada traduziraacute

hipoacutetese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa uma

vez que inexistente em tal contexto motivo racional justo e legiacutetimo

que possa obrigar a mulher a prolongar inutilmente a gestaccedilatildeo e a

expor-se a desnecessaacuterio sofrimento fiacutesico eou psiacutequico com grave

dano agrave sua sauacutede e com possibilidade ateacute mesmo de risco de morte

consoante esclarecido na Audiecircncia Puacuteblica que se realizou em funccedilatildeo

deste processo (ministro Celso de Mello)

[] a imposiccedilatildeo da gestaccedilatildeo contra a vontade da mulher eacute tortura

fiacutesica e psicoloacutegica em razatildeo de crenccedila (natildeo importa se

institucionalizada por meio de lei ou de decisatildeo juriacutedica ainda eacute mera

crenccedila) nos exatos termos da Lei dos Crimes de Tortura (ministra

Rosa Weber)

Assim sob uma anaacutelise emotiva pode-se dizer que enquanto o voto do ministro

Ceacutesar Peluso construiacutedo atraveacutes de uma forte predicaccedilatildeo contra o aborto de feto

anenceacutefalo era fundado na indignaccedilatildeoraiva direcionado agrave conduta da gestante no

medo em relaccedilatildeo agraves consequecircncias do julgamento e na tentativa de criar compaixatildeo para

com o feto os votos dos demais ministros forneciam razotildees para se ter compaixatildeo para

com o sofrimento da matildee que era descrito como uma tortura um sofrimento a que ela

natildeo deu causa um martiacuterio desnecessaacuterio Desse modo observa-se que as emoccedilotildees

foram argumentadas por meio de suas estruturas cognitivas e muitas vezes

expressamente ditas e atribuiacutedas aos atores (gestante feto) objetos de consideraccedilatildeo no

julgamento

323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo

A ADI nordm 4976 (DJ 1052014) foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repuacuteblica

contra dentre outros dispositivos os arts 37 a 47 da Lei nordm 12663 de 5 de junho de

2012 que concediam aos jogadores titulares ou reservas das seleccedilotildees brasileiras

campeatildes das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970

121

um precircmio em dinheiro no valor fixo de R$ 10000000 (cem mil reais) e um auxiacutelio

especial mensal para jogadores sem recursos ou com recursos limitados De acordo com

a argumentaccedilatildeo presente na peticcedilatildeo inicial da referida ADI a concessatildeo de tais

benefiacutecios financeiros ao referido grupo de jogadores violaria o princiacutepio da isonomia

A ADI neste ponto foi julgada por unanimidade improcedente

No voto do rel ministro Ricardo Lewandowski apoacutes ser destacado que a CF

por meio do art 217 fomenta as praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais protege e

incentiva as manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacional e atraveacutes do art 215 e 216

salvaguarda as manifestaccedilotildees da cultura popular e os bens de natureza imaterial chega-

se agrave conclusatildeo que o fundamento para desequiparaccedilatildeo consiste no fato de que tais

atletas conseguiram uma ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo Aleacutem do

mais em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com

recursos limitados sustenta-se que a ldquoextrema penuacuteria materialrdquo vivida por alguns

colocaria em xeque o ldquoprofundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras

que disputaram as Copas do Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFArdquo

Diante dessas diretrizes constitucionais parece-me plenamente

justificada a iniciativa dos legisladores federais - legiacutetimos

representantes que satildeo da vontade popular - em premiar materialmente

a incalculaacutevel visibilidade internacional positiva proporcionada por

esse grupo especiacutefico e restrito de atletas bem como em evitar que a

extrema penuacuteria material enfrentada por alguns deles ou por suas

famiacutelias ndash com a perda de dignidade pessoal que acompanha essas

circunstacircncias ndash ponha em xeque o profundo sentimento nacional

em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras que disputaram as Copas do

Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFA as quais representam ainda

hoje uma das expressotildees mais relevantes conspiacutecuas e populares

da identidade nacional

Nesse pequeno trecho esboccedila-se a presenccedila de vaacuterias emoccedilotildees que

fundamentam a desequiparaccedilatildeo a ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo e a

ldquoidentidade nacionalrdquo satildeo expressivas do sentimento do orgulho a ldquoextrema penuacuteria

materialrdquo diz respeito agrave compaixatildeo ldquoo profundo sentimento nacionalrdquo faz uso do apelo

aos sentimentos do povo

Lazarus destaca que o nuacutecleo temaacutetico do orgulho diz respeito agrave ldquomelhoria da

identidade do ego de algueacutem tomando creacutedito um objeto valioso ou uma conquista seja

a nossa proacutepria ou a de algueacutem ou a de um grupo com o qual nos identificamos - por

122

exemplo um compatriota um membro da famiacutelia ou um grupo socialrdquo286

Assim no

orgulho estaacute presente uma avaliaccedilatildeo positiva de que nossa imagemidentidade foi

significativamente melhorada e engrandecida em virtude da conquista por noacutes mesmos

ou por outros com qual nos identificamos de algo socialmente relevante O evento

deflagrador do orgulho aleacutem de ser considerado positivo aumenta o valor da nossa

imagem

Em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com

recursos limitados a desequiparaccedilatildeo tambeacutem eacute justificada a tiacutetulo de compaixatildeo

porque os ldquojogadores daquela eacutepocardquo natildeo ganhavam o suficiente para uma

aposentadoria digna

Recordo nesse sentido que a final da Copa do Mundo de 1950 entre

as seleccedilotildees brasileira e uruguaia realizada no Rio de Janeiro ndash oito

anos portanto antes do primeiro tiacutetulo nacional ndash teve o maior

puacuteblico da histoacuteria do Estaacutedio do Maracanatilde superando 200 mil

pessoas Natildeo obstante como eacute notoacuterio poucos foram os jogadores

daquela eacutepoca mesmo os de maior renome que obtiveram

rendimentos suficientes para garantir na inatividade um sustento

digno para si e seus familiares

No voto do ministro Luiz Fux os ex-campeotildees satildeo descritos como ldquoverdadeiros

heroacuteis do paiacutesrdquo Por sua vez as suas conquistas construiacuteram o ldquonosso patrimocircnio

histoacuterico nacionalrdquo e ldquoalccedilaram o Brasil a outro patamar em termos desportivosrdquo de

modo que natildeo existe agressatildeo agrave isonomia em razatildeo do reconhecimento por ldquotamanho

feitordquo

[] as consequecircncias dos mundiais de 1958 na Sueacutecia de 62 no

Chile e de 70 no Meacutexico foram decisivas para a construccedilatildeo desse

patrimocircnio histoacuterico nacional

Daiacute por que natildeo haacute qualquer ofensa agrave Lei fundamental de 1988 em

especial ao princiacutepio da isonomia quando o Estado promove por

meio de concessatildeo do benefiacutecio ora previsto o reconhecimento por

tamanho feito

Natildeo se pode negligenciar que esses atletas ao representarem o paiacutes

em tais mundiais alccedilaram o Brasil a outro patamar em termos

desportivos

O ministro diz que a importacircncia da conquista de tais jogadores eacute enorme

porque fez com que abandonaacutessemos o complexo de que ldquosoacute seriamos uma paacutetria que

286

ldquoenhancement of ones ego-identity by taking credit for a valued object or achievement either our

own or that of someone or group with whom we identify mdash for example a compatriot a member of the

family or a social grouprdquo (tradlivre) LAZARUS R Op cit p 271

123

calccedila chuteirasrdquo Assim alegar a inconstitucionalidade de tal norma significa ir de

encontro agraves conquistas de que ldquoo povo brasileiro tanto se orgulhardquo

reconhecer a importacircncia dos atores dessa transmudaccedilatildeo por que

passou o Brasil e a identificaccedilatildeo do paiacutes com o futebol abandonando

o complexo de que noacutes soacute seriacuteamos uma Paacutetria que calccedila

chuteiras evidencia a implementaccedilatildeo de poliacutetica puacuteblico-estatal de

reconhecimento que contempla o princiacutepio da isonomia

Afirmar a inconstitucionalidade de tais preceitos concessa venia eacute

desestimular e depreciar as conquistas das quais o povo brasileiro

tanto se orgulha

Quanto agrave atual situaccedilatildeo de miseacuteria de alguns jogadores ela eacute justificada pela

ausecircncia de profissionalismo no futebol de antigamente Ademais tal condiccedilatildeo de

penuacuteria eacute atestada pelos telejornais e pela rede mundial de computadores

Natildeo havia o profissionalismo que vivenciamos nos dias de hoje e

justamente por isso - esse eacute um argumento talvez interdisciplinar ndash

muitos desses verdadeiros heroacuteis do paiacutes natildeo possuem condiccedilotildees

materiais miacutenimas para a sua subsistecircncia Natildeo raro haacute relatos nos

telejornais e na proacutepria rede mundial de computadores de ex-

campeotildees do mundo vivendo em completo esquecimento e ateacute

mesmo na miseacuteria de maneira que merece ser festejada e natildeo

tripudiada a iniciativa do Estado Brasileiro

Ao final do seu voto o ministro Fux atribui ao povo brasileiro mais duas

emoccedilotildees positivas relacionadas aos feitos dos ex-atletas (alegria e gratidatildeo)

Por fim Senhor Presidente egreacutegia Corte eu tenho certeza de que o

povo brasileiro por todas as alegrias que esses atletas

proporcionaram tem uma diacutevida de gratidatildeo e natildeo repudiaraacute a justa e

merecida homenagem feita pela lei

Para o ministro Luiacutes Barroso inexiste violaccedilatildeo agrave isonomia porque a concessatildeo

de tal premiaccedilatildeo e do auxiacutelio-especial estaacute fundada na ldquoavaliaccedilatildeo poliacutetica de que os

referidos jogadores realizaram um feito notaacutevel contribuindo para desenvolver um

traccedilo marcante da cultura nacional e difundir o nome do Brasil no mundordquo De resto

observa que alguns ex-jogadores enfrentam ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo e que na

deacutecada de 50 60 70 natildeo se retirava proveito econocircmico da atividade esportiva como

hoje em dia

Por sua vez o ministro Dias Toffoli oferece outra razatildeo para se ter orgulho das

conquistas dos ex-jogadores qual seja apoacutes ser campeatildeo contra a Sueacutecia em 1958 as

empresas suecas ldquodescobriram o Paiacutesrdquo o que resultou em ldquoriquezas para a Naccedilatildeo

brasileirardquo

124

Em 1958 quando o paiacutes vivia aquele processo de industrializaccedilatildeo da

eacutepoca de Juscelino Kubitschek as induacutestrias suecas olharam para o

Brasil exatamente quando viram o Brasil jogar na Sueacutecia e ser

campeatildeo numa final da Copa do Mundo contra a Sueacutecia As grandes

empresas suecas na aacuterea de tecnologia na aacuterea automobiliacutestica que

se instalaram haacute cinquenta anos no Brasil descobriram o Paiacutes por

conta do futebol o que resultou em riquezas para a Naccedilatildeo

brasileira com a geraccedilatildeo de empregos e de desenvolvimento

Indagado se o Brasil era de fato desconhecido do mundo antes de 1958 o

ministro Toffoli diz que a industrializaccedilatildeo sueca estaacute registrada nos livros Ademais

tais conquistas no futebol resultaram no soft power brasileiro no mundo

Ah eu natildeo vou citar os nomes das empresas mas isso estaacute nos livros

Estaacute na histoacuteria do desenvolvimento brasileiro basta ler Senhor

Presidente Basta ler a histoacuteria do desenvolvimento brasileiro

Verifique se tinha induacutestria sueca antes de 58 investindo no Brasil e

verifique depois

[]

[] a muacutesica brasileira traz retorno ao Brasil a cultura brasileira as

novelas brasileiras que passam no exterior trazem um capital agregado

ao Brasil

Isso eacute o soft power Trata-se do soft power

[]

esse chamado soft power ele traz um retorno agrave Naccedilatildeo brasileira ele

traz dividendos que extrapolam a proacutepria aacuterea do futebol a proacutepria

aacuterea do desporto e agrega valor a toda a Naccedilatildeo brasileira e repercute

na economia de modo geral Como eacute um fato - isso eacute um fato eacute um

dado histoacuterico - que muitas empresas suecas que hoje estatildeo

instaladas haacute mais de cinquenta anos no Brasil olharam para o

Brasil apoacutes a Copa de 1958 laacute organizada

De seu turno o ministro Gilmar Mendes alega que a hegemonia no futebol eacute

benfazeja simpaacutetica no mundo e eacute disso que se trata o soft power Embora natildeo se refira

expressamente aos dispositivos constitucionais acima mencionados ele chega a destacar

que caso bem aproveitada a Copa serviria para ldquorevirar esse complexo de vira-latardquo E

o ministro Marco Aureacutelio alega que o reconhecimento dos ex-atletas eacute justo embora

tenha vindo tarde (cinquenta e quatro anos depois)

Observa-se portanto que a estrutura cognitiva do orgulho se fez bastante

presente na argumentaccedilatildeo desenvolvida pois para fins de justificar a desequiparaccedilatildeo de

tratamento legislativo se avaliou que a imagem do Brasil ou a identidade brasileira foi

significativamente melhorada (e ateacute construiacuteda) apoacutes a vitoacuteria nas copas mundiais

masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970 Vaacuterias descriccedilotildees a respeito

de tal conquista confirmam isso ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo

125

ldquotamanho feitordquo ldquofeito notaacutevel ldquoalccedilou o Brasil em outro patamar em termos

desportivosrdquo ldquoabandonou o complexo de que seriacuteamos uma paacutetria que soacute calccedila

chuteirasrdquo ldquoas grandes empresas suecas descobriram o Brasilrdquo ldquosoft power mundialrdquo

ldquoagrega valor a toda Naccedilatildeo brasileirardquo Desse modo o orgulho foi uma emoccedilatildeo

expressamente atribuiacuteda agrave populaccedilatildeo e extensamente argumentada pelos votos

Por outro lado a estrutura cognitiva da compaixatildeo tambeacutem esteve presente pois

o sofrimento dos ex-jogadores eacute descrito como ldquoextrema penuacuteria materialrdquo ldquomiseacuteriardquo

ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo tudo isso atestado pelos ldquotelejornaisrdquo e pela ldquorede

mundial de computadoresrdquo Tambeacutem estava fora de consideraccedilatildeo questotildees acerca da

culpa dos proacuteprios jogadores para estarem em tal estado de miserabilidade jaacute que via

de regra os ministros avaliaram que naquela eacutepoca natildeo se ganhava tanto dinheiro

quanto hoje em dia Ademais vimos que a alegria e a gratidatildeo foram emoccedilotildees

expressamente atribuiacutedas agrave populaccedilatildeo

33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Este uacuteltimo toacutepico estaraacute divido em trecircs momentos O primeiro busca responder

se eacute possiacutevel uma retoacuterica estoica no direito O segundo tece consideraccedilotildees criacuteticas

sobre os julgados a fim de tentar explicitar em que medida os argumentos emotivos

colaboraram positivamente ou natildeo para a decisatildeo Sobre esse segundo momento eacute

preciso ressaltar que no atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo natildeo conseguimos

identificar criteacuterios que pudessem ser aplicados de maneira sistemaacutetica e coesa

resultando numa rigorosa metodologia de avaliaccedilatildeo de argumentos emotivos Desse

modo sobre este especiacutefico momento avaliativo eacute preciso registrar que muito se tem

para evoluir sobre o tema e por isso natildeo faremos mais do que esparsamente e sem o

rigor desejado ponderar a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum a relevacircncia

dos argumentos identificados e a sua integraccedilatildeo no contexto de uma argumentaccedilatildeo

juriacutedica Portanto intencionamos natildeo mais do que coletar alguns criteacuterios miacutenimos que

pudessem servir para ulterior desenvolvimento teoacuterico acerca da avaliaccedilatildeo de

argumentos Por fim o terceiro momento tentaraacute responder se existe uma eacutetica no uso

das emoccedilotildees na decisatildeo juriacutedica buscando construir paracircmetros de neutralidade para o

julgador

Inicialmente em relaccedilatildeo ao primeiro ponto conveacutem relembrar que a eacutetica

estoica influenciou fortemente a formataccedilatildeo de sua retoacuterica que era considerada uma

126

ciecircncia e uma virtude (diferentemente do que entendia todas as escolas filosoacuteficas da

antiguidade) No entanto a retoacuterica estoica tinha uma seacuterie de peculiaridades pois ao

inveacutes de propoacutesitos persuasivos buscava a correccedilatildeo do discurso Assim para atingir tal

desiderato natildeo utilizava ornamentos valorizava ao maacuteximo a brevidade e o apuro

gramatical repudiava coloquialismos e sobretudo natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero

descrevia esse estilo como seco severo compacto e apaacutetico Em suma o discurso

retoacuterico estoico absorvido na sua dialeacutetica era apresentado destituiacutedo de carga emotiva

para ser assentido pelo puacuteblico

No entanto a utilizaccedilatildeo desse modelo de discurso como paradigma para o

direito especialmente no que tange agraves emoccedilotildees natildeo eacute viaacutevel por uma seacuterie de motivos

Inicialmente se formos realmente radicais nessa ideia ela teria que ser bem

sucedida em sua capacidade de esvaziamento da linguagem de seu conteuacutedo emotivo

Mas isso seria impossiacutevel desde que as palavras se destinam a carregar uma constelaccedilatildeo

de informaccedilotildees experiecircncias e emoccedilotildees por detraacutes delas Seria inclusive desnorteante

retirar o peso emotivo de palavras teacutecnicas e eacuteticas do direito tais como boa-feacute

dignidade da pessoa humana direitos humanos etc Tais palavras tecircm uma dimensatildeo

emotiva forte e por isso satildeo causas de agir isto eacute nos impulsionam em suas

prescriccedilotildees conforme destaca Stevenson ldquodefiniccedilotildees eacuteticas envolvem um casamento de

significado descritivo e emotivo e consequentemente possuem um uso frequente no

redirecionamento e intensificaccedilatildeo de atitudesrdquo287

Ademais Fillmore destaca que toda definiccedilatildeo eacute composta por duas partes uma

parte descritiva relacionada ao significado de uma palavra especiacutefica sendo que esta

parte eacute dependente de outra qual seja o fundo de conhecimento culturalmente

compartilhado da palavra Assim toda palavra eacute dependente de frame isto eacute ldquouma

estrutura de conhecimento ou de conceituaccedilatildeo que subjaz ao significado de um conjunto

de itens lexicais que em certos sentidos apelam para essa mesma estruturardquo288

Portanto um projeto de apatia do discurso juriacutedico precisaria elaborar uma eficiente

287

ldquoethical definitions involve a wedding of descriptive and emotive meaning and accordingly have a

frequent use in redirecting and intensifying attitudesrdquo (trad livre) STEVENSON Charles L Ethics and

language New Haven Yale University Press 1944 p 210 Sobre a importacircncia da linguagem emotiva

na argumentaccedilatildeo cf WALTON Douglas MACAGNO Fabrizio Emotive language in argumentation

New York Cambridge 2014 288

ldquoby frame I mean a structure of knowledge or conceptualization that underlies the meaning of a set of

lexical items that in some ways appeal to that same structurerdquo (trad livre) FILLMORE Charles J

Double-decker definitions the role of frames in meaning explanations In Sign language studies

vol3 2003 p 267

127

terapecircutica para se livrar das caracteriacutesticas da proacutepria linguagem e dos seus anseios

comunicacionais mais baacutesicos

Todavia a impossibilidade de uma retoacuterica estoica no direito ultrapassa uma

questatildeo estritamente linguiacutestica Conforme vimos o direito leva em consideraccedilatildeo as

nossas emoccedilotildees porque a proteccedilatildeo juriacutedica soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres cuja

constituiccedilatildeo seja passiacutevel de danos pois eacute a partir dessa fragilidade constitutiva que se

deflagram respostas emocionais juridicamente relevantes O direito assim se constroacutei

atraveacutes de um conjunto de normas e decisotildees que fornecem elementos para entendermos

com que tipos de danos temos razatildeo para nos indignar ou para ter raiva ou que tipos de

sofrimento nos habilitam a buscar prestaccedilatildeo jurisdicional Portanto existe uma eacutetica

emotiva que informa a elaboraccedilatildeo das leis instrumentaliza-se processualmente e muitas

vezes ingressa no discurso juriacutedico Em outras palavras o direito eacute um sistema de

normas fundado em emoccedilotildees

Isso estaacute intrinsicamente conectado com a anaacutelise das decisotildees que apresentamos

no toacutepico anterior e que agora passamos a discutir

Por exemplo no ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo natildeo faria o menor sentido utilizar a

estrutura cognitiva do medo (argumentos de consequecircncia negativa) caso a existecircncia

de determinados perigos natildeo tivesse a possibilidade de realmente provocar seacuterios

danos a sujeitos e bens juridicamente tutelados pela CF isto eacute a sauacutede da populaccedilatildeo e o

equiliacutebrio do meio-ambiente

Desse modo o uso de argumentos de medo se fez necessaacuterio porque estava em

discussatildeo a presenccedila de riscos juridicamente relevantes que precisavam ser

evidenciados e ponderados Na audiecircncia puacuteblica realizada em 9 de junho de 2008

diversos especialistas manifestaram posicionamentos a favor e contra a importaccedilatildeo dos

pneus usados e remoldados de sorte que para uma boa soluccedilatildeo da questatildeo a

visualizaccedilatildeo de perigos relacionados agrave referida importaccedilatildeo era fundamental

Conveacutem destacar que na decisatildeo o uso de argumentos de medo estava

embasado em material teacutecnico elaborado por especialistas Ademais os referidos

argumentos estavam integrados dentro de uma argumentaccedilatildeo juriacutedica porque os

ministros desenvolveram a ideia de que aqueles perigos contrariavam dispositivos

constitucionais relacionados ao tema tais como o direito ao meio-ambiente

ecologicamente equilibrado o princiacutepio da precauccedilatildeo e o direito agrave sauacutede Por exemplo

em relaccedilatildeo ao art 225 da CF destaca-se o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado o que impotildee ao poder puacuteblico o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as

128

presentes e futuras geraccedilotildees O princiacutepio da precauccedilatildeo exige a necessidade de prevenir-

se contra riscos de danos previsiacuteveis quanto ao art 196 da CF enfatiza-se o dever de

atuaccedilatildeo do poder puacuteblico em face de riscos agrave sauacutede da populaccedilatildeo

Assim tal argumentaccedilatildeo demonstra a atualidade da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica de que

o medo pode ser beneacutefico para a deliberaccedilatildeo de determinados assuntos que envolvam

perigos Walton tambeacutem evidencia este aspecto ao dizer que argumentos que apelem ao

medo satildeo legiacutetimos e racionais quando a decisatildeo envolva a necessidade de ponderar as

consequecircncias de determinadas escolhas ou mais especificamente quando existe um

dilema entre manter um benefiacutecio atual ou visualizar aspectos de seguranccedila a longo-

prazo ldquoestes argumentos frequentemente envolvem uma escolha entre a seguranccedila a

longo-prazo e a gratificaccedilatildeo imediatardquo289

No presente caso pode-se dizer que estava em

discussatildeo a seguranccedila a longo prazo da populaccedilatildeo e do meio-ambiente em face da

manutenccedilatildeo dos interesses econocircmicos de certas empresas290

De outra parte analisando o ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958

1962 e 1970rdquo entendemos que os argumentos emotivos foram mal utilizados pelos

motivos a seguir desenvolvidos

Em primeiro lugar antes de prosseguir eacute preciso registrar que homenagens

puacuteblicas (sem premiaccedilatildeo em dinheiro) a cidadatildeos brasileiros que alcanccedilaram relevante

ecircxito em suas aacutereas de atuaccedilatildeo profissional (artiacutestica cultural cientiacutefica esportiva etc)

e divulgaram positivamente o nome do Paiacutes satildeo comuns e fazem parte da conduta da

Administraccedilatildeo Puacuteblica Todavia na referida ADI natildeo estava em discussatildeo uma mera

homenagem mas a constitucionalidade de dispositivos da Lei nordm 12663 de 2012 que

destinavam a especiacuteficos ex-jogadores a tiacutetulo de premiaccedilatildeo um relevante montante de

dinheiro puacuteblico no valor total de R$ 52 milhotildees de reais aleacutem de um auxiacutelio especial

Assim considerando a singularidade da homenagem seria necessaacuterio demonstrar que o

uso do dinheiro puacuteblico no caso buscava atingir algum propoacutesito constitucional

bastante relevante

289

ldquoThese arguments frequently involve a choice between long-term safety and immediate gratificationrdquo

(trad livre) WALTON D Op cit 2000 p 23 290

Sunstein em obra especiacutefica explora a relaccedilatildeo entre o medo e o princiacutepio da precauccedilatildeo Em contextos

altamente emotivos o autor argumenta que ocorre o fenocircmeno da negligecircncia probabiliacutestica isto eacute as

pessoas tendem a ignorar a real probabilidade de acontecimento dos riscos imaginados tomando assim

decisotildees irracionais Cf SUNSTEIN Cass R Laws of fear beyond the precautionary principle New

York Cambridge University Press 2005

129

Todavia da leitura dos votos dos ministros observa-se que o uso de argumentos

emotivos suplantou qualquer tentativa de desenvolvimento argumentativo a respeito dos

motivos constitucionais que fundamentariam tal premiaccedilatildeo

Apenas o relator o ministro Lewandowski conseguiu desenvolver um pouco

alguns suportes constitucionais para a decisatildeo mas ainda assim de maneira

problemaacutetica

No primeiro suporte cita-se o art 217 da CF cujo caput diz que eacute dever do

Estado fomentar praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais a autorizaccedilatildeo para a

referida homenagem estaria no inciso IV deste dispositivo o qual diz que devem ser

observados ldquoa proteccedilatildeo e o incentivo agraves manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacionalrdquo

Todavia a expressatildeo ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo que parece indicar a necessidade de proteccedilatildeo

de manifestaccedilotildees desportivas criadasoriginadas no Brasil eacute entendida em outro sentido

Assim ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo eacute compreendida no sentido de ldquoincorporada aos costumes

nacionaisrdquo

Desse modo o ministro Lewadowski chega agrave conclusatildeo de que o futebol como

esporte incorporado ao costume nacional ldquodeve ser protegido e incentivado por

expressa imposiccedilatildeo constitucional mediante qualquer meio que a Administraccedilatildeo

Puacuteblica considerar apropriadordquo Em outras palavras a Administraccedilatildeo Puacuteblica natildeo

estaria sujeita a limites quando no intuito de fomentar determinada praacutetica desportiva

a protege e incentiva com dinheiro puacuteblico inclusive atraveacutes de homenagens a pessoas

especiacuteficas Parece que tal conclusatildeo natildeo estaacute condizente com a ideia de limites

juriacutedicos presente num Estado Democraacutetico de Direito

O segundo suporte seria uma combinaccedilatildeo do art 215 sect1ordm com o art 216 da CF

Aquele primeiro dispositivo reza que ldquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas

populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo

civilizatoacuterio nacionalrdquo Assim o sect 1ordm do art 215 preocupa-se com as manifestaccedilotildees das

culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do

processo civilizatoacuterio nacional porque compreende que a vulnerabilidade de culturas

pertencentes a grupos minoritaacuterios necessita de proteccedilatildeo estatal diferenciada para natildeo

desaparecerem

Todavia o ministro Lewandowski realiza uma ablaccedilatildeo no referido dispositivo

ao retirar a parte que fala de ldquo[] indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos

participantes do processo civilizatoacuterio nacionalrdquo Na sua decisatildeo aparece apenas um

pedaccedilo do dispositivo senatildeo vejamos ldquovale lembrar ainda nesse diapasatildeo que o art

130

215 sect 1ordm da Carta Magna dispotildee que lsquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas

popularesrsquordquo

O art 216 por sua vez declara que o patrimocircnio cultural brasileiro eacute

constituiacutedo por bens de natureza material e imaterial ldquo[] tomados individualmente ou

em conjunto portadores de referecircncia agrave identidade agrave accedilatildeo agrave memoacuteria dos diferentes

grupos formadores da sociedade brasileirardquo Assim o ministro Lewandowski chega agrave

conclusatildeo de que o futebol eacute um bem de natureza imaterial e faz referecircncia aos incisos I

e II deste artigo quais sejam ldquoformas de expressatildeordquo e ldquoos modos de criar fazer e

viverrdquo

Poreacutem no direito brasileiro eacute preciso ressaltar que para ganhar tal alcunha os

bens culturais de natureza imaterial por expressa determinaccedilatildeo do art 216 sect 1ordm da CF

estatildeo sujeitos a processo de registro e de reconhecimento especiacutefico pelo Instituto de

Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional - IPHAN regulamentado pelo Decreto nordm

3551 de 4 de agosto de 2000291

Assim ateacute hoje foram registrados pelo IPHAN os seguintes bens culturais de

natureza imaterial ofiacutecio das paneleiras de goiabeiras kusiwa (linguagem e arte graacutefica

Wajatildepi) ciacuterio de Nossa Senhora de Nazareacute samba de roda do recocircncavo baiano modo

de fazer viola-de-cocho ofiacutecio das baianas de acarajeacute jongo no Sudeste modo artesanal

de fazer queijo de Minas samba do Rio de Janeiro frevo cachoeira de Iauaretecirc (lugar

sagrado dos povos indiacutegenas dos Rios Uaupeacutes e Papuri) feira de Caruaru e roda de

capoeira toque dos sinos em Minas Gerais ofiacutecio de Sineiro festa do Divino Espiacuterito

Santo de Pirenoacutepolis Rtixogravekograve (expressatildeo artiacutestica e cosmoloacutegica do Povo Karajaacute)

etc292

A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura ndash

UNESCO apenas reconhece como patrimocircnio cultural imaterial da humanidade os

seguintes elementos do Brasil roda de capoeira frevo yaokwa (ritual do povo

enawene) expressotildees orais e graacuteficas dos wajapis e samba de roda do recocircncavo

baiano293

291

Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimocircnio cultural

brasileiro cria o Programa Nacional do Patrimocircnio Imaterial e daacute outras providecircncias 292

Cf em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid=12456ampretorno=paginaIphan

Acesso em 19 de marccedilo de 2015 293

Cf em httpwwwunescoorgnewptbrasiliacultureworld-heritageintangible-cultural-heritage-list-

brazilc1414250 Acesso em 19 de marccedilo de 2015

131

De toda sorte todos os dispositivos acima citados pelo ministro satildeo brevemente

desenvolvidos na argumentaccedilatildeo e mesmo assim natildeo parecem conceder uma

autorizaccedilatildeo para a dita homenagem com o uso de dinheiro puacuteblico

A partir de entatildeo apenas surgem argumentos emotivos que procuram dar razotildees

para se ter orgulho e compaixatildeo pelos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e

1970 Todavia a questatildeo eacute que tais argumentos desconectam-se dos seus motivos

juriacutedicos afastam-se da questatildeo central em discussatildeo que era a verificaccedilatildeo do

atingimento de propoacutesitos constitucionais e adquirem um peso desproporcional na

argumentaccedilatildeo passando a ser irrelevantes

Conveacutem destacar que a argumentaccedilatildeo realizada pelo ministro Luiz Fux chega a

apresentar as caracteriacutesticas do que seria uma patologia do orgulho Segundo Lazarus o

orgulho pode demonstrar uma faceta doentia quando proveniente de uma identidade

extremante fraacutegil e em duacutevida sobre o seu proacuteprio valor294

Desse modo ao dizer que as

conquistas dos referidos jogadores fizeram com que abandonaacutessemos ldquoo complexo de

que noacutes soacute seriacuteamos uma paacutetria que calccedila chuteirasrdquo o ministro fornece um fundamento

patoloacutegico para a concessatildeo da premiaccedilatildeo Ademais dizer que as vitoacuterias da seleccedilatildeo

proporcionaram bastante alegria agrave populaccedilatildeo e que tal premiaccedilatildeo seria uma diacutevida de

gratidatildeo do povo brasileiro eacute irrelevante para a soluccedilatildeo juriacutedica do caso

O ministro Toffoli por sua vez destaca sem especificar fontes bibliograacuteficas

que a descoberta das empresas suecas pelo Brasil ocorreu em virtude da vitoacuteria de 1958

e seria um bom motivo para se orgulhar da seleccedilatildeo Tal argumento como tantos outros

foge da questatildeo central em julgamento e eacute igualmente irrelevante

De outra parte o uso da compaixatildeo que formatou a concessatildeo legislativa do

chamado auxiacutelio especial e ingressou nos argumentos juriacutedicos tambeacutem se mostra

problemaacutetico

Primeiramente eacute preciso dizer que a compaixatildeo eacute uma emoccedilatildeo de importante

cultivo na vida puacuteblica pois seria impossiacutevel conviver numa sociedade cujos membros

natildeo tivessem a capacidade de reconhecer a seriedade do sofrimento vivido pelos demais

e de lhes auxiliar Assim Nussbaum destaca que tal emoccedilatildeo quando bem utilizada

pode desempenhar relevante funccedilatildeo no direito ldquoela pode fornecer bases cruciais para

programas de assistecircncia social para a ajuda externa e outros esforccedilos para a justiccedila

294

LAZARUS R Op cit 1991 p 273

132

global e para muitas formas de mudanccedila social que abordam a opressatildeo e a

desigualdade de grupos vulneraacuteveisrdquo295

Todavia ela tambeacutem pode ser mal utilizada pelo Estado principalmente em

relaccedilatildeo a uma etapa da estrutura cognitiva da compaixatildeo que diz respeito ao julgamento

eudemonista isto eacute uma fase avaliativa em que aferimos a extensatildeo de pessoas que eacute

objeto de tal emoccedilatildeo296

Eacute caracteriacutestico do ser humano que ele tenha preocupaccedilatildeo

primeiramente por ele proacuteprio e depois por aqueles que lhes satildeo proacuteximos tendendo a

ser indiferente consequentemente com aqueles que estatildeo afastados de seu estreito

ciacuterculo de empatia Tal estrutura de pensamento estaacute presente na descriccedilatildeo da

compaixatildeo realizada por Aristoacuteteles em sua Retoacuterica

Um dos possiacuteveis erros nessa etapa alerta Nussbaum consiste em incluir uma

quantidade muito restrita de pessoas em tal ciacuterculo Ou seja geralmente ocorre que o

conjunto de indiviacuteduos digno de tal sentimento eacute aquele culturalmente proacuteximo ou

simpaacutetico de uma sociedade excluindo-se estranhos e pessoas que estatildeo distantes297

No

que tange agrave criaccedilatildeo de tais ciacuterculos a miacutedia possui um tremendo poder pois atraveacutes da

escolha de imagens e de narrativas e inclusive por pressotildees mercadoloacutegicas tem a

capacidade de produzir empatia e influenciar julgamentos eudemonistas298

Poreacutem o Estado quando se baliza pela compaixatildeo para direcionamento de

recursos puacuteblicos precisa estar atento a isso e realizar uma avaliaccedilatildeo autocriacutetica nessa

etapa de julgamento Estendendo tal raciociacutenio ao presente caso pode-se dizer que no

Brasil o exerciacutecio de compaixatildeo por jogadores campeotildees de futebol padece de um viacutecio

de circularidade cultural por parte do Estado

Assim utilizar argumentos de que determinados atletas mereceriam um auxiacutelio

financeiro porque na eacutepoca de suas atividades profissionais esportivas natildeo se retirava

proveito econocircmico como hoje em dia ou porque a presente situaccedilatildeo financeira de tais

ex-campeotildees colocaria em ldquoxeque o profundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves

seleccedilotildees brasileiras que disputaram a Copa do Mundo de 1958 1962 e 1970rdquo afronta a

isonomia em prejuiacutezo de atletas de outras modalidades excluiacutedas do ciacuterculo cultural da

295

ldquoIt can provide crucial underpinnings for social welfare programs for foreign aid and other efforts

toward global justice and for many forms of social change that address the oppression and inequality of

vulnerable groupsrdquo (trad livre) NUSSBAUM M Op cit p 55 296

Id ibid p 51 297

Id ibid p 346 298

NUSSBAUM Martha Upheavals of thought the intelligence of emotions Cambridge Cambridge

University Press 2001 p 434

133

simpatia social que tambeacutem alcanccedilaram feitos notaacuteveis para o Paiacutes e que atualmente

passam por iguais problemas financeiros

Acrescente-se que a isonomia eacute um instrumento juriacutedico de manutenccedilatildeo da

estabilidade emocional numa sociedade cujo direito valorize a igualdade Desse modo a

desequiparaccedilatildeo arbitraacuteria juridicamente desmotivada ou fraca deve ser evitada porque

deflagra reaccedilotildees juridicamente relevantes de raiva e de indignaccedilatildeo em face do Estado-

legislador

Por uacuteltimo no ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo tem-se um julgamento distinto dos

demais porque os argumentos emotivos ainda que salientes estavam diluiacutedos entre

uma seacuterie de outros argumentos acerca de questotildees penais de dignidade da pessoa

humana de laicidade estatal de autonomia do indiviacuteduo de definiccedilatildeo sobre o iniacutecio da

vida etc

Poreacutem conforme vimos os votos vencedores estavam em sintonia

argumentativa em pelo menos um aspecto qual seja o reconhecimento do sofrimento

da gestante que foi comparado muitas vezes a uma tortura a um martiacuterio revelando a

estrutura cognitiva da compaixatildeo Ademais vaacuterias emoccedilotildees negativas foram

expressamente atribuiacutedas agrave figura da matildee medo vergonha anguacutestia raiva tristeza

Ressalte-se que tal constataccedilatildeo tinha fundamento no depoimento de mulheres que

portaram fetos anenceacutefalos na opiniatildeo de meacutedicos (ginecologistas psiquiatras)

antropoacutelogos e demais especialistas ouvidos na audiecircncia puacuteblica

Acreditamos que tais argumentos eram juridicamente relevantes pelos seguintes

aspectos Primeiramente a demanda considerando o objeto da accedilatildeo soacute faria sentido

diante da seriedade do sofrimento experimentado pela gestante E isso estava

estreitamente conectado a questotildees juriacutedicas respeitantes agrave dignidade da pessoa humana

agrave liberdade e agrave autonomia da vontade ao direito agrave sauacutede que engloba a sauacutede fiacutesica e

psiacutequica

Obviamente a gravidade do sofrimento da gestante era apenas uma entre outras

questotildees que precisavam ser argumentadas e por isso haveria um erro de peso caso os

votos apenas se sustentassem nesse ponto o que natildeo aconteceu No entanto pode-se

dizer que a estrutura argumentativa do julgado estava fundada numa emoccedilatildeo especiacutefica

que era a compaixatildeo e que isso diante das caracteriacutesticas do problema e das normas

juriacutedicas invocadas tinha uma relevacircncia juriacutedica para o deslinde da controveacutersia

Tendo realizado essas observaccedilotildees em relaccedilatildeo aos trecircs julgados do STF

analisados no toacutepico anterior verifica-se que o estudo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo

134

juriacutedica e mais amplamente no direito se justifica pois a partir desta perspectiva eacute

possiacutevel compreender por que alguns julgamentos e ateacute por que algumas leis tomam

determinada formataccedilatildeo sendo admissiacutevel inclusive criticar o uso das emoccedilotildees no

discurso juriacutedico

No entanto para o fechamento deste toacutepico ainda resta discutir mais uma

problemaacutetica que se relaciona agrave eacutetica da utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e suas

implicaccedilotildees para um discurso juriacutedico que tenha a pretensatildeo de neutralidade e de

tecnicidade na soluccedilatildeo de problemas Assim a introduccedilatildeo de elementos emotivos numa

decisatildeo poderia representar uma ameaccedila agrave necessaacuteria imparcialidade exigida da figura

racional do juiz

Em parte pensamos jaacute ter respondido tal duacutevida tanto na exposiccedilatildeo que fizemos

da psicologia cognitiva quanto na anaacutelise das decisotildees judiciais do STF Para a Teoria

da Avaliaccedilatildeo natildeo haveria como falar de racionalidade dissociada das emoccedilotildees sendo

que muitas das boas decisotildees de nossa vida praacutetica estatildeo amparadas em suportes

emotivos

De outra parte vimos que em determinadas decisotildees judiciais seria ateacute

irracional decidir e fundamentar sem recorrer agraves emoccedilotildees como por exemplo no ldquocaso

dos pneumaacuteticosrdquo em que o medo se fez presente atraveacutes da visualizaccedilatildeo das

consequecircncias negativas (perigos) o que era extremamente adequado para a soluccedilatildeo do

problema

Ademais adicionamos que os argumentos emotivos precisam ser juridicamente

relevantes para o caso considerando tanto o conjunto de normas juriacutedicas invocado

quanto a especiacutefica problemaacutetica factual a ser enfrentada Por fim o peso de tais

argumentos precisa guardar uma relaccedilatildeo de proporccedilatildeo com outras questotildees que tambeacutem

precisem ser enfrentadas

Todavia aqui intencionamos tratar de algo diferente e expor um fictiacutecio modelo

humano que pudesse servir de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no julgamento porque

sabemos que elas tanto podem ser bem utilizadas quanto mal utilizadas

Em primeiro lugar o saacutebio estoico natildeo seria um bom paracircmetro de reflexatildeo

porque uma vez que se livrou das emoccedilotildees do homem comum e apenas possui uma

ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees (eupatheia) ele tem uma sistemaacutetica de valores que natildeo

coincide com a nossa e a do nosso ordenamento juriacutedico e provavelmente caso tivesse

que julgar o homem inferior teria uma difiacutecil compreensatildeo dos seus problemas juriacutedico-

mundanos

135

Vimos que Aristoacuteteles confere bastante importacircncia agraves emoccedilotildees em sua teoria

eacutetica e na retoacuterica aleacutem de possuir uma visatildeo sobre o tema que ainda permanece

bastante atual Ademais o homem aristoteacutelico tem a virtude completa porque nele a

parte racional e a parte natildeo-racional da alma desempenham bem a sua funccedilatildeo e atingem

os melhores padrotildees demonstrando corretamente que natildeo existe racionalidade sem

disposiccedilatildeo emocional Todavia vimos que Aristoacuteteles natildeo recepciona na retoacuterica a

classificaccedilatildeo emocional da Eacutetica a Nicocircmaco Aleacutem disso para o Estagirita a virtude

moral eacute conquistada pelo haacutebito o que embora concordemos em parte se distancia dos

propoacutesitos mais intelectuais aqui objetivados

Assim entendemos que um bom ponto de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no

direito e especificamente na decisatildeo juriacutedica seria o modelo do espectador imparcial de

Adam Smith

Na sua Teoria dos Sentimentos Morais Smith procura explanar a estrutura do

julgamento da vida moral na sociedade isto eacute o meio pelo qual aprovamos ou

reprovamos condutas de indiviacuteduos incluindo noacutes mesmos considerando a adequaccedilatildeo

da accedilatildeo de um determinado agente num determinado contexto Primeiramente julgamos

a correccedilatildeo das accedilotildees como espectadores diretos mas em busca de uma melhor

avaliaccedilatildeo tentamos recorrer a outros tipos de espectadores ateacute chegarmos agravequele que

seria o melhor tipo de julgador ou seja o espectador imparcial299

O ato de julgar eacute o desafio de conectar um conjunto de eventos marcados pela

fortuna e por isso pelas suas singularidades a um mundo que necessita ser regido por

padrotildees normativos em comum vale dizer ldquo[] um mundo de mentes que soacute pode ser

um mundo comum quando a imaginaccedilatildeo criativa estabelece normas comuns para a

forma de avaliar os motivos para a accedilatildeo ou seja o que deve ser considerado um motivo

adequado para a accedilatildeordquo300

A fim de realizar devidamente tais julgamentos o espectador precisa estar

munido de dois indispensaacuteveis instrumentos morais quais sejam a simpatia e a

imaginaccedilatildeo Por meio da imaginaccedilatildeo conseguimos superar a descontiguidade fiacutesica

que nos separa necessariamente dos outros homens e o hiato temporal que via de

regra nos aparta da situaccedilatildeo experimentada pelos outros permitindo-nos posicionar

299

SMITH Adam The theory of moral sentiments Cambridge Cambridge University Press 2002 p

XVI 300

ldquo[hellip] world of minds which can only be a common world when the creative imagination sets up

common standards for how to assess motives for action that is for what counts as a proper motive for

actionrdquo (trad livre) Introduccedilatildeo in Id ibid p XVII

136

num mundo de eventos que pessoalmente nunca vivenciamos mas que somos capazes

de reconstruir mentalmente e de alguma forma senti-lo

Como natildeo temos experiecircncia imediata do que os outros homens

sentem natildeo podemos formar uma ideia da forma como eles satildeo

afetados senatildeo concebendo o que noacutes sentiriacuteamos na situaccedilatildeo

semelhante

[]

Pela imaginaccedilatildeo nos colocamos em sua situaccedilatildeo concebemo-nos

suportando todos os mesmos tormentos entramos por assim dizer em

seu corpo e nos convertemos em alguma medida a mesma pessoa que

ele e daiacute formamos uma ideia de suas sensaccedilotildees podendo sentir algo

que embora em menor grau natildeo eacute totalmente contraacuterio ao deles301

Assim eacute atraveacutes da imaginaccedilatildeo baseada em evidecircncias em relaccedilatildeo ao evento

julgado que o espectador consegue compreender os motivos e as emoccedilotildees que

informaram a atitude do agente E a sua simpatia se funda nesta imaginaccedilatildeo pois apenas

ela permite ldquo[] levar para si mesmo cada pequena circunstacircncia de sofrimento que

pode eventualmente ocorrer a quem sofrerdquo302

Assim ao se imaginar na posiccedilatildeo do

agente o espectador iraacute avaliar se agiria da mesma forma simpatizando com os

sentimentos do agente e com a sua conduta

Poreacutem a despeito de o espectador imparcial possuir essa viacutevida qualidade de

imaginar a situaccedilatildeo alheia e por isso ter uma racionalidade composta por emoccedilotildees a

sua especial condiccedilatildeo lhe possibilita estar apartado da violecircncia dos sentimentos

alheios permitindo-lhe produzir julgamentos morais imparciais Assim anota Forman-

Barzilai ldquomas eacute fundamental notar que o modelo de simpatia eacute eficaz para Smith para

produzir juiacutezos morais imparciais porque o espectador eacute ao mesmo tempo envolvido e

desapegadordquo303

Assim o espectador imparcial que eacute a terceira pessoa ideal imaginaacuteria

consegue temperar as emoccedilotildees porque estaacute localizado num lugar que nem eacute

exatamente o nosso proacuteprio com as nossas eternas inclinaccedilotildees e preferecircncias pessoais

301

ldquoAs we have no immediate experience of what other men feel we can form no idea of the manner in

which they are affected but by conceiving what we ourselves should feel in the like situation [hellip] By the

imagination we place ourselves in his situation we conceive ourselves enduring all the same torments we

enter as it were into his body and become in some measure the same person with him and thence form

some idea of his sensations and even feel something which though weaker in degree is not altogether

unlike themrdquo (trad livre) Id ibid p 11-12 302

ldquo[hellip] to bring home to himself every little circumstance of distress which can possibly occur to the

suffererrdquo (trad livre) Id ibid p 26 303

ldquoBut it is key to note that the sympathy model is effective for Smith for producing impartial moral

judgments because the spectator is at once both involved and detachedrdquo FORMAN-BARZILAI Fonna

Adam Smith and the circles of sympathy cosmopolitanism and moral theory Cambridge Cambridge

University Press 2009 p 67

137

nem o da pessoa observada Conforme adverte Nussbaum a emoccedilatildeo precisa ser a

emoccedilatildeo de um espectador ldquoisso tambeacutem significa que noacutes temos que omitir essa parte

da emoccedilatildeo que deriva de um interesse pessoal em nossas proacuteprias metas e projetosrdquo304

Um tal modelo de espectador imparcial implica o desenvolvimento da

capacidade de autocriacutetica e de criacutetica porque lembra Pitts o nosso julgamento do que eacute

louvaacutevel eacute inserido sempre num determinado contexto social e eacute necessaacuterio aprender a

questionaacute-lo em seus preconceitos e nas suas parcialidades Assim ldquonoacutes desenvolvemos

uma concepccedilatildeo do que seria o julgamento de um espectador imparcial observando as

nossas proacuteprias opiniotildees e as de observadores reais ndash membros da nossa proacutepria

sociedade ndash e destes destilando um julgamento desapaixonado e imparcialrdquo305

Smith portanto estava preocupado com a manutenccedilatildeo da ordem social uma vez

que para ele a ausecircncia de determinados preceitos de justiccedila tem forte efeito

desintegrador sobre a sociedade306

Na preservaccedilatildeo dessa ordem confrontar as

inclinaccedilotildees emotivas eacute essencial e isso deve ser realizado numa dupla esfera

individualmente atraveacutes do escrutiacutenio das preferecircncias particularistas e coletivamente

por meio do exame das preferecircncias parciais de facccedilotildees civis e eclesiais que podem se

tornar extremamente fanaacuteticas307

Com efeito tendo visto o que seria o modelo de espectador imparcial de Smith

percebe-se que ele representa um bom ponto de reflexatildeo para pensar a eacutetica da

utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Primeiramente as emoccedilotildees natildeo podem ser aquelas resultantes dos proacuteprios

projetos e inclinaccedilotildees particulares do julgador e nessa medida ele precisa ter a

304

ldquoit also means that we have to omit that portion of the emotion that derives from a personal interest in

our own goals and projectsrdquo (trad livre) NUSSBAUM Martha Emotion in the language of judging

In St Johns Law Review vol 70 issue 1 1996 23-30 p 28 305

ldquoWe develop a conception of what the impartial spectatorrsquos judgments would be by observing our own

opinions and those of actual observers and from these distilling a dispassionate and unbiased judgmentrdquo

(trad livre) PITTS Jennifer A turn to empire the rise of imperial liberalism in Britain and France

PrincetonOxford Princeton University Press 2005 p 44 Neil Maccormick busca conciliar o

pensamento de Smith com o de Kant ao formular o seguinte imperativo categoacuterico smithiano ldquoEntre tatildeo

plenamente quanto possiacutevel nos sentimentos de todas as pessoas diretamente envolvidas ou afetadas por

um incidente ou por um relacionamento e imparcialmente forme uma maacutexima de julgamento sobre o que

eacute certo que todos pudessem aceitar se estivessem comprometidos com a manutenccedilatildeo de crenccedilas muacutetuas

estabelecendo um padratildeo comum de aprovaccedilatildeo entre sirdquo MACCORMICK Neil Practical reason in law

and morality OxfordNew York Oxford University Press 2008 p 64 Para uma anaacutelise da

argumentaccedilatildeo do STF e do STJ com base nos paracircmetros fornecidos por Maccormick cf ROESLER

Claudia LAGE Leonardo A argumentaccedilatildeo do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes

inimputaacuteveis e semi-imputaacuteveis In Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Ano 21 Vol 104 Out-

set 2013 pp 347-390 306

SMITH A Op cit p 101 307

FORMAN-BARZILAI F Op cit p 152

138

capacidade de filtrar as suas propensotildees pessoais e tambeacutem criticar as do grupo em que

esteja socialmente inserido e as de outros grupos sociais dominantes a fim de que as

emoccedilotildees alcanccediladas sejam a de um espectador imparcial Poreacutem a despeito disso sabe-

se que ele natildeo eacute um observador apaacutetico de modo que as emoccedilotildees quando juridicamente

relevantes e pertinentes ao conjunto normativo discutido podem ser argumentadas

desde que devidamente fundamentadas em evidecircncias Por fim eacute preciso acrescentar

que o julgador por meio de suas decisotildees eacute responsaacutevel por preservar um ambiente de

normatividade comum na sociedade

A manutenccedilatildeo da confianccedila social na figura do juiz reside na sua capacidade de

se colocar adequadamente nesse papel de espectador imparcial possibilitando a

conservaccedilatildeo do ideal da lei como limites

139

4 CONCLUSAtildeO

No Capiacutetulo I iniciamos este trabalho investigando a importacircncia conferida agraves

emoccedilotildees na Antiguidade precisamente na retoacuterica e na eacutetica da filosofia de Aristoacuteteles e

da escola estoica

Primeiramente contextualizamos o tema e observamos que as emoccedilotildees ganham

oportunidade para tematizaccedilatildeo apenas dentro de uma sociedade em que a cultura do

debate eacute valorizada A retoacuterica surge num ambiente em que a fala articulada se mostra

extremamente necessaacuteria para a soluccedilatildeo de problemas na vida comum nascendo a partir

daiacute a sua teorizaccedilatildeo e tambeacutem a sua criacutetica atraveacutes de Platatildeo que cunha o termo

ldquorhecirctorikecircrdquo Ademais a proacutepria literatura representada na sua maior qualidade pela

obra de Homero impulsiona e antecipa o desenvolvimento teoacuterico da retoacuterica

Por sua vez ao analisar a retoacuterica aristoteacutelica destacamos um ponto pouco

explorado do autor que diz respeito agrave sua mudanccedila de posicionamento acerca das

emoccedilotildees Se no Capiacutetulo I do Livro I da Retoacuterica observamos uma contundente criacutetica

ao uso das emoccedilotildees no discurso a partir do Capiacutetulo II as emoccedilotildees jaacute satildeo consideradas

um dos meios de convencimento e apoacutes dedica-se praticamente a metade do Livro II

para descrever com um grande grau de detalhes as emoccedilotildees em espeacutecie

Vimos tambeacutem que Aristoacuteteles foi influenciado pela evoluccedilatildeo do pensamento

platocircnico e incorpora em sua obra a ideia de sentimentos mistos pois para o

mencionado filoacutesofo as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer e de dor Ademais a fim

de explanar como ocorre o mecanismo de surgimento das emoccedilotildees o Estagirita recorre

agrave ideia de phantasia um termo teacutecnico emprestado de sua psicologia Uma curiosidade

identificada foi o fato de que o tema das emoccedilotildees que a rigor eacute um assunto proacuteprio da

psicologia natildeo eacute desenvolvido na obra aristoteacutelica supostamente adequada para tanto

que seria a ldquoDe Animardquo (Sobre a alma) evidenciando o quanto na sabedoria da eacutepoca

a retoacuterica jaacute estava vinculada a questotildees psicoloacutegicas

De outra parte nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles tambeacutem

confere bastante relevacircncia agraves emoccedilotildees O homem virtuoso aristoteacutelico possui a virtude

completa que eacute alcanccedilada pelo bom funcionamento da parte racional e da parte natildeo-

racional da alma A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que eacute atingida por meio

do haacutebito e ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que significa ser devidamente afetado

pelas emoccedilotildees eacute determinante para aquisiccedilatildeo de uma vida feliz Exploramos as

implicaccedilotildees morais desse modelo eacutetico ao dizer que uma falha na decisatildeo do curso da

140

accedilatildeo moral estaacute tambeacutem relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional do indiviacuteduo Aleacutem disso

constatamos que Aristoacuteteles realiza uma classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e

inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas sendo que estas

uacuteltimas natildeo devem ser sentidas em nenhuma circunstacircncia Por uacuteltimo ao compararmos

a classificaccedilatildeo emocional desenvolvida na Eacutetica a Nicocircmaco com o tratamento teoacuterico

da Retoacuterica percebemos que o orador eacute instruiacutedo a utilizar todas as emoccedilotildees no

discurso inclusive aquelas denominadas de perversas motivo pelo qual se pode dizer

que a retoacuterica foi erigida num domiacutenio proacuteprio

De seu turno os estoicos desenvolveram uma peculiar sistemaacutetica de

pensamento em que a uacutenica coisa considerada boa eacute a virtude que se confunde com a

felicidade e a uacutenica coisa ruim eacute o viacutecio que significa a infelicidade todo o resto

(reputaccedilatildeo riqueza sauacutede bom nascimento beleza etc) eacute considerado indiferente isto

eacute a sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a felicidade Ademais para os fundadores da escola

estoica a alma humana eacute monoliticamente constituiacuteda apenas pela razatildeo sem

possibilidade de haver conflito entre as partes Nessa ordem de ideias as emoccedilotildees que

satildeo entendidas como avaliaccedilotildees por Crisipo devem ser eliminadas da vida comum uma

vez que por meio delas estamos sempre valorando indevidamente a realidade Em seu

caminho para a aquisiccedilatildeo da autossuficiecircncia e para a compreensatildeo correta do mundo o

homem virtuoso estoico que eacute representado pela figura do saacutebio se livrou das emoccedilotildees

do ser humano inferior e adquiriu uma ldquoversatildeo corrigidardquo denominada eupatheia

A retoacuterica estoica por sua vez recebeu uma grande influecircncia da sua eacutetica e por

isso natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero nos traz um relato histoacuterico de oradores estoicos

romanos como figuras que embora haacutebeis na dialeacutetica e no uso de argumentos precisos

possuiacuteam um estilo seco severo apaacutetico e conciso A ineficaacutecia desse modelo de

discurso eacute relatada no julgamento de Rutilius Rufus que ao se defender no estilo estoico

de uma injusta acusaccedilatildeo foi condenado e exilado

Da exposiccedilatildeo da filosofia aristoteacutelica e estoica acerca das emoccedilotildees concluiacutemos

que o tema era extremamente relevante para as referidas escolas de pensamento e que

ambas natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar das emoccedilotildees Aristoacuteteles antes

de explanar sobre os entimemas que eacute a parte do logos na Retoacuterica ou antes de falar

sobre a parte racional da alma na Eacutetica a Nicocircmaco preferiu discursar primeiramente

sobre as emoccedilotildees conferindo uma precedecircncia e um significado simboacutelico ao assunto

Por sua vez ainda que os estoicos em virtude de sua axiologia ilustrassem uma visatildeo

141

negativa sobre as emoccedilotildees eles realizaram um debate de alto niacutevel e extremamente

atual para a reflexatildeo do assunto

No Capiacutetulo II buscamos investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a MTA

que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de Toulmin

e de Perelman-Tyteca Ademais tambeacutem procuramos identificar criteacuterios de anaacutelise e

de avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso Igualmente examinamos o

desenvolvimento teoacuterico das emoccedilotildees para a psicologia cognitiva especialmente para a

Teoria da Avaliaccedilatildeo Ressalte-se que um dos objetivos fundamentais de tal capiacutetulo foi

tambeacutem tentar compreender como o tema das emoccedilotildees que era considerado tatildeo vital

para o discurso e para a eacutetica na Antiguidade foi recepcionado pela MTA

Em primeiro lugar vimos que o surgimento da MTA ocorreu num contexto

histoacuterico bem especiacutefico em que os movimentos totalitaacuterios ingressaram no poder e

dominaram a vida poliacutetica europeia e mundial O tipo de discurso utilizado por tais

movimentos era a propaganda que empregava um forte apelo emocional para mobilizar

as massas A MTA surge com o objetivo de se afastar desse tipo de discurso e de fundar

um modelo de argumentaccedilatildeo racional que viabilizasse a existecircncia da democracia

Nesse sentido tanto Toulmin quanto Perelman-Tyteca natildeo esboccedilaram nenhum interesse

em falar sobre as emoccedilotildees Assim eacute interessante perceber que justamente na chamada

ldquoNova Retoacutericardquo nada sobre as emoccedilotildees da retoacuterica aristoteacutelica foi recepcionado Em

relaccedilatildeo a Viehweg embora o autor demonstre a relaccedilatildeo entre a toacutepica a retoacuterica e o

direito tambeacutem natildeo vimos nenhum interesse em dissertar sobre as emoccedilotildees

A disciplina responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees na MTA foi a teoria das

falaacutecias ldquoadrdquo Dessa forma toda emoccedilatildeo da retoacuterica antiga se transformou num erro de

loacutegica para a argumentaccedilatildeo de modo que o discurso apaacutetico tal como propugnado pela

retoacuterica estoica passou a ser um modelo ideal de argumentaccedilatildeo fazendo com que

pathos retomasse o seu sentido de patoloacutegico Todavia criticamos tal proposta

argumentativa pela ausecircncia de complexidade e por ser incapaz de discutir em que

medida as emoccedilotildees poderiam desempenhar um bom papel na argumentaccedilatildeo

Em resposta ao tratamento dispensado agraves emoccedilotildees pela disciplina das falaacutecias

ldquoadrdquo vimos que Douglas Walton reage com forte criacutetica Uma teoria da argumentaccedilatildeo

que exclua de suas consideraccedilotildees argumentos emotivos se mostra inaacutebil em

compreender a forma como argumentamos na praacutetica Todavia o teoacuterico canadense

alerta que as emoccedilotildees tambeacutem podem ser mal utilizadas pois argumentos emotivos

podem ser irrelevantes numa discussatildeo e o impacto do seu apelo pode querer disfarccedilar a

142

fraqueza da argumentaccedilatildeo Assim a fim de avaliar tais apelos eacute preciso estar atento

para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo para o impacto e para o contexto em

que satildeo utilizados

Em seguida analisamos a abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees desenvolvida por

Micheli representante da escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo que destaca que o

problema do estudo das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade Desse

modo o linguista suiacuteccedilo sistematiza os resultados encontrados na linguiacutestica e oferece

trecircs categorias para a identificaccedilatildeo das emoccedilotildees na liacutengua as emoccedilotildees ditas as emoccedilotildees

demonstradas e as emoccedilotildees suportadas Outrossim verificamos que as emoccedilotildees podem

ser objeto de argumentaccedilatildeo e que manipulaccedilotildees racionais natildeo satildeo distintas de

manipulaccedilotildees emocionais

Por fim considerando que o tema das emoccedilotildees eacute desde a antiguidade

profundamente conectado com a psicologia procuramos dar um suporte psicoloacutegico ao

nosso trabalho com o saber teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo que coloca a ideia de

avaliaccedilatildeo como o centro da deflagraccedilatildeo do processo emotivo

Nesse ponto observou-se a grande atualidade da abordagem aristoteacutelica e

estoica sobre as emoccedilotildees pois ambas tinham uma compreensatildeo cognitiva do assunto

sendo que Crisipo expressamente se pronunciou no sentido de que as emoccedilotildees satildeo

avaliaccedilotildees Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo dependentes da razatildeo para o seu

surgimento e para o seu controle poreacutem neste processo natildeo haacute uma prevalecircncia da

razatildeo porque esta uacuteltima para se manter equilibrada precisa da emoccedilatildeo

Observamos que as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas

atendem a criteacuterios usuais de racionalidade (instrumental inferencial e consensual) Ao

fim concluiacutemos que a construccedilatildeo de uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa tambeacutem

acessar um saber psicoloacutegico sob pena de ser um artefato teoacuterico artificial sobre como

os seres humanos decidem e argumentam

O Capiacutetulo III foi dividido em trecircs partes a primeira se destinou a evidenciar a

importacircncia das emoccedilotildees para o direito a segunda buscou aplicar os criteacuterios de anaacutelise

descritiva do discurso emotivo identificados no Capiacutetulo II a terceira procurou fazer

consideraccedilotildees criacuteticas ao uso das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Na primeira parte concluiacutemos que eacute impossiacutevel compreender a estruturaccedilatildeo do

direito sem estudar as emoccedilotildees pois estas satildeo causas para a elaboraccedilatildeo de leis para

ingressar com uma demanda em juiacutezo e para solucionar uma controveacutersia juriacutedica A

apatheia estoica eacute um modelo inadequado para explicar o direito porque o nosso

143

ordenamento juriacutedico valoriza e protege aqueles bens que os estoicos denominariam de

indiferentes Ademais as nossas emoccedilotildees satildeo respostas aos mais diversos tipos de

danos que a nossa vulneraacutevel constituiccedilatildeo fiacutesico-psiacutequica pode apresentar sendo que o

direito leva isso em consideraccedilatildeo quando socialmente relevante

Ao analisar descritivamente trecircs julgados do STF (ldquoo caso dos pneumaacuteticosrdquo

ldquoo caso dos fetos anenceacutefalosrdquo e o ldquocaso dos campeotildees da Copa do Mundo de 1958 de

1962 e de 1970rdquo) observamos o quanto as emoccedilotildees (medo raiva indignaccedilatildeo gratidatildeo

orgulho compaixatildeo) foram determinantes para a soluccedilatildeo do problema juriacutedico

Concluiacutemos que conhecer a estrutura cognitiva de tais emoccedilotildees eacute fundamental para

realizar uma boa descriccedilatildeo dos suportes emotivos do julgamento

Na terceira parte defendemos que uma retoacuterica estoica seria um modelo de

discurso inalcanccedilaacutevel para o direito seja pela impossibilidade de esvaziar o conteuacutedo

emotivo da linguagem seja pela forma como o direito eacute estruturado

Antes de realizar consideraccedilotildees criacuteticas aos julgados expusemos que no atual

estado de arte da teoria da argumentaccedilatildeo natildeo identificamos um meacutetodo para avaliaccedilatildeo

de argumentos emotivos Assim sem pretender efetuar uma avaliaccedilatildeo rigorosa

procuramos a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum identificar alguns criteacuterios

miacutenimos que pudessem ser uacuteteis a um trabalho criacutetico

Apoacutes isso expusemos que o modelo do espectador imparcial de Adam Smith

seria um oportuno ponto de reflexatildeo para compreendermos a eacutetica das emoccedilotildees na

decisatildeo juriacutedica porque as emoccedilotildees do julgador necessitam ser as de um espectador e

para tanto ele deve ter a capacidade de criticar as proacuteprias inclinaccedilotildees emotivas e as de

outros grupos sociais a fim de atingir um estado de imparcialidade e manter um

ambiente de normatividade comum na sociedade

Todavia ainda que seja um espectador imparcial compreendemos que o

julgador natildeo eacute apaacutetico de modo que quando juridicamente relevantes e fundadas em

evidecircncias as emoccedilotildees podem ser argumentadas e integradas dentro do contexto de um

discurso juriacutedico e em referecircncia a um conjunto de normas juriacutedicas

Ao final deste trabalho podemos dizer que natildeo haacute motivos para que as emoccedilotildees

natildeo sejam incorporadas numa Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e mais amplamente no

estudo do direito porque natildeo eacute possiacutevel falar de racionalidade sem falar de emoccedilotildees e

do seu respectivo controle Se existe um receio de que elas sejam elementos irracionais

e que corrompam o discurso juriacutedico acreditamos que tal avaliaccedilatildeo natildeo eacute condizente

com a importacircncia que as emoccedilotildees possuem na estruturaccedilatildeo da psique humana com a

144

forma pela qual o direito jaacute eacute construiacutedo e com a maneira que decidimos e

argumentamos na praacutetica

De outra parte este trabalho procurou tambeacutem evidenciar em que medida as

emoccedilotildees podem ser mal utilizadas a fim de manter uma postura criacutetica em relaccedilatildeo ao

tema Podem-se censurar as emoccedilotildees no direito de vaacuterias formas a partir dos seguintes

criteacuterios a sua relevacircncia juriacutedica a ausecircncia de evidecircncias a sua parcialidade o seu

peso na argumentaccedilatildeo equiacutevocos de avaliaccedilatildeo na estrutura cognitiva da emoccedilatildeo a

emoccedilatildeo em si mesma Tais criteacuterios diante do atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo

precisam ser desenvolvidos teoricamente a fim de resultar numa metodologia segura de

avaliaccedilatildeo

Assim pensamos que o desenvolvimento de uma pedagogia do uso das

emoccedilotildees que recupere o vocabulaacuterio emotivo atualmente perdido na argumentaccedilatildeo

juriacutedica e no direito eacute muito mais interessante do que o seu atual estado de silecircncio

145

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Page 5: RETÓRICA, TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO E PATHOS: O PROBLEMA … · 2018. 9. 4. · Marcelo Fernandes Pires dos Santos Retórica, Teoria da Argumentação e Pathos: o problema das emoções

AGRADECIMENTOS

Agrave Prof Dra Claudia Rosane Roesler pela orientaccedilatildeo pelos ensinamentos

acerca do direito e da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica pelas observaccedilotildees precisas

durante a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo pela paciecircncia e pela convivecircncia acadecircmica nestes

dois uacuteltimos anos Serei sempre grato

Ao Prof Dr Guy Hamelin do Departamento de Filosofia da Universidade de

Brasiacutelia - UnB pelas inspiradoras aulas sobre Aristoacuteteles e os estoicos

Ao Prof Dr Marcelo Neves pelo seu trabalho teoacuterico criacutetico em relaccedilatildeo agrave

praacutetica juriacutedica brasileira e pelas instigantes aulas

Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisiccedilatildeo do

conhecimento Marcus Faro de Castro Juliano Zaiden Benvindo Argemiro Cardoso

Martins

Agrave Faculdade de Direito da UnB cujo processo seletivo me possibilitou realizar

esta dissertaccedilatildeo

Agrave Faculdade de Direito do Recife instituiccedilatildeo onde realizei a minha graduaccedilatildeo

A todos os amigos da Coordenaccedilatildeo-Geral Juriacutedica da Procuradoria-Geral da

Fazenda Nacional em especial Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa Vanessa

Silva de Almeida Ricardo Soriano de Alencar Daniel Neiva Freire Alexandre Budib

Henrique Crisoacutestomo de Macedo Aline Nascimento Cunha Mariana Massumi Maria

Emanuelle Pinheiro

Agrave minha famiacutelia pelo constante incentivo e apoio

Liacutengua aonde vais Salvar ou destruir a cidade

(proveacuterbio antigo)

ldquoPois o comeccedilo eacute tambeacutem um deus que enquanto permanece entre os homens tudo salvardquo

(Platatildeo Leis 775e)

7

Resumo

O projeto de racionalidade construiacutedo pela atual Teoria da Argumentaccedilatildeo

Juriacutedica eacute marcado fundamentalmente por um forte silecircncio a respeito das emoccedilotildees

um tema que passou a ser considerado nos tempos atuais um indiferente teoacuterico

embora tradicionalmente tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da eacutetica desde a

Antiguidade Essa moderna lacuna teoacuterica tem por consequecircncia a preocupante

incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar de avaliar e de

refletir a presenccedila das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e mais amplamente na praacutetica

juriacutedica Este estudo objetiva compreender por que as emoccedilotildees saiacuteram de cena da Teoria

da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e tentar fornecer razotildees para que elas sejam novamente

estudadas Assim eacute preciso investigar se elas seriam compatiacuteveis com uma

argumentaccedilatildeo juriacutedica racional e mais amplamente com a explanaccedilatildeo do sistema

juriacutedico Para atingir tal objetivo este estudo parte da filosofia antiga mais

especificamente do pensamento de Aristoacuteteles e da escola estoica a fim de entender

como ambos integraram a temaacutetica das emoccedilotildees na sua eacutetica e na sua retoacuterica Em

seguida investiga-se em que contexto histoacuterico surge a Moderna Teoria da

Argumentaccedilatildeo considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraccedilotildees

seguintes Almeja-se igualmente pesquisar a compreensatildeo da psicologia de nossa

eacutepoca sobre as emoccedilotildees Ao fim objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoccedilotildees

na argumentaccedilatildeo juriacutedica possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e

capacidade criacutetica a fim de melhorar a qualidade do discurso juriacutedico

Palavras-chave emoccedilotildees ndash teoria da argumentaccedilatildeo juriacutedica ndash retoacuterica ndash

psicologia ndash linguiacutestica

8

Abstract

The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is

marked fundamentally by strong silent about emotions a subject that has been

considered nowadays a theoretical indifferent although traditionally has been linked to

the study of speech and ethics since ancient times This modern theoretical gap has the

effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify

evaluate and reflect the presence of emotions in argument and more broadly in legal

practice This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation

Theory and try to provide reasons for them to be studied again Thus it is necessary to

investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and

more broadly with the explanation of the legal system To achieve this goal it is

necessary to study ancient philosophy specifically the thought of Aristotle and the Stoic

school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his

ethics and his rhetoric Then we investigate in which historical context comes the

Modern Theory of Argumentation considering the thought of its founders and the

following generations It aims also search to understand the psychology of our time on

emotions In the end the objective is to identify the good and bad use of emotions in

legal reasoning enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in

order to improve the quality of legal discourse

Key-words emotions ndash theory of legal argumentation ndash rhetoric ndash psychology ndash

linguistic

9

Lista de abreviaturas e siglas

ADI ndash Accedilatildeo direta de inconstitucionalidade

ADPF ndash Arguiccedilatildeo de descumprimento de preceito fundamental

CF ndash Constituiccedilatildeo Federal

MTA ndash Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica

SVF ndash Stoicorum Veterum Fragmenta

STF ndash Supremo Tribunal Federal

TAJ ndash Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica

10

SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 11

1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E

ESTOICA 14

11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees 14

12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos 19

13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica 30

14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica 40

2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A

INTERDISCIPLINARIDADE 57

21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo 57

22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as emoccedilotildees no

discurso 62

23 As emoccedilotildees falaciosas 68

24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso 74

25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees 84

26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees 92

3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO 100

31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito 100

32 Anaacutelise 109

321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo 109

322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo 115

323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo 120

33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica 125

4 CONCLUSAtildeO 139

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 145

11

INTRODUCcedilAtildeO

O atual interesse pela estrutura argumentativa das decisotildees judiciais eacute fruto da

crescente valorizaccedilatildeo no campo do direito da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica ndash TAJ

que nasceu na metade do seacuteculo XX pelos trabalhos de Theodor Viehweg Stephen

Toulmin Chaiumlm Perelman e Olbrechts-Tyteca

Pode-se dizer que o atual reconhecimento do caraacuteter argumentativo do direito

guarda relaccedilatildeo direta com a substantiva importacircncia adquirida pela TAJ Neste sentido

MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito eacute o fato de

ele ser uma disciplina argumentativa pois para tentar encontrar uma soluccedilatildeo juriacutedica

aos nossos problemas da vida comum precisamos primeiramente construir

proposiccedilotildees em consonacircncia com o sistema juriacutedico1

Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a

argumentaccedilatildeo das decisotildees judiciais com suporte no instrumental teoacuterico fornecido pela

TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padratildeo de racionalidade no

discurso juriacutedico Assim via de regra analisam-se em primeiro lugar os argumentos e

apoacutes procura-se avaliar se as decisotildees judiciais estatildeo adequadamente fundamentadas

investigam-se a coerecircncia interna da argumentaccedilatildeo a coerecircncia das decisotildees judiciais

dentro de um repertoacuterio de julgados assim como a capacidade de universalizaccedilatildeo das

premissas ao fim busca-se atingir um estado oacutetimo de consistecircncia argumentativa2

Todavia nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa natildeo ouvimos

falar a respeito das emoccedilotildees Nenhum dos atuais teoacutericos da TAJ disserta a respeito das

emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica teriam elas perdido definitivamente importacircncia na

vida do direito Eacute possiacutevel realizar uma anaacutelise e uma criacutetica do uso das emoccedilotildees numa

decisatildeo judicial As emoccedilotildees satildeo incompatiacuteveis com a TAJ e mais amplamente com a

racionalidade do direito As emoccedilotildees corromperiam o discurso juriacutedico e o ser humano

Este trabalho portanto insere-se na constataccedilatildeo de uma preocupante lacuna

teoacuterica da TAJ que consiste na ausecircncia de tematizaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees Assim com

o objetivo de tentar construir uma resposta que faccedila sentido para compreender por que

tal mateacuteria natildeo eacute mais teorizada e ao mesmo tempo por que ela deveria ser

(novamente) teorizada precisaremos realizar um especiacutefico percurso nos Capiacutetulos I e II

desta dissertaccedilatildeo

1 MACCORMICK Neil Rhetoric and the rule of law New York Oxford University Press 2010 p 14

2 ATIENZA Manuel Curso de argumentacioacuten juriacutedica Madrid Editorial Trotta 2013 p 553-557

12

No Capiacutetulo I propomos fazer um retorno agrave Antiguidade a fim de entender

primeiramente em que contexto histoacuterico surge e se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto a

discussatildeo das emoccedilotildees

Em seguida tendo em vista a sua importacircncia histoacuterica para a TAJ iremos

analisar o tema sob comento na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de examinar como o

Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto especialmente tentando identificar (i) a

importacircncia das emoccedilotildees na referida obra aristoteacutelica (ii) a concepccedilatildeo de emoccedilatildeo

utilizada (iii) as influecircncias filosoacuteficas de tal concepccedilatildeo (iv) a maneira pela qual as

emoccedilotildees devem ser utilizadas no discurso e (v) os fundamentos psicoloacutegicos do tema

Apoacutes iremos investigar nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco em que medida

as emoccedilotildees satildeo importantes para a vida moral do indiviacuteduo tentando entender se para

Aristoacuteteles eacute suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito

a aspectos estritamente racionais Nesse toacutepico iremos analisar como o Estagirita divide

a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua eacutetica das virtudes Ao fim

tentaremos identificar se o tratamento teoacuterico das emoccedilotildees na Eacutetica a Nicocircmaco eacute

compatiacutevel com aquele presente na retoacuterica

Tendo realizada a investigaccedilatildeo do tema na retoacuterica e na eacutetica aristoteacutelica iremos

realizar um contraponto teoacuterico com a filosofia estoica que advogava que as emoccedilotildees

deveriam ser eliminadas da vida comum Assim considerando a ausecircncia de

tematizaccedilatildeo contemporacircnea das emoccedilotildees tanto na TAJ quanto no direito tentar entender

por que aquela escola filosoacutefica firmou tal posicionamento contribui para a reflexatildeo

acerca de nossa atual compreensatildeo da mateacuteria Desse modo iremos analisar a eacutetica

estoica a fim de apreender a sua noccedilatildeo de virtude e de viacutecio os seus fundamentos

psicoloacutegicos e a construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio objetivando perceber de que

modo todo esse pensamento influenciou a retoacuterica estoica

Ao fim do Capiacutetulo I procuraremos realizar uma comparaccedilatildeo entre o

pensamento aristoteacutelico e o estoico tentando evidenciar o grau de importacircncia que

ambos conferiam agraves emoccedilotildees Ademais registre-se que o Capiacutetulo I forneceraacute o

fundamento filosoacutefico em relaccedilatildeo ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste

trabalho a fim de proporcionar reflexatildeo comparaccedilatildeo e criacutetica

O Capiacutetulo II teraacute um vieacutes mais praacutetico e examinaraacute especificamente a Moderna

Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash MTA com o objetivo de (i) compreender em que contexto

histoacuterico surge tal saber teoacuterico e qual tipo de discurso era predominante agrave sua eacutepoca

(ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoccedilotildees (iii) qual

13

disciplina especiacutefica foi responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees no acircmbito da MTA

(iv) quais as reaccedilotildees teoacutericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as

emoccedilotildees no acircmbito da MTA (v) o que a psicologia do nosso tempo mais

especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo (psicologia cognitiva) poderia nos informar

acerca da racionalidade das emoccedilotildees Destaque-se que este Capiacutetulo teraacute por objetivo

tambeacutem localizar criteacuterios para anaacutelise e avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso

juriacutedico

No Capiacutetulo III jaacute com a compreensatildeo teoacuterica possibilitada pelos Capiacutetulos I e

II iremos abordar no primeiro toacutepico a importacircncia das emoccedilotildees para o direito

tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de

nossa praacutetica juriacutedica Ademais tentaremos responder se o modelo estoico analisado no

Capiacutetulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturaccedilatildeo do ordenamento juriacutedico

No segundo toacutepico iremos examinar com suporte no instrumental colhido no Capiacutetulo

II trecircs julgados do Supremo Tribunal Federal no afatilde de explicitar a presenccedila de

argumentos emotivos O terceiro toacutepico estaraacute reservado a tecer consideraccedilotildees criacuteticas

aos julgados bem como tentar fornecer uma respostar teoacuterica acerca da eacutetica das

emoccedilotildees na decisatildeo e na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Ao fim deste trabalho aleacutem de responder os problemas acima elencados

procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relaccedilatildeo entre

as emoccedilotildees e o discurso juriacutedico e mais amplamente o direito a fim de possibilitar a

melhoria da qualidade do discurso juriacutedico brasileiro e o surgimento de um debate

qualificado com a manutenccedilatildeo de uma perspectiva criacutetica sobre o tema das emoccedilotildees

14

1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E

ESTOICA

11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees

O primeiro problema que se impotildee quando pretendemos falar a respeito da

origem da retoacuterica diz respeito ao proacuteprio significado da palavra ldquoretoacutericardquo Ou seja de

qual ldquoretoacutericardquo falamos quando investigamos sua origem A palavra nos dias de hoje

possui muacuteltiplos significados sendo sem duacutevida o mais saliente aquele em que

preponderam afetos negativos Assim retoacuterica eacute sobretudo usado para designar um

discurso vazio (sem conteuacutedo) mentiroso falacioso incoerente apenas ornamental isto

eacute uma mera fachada linguiacutestica para uma verdadeira armadilha de intenccedilotildees

Essa carga semacircntica pejorativa tambeacutem eacute denunciada por Knudsen que lista

trecircs atuais usos da expressatildeo 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e ao

mesmo tempo superficial que mascara um conteuacutedo vazio e enganoso normalmente

atribuiacutedo a um poliacutetico ou a um conferencista 2) um conjunto de figuras de linguagem

encontrado na literatura cuja aplicabilidade se limita ao espaccedilo de sala-de-aula 3) uma

significaccedilatildeo mais ampla para se referir a discursos especiacuteficos em relaccedilatildeo a um tema ou

a um autor ldquoa retoacuterica do oacutediordquo ldquoa retoacuterica do Supremo Tribunal Federalrdquo ldquoa retoacuterica

do Presidente Obamardquo3

Assim a fim de cumprir nosso intento um bom ponto de partida seria tentar

localizar a primeira vez em que a palavra retoacuterica foi utilizada num texto escrito

Segundo Timmerman-Schiappa e considerando os fragmentos textuais que nos foram

legados atraveacutes do tempo o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela primeira vez em Goacutergias de

Platatildeo no iniacutecio do seacuteculo IV aC sendo provaacutevel que o proacuteprio Platatildeo tenha

inventando o termo pois eacute atribuiacuteda ao autor da Repuacuteblica a criaccedilatildeo de uma seacuterie de

palavras com terminaccedilatildeo -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode

significar pessoa com uma especiacutefica habilidade)4

Fazendo referecircncia a uma pesquisa do vocabulaacuterio grego realizada por Pierre

Chantraine em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminaccedilatildeo -ikos

Schiappa lembra que mais de 250 natildeo foram localizadas antes de Platatildeo ldquoUma pesquisa

3 KNUDSEN Rachel Homeric speech and the origin of rhetoric Baltimore John Hopkins University

Press 2014 p 1 4 TIMMERMAN David M SCHIAPPA Edward Classical greek rhetorical theory and the

disciplining of discourse New York Cambridge University Press 2010 p 9

15

feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae

sugere que as palavras gregas para eriacutestica (eristikecirc) dialeacutetica (dialektikecirc) e antilogikecirc

assim como retoacuterica originaram-se nas obras de Platatildeordquo5

Desse modo e partindo das referidas fontes o termo rhecirctorikecirc foi primeiramente

utilizado por Platatildeo para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em

puacuteblico para fins de convencimento especialmente perante assembleias tribunais e

demais ocasiotildees especiais No Fedro por exemplo Soacutecrates destaca que a retoacuterica eacute

ldquo[] uma arte de conduzir as almas atraveacutes das palavras mediante o discurso []rdquo6 E

posteriormente em Aristoacuteteles ldquo[] a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada

caso com o fim de persuadirrdquo7 Assim a partir destes dois filoacutesofos a retoacuterica surge com

o status de um saber munido com vocabulaacuterio proacuteprio para anaacutelise do discurso

Eacute com Platatildeo tambeacutem que ocorre a conhecida cisatildeo entre retoacuterica e filosofia A

palavra rhecirctorikecirc jaacute no seu nascedouro surge para fins bem precisos isto eacute para

demarcar o campo de uma teacutecnica (techne) moralmente questionaacutevel que lida com a

opiniatildeo (doxa) e que leva atraveacutes da palavra as pessoas ao engano em contraste com a

refinada atividade do filoacutesofo cuja base de reflexatildeo estaacute fundada sob o domiacutenio da

verdade (aletheia) Em Goacutergias e no Fedro satildeo oferecidos vaacuterios exemplos da figura do

retoacuterico como algueacutem que obteacutem sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os

outros

Antes de rhecirctorikecirc o termo mais abrangente utilizado para se referir agrave atividade

do discurso nos textos do seacuteculo V era logos que possui distintos significados na

tradiccedilatildeo grega ldquoeacute qualquer coisa que eacute lsquoditarsquo mas isso pode ser uma palavra uma frase

uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteirordquo8 Logos estaacute assim

relacionado com o conteuacutedo e natildeo com aspectos estiliacutesticos ou esteacuteticos comporta a

ideia de razatildeo argumento ordem O ensino de artes verbais no seacuteculo V aC

associado ao logos portanto natildeo diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca

5 ldquoA computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the

Greek words for eristic (eristikecirc) dialectic (dialektikecirc) and antilogic (antilogikecirc) like rhetoric originate

in Platorsquos worksrdquo (trad livre) Id ibid p 9-10 No sentido de que o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela

primeira vez na obra platocircnica cf COLE Thomas The origins of rhetoric in ancient greek Baltimore

The John Hopkins University Press 1991 6 PLATAtildeO Fedro trad Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees editores 2000 p 90

7 ARISTOacuteTELES Retoacuterica trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 12 8 ldquoit is anything that is lsquosaidrsquo but that can be a word a sentence part of a speech or of a written work or a

whole speechrdquo (trad livre) KENNEDY George A A New History of classical rhetoric New Jersey

Princeton University Press 1994 p 11

16

pela verdade conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distinccedilatildeo platocircnica

entre os fins da retoacuterica e os fins da filosofia9

Assim enquanto a retoacuterica emerge firmemente relacionada com significados

pejorativos logos sempre desfrutou de uma boa reputaccedilatildeo Os sofistas exultavam o

poder que ele possuiacutea segundo Goacutergias logos podia espantar o medo e a tristeza

incutir a compaixatildeo e o prazer10

Isoacutecrates reforccedilava o seu poder e prestiacutegio na vida

puacuteblica ldquoaqueles que satildeo haacutebeis no discurso natildeo satildeo apenas homens de poder em suas

proacuteprias cidades mas satildeo tambeacutem tidos em grande estima em outros estadosrdquo11

Mas se eacute possiacutevel numa anaacutelise textual atribuir a cunhagem da palavra retoacuterica

a Platatildeo eacute possiacutevel inferir de outra parte que a referida palavra grega soacute pode surgir

quando a atividade a que se refere jaacute estava bem consolidada na sociedade Assim a

origem que buscamos passa a ser natildeo mais da palavra mas de eventos que

supostamente deram o iniacutecio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade

Foi na Siacutecilia por volta de 426 aC que ocorreu o evento que impulsionou a

fundaccedilatildeo da retoacuterica apoacutes a expulsatildeo de tiranos que dominavam politicamente a

mencionada regiatildeo as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e

tribunais a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime

ditatorial Os sicilianos Corax e Tiacutesias cientes desta necessidade foram os primeiros a

organizar isso num meacutetodo criando preceitos teoacutericos que almejavam o sucesso da fala

em puacuteblico por meio da divisatildeo do discurso do uso de argumentos de probabilidades e

de outras mateacuterias12

A novidade teoacuterica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Goacutergias quanto

pelo proacuteprio Tiacutesias que parece ter ensinado Liacutesias e Isoacutecrates Por sua vez o manual

(ou manuais) de Corax e Tiacutesias era conhecido por Aristoacuteteles que os resumiu em seu

perdido Synagoge Technon (Coleccedilatildeo de Artes) que a partir de entatildeo passou a ser o

referencial teoacuterico sobre o assunto13

Ciacutecero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa

anaacutelise das regras coletadas nos manuais antigos de retoacuterica incluindo o de Tiacutesias

9 TIMMERMAN D M op cit p 10-11

10 KENNEDY G Op cit p 25

11 ldquothose who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in

honour in other statesrdquo(48-51) (trad livre) Cf ISOCRATES Panegyricus New York Harvard

Univesity Press vol 1 trad George Norlin 1928 p 149 12

CICERO Brutus trad J L Hendrickson CambridgeLondon Harvard University Press 46 1962 p

49 13

GAGARIN Michael Background and origins oratory and rhetoric before the sophists in

WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p

30

17

tendo superado os autores originais em clareza brevidade e estilo motivo pelo qual

apenas os escritos aristoteacutelicos passaram a ser consultados14

Todavia essa tradicional explanaccedilatildeo sobre os primeiros organizadores da arte

retoacuterica tem sido recentemente objeto de revisatildeo em virtude da inconsistecircncia das

fontes histoacutericas Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para

Tiacutesias uma vez que alguns escritos apenas fazem referecircncia a este uacuteltimo ou se Corax

realmente existiu era preocupado com argumentos de probabilidade15

Essa polecircmica a respeito da real identidade dos autores poreacutem natildeo eacute oacutebice para

assinalar o que se procura aqui dizer a partir de um determinado momento o discurso

eficiente isto eacute a fala articulada que almeja persuasatildeo passou a ser extremamente

valorizada na cultura antiga Se pudermos conjecturar que ao reivindicar a reaquisiccedilatildeo

da propriedade perdida apoacutes a expulsatildeo dos tiranos na Siciacutelia uma pessoa poderia ter

melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do conteuacutedo do discurso podemos

entender o quatildeo dramaacutetica era a necessidade de aperfeiccediloamento desta atividade

Assim a expulsatildeo dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela

restauraccedilatildeo de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a

organizaccedilatildeo teoacuterica de uma atividade que posteriormente Platatildeo iraacute designar de

retoacuterica Mas ainda assim natildeo podemos relevar que no ambiente grego outros fatores

jaacute demarcavam a forte presenccedila do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade

Contra a tradicional tese de que a retoacuterica surgiu no seacuteculo V aC com Corax e

Tiacutesias ou de que a retoacuterica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de

Platatildeo e Aristoacuteteles no seacuteculo IV aC por meio de um vocabulaacuterio especiacutefico

governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas Knudsen advoga a ideia

de que o nascedouro da retoacuterica se localiza na obra de Homero

O seu posicionamento no entanto natildeo consiste na defesa de que Homero seria

uma inspiraccedilatildeo para a retoacuterica ou um exemplo da existecircncia na eacutepoca de uma forte

cultura de eloquecircncia mas de que o narrador homeacuterico jaacute apresenta o discurso como

ldquo[] uma habilidade teacutecnica que deve ser ensinada e aprendida e que varia de acordo

com o orador a situaccedilatildeo e o auditoacuteriordquo16

Assim os personagens de Homero na Iliacuteada

14

CICERO On Invention trad H M Hubbel CambridgeMassachusetts Harvard University Press

1949 (II 6) p 171 15

COLE Thomas Who was corax In Illinois classical studies vol 16 1991 p 65-84 16

ldquo[hellip] a technical skill one that must be taught and learned and one that varies according to speaker

situation and audiencerdquo KNUDSEN R Op cit p 4

18

apresentam a retoacuterica na praacutetica enquanto Aristoacuteteles posteriormente apresenta a

retoacuterica em teoria

No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero no seacuteculo II dC o pseudo-

Plutarco teria feito o registro mais antigo a respeito do viacutenculo da obra de Homero com

a retoacuterica

Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso

poliacutetico eacute uma funccedilatildeo da arte retoacuterica pois esta eacute o poder de falar de

maneira persuasiva e quem mais senatildeo Homero estabeleceu sua

proeminecircncia nisso Ele ultrapassou todos os outros em

grandiloquecircncia e seu pensamento dispotildee do mesmo poder que sua

dicccedilatildeo17

Por sua vez no seguinte trecho da Iliacuteada pode-se observar que as caracteriacutesticas

do discurso de Odisseu e de Menelau satildeo finamente analisadas pelo narrador

demonstrando que a fluecircncia a clareza a concisatildeo a prolixidade a objetividade a

gestualidade satildeo fatores jaacute claramente distinguiacuteveis na fala e na figura do orador

Quando urdiam discursos e expunham ideias

Menelau era fluente e claro mas conciso

natildeo sendo um homem multipalavroso nem

dispersivo e tambeacutem por ser ele o mais moccedilo

Quando Odisseu poreacutem multiardiloso punha-se

de peacute para falar fixava o olhar no chatildeo

mantendo o cetro imoacutevel (nem para traacutes nem

para diante o inclinava) parecia um ruacutestico

algueacutem desatinado ou fraco de cabeccedila

Mas quando a voz do peito emitia poderosa

palavras como copos-de-neve no inverno

ningueacutem nenhum mortal o igualaria18

Knudsen todavia vai aleacutem e se dedica a analisar os discursos diretos da Iliacuteada a

fim de demonstrar que todos os recursos retoacutericos (entimema paradigma diathesis

toacutepicos ethos etc) identificados por Aristoacuteteles jaacute estavam presentes na estrutura

literaacuteria de Homero19

Ao examinar outras obras literaacuterias do mundo antigo tais como a

Epopeacuteia de Gilgamesh o Shujing o Maabaacuterata demonstra que o emprego de recursos

17

ldquoPolitical discourse is a function of the craft (τέχνη) of rhetoric which Homer seems to have been the fi

rst to understand for if rhetoric is the power to speak persuasively who more than Homer has established

his preeminence in this He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same

power as his dictionrdquo (trad livre) PSEUDO-PLUTARCO Essays 161 apud KNUDSEN Id ibid p 22 18

HOMERO Iliacuteada trad Haroldo de Campos III vol 1 Satildeo Paulo Benviraacute 2002 p 212-223 19

ldquoMy overarching contention is that the Iliad through the direct speeches of its characters demonstrates

a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be

categorized as ldquorhetoricrdquo in the fourth century in particular these techniques closely match the system

explicated in Aristotlersquos Rhetoricrdquo KNUDSEN R Op cit p 84

19

retoacutericos nestas uacuteltimas eacute extremamente pobre se comparado agrave Iliacuteada Assim destaca

que natildeo se pode explicar o sofisticado sistema retoacuterico encontrado em Homero sob a

justificativa da existecircncia de um modelo retoacuterico universal Vale dizer a tese segundo a

qual haacute um padratildeo de convencimento supostamente presente em todos os discursos e

que seriam inerentes agrave natureza humana natildeo consegue ser extensiacutevel para a realidade

literaacuteria de outras obras antigas20

Assim esse hiperdesenvolvimento de um padratildeo retoacuterico nos discursos da Iliacuteada

pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favoraacutevel agrave cultura da

competiccedilatildeo do debate e da liberdade como ocorria de forma bastante original na

Greacutecia e natildeo encontrava correspondente em culturas orientais ldquodesde as primeiras

poesias gregas ateacute a oratoacuteria juriacutedica e poliacutetica da era claacutessica tardia [] a Greacutecia antiga

funcionava como uma lsquocultura de debatersquo em que o poder era conquistado e negociado

atraveacutes do discurso persuasivordquo 21

Segue-se por isso que eacute conveniente falar natildeo da ldquoorigemrdquo mas das ldquoorigensrdquo

da retoacuterica Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do

debate natildeo eacute de se impressionar que a retoacuterica tenha sido criada e amadurecida neste

ambiente havendo para ela portanto vaacuterios iniacutecios possiacuteveis vale dizer um iniacutecio na

filosofia um iniacutecio na poesia eacutepica um iniacutecio enquanto evento histoacuterico

No entanto para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quatildeo importante

era nas suas origens a necessidade de dominar na vida puacuteblica o discurso eficiente Eacute

por essa razatildeo que a anaacutelise das emoccedilotildees (pathos) emerge na obra aristoteacutelica jaacute que

apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e por isso retoacuterico a

compreensatildeo sobre as emoccedilotildees se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto

12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos

Preliminarmente e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar

mais de perto do tema central deste trabalho eacute oportuno registrar que a origem do termo

grego pathos sob cujo signo Aristoacuteteles trata o tema das emoccedilotildees se encontra no verbo

paschein que significa ldquosofrerrdquo e nessa medida explicita o caraacuteter passivo do

20

KNUDSEN R Op cit p 101 21

ldquoFrom the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and

much later the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic) ancient Greece functioned

as a ldquodebate culturerdquo one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive

speechrdquo (trad livre) KNUDSEN R Id ibid p 101

20

fenocircmeno emotivo22

Nos trechos a seguir transcritos observa-se que o Estagirita utiliza

o termo no sentido exposto ou seja em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees o sujeito estaacute em situaccedilatildeo

de passividade isto eacute ele eacute afetado movido por elas

Entatildeo um homem que enrubesce em virtude de vergonha natildeo eacute

chamado de enrubescido nem aquele que empalidece diante do medo

de paacutelido ao contraacuterio diz-se que ele foi de algum modo afetado

Portanto tais coisas satildeo chamadas de afecccedilotildees [pathecirc] e natildeo

qualidades23

Acrescente-se a estas consideraccedilotildees que dizemos que somos afetados

em funccedilatildeo das emoccedilotildees poreacutem natildeo dizemos que somos afetados em

funccedilatildeo das virtudes e dos viacutecios mas que nos dispomos de um certo

modo24

Saliente-se que aleacutem de ldquoemoccedilatildeordquo pathos tradicionalmente tambeacutem eacute traduzido

por ldquoafecccedilatildeordquo ou ldquoafeiccedilatildeordquo assim como tambeacutem por ldquopaixatildeordquo que vem do latim passio

sendo que nestas duas uacuteltimas traduccedilotildees (ldquoafecccedilatildeordquo e ldquopaixatildeordquo) diferentemente de

ldquoemoccedilatildeordquo persiste de certo modo aquele sentido de passividade25

De outra parte eacute interessante tambeacutem acrescentar que a temaacutetica das emoccedilotildees eacute

algo que perpassa toda a obra aristoteacutelica pois se encontra presente na Eacutetica na

Retoacuterica na Psicologia na Filosofia da Natureza na Teoria Poeacutetica Poreacutem a despeito

disso Aristoacuteteles natildeo apresenta nenhum conceito de emoccedilatildeo preferindo algumas

vezes introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos Por isso esclarece Rapp

natildeo se pode falar de boa consciecircncia de uma ldquoTeoria das Emoccedilotildees de Aristoacutetelesrdquo mas

de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26

Assim tendo realizado brevemente tais anotaccedilotildees preliminares conveacutem registrar

que eacute sobre o que convence em cada caso no discurso de que se ocupa a retoacuterica

Aristoacuteteles logo na abertura de sua obra afirma que todas as pessoas estatildeo submetidas

agraves regras da retoacuterica pois eacute impossiacutevel em vida natildeo passar pela experiecircncia de ter que

22

RAPP Cristof Aristoteles Bausteine fuumlr eine Theorie der Emotionen In LANDWEE Hilge RENZ

Ursula (hrsg) Klassische emotionstheorien von Platon bis Wittgenstein BerlinNew York Walter de

Gruyter 2008 p 48 23

ldquoThus a man who reddens through shame is not called ruddy nor one who pales in fright pallid rather

he is said to have been affected somehow Hence such things are called affections but not qualitiesrdquo (trad

livre) Cf ARISTOTELES Categories In BARNES J (ed) The complete works of Aristotle trad J

L Akrill (9b20-9b32) Princeton Princeton University Press 1991 p 17 24

ARISTOTELES Eacutethica nicomachea I13-III8 tratado da virtude moral trad Marco Zingano Satildeo

Paulo Odysseus 2008 p 48-49 (11065-7) 25

RAPP C Op cit p 48 Cf TIELEMAN Teun Chrysippusrsquo on affection reconstruction and

interpretation Leiden Brill 2003 p 15 26

RAPP C Op cit p 47 Adverte-se o leitor previamente que natildeo iremos utilizar neste trabalho um

conceito normativo de emoccedilatildeo Embora ao longo da obra algumas caracteriacutesticas das emoccedilotildees sejam

evidenciadas natildeo haveraacute o fechamento de um conceito

21

defender ou atacar argumentos Poreacutem enquanto alguns fazem esta atividade de forma

irrefletida ou entatildeo de modo mais consciente por meio de uma praacutetica conquistada pelo

haacutebito eacute possiacutevel fazecirc-la estruturadamente atraveacutes de um meacutetodo que analisaria por que

algumas pessoas obteacutem tanto sucesso ao discursarem Desse modo para Aristoacuteteles a

retoacuterica eacute uma arte (techne) ou seja ldquo[] um corpo de regras e princiacutepios gerais que

podem ser conhecidos pela razatildeordquo27

contrariando assim Platatildeo para quem a retoacuterica se

reduziria a uma mera habilidade que natildeo se submete agrave razatildeo nem consegue explicar as

causas e os motivos do que faz

Sobre a parte que especificamente eacute objeto de nosso interesse isto eacute a

explanaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees conveacutem examinar os Livros I e II da Retoacuterica

Primeiramente urge compreender como o assunto eacute introduzido no Capiacutetulo I do Livro

I e depois como ele eacute desenvolvido tanto no Capiacutetulo II por intermeacutedio da doutrina

dos meios de convencimento quanto no Livro II no detalhamento das emoccedilotildees em

espeacutecie O objetivo de nossa exposiccedilatildeo consiste em traccedilar um panorama geral das

emoccedilotildees no campo da retoacuterica

Com efeito Aristoacuteteles introduz o tema no Capiacutetulo I do Livro I por meio de

uma forte criacutetica aos tratados de retoacuterica de sua eacutepoca que se preocupavam mais em

instigar os acircnimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto

de controveacutersia Ele nomina essas distraccedilotildees do discurso como questotildees exteriores ou

natildeo essenciais ao assunto pois sobre a verdadeira substacircncia da persuasatildeo retoacuterica que

satildeo os entimemas tais manuais nada tratam

O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados que

ele natildeo menciona fossem aplicadas em todas as unidades poliacuteticas aqueles autores de

retoacuterica praticamente nada teriam a dizer Assim para Aristoacuteteles estaria

terminantemente proibido ldquoperverterrdquo o juiz atraveacutes da ira do oacutedio da compaixatildeo e de

outros estados da alma Enfatize-se que as traduccedilotildees aqui consultadas utilizam sempre a

palavra ldquoperverterrdquo que daacute ideia de corromper a cogniccedilatildeo do julgador porque a partir

do momento em que o julgador estiver possuiacutedo por determinado estado mental

(compaixatildeo ira etc) ele estaraacute impossibilitado de conhecer de modo isento o fato

Jaacute no Capiacutetulo II em prosseguimento Aristoacuteteles relaciona as emoccedilotildees como

um dos meios de prova na seguinte classificaccedilatildeo

27

ldquo[hellip] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by

reasonrdquo(trad livre) GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric I a commentary New York

Fordham University Press 1980 p 4

22

Das pisteis produzidas atraveacutes do discurso existem trecircs espeacutecies

algumas residem no caraacuteter [ecircthos] do orador outras na forma em que

dispotildeem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de espiacuterito e

outras no discurso [logos] em si demostrando ou aparentando

demostrar algo28

Eacute apropriado notar que Aristoacuteteles natildeo menciona explicitamente as emoccedilotildees

neste trecho Desse modo parece bastante pertinente a observaccedilatildeo de Knudsen que

prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis porque

literalmente eacute o termo utilizado no texto por Aristoacuteteles Assim diathesis eacute uma

expressatildeo mais abrangente que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade agrave

psicologia do auditoacuterio e nesse sentido englobaria pathos29

No entanto a despeito da observaccedilatildeo a respeito da palavra diathesis feita por

Knudsen Aristoacuteteles logo em seguida explana que ldquo[] persuade-se pela disposiccedilatildeo

dos ouvintes quando estes satildeo levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso []rdquo30

parecendo-nos portanto mais interessante insistir nesse uacuteltimo termo (pathos) como

meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago que

englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicoloacutegica

Em seguida isto eacute apoacutes vincular a ideia de persuasatildeo pela disposiccedilatildeo dos

ouvintes com as emoccedilotildees Aristoacuteteles conclui no sentindo de que nosso juiacutezo varia de

acordo com o nosso estado mental Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza

pelo amor ou pelo oacutedio estaacute diretamente relacionado ao juiacutezo que iremos formular sobre

o assunto

Logo aqui conveacutem registrar certa surpresa ao observar que a despeito da criacutetica

inicial no Capiacutetulo I Aristoacuteteles inclui sem diferenccedila hieraacuterquica as emoccedilotildees ao lado

do ethos e do logos como meios de convencimento O espanto no entanto apenas

aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retoacuterica se destina a tratar

em peacute de igualdade as emoccedilotildees com os entimemas Sobre essa suposta contradiccedilatildeo

muito pode ser comentado

Tentando compreender a questatildeo Fortenbaugh reuacutene trecircs respostas jaacute oferecidas

para esse problema A primeira hipoacutetese entende que no Capiacutetulo I do Livro I

Aristoacuteteles defende um modelo de retoacuterica ideal em que apenas sejam utilizados

argumentos que tratem do assunto objeto de controveacutersia sendo que este modelo ideal eacute

deixado de lado no Capiacutetulo II quando se fala do discurso poliacutetico em que se faria

28

ARISTOacuteTELES Retoacuterica apud KNUDSEN R Op cit p 39 29

KNUDSEN R Id ibid p 39 30

ARISTOacuteTELES Retoacuterica Op cit 2012 p 13

23

necessaacuterio o uso de apelos emotivos31

Na segunda hipoacutetese Aristoacuteteles dirigiria o seu

criticismo aos contemporacircneos que utilizam as emoccedilotildees por meios natildeo-discursivos

(choros laacutegrimas rostos irocircnicos)32

A terceira resposta preferida por Fortenbaugh seria no sentido de uma evoluccedilatildeo

do pensamento aristoteacutelico Inicialmente Aristoacuteteles teria visto as emoccedilotildees de uma

forma negativa e incompatiacutevel com uma argumentaccedilatildeo baseada na razatildeo Poreacutem

durante o periacuteodo em que frequentou a Academia de Platatildeo sabe-se que a relaccedilatildeo entre

emoccedilatildeo e pensamento era objeto de estudo o que provavelmente o levou a ter uma

visatildeo mais favoraacutevel sobre as emoccedilotildees Assim se a tarefa do orador eacute convencer o

ouvinte e isso eacute feito por intermeacutedio de uma mudanccedila de pensamento entatildeo nada

haveria de errado em fazecirc-lo por meio do emprego de argumentos razoaacuteveis que

resultaria numa resposta emocional positiva dos destinataacuterios33

Levando isso em

consideraccedilatildeo eacute possiacutevel que Aristoacuteteles tenha escrito suas primeiras criacuteticas agraves emoccedilotildees

num tratado hoje em dia perdido e posteriormente ao desenvolver a doutrina dos trecircs

meios de convencimento transferiu tais observaccedilotildees ao atual manual sem realizar uma

completa adaptaccedilatildeo do tema34

De outra parte tambeacutem se cogita que os capiacutetulos desenvolvidos por Aristoacuteteles

fossem na verdade alternativos sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou

entatildeo que o Capiacutetulo I era natildeo apenas inconsistente com o que segue (Capiacutetulo II) mas

que ambos se destinavam a puacuteblicos diferentes Konstan assevera que essa duacutevida talvez

seja impossiacutevel de solucionar embora seja razoaacutevel afirmar que ao tratar das emoccedilotildees

no Livro II Aristoacuteteles jaacute pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35

Frede por sua vez demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as

emoccedilotildees tenham recebido tanta atenccedilatildeo na Retoacuterica de modo que formula as seguintes

indagaccedilotildees ldquoIsso eacute uma mera concessatildeo com os maus caminhos do mundo realrdquo ldquoSe o

inimigo o faz devo estar preparado para tambeacutem fazerrdquo36

Ela no entanto registra que

em nenhum momento Aristoacuteteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o

discurso limitando-se a fazer um registro teacutecnico das emoccedilotildees

31

FORTENBAUGH W W Aristotlersquos art of rhetoric In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to

greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 117 32

Id ibid p 117 33

Id ibid p 118 34

Id ibid p 118 35

KONSTAN David Rhetoric and emotion In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek

rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 414 36

FREDE Dorothea Mixed feelings in Aristotlersquos rhetoric In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays

on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 264

24

De fato embora exista uma ruptura de pensamento entre a criacutetica inicial agraves

emoccedilotildees e o seu posterior desenvolvimento nos capiacutetulos subsequentes acreditamos

que natildeo haacute motivo para largar pelo menos aquela censura direcionada ao uso das

emoccedilotildees com o objetivo de fugir das questotildees essenciais objeto de controveacutersia De

todo modo tal mudanccedila de entendimento permanece de difiacutecil explicaccedilatildeo e conforme

assevera Hall o novo posicionamento fez com que Aristoacuteteles possivelmente

influenciado por Platatildeo tenha elegido as emoccedilotildees um dos objetos centrais da retoacuterica37

Ainda sobre a importacircncia quantitativa e qualitativa que as emoccedilotildees adquirem na

retoacuterica aristoteacutelica se pensarmos que pathos eacute tema especificamente pertencente a uma

das partes da alma e por isso esperariacuteamos encontrar na obra psicoloacutegica de

Aristoacuteteles que eacute a ldquoDe Animardquo (Sobre a Alma) o seu desenvolvimento mais completo

e detalhado teremos uma certa decepccedilatildeo ao observar que no seu suposto habitat

especiacutefico a mateacuteria encontra um tratamento extremamente acanhado

comparativamente agravequele encontrado na Retoacuterica A este respeito Cooper anota ser

desapontante a abordagem do tema em ldquoDe Animardquo38

e Konstan chega a dizer que

curiosamente o melhor local para encontrar uma boa discussatildeo sobre emoccedilotildees nas

obras antigas eacute justamente nos livros de retoacuterica

Se vocecirc deseja consultar uma discussatildeo grega ou romana sobre

emoccedilotildees o lugar para procurar natildeo eacute ndash como se poderia esperar ndash em

um tratado de psicologia ou em termos claacutessicos ldquoSobre a Almardquo

(por exemplo De anima de Aristoacuteteles) mas sim um ensaio sobre

retoacuterica Em primeiro lugar no lado grego haacute a proacutepria Retoacuterica de

Aristoacuteteles com o seu tratamento detalhado no Livro II de uma duacutezia

ou mais de diferentes emoccedilotildees Na literatura latina Ciacutecero examina as

emoccedilotildees no seu De inventione assim como em outros ensaios de

oratoacuteria embora tambeacutem as trate com algum detalhe no seu diaacutelogo

filosoacutefico As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4)

Mais tarde no seacuteculo III DC um tal Apsines ndash se este eacute o seu nome

verdadeiro ndash pesquisou as emoccedilotildees em elaborado detalhe como parte

de um extenso livro sobre retoacuterica (apenas uma porccedilatildeo restou

especialmente a parte que trata da compaixatildeo)39

37

HALL Jon Oratorical delivery and the emotions theory and practice In DOMINIK William HALL

Jon (ed) A companion to roman rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 232 38

COOPER John M An aristotelian theory of the emotions In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed)

Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 238 39

ldquoIf you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions the place to look is not

ndash as one might have expected ndash in a treatise on psychology or in classical terms lsquoOn the Soulrsquo (for

example Aristotlersquos De anima) but rather an essay on rhetoric First and foremost on the Greek side

there is Aristotlersquos own Rhetoric with its detailed treatment in Book 2 of a dozen or more different

passions In Latin literature Cicero examines the emotions in his youthful De inventione as well as in

other essays on oratory although he also treats them at some length in his philosophical dialogue The

Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4) As late as the third century AD a certain Apsines ndash if

that is his true name ndash surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on

25

Por sua vez passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II

Aristoacuteteles principia afirmando que por ser o objetivo da retoacuterica formar um juiacutezo no

ouvinte para a tomada de decisatildeo o orador natildeo deve apenas se concentrar na tarefa de

fazer criacutevel e persuasivo o seu argumento (logos) mas tambeacutem deve se preocupar tanto

com a sua proacutepria imagem tendo em vista que o seu caraacuteter (ethos) tambeacutem eacute objeto de

julgamento das pessoas quanto com a necessidade de colocar os destinataacuterios numa

determinada disposiccedilatildeo mental (pathos) reafirmando assim a doutrina dos trecircs meios

de convencimento Logo em seguida coloca esta uacuteltima forma de convencimento

(pathos) como de grande importacircncia para a oratoacuteria judicial

O relevo conferido ao trabalho retoacuterico dirigido agrave disposiccedilatildeo mental dos ouvintes

eacute devidamente esclarecido sem mais nenhuma ponderaccedilatildeo negativa da seguinte

maneira se algueacutem estiver sob o efeito do amor ou do oacutedio da indignaccedilatildeo ou da calma

os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo criteacuterio de grandeza

ldquoquem ama acha que o juiacutezo que deve formular sobre quem eacute julgado eacute de natildeo

culpabilidade ou de pouca culpabilidade por outro quem odeia acha o contraacuteriordquo40

Assim Aristoacuteteles estabelece uma funccedilatildeo cognitiva especiacutefica para as emoccedilotildees

vale dizer eacute em funccedilatildeo delas que alteramos nossos juiacutezos acerca do mundo Estar

afetado por uma emoccedilatildeo eacute a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de

algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade Desse modo por possuir

uma funccedilatildeo tatildeo determinante no discurso o orador precisa estar preparado para bem

utilizaacute-las o que soacute se alcanccedila atraveacutes de um profundo conhecimento sobre o ser

humano

A novidade poreacutem natildeo se encerra por aiacute pois Aristoacuteteles ao dissertar sobre a

natureza das emoccedilotildees afirma que elas satildeo compostas por prazer (hedonecirc) e por dor

(lupecirc) oferecendo mais complexidade ao tema

A ideia segundo a qual as emoccedilotildees comportam tal natureza complexa ou seja

de que satildeo formadas por sentimentos mistos eacute creditada a Platatildeo que ao longo de sua

obra filosoacutefica se deparou desde cedo com o problema do prazer no Feacutedon por

exemplo o autor da Repuacuteblica adverte que o verdadeiro filoacutesofo deveria se manter

distante do prazer que eacute fonte dos maiores males (83bd) Em Goacutergias aquele que vive

desmedidamente na busca do prazer eacute considerado uma pessoa infeliz pois tenta em vatildeo

rhetoric (only a portion survives chiefly the part dealing with pity)rdquo (trad livre) KONSTAN D Op

cit p 411 40

ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 84

26

preencher um jarro furado com uma peneira (493abd) Por sua vez no Filebo uma das

suas uacuteltimas obras a dor eacute definida como a desintegraccedilatildeo do estado de equiliacutebrio

natural enquanto o prazer agora numa visatildeo mais positiva busca recuperar a harmonia

perdida conforme se observa no seguinte trecho

SOCRATES O que eu afirmo eacute que quando encontramos

comprometida a harmonia nos seres vivos ao mesmo tempo haveraacute a

desintegraccedilatildeo da sua natureza e o aparecimento da dor

PROTARCO O que vocecirc diz eacute bastante plausiacutevel

SOCRATES Mas se o contraacuterio ocorre e a harmonia eacute recuperada e a

natureza inicial restabelecida precisamos dizer que o prazer surge se

devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as mateacuterias mais

difiacuteceis no menor tempo possiacutevel41

Com esta uacuteltima definiccedilatildeo Frede destaca que Platatildeo se concilia com alguns

aspectos da natureza humana jaacute que o prazer pelo menos agora tem uma funccedilatildeo

beneacutefica e terapecircutica para o indiviacuteduo Esta nova abordagem natildeo recorre mais agrave ideia

de que o prazer eacute um distuacuterbio ou uma doenccedila da alma e ao mesmo tempo possibilita

submeter os vaacuterios tipos de prazer a um conceito uacutenico explicando quando alguns satildeo

bons e outros natildeo (51b)42

Jaacute neste momento eacute oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento

platocircnico e o encontrado na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de observar que o Estagirita

recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definiccedilatildeo de prazer ldquoAdmitamos que

o prazer eacute um certo movimento da alma e um regresso total e sensiacutevel ao seu estado

natural e que a dor eacute o contraacuteriordquo(1370a)43

Platatildeo de outra parte apoacutes discutir vaacuterias formas de mistura de prazer e de dor

chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoccedilotildees na obra

aristoteacutelica Ele afirma que as emoccedilotildees tambeacutem se submetem a este mesmo fenocircmeno

misto e fornece uma lista de exemplo a ira o medo a saudade as lamentaccedilotildees o amor

a inveja a maliacutecia e outros sentimentos da mesma espeacutecie Num fragmento da Iliacuteada

citado no referido diaacutelogo a raiva eacute apresentada como algo que amarga a alma ateacute dos

41

ldquoSOCRATES What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted there will

at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain

PROTARCHUS What you say is very plausible

SOCRATES But if the reverse happens and harmony is regained and the former nature restored we

have to say that pleasure arises if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the

shortest possible timerdquo(31d) (trad livre) Cf PLATAtildeO PHILEBUS trad Dorothea Frede In COOPER

John M (ed) Plato complete works IndianapolisCambridge Hacket Publishing Company 1997 p

419 42

FREDE D Op cit p 262 43

ARISTOTELES Op cit 2012 p 56

27

mais saacutebios mas ao mesmo tempo provoca um dulccedilor maior do que o mel A amargura

da raiva reside na dor que ela provoca desequilibrando o estado natural do indiviacuteduo e a

doccedilura estaacute justamente na antecipaccedilatildeo mental do ato de vinganccedila que eacute a sua imensa

fonte de prazer Por sua vez o riso que eacute um prazer quando dirigido a uma infelicidade

do outro eacute fruto da maliacutecia (Schadenfreude)44

que eacute uma dor da alma (50a)45

Retornando novamente agrave Retoacuterica Aristoacuteteles oferece uma lista de emoccedilotildees

opostas (ira calma amizade e inimizade medo confianccedila vergonha desvergonha

benevolecircncia compaixatildeo indignaccedilatildeo inveja emulaccedilatildeo etc) que seraacute enquadrada no

referido modelo teoacuterico dos sentimentos mistos Ressalte-se poreacutem que em nenhum

momento Aristoacuteteles faz referecircncia expliacutecita agrave teoria platocircnica nem utiliza a palavra

ldquomistordquo ou ldquomisturardquo e neste aspecto esclarece poucos detalhes de sua abordagem

emotiva No entanto o cotejo a seguir realizado mostra que a influecircncia platocircnica tem

fundamento e a sua investigaccedilatildeo merece ser feita a fim de compreender como foi

moldada a primeira grande abordagem retoacuterica das emoccedilotildees de que temos notiacutecia

Assim a ira eacute acompanhada de dor em funccedilatildeo de um desprezo sem razatildeo

dirigido a noacutes ou a pessoas que temos estima e de prazer na esperanccedila de se vingar que

eacute representada mentalmente no indiviacuteduo provocando um deleite comparaacutevel agravequeles

encontrados nos sonhos (1378b) O medo eacute uma dor em virtude da representaccedilatildeo de um

mal vindouro (1382a) A causa da vergonha consiste numa dor em razatildeo de males

passados presentes ou futuros que satildeo passiacuteveis de destruir a nossa reputaccedilatildeo (1383b)

A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisiccedilatildeo de

bens desejaacuteveis ou seja o sucesso alheio eacute fonte de grande afliccedilatildeo e o prazer estaria na

possibilidade de observar o fracasso na aquisiccedilatildeo destes bens (1387b-1388a) De seu

turno na compaixatildeo a dor eacute resultado de um mal que recai naquele que natildeo a merece

fazendo-nos sofrer por extensatildeo (1385b) Na indignaccedilatildeo a dor estaacute em observar um

ecircxito imerecido (1386b) Jaacute o amor que eacute melhor tratado no Livro I nos provoca dor

diante da ausecircncia da pessoa amada cuja lembranccedila e a esperanccedila de reencontro nos

provocam prazer (1370a)

Eacute bem verdade que em relaccedilatildeo a algumas emoccedilotildees tais a amizade e a

benevolecircncia Aristoacuteteles natildeo chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas

envolvidos mas conforme nota Frede isso mostra que ele estava mais preocupado em

44

A palavra alematilde Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortuacutenio

alheio 45

PLATAtildeO Op cit 1997 p 439-440

28

mostrar quais emoccedilotildees o orador deveria dominar para ser convincente no

empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade teoacuterica46

De outra parte importa registrar que no detalhamento das emoccedilotildees trecircs

aspectos satildeo via de regra esclarecidos quais sejam o estado de espiacuterito em que

geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoccedilatildeo contra quem ou

o que costumam ter aquela reaccedilatildeo emotiva e em quais circunstacircncias ocorrem Sem

saber estes trecircs aspectos o orador natildeo estaraacute nas condiccedilotildees ideais de alcanccedilar ecircxito no

seu empreendimento de colocar o auditoacuterio numa determinada disposiccedilatildeo mental

Por exemplo como o medo estaacute relacionado agrave visualizaccedilatildeo da ocorrecircncia de um

mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequecircncias negativas na esfera

pessoal do indiviacuteduo o ouvinte deve estar num estado de espiacuterito que acredite que de

fato algo ruim iraacute lhe suceder Assim pessoas insensiacuteveis por jaacute terem vivenciado toda

sorte de desgraccedila na vida ou porque estatildeo muito confiantes em si mesmas por terem ou

acreditarem ter muitos amigos vigor fiacutesico prosperidade econocircmica ou outro motivo

que as fortaleccedila mentalmente natildeo sentiratildeo medo Logo a confianccedila eacute o contraacuterio do

medo e eacute um verdadeiro escudo contra o sentimento de inseguranccedila que aplaca o

medroso Por outro lado teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a noacutes e nesta

categoria encontram-se aqueles que satildeo injustos ou perversos desde que contem com

instrumentos para cometerem os seus atos de injusticcedila e de maldade aqueles que

provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que noacutes os nossos concorrentes

quando o objeto de conquista natildeo pode ser compartilhado os que foram viacutetimas de

injusticcedila por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem Por fim em

relaccedilatildeo agrave coisa que tememos ela deveraacute ter a capacidade de nos causar grande

penosidade inclusive a proacutepria destruiccedilatildeo sendo o seu aspecto temporal altamente

relevante jaacute que tendemos a ter medo em relaccedilatildeo a um mal iminente e natildeo sentirmos

temor quanto a algo que provavelmente se sucederaacute mas a sua ocorrecircncia se daraacute num

intervalo temporal muito longiacutenquo

Na posse de tais informaccedilotildees e tentando imaginar um orador que planeje incutir

medo num auditoacuterio formado por pessoas com alto niacutevel de confianccedila certamente o

passo inicial seraacute dessensibilizar os ouvintes Se por exemplo as pessoas forem

confiantes por possuiacuterem muita riqueza seraacute necessaacuterio demonstrar no discurso que os

seus bens materiais nada poderatildeo fazer contra o mal que se aproxima Se por outro

46

FREDE D Op cit p 271

29

lado o mal lhes parece distante o discurso deveraacute enfatizar que a distacircncia natildeo eacute tatildeo

grande quanto aparenta e deveraacute reforccedilar a capacidade destrutiva deste mal bem como

certificar que apesar de longiacutenquo o infortuacutenio ocorreraacute No entanto se o auditoacuterio

estiver experimentando um medo excessivo talvez seja necessaacuterio lhes transmitir

confianccedila demonstrando que o mal natildeo seja tatildeo grande quanto aparenta ou que as

pessoas dispotildeem de meios adequados para enfrentaacute-lo

Enfim eacute preciso realizar um minucioso estudo do auditoacuterio a fim de

compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (preacute-discurso)

continuar a percebecirc-lo durante o discurso tudo isso com o objetivo de conduzir os

ouvintes a uma pretendida disposiccedilatildeo mental Nesta perspectiva a retoacuterica eacute uma

teacutecnica fundada no profundo conhecimento teoacuterico do ser humano na aquisiccedilatildeo de

experiecircncia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especiacuteficas de um

determinado grupo social e na contiacutenua praacutetica discursiva

Cumpre acrescentar que no discurso retoacuterico haacute tambeacutem um intenso trabalho de

representaccedilatildeo mental ou melhor dizendo de imaginaccedilatildeo isto eacute phantasia As palavras

gregas phantasia e phantasma satildeo traduzidas por imagem imaginaccedilatildeo ou representaccedilatildeo

mental em diversas ocasiotildees da obra em comentaacuterio Eacute oportuno destacar que phantasia

eacute um termo teacutecnico da psicologia aristoteacutelica e natildeo se confunde com o uso atual da

palavra fantasia que significa invenccedilatildeo narrativa ficcional algo fora da realidade

A phantasia eacute uma faculdade da alma que natildeo eacute nem pensamento nem

percepccedilatildeo embora parta desta uacuteltima Ela visa dar conta de pelo menos dois

problemas a presenccedila na ausecircncia isto eacute a lembranccedila ou pensamento de objetos

ausentes a questatildeo do engano que natildeo consegue ser explicado pela ideia de que o

semelhante conhece o semelhante pois esta uacuteltima tese sustenta que o conhecimento se

identifica com os seus objetos (409b29-30) e por isso natildeo pode ldquo[] errar ou desviar

de como as coisas satildeordquo47

Assim para Aristoacuteteles a phantasia eacute uma faculdade

especiacutefica da alma que procura solucionar esse problema da cogniccedilatildeo tornando atraveacutes

da representaccedilatildeo mental o verdadeiro e o falso possiacuteveis

Desse modo Aristoacuteteles expotildee que ldquoo prazer consiste em sentir uma certa

emoccedilatildeo e a imaginaccedilatildeo [phantasia] eacute uma espeacutecie de sensaccedilatildeo enfraquecidardquo48

(1370a28-29) Ao falar acerca do prazer sentido na vitoacuteria assevera que todos gostam

47

ldquoit cannot err or deviate from the way things arerdquo CASTON Victor Aristotlersquos psychology In GILL

M L PELLEGRIN P (ed) The Blackwell Companion to Ancient Philosophy Oxford Blackwell

Publishing 2006 p 334 48

ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 57

30

de vencer porque criamos para noacutes mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade

em relaccedilatildeo aos outros (1370b33) A honra e a boa reputaccedilatildeo satildeo altamente prazerosas

porque atraveacutes delas imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma

pessoa virtuosa Na ira o prazer ocorre em face da representaccedilatildeo mental [phantasia] do

ato de vinganccedila (1378b) O medo eacute uma dor ocasionada pela representaccedilatildeo [phantasia]

de um mal iminente (1382a21) Na esperanccedila representamos mentalmente [phantasia]

que as coisas que nos transmitem seguranccedila estatildeo proacuteximas (1383a17) Por sua vez a

vergonha consiste na representaccedilatildeo imaginaacuteria [phantasia] da perda de reputaccedilatildeo pelo

indiviacuteduo (1384a24)49

Assim em vista dos trechos acima citados fica claro que phantasia tem um

papel essencial no trabalho retoacuterico porque atraveacutes de sua elaboraccedilatildeo discursiva seraacute

possiacutevel suscitar determinadas emoccedilotildees no auditoacuterio E isso porque conforme destaca

Rapp ldquomuitas emoccedilotildees surgem apenas atraveacutes da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo

(phantasia) natildeo necessitando de uma operaccedilatildeo cognitiva superior incluindo qualquer

julgamento compreendido este uacuteltimo como uma operaccedilatildeo sofisticadardquo50

Assim em

conclusatildeo a phantasia retoacuterica consiste na induccedilatildeo de uma determinada disposiccedilatildeo

mental por meio da produccedilatildeo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um

estado emocional especiacutefico

Desse modo tendo completado a exposiccedilatildeo do tema eacute possiacutevel agora notar a

evoluccedilatildeo do pensamento de Aristoacuteteles sobre as emoccedilotildees compreender de que modo

elas satildeo suscitadas entender a sua natureza complexa e a sua funccedilatildeo cognitiva precisar

quais delas satildeo importantes para o orador e por fim observar a sua centralidade dentro

da retoacuterica

13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica

Visto o delineamento do tema na retoacuterica aristoteacutelica e percebido o alto grau de

importacircncia que as emoccedilotildees adquirem no discurso persuasivo passamos agora a

investigaacute-las na eacutetica aristoteacutelica mais precisamente nos Livros I e II da Eacutetica a

Nicocircmaco

49

GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric II a commentary New York Fordham University

Press 1988 p 26 50

ldquoViele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande beduumlrfen

aber keiner houmlheren kognitiven Operation also auch keines Urteils falls darunter eine solche

anspruchsvollere Operation verstanden wirdrdquo (trad livre) RAPP C Op cit p 56

31

Aristoacuteteles inicia no Capiacutetulo II do Livro I dizendo que se houver um bem que

seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade uacuteltima

tal bem dada a sua importacircncia merece por razotildees praacuteticas ser estudado e conhecido

uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforccedilo na vida humana

Esse bem final ou supremo eacute relacionado agrave felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no

Capiacutetulo IV ldquoverbalmente eacute-nos possiacutevel quase afirmar que a maioria esmagadora da

espeacutecie humana estaacute de acordo no que tange a isso pois tanto a multidatildeo quanto as

pessoas refinadas a ele se referem como a felicidaderdquo51

(1095a17-19)

Apoacutes discorrer sobre vaacuterias concepccedilotildees correntes sobre felicidade (eudaimonia)

oferecendo-lhes criacutetica bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista Aristoacuteteles no

Capiacutetulo XIII afirma que ldquofelicidade eacute uma certa atividade da alma em conformidade

com a virtude perfeitardquo ou que a ldquofelicidade humana significa a excelecircncia da almardquo

justificando portanto a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para

melhor compreender a mateacuteria em exame

Por isso em seguida apresenta a divisatildeo da alma em uma parte dotada de razatildeo

(logon) e uma outra parte natildeo-racional (alogon) Primeiramente eacute detalhada a parte

natildeo-racional que se divide em duas uma porccedilatildeo cuida da nutriccedilatildeo e do crescimento e

por isso eacute partilhada com todos os seres vivos natildeo sendo caracteriacutestica apenas do ser

humano (parte vegetativa ou nutritiva) mas uma outra porccedilatildeo embora tambeacutem seja

natildeo-racional possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razatildeo Esta

uacuteltima porccedilatildeo eacute a sede dos desejos apetites e emoccedilotildees e geralmente eacute denominada de

parte apetitiva ou desiderativa

Poreacutem em prosseguimento sem se decidir ele observa que talvez seja mais

apropriado dividir a parte racional em duas uma que deteacutem o princiacutepio racional strictu

sensu e em si mesmo e a outra parte (a apetitiva) que natildeo possui razatildeo mas que eacute

capaz de ouvi-la ldquocomo um filho ao seu pairdquo Em ambos os casos seja a parte

irracional duplamente dividida seja a parte racional duplamente dividida uma coisa

permanece igual a parte apetitiva (desiderativa) natildeo deteacutem em si o princiacutepio racional

mas eacute capaz de escutar e obedecer a razatildeo conforme explana Rapp

Na verdade Aristoacuteteles diz que ou o sentido da frase lsquologo echonrsquo

(lsquoter razatildeorsquo) eacute bipartite ndash primeiro aquilo que tem razatildeo em sentido

estrito e a tem em si mesmo segundo aquilo que eacute capaz de obedecer

ou responder agrave razatildeo ndash ou que um elemento da parte natildeo-racional da

51

ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco trad Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2009 p 40

32

alma eacute capaz de ouvir obedecer ou responder agravequela parte da alma

que possui razatildeo em si mesma52

Mas qual eacute a principal finalidade em apresentar esta divisatildeo da alma em uma

parte racional e outra natildeo-racional Ora se lembrarmos que a felicidade eacute um estado de

excelecircncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita entatildeo do conhecimento

das partes da alma e da compreensatildeo do seu bom funcionamento dependem o excelente

desempenho da totalidade da alma Assim anota Pakaluk o pressuposto impliacutecito neste

capiacutetulo eacute que a virtude do todo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da distinccedilatildeo da virtude das

partes53

E tal portanto eacute a justificativa para apresentar a divisatildeo entre virtudes

intelectuais e virtudes morais ou eacuteticas As virtudes intelectuais satildeo aquelas pertencentes

ao campo da parte racional da alma e de seu turno as virtudes morais satildeo relacionadas

agrave parte natildeo-racional da alma mas que conforme visto tecircm a caracteriacutestica de poder

ouvir e obedecer agrave razatildeo

Interessante registrar o jogo ambiacuteguo que o vocaacutebulo ldquovirtuderdquo exerce no texto

Se num primeiro momento Aristoacuteteles usa ldquovirtuderdquo geralmente no singular para se

referir agrave felicidade conveacutem notar que agora ele passa a utilizar a palavra no plural

(virtudes intelectuais e virtudes morais) O termo grego aretecirc pode ser traduzido por

excelecircncia ou por virtude sendo que ao empregar a palavra no singular para definir a

felicidade o Estagirita quer se referir agrave atividade excelente da alma um estado que

exerce bem sua funccedilatildeo e atinge os melhores padrotildees Jaacute no segundo caso exemplificado

(plural) deseja aludir agraves virtudes individuais tais como popularmente as conhecemos

justiccedila moderaccedilatildeo coragem etc54

Assim tendo em vista tal classificaccedilatildeo o Livro II iraacute se ocupar da virtude moral

(no singular) ou seja procurar-se-aacute compreender de que maneira a parte natildeo-racional

da alma iraacute atingir o seu estado excelente enquanto as virtudes morais (no plural) iratildeo

ser exploradas em outro trecho da obra (III8-VI)

Neste propoacutesito no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral o

Estagirita abre a discussatildeo esclarecendo o seu modo de aquisiccedilatildeo a fim de diferenciar

tal virtude em relaccedilatildeo agrave virtude intelectual Enquanto esta uacuteltima se adquire pela

52

RAPP CPara que serve a doutrina aristoteacutelica do meio termo In ZINGANO Marco (org) Sobre a

eacutetica nicomaqueia de aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010 p 410 53

PAKALUK Michael On the unity of the nicomachean ethics In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos

nicomachean ethics a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 31 54

RAPP C Op cit 2010 p 407-408 Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea Op cit p 78

33

instruccedilatildeo aquela eacute produto do haacutebito (ethos) marcando com esta posiccedilatildeo clara

divergecircncia com o intelectualismo socraacutetico que entende que a virtude eacute adquirida por

meio do conhecimento vale dizer para praticar atos bons e ser considerado bom eacute

suficiente que o indiviacuteduo compreenda o que eacute bondade para ser justo eacute satisfatoacuterio

conhecer o que eacute justiccedila Diferentemente no modelo aristoteacutelico algueacutem soacute se torna

virtuoso caso realize atos em conformidade com a virtude Por conseguinte eacute preciso

realizar atos de coragem ou de justiccedila para por exemplo ser considerado corajoso ou

justo

Ademais as virtudes morais natildeo satildeo inatas natildeo satildeo geradas pela natureza

(phusei) nem satildeo contraacuterias agrave natureza (paraphisen) Embora nos sejam concedidas

como potecircncias (dynameis) necessitam ser exercidas para serem adquiridas e natildeo

permanecerem em eterno estado de latecircncia Isso porque a virtude eacute uma hexis

(disposiccedilatildeo) um estado de caraacuteter adquirido que se tornou estaacutevel fixo natildeo sujeito a

regressotildees55

Eacute por isso que a sua aquisiccedilatildeo soacute ocorre mediante a repeticcedilatildeo de vaacuterios

atos (haacutebito) necessitando tambeacutem que haja conhecimento e deliberaccedilatildeo na sua praacutetica

(1105a30-35)

Poreacutem onde se encaixam as emoccedilotildees neste modelo teoacuterico Qual eacute o papel que

desempenham para o atingimento do estado de excelecircncia da parte natildeo-racional da

alma

No Capiacutetulo I do Livro II Aristoacuteteles fornece o primeiro exemplo empiacuterico

relativo agrave importacircncia das emoccedilotildees para a o desenvolvimento do caraacuteter do indiviacuteduo

ldquoatraveacutes da accedilatildeo em situaccedilotildees arriscadas e ao formar o haacutebito do [sentimento] do medo

ou [aquele] da autoconfianccedila eacute que nos tornamos corajosos ou covardesrdquo56

No Capiacutetulo

II reafirma-se o mesmo exemplo a pessoa que sente medo em relaccedilatildeo a tudo querendo

fugir de todas as situaccedilotildees iraacute adquirir o caraacuteter de um covarde sendo que aquele que

natildeo vivencia medo em face de qualquer situaccedilatildeo um temeraacuterio

Apoacutes o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de

incidecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Assim em relaccedilatildeo a estas uacuteltimas estar na

posse de uma virtude moral significa que o indiviacuteduo se encontra bem ou mal disposto a

55

WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2013 p 69-70 56

ARISTOacuteTELES Op cit 2009 p 68

34

sofrer o governo das emoccedilotildees ldquoas disposiccedilotildees satildeo os estados de caraacuteter formados

devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relaccedilatildeo agraves paixotildeesrdquo57

Com efeito se pensarmos que a teoria moral aristoteacutelica concerne agraves emoccedilotildees e

o vocaacutebulo pathos derivado de paschein traz consigo a ideia de que o indiviacuteduo eacute

afetado por algo isto eacute ele sofre a accedilatildeo de uma emoccedilatildeo e por isso se encontra numa

condiccedilatildeo passiva e considerando que esta mesma teoria moral tambeacutem se preocupa

com a accedilatildeo (praxis) isto eacute quando o indiviacuteduo atua e respectivamente estaacute numa

posiccedilatildeo ativa o modelo eacutetico em comentaacuterio se preocupa natildeo apenas com o agir

devidamente mas tambeacutem com o ser afetado devidamente Assim a arte de viver bem

natildeo se resume a uma arte de agir adequadamente mas sobretudo a uma arte de sentir

de modo adequado as emoccedilotildees58

Dessa forma com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de

como atingir esse ponto de excelecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Aristoacuteteles

apresenta a doutrina do meio termo

Ora de tudo que eacute contiacutenuo e divisiacutevel eacute possiacutevel tomar a parte maior

ou a menor ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores

menores e iguais seja relativamente agrave proacutepria coisa ou relativamente a

noacutes a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficiecircncia

Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois

extremos o que eacute exatamente o mesmo para todos os seres humanos

pela mediania relativa a noacutes entendo aquela quantidade que nem eacute

excessivamente grande nem excessivamente pequena o que natildeo eacute

exatamente o mesmo para todos os seres humanos59

Assim em vista do modelo conceitual oferecido a excelecircncia eacutetica estaraacute no

distanciamento do muito e do muito pouco em direccedilatildeo ao centro isto eacute ao ponto

mediano A boa disposiccedilatildeo de caraacuteter eacute alcanccedilada quando se evita tanto o excesso

quanto a deficiecircncia que seriam modos de falhar tanto na accedilatildeo quanto na forma de

sentir a emoccedilatildeo

Rapp destaca que as interpretaccedilotildees normativas desta doutrina

tradicionalmente a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os

casos individuais e encontrar consequentemente uma soluccedilatildeo Assim ela tem sido

compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas accedilotildees ou emoccedilotildees sejam

57

Id ibid p 74 58

KOSMAN L A Beeing properly affected virtues and feelings in Aristotlersquos ethics In RORTY

Ameacutelie Oksenberg Essays on aristotlersquos ethics BerkeleyLos Angeles California University Press

1980 p 104-105 59

ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco Op cit p 76

35

moderadas (b) para que apenas selecionemos as accedilotildees ou as reaccedilotildees emotivas

equidistantes dos dois extremos60

Todavia a melhor saiacuteda seria observar o seu caraacuteter anti-dedutivo jaacute que no

campo eacutetico a infinidade de situaccedilotildees e peculiaridades desaprova uma leitura ldquoregra-

casordquo desse modelo teoacuterico ldquoo melhor que a teoria eacutetica pode fazer eacute formular

enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hocircs epi to polu) e natildeo em

geralrdquo61

Nesta aacuterea que natildeo eacute a do necessaacuterio natildeo se podem formular premissas

cogentes a partir das quais deduziriacuteamos soluccedilotildees firmes

Aristoacuteteles nesse ponto adiciona uma seacuterie de paracircmetros a fim de explanar

conceitualmente a boa medida da accedilatildeo ou da emoccedilatildeo experimentar uma emoccedilatildeo

adequadamente significa senti-la na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves

pessoas e aos fins certos e de maneira correta o que demonstra a complexidade do

aperfeiccediloamento eacutetico uma vez que se espera do indiviacuteduo uma grande sensibilidade agrave

experiecircncia concreta

Em tal perspectiva sentir uma emoccedilatildeo devidamente pode significar reagir de

modo eneacutergico porque uma situaccedilatildeo especiacutefica pode reclamar que a pessoa tenha uma

resposta emocional intensa Isso natildeo anula a noccedilatildeo de virtude moral esclarecida

conceitualmente pela doutrina do meio-termo porque a pessoa que natildeo reage de forma

adequada agrave ocasiatildeo em face daqueles paracircmetros expostos estaraacute ou falhando por

deficiecircncia ou por excesso Por exemplo o indiviacuteduo que frequentemente reaja com

raiva em relaccedilatildeo agraves pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira

equivocada ou natildeo reaja quando deveria estaraacute mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees62

Assim ateacute o momento o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira

algueacutem estaraacute bem ou mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees uma vez que conforme se

delineou a parte natildeo-racional da alma apenas exerce bem a sua funccedilatildeo quando ouve a

razatildeo e no campo das emoccedilotildees isso ocorre quando o indiviacuteduo as sente adequadamente

de acordo com as circunstacircncias

Poreacutem Aristoacuteteles demonstrando que no terreno da eacutetica as peculiaridades satildeo

muitas afirma que para determinadas emoccedilotildees (a inveja a malevolecircncia a impudiciacutecia

e outras semelhantes) o modelo da mediania eacute inuacutetil e os paracircmetros sequer aplicaacuteveis

60

RAPP C 2010 p 416 61

Id ibid p 419 62

RAPP COp cit 2008 p 66

36

porque tais paixotildees satildeo maacutes em si mesmas para elas soacute existe o erro pois natildeo haacute como

senti-las no momento certo quanto agrave pessoa certa ou de modo certo etc

Assim enquanto para uma gama de emoccedilotildees eacute possiacutevel afirmar que eacute possiacutevel

senti-las adequadamente e isso implica pressupor que quando apropriadamente

vivenciadas algo de bom teraacute ocorrido da sua fruiccedilatildeo para outras tal pensamento natildeo eacute

extensiacutevel

Temos que nos socorrer do Livro II da Retoacuterica a fim de evidenciar por que a

inveja seria do ponto de vista eacutetico uma emoccedilatildeo vil em si mesma o Estagirita afirma

que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia eacute aquela que sente inveja

da felicidade dos outros e consequentemente esta mesma pessoa teraacute grande regozijo

ao observar o fracasso alheio Enquanto a indignaccedilatildeo e a inveja partilham de um ponto

comum por serem emoccedilotildees penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia

entre elas existe uma destacada diferenccedila a indignaccedilatildeo eacute uma dor gerada pela

observaccedilatildeo de um sucesso imerecido (injusto) enquanto a inveja eacute uma dor provocada

pela conquista de um bem merecido (justo) Enquanto a indignaccedilatildeo e a compaixatildeo estatildeo

ligadas ao bom caraacuteter a inveja estaacute relacionada a pessoas de alma pequena

(mikropsykhoi) Ao comparar a emulaccedilatildeo com a inveja destaca que aquela eacute

experimentada por pessoas de bem de alma grande enquanto a uacuteltima por pessoas vis

despreziacuteveis que poderatildeo inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem

Enfim parece que natildeo foi agrave toa que Aristoacuteteles de forma inusual brigou com os poetas

no iniacutecio da Metafiacutesica ao dizer que eacute mais provaacutevel que eles sejam mentirosos

conforme profere o proveacuterbio do que os deuses invejosos (1386b10-25 1387b30-39

1388a30-37 983a1-5)

Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoccedilotildees que satildeo vis em si mesmas

fundamentando-se na palavra grega mochteria utilizada em trecho em que eacute discutido

este mesmo assunto na Eacutetica a Eudemo (1221b21)63

Eacute bem verdade que mochteria

tambeacutem foi vertida por ldquoviacuteciordquo em algumas traduccedilotildees deste mesmo trecho na referida

obra aristoteacutelica64

mas natildeo deixa de ser um uso interessante para a descriccedilatildeo das

mencionadas emoccedilotildees parecendo-nos oportuna a sua utilizaccedilatildeo65

63

LEIGHTON Stephen Inappropriate passion In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos nicomachean ethics

a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 211 64

ARISTOTLE Eudemian ethics trad Michael Woods Oxford Clarendon Press 2005 p 18 65

Cf a explanaccedilatildeo dada para mochteria ldquocorrupt corruption (mochtheros mochtheria) A strong term

used to describe vicious human beings Like the English term the Greek has a range of meanings from

morally bad or wicked to perverse or depraved in ones longings and the like it can also mean in non

moral contexts simply lsquodefectiversquo or lsquobad conditionrsquo In the Ethics mochtheria is sometimes used

37

Assim por exemplo a inveja eacute uma emoccedilatildeo perversa porque conforme se viu

eacute anti-meritoacuteria O sujeito invejoso natildeo consegue enxergar um valor positivo na

conquista alheia e espera pela sua desgraccedila Consequentemente eacute uma emoccedilatildeo

relacionada ao cometimento de injusticcedilas

Mas de um modo geral todas as emoccedilotildees perversas compartilham de algo em

comum elas satildeo incompatiacuteveis com o bom caraacuteter Consoante nota Leighton as

emoccedilotildees perversas ldquo[] natildeo contribuem em nada mas apenas inibem uma vida virtuosa

ou proacutespera Enquanto a maioria das emoccedilotildees eacute objeto de elogio ou de censura

conforme as circunstacircncias particulares em que se manifestam estas merecem censura

simplesmente por serem sentidasrdquo66

Ora pelo visto ateacute o presente momento Aristoacuteteles divide as emoccedilotildees em dois

grupos aquelas que podem ser adequadamente ou natildeo-adequadamente sentidas de

acordo com as circunstacircncias e aquelas que satildeo vis em si mesmas (perversas) Naquele

primeiro grupo de emoccedilotildees os indiviacuteduos virtuosos sentiratildeo as emoccedilotildees

adequadamente enquanto aqueles natildeo-virtuosos sentiratildeo inadequadamente No segundo

grupo apenas os sujeitos de caraacuteter falho (natildeo-virtuoso) as sentiratildeo67

Desse modo de

acordo com este modelo quando devidamente formadas na disposiccedilatildeo de caraacuteter do

indiviacuteduo as emoccedilotildees contribuiratildeo significativamente no alcance de uma vida feliz

Poreacutem a despeito disso quais satildeo as outras implicaccedilotildees deste modelo

O primeiro ponto consiste em perceber que vaacuterias questotildees essenciais para a

vida inclusive para a vida em sociedade natildeo estatildeo localizadas no acircmbito de uma

racionalidade strictu sensu Se o indiviacuteduo natildeo for por haacutebito levado a constituir uma

disposiccedilatildeo de caraacuteter que o faccedila detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos

perversos provavelmente seraacute indiferente emocionalmente a accedilotildees truculentas ou

brutas contra outras pessoas

Nesse sentido conforme pontua Striker a falha em perceber qual o melhor curso

de accedilatildeo a tomar diante de determinada situaccedilatildeo estaacute relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional

porque eacute esta que iraacute possibilitar ao indiviacuteduo ter uma boa perspectiva moral

permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que eacute o melhor em cada circunstacircncia Pessoas

synonymously with the word for lsquovicersquo and so can serve as the contrary of lsquovirtuersquordquo ARISTOacuteTELES

Aristotlersquos nichomachean ethics tradRobert Bartlett e Susan D Collins ChicagoLondon Chicago

University Press 2011 p 307 66

ldquoThey cannot contribute to but only inhibit a virtuous or flourishing life While most passions deserve

praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (indashiii) these deserve blame

simply for being feltrdquo (trad livre) LEIGHTON S Op cit p 215 67

LEIGHTON SId ibid p 226

38

incapazes de sentir adequadamente indignaccedilatildeo ou compaixatildeo seratildeo inaacutebeis em prevenir

ou aliviar o sofrimento alheio assim como natildeo estaratildeo interessadas em reparar uma

injusticcedila68

Ademais registre-se que sem medo a pessoa natildeo tem como deliberar

adequadamente diante de um perigo (1383a5) E por uacuteltimo a depender da situaccedilatildeo

talvez seja necessaacuterio responder com muita indignaccedilatildeo ou muita raiva porque a

conjuntura pode demandar uma resposta eneacutergica de modo que o ideal de que as

emoccedilotildees sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)

natildeo estaacute condizente com tal abordagem69

De outra parte conveacutem tambeacutem compreender de que maneira este modelo eacute

extensiacutevel a outros domiacutenios pois ateacute entatildeo a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e

perversas esteve atrelada ao prisma eacutetico da vida comum Mas conforme adverte

Leighton eacute possiacutevel pensar a questatildeo da adequaccedilatildeo e da perversidade das emoccedilotildees na

poliacutetica na retoacuterica na trageacutedia e nos demais domiacutenios70

Por exemplo segundo Aristoacuteteles na trageacutedia o medo e a compaixatildeo satildeo duas

emoccedilotildees-chaves e estrategicamente utilizadas para garantir o efeito cataacutertico sobre o

puacuteblico (1452a3-12) que eacute levado a se surpreender e se horrorizar com o destino do

personagem Neste acircmbito a adequaccedilatildeo de tais emoccedilotildees assim como de outras que

porventura emergirem (amor oacutedio etc) natildeo satildeo orientadas pelos criteacuterios eacuteticos da vida

comum mas pela forma poeacutetica O medo que se destina agrave catarse na trageacutedia exerce

outra funccedilatildeo na eacutetica da vida ordinaacuteria relacionando-se com a virtude da coragem Por

sua vez as emoccedilotildees adequadas agrave comeacutedia deveratildeo ser outras71

Assim como conciliar a inadequaccedilatildeo de uma emoccedilatildeo na vida ordinaacuteria e sua

adequaccedilatildeo em outro domiacutenio (trageacutedia comeacutedia poliacutetica retoacuterica etc) Leighton

oferece duas respostas

Primeiramente ele lembra que Aristoacuteteles provavelmente confiante no poder do

haacutebito de que a sua teoria moral eacute devota eacute um filoacutesofo bem mais otimista do que

Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave corrupccedilatildeo moral Por exemplo para o Estagirita uma pessoa

pode aproveitar dos prazeres de uma comeacutedia sem que o seu caraacuteter moral seja

68

STRIKER Gisela Emotions in context aristotlersquos treatment of the passions in the rhetoric and his

moral psychology In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos

Angeles California University Press 1996 p 298 69

RAPP COp cit 2008 p 66 70

LEIGHTON S Op cit p 226 71

Id ibid p 227

39

destruiacutedo porque ela jaacute eacute possuidora de uma disposiccedilatildeo fixa permanente Esta primeira

hipoacutetese enfatiza o impacto psicoloacutegico das emoccedilotildees sobre o puacuteblico72

Na segunda hipoacutetese a explicaccedilatildeo enfatiza a proacutepria ideia de domiacutenio ldquoas

circunstacircncias da vida mundana natildeo satildeo as mesmas da trageacutedia da comeacutedia da retoacuterica

e vice-versa a sua localizaccedilatildeo difere dentro do sistema teleoloacutegico aristoteacutelicordquo73

Assim eacute plenamente possiacutevel no pensamento aristoteacutelico algo ser inadequado numa

circunstacircncia e adequada em outra natildeo haacute uma pretensatildeo prima facie de que se algo eacute

inadequado num determinado domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro

Portanto a adequaccedilatildeoinadequaccedilatildeo estaacute relacionada com os fins e a forma de um

especiacutefico domiacutenio sendo que os criteacuterios de adequaccedilatildeo em cada acircmbito natildeo estatildeo em

competiccedilatildeo Conveacutem registrar poreacutem que pensar na pluralidade de domiacutenios e sua

respectiva independecircncia em termos de adequaccedilatildeo natildeo significa que eles sejam

completamente autocircnomos e desconectados pois em verdade todos os domiacutenios estatildeo

subordinados agrave teleologia aristoteacutelica do bem74

Assim Leighton afirma que uma explicaccedilatildeo baseada no domiacutenio prefere a uma

psicoloacutegica por trecircs motivos 1) explica por que Aristoacuteteles oferece diferentes criteacuterios

de adequaccedilatildeo para domiacutenios distintos 2) natildeo necessita recorrer agrave ideia de que se algo eacute

inadequado em um domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro 3) possibilita

que faccedila sentido a ideia aristoteacutelica de que a adequaccedilatildeo de determinadas atividades varia

de acordo com o domiacutenio Por outro lado uma explanaccedilatildeo psicoloacutegica falha por

tambeacutem trecircs motivos 1) embora seja coerente com a noccedilatildeo de haacutebito natildeo explica a

diferenccedila entre domiacutenios 2) natildeo deixa de carregar uma censura moral consigo 3) natildeo

compreende a visatildeo aristoteacutelica de adequaccedilatildeo emotiva por domiacutenios distintos75

De fato a explicaccedilatildeo por domiacutenios oferece uma boa compreensatildeo do tema em

relaccedilatildeo agravequelas emoccedilotildees enquadraacuteveis no grupo das adequadasinadequadas de acordo

com as circunstacircncias Poreacutem o que dizer das emoccedilotildees vis em si mesmas perversas A

inveja por exemplo pode eventualmente ser adequada por domiacutenio (poliacutetica retoacuterica

etc)

Leighton afirma que a rigor uma emoccedilatildeo perversa natildeo pode ser adequada em

nenhuma circunstacircncia nem em nenhum domiacutenio considerando todas as caracteriacutesticas

72

Id ibid p 230 73

ldquoThe circumstances of mundane life are not those of tragedy comedy rhetoric and vice versa their

placement within Aristotlersquos teleological framework differsrdquo (trad livre) Id ibid p 231 74

Id ibid p 231-232 75

Id ibid p 231

40

jaacute relacionadas a respeito de tais emoccedilotildees Poreacutem ele simplesmente natildeo consegue

explicar por que Aristoacuteteles endossa o uso das emoccedilotildees perversas na retoacuterica ldquonoacutes

entendemos melhor aquilo e por que os poetas estavam errados em atribuir a inveja agrave

natureza divina mas permanecemos desconcertados por que Aristoacuteteles nos prepara

para utilizar a inveja na retoacutericardquo76

Para tentar solucionar esse verdadeiro enigma de que tratamos no toacutepico

anterior e que agora novamente retorna Leighton deveria tambeacutem ter enfrentado o

problema da compatibilidade do pensamento aristoteacutelico nos Livros I e II da Retoacuterica

Conforme dissemos anteriormente a criacutetica inicial de Aristoacuteteles ao uso das emoccedilotildees no

Capiacutetulo I do Livro I eacute conflitante com o posicionamento oferecido no Livro II e por

isso sem pressupor alguma mudanccedila de entendimento no pensamento do Estagirita fica

difiacutecil uma boa explicaccedilatildeo

Ainda assim eacute razoaacutevel supor que Aristoacuteteles tenha permanecido criacutetico em

relaccedilatildeo a um uso retoacuterico das emoccedilotildees que conduzisse ao desvirtuamento do problema

enfrentado Poreacutem no Livro II da Retoacuterica ele prepara o orador para utilizar todas as

emoccedilotildees inclusive aquelas condenaacuteveis na eacutetica da vida comum De certa forma tendo

em vista os propoacutesitos da retoacuterica e considerando que a arena puacuteblica por vezes nos

reserva situaccedilotildees inesperadas e certamente desagradaacuteveis eacute mais desejaacutevel estar

preparado para usar todas as emoccedilotildees sem censuraacute-las previamente em si mesmas

Talvez sob esta perspectiva seja justificaacutevel a quebra de coerecircncia

Por fim como fechamento desta investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio registrar que a eacutetica

aristoteacutelica consegue ateacute hoje manter a sua atualidade pelo modo como integrou as

emoccedilotildees dentro de seu modelo de vida virtuosa Com exceccedilatildeo das emoccedilotildees perversas o

indiviacuteduo virtuoso aristoteacutelico sente as emoccedilotildees que todos noacutes sentimos na vida comum

embora ele tenha adquirido um grande diferencial sua resposta emocional eacute excelente

isto eacute ele sente medo raiva indignaccedilatildeo compaixatildeo amor mas numa intensidade

adequada agrave situaccedilatildeo experenciada

14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica

Apoacutes analisar as emoccedilotildees primeiramente na retoacuterica e depois na eacutetica

aristoteacutelica passa-se agora a investigaacute-las no acircmbito da teoria estoica Se em relaccedilatildeo agrave

76

ldquoWe understand better that and why the poets were wrong to attribute envy to the divine nature but

remain puzzled why Aristotle prepares us to deploy envy in rhetoricrdquo (trad livre) Id ibid p 235

41

obra do Estagirita percorremos o referido trajeto agora teremos que comeccedilar o estudo

pela eacutetica estoica para depois chegarmos agrave retoacuterica O motivo para a alteraccedilatildeo de

percurso reside no fato de que sabemos bem mais detalhes da eacutetica do que da retoacuterica

estoica Ademais registre-se que nada sobrou dos textos de Zenatildeo de Ciacutecio (334-262

aC) Cleanto de Assos (331- aC) e Crisipo de Soles (280-204 aC) os fundadores do

estoicismo

Embora o estoicismo tenha sido praticado por um longo periacuteodo que abrange

cinco seacuteculos foi a partir do seu decliacutenio no seacuteculo III dC que as suas obras

inaugurais deixaram de ser preservadas Hoje em dia o estudo dos fundadores da escola

se baseia exclusivamente em fontes indiretas de autores tardios e sobretudo por meio

de comentaacuterios de seus adversaacuterios77

Crisipo embora natildeo tenha iniciado a escola estoica foi o seu mais importante

pensador sendo que muito do que hoje imputamos genericamente ao estoicismo eacute na

verdade o seu pensamento Dos seus mais de 705 (setecentos) livros escritos que

incluem um tratado exclusivamente sobre retoacuterica e outro sobre as emoccedilotildees soacute restam

fragmentos ou comentaacuterios Credita-se sobretudo a ele o enorme desenvolvimento da

loacutegica estoica considerada uma verdadeira preciosidade pelos especialistas Brennan eacute

incisivo ao dizer que ldquoentre os antigos apenas Platatildeo e Aristoacuteteles o ultrapassam como

filoacutesofordquo78

Com efeito considerado o extenso periacuteodo de tempo abrangido eacute de se esperar

que o desenvolvimento da escola estoica tenha passado por fases distintas de modo que

a histoacuteria do estoicismo eacute tradicionalmente dividida em trecircs momentos (i) fase inicial

periacuteodo no qual estaacute inserida a figura de Crisipo e que vai da fundaccedilatildeo da escola por

Zenatildeo em torno do seacuteculo III aC ateacute o fim do seacuteculo II dC (ii) fase intermediaacuteria que

coincide com a era de Paneacutecio e Posidocircnio (iii) fase do estoicismo romano coincide

com o periacuteodo imperial romano e os autores principais satildeo Secircneca Epicteto e Marco

Aureacutelio79

A nossa abordagem poreacutem natildeo se interessaraacute em investigar o desenvolvimento

do tema a ser estudado desde os fundadores do estoicismo ateacute os seus autores tardios

77

TIELEMAN T Op cit p 1 CHAUIacute Marilena Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia as escolas

heleniacutesticas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 p 118 78

ldquoAmong the ancients only Plato and Aristotle surpass him as philosophersrdquo (trad livre) BRENNAN

Tad The stoic life emotions duties amp fate Oxford Clarendon Press p11 SEDLEY David The school

from zeno to arius didymus In INWOOD Brad (ed) The Cambridge companion to the stoics

Cambridge Cambridge University Press p 17 LAEacuteRCIO Dioacutegenes Lives of eminent philosophers

trad R D Ricks London William Heineman 1925 p 317 79

SEDLEY D Op cit p 7

42

(fase do estoicismo romano) nem explanar eventuais discordacircncia entre eles Ao inveacutes

disso revela-se suficiente empreender um estudo que possibilite a compreensatildeo

tradicional das emoccedilotildees no campo da eacutetica possibilitando visualizar os eventuais

reflexos sobre a retoacuterica estoica

Ainda assim a delimitaccedilatildeo da abordagem natildeo deixa de ser desafiadora dado o

impressionante grau de sistematicidade da teoria estoica Atento a isso Ciacutecero diz que eacute

difiacutecil tirar um uacutenico elemento da teoria estoica sem prejudicar todo o resto do sistema

a que ele compara a um edifiacutecio

Certamente nenhuma obra da natureza (embora nada seja mais

finamente disposto do que a natureza) ou produto fabricado revela

tamanha organizaccedilatildeo tamanha estrutura firmemente soldada

Conclusatildeo segue infalivelmente da premissa posterior

desenvolvimento da ideia inicial Vocecirc pode imaginar outro sistema

em que a remoccedilatildeo de uma uacutenica letra como uma peccedila de encaixe

faria com que todo o edifiacutecio viesse a baixo80

Desse modo a fim de iniciar a nossa explanaccedilatildeo conveacutem registrar

primeiramente que para os estoicos a virtude eacute a uacutenica coisa boa que existe e o viacutecio

que eacute o seu contraacuterio a uacutenica coisa maacute Excluindo as virtudes e os viacutecios todo o resto

estaacute incluiacutedo na categoria dos indiferentes Assim sauacutede beleza forccedila riqueza

reputaccedilatildeo nascimento nobre satildeo considerados indiferentes assim como os seus

opostos doenccedila pobreza feiura etc ldquoos estoicos jamais diriam que a riqueza algumas

vezes eacute boa ou que em algumas vezes participa do bem ou que eacute boa se usada

corretamenterdquo81

Isso porque para eles a riqueza eacute algo invariavelmente classificado

como indiferente Ademais anote-se que a posse de tais indiferentes que satildeo

considerados bens externos natildeo eacute necessaacuterio para o indiviacuteduo ser feliz

Dentro da categoria dos indiferentes nem todos estatildeo no mesmo patamar

porque alguns estatildeo em conformidade com a natureza outros contraacuterios agrave natureza e

outros nem um nem outro Sauacutede e beleza por exemplo satildeo indiferentes que estatildeo em

conformidade com a natureza e por isso satildeo valorados positivamente Diante da

possibilidade devemos selecionar os indiferentes em conformidade com a natureza e

80

ldquoSurely no work of nature (though nothing is more finely arranged than nature) or manufactured

product can reveal such organization such a firmly welded structure Conclusion unfailingly follows

from premise later development from initial idea Can you imagine any other system where the removal

of a single letter like an inter-locking piece would cause the whole edifice to come tumbling downrdquo

(trad livre) CICERO On Moral ends trad WOOLF Raphael Cambridge Cambridge University

Press 2004(III74) p 88 81

BRENNAN T Op cit p 120

43

natildeo selecionar os indiferentes contraacuterios agrave natureza que satildeo desvalorados Por sua vez

dentre os indiferentes em conformidade com a natureza alguns possuem mais valor do

que outros e logo satildeo considerados preferiacuteveis A mesma ideia eacute extensiacutevel aos

indiferentes contraacuterios agrave natureza alguns possuem mais desvalor do que outros e dessa

forma satildeo menos preferiacuteveis

Um primeiro problema em relaccedilatildeo aos indiferentes diz respeito agrave sua

incontrolabilidade uma vez que satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna e por isso agrave

contingecircncia82

Outro problema consiste na possibilidade de tanto causarem benefiacutecio

quanto prejuiacutezo Riqueza e sauacutede por exemplo natildeo satildeo bons em si mesmos porque

podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal e tudo aquilo que ostenta tal

possibilidade natildeo eacute bom Eacute melhor por exemplo natildeo ter sauacutede caso ela seja o

instrumento que possibilite a praacutetica de atos vis conforme explana Graver

Nem mesmo a sauacutede eacute beneacutefica o tempo todo Se um ditador violento

pretende recrutar vocecirc para se tornar parte de um esquadratildeo da morte

entatildeo eacute preferiacutevel natildeo estar fisicamente apto (Secircneca que teve

alguma experiecircncia com ditadores recomenda suiciacutedio em tais casos)

Por esta razatildeo os estoicos argumentam que nem sauacutede nem riqueza

nem qualquer outro objeto externo eacute verdadeiramente beneacutefico em

tudo e tambeacutem os seus opostos natildeo satildeo totalmente prejudiciais O

verdadeiro valor natildeo aparece e desaparece com a ocasiatildeo83

Tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que virtude e felicidade e por outro lado viacutecio e

infelicidade coincidem na eacutetica estoica sendo que a virtude eacute identificada como um

estado de caraacuteter consistente que deve ser escolhida por si mesma e natildeo por outro

objeto externo84

Plutarco destaca que em uacuteltima instacircncia eacute a razatildeo que possibilita a

aquisiccedilatildeo de tal caraacuteter ldquo[] todos esses homens concordam em considerar a virtude

como um certo caraacuteter e poder da faculdade-comandante da alma engendrada pela

razatildeo ou melhor um caraacuteter que eacute em si mesmo consistente firme e de razatildeo

imutaacutevel[]rdquo85

A palavra ldquohomologiardquo traduzida por ldquoconsistecircnciardquo apreende bem a

82

Id ibid p 122 83

ldquoNot even health is beneficial all the time If a brutal dictator is seeking to conscript you to become part

of a death squad then it is preferable not to be physically fit (Seneca who had some experience of

dictators recommends suicide in such instances) For this reason the Stoics argue neither health nor

wealth nor any other external object is truly beneficial at all and neither are their opposites harmful

Genuine value does not come and go with the occasionrdquo GRAVER Margaret R Stoicism and emotion

ChicagoLondon The University of Chicago Press 2007 p 49 84

LAEacuteRCIO Diogenes 789 (SVF 339) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers translations of the principal sources vol 1 Cambridge Cambridge University Press 1987

p 377 85

ldquo[hellip]All these men agree in taking virtue to be a certain character and power of the souls commanding-

faculty engendered by reason or rather a character which is itself consistent firm and unchangeable

44

essecircncia desse modelo de eacutetica pois homo-logia significa tambeacutem ldquoharmonia com a

razatildeordquo demonstrando que a virtude eacute uma consistecircncia racional86

Os estoicos advogam a tese da unidade da virtude pois quem possui uma possui

todas as virtudes87

Quem age de acordo com uma age de acordo com todas A perfeiccedilatildeo

eacute apenas atingida quando o homem possui todas as virtudes e as suas accedilotildees satildeo

praticadas de acordo com todas elas88

Ademais ter uma vida feliz significa viver em conformidade com a natureza

que implica ao mesmo tempo viver de acordo com a virtude Neste particular natureza

significa a do proacuteprio homem e de tudo que o circunda (o todo) sendo que em ambas

permeia a reta razatildeo89

A razatildeo eacute aquilo que haacute de melhor e mais peculiar aos seres

humanos Quando correta e perfeita eacute a soma total da felicidade humana90

Um ponto central na eacutetica estoica reside na construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio

O saacutebio estoico eacute o modelo do indiviacuteduo virtuoso e autossuficiente faz tudo de modo

correto consistente e seacuterio natildeo faz nada de que poderia se arrepender nem nada contra

a sua vontade natildeo eacute assustado por nada ainda que aconteccedila algo inesperado e estranho

ele vive consistentemente conforme agrave natureza e por isso estaacute sempre feliz ldquoeacute uma

faacutecil conclusatildeo para os estoicos uma vez que perceberam que o bem final eacute uma

conformidade com a natureza e viver consistentemente com a natureza o que eacute natildeo

apenas a funccedilatildeo proacutepria do homem saacutebio mas tambeacutem estaacute em seu poderrdquo91

Poreacutem para compreender as emoccedilotildees e entender melhor as caracteriacutesticas

atribuiacutedas ao saacutebio eacute preciso esclarecer alguns aspectos da psicologia estoica

especialmente os conceitos de assentimento de impressatildeo e de impulso

Ordinariamente assentir significa concordar com aderir a algo conceder

aprovaccedilatildeo No entanto na escola estoica assentir eacute um termo teacutecnico e portanto

desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica em sua sistemaacutetica filosoacutefica Assim de acordo com

reason[hellip]rdquo Cf PLUTARCO On moral virtue 44OE-441D In LONG A A SEDLEY D N The

Hellenistic philosophers p 378 86

Id ibid p 383 87

STOBAEUS 2636-24 (SVF 3280 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 379 88

PLUTARCO On Stoic self-contradictions 1046E-F (SVF 3299 243) In LONG A A SEDLEY D

N The Hellenistic philosophers p 379 89

LAEacuteRCIO Dioacutegenes 787-9 In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers p

395 90

SENECA Letters 769-10 (SVF 3200a) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 395 91

ldquoIt is an easy conclusion for the Stoics since they have perceived the final good to be agreement with

nature and living consistendy with nature which is not only the wise mans proper function but also in

his powerrdquo (trad livre) Cicero Tusculan disputations 581-2 In LONG A A SEDLEY D N The

Hellenistic philosophers p 398

45

os estoicos o objeto de assentimento eacute sempre uma impressatildeo que eacute a traduccedilatildeo do

termo grego phantasia Plutarco nos diz que uma impressatildeo eacute uma marca na alma92

sendo que Crisipo registra que eacute uma afecccedilatildeo ocorrida na alma93

quando atraveacutes da

visatildeo observamos um ramalhete de flores amarelas num vaso este objeto causa uma

modificaccedilatildeo na alma que eacute afetada provocando-nos a impressatildeo de que haacute um

ramalhete de flores amarela num vaso Assim o que eacute objeto de meu assentimento e

passa a ser a minha crenccedila eacute a impressatildeo de que existe um ramalhete de flores amarela

num vaso ldquoo ato de acreditar de assentir a uma impressatildeo eacute uma espeacutecie de aprovaccedilatildeo

agrave impressatildeo dizendo ldquosimrdquo a ela concordando que as coisas estejam certas que o

mundo realmente eacute como a impressatildeo retrata que sejardquo94

Como seria de se esperar o problema da impressatildeo e do assentimento diz

respeito agrave questatildeo do verdadeiro e do falso Se eu assentir a uma impressatildeo falsa terei

uma crenccedila falsa da realidade Por conseguinte o assentimento a uma impressatildeo

verdadeira iraacute originar uma crenccedila verdadeira sobre o mundo Poreacutem qual seria a este

respeito o criteacuterio que distinguiria o verdadeiro do falso

Nesse ponto entra em cena um tipo de impressatildeo que eacute o proacuteprio carro-chefe da

epistemologia estoica Chamada de phantasia kataleptike (impressatildeo cognitiva) ela

garante o conhecimento verdadeiro da realidade Eacute uma impressatildeo que apreende

precisamente o objeto tal qual ele eacute sem erros nem desvios conforme resume Sexto

Empiacuterico

A impressatildeo cognitiva eacute aquela que surge a partir do que eacute e eacute

marcada e impressa exatamente de acordo com o que eacute de tal modo

que natildeo poderia surgir a partir do que natildeo eacute Uma vez que eles [os

estoicos] sustentam que essa impressatildeo eacute capaz de apreender os

objetos com precisatildeo e eacute marcada com todas as suas peculiaridades de

forma artesanal eles dizem que tal impressatildeo tem cada um destes

fatores como atributo95

92

PLUTARCO On common conceptions 1084F-1085A (SVF 2847) In LONG A A SEDLEY D

N The Hellenistic philosophers p 238 93

AETIUS 4121-5 (SVF 254 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 237 94

ldquoThe act of believing of assenting to the impression is a kind of endorsement of the impression saying

lsquoyesrsquo to it agreeing that it gets things right that the world really is as the impression depicts it to berdquo

(trad livre) BRENNAN TOp cit p 59 95

ldquo(3) A cognitive impression is one which arises from what is and is stamped and impressed exactly in

accordance which what is of such a kind as could not arise from what is not Since they [the Stoics] hold

that this impression is capable of precisely grasping objects and is stamped with all their peculiarities in a

craftsmanlike way they say that it has each one of these as an attributerdquo EMPIRICUS Sextus Against

the professors 7247-52 (SVF 265) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers

p 243

46

Portanto enquanto muitas impressotildees satildeo falsas porque surgem a partir do que

natildeo eacute a impressatildeo cognitiva eacute veraz pois apenas surge a partir do que eacute De outra parte

ainda que surjam a partir do que eacute muitas impressotildees representam com falha o seu

objeto o que natildeo acontece com a impressatildeo cognitiva uma vez que o seu objeto

impressor eacute representado com exatidatildeo Assim phantasia kataleptike eacute gerada a partir

do que eacute e em perfeita correspondecircncia com o que eacute ldquopara ser kataleptic a impressatildeo

precisa ser acompanhada de um tipo de garantia se vocecirc estaacute experimentando esta

impressatildeo entatildeo as coisas satildeo realmente como a impressatildeo diz que elas satildeordquo96

E isso

soacute eacute possiacutevel porque para viver em conformidade com a natureza noacutes seres dotados de

razatildeo somos equipados pela proacutepria natureza com o instrumental necessaacuterio para

realizar distinccedilotildees precisas sobre as coisas97

Todavia eacute fundamental compreender que nem todo assentimento agraves impressotildees

eacute igual Um assentimento eacute considerado forte quando eacute insuscetiacutevel de ser alterado por

meio de questionamento racional Por sua vez a caracteriacutestica do assentimento fraco

reside na sua reversibilidade Essas diferenciaccedilotildees satildeo importantes para entender que

para os estoicos o conhecimento soacute eacute possiacutevel quando simultaneamente existe um

assentimento forte a uma impressatildeo cognitiva A ausecircncia de quaisquer destas

condiccedilotildees conduz agrave formaccedilatildeo de uma mera opiniatildeo (doxa)98

Registre-se que conceder assentimentos fortes a impressotildees cognitivas eacute algo

apenas reservado ao saacutebio o qual nunca tem opiniotildees nem estaacute sujeito ao engano99

Somente o saacutebio vive uma vida plena de coerecircncia racional pois nunca erra jamais seu

conjunto de crenccedilas incorre em contradiccedilatildeo muito menos concede assentimento a algo

caso exista a miacutenima possibilidade de que este assentimento possa ser revertido100

Uma

das consequecircncias desse alto grau de exigecircncia epistecircmica consiste no fato de que as

pessoas ordinaacuterias isto eacute todos noacutes inclusive os fundadores da escola estoica natildeo

temos conhecimento a respeito de nada pois soacute assentimos de modo fraco e por isso

possuiacutemos tatildeo-soacute opiniatildeo sobre as coisas101

96

ldquoTo be kataleptic the impression has to come with a sort of guarantee if you are having this

impression then things are really as the impression says they arerdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit

p 68 97

LONG A A SEDLEY D Op cit p 250 98

BRENNAN T Op cit p 69-70 LONG A A SEDLEY D Op cit p 256-257 99

CICERO Academica 141-2 (SVF 160) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophers p 254 100

STOBAEUS 2111 18-1128 (SVF 3-548) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic

philosophershellip p 256 101

BRENNAN T Op cit p 72-73

47

Por uacuteltimo o impulso (hormecirc) pertence a uma especial classe de assentimento e

pode ser compreendido como o antecedente mental que gera uma accedilatildeo voluntaacuteria Antes

que no mundo externo uma accedilatildeo voluntaacuteria seja praticada deve ocorrer mentalmente

um evento que entenda que aquela accedilatildeo eacute apropriada para o caso Este evento eacute um

assentimento a uma impressatildeo ldquoimpulsoacuteriardquo102

Quando vejo um ramalhete de flores

amarelas numa loja e tenho a crenccedila de que ldquoseraacute uma boa coisa compraacute-la para colocar

no vaso da minha salardquo eu assinto a uma impressatildeo e minha mente se dirige para

realizar a accedilatildeo potencial contida na proposiccedilatildeo avaliativa da minha impressatildeo Por sua

vez o impulso como todo assentimento pode ser um episoacutedio de conhecimento ou de

opiniatildeo e por isso ldquoo Saacutebio deve-se dizer conhece o que ele estaacute fazendo e

especialmente o valor do que ele estaacute fazendo enquanto os natildeo-saacutebios desconhecem

tanto um quanto o outrordquo103

Com efeito na posse destes conceitos torna-se agora possiacutevel explanar

compreensivelmente o motivo pelo qual os estoicos desejam se livrar de todas as

emoccedilotildees (apatheia)

Primeiramente do ponto de vista linguiacutestico eacute necessaacuterio registrar que os

estoicos se referem ao presente tema por meio da palavra grega pathos cuja traduccedilatildeo

varia Long-Sedley verteram o termo por paixatildeo uma expressatildeo que hoje em dia para

a grande maioria das pessoas estranhas agrave sua etimologia jaacute natildeo reteacutem aquela ideia de

passividade derivada de passio uma vez que no uso comum da liacutengua inglesa e da

portuguesa paixatildeo busca designar de modo mais saliente um sentimento arrebatador

muitas vezes de caraacuteter eroacutetico Esta traduccedilatildeo pode se mostrar bastante conveniente ao

reduzir a uma questatildeo etimoloacutegica a disputa teoacuterica entre peripateacuteticos (metriopatheia) e

estoicos (apatheia) Ciente disso Tieleman prefere o termo ldquoafecccedilatildeordquo que natildeo tem os

problemas da atual significaccedilatildeo da palavra paixatildeo e ainda tem a vantagem de respeitar

a ideia de passividade e de um outro importante significado da palavra pathos que eacute a de

doenccedila Segundo defende eacute neste uacuteltimo sentido que em importantes aspectos Crisipo

utiliza o termo104

Neste mesmo sentido Buddensiek tambeacutem prefere o termo

afecccedilatildeo105

Preferimos no entanto utilizar o termo emoccedilatildeo porque concordando com

102

GRAVER M Op cit p 26-27 BRENNAN T Op cit p 86-88 103

ldquoThe Sage we might say knows what he is doing and especially the value of what he is doing while

the non-Sage knows neitherrdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit p 103 104

TIELEMAN T Op cit p 15-16 105

BUDDENSIEK Friedmann Stoa und epikur affect als defekte oder als weltbezug In

LANDWEER Hilge RENZ Ursula (hrsg) Klassische Emotionstheorien Von Platon bis Wittgenstein

BerlinNew York Walter de Gruyter 2008 p 69-93

48

Graver noacutes designariacuteamos com esta palavra os exemplos em que os estoicos utilizam o

termo pathos106

Ademais considerando que este trabalho natildeo trata exclusivamente

sobre a filosofia estoica utilizar o termo emoccedilatildeo se adequa aos propoacutesitos de

harmonizaccedilatildeo linguiacutestica do estudo

Dito isso para os estoicos as emoccedilotildees satildeo consideradas um ldquoimpulso que eacute

excessivo e desobediente aos ditados da razatildeo ou um movimento da alma que eacute

irracional e contraacuterio agrave naturezardquo107

Desta definiccedilatildeo muito se pode extrair

primeiramente as emoccedilotildees satildeo enquadradas como um impulso mas um impulso

qualificado de extravagante e por isso transborda os limites que a razatildeo prescreve

Num segundo momento diz-se que eacute o proacuteprio movimento irracional da alma que eacute

contraacuterio agrave natureza Em suma a referida conceituaccedilatildeo em poucas palavras demonstra

o quanto as emoccedilotildees estatildeo numa posiccedilatildeo antagocircnica aos fins da filosofia eacutetica estoica

porque elas contrariam tudo o que haacute de mais caro nesta escola de pensamento as

emoccedilotildees satildeo excessivas contraacuterias agrave natureza irracionais e desobedientes aos

comandos do logos

Uma singularidade do pensamento estoico que tambeacutem ajuda a compreender

esse posicionamento diz respeito agrave sua concepccedilatildeo de alma Conforme visto

anteriormente Aristoacuteteles concebe a alma dividida numa parte racional e numa parte

natildeo-racional sendo que uma porccedilatildeo desta uacuteltima tem a particularidade de ouvir e

obedecer a razatildeo Assim porque a virtude (excelecircncia) do todo depende da virtude

(excelecircncia) das partes o bom funcionamento da parte natildeo-racional eacute imprescindiacutevel na

eacutetica aristoteacutelica e por isso as emoccedilotildees tem um espaccedilo tatildeo importante e satildeo encaradas

de maneira positiva Ter uma boa disposiccedilatildeo emocional significa ser devidamente

afetado pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias e isso contribui decisivamente

para a aquisiccedilatildeo de uma vida feliz

Eacute bem verdade que as emoccedilotildees tambeacutem tecircm um espaccedilo muito importante na

filosofia estoica mas eacute difiacutecil afirmar que satildeo encaradas de maneira positiva a alma

estoica natildeo eacute dividida em partes nem haacute porccedilatildeo irracional pois ela eacute pura razatildeo Diz-se

entatildeo que ela eacute monoliacutetica sem possibilidade de haver conflito entre as partes ldquoos

estoicos tambeacutem afirmavam em oposiccedilatildeo aos platonistas e aos aristoteacutelicos que os

106

GRAVER M Op cit p 14-15 107

ldquoThey [the Stoics] say that passion is impulse which is excessive and disobedient to the dictates of

reason or a movement of soul which is irrational and contrary to naturerdquo (trad livre) STOBAEUS

2888-906 (SVF 3378 389 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers

p 410

49

homens satildeo racionais no sentido de que satildeo apenas racionaisrdquo108

Dessa forma as

emoccedilotildees tambeacutem se encontram em contrariedade agrave concepccedilatildeo de alma defendida pelos

fundadores estoicos

Os estoicos agrupam as emoccedilotildees em quatro grandes gecircneros dentro dos quais se

acomodam emoccedilotildees especiacuteficas

Desejo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja boa de modo que

devemos persegui-la

Medo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja ruim de modo que

devemos evitaacute-la

Prazer eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute boa de modo que

devemos ficar contentes com isso

Dor eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim de modo que

devemos ficar abatidos com isso109

Em primeiro lugar observa-se que a divisatildeo das emoccedilotildees eacute feita por criteacuterio

temporal e por criteacuterio valorativo o desejo (epithumia) e o medo (phobos) satildeo

direcionados a algo futuro enquanto o prazer (hedone) e a dor (lupe) concernem a algo

que transcorre no momento presente Por sua vez o desejo e o prazer atribuem a um

objeto um valor positivo (bom) enquanto o medo e a dor imputam a algo um valor

negativo (ruim) Em todos os casos estamos diante de uma opiniatildeo isto eacute um

assentimento fraco (reversiacutevel) a uma impressatildeo

Exemplificativamente dentro do gecircnero ldquodesejordquo enquadram-se as seguintes

emoccedilotildees em espeacutecie raiva rancor exasperaccedilatildeo amor eroacutetico saudade acircnsia No

gecircnero ldquomedordquo relutacircncia receio consternaccedilatildeo vergonha supersticcedilatildeo pavor pacircnico

No gecircnero ldquodorrdquo inveja rivalidade ciuacuteme compaixatildeo luto ansiedade preocupaccedilatildeo

anguacutestia tristeza agonia No gecircnero ldquoprazerrdquo schadenfreude encantamento etc110

Ora em vista das definiccedilotildees expostas para os estoicos as emoccedilotildees satildeo impulsos

(os antecedentes mentais da accedilatildeo) e natildeo passam de opiniatildeo isto eacute assentimento ao

falso assentimento fraco (aquele que natildeo sobrevive a questionamento racional) Assim

quem atua guiado pelas emoccedilotildees age mal porque estaraacute sempre incidindo em episoacutedios

108

ldquoThe Stoics also claimed in opposition to Platonists and Aristotelians that humans are rational in the

sense that they are only rationalrdquo (trad livre) BRENNAN Tad The old stoic theory of emotions In

SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy

Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 23 BUDDENSIEK F Op cit p 72-73 109

ldquoDesire is the opinion that some future thing is a good of such a sort that we should reach out for it

Fear is the opinion that some future thing is an evil of such a sort that we should avoid it Pleasure is the

opinion that some present thing is a good of such a sort that we should be elated about it Pain is the

opinion that some present thing is an evil of such a sort that we should be depressed about itrdquo (trad

livre) BRENNAN T Op cit 2005 p 93 110

CICERO Tusculan disputations trad Margaret Graver ChicagoLondon The University of Chicago

Press 2002 (416) p 45

50

de engano em relaccedilatildeo ao mundo arrependendo-se posteriormente do que fez Mas por

que isso ocorre

Segundo Crisipo emoccedilotildees satildeo sobretudo avaliaccedilotildees111

e por assim serem

atribuem um determinado valor a algo quando algueacutem deseja fama beleza riqueza

amor eroacutetico julga que estas coisas satildeo boas e necessaacuterias agrave sua felicidade e age em

direccedilatildeo agrave sua conquista Poreacutem ao assim proceder natildeo faz mais do que contrariar toda

eacutetica estoica porque tudo isso satildeo apenas indiferentes a uacutenica coisa boa eacute a virtude No

medo avaliamos equivocadamente a realidade entendendo que algo eacute ruim quando na

verdade o uacutenico mal eacute o viacutecio E ainda que algueacutem avalie algo adequadamente

atribuindo o valor a algo que verdadeiramente lhe corresponda as emoccedilotildees continuam

sendo irracionais porque o assentimento concedido eacute fraco e por isso vacilante

possibilitando que entremos em contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves nossas crenccedilas e condutas112

Enfim as emoccedilotildees satildeo inconsistentes e quem age impulsionado por elas eacute incapaz de

perceber as coisas como satildeo porque se encontra num estado de cegueira conforme

resume Crisipo

A raiva [orgecirc] eacute cega frequentemente impede que vejamos coisas que

satildeo oacutebvias e frequentemente se coloca no caminho de coisas que [jaacute]

estatildeo sendo compreendidasporque as emoccedilotildees tatildeo logo comecem a

atuar expulsam o raciociacutenio e as evidecircncias em contraacuterio e nos

empurram violentamente em direccedilatildeo a accedilotildees contraacuterias agrave razatildeo113

Essa explanaccedilatildeo nos leva a indagar o que efetivamente sentiria o saacutebio estoico

porque todas as emoccedilotildees acima definidas estatildeo em total contrariedade com as

caracteriacutesticas de sua figura Assim para natildeo tornaacute-lo um ser apaacutetico e insensiacutevel foi

construiacutedo um conjunto de sentimentos compatiacutevel com as qualidades do saacutebio A esta

ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees deu-se o nome de eupatheiai (eupatheia no singular)

que pode ser traduzido por ldquoboas emoccedilotildeesrdquo ou ldquosentimentos apropriadosrdquo mas que

Ciacutecero preferiu utilizar o termo ldquoconsistecircnciardquo (constatiae) Graver registra que isso

tanto pode ser uma traduccedilatildeo criativa do autor romano quanto uma terminologia

alternativa perdida do grego De toda forma consistecircncia acaba por descrever as

propriedades destes sentimentos do saacutebio que satildeo experimentados de forma racional

111

LAEacuteRCIO D Op cit (VII111) p 217 112

BRENNAN T Op cit 2005 p 96 113

ldquoAnger [orgecirc] is blind it often prevents our seeing things that are obvious and it often gets in the way

of things which are ltalreadygt being comprehended For the passions once they have started drive out

reasoning and contrary evidence and push forward violently towards actions contrary to reasonrdquo (trad

livre) PLUTARCO De virtute morali 10 (Mor 450c) apud HARRIS William V Restraining rage the

ideology of anger control in classical antiquity CambridgeMassachusetts Harvard University Press

2001 p 370

51

com prudecircncia sem engano em relaccedilatildeo agrave realidade e que atribuem os predicados de

bom e ruim agraves uacutenicas coisas que satildeo de fato boas e ruins (virtudes e viacutecios)

Assim o saacutebio natildeo sente medo mas cautela que eacute o conhecimento de um mal

futuro de modo a evitaacute-lo Natildeo haacute prazer no saacutebio mas alegria que eacute o conhecimento de

que alguma coisa presente eacute boa de sorte que se deve ficar contente com isso Ele natildeo

experimenta desejo mas vontade ou voliccedilatildeo (boulesis) que eacute o conhecimento de que

alguma coisa futura eacute boa de modo que se deve buscaacute-la114

Quanto agraves emoccedilotildees em

espeacutecie sobreviveram poucos exemplos a reverecircncia e a modeacutestia subordinam-se agrave

cautela Na alegria encontram-se o enlevo o contentamento e a equanimidade e por

fim na vontade benevolecircncia respeito amizade e afetuosidade Todavia em relaccedilatildeo agrave

dor (opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim) percebe-se que natildeo existe nenhum

eupatheia correspondente e a justificativa para isso reside no fato de que como a uacutenica

coisa ruim eacute o viacutecio e o saacutebio se livrou de todos os viacutecios ele simplesmente natildeo sente

que alguma ruim se passa com ele Assim diante da humilhaccedilatildeo da miseacuteria da fome

da doenccedila o saacutebio natildeo eacute tomado por emoccedilotildees dolorosas muito menos se torna um

sujeito infeliz porque ele adquiriu a autossuficiecircncia e sabe que tudo isso natildeo passa de

indiferentes

Frise-se que todos esses sentimentos estatildeo de acordo com a natureza e desde

que o saacutebio eacute o uacutenico que assente de modo forte a impressotildees cognitivas nunca se

arrepende posteriormente ao agir guiado por eupatheiai Ainda que algo

ordinariamente assustador se passe a exemplo de um suacutebito barulho amedrontador a

alma do saacutebio apenas se contrai leve e rapidamente por efeito de um movimento

involuntaacuterio mas muito logo percebe que nada tem para assentir nestas impressotildees e

por isso nenhum medo lhe transcorre porque ele natildeo experimenta as emoccedilotildees do

homem inferior

Assim tendo sido exposta a doutrina estoica das emoccedilotildees e percebido que o

saacutebio estoico atinge um estado que ao se livrar de toda pathecirc libertou-se do falso e

passou a atribuir valor agrave uacutenica coisa que realmente merece ser estimada (a virtude)

parte-se agora para compreender em que medida esse posicionamento influencia a

retoacuterica estoica considerando que as emoccedilotildees tradicionalmente participavam de

maneira bastante marcante da praacutetica do orador

114

BRENNAN T Op cit 2005 p 98 CIacuteCERO Op cit 2002 (412-14) p 44 GRAVER M Op

cit 2007 p 51-53 LAEacuteRCIO D Op cit VII114-117 p 221

52

Em anaacutelise da obra aristoteacutelica observou-se que embora inicialmente criacutetico de

uma retoacuterica exclusivamente centrada nas emoccedilotildees e que desviasse do assunto objeto de

controveacutersia o Estagirita muda de entendimento e faz uma explanaccedilatildeo detalhada das

emoccedilotildees e prepara satisfatoriamente o orador para utilizaacute-las em sua praxis Por sua

vez nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco as emoccedilotildees atuam destacadamente na

construccedilatildeo de uma vida virtuosa e sem elas eacute impossiacutevel tomar boas decisotildees na vida

comum Embora seja aceitaacutevel distinguir entre emoccedilotildees adequadas e inadequadas de

acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas tal classificaccedilatildeo natildeo invade o campo

da retoacuterica aristoteacutelica que se constitui num domiacutenio proacuteprio jaacute que o orador eacute

instruiacutedo para utilizar no discurso inclusive as emoccedilotildees perversas

No que concerne agrave retoacuterica estoica e comparativamente agrave obra estudada de

Aristoacuteteles dispotildee-se nitidamente de bem menos material para consulta Laeacutercio

aponta que tanto Zenatildeo quanto Crisipo escreveram manuais de retoacuterica poreacutem nada foi

preservado115

Assim o que de fato temos satildeo comentaacuterios especialmente em relaccedilatildeo

ao desempenho de oradores estoicos romanos que ajudam a construir apenas em linhas

bem gerais o que teria sido a teoria retoacuterica defendida pelos estoicos116

Primeiramente por Laeacutercio sabe-se que a retoacuterica eacute definida pelos estoicos

como a ciecircncia de bem falar numa narrativa contiacutenua e a dialeacutetica como a ciecircncia de

falar corretamente por meio de perguntas e respostas sendo que ambas compotildeem a

parte loacutegica da exposiccedilatildeo filosoacutefica A dialeacutetica eacute considerada uma virtude e por isso o

saacutebio que possui todas as virtudes tambeacutem eacute um mestre na dialeacutetica que o permite

diferenciar o verdadeiro do falso a perceber o que eacute meramente plausiacutevel e ambiacuteguo de

modo a nunca cair em truques argumentativos117

Zenatildeo informa Ciacutecero utiliza uma metaacutefora para explicar a diferenccedila entre a

dialeacutetica e a retoacuterica a dialeacutetica seria representada com uma matildeo de punhos cerrados

uma vez que o seu estilo eacute compacto Por sua vez a retoacuterica atraveacutes da palma da matildeo

aberta dado o estilo expansivo do discurso dos oradores Ele defendia tambeacutem que a

retoacuterica natildeo era algo exclusivo para oradores mas tambeacutem pertence ao domiacutenio dos

115

LAEacuteRCIO D Op cit (VII 4-5) p 115 201-202 e 317 116

ATHERTON Catherine Hand over fist the failure of stoic rhetoric In Classical quarterly 38

1988 p 393 117

LAEacuteRCIO D Op cit p 42 e 47-48

53

filoacutesofos118

Sobre este ponto Ciacutecero interessantemente relata que o estoicismo eacute a

uacutenica escola que considera a retoacuterica uma virtude e uma sabedoria119

E se de fato eacute uma virtude entatildeo a retoacuterica estoica por igual estaacute sob os

cuidados do saacutebio e em assim sendo eacute de se esperar que ela apresente pelo menos

algumas peculiaridades A primeira delas jaacute se pode antever pela proacutepria definiccedilatildeo

apresentada anteriormente por Laeacutercio natildeo encontramos referecircncia a qualquer

finalidade persuasiva em sua conceituaccedilatildeo como encontramos em Platatildeo Aristoacuteteles e

outros autores de modo que o orador estoico natildeo discursa para convencer mas para

bem falar no sentido de falar corretamente

Ciacutecero eacute enfaacutetico ao detalhar uma seacuterie de dificuldades nesta retoacuterica O primeiro

problema diz respeito agrave transferecircncia do modelo da dialeacutetica para a retoacuterica Nesse

sentido Brutus assevera ldquo[] praticamente todos os adeptos da escola estoica satildeo

muito haacutebeis em argumentos precisos trabalham por regras e sistema e satildeo bons

arquitetos no uso das palavras mas ao levaacute-los da discussatildeo para a oratoacuteria percebe-se

o quatildeo satildeo pobres e sem recursosrdquo120

Concordando com a afirmaccedilatildeo Ciacutecero diz que na

verdade a atenccedilatildeo dos estoicos estaacute absorvida na dialeacutetica e por isso utilizam um estilo

que eacute muito compacto e discursivo para o emprego no foacuterum judiciaacuterio ou na

assembleia popular121

Tambeacutem eacute na dialeacutetica e natildeo na retoacuterica que se concentra o ensino sobre as cinco

virtudes de estilo hellenismus que consiste no uso de uma linguagem sem erro

gramatical e livre de vulgaridades clareza que eacute o uso de uma linguagem apresentada

de maneira inteligiacutevel concisatildeo ou brevidade que eacute o emprego de palavras natildeo mais do

que o estritamente necessaacuterio para apresentar um tema adequaccedilatildeo o uso de um estilo

de linguagem apropriado ao tema distinccedilatildeo que consiste em evitar o coloquialismo122

Ao utilizar todas essas recomendaccedilotildees no terreno da oratoacuteria Ciacutecero diz que isso resulta

num estilo sem fluecircncia sem vida magro compacto e insignificante ldquose algum homem

118

CICERO Op cit 2004 II17 p 32 119

CICERO On the orator book III trad H Rackham CambridgeMassachusetts Harvard University

Press 1942 (III 65) p66 120

ldquo[] pratically all adherents of the Stoic school are very able in precise argument they work by rule

and system and are fairly architects in the use of the words but transfer them from discussion to

oratorical presentation and they are found poor and unresourcefulrdquo (trad livre) CICERO Op cit

1962 (118) p 107 121

CICERO Op cit 1962 (119-120) p 107-108 122

LAEacuteRCIO D Op cit (VII-59) p 167-168 ATHERTON C Op cit p 396

54

aconselhar esse estilo seria apenas no sentido de que ele eacute inadequado para um

oradorrdquo123

Todavia eacute no campo das emoccedilotildees que a eacutetica estoica tem sua influecircncia decisiva

para a retoacuterica Uma vez que a figura normativa do saacutebio se livrou de toda pathe a

retoacuterica estoica natildeo faz uso de emoccedilotildees tradicionalmente tatildeo importantes para o orador

tais como o medo a compaixatildeo a ira ou a indignaccedilatildeo porque tudo isso satildeo impulsos

excessivos irracionais contraacuterios agrave natureza sendo errado corromper a cogniccedilatildeo dos

destinataacuterios do discurso por meio de tais artifiacutecios Assim ldquoo assentimento do puacuteblico

natildeo pode ser conquistado pelo apelo agrave compaixatildeo ou agrave admiraccedilatildeo ou despertando a sua

ira ou jogando com o seu esnobismo estupidez ou vulgaridaderdquo124

Eacute certo que o saacutebio

experimenta alguns bons sentimentos (eupatheiai) mas ainda que permitido o seu uso

no discurso o seu efeito praacutetico eacute nulo

Embora expressamente nomeada como ldquoretoacutericardquo pelos estoicos eacute difiacutecil

encaixar esse modelo discursivo dentro do quadro de referecircncias que entendemos por

retoacuterica isto eacute uma disciplina preocupada em fornecer os instrumentos necessaacuterios agrave

persuasatildeo pelo discurso Atherton nesse sentido chega agrave conclusatildeo de que ldquo[] natildeo

existe tal coisa como uma lsquoretoacuterica estoicarsquo e discuti-la natildeo eacute possiacutevel natildeo (a desculpa

usual) porque inexiste evidecircncia mas porque natildeo existe nada para falar a seu

respeitordquo125

Por isso ao comentar sobre os manuais de retoacuterica de Crisipo e de

Cleantes Ciacutecero diz que eles satildeo muito bons para quem quisesse ficar calado126

Todavia a despeito do evidente paradoxo de ensinar uma retoacuterica que natildeo tinha

o miacutenimo interesse em persuadir existia de fato uma retoacuterica estoica e ela era objeto

de ensino e de praacutetica E tanto era levada a seacuterio que existiam oradores romanos que se

guiavam por este meacutetodo Ciacutecero cita os nomes de Tuberius Fannius Rutilius e Cato

Dentre estes o uacutenico estoico que tinha perfeita eloquecircncia (summam eloquentiam) era

Cato mas a justificativa para isto eacute bem simples Cato aprendeu o que tinha de bom

para aprender com a filosofia estoica mas a retoacuterica mesmo ele estudou e praticou com

123

ldquoif any man commends this style it will only be with the qualification that it is unsuitable to an oratorrdquo

(trad livre) CICERO On the orator book II trad E W Sutton CambridgeMassachusetts Harvard

University Press 1942 (159) p 313 124

ldquoan audiencersquos assent cannot be secured by winning its pity or admiration or by arousing its anger or

by playing on its snobbery or stupidity or vulgarityrdquo (trad livre) ATHERTON C Op cit p 411

Nesse mesmo sentido cf KONSTAN D Op cit p 421 125

ldquo[hellip] there is no such thing as lsquoStoic rhetoricrsquo and discussing it is not possible not (the usual excuse)

because there is no evidence but because there is nothing to talk aboutrdquo ATHERTON C Op cit p

426 126

CICERO Op cit 2004 (IV-7) p 91

55

os mestres do discurso Publius Rutilius Rufus num outro extremo entrou para histoacuteria

como um exemplo de fracasso desse meacutetodo ao se defender no estilo estoico (triste

seco e severo) de uma injusta acusaccedilatildeo de extorsatildeo se recusou a utilizar de eloquecircncia

ou fazer qualquer apelo emotivo e acabou condenado assim como Soacutecrates127

Uma vez finalizada a exposiccedilatildeo a respeito da eacutetica e da retoacuterica estoica

finalmente temos em matildeo o posicionamento a respeito das emoccedilotildees de duas respeitadas

fontes da Antiguidade

De um lado e em resumo temos a abordagem de Aristoacuteteles que tanto em sua

eacutetica quanto na sua retoacuterica esboccedila uma visatildeo positiva a respeito do tema Haacute uma forte

articulaccedilatildeo do Estagirita no sentido de destacar a relevacircncia das emoccedilotildees nestes dois

campos No fim do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco destaca-se que a virtude da totalidade

da alma eacute dependente da virtude de suas partes (uma racional e outra natildeo-racional) No

Livro II explana-se de que modo a parte natildeo-racional iraacute desempenhar bem a sua

funccedilatildeo Assim enfatiza-se o quatildeo importante eacute ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que

significa ser afetado adequadamente pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias

Desse modo as emoccedilotildees satildeo sumamente relevantes para uma boa decisatildeo eacutetica pois

para o agente moral aristoteacutelico eacute impossiacutevel deliberar bem apenas com racionalidade

strictu sensu Por outro lado conforme jaacute frisamos a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees

adequadas e inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas

realizada no Livro II da Eacutetica a Nicocircmaco natildeo invade o domiacutenio da retoacuterica muito

menos inviabiliza a tarefa persuasiva do orador

De seu turno o posicionamento estoico a respeito das emoccedilotildees necessita ser lido

de acordo com a sua peculiar sistemaacutetica filosoacutefica o fim do progresso para os estoicos

seria alcanccedilar a compreensatildeo correta do mundo128

e atingir uma felicidade

autossuficiente As emoccedilotildees portanto estatildeo na contramatildeo de tal propoacutesito porque por

meio delas sempre avaliamos equivocadamente a realidade atribuiacutemos valores a bens a

que natildeo deveriacuteamos dar a miacutenima importacircncia agimos sobretudo mal pois natildeo

percebemos as coisas como elas realmente satildeo No entanto todo esse sistema filosoacutefico

invadiu o domiacutenio da retoacuterica originando um meacutetodo no miacutenimo sui generis porque

estava em total contraposiccedilatildeo com os fins de um discurso persuasivo A retoacuterica estoica

127

CICERO Op cit 1942 (I-229-230) CICERO Op cit 1962 (113-116) p 103-105 128

ldquoFor the founding Stoics the endpoint of progress was simply that one should come to understand the

world correctlyrdquo GRAVER M Op cit p 210

56

natildeo emprega emoccedilotildees natildeo utiliza ornamentos valoriza o miacutenimo de palavras possiacutevel e

coloca secamente os fatos para serem assentidos pelo puacuteblico

Por uacuteltimo independentemente das peculiaridades de cada sistema filosoacutefico

exposto uma coisa havia em comum entre Aristoteacuteles e os estoicos as emoccedilotildees eram

levadas extremamente a seacuterio e ambos natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar

das emoccedilotildees Mesmo para o estoicismo que se mostra uma escola tatildeo sistemaacutetica tatildeo

loacutegica que valoriza tanto a coerecircncia e a consistecircncia racional natildeo se pode negar que as

emoccedilotildees (ainda que hostilmente) entrem de maneira destacada em seu sistema

filosoacutefico Conforme destaca Sorabji os estoicos realizaram um debate de alto niacutevel

sobre o tema e ateacute hoje satildeo lembrados por isso129

129

SORABJI Richard Chrysippus ndash Posidonius ndash Seneca a high-level debate on emotion In

SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy

Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 149

57

2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A

INTERDISCIPLINARIDADE

21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo

No Capiacutetulo anterior iniciamos a exposiccedilatildeo deste trabalho oferecendo um

panorama sobre as origens da retoacuterica O objetivo da contextualizaccedilatildeo foi evidenciar

que o desenvolvimento do estudo das emoccedilotildees no discurso soacute foi possiacutevel dentro de

uma atmosfera que valorizava o debate e a fala persuasiva em puacuteblico Portanto foi

neste ambiente Grego livre e altamente retoacuterico que se observou a necessidade de se

refletir a respeito da dimensatildeo emotiva do discurso porque se chegou agrave conclusatildeo de

que a formaccedilatildeo de um juiacutezo acerca de um determinado assunto eacute dependente do estado

emocional do sujeito

Jaacute este Capiacutetulo tem outro propoacutesito pois num vieacutes mais praacutetico objetiva

investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash

MTA130

que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de

Toulmin e de Perelman-Tyteca ambas datadas de 1958 (respectivamente Os Usos do

Argumento e o Tratado da Argumentaccedilatildeo ou a Nova Retoacuterica) Aleacutem de averiguar a

relevacircncia das emoccedilotildees na MTA tambeacutem procuraremos criteacuterios de anaacutelise e de

julgamento da dimensatildeo emotiva do discurso que possam ser uacuteteis para o Capiacutetulo III

momento em que iremos realizar a anaacutelise e a avaliaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo de decisotildees

do Supremo Tribunal Federal - STF

Assim tal como fizemos no Capiacutetulo anterior tentaremos fornecer alguma

contextualizaccedilatildeo ao aparecimento da MTA pois como natildeo existe conhecimento

humano a-histoacuterico toda novidade do pensamento vem comprometida com os seus

problemas de eacutepoca

Para tanto a nossa intenccedilatildeo consiste em perquirir que tipo de discurso

caracterizou o contexto poliacutetico europeu que precedeu o surgimento da MTA A poliacutetica

sempre seraacute uma influecircncia importante no que diz respeito a uma teoria que se proponha

agrave anaacutelise e agrave avaliaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo E isso natildeo apenas porque a retoacuterica que eacute o

seu antecedente teoacuterico considerava desde o iniacutecio o discurso poliacutetico como um dos

130

Utilizamos a expressatildeo ldquoModerna Teoria da Argumentaccedilatildeordquo para contrastar com a Teoria da

Argumentaccedilatildeo aristoteacutelica aderindo agrave terminologia de Cristof Rapp e Tim Wagner RAPP Cristof

WAGNER Tim On some aristotelian sources of modern argumentation theory In Argumentation

Journal vol 27 Issue 1 2013 p 7-30

58

seus gecircneros por excelecircncia de discurso mas porque o discurso da esfera poliacutetica por

ter a qualidade de atingir a todos indistintamente acaba por ser um ponto comum de

reflexatildeo sobre a forma de teorizar a argumentaccedilatildeo

Assim e considerando tal finalidade eacute difiacutecil escolher outro evento poliacutetico que

natildeo os movimentos totalitaacuterios para falar neste toacutepico E desde jaacute sobressai uma

especiacutefica forma de comunicaccedilatildeo atraveacutes do qual tais movimentos estabeleciam contato

com a massa a propaganda

Embora hoje a palavra ldquopropagandardquo seja frequentemente associada a uma

informaccedilatildeo de conteuacutedo enganoso Kallis lembra que no iniacutecio do seacuteculo XX ela natildeo

desfrutava de tatildeo maacute-fama pois era empregada de modo mais isento a fim de

descrever um modo de gestatildeo da informaccedilatildeo com o objetivo de comunicar a um grande

nuacutemero de indiviacuteduos e assim obter uma especiacutefica resposta destes Dessa forma a

propaganda como espeacutecie de comunicaccedilatildeo e de persuasatildeo caracteriacutestica da

modernidade aparece com o objetivo de (i) suprir a enorme demanda de informaccedilatildeo e

de formaccedilatildeo de opiniatildeo da crescente esfera puacuteblica (ii) facilitar atraveacutes de variados

meios a absorccedilatildeo de tais informaccedilotildees131

Poreacutem para aleacutem da simples difusatildeo de informaccedilatildeo a propaganda sendo

absorvida na engrenagem do Estado aparece com outros objetivos tais como a

integraccedilatildeo a orientaccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo a continuidade a diversatildeo Diante de

sociedades saturadas com tanta informaccedilatildeo a propaganda possibilita a criaccedilatildeo de um

ambiente comunicativo comum carregado de siacutembolos significados e desejos

compartilhados Ela tambeacutem orienta e mobiliza o indiviacuteduo em direccedilatildeo a determinados

comportamentos e accedilotildees traz uma narrativa que promove uma continuidade no tempo

conectando passado presente e futuro por fim tem a capacidade de promover diversatildeo

e relaxamento evitando o cansaccedilo132

Todos estes objetivos satildeo de suma importacircncia no contexto de naccedilotildees em guerra

e eacute em tal conjuntura histoacuterica que o debate acerca de uma abordagem sistemaacutetica sobre

a propaganda se desenvolve conforme explana Kallis

Natildeo eacute coincidecircncia que o debate sobre a formulaccedilatildeo de uma

abordagem sistemaacutetica para a lsquopropagandarsquo emergiu no contexto da

Primeira Guerra Mundial na Alemanha e em outros lugares Numa

eacutepoca de completa mobilizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo de um objetivo

nacional (tal como a vitoacuteria no confronto militar) a necessidade por

131

KALLIS Aristotle A Nazi propaganda and the second world war New York Palgrave

Macmillan 2005 p 1 132

Id ibid p 2

59

estrateacutegias de informaccedilatildeo metoacutedicas e eficientes que viessem reforccedilar

a moral do front nacional e mobilizassem toda a sociedade era

particularmente destacada133

Ellul ressalta que para atingir seus propoacutesitos comunicativos e ser de fato

efetiva a propaganda precisa ser total isto eacute ela necessita utilizar todas as miacutedias

disponiacuteveis no momento (televisatildeo raacutedio filme jornal revista internet etc) Uma vez

que cada tecnologia por suas proacuteprias caracteriacutesticas tem uma esfera de alcance

limitada haacute necessidade de que uma miacutedia complemente a outra de modo a realizar

uma completa dominaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo134

Em relaccedilatildeo aos efeitos sobre os seus destinataacuterios a propaganda eacute acusada de

irrestrita manipulaccedilatildeo Natildeo haacute mais pensamento e accedilatildeo orientados por uma ideologia

espontacircnea Tudo resta condicionado pela trilha deliberadamente condutora da

propaganda Atraveacutes da criaccedilatildeo de estereoacutetipos enfraquece-se a capacidade de criacutetica e

de reflexatildeo da populaccedilatildeo Os detalhes e as contradiccedilotildees de opiniotildees individuais satildeo

eliminados a fim de que tudo reste homogeneizado Quanto mais potente a propaganda

mais fraco eacute o dissenso jaacute que o pensamento puacuteblico se esgota em raciociacutenios

simploacuterios maniqueiacutestas sem qualquer complexidade135

Ademais apoacutes a ingerecircncia da propaganda o que antes eram apenas sentimentos

sociais vagos e dispersos transformam-se em ideias delineadas Ellul aponta um dos

grandes trunfos para a propaganda atingir tamanho sucesso persuasivo o uso das

emoccedilotildees ldquoIsto eacute ainda mais notaacutevel porque a propaganda como vimos age muito mais

atraveacutes de choque emocional do que por convicccedilatildeo racionalrdquo136

Nada eacute mais interessante poreacutem do que ler os proacuteprios mentores da propaganda

discorrerem a respeito do tema a fim de realmente compreender de que modo eles

enxergavam o papel da propaganda no seu projeto poliacutetico e qual valor atribuiacuteam agraves

emoccedilotildees no intento persuasivo A este respeito no arquivo alematildeo de propaganda satildeo

valiosas as informaccedilotildees contidas no perioacutedico mensal do partido nazista Unser Wille

133

ldquoit is no coincidence that the debate about the formulation of a systematic approach to lsquopropagandarsquo

emerged in the context of the First World War in Germany and elsewhere At a time of full mobilisation

for the attainment of a national goal (such as victory in the military confrontation) the need for

methodical and efficient information strategies that would bolster the morale of the home front and

mobilise society was particularly highlightedrdquo (trad livre) Id ibid p 2 134

ELLUL Jacques Propaganda the formation of menrsquos attitudes trad Konrad Kellen e Jean Lerner

New York Vintage Book 1973 p 9 135

Id ibid p 201-206 136

ldquoThis is all the more remarkable because propaganda as we have seen acts much more through

emotional shock than through reasoned convictionrdquo (trad livre) Id ibid p 204

60

und Weg (Nosso Desejo e Caminho) publicado entre 1931 a 1941 e direcionado a

instruir os seus propagandistas

No perioacutedico de inauguraccedilatildeo em 1931 Goebbels foi bastante direto em afirmar

a suma importacircncia da propaganda no afatilde de alcanccedilar o almejado poder poliacutetico A

propaganda nacional socialista teria a missatildeo de transformar o caraacuteter da populaccedilatildeo e

para tanto precisaria traduzir numa linguagem clara e acessiacutevel toda a teoria nazista

Com a ajuda indispensaacutevel da engrenagem propagandiacutestica o partido ganharia novos

membros e eleitores e convenceria a todos a respeito do acerto de suas ideias

Assim a propaganda nacional-socialista eacute o aspecto mais importante

da nossa atividade poliacutetica Ela estaacute no primeiro plano dos nossos

objetivos praacuteticos Sem ela todo o nosso conhecimento seria inuacutetil

sem efeito

[]

A propaganda nacional-socialista serve para educar o povo Sua tarefa

natildeo eacute apenas ganhaacute-los para as tarefas de hoje mas ajudar na

transformaccedilatildeo de caraacuteter das grandes massas Estamos convencidos de

que uma nova poliacutetica na Alemanha soacute eacute possiacutevel apoacutes uma completa

transformaccedilatildeo do nosso caraacuteter nacional depois de toda uma nova

maneira nacional de pensar137

Em 1934 num artigo intitulado Politische Propaganda (Propaganda Poliacutetica)

Schulze-Wechsungen novamente enfatizou o papel da propaganda nacional socialista no

intuito de conquistar a populaccedilatildeo alematilde Para isso exalta-se o poder que a propaganda

possui de trabalhar as emoccedilotildees do povo pois sem isso restaria impossiacutevel atingir

convincentemente as massas

Poucas pessoas satildeo capazes de trazer o coraccedilatildeo e a mente em pleno

acordo A propaganda frequentemente tem particular importacircncia na

medida em que fala para as emoccedilotildees em vez de para o puro intelecto

O indiviacuteduo bem como as massas estatildeo sujeitos a lsquoatitudesrsquo suas

emoccedilotildees determinam sua condiccedilatildeo O poliacutetico natildeo pode friamente

ignorar essas emoccedilotildees ele deve reconhecer e compreendecirc-las se

deseja escolher o que eacute adequado da propaganda para atingir seus

objetivos138

137

ldquoThus National Socialist propaganda is the most important aspect of our political activity It is in the

foreground of our practical goals Without it all our knowledge would be fruitless without effect

[hellip]

National Socialist propaganda serves to educate the people Its task is not only to win them for the tasks

of today but to assist in the transformation of the character of the broad masses We are convinced that a

new politics in Germany is possible only after a complete transformation of our national character after

an entirely new national way of thinkingrdquo (trad livre) GOEBBELS Joseph Will and way In Wille und

Weg vol 1 1931 p 2-5 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-

archivewillehtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 138

ldquoFew people are able to bring heart and mind into full agreement Propaganda often has particular

importance in that it speaks to the emotions rather than to pure understanding The individual as well as

the masses are subject to lsquoattitudesrsquo their emotions determine their condition The politician may not

coldly ignore these emotions he must recognize and understand them if he is to choose the proper of

propaganda to reach his goalsrdquo (trad Livre) SCHULZE-WECHSUNGEN Politische propaganda In

61

Poreacutem eacute num artigo de tiacutetulo bastante sugestivo ldquoCoraccedilatildeo ou Razatildeordquo de 1937

direcionado para os oradores do partido que se discute espirituosamente qual eacute a

melhor forma de obter adesatildeo das pessoas que vatildeo aos encontros do partido Apoacutes

alguma explanaccedilatildeo realiza-se de iniacutecio uma forte criacutetica a certos oradores que buscam

apresentar as ideias do nacional-socialismo num estilo matemaacutetico por meio de

argumentos precisos de estatiacutestica cheios de detalhes tal como os oradores estoicos

talvez fariam ldquoexistem oradores que investigam e esculpem o seu assunto com exatidatildeo

quase cientiacutefica e esquecem totalmente que eles deveriam estar pregando uma visatildeo de

mundordquo139

Assim lembra-se que caso os primeiros oradores do partido nazista buscassem

novos adeptos por meio de um discurso cientiacutefico matemaacutetico cheios de detalhes eles

ainda estariam tentando conquistar o poder Portanto um discurso racional seria a pior

das opccedilotildees para os propoacutesitos do partido

Desse modo a soluccedilatildeo parece bastante evidente o discurso precisaria sair do

coraccedilatildeo do orador para o coraccedilatildeo dos seus destinataacuterios Em outras palavras caso

pretenda sucesso a comunicaccedilatildeo precisaria ser emotiva porque o ecircxito da fundaccedilatildeo do

partido assim como o caminho ateacute a conquista do poder ocorreu desta maneira O

convencimento do povo alematildeo natildeo poderia ser feito de modo racional

O orador e ele era a forccedila do corpo de oradores do nacional

socialismo natildeo falou para a razatildeo mas para o coraccedilatildeo Ele falou de

seu coraccedilatildeo para o coraccedilatildeo do seu ouvinte E tatildeo melhor ele

compreendeu como executar este apelo para o coraccedilatildeo tatildeo melhor ele

explorou isso e tatildeo mais receptivo foi o puacuteblico agrave sua mensagem

Naquele tempo algueacutem natildeo poderia completamente persuadir o povo

alematildeo pelo argumento racional as coisas funcionaram mal para os

partidos que tentaram essa abordagem As pessoas foram conquistadas

pelo homem que atingiu a corda que os outros tinham ignorado ndash as

sensaccedilotildees o sentimento ou como se queira chamaacute-lo o coraccedilatildeo140

Unser wille und weg vol 4 1934 p 323-332 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-

propaganda-archivepolprophtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 139

ldquoThere are speakers who investigate and carve up their subject with almost scientific exactitude and

utterly forget that they are supposed to be preaching a worldviewrdquo (trad livre) RINGLER Hugo Heart

or Reason what we donrsquot want from our speakers In Unser wille und weg vol 7 1937 p 245-249

Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-archiveringlerhtm Acesso em 11 de

janeiro de 2015 140

ldquoThe speaker and he was the strength of the National Socialist Speakerrsquos Corps spoke not to the

understanding but to the heart He spoke out of his heart into the heart of his listener And the better he

understood how to execute this appeal to the heart the more willingly he exploited it and the more

receptive was the audience to his message One could not at all at that time persuade the German people

by rational argument things worked out badly for parties that tried that approach The people were won

by the man who struck the chord that others had ignored mdash the feelings the sentiment or as one wants to

62

Diante de tudo o quanto foi aqui exposto se pudermos eleger algo traumaacutetico

com o qual a MTA teve que lidar jaacute no seu nascimento natildeo poderia haver melhor

candidato do que todo esse modelo de propaganda defendido pelos movimentos

totalitaacuterios e especialmente todo o forte apelo emotivo envolvido em seu discurso

Plantin baseado na classificaccedilatildeo encontrada na obra de Tchakhotine (ldquoa

violaccedilatildeo das massas pela propaganda poliacuteticardquo) lembra que a propaganda dos regimes

totalitaacuterios eacute considerada uma ldquosensopropagandardquo pois se caracteriza pelo apelo aos

sentimentos irracionais do indiviacuteduo Em contraposiccedilatildeo alega a existecircncia de uma

ldquoratiopropagandardquo isto eacute uma propaganda baseada na razatildeo141

Portanto eacute neste contexto pela busca de uma ldquoratiopropagandardquo e de um

repensar sobre o logos que os estudos da argumentaccedilatildeo reaparecem com o preciso fim

de rechaccedilar o modelo de discurso totalitaacuterio fundado em emoccedilotildees e possibilitar o

surgimento de um padratildeo de discurso racional que viabilizasse a democracia142

22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as

emoccedilotildees no discurso

Neste toacutepico iniciando efetivamente a busca por criteacuterios para anaacutelise e

avaliaccedilatildeo do discurso emotivo a ser realizado no Capiacutetulo III intencionamos realizar a

investigaccedilatildeo da importacircncia das emoccedilotildees para Viehweg Toulmin e Perelman-Tyteca

A nossa escolha por tais autores justifica-se por razotildees evidentes ao mesmo

tempo em que satildeo os precursores contemporacircneos de toda uma geraccedilatildeo de estudiosos da

argumentaccedilatildeo e da retoacuterica guardando por isso uma proeminente posiccedilatildeo simboacutelica

em qualquer estudo sobre o assunto tais autores chegaram a elaborar cada qual uma

abordagem teoacuterica proacutepria

Ressalte-se que o fato de termos no Capiacutetulo I investigado a importacircncia das

emoccedilotildees na retoacuterica aristoteacutelica nos coloca agora num local privilegiado Isso porque

natildeo apenas jaacute sabemos nesta altura do trabalho como foi elaborada teoricamente a

primeira abordagem emotiva do discurso em nosso pensamento ocidental mas tambeacutem

call it the heartrdquo (trad livre) Id ibid Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-

archiveringlerhtm Acesso em 11 de janeiro de 2015 141

PLANTIN Christian A argumentaccedilatildeo histoacuteria teorias perspectivas trad Marcos Marcionilo Satildeo

Paulo Paraacutebola Editorial 2013 p 20-21 142

Id ibid p 21

63

temos em matildeo um referencial fundamental para prosseguir nesta obra uma vez que

Aristoacuteteles foi o ponto de partida para a MTA

Isso natildeo significa dizer ressalta Rapp-Wagner que todos os teoacutericos da MTA

satildeo em um ou em outro sentido aristoteacutelicos mas que eles foram significativamente

influenciados pela teoria aristoteacutelica da argumentaccedilatildeo143

Em relaccedilatildeo a Toulmin e Perelman-Tyteca destaca-se que ldquoo programa que eacute

realizado no Usos do Argumento e na Nova Retoacuterica elabora algo como uma mistura da

Toacutepica e da Retoacuterica de Aristoacuteteles []rdquo144

Assim enquanto o esquema argumentativo

de Toulmin estaacute mais proacuteximo da Toacutepica o de Perelman-Tyteca estaacute da Retoacuterica Desse

modo a pergunta que fazemos eacute a seguinte teriam estes autores sido influenciados

tambeacutem pela abordagem aristoteacutelica das emoccedilotildees

Antes de analisar os chamados ldquopais fundadoresrdquo da Moderna Teoria da

Argumentaccedilatildeo (Toulmin e Perelman-Tyteca) conveacutem examinar em primeiro lugar o

pensamento de Viehweg que se natildeo eacute costumeiramente chamado de um fundador da

MTA pode-se dizer que foi um dos importantes precursores de tal movimento e

justifica uma anaacutelise neste mesmo toacutepico

Em 1953 Viehweg lanccedila a primeira ediccedilatildeo da sua obra Toacutepica e Jurisprudecircncia

que se dedica a investigar a relaccedilatildeo entre o saber juriacutedico e a retoacuterica Partindo do

trabalho de Vico ldquoDe nostre temporis studiorum rationerdquo que realiza uma comparaccedilatildeo

entre o meacutetodo de estudo da Antiguidade (retoacutericotoacutepico) e o da modernidade

(criacuteticocartesiano) a fim de demonstrar as desvantagens deste uacuteltimo e sua

inaplicabilidade agrave sabedoria praacutetica Viehweg problematiza a utilizaccedilatildeo dos modelos

oriundos das ciecircncias exatas para a estruturaccedilatildeo do pensamento juriacutedico conforme

expotildee Roesler

A partir da alusatildeo de Vico o problema que move a investigaccedilatildeo de

Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a

sistematizaccedilatildeo dedutiva pretendida pelos modelos matematizantes de

ciecircncia que predominaram a partir do seacuteculo XVII ser inadequada

para organizar o saber juriacutedico e dele retirar ou nele ocultar

caracteriacutesticas fundamentais145

Assim a preferecircncia do autor alematildeo pelo uso do vocaacutebulo ldquoJurisprudecircnciardquo um

termo que alude agrave eacutetica da Antiguidade claacutessica ao inveacutes de ldquoCiecircncia do Direitordquo o

143

RAPP C WAGNER T Op cit p 8 144

ldquothe program that is carried out in The Use of Arguments and in The New Rhetoric elaborates on

something like a blend of Aristotlersquos Topics and Rhetoric [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 8 145

ROESLER Claacuteudia Rosane Theodor Viehweg e a Ciecircncia do Direito toacutepica discurso racionalidade

Arraes Editores Belo Horizonte 2013 p 23

64

qual transmitiria a ideia de um saber rigorosamente cientiacutefico demostra a sua atitude

questionadora em relaccedilatildeo ao padratildeo cientiacutefico elaborado a partir de Descartes e

supostamente emprestaacutevel ao direito146

Resgatando o pensamento de Aristoacuteteles e de Ciacutecero e observando que o saber

juriacutedico eacute uma teacutecnica orientada para a soluccedilatildeo de problemas a tese de Viehweg se

funda na ideia de que a Jurisprudecircncia possui uma estrutura toacutepica Para o filoacutesofo

germacircnico o aspecto mais importante da toacutepica eacute ser uma teacutecnica de pensamento que

enfatiza os problemas ldquoa funccedilatildeo dos topoi e eacute indiferente que esses topoi se

apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais consiste pois no fato de servir

agrave discussatildeo dos problemasrdquo147

A relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia reside justamente nesse liame Ambas se

orientam pelo problema E por isso uma teacutecnica que privilegie o tratamento de

problemas se revela mais adequada ao direito

Se a Jurisprudecircncia for uma aacuterea de problemas na qual nunca se pode

afastar completamente a irrupccedilatildeo de questotildees novas e a necessidade

de reavaliar as premissas jaacute preparadas anteriormente ou seja na qual

o problema eacute um dado constante e natildeo eliminaacutevel entatildeo podemos

pensar que a toacutepica enquanto procedimento de busca de premissas

confere-lhe a estrutura fundamental148

Ora mas se Viehweg evidencia a relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia e

demonstra a partir do trabalho teoacuterico de Aristoacuteteles e de Ciacutecero a importacircncia da

retoacuterica para o direito ele natildeo chega a explorar o viacutenculo entre as emoccedilotildees e a

argumentaccedilatildeo juriacutedica149

Eacute verdade conforme enfatiza Roesler que o referido autor

natildeo propotildee realizar uma anaacutelise exaustiva sobre o tema Mas eacute certo dizer por outro

lado que natildeo temos na abordagem de Viehweg nenhuma tentativa de anaacutelise da

relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo juriacutedica150

146

ROESLER C R O papel de Theodor Viehweg na fundaccedilatildeo das teorias da argumentaccedilatildeo juriacutedica

Revista Eletrocircnica Direito e Poliacutetica Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Ciecircncia Juriacutedica da

UNIVALI Itajaiacute v 4 n 3 3ordm quadrimestre de 2009 pp 36-54 p 39 147

VIEHWEG Theodor Toacutepica e Jurisprudecircncia uma contribuiccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo dos fundamentos

juriacutedico-cientiacuteficos trad Kelly Susane Alflen da Silva Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2008

p 39 148

ROESLER C ROp cit 2013 p 142 149

Sobre a importacircncia da toacutepica ciceroniana em Viehweg cf ROESLER C R CARVALHO Angelo

Gamba Prata de A recepccedilatildeo da Toacutepica ciceroniana em Theodor Viehweg In Direito amp Praxis vol 6 nordm

10 2015 p 26-48 150

A partir do trabalho de Viehweg surge na Alemanha a Escola de Mainz e a retoacuterica analiacutetica atraveacutes

de Ballweg e Sobota No Brasil Adeodato defende uma retoacuterica realista como meacutetodo para o estudo do

direito Cf ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Uma Teoria Retoacuterica da Norma Juriacutedica e do Direito Subjetivo

Satildeo Paulo Editora Noeses 2011 Sobre uma anaacutelise retoacuterica da corte constitucional brasileira e alematilde cf

65

De outra parte o modelo de anaacutelise de argumentos desenvolvido por Toulmin

realiza uma criacutetica ao modo pelo qual a loacutegica formal vinha sendo aplicada ao campo da

argumentaccedilatildeo Logo na abertura da sua obra ele demonstra a preocupaccedilatildeo pela maneira

como os argumentos satildeo utilizados na praacutetica e pela forma como satildeo teorizados151

Assim sua abordagem preocupa-se em desenvolver um modelo racional de anaacutelise com

o objetivo de alargar o campo da loacutegica isto eacute possibilitar ldquo[] uma transformaccedilatildeo da

loacutegica de ciecircncia formal em ciecircncia praacuteticardquo152

Em seu conhecido layout de argumentos estatildeo presentes seis elementos uma

conclusatildeo ou alegaccedilatildeo (claim) que eacute afirmada com base em um dado (date) o qual eacute

uma informaccedilatildeo ou algo conhecido do qual se pode tirar uma conclusatildeo uma garantia

(warrant) que eacute considerada uma lei de passagem isto eacute ela autoriza o passo

argumentativo entre o dado e a alegaccedilatildeoconclusatildeo um suporte (backing) que por

vezes eacute necessaacuterio para reforccedilar a garantia um modalizador ou qualificador (qualifier)

que eacute uma espeacutecie de atenuante (ldquomitigadorrdquo) entre a passagem dos dados para a

conclusatildeo e a refutaccedilatildeorestriccedilatildeo (rebuttal) que satildeo aplicadas agrave garantia a fim de retirar

sua autoridade geral

Apoacutes descrever tais elementos natildeo eacute preciso ir mais longe para observar que

este modelo natildeo busca analisar a dimensatildeo emotiva do discurso Por meio dele eacute

possiacutevel fazer certos tipos de anaacutelise mas natildeo a que noacutes pretendemos realizar As

noccedilotildees de orador e de auditoacuterio estatildeo ausentes natildeo havendo a integraccedilatildeo de tal layout a

um esquema comunicativo153

E eacute por isso que se coloca Toulmin mais perto da

dialeacutetica do que da retoacuterica

Por sua vez em relaccedilatildeo ao modelo de Perelman-Tyteca a influecircncia da retoacuterica

eacute observada de imediato no proacuteprio tiacutetulo do trabalho ldquoTratado da Argumentaccedilatildeo ou a

Nova Retoacutericardquo O desenvolvimento de sua Nova Retoacuterica representa uma criacutetica ao

racionalismo cartesiano conforme eacute deixado claro logo no iniacutecio da obra ldquoa publicaccedilatildeo

de um tratado consagrado agrave argumentaccedilatildeo e sua vinculaccedilatildeo a uma velha tradiccedilatildeo a da

a tese de doutorado de Isaac Costa Reis Limites agrave legitimidade da jurisdiccedilatildeo constitucional anaacutelise

retoacuterica das cortes constitucionais do Brasil e da Alemanha 2013 Recife UFPE 151

TOULMIN Stephen E Os usos do argumento trad Reinaldo Guarany Satildeo Paulo Martins Fontes

2006 p 2 152

BRETON Philippe GAUTHIER Gilles Histoacuteria das teorias da argumentaccedilatildeo trad Maria

Carvalho Lisboa Editorial Bizacircncio 2001 p 75-76 153

MICHELI Raphaeumll Lrsquoeacutemotion argumenteacutee lrsquoabolition de la peine de mort dans le deacutebat

parlamentaire franccedilais Paris Les Eacuteditions du Cerf 2010a p 73

66

retoacuterica e da dialeacutetica gregas constituem uma ruptura com uma concepccedilatildeo da razatildeo e do

raciociacutenio oriunda de Descartes []rdquo154

Assim Perelman-Tyteca retomam as noccedilotildees de orador e de auditoacuterio afirmando

expressamente que este eacute o campo da retoacuterica tradicional que especialmente lhes atrai

atenccedilatildeo Todo discurso se dirige a um determinado grupo de indiviacuteduos Todo texto

escrito ainda que redigido solitariamente imagina dirigir-se a algueacutem A maacute-fama da

retoacuterica na Antiguidade estava ligada ao fato de que buscava persuadir um puacuteblico de

ignorantes e de que natildeo realizava um trabalho de investigaccedilatildeo seacuterio155

Os referidos autores realizam a distinccedilatildeo entre persuadir e convencer vinculada agrave

noccedilatildeo de auditoacuterio universal O convencimento estaacute preocupado com o caraacuteter racional

da argumentaccedilatildeo e por isso a persuasatildeo guarda um estatuto teoacuterico inferior Uma

argumentaccedilatildeo persuasiva eacute dirigida a um auditoacuterio particular enquanto uma

argumentaccedilatildeo convincente busca a adesatildeo de todo o conjunto de seres racionais Ao

argumentar para o auditoacuterio universal o sujeito deve convencer ldquo[] do caraacuteter coercivo

das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta

independentemente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo156

Particularmente quanto agraves emoccedilotildees todavia natildeo houve nenhuma recepccedilatildeo da

retoacuterica antiga No sumaacuterio da obra natildeo haacute qualquer referecircncia ao tema Se numa

pesquisa para a palavra ldquorazatildeordquo encontramos 396 (trezentos e noventa e seis)

referecircncias para a palavra ldquoemoccedilatildeordquo encontramos 13 (treze) referecircncias

Ainda assim Plantin identifica esparsamente as seguintes perspectivas sobre as

emoccedilotildees na Nova Retoacuterica (i) uma abordagem psicoloacutegica para a qual as emoccedilotildees satildeo

elementos de perturbaccedilatildeo do discurso (i) uma abordagem filosoacutefica fundada no topos

ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo (iii) uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor por meio do qual este

uacuteltimo eacute visto como menos pejorativo e (iv) um recurso que pode demonstrar

sinceridade157

Sob a influecircncia da psicologia da eacutepoca que entendia as emoccedilotildees como

perturbadoras da accedilatildeo158

o Tratado da Argumentaccedilatildeo esposa em certo trecho uma

compreensatildeo das emoccedilotildees como degradaccedilatildeo do ato linguiacutestico ldquoos indiacutecios de paixatildeo

154

PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo a nova retoacuterica

trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 p 1 155

Id ibid p 7 156

Id ibid p 35 157

PLANTIN Christian Les bonnes raisons des eacutemotions principes et meacutethode pour lrsquoeacutetude du

discours eacutemotionneacute Berne Peter Lang 2011 p 49 158

Id ibid p 49

67

podem pois dar azo a figuras a hesitaccedilatildeo o hipeacuterbato ou inversatildeo que substitui a

ordem natural da frase por uma ordem nascida da paixatildeordquo159

Em outra parte da obra

anota-se que a excitaccedilatildeo decorrente das emoccedilotildees deturpa a argumentaccedilatildeo do homem

apaixonado que soacute se preocupa consigo mesmo e perde a noccedilatildeo das pessoas a quem seu

discurso se destina ldquoo homem apaixonado enquanto argumenta o faz sem levar

suficientemente em conta o auditoacuterio a que se dirigerdquo160

Numa outra perspectiva realiza-se uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor do

seguinte modo as emoccedilotildees podem possuir uma acepccedilatildeo negativa sendo obstaacuteculos na

argumentaccedilatildeo ou podem servir de suporte para uma argumentaccedilatildeo positiva Nesta

uacuteltima hipoacutetese a fim de se livrarem de sua carga semacircntica negativa as emoccedilotildees seratildeo

nomeadas de valores ldquohaacute que notar que as paixotildees enquanto obstaacuteculo natildeo devem ser

confundidas com as paixotildees que servem de apoio a uma argumentaccedilatildeo positiva e que

habitualmente seratildeo qualificadas por meio de um termo menos pejorativo como

valorrdquo161

A despeito dos trechos acima citados que demonstram uma concepccedilatildeo negativa

das emoccedilotildees natildeo existe nenhum tratamento sistemaacutetico do assunto natildeo tendo a retoacuterica

antiga sido recepcionada neste ponto Todavia considerando que a obra sob anaacutelise se

trata de uma ldquoNova Retoacutericardquo a ausecircncia de um tema que Aristoacuteteles dedicou tanto

espaccedilo conforme visto no Capiacutetulo I natildeo deixa de ser simboacutelica Mesmo que o objetivo

da obra de Perelman-Tyteca consista no alargamento do campo da racionalidade parece

estar impliacutecito que o orador da Nova Retoacuterica deve convencer sem se emocionar

Por uacuteltimo eacute preciso dizer que natildeo surpreende o fato de que os autores acima

estudados natildeo se interessaram pelo estudo das emoccedilotildees Considerando o contexto em

que as obras emergiram tal como discutido no toacutepico precedente este tema era um

interdito para eacutepoca Aliaacutes Perelman-Tyteca tinham plena consciecircncia de que estavam

vivendo no seacuteculo da publicidade e da propaganda como afirmam no iniacutecio da sua

obra162

Portanto pode-se afirmar que o trabalho dos ldquopais fundadoresrdquo se situa melhor

num campo de reflexatildeo sobre o logos

159

PERELMAN C Op cit p 518 160

PERELMAN C Op cit p 27 161

PERELMAN COp cit p 539 162

PERELMAN C Op cit p 5

68

23 As emoccedilotildees falaciosas

Antes de dar o proacuteximo passo e realizar no toacutepico subsequente um estudo

acerca de uma abordagem normativa sobre as emoccedilotildees eacute preciso discutir neste toacutepico

a questatildeo das falaacutecias e a sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees

As falaacutecias satildeo um dos temas centrais para qualquer teoria da argumentaccedilatildeo

Eemeren aponta que a qualidade de uma teoria da argumentaccedilatildeo estaacute diretamente

relacionada agrave maneira pela qual ela compreende as falaacutecias Assim ldquose uma teoria da

argumentaccedilatildeo consegue lidar com as falaacutecias de um modo satisfatoacuterio trata-se de um

teste positivo para o alcance e para o poder de explanaccedilatildeo de tal teoriardquo163

Isso porque uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa necessariamente oferecer

criteacuterios e normas para avaliar quando argumentaccedilotildees satildeo ou natildeo razoaacuteveis Desse

modo diz-se que as falaacutecias satildeo ardis contaminantes da argumentaccedilatildeo que caso

passem despercebidas deturpam completamente a racionalidade do discurso Em outras

palavras satildeo perigosas camuflagens que necessitam ser identificadas na

argumentaccedilatildeo164

Natildeo haacute em grego uma palavra que corresponda exatamente ao vocaacutebulo

ldquofalaacuteciardquo o seu correspondente seria ldquosofismardquo165

Falaacutecia portanto deriva do termo

em latim ldquofallaciardquo que por sua vez tem sua origem no verbo grego ldquosphalrdquo que

significa ldquocausar uma quedardquo Walton destaca que este significado eacute consistente com a

ideia aristoteacutelica de refutaccedilatildeo sofiacutestica como algo intencionalmente enganoso ou um

truque argumentativo utilizado com o objetivo de ldquocausar uma quedardquo no adversaacuterio166

Por sinal Aristoacuteteles eacute considerado um dos fundadores da disciplina Em sua

Refutaccedilotildees Sofiacutesticas ele oferece um tratamento sistemaacutetico para identificar quando um

argumento eacute incorreto ou enganoso Para o Estagirita uma falaacutecia eacute invariavelmente

uma inferecircncia que aparenta ser um silogismo poreacutem sem ser conclusivo Portanto

163

ldquoIf an argumentation theory can deal with fallacies in a satisfactory way this is a positive test as to the

scope and explanatory power of that theoryrdquo (trad livre) EEMEREN Frans van GARSSEN Bart

MEUFFELS Bert Fallacies and judgments of reasonableness empirical research concerning the

pragma-dialectics discussion rules New York Springer 2009 p 1 164

EEMEREN Frans H van et al Handbook of argumentation theory New York Springer 2014 p

25 165

HAMBLIN Charles L Fallacies London Methuen CO LTD 1970 p 50 166

WALTON Douglas The place of emotion in argument Pennsylvania The Pennsylvania State

University Press 1992 p 17

69

diante de uma falaacutecia o sujeito se encontra num estado de ilusatildeo porque imagina que a

conclusatildeo decorreu das premissas oferecidas167

Todavia o tratamento aristoteacutelico das falaacutecias foi modernamente objeto de

criacuteticas Ao utilizar conceitos metafiacutesicos como ldquopropriedade essencialrdquo ou

ldquopropriedade acidentalrdquo ou dirigir-se restritivamente apenas agrave dialeacutetica a abordagem

aristoteacutelica passou a ser considerada insuficiente para lidar com a complexidade do atual

estado de arte da argumentaccedilatildeo168

Uma das mais importantes contribuiccedilotildees acerca do tema em comentaacuterio e que

particularmente nos interessa consiste no desenvolvimento das chamadas ldquofalaacutecias adrdquo

Neste campo de estudo atribui-se a John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento

Humano de 1690 a invenccedilatildeo dos argumentos ad Tendo em vista a relevacircncia histoacuterica

para a mateacuteria transcreve-se a seguir o trecho em que o filoacutesofo anuncia o seu

pensamento

Antes de encerrar este assunto pode valer a pena utilizar o nosso

tempo para refletir um pouco sobre quatro tipos de argumentos que os

homens nos seus raciociacutenios com os outros normalmente fazem uso

para prevalecer o seu assentimento ou pelo menos para impressionaacute-

los assim como para silenciar sua oposiccedilatildeo

O primeiro eacute alegar as opiniotildees de homens cujas partes

aprendizagem eminecircncia poder ou alguma outra causa ganhou um

nome e estabeleceu sua reputaccedilatildeo no estima comum com algum tipo

de autoridade

[]

Isso eu acho que pode ser chamado de argumentum ad verecundiam

Em segundo lugar uma outra maneira que os homens normalmente

utilizam para conduzir os outros forccedilaacute-los a submeter aos seus juiacutezos

assim como receber a sua opiniatildeo em debate consiste em exigir que o

adversaacuterio admita como prova aquilo que eles alegam ou que

designem uma melhor E isto eu chamo argumentum ad ignorantiam

Uma terceira maneira eacute pressionar um homem com as consequecircncias

extraiacutedas de seus proacuteprios princiacutepios ou concessotildees Isto jaacute eacute

conhecido sob o nome de argumentum ad hominem

O quarto argumento sozinho nos avanccedila em direccedilatildeo ao conhecimento

e ao julgamento O quarto eacute usado de provas extraiacutedas de qualquer um

dos fundamentos do conhecimento ou probabilidade Isso eu chamo de

argumentum ad judicium Este por si soacute de todos os quatro traz a

verdadeira instruccedilatildeo com ela e nos avanccedila em nosso caminho para o

conhecimento169

167

RAPP C WAGNER T Op cit 2013 p 27 168

Id ibid p 27 169

ldquoBefore we quit this subject it may be worth our while a little to reflect on four sorts of arguments

that men in their reasonings with others do ordinarily make use of to prevail on their assent or at least to

awe them as to silence their opposition

The first is to allege the opinions of men whose parts learning eminency power or some other cause

has gained a name and settled their reputation in the common esteem with some kind of authority

70

Locke registra que estas espeacutecies de argumento (argumentum ad verecundiam

ad ignoratiam ad hominem) satildeo utilizadas geralmente quando algueacutem deseja obter

ecircxito na discussatildeo pois se destinam a impressionar a fazer prevalecer o entendimento

exposto e a emudecer o oponente Resta evidente que o filoacutesofo aqui se refere a um

modelo interativo de discurso (dialeacutetica) Ademais conveacutem notar que embora as obras

de loacutegica passaram a tratar tais argumentos como falaacutecias natildeo se observa qualquer

comentaacuterio em tal sentido pelo pensador inglecircs

Aleacutem disso eacute digno de nota o registro de Locke segundo o qual o argumento ad

hominem jaacute era conhecido agrave sua eacutepoca Mas era conhecido em qual sentido Era

conhecido em sua definiccedilatildeo ou na proacutepria expressatildeo ldquoad hominemrdquo Hamblin destaca

que provavelmente a inspiraccedilatildeo do termo vem da traduccedilatildeo em latim do seguinte trecho

das Refutaccedilotildees Sofiacutesticas de Aristoacuteteles ldquo[] estas pessoas dirigem suas soluccedilotildees

contra o homem natildeo contra o argumento []rdquo ldquo[] hi omnes non ad orationem sed ad

hominem solvunt []rdquo170

Em 1826 Whately por sua vez ao se referir aos argumentos ad populum ad

verecundiam ad hominem registra que quando ldquoinjustamente utilizadosrdquo eles satildeo

chamados falaciosos estabelecendo entatildeo uma conexatildeo com o tema das falaacutecias

Interessante salientar que o loacutegico inglecircs opotildee os argumentos anteriormente citados ao

argumentum ad rem171

Assim considerando que rem em latim significa coisa eacute

possiacutevel inferir que enquanto o argumento ad rem se direciona ao cerne da questatildeo ao

alvo argumentativo isto eacute ldquoagrave coisardquo os argumentos ad populum ad verecundiam ad

hominem representam um desvio do assunto pois se dirigem agrave pessoa ou a outras

fontes Acrescente-se ainda que Whately afirma que provavelmente o argumento ad

rem significa aquilo que outros autores (Locke por exemplo) chamam de argumento ad

judicium

Secondly Another way that men ordinarily use to drive others and force them to submit to their

judgments and receive their opinion in debate is to require the adversary to admit what they allege as a

proof or to assign a better And this I call argumentum ad ignorantiam

A third way is to press a man with consequences drawn from his own principles or concessions This is

already known under the name of argumentum ad hominem

he fourth alone advances us in knowledge and judgment The fourth is the using of proofs drawn from

any of the foundations of knowledge or probability This I call argumentum adjudicium This alone of all

the four brings true instruction with it and advances us in our way to knowledgerdquo (trad livre) LOCKE

John The Works of John Locke London C Baldwin 1824 p 260-261 170

ldquo[] these persons direct their solutions against the man not against his argumentrdquo (trad livre)

HAMBLIN C Op cit p 161-162 171

WHATELY Richard Logic London John Joseph Griffin amp CO 1849 p 80

71

Ademais se pensarmos que neste caso a palavra ldquoargumentumrdquo pode ser

substituiacuteda com sucesso pela palavra ldquoapelordquo e sabendo que o termo em latim ldquoadrdquo

denota ldquoem direccedilatildeo ardquo ldquoparardquo pode-se afirmar que o argumento ad populum significa

apelo ao povo ou aos sentimentos do povo o argumento ad verecundiam apelo agrave

modeacutestia ou agrave autoridade o argumento ad hominem apelo ao caraacuteter ou agraves

caracteriacutesticas do sujeito Estes apelos portanto natildeo estariam dirigidos a ldquoevidecircncias

objetivasrdquo mas a subjetividades algo presente na mente ou melhor na fantasia das

pessoas172

Recentemente o estudo das falaacutecias alcanccedilou notaacutevel desenvolvimento graccedilas

ao trabalho pioneiro de Charles Hamblin que em 1970 publicou a sua obra ldquoFalaacuteciasrdquo

Neste estudo o filoacutesofo australiano comeccedila com uma forte criacutetica em relaccedilatildeo agrave forccedila

que em nosso tempo a tradiccedilatildeo ainda vinha desempenhando sobre o assunto a despeito

de tantos avanccedilos na loacutegica e em outras aacutereas ldquodepois de dois milecircnios de estudo ativo

de loacutegica e em particular depois de transcorrido mais da metade daquele que eacute

considerado o mais iconoclasta dos seacuteculos o XX dC ainda encontramos as falaacutecias

sendo classificadas apresentadas e estudadas da mesma maneira antigardquo173

Eemeren destaca que eacute enorme a importacircncia de Hamblin para o assunto sendo

o seu livro uma soacutelida referecircncia pois realiza um rigoroso apanhado histoacuterico sobre as

falaacutecias elenca as deficiecircncias no tratamento da mateacuteria oferece a sua pessoal

contribuiccedilatildeo teoacuterica e sistematiza o tema Assim ainda que tenha sido objeto de criacuteticas

a sua obra eacute considerada ao mesmo tempo um ponto de partida e o tratamento standard

da disciplina174

Ao fazer uma sistematizaccedilatildeo sobre as ldquofalaacutecias adrdquo Hamblin esboccedila uma

abundante classificaccedilatildeo do tema sendo que tendo em vista a importacircncia para o nosso

trabalho destacamos as seguintes falaacutecias

(i) apelo agrave inveja argumentum ad invidiam

(ii) apelo ao medo argumentum ad metum

(iii) apelo ao oacutedio argumentum ad odium

(iv) apelo ao orgulho argumentum ad superbiam

(v) apelo agrave amizade argumentum ad amicitiam

172

WALTON D Op cit p 4-9 173

ldquoAfter two millennia of active study of logic and in particular after over half of that most iconoclastic

of centuries the twentieth AD we still find fallacies classified presented and studied in much the same

old wayrdquo (trad livre) HAMBLIN C Op cit p 9 174

EEMEREN F Op cit 2009 p 12

72

(vi) apelo agrave compaixatildeo argumentum ad misericordiam

(vii) apelo agraves emoccedilotildees em geral argumentum ad passiones

Aleacutem destas tambeacutem se destacam as seguintes falaacutecias ad verecundiam ad

ignorantiam ad hominem ad baculum (apelo agrave ameaccedila) ad superstitionem (apelo agrave

supersticcedilatildeo) ad imaginationem (apelo agrave imaginaccedilatildeo) ad nauseam (apelo agrave prova por

repeticcedilatildeo) ad fidem (apelo agrave feacute) ad socordiam (apelo agrave estupidez) ad ludicrum (apelo

ao teatralismo) ad captandum vulgus ad fulmen ad vertiginem a carcere175

Natildeo eacute coincidecircncia que para cada emoccedilatildeo da retoacuterica estudada no Capiacutetulo I

agora exista uma ldquofalaacutecia adrdquo correspondente E ainda que eventualmente venha lhe

faltar uma classificaccedilatildeo apropriada a expressatildeo guarda-chuva ldquoargumentum ad

passionerdquo iraacute capturar alguma emoccedilatildeo fugitiva Aliaacutes eacute essa a ideia apresentada pelo

loacutegico inglecircs Issac Watz citado por Hamblin senatildeo vejamos

Haacute ainda um outro ranking de argumentos que tecircm nomes latinos sua

verdadeira distinccedilatildeo deriva dos toacutepicos ou meios-termos que satildeo

usados neles eles satildeo chamados de apelos para o nosso julgamento

para a nossa feacute para a nossa ignoracircncia para a nossa profissatildeo para a

nossa modeacutestia e para as nossas emoccedilotildees

[]

6 Acrescento por fim quando um argumento eacute emprestado de algum

toacutepico que se preste a atrair as inclinaccedilotildees e as emoccedilotildees dos ouvintes

para o lado do orador em vez de convencer o julgamento ele eacute

chamado argumentum ad passiones um apelo para as emoccedilotildees176

Por tambeacutem termos estudado o pensamento estoico no Capiacutetulo I agora tambeacutem

podemos afirmar que isso eacute uma forma estoica de pensar Obviamente natildeo no sentido

de que tal pensamento derive da escola estoica Poreacutem numa acepccedilatildeo mais ampla no

sentido de sua hostilidade em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees ou de que conveacutem eliminaacute-las do

discurso por serem irracionais enganadoras excessivas No entanto tal pensamento

parece ser demasiadamente simploacuterio porque natildeo consegue indagar se as emoccedilotildees

eventualmente podem ser razoaacuteveis na argumentaccedilatildeo Existiriam criteacuterios para

distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees no discurso

175

HAMBLIN C Op cit p 41 176

ldquoThere is yet another rank of arguments which have latin names their true distinction is derived from

the Topics or middle Terms which are used in them tho they are called an Address to our Judgment our

Faith our Ignorance our Profession our Modesty and our Passions [hellip]6 I add finally when an

argument is borrowed from any topics which are suited to engage the inclinations and passions of the

hearers on the side of the speaker rather than to convince the judgment this is argumentum ad passiones

an address to the passionsrdquo (trad livre)WATZ Issac Logic or the right use of reason in the inquiry

after truth Boston West amp Richardson 1842 p 242

73

Eacute claro que a disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo natildeo nos exige que deixemos de sentir o

que sentimos uma vez que poderiacuteamos imaginar que existe separadamente o campo do

discurso e existe o campo do sujeito de modo que o objetivo da estudada classificaccedilatildeo

consiste em despir a estrutura do discurso do uso das emoccedilotildees e dos seus efeitos

negativos quanto agrave relaccedilatildeo de inferecircncias Mas considerando que o homem vive na

linguagem eacute possiacutevel de modo plausiacutevel pensar que existam certas e profundas

conexotildees entre essas coisas

Sobre este ponto Plantin destaca que eacute justamente na questatildeo do sujeito e das

emoccedilotildees que existe uma forte ruptura entre a MTA e a retoacuterica A teoria standard da

argumentaccedilatildeo ao introduzir a noccedilatildeo de falaacutecia ad passiones erigiu as emoccedilotildees como

um dos principais inimigos da argumentaccedilatildeo ldquoa teoria das falaacutecias eacute a uacutenica parte da

teoria da argumentaccedilatildeo que se ocupa realmente das emoccedilotildees mas para removecirc-las

como se o discurso argumentativo para ser admissiacutevel devesse primeiro expulsar seus

atoresrdquo177

O linguista francecircs assevera que essa invariaacutevel exigecircncia normativa exalta a

argumentaccedilatildeo apaacutetica como um modelo desejado de discurso178

Assim pathos parece

retomar um dos seus sentidos originais presente na Greacutecia antiga isto eacute o de

patoloacutegico de sofrimento

Eacute interessante igualmente notar a maciccedila presenccedila de termos em latim na

classificaccedilatildeo das ldquofalaacutecias adrdquo Eacute sabido que na eacutepoca moderna o latim teve uma

grande importacircncia para o estudo do direito da filosofia e da loacutegica Mas o seu

constante emprego para tratar do presente tema quando se dispotildee de suficiente

vocabulaacuterio para abordar o assunto parece querer doar desnecessariamente um grau de

sofisticaccedilatildeo ou de autoridade agrave disciplina A este respeito Plantin endereccedila forte criacutetica

ldquo[] em inuacutemeros casos esse latim de ocasiatildeo aparece como defeituoso gratuito

pedante e finalmente ridiacuteculo []rdquo179

Por fim tendo em vista que este Capiacutetulo se destina a investigar a importacircncia

das emoccedilotildees para a MTA pode-se dizer agora que pelo menos para a teoria standard

da argumentaccedilatildeo as emoccedilotildees tecircm uma funccedilatildeo negativa no discurso O uacutenico local em

que as emoccedilotildees guardam um relativo espaccedilo para tematizaccedilatildeo eacute no estudo das falaacutecias

177

ldquola theacuteorie des fallacies est la seule theorie de largumentation qui socuppe reellement des eacutemotions

mais cest pour les eacuteliminer comme si le discours argumentatif pour etre recevable devait dabord

expulser ses acteursrdquo (trad livre) PLANTIN C Op cit 2011 p 63 178

Id ibid p 63 179

ldquo[hellip] dans de nombreux cas cest latin doccasion apparaicirct comme fautif gratuit jargonnant et

finalemente ridicule [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 66

74

Poreacutem tal posicionamento parece sofrer de ausecircncia de complexidade jaacute que natildeo

consegue fornecer nenhum criteacuterio para distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees

na argumentaccedilatildeo nem consequentemente consegue encontrar um razoaacutevel papel para

elas no discurso Portanto diante do exposto parece que o debate acerca das emoccedilotildees

restou significativamente empobrecido

24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso

Aleacutem de evidenciar a estreita e difiacutecil relaccedilatildeo existente entre a disciplina das

falaacutecias e o estudo das emoccedilotildees um dos objetivos do toacutepico precedente tambeacutem foi

preparar-nos para neste espaccedilo examinar e compreender o pensamento de Douglas

Walton

Em 1992 Walton insatisfeito com a forma pela qual o tratamento standard das

falaacutecias compreendia o fenocircmeno emotivo publicou uma obra (O Lugar da Emoccedilatildeo no

Argumento) dedicada a aprofundar o tema Ainda que o modelo utilizado pelo

canadense seja dirigido ao discurso dialeacutetico e natildeo se ocupe especificamente do

domiacutenio juriacutedico embora tambeacutem o abranja as suas observaccedilotildees satildeo bastante uacuteteis e

aplicaacuteveis para os objetivos deste trabalho quais sejam construir um espaccedilo para a

discussatildeo das emoccedilotildees no discurso juriacutedico e localizar criteacuterios para avaliaccedilatildeo do uso

das emoccedilotildees Ademais e a fim de organizar a apresentaccedilatildeo deste toacutepico pretendemos

expor as premissas os escopos as criacuteticas e as conclusotildees do teoacuterico canadense

Dito isso Walton afirma que uma boa teoria da argumentaccedilatildeo precisa natildeo

apenas se posicionar de maneira clara sobre as emoccedilotildees mas tambeacutem levaacute-las a seacuterio

Assim eacute fraca e implausiacutevel uma teoria que expulse previamente as emoccedilotildees para fora

do seu acircmbito ou que nomeie indistintamente de falaciosa qualquer conclusatildeo que se

sustente ainda que parcialmente em um apelo emotivo ldquoqualquer teoria da

argumentaccedilatildeo que exclua tais apelos por inteiro deve ser uma teoria muito limitada

inaplicaacutevel para vaacuterios e significantes argumentos do dia-a-diardquo180

Assim reconhece-se que o fenocircmeno emotivo faz parte do discurso porque

decidimos tambeacutem com base em emoccedilotildees em importantes momentos de nossas vidas

A abertura para a sensibilidade da ocasiatildeo para as nossas proacuteprias emoccedilotildees e para as

180

ldquoany theory of argument that rules such appeals out of court altogether must be very limited theory

inapplicable to many significant everyday argumentsrdquo (trad livre) WALTON D Op cit p 69

75

emoccedilotildees dos outros pode permear de maneira saudaacutevel decisotildees importantes em

sociedade181

Exemplificativamente diante de discussotildees de ordem poliacutetica ou juriacutedica em

que esteja no cerne do debate o caraacuteter ou a moralidade de um participante pode-se

cogitar que seja natildeo apenas relevante o uso de um argumento emotivo (ad hominem por

exemplo) mas extremamente necessaacuterio para responder adequadamente uma

alegaccedilatildeo182

De outra parte a despeito de admitir o uso de argumentos emotivos por

entender que eles satildeo importantes e legiacutetimos no diaacutelogo persuasivo Walton aconselha

cautela na sua utilizaccedilatildeo porque eles tambeacutem podem ser usados falaciosamente183

Assim a seu ver dois fatores combinados aumentam a possibilidade de que tais

argumentos sejam mal utilizados (i) primeiramente o apelo agrave emoccedilatildeo pode ter pouca

relevacircncia para o caso pois pode natildeo contribuir para os fins do diaacutelogo no qual os seus

participantes estejam comprometidos convertendo-se inclusive em instrumento para

bloquear os objetivos do discurso (ii) os argumentos baseados em emoccedilotildees possuem

uma tendecircncia de serem logicamente fracos no sentido de que sua premissa natildeo

sustenta de modo suficientemente forte a conclusatildeo e por isso natildeo preencha

adequadamente o ocircnus da prova184

Assim o uso falacioso das emoccedilotildees estaacute presente

quando ldquo[] o proponente explora o impacto do apelo para disfarccedilar a fraqueza ou a

irrelevacircncia do argumentordquo185

Poreacutem como determinar em concreto tais paracircmetros Advertindo que o seu

estudo natildeo eacute uma tese de psicologia empiacuterica mas uma abordagem normativa da

argumentaccedilatildeo cujo principal objetivo consiste em possibilitar a identificaccedilatildeo de usos

corretos e incorretos das emoccedilotildees no discurso186

o autor propotildee o estudo de quatro

ldquofalaacutecias adrdquo que na sua oacutetica satildeo extremamente fortes quanto agrave possibilidade de

aticcedilar os sentimentos e as mais profundas inclinaccedilotildees emotivas do puacuteblico argumentum

ad populum argumentum ad misericordiam argumentum ad baculum e argumentum ad

hominem

181

Id ibid p 69 182

Id ibid p 68 183

Id ibid p 1 184

Id ibid p 1-2 e 28 185

ldquo[hellip] the proponent exploits the impact of the appeal to disguise the weakness andor irrelevance of an

argumentrdquo Id ibid p 2 186

Id ibid p 28

76

Para nosso trabalho no entanto e a fim de delimitar a nossa competecircncia de

estudo eacute suficiente comentar os aspectos mais importantes relacionados ao uso do apelo

agrave compaixatildeo do apelo ao caraacuteter e do apelo agrave ameaccedila Poreacutem antes de prosseguir eacute

preciso explanar previamente e de modo breve alguns conceitos empregados na teoria

em comentaacuterio

Primeiramente conveacutem ser dito que a abordagem normativa em estudo estaacute

estruturada em funccedilatildeo de uma especiacutefica classificaccedilatildeo de tipos de diaacutelogo

Um diaacutelogo eacute considerado ldquo[] uma troca de atos de fala em sequecircncia

alternada entre dois parceiros de discurso a fim de alcanccedilar um objetivo comumrdquo187

Assim a coerecircncia do diaacutelogo depende de que o ato de fala individual se adeque ao fim

comum do tipo de diaacutelogo em que os participantes estejam atrelados Ademais tendo

em vista que em alguns tipos de diaacutelogo os participantes necessitam provar alguma

coisa surge a noccedilatildeo de ocircnus de prova que ldquo[] eacute um peso de presunccedilatildeo alocado

idealmente no estaacutegio inicial do diaacutelogordquo188

e que se mostra um recurso uacutetil para que o

diaacutelogo chegue num prazo razoaacutevel ao fim

Entre os tipos de diaacutelogo destacam-se

(i) o diaacutelogo persuasivo (discussatildeo criacutetica) os participantes utilizando como

premissas as proposiccedilotildees em que a outra parte esteja comprometida

(commitment) procuram convencer um ao outro a respeito de uma tese189

(ii) o diaacutelogo investigativo ldquoo objetivo da investigaccedilatildeo eacute provar que uma

particular proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa ou que natildeo existe evidecircncia

suficiente para provar que tal proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsardquo190

(iii) a negociaccedilatildeo o objetivo das partes consiste em por meio de barganha em

cima de interesses e de bens de concessatildeo de certas coisas e de insistecircncia em

outras fechar um acordo diferentemente do diaacutelogo persuasivo ou do

investigativo a verificaccedilatildeo da veracidade ou falsidade de proposiccedilotildees ainda

que em alguma medida relevante eacute algo secundaacuterio pois a finalidade consiste

187

ldquo[] an exchange of speech acts between two speech partners in turn-taking sequence aimed at a

collective goalrdquo (trad livre) Id ibid p 19 188

ldquo[] a weight of presumption allocated ideally at the opening stage of the dialoguerdquo (trad livre) Id

ibid p 20 189

WALTON Douglas The New dialectic conversational contexts of argument TorontoLondon

University of Toronto Press 1998 p 37-40 190

ldquothe goal of the inquiry is to prove that a particular proposition is true or false or that there is

insufficient evidence to prove that this proposition is either true or falserdquo Id ibid p 70

77

em realizar um bom negoacutecio que geralmente recai em cima de dinheiro certos

tipos de bens ou outros itens de valor191

e

(iv) a briga (quarrel) eacute um tipo de diaacutelogo eriacutestico cujo objetivo de cada parte

reside em atingir verbalmente a outra os argumentos natildeo possuem valor em si

mesmo senatildeo para golpear o adversaacuterio Tal ldquodiaacutelogordquo tem uma relevante funccedilatildeo

cataacutertica ao possibilitar que profundas emoccedilotildees sejam liberadas evitando um

confronto fiacutesico192

Esta classificaccedilatildeo eacute importante por dois motivos primeiramente ela possibilita

compreender quando existe uma mudanccedila iliacutecita de tipo de diaacutelogo (dialectical shifts)

um diaacutelogo investigativo natildeo pode se transformar num diaacutelogo persuasivo (discussatildeo

criacutetica) porque os objetivos e os meacutetodos de cada qual satildeo diversos e por isso os

argumentos tambeacutem o satildeo Em segundo lugar compreende-se que eacute no diaacutelogo

persuasivo que as emoccedilotildees tecircm o seu habitat especiacutefico podendo ser positivas e

contribuiacuterem com os objetivos da discussatildeo Todavia entende-se que nos outros tipos

de diaacutelogo (negociaccedilatildeo por exemplo) e a depender do caso elas tambeacutem podem ser

legiacutetimas193

Por uacuteltimo antes de adentrar no estudo das falaacutecias conveacutem enfatizar que a

noccedilatildeo de raciociacutenio presuntivo tem um destacado papel neste modelo de anaacutelise do

discurso argumentativo porque possibilita que a discussatildeo caminhe em direccedilatildeo ao fim

mesmo quando no estado de conhecimento as evidecircncias satildeo insuficientes e as

premissas fracas ldquoa presunccedilatildeo no diaacutelogo permite que a argumentaccedilatildeo avance de um

modo uacutetil e revelador mesmo se evidecircncia suficiente natildeo estaacute disponiacutevel para permitir

que cada lado se comprometa categoricamente a certas premissas especiacuteficasrdquo194

Assim uma vez finalizada a exposiccedilatildeo de tais conceitos passa-se agrave explanaccedilatildeo

do apelo agrave compaixatildeo

Para saber quando o apelo agrave compaixatildeo eacute ou natildeo usado falaciosamente a

abordagem tradicional recomenda distinguir se um caso diz respeito a fatos ou a

sentimentos Caso o problema envolva mateacuteria factual o apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso

sendo adequado de seu turno caso apenas envolva sentimentos195

191

Id ibid p 100 192

WALTON D Op cit 1992 p 21-23 193

Id ibid p 23-24 194

ldquopresumption in dialogue enables argumentation to move forward in a revealing and useful way even

if sufficient evidence is not available to enable either side to commit itself categorically to some particular

premisesrdquo Id ibid p 57 195

Id ibid p 106

78

Em relaccedilatildeo a esta bifurcaccedilatildeo Walton endereccedila forte criacutetica pois a compreende

muito otimista em achar que fatos e sentimentos satildeo coisas totalmente isoladas Por

exemplo em casos como aborto e eutanaacutesia natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo apenas

facticidades E sentimentos satildeo muito importantes embora tambeacutem possam ser

excessivos ou inadequados Assim para alegar que um apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso

precisa-se demonstrar a sua irrelevacircncia ou inadequaccedilatildeo para a hipoacutetese tratada196

Exemplificativamente no seguinte caso ocorrido na Casa dos Comuns do

Canadaacute em 1987 eacute relatado que um parlamentar durante o debate poliacutetico solicitou

fundos do governo federal para finalizar um projeto de enciclopeacutedia pertencente ao Sr

Joey Smallwood uma figura poliacutetica canadense ldquorespeitadardquo e ldquobem-conhecidardquo

considerado um dos uacuteltimos ldquoPais da Confederaccedilatildeordquo ainda vivos Ademais eacute dito que

Smallwood estaacute por volta dos seus 80 (oitenta) anos num estado de sauacutede debilitado e

mereceria ter seu projeto que se revelaraacute num inestimaacutevel recurso para o povo

canadense ser concluiacutedo em vida ldquoeacute uma grande distorccedilatildeo ver uma das lendas vivas do

Canadaacute sendo forccedilado a lidar com xerifes na sua idade avanccedilada e em seu mau estado

de sauacutede Certamente o governo pode encontraacute-lo em seu coraccedilatildeo agorardquo diz o

deputado197

Walton diz que a questatildeo central no caso consiste em saber se tal projeto de

enciclopeacutedia eacute valoroso o suficiente para merecer ser financiado com dinheiro puacuteblico

Assim caso apenas o apelo agrave compaixatildeo esteja suportando a conclusatildeo de que o projeto

vale a pena ser financiado entatildeo tal emoccedilatildeo natildeo eacute relevante ou uacutetil pois eacute preciso

questionar em si mesmo o meacuterito do projeto Poreacutem na presunccedilatildeo de que o projeto

realmente valha a pena a compaixatildeo pode ser um argumento adequado fazendo parte

de um argumento maior a respeito do merecimento do projeto198

Este eacute um caso de forte apelo emocional que envolve sentimentos patrioacuteticos em

relaccedilatildeo a uma pessoa admirada por muitas outras num paiacutes Poreacutem a despeito da

tradiccedilatildeo de nomear tal tipo de argumentaccedilatildeo de falaciosa Walton entende que eacute preciso

atentar para a questatildeo do contexto em que tal discurso foi produzido Assim

considerando que ele foi declamado numa especiacutefica sessatildeo da Casa dos Comuns

196

Id ibid p 106-107 197

ldquoit is a great travesty to see one of Canadas living legends being forced to deal with sheriffs at his

advanced age and in his poor state of health Surely the government can find it in its heart nowrdquo (trad

livre) Id ibid p 111 198

Id ibid p 111

79

destinada a fazer recomendaccedilotildees de financiamento de projetos a emoccedilatildeo empregada eacute

adequada agraves regras do debate e natildeo destoa do tipo de discurso utilizado

Ademais Walton reforccedila que a proacutepria noccedilatildeo de apelo agrave compaixatildeo por estar

amarrada a conotaccedilotildees pejorativas quanto a sentimentos de pena influencia o

entendimento de que por si soacute jaacute seria errado inadequado ou falacioso utilizaacute-lo ldquose

perguntado se eles querem compaixatildeo pessoas deficientes ou veteranos de guerra

provavelmente diratildeo lsquonatildeorsquo porque lsquocompaixatildeorsquo tem conotaccedilotildees de

condescendecircnciardquo199

Assim a seu ver seria mais apropriado chamar de ldquoapelo agrave

simpatiardquo do que ldquoapelo agrave compaixatildeordquo o que evitaria tal carga semacircntica negativa

Em outro exemplo em 1987 tambeacutem na Casa dos Comuns do Canadaacute discute-

se um projeto de lei cujo texto busca regulamentar o uso de cigarro em locais puacuteblicos

bem como restringir a sua publicidade

Na fala do parlamentar Brud Bradley que se posiciona contra tal projeto de lei

o apelo agrave misericoacuterdia se corporifica na visualizaccedilatildeo das consequecircncias negativas sobre

todo um grupo de pessoas que depende da induacutestria do tabaco para sobreviver Apoacutes

relatar a difiacutecil saga dos produtores de tabaco muitos deles constituiacutedos por imigrantes

que chegaram ao Canadaacute e conseguiram criar sem nenhuma ajuda uma atividade que

rende bilhotildees para o paiacutes questiona-se a difiacutecil situaccedilatildeo em que todos esses cidadatildeos

ficaratildeo ldquonas aacutereas de cultivo de tabaco do Canadaacute temos falecircncias desagregaccedilatildeo

familiar e suiciacutedio E quanto a esses agricultores E sobre os 2600 produtores de tabaco

dedicados no Canadaacute O que a legislaccedilatildeo faz por elesrdquo200

Em resposta Dan Heap defendendo o ato alega que o que se estaacute em discussatildeo

eacute o direito agrave sauacutede que em seu olhar eacute muito mais importante do que o direito de ser

um produtor de tabaco Aleacutem disso 35000 pessoas morrem anualmente no Canadaacute de

doenccedilas relacionadas ao cigarro o que eacute um nuacutemero bem superior aos 2600 produtores

de tabaco

Walton analisando o caso registra que ambas as alegaccedilotildees apelam para

argumentos de consequecircncia Enquanto Bradley advoga as consequecircncias negativas do

projeto de lei Heap busca explorar as positivas O problema eacute que o argumento

utilizado por Bradley eacute fraco e altamente unilateral embora natildeo deva ser rejeitado como

199

ldquoIf asked whether they want pity disabled persons or returning war veterans will probably say lsquonorsquo

for pity has connotations of condescensionrdquo (trad livre) Id ibid p 112 200

ldquoin the tobacco growing areas of Canada we have bankruptcies family breakdown and suicide What

about those farmers What about the 2600 dedicated tobacco farmers in Canada What does the

legislation do for themrdquo (trad livre) Id ibid p 124

80

um todo porque eacute razoaacutevel tambeacutem se preocupar com as consequecircncias sociais

negativas geradas pela nova legislaccedilatildeo Ademais falta evidecircncia que suporte a relaccedilatildeo

causal entre a legislaccedilatildeo tabagista e a alegada falecircncia desagregaccedilatildeo familiar e suiciacutedio

de produtores de tabaco que tambeacutem ocorre em outras culturas agriacutecolas do Canadaacute

Assim tendo em vista que para bem deliberar acerca de um projeto de lei eacute preciso

visualizar todas as consequecircncias possiacuteveis da nova legislaccedilatildeo a extrema

unilateralidade do argumento utilizado por Bradley prejudica o objetivo da discussatildeo

Apoacutes analisar outros casos Walton estabelece a seguinte classificaccedilatildeo para

avaliar o uso do apelo agrave compaixatildeo

(i) razoaacutevel adequado ao contexto do diaacutelogo

(ii) fraco mas natildeo irrelevante ou falacioso quando o apelo eacute unilateral e estaacute

aberto a questionamento criacutetico

(iii) irrelevante o apelo agrave compaixatildeo eacute irrelevante por exemplo numa

investigaccedilatildeo cientiacutefica cujo objetivo eacute reunir evidecircncias para provar se uma

proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa e

(iv) falacioso o uso do apelo eacute fraco e utilizado agressivamente para bloquear os

fins do diaacutelogo e se proteger de questionamentos criacuteticos201

Aleacutem disso mais importante do que determinar se um uso eacute falacioso consiste

em saber como reagir adequadamente ao uso de tal emoccedilatildeo Para isso fornece-se o

seguinte checklist com sete fatores

(i) contexto identificar o contexto do diaacutelogo indagar se o uso da emoccedilatildeo eacute

adequado para aquele contexto e se contribui para os fins da discussatildeo

(ii) peso identificar o tamanho da importacircncia a ser dado ao uso do apelo no

caso em questatildeo o apelo agrave compaixatildeo eacute a questatildeo central do problema ou eacute

apenas algo secundaacuterio

(iii) neutralizaccedilatildeo caso o apelo seja o objeto central da discussatildeo eacute necessaacuterio

reagir energeticamente

(iv) outras consideraccedilotildees importantes caso o apelo agrave misericoacuterdia seja algo

secundaacuterio determinar quais satildeo as questotildees principais para o caso

(v) sopesamento quando o apelo agrave misericoacuterdia eacute utilizado por meio de

argumento por consequecircncias eacute necessaacuterio sopesar ambos os lados

201

Id ibid p 140

81

(vi) presunccedilotildees inadequadas os casos falaciosos geralmente se apresentam

quando o proponente por meio do apelo insere agressivamente uma presunccedilatildeo

com o objetivo de mascarar a necessidade de argumentar adequadamente e

(vii) mais informaccedilotildees ao inveacutes de precipitadamente taxar uma argumentaccedilatildeo

de ldquofalaciosardquo conveacutem requerer mais informaccedilotildees sobre as particularidades do

caso202

De outra parte em relaccedilatildeo ao apelo ao caraacuteter (ad hominem) Walton

diferentemente da abordagem tradicional da loacutegica que o presume sempre falacioso

defende que em determinados casos ele eacute adequado porque no cerne da questatildeo pode

interessar saber questotildees relacionadas ao caraacuteter da pessoa203

Eacute conveniente primeiramente notar que o apelo ao caraacuteter natildeo eacute em si mesmo

uma emoccedilatildeo A inclusatildeo entre as falaacutecias emocionais se justifica por conta dos seus

efeitos isto eacute pela sua capacidade de instigar os acircnimos emotivos nos seus

destinataacuterios204

Assim por exemplo no tribunal podem emergir duacutevidas razoaacuteveis sobre a

credibilidade do depoimento de uma testemunha A sua confiabilidade pode restar

prejudicada diante de inconsistecircncias de afirmaccedilotildees diante da demonstraccedilatildeo de que se

trata de uma pessoa tendenciosa ou de que eacute possuidora de mau caraacuteter Em todas essas

hipoacuteteses eacute razoaacutevel o uso de argumentos que coloque em cheque o caraacuteter da

pessoa205

Em campanhas poliacuteticas depois da chamada ldquoonda eacuteticardquo passou-se a

considerar que questotildees ligadas ao caraacuteter do candidato satildeo de interesse puacuteblico de

modo que eacute razoaacutevel em debates explorar inconsistecircncia de afirmaccedilotildees problemas de

conduta no passado do candidato financiamentos de campanha duvidosos206

O grande problema de argumentos que se destinem a atingir o caraacuteter de outra

pessoa estaacute na sua propensatildeo em transformar um diaacutelogo criacutetico em uma verdadeira luta

verbal em que os acircnimos dos participantes se elevam aos piores niacuteveis ldquode fato o que

acontece muito frequentemente eacute que o diaacutelogo criacutetico original se deteriora num diaacutelogo

eriacutestico ou em espeacutecies de lsquocombate verbalrsquo em que o senso criacutetico eacute deixado para traacutes e

202

Id ibid p 141-142 203

Id ibid p 193 204

Id ibid p p 259-260 205

Id ibid p 195-196 206

Id ibid p 193-194

82

o uacutenico objetivo eacute lsquogolpearrsquo verbalmente a outra parte para lhe ferirrdquo207

Neste caso o

uso do apelo ao caraacuteter eacute considerado falacioso porque altera ilicitamente um diaacutelogo

criacutetico para uma briga verbal (quarrel)208

Por uacuteltimo em relaccedilatildeo ao apelo agrave ameaccedila Walton diz que ele pode ser imoral

ilegal repulsivo brutal sem ser falacioso Para resultar numa falaacutecia ele precisa ir

contra os objetivos do diaacutelogo ldquomuito frequentemente os textos simplesmente

presumem que dado um brutal ou repulsivo ou moralmente repugnante apelo agrave forccedila os

estudantes ou os leitores natildeo necessitaratildeo de mais nenhum esforccedilo persuasivo para

classificaacute-lo como falaacuteciardquo209

Poreacutem em negociaccedilotildees diplomaacuteticas tais apelos satildeo adequados porque este tipo

de diaacutelogo normalmente envolve ameaccedila de sanccedilotildees de retaliaccedilotildees de rompimento de

relaccedilotildees econocircmicas etc Assim eacute preciso estar atento para o tipo de diaacutelogo e o

contexto em que o apelo foi utilizado Ademais eacute necessaacuterio observar se a forma pela

qual foi utilizado objetivou bloquear os objetivos do diaacutelogo Portanto para avaliar a

adequaccedilatildeo do uso da emoccedilatildeo faz toda diferenccedila se as partes se encontram numa

negociaccedilatildeo ou num diaacutelogo persuasivo210

Tendo realizada essa breve exposiccedilatildeo das falaacutecias parte-se agora para os

comentaacuterios finais acerca do modelo de anaacutelise de argumentos em comentaacuterio

Em primeiro lugar eacute preciso dizer que Walton se mostra bastante consciente a

respeito de duas abordagens que podem ser utilizadas para pensar as emoccedilotildees Assim eacute

possiacutevel entendecirc-las como contraacuterias agrave razatildeo e por isso natildeo lhes confiar nenhum

espaccedilo na argumentaccedilatildeo porque o seu uso de todo modo seria suspeito211

Neste

uacuteltimo modelo imperaria o paradigma da loacutegica fria (cold logic) isto eacute uma maneira de

pensar desapaixonada calma e fundada na loacutegica212

De outra parte eacute possiacutevel pensar

que as emoccedilotildees possuem uma funccedilatildeo importante em discussotildees eacuteticas poliacuteticas em

assuntos em que natildeo existe conhecimento conclusivo sobre o meacuterito da questatildeo213

207

ldquoIn fact too often what happens is that the original critical discussion deteriorates into an eristic

dialogue or species of lsquoverbal combatrsquo where critic restraint is left behind and the only aim is to lsquohit outrsquo

verbally to injure the other partyrdquo (trad livre) Id ibid p 192 208

Id ibid p 216 209

ldquoToo often the texts simply presume that given a brutal or repulsive or morally repugnant appeal to

force the students or readers of the text will need no further persuasion to classify it as fallacyrdquo Id ibid

p 78 210

Id ibid p 159 211

Id ibid p 67 212

Id ibid p 2 213

Id ibid p 67

83

Essas duas formas de pensar as emoccedilotildees estatildeo presentes respectivamente na

filosofia de Aristoacuteteles e dos estoicos Se pudeacutessemos realizar uma aproximaccedilatildeo entre

tais formas de pensar com o modelo que aqui expusemos afirmariacuteamos que Walton estaacute

proacuteximo do pensamento de Aristoacuteteles Poreacutem natildeo do pensamento presente na retoacuterica

aristoteacutelica mas da abordagem emotiva construiacuteda na Eacutetica a Nicocircmaco que

compreende que a boa medida das emoccedilotildees ocorre quando elas satildeo sentidas

adequadamente e isso significa dizer que elas devem ser experimentadas no momento

certo de modo correto em relaccedilatildeo agraves pessoas e aos fins certos Em outras palavras as

emoccedilotildees podem ser adequadas ou inadequadas de acordo com as circunstacircncias

Walton admite que as emoccedilotildees podem desempenhar uma importante funccedilatildeo na

argumentaccedilatildeo mas eacute preciso ter cautela porque elas tambeacutem podem ser mal utilizadas

Assim satildeo fornecidos alguns paracircmetros para verificar o seu grau de adequaccedilatildeo ou

inadequaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo

para o impacto do uso da emoccedilatildeo e para o contexto em que satildeo utilizadas Quando bem

empregadas elas satildeo legiacutetimas e importantes para uma boa decisatildeo

Ademais o canadense tambeacutem informa que essa ldquodisputardquo estre aristoteacutelicos e

estoicos a respeito das emoccedilotildees continua nos dias de hoje a exercer a sua influecircncia e

deu azo para que Brinton justificasse a criaccedilatildeo do argumentum ad indignationem Como

se sabe sentir raiva para a eacutetica estoica eacute terminantemente proibido sob qualquer

circunstacircncia mas para Aristoacuteteles natildeo sentir raiva em relaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo que

merecesse seria uma falha de caraacuteter Adotando este uacuteltimo posicionamento o

argumentum ad indignationem seria o uso da raiva na argumentaccedilatildeo na medida

adequada agrave situaccedilatildeo214

Walton justifica que estudar os aspectos falhos da argumentaccedilatildeo e

principalmente compreender quando as emoccedilotildees satildeo utilizadas inadequadamente eacute um

exerciacutecio importante para o aperfeiccediloamento da praacutetica argumentativa porque em

assuntos polecircmicos e difiacuteceis geralmente ficamos presos a inclinaccedilotildees pessoais

tornamo-nos facilmente apaixonados e perdemos a perspectiva criacutetica ldquoataques

pessoais diversatildeo emocional e outras tentaccedilotildees satildeo caracteriacutesticas mais frequentes da

argumentaccedilatildeo humana do que o uso de argumentos corretos e friamente imparciaisrdquo215

214

Id ibid p 68 215

ldquopersonal attack emotional diversion and other temptations are more often characteristic of human

reasoning than correct and coolly impartial argumentsrdquo (trad livre) Id ibid p 64

84

Por derradeiro registre-se que ao tentar encontrar um lugar para as emoccedilotildees na

argumentaccedilatildeo como o proacuteprio tiacutetulo da sua obra sugere Walton procura devolver

complexidade agrave mateacuteria evitando o impulso de previamente classificar qualquer apelo

emotivo como falacioso Desse modo a abordagem sob comento concilia-se com alguns

aspectos da argumentaccedilatildeo praacutetica mas frise-se sem perder a perspectiva criacutetica jaacute que

natildeo abandona a censura quanto ao mau uso das emoccedilotildees no discurso

De outra parte por ser um estudo criacutetico em relaccedilatildeo agraves ldquofalaacutecias adrdquo Walton

fica preso a este paradigma classificatoacuterio e por isso natildeo explora algumas questotildees

importantes para a mateacuteria Por exemplo como identificar as emoccedilotildees no discurso De

que modo elas podem se apresentar Tentar responder tais perguntas consiste no

objetivo do proacuteximo toacutepico

25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees

Localizar as emoccedilotildees no discurso natildeo eacute uma atividade oacutebvia e a linguiacutestica

recentemente tem envidado relevante esforccedilo para encontraacute-las embora nem sempre

tenha sido assim

Kerbrat-Orechionni afirma que o espaccedilo para as emoccedilotildees na linguiacutestica do sec

XX foi miacutenima216

Desse modo falando em nome de toda uma geraccedilatildeo Saphir em

1921 diz que o material da liacutengua satildeo os conceitos as ideias e a realidade objetiva

sendo que as emoccedilotildees satildeo consideradas subjetividades linguiacutesticas de importacircncia

secundaacuteria que tentam expressar questotildees interiores do homem O linguista alematildeo

categoricamente afirma que as emoccedilotildees na qualidade de manifestaccedilotildees instintivas que

partilhamos com os seres irracionais natildeo podem ldquo[] ser consideradas como fazendo

parte da concepccedilatildeo cultural essencial da linguagemrdquo217

Fazendo um contraste com esta afirmaccedilatildeo e jaacute num outro momento do seacuteculo

XX Schieffelin e Ochs em 1989 defendem que para aleacutem da funccedilatildeo de comunicar

informaccedilotildees referenciais a liacutengua eacute veiacuteculo fundamental na transmissatildeo de sentimentos

estados de espiacuterito e disposiccedilotildees ldquoesta necessidade eacute tatildeo criacutetica e tatildeo humana quanto

216

ORECCHIONI-KERBRAT Catherine Quelle place pour les eacutemotions dans la linguistique du XXe

siegravecle Remarques et aperccedilus In PLANTIN Christian DOURY Marianne TRAVERSO Veacuteronique

(dir) Les eacutemotions dans les interations Lyon Presses Universitaires de Lyon 2000 p 33 217

ldquothey cannot be considered as forming part of the essential cultural conception of languagerdquo (trad

livre) SAPHIR Edward Language an introduction to the study of speech New York Hartcourt Brace

and Company 1921 p 40

85

aquela de descrever eventosrdquo218

Assim separando os canais de transmissatildeo dos afetos

entre verbais e natildeo-verbais (expressotildees faciais gestos etc) os mencionados autores

concentram os seus estudos nos meios verbais de expressatildeo A conclusatildeo alcanccedilada eacute

que a liacutengua como um todo eacute um campo do afeto inclusive aquelas aacutereas

tradicionalmente consideradas circunscriccedilotildees exclusivas da loacutegica

Natildeo se pode arguir por exemplo que a sintaxe sirva exclusivamente a

funccedilotildees loacutegicas enquanto as funccedilotildees afetivas satildeo realizadas pela

entonaccedilatildeo e pelo leacutexico O afeto permeia o sistema linguiacutestico por

inteiro Praticamente qualquer aspecto do sistema linguiacutestico que eacute

variaacutevel eacute candidato a expressar afeto219

Eacute sobre esse tema que a escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo tem se preocupado

nos uacuteltimos tempos sendo Plantin um dos pioneiros no estudo das emoccedilotildees no discurso

Assim no intento de buscar referecircncias de anaacutelise para o exame de decisotildees judiciais a

ser realizado no Capiacutetulo III iremos abordar a classificaccedilatildeo proposta por Micheli um

dos representantes de tal escola

Eemeren conforme vimos anteriormente afirma que o ldquoteste aacutecidordquo de uma

teoria da argumentaccedilatildeo diz respeito agrave sua compreensatildeo sobre as falaacutecias Se ela passar

nessa difiacutecil prova pode-se dizer que estamos diante de uma teoria da argumentaccedilatildeo

com bom poder de explanaccedilatildeo e de alcance

Assim se levarmos rigorosamente tal afirmaccedilatildeo em consideraccedilatildeo podemos

dizer que iremos analisar uma teoria da argumentaccedilatildeo que perdeu o seu ldquoinstintordquo uma

vez que a abordagem utilizada eacute puramente descritiva A despeito disso abordagens

descritivas tecircm o seu papel pois procurando narrar os eventos do mundo de maneira

mais interessante podem organizar melhor determinados temas ou ateacute possibilitarem

melhores insights prescritivos

Dito isso Micheli considera que um dos grandes problemas em relaccedilatildeo ao

exame das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade O objetivo do seu

trabalho portanto consiste em fornecer um modelo que possibilite analisar e distinguir

o complexo processo em que as emoccedilotildees satildeo semiotizadas no discurso Para isso

apresenta-se uma tipologia classificatoacuteria econocircmica mas ao mesmo tempo

218

ldquoThis need is as critical and as human as that of describing eventsrdquo (trad livre) OCHS Elinor

SCHIEFFELIN Bambi Language has a heart In Interdisciplinary journal for the study of discourse 7-

26 p9 219

ldquoOne cannot argue for example that syntax exclusively serves logical functions while affective

functions are carried out by intonation and the lexico Affect permeates the entire linguistic system

Almost any aspect of the linguistic system that is variable is a candidate for expressing affectrdquo (trad

livre) Id ibid p 22

86

teoricamente forte o suficiente para descrever satisfatoriamente o fenocircmeno em

comentaacuterio220

Primeiramente adverte-se que tal modelo natildeo se interessaraacute pelas emoccedilotildees

efetivamente experimentadas pelos sujeitos do discurso Assim natildeo seraacute objeto de

especulaccedilatildeo se o sujeito realmente experimenta aquilo que ele exprime ou procura

suscitar no seu discurso (orador) nem seraacute o cerne da pesquisa saber se o destinataacuterio

do discurso de fato sente aquela emoccedilatildeo endereccedilada (auditoacuterio) porque poderaacute haver

discrepacircncias entre aquilo que eacute publicizado e o que eacute efetivamente sentido ldquoum estudo

da construccedilatildeo das emoccedilotildees no discurso natildeo concerne assim nem agrave emoccedilatildeo efetivamente

sentida pelo locutor nem aquela efetivamente suscitada no alocutaacuteriordquo221

Assim excluindo a categoria da emoccedilatildeo experimentada a tipologia apresentada

por Micheli para a anaacutelise do discurso emotivo eacute a seguinte a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo

demonstrada e a emoccedilatildeo suportada

Na categoria da emoccedilatildeo dita percebe-se a presenccedila de enunciados em cujo seio

se apresenta uma palavra do leacutexico que designa especificamente uma emoccedilatildeo (ldquoestes

problemas processuais me datildeo raivardquo ldquoo reacuteu estava indignadordquo) Uma das

caracteriacutesticas da emoccedilatildeo dita eacute que ela faz referecircncia a um ente que sente a emoccedilatildeo

(ldquomerdquo ldquoo reacuteurdquo) Assim natildeo pertencem a esta categoria aquelas hipoacuteteses em que uma

emoccedilatildeo eacute ela mesma objeto de descriccedilatildeo (ldquoa raiva eacute cegardquo ldquoo amor eacute capaz de tudordquo)

natildeo sendo estes enunciados hipoacuteteses de um discurso emotivo222

Desse modo na emoccedilatildeo dita eacute preciso que o item lexical designador de uma

emoccedilatildeo seja atribuiacutedo a uma entidade humana ou humanizaacutevel (ldquoo povordquo ldquoelerdquo ldquoeurdquo

algum animal etc) 223

Portanto uma das caracteriacutesticas do discurso que diz a emoccedilatildeo eacute

que ele tanto pode auto-atribuir a emoccedilatildeo (ldquoa situaccedilatildeo me deixa indignadordquo) quanto

pode alo-atribuiacute-la (ldquoa raiva tomou conta da meninardquo) Assim haacute uma relaccedilatildeo

predicativa entre duas expressotildees ldquouma que incorpora um termo emotivo e outro que

designa uma entidade humana ou humanizaacutevel que deveria sentir tal emoccedilatildeordquo224

220

MICHELI Raphaumlel Les eacutemotions dans les discours modegravele drsquoanalyse perspectives empiriques

Louvain-la-Neuve De Boeck Supeacuterieur 2014 p 11-12 221

ldquoUne eacutetude de la construction des eacutemotions dans le discours ne concerne ainsi ni lrsquoeacutemotion

effectivement ressentie par le locuteur ni celle effectivement susciteacuteeacute chez lrsquoallocutairerdquo (trad livre) Id

ibid p 118 222

Id ibid p 43 223

Id ibid p 43 224

ldquolrsquoune incorporant un terme drsquoeacutemotion lrsquoautre deacutesignant une entiteacute humaine ou humanisable censeacutee

ressentir cette eacutemotionrdquo (trad livre) Id ibid p 46

87

Ademais conveacutem registrar que existem fatores variaacuteveis nas declaraccedilotildees que

dizem uma emoccedilatildeo Por exemplo o termo emotivo pode pertencer a vaacuterias categorias

lexicais um nome (ldquoindignaccedilatildeordquo) um adjetivo (ldquoindignadordquo) um verbo (ldquoindignar-serdquo)

um adveacuterbio (ldquoindignadamenterdquo) De outra parte o termo emotivo pode ocupar

diferentes posiccedilotildees sintaacuteticas sujeito (ldquoa compaixatildeo se apoderou do juizrdquo)

complemento direto (ldquoele sentiu muita vergonhardquo) Vaacuterios verbos satildeo capazes de

facilitar esse processo ldquoinvadirrdquo ldquosubmergirrdquo ldquotomarrdquo ldquoterrdquo ldquoserrdquo ldquosentirrdquo

ldquoexperimentarrdquo ldquoexplodirrdquo etc (ldquoo depoimento da testemunha fez com que todos

explodissem de raivardquo)225

Se a emoccedilatildeo dita tem por sua caracteriacutestica o fato de ser mais facilmente

observaacutevel a categoria da emoccedilatildeo demonstrada carece de contornos precisos a sua

interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel apenas atraveacutes de indiacutecios que nos possibilitam inferir a

presenccedila de uma emoccedilatildeo ldquoenunciados que demonstrem uma emoccedilatildeo tecircm caracteriacutesticas

que embora potencialmente muito heterogecircneas satildeo todas passiacuteveis de uma

interpretaccedilatildeo indicialrdquo226

Assim na emoccedilatildeo demonstrada natildeo haacute a presenccedila de um expliacutecito termo

emotivo e por essa razatildeo inexiste uma relaccedilatildeo predicativa que a conecta a uma

entidade humana afetada pela emoccedilatildeo Por isso a sua interpretaccedilatildeo reside na procura de

indiacutecios ldquoIndiacuteciordquo aqui significa a presenccedila de um signo a partir do qual se infere a

presenccedila de determinado objeto porque normalmente diante da ocorrecircncia do

primeiro tambeacutem ocorre o segundo Em outras palavras pode-se afirmar que em face

da apresentaccedilatildeo de determinadas caracteriacutesticas discursivas eacute plausiacutevel inferir que ela eacute

causada por uma emoccedilatildeo supostamente sentida pelo locutor227

Registre-se que nesta categoria natildeo interessa saber a respeito da descriccedilatildeo de

processos fisioloacutegicos ou comportamentais da emoccedilatildeo (ldquoo coraccedilatildeo disparou os laacutebios

tremeram e ele sentiu um enorme frio na barrigardquo) pois se os indiacutecios satildeo verbalizados

e detalhados eles natildeo satildeo mais indiacutecios228

Assim a fim de esclarecer sem exaustividade quais indiacutecios satildeo importantes

para a categoria da emoccedilatildeo demonstrada oferecem-se alguns marcadores que precisam

ser interpretados dentro de um contexto situacional determinado a fim de compreender

225

Id ibid p 49-51 226

ldquoLes eacutenonceacutes qui montrent lrsquoeacutemotion preacutesentent des caracteacuteristiques qui bien que potentiellement tregraves

heacuteteacuterogegravenes sont toutes passibles drsquoune interpreacutetation indiciellerdquo (trad livre) Id ibid p 63 227

Id ibid p 64 228

Id ibid p 66-67

88

de que modo eles satildeo utilizados e a que espeacutecies de emoccedilatildeo eles se referem Por

exemplo (i) as interjeiccedilotildees (ldquonossa quanto processordquo ldquomeu deusrdquo ldquoahrdquo) (ii) a

exclamaccedilatildeo (ldquopreciso ir emborardquo ldquoque julgamentordquo) (iii) os enunciados eliacutepticos que

por meio de uma reduccedilatildeo sintaacutetica possibilitam a manifestaccedilatildeo indicial de uma emoccedilatildeo

(iv) os enunciados averbais (v) os enunciados deslocados agrave direita pois existe uma

relaccedilatildeo entre o modo de ordenar a frase dando ecircnfase a determinados elementos e as

emoccedilotildees (ldquoeacute muito trabalhador esse juizrdquo)229

Por uacuteltimo e de maior interesse para o nosso trabalho estaacute a ideia de emoccedilatildeo

suportada Nesta categoria eacute possiacutevel inferir que uma emoccedilatildeo fundamenta um

especiacutefico discurso natildeo porque ela seja nomeada explicitamente nem porque existam os

tipos de indiacutecios descritos logo acima mas porque a estrutura linguiacutestica do discurso

espelha ou ldquoesquematizardquo a estrutura cognitiva de uma determinada emoccedilatildeo

Primeiramente para explicar esta categoria Micheli fundamentado na

psicologia cognitiva especialmente na Teoria da Avaliaccedilatildeo que iremos abordar com

mais detalhes no proacuteximo toacutepico procura estabelecer uma relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a

avaliaccedilatildeo da realidade A experiecircncia emocional do sujeito estaacute diretamente relacionada

agrave avaliaccedilatildeo que ele faz de uma determinada situaccedilatildeo Dois indiviacuteduos podem avaliar

uma mesma situaccedilatildeo diferentemente e por isso obterem distintas respostas emocionais

Ademais baseando-se numa perspectiva socioloacutegica e antropoloacutegica enfatiza-se que o

contexto sociocultural tem destacada funccedilatildeo na forma pela qual o indiviacuteduo avalia a

realidade O pertencimento a uma determinada cultura pode explicar a preponderacircncia

de determinadas respostas emotivas em detrimento de outras230

Tais observaccedilotildees satildeo feitas com o objetivo de transpocirc-las para o campo da

anaacutelise do discurso ldquoa questatildeo agora eacute saber como tirar parte desses diversos trabalhos

numa oacutetica das ciecircncias da linguagem e para aquilo que nos interessa da anaacutelise do

discursordquo231

Para isso o autor recorre agrave noccedilatildeo de ldquoesquemardquo discursivo derivada de Grize O

esquema eacute uma especiacutefica forma de organizar a realidade fazecirc-la compreensiacutevel e

assim transmitir linguisticamente as emoccedilotildees Desse modo fornecem-se 7 (sete)

229

Id ibid p 75-95 230

Id ibid p 106-112 231

ldquoLa question est maintenant de savoir comment tirer parti de ces divers travaux dans une optique de

sciences du langage et pour ce qui nous concerne drsquoanalyse du discoursrdquo (trad livre) Id ibid p 112

89

criteacuterios de esquematizaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo emotiva derivados tanto da psicologia

cognitiva quanto dos trabalhos de Plantin

(i) as pessoas implicadas identificar quem satildeo as pessoas presentes no discurso

como elas satildeo representadas e nomeadas e quais papeis satildeo a elas associadas

(ii) as noccedilotildees de tempo e de espaccedilo identificar como a situaccedilatildeo eacute descrita no

tempo e no espaccedilo pelo locutor a fim de enfatizar os seus aspectos emotivos

ldquoontem mesmordquo ldquotodos os dias no Brasilrdquo

(iii) as consequecircncias e o grau de probabilidade identificar como o discurso

descreve as consequecircncias da situaccedilatildeo esquematizada e de que modo eacute

enfatizado o grau de probabilidade de seu acontecimento

(iv) a atribuiccedilatildeo causal e a autoria identificar se o discurso assinala uma causa

para a situaccedilatildeo esquematizada e se haacute um agente cuja accedilatildeo ou omissatildeo resultou

na hipoacutetese narrada por exemplo na indignaccedilatildeo a descriccedilatildeo do sofrimento de

um determinado sujeito eacute resultado de uma accedilatildeo ou de uma omissatildeo imputaacutevel a

um agente

(v) o potencial de controle identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo

emotiva eacute esquematizado O discurso pode enfatizar o grau de incontrolabilidade

de uma determinada situaccedilatildeo a fim de despertar o medo ou pode enfatizar a sua

controlabilidade para fundar sentimentos de aliacutevio e de alegria

(vi) a semelhanccedila identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute comparada com

outra situaccedilatildeo a fim de lhe emprestar conteuacutedo emocional Por exemplo

Micheli narra que em 1791 Robespierre no debate parlamentar a respeito da

aboliccedilatildeo da pena de morte na Franccedila lanccedila a seguinte comparaccedilatildeo a fim de

demonstrar a desproporcionalidade de forccedilas presente em duas situaccedilotildees um

homem que mata uma crianccedila a qual poderia ter sido simplesmente desarmada

parece ser um monstro um prisioneiro que a sociedade condena estaacute numa

situaccedilatildeo de maior fragilidade do que a de uma crianccedila ante a um adulto

(vii) a significaccedilatildeo normativa identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute

compatiacutevel ou incompatiacutevel com os valores e normas compartilhados em relaccedilatildeo

a um grupo de referecircncia A vergonha por exemplo atua diante da crenccedila da

incapacidade de atingir as normas de determinados grupos (profissional

familiar amigos etc)232

232

Id ibid p 115-119

90

Assim e a tiacutetulo comparativo na emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo eacute expressamente

designada por meio de um termo emotivo enquanto que na emoccedilatildeo demonstrada e

suportada a identificaccedilatildeo da emoccedilatildeo eacute alcanccedilada por meio de uma interpretaccedilatildeo

inferencial Por outro lado na emoccedilatildeo demonstrada parte-se de indiacutecios (signos) a fim

de se inferir a presenccedila de determinada emoccedilatildeo e na emoccedilatildeo suportada haacute uma

esquematizaccedilatildeo dos fundamentos de uma determinada emoccedilatildeo a partir do qual se infere

a sua presenccedila233

Ademais saliente-se que estas trecircs categorias (a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo

demonstrada e a emoccedilatildeo suportada) podem simultaneamente estar presentes num

mesmo discurso ou natildeo ou seja eacute possiacutevel que um discurso seja portador de uma

emoccedilatildeo sem que expressamente a mencione

Tendo finalizada a exposiccedilatildeo da classificaccedilatildeo elaborada por Micheli eacute preciso

registrar que um dos objetivos da abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees no discurso e que

vem ao encontro do escopo deste trabalho consiste em diminuir a forte separaccedilatildeo

atualmente existente entre logos e pathos

Nesse sentido Plantin destaca que em nossa eacutepoca os aspectos racionais e

emocionais andam tatildeo desconectados que ao se falar que um discurso tem caraacuteter

emotivo levanta-se automaticamente a suspeita de se estar tratando de algo em direccedilatildeo

oposta agrave razatildeo ldquoa antinomia racional e emocional estaacute tatildeo profundamente assentada que

caracterizar um discurso como lsquoemocionalrsquo equivale praticamente a dizer que ele natildeo eacute

racional Esta interpretaccedilatildeo deve ser fortemente rejeitadardquo234

Motivos para essa forte separaccedilatildeo com niacutetido prejuiacutezo para o estudo do campo

das emoccedilotildees natildeo faltam temos a longa tradiccedilatildeo pejorativa da retoacuterica as emoccedilotildees

foram intensamente utilizadas e associadas agrave propaganda de regimes totalitaacuterios a

disciplina das falaacutecias eacute o uacutenico espaccedilo dentro da teoria standard da argumentaccedilatildeo que

tematiza as emoccedilotildees e se pudermos refletir este assunto ainda mais distante no tempo

temos antigas tradiccedilotildees filosoacuteficas tal como a escola estoica que entendem as emoccedilotildees

como irracionais contraacuterias agrave natureza excessivas e que por isso deveriam ser

suprimidas a fim de compreendermos corretamente o mundo

233

Id ibid p 119-120 234

ldquoThe antonomy rationalemotional is so deeply grounded that characterizing a discourse as lsquoemotionalrsquo

practically amounts to implying that it is not rational Such an interpretation should be strongly rejectedrdquo

(trad livre) PLANTIN Christian On the Inseparability of Emotion and Reason in Argumentation In

WEIGAND Edda (ed) Emotion in dialogic interaction AmsterdamPhiladelphia John Benjamins

Publishing Company 2004 265-276 p 274

91

No entanto e sob a perspectiva argumentativa Plantin destaca que eacute

impraticaacutevel se livrar das emoccedilotildees na linguagem jaacute que o argumentar implica tambeacutem

assumir posiccedilotildees afetivas diante do mundo ldquoEacute impossiacutevel moldar linguisticamente um

evento sem no mesmo gesto mostrar uma atitude emocional em relaccedilatildeo a este evento

Manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees emocionais natildeo satildeo distintas das manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees

racionaisrdquo235

Destaque-se que na abordagem tradicional ou padratildeo da MTA as emoccedilotildees satildeo

vistas como ldquoreforccedilosrdquo ou ldquonatildeo-argumentosrdquo ocupam papel ldquoauxiliarrdquo no discurso satildeo

registradas como ldquoapelosrdquo e por isso tecircm um tratamento teoacuterico bem limitado

aparecendo no mais das vezes como erros de argumentaccedilatildeo na disciplina das ldquofalaacutecias

adrdquo

Contra este panorama Micheli advoga que as emoccedilotildees podem ser

argumentaacuteveis isto eacute elas mesmas podem ser objeto do discurso e por isso de

construccedilatildeo argumentativa ldquoa este respeito os falantes argumentam a favor ou contra

uma emoccedilatildeo eles datildeo razotildees para fundamentar por que eles sentem (ou natildeo sentem)

esta emoccedilatildeo e por que ela deveria (ou natildeo deveria) ser legitimamente sentidardquo236

Ao analisar os registros do debate parlamentar francecircs acerca da aboliccedilatildeo da

pena de morte entre 1791 ateacute 1981 Micheli anota que havia algo em comum entre

abolicionistas e anti-abolicionistas ambos forneciam razotildees para sentir ou natildeo sentir

uma determinada emoccedilatildeo

Por exemplo no debate de 1791 tanto os abolicionistas quanto os anti-

abolicionistas elaboram o sentimento de medo por meio de argumentos de

consequecircncia

Do lado abolicionista os efeitos do ldquoespetaacuteculo da execuccedilatildeordquo sobre o puacuteblico

satildeo construiacutedos argumentativamente do seguinte modo a pena de morte alimenta o

sentimento de crueldade nas pessoas porque ocorre um processo de dessensibilizaccedilatildeo

do ser humano ldquoo espetaacuteculo da execuccedilatildeo tem por efeito atenuar ou inibir as

disposiccedilotildees morais e afetivas saudaacuteveisrdquo237

Ademais a crueldade tornada puacuteblica eacute um

235

ldquoIt is impossible to linguistically shape an event without in the same gesture displaying an emotional

attitude towards this event Emotional manipulationsconstructions are not distinct from rational

manipulations constructionsrdquo (trad livre) Id ibid p 274 236

ldquoIn this respect speakers argue in favor of or against an emotion they give reasons supporting why

they feel (or do not feel) this emotion and why it should (or should not) be legitimately feltrdquo (trad livre)

MICHELI Raphaumlel Emotions as objects of argumentative constructions In Argumentation Journal

2010b vol 24 Issue 1 1ndash17 p 13 237

ldquole spectacle de lrsquoexeacutecution a pour effet drsquoatteacutenuer voire drsquoinhiber des dispositions morales et

affectives sainesrdquo (trad livre) MICHELI R op cit 2010a p 248

92

estiacutemulo para que pessoas perversas venham a cometer crimes ou seja cria-se um

ambiente propiacutecio ao cometimento de mais delitos238

Por sua vez do lado anti-abolicionista explora-se a ineficaacutecia das penas

alternativas em diminuir a criminalidade O criminoso potencial natildeo seraacute mais

atemorizado por nada o resultado disso eacute uma sociedade cheia de crimes e de

delinquentes

Em resumo por meio da construccedilatildeo de argumentos que antecipem as

consequecircncias negativas da nova legislaccedilatildeo cada parte do debate procurou estruturar o

sentimento de medo no discurso

Por uacuteltimo conveacutem registrar que embora a teoria desenvolvida por Micheli natildeo

tenha fornecido criteacuterios para a avaliaccedilatildeo do discurso emotivo ela significativamente

melhorou a visualizaccedilatildeo do tema ao possibilitar a organizaccedilatildeo do assunto por meio de

uma classificaccedilatildeo econocircmica compreensiacutevel e com capacidade descritiva Nesse ponto

eacute necessaacuterio reconhecer que aleacutem de natildeo se interessar pelo tema das emoccedilotildees a teoria

normativa da argumentaccedilatildeo parece tambeacutem sofrer de um deacuteficit descritivo

26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees

Enfrentar o tema das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo implica tambeacutem se posicionar a

respeito de problemas de psicologia e talvez resida neste especiacutefico ponto um dos

grandes diferenciais das escolas filosoacuteficas da Antiguidade Isso porque o pensamento

antigo era caracterizado por ser integral ou seja ele abrangia os mais diversos aspectos

do saber humano (eacutetica poliacutetica retoacuterica fiacutesica epistemologia etc) o que facilitava

significativamente o tratamento do presente assunto porque a proacutepria escola filosoacutefica

produzia a sua psicologia que depois era aplicada em outras aacutereas Desse modo tanto

Aristoacuteteles quanto os estoicos transitaram com autoridade sobre o tema das emoccedilotildees

justamente porque elaboraram sua proacutepria disciplina psicoloacutegica

Eacute certo que o forte desenvolvimento da ciecircncia moderna eacute tambeacutem resultado do

fenocircmeno da especializaccedilatildeo do saber o que permite por exemplo que uma pessoa

passe a sua vida inteira apenas pesquisando sobre as propriedades dos neutrinos Mas

por outro lado eacute razoaacutevel pensar que estes ldquodesligamentosrdquo entre as aacutereas provocaram

algumas fraturas de pensamento que hoje em dia a interdisciplinaridade procura um

pouco diminuir

238

Id ibid p 248-249

93

Desse modo a fim de possibilitar a compreensatildeo psicoloacutegica de nossa eacutepoca

acerca das emoccedilotildees nosso intento neste toacutepico consiste em apresentar alguns aspectos

principais da chamada Teoria da Avaliaccedilatildeo pertencente ao campo da psicologia

cognitiva

Assim em primeiro lugar situando historicamente o nascimento da Teoria da

Avaliaccedilatildeo interessa perceber que ateacute por volta de 1960 a importacircncia das emoccedilotildees

para a psicologia era praticamente nula devido agrave resistecircncia em relaccedilatildeo ao tema por

parte do behaviorismo e do positivismo loacutegico campos da psicologia predominantes na

eacutepoca A ecircnfase dos textos de psicologia era direcionada para a aprendizagem para a

personalidade para a motivaccedilatildeo para a percepccedilatildeo para a fisiologia e para a

psicopatologia239

Quando o presente tema era abordado a uacutenica emoccedilatildeo que ganhava algum

destaque por influecircncia freudiana era a anguacutestia entendida como emoccedilatildeo-chave para

explicar os transtornos de ordem mental as demais emoccedilotildees natildeo eram tematizadas

muito menos individualizadas Havia algum interesse em relaccedilatildeo agrave culpa tambeacutem por

influecircncia da psicanaacutelise e em relaccedilatildeo agrave depressatildeo mas esta uacuteltima natildeo eacute considerada

uma emoccedilatildeo mas um complexo processo mental em que vaacuterias emoccedilotildees negativas

estatildeo atuantes240

Outro pensamento influente era de que as emoccedilotildees natildeo passavam de

interrupccedilotildees das operaccedilotildees mentais natildeo merecendo por isso atenccedilatildeo241

Assim em

resumo ldquoos psicoacutelogos acadecircmicos pareciam estar pouco interessados nas emoccedilotildees e

uma vez que eles natildeo as incluiacuteam no curriacuteculo oficial eacute possiacutevel dizer que eles as

consideravam uma mateacuteria altamente especializada talvez ateacute exoacuteticardquo242

O pecircndulo da balanccedila comeccedilou a mudar em virtude dos trabalhos pioneiros de

Magda Arnold e de Richard S Lazarus na deacutecada de 1960 Assim divergindo do

paradigma da eacutepoca Arnold defendeu na sua teoria cognitiva que a deflagraccedilatildeo da

emoccedilatildeo depende em primeiro lugar da avaliaccedilatildeo feita pelo indiviacuteduo de uma

determinada situaccedilatildeo Por sua vez Lazarus realizando pesquisas entre a relaccedilatildeo das

239

LAZARUS Richard S Emotion amp adaptation New YorkOxford Oxford University Press 1991

p 4-5 240

Id ibid p 5 241

SCHOR Angela Appraisal the evolution of an idea In SCHERER Klaus R SCHORR Angela

JOHNSTONE Tom (ed) Appraisal processes in emotion theory methods research New York

Oxford University Press 2001 20-36 p 20 242

ldquoAcademic psychologists have seemed little interested in emotion and because they do not include it

in the core curriculum they could be said to regard it as a highly specialized perhaps even exotic topicrdquo

(trad livre) LAZARUS op cit p 5

94

emoccedilotildees com o stress utilizou tambeacutem a noccedilatildeo de avaliaccedilatildeo e de reavaliaccedilatildeo No

Simpoacutesio Loyola de 1970 Lazarus destaca

Estendendo a posiccedilatildeo de Magda Arnold apenas um pouco noacutes

argumentamos que o padratildeo de excitaccedilatildeo observada na emoccedilatildeo deriva

de impulsos para agir que satildeo gerados pela situaccedilatildeo avaliada pelo

indiviacuteduo e pelas possibilidades avaliadas disponiacuteveis para a accedilatildeo243

Assim foi a partir destes trabalhos que surgiu um novo campo de estudos sobre

as emoccedilotildees na psicologia cujo denominador comum consiste em colocar a ideia de

avaliaccedilatildeo no centro de suas pesquisas Em outras palavras as emoccedilotildees satildeo o resultado

de uma avaliaccedilatildeo acerca de uma determinada situaccedilatildeo realizada pelo sujeito

Antes de prosseguir a primeira observaccedilatildeo a ser feita em relaccedilatildeo a este

posicionamento diz respeito ao fato de que ele vai ao encontro do entendimento de

Crisipo que compreendia que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees sobre a realidade Esta

surpreendente coincidecircncia eacute expressamente notada por Scherer ldquoeste fenocircmeno jaacute

tinha sido descrito pelo filoacutesofo estoico Crisipo que pode muito bem ter sido o primeiro

verdadeiro teoacuterico da avaliaccedilatildeordquo244

Outro ponto digno de menccedilatildeo quanto a esse novo momento teoacuterico vivido na

psicologia foi o aparecimento do interesse por parte dos psicoacutelogos pelo estudo da obra

de Aristoacuteteles mais precisamente pelo Livro II da Retoacuterica parte em que satildeo tratadas as

emoccedilotildees sob uma oacutetica cognitiva Lazarus destaca que com algumas breves exceccedilotildees

na histoacuteria houve praticamente um intervalo de dois mil anos ateacute que o cognitivismo

emotivo pudesse ser novamente abordado245

O fato eacute que a construccedilatildeo teoacuterica realizada tanto por Aristoacuteteles quanto pelos

estoicos eacute de boa qualidade e a despeito do tempo continua a ser bastante atual e uma

preciosa referecircncia histoacuterica acerca do tema Relembrando o que dissemos o Estagirita

compreendia que a nossa visatildeo a respeito dos mais variados assuntos se altera de acordo

com os nossos estados emocionais Aleacutem disso esquematizou e individualizou a

243

ldquoExtending Magda Arnolds position just a bit we argue that the pattern of arousal observed in

emotion derives from impulses to action which are generated by the individuals appraised situation and

by the evaluated possibilities available for actionrdquo (trad livre) LAZARUS Richard S AVERILL James

R OPTON Edward M Torwards a cognitive theory of emotions in ARNOLD Magda (org) Feelings

and emotions the Loyola symposium New YorkLondon Academic Press 1970 207-232 p 218 244

ldquoThis phenomenon has already been described by the stoic philosopher Chrysippus who may well

have been the first real appraisal theoristrdquo (trad livre) SCHERER Klaus R The nature and study of

appraisal a review of the issues In SCHERER Klaus R SCHORR Angela JOHNSTONE Tom (ed)

Appraisal processes in emotion theory methods research New York Oxford University Press 2001

369-391 p 384 245

LAZARUS R Op cit p 14

95

estrutura de vaacuterias emoccedilotildees importantes sendo que os livros de psicologia cognitiva

tecircm adotado a mesma praacutetica hoje em dia Ademais conveacutem recordar que refinamentos

da psicologia aristoteacutelica tal como a ideia de phantasia explicam o surgimento e a

estruturaccedilatildeo das emoccedilotildees Do lado estoico pode-se dizer que o cognitivismo foi ainda

mais marcante porque natildeo fazia uso da ideia de sentimentos mistos (prazer e dor)

derivada de Platatildeo Por fim aleacutem de dizer que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees os estoicos

originalmente utilizaram a ideia de impulso de assentimento e de atribuiccedilatildeo de valores

para explicar o agrupamento de determinadas emoccedilotildees

Tendo registrado essas observaccedilotildees conveacutem agora compreender com mais

detalhes a abordagem da Teoria da Avaliaccedilatildeo delimitando a competecircncia da nossa

investigaccedilatildeo ao pensamento de Lazarus e de Scherer

Assim em primeiro lugar em relaccedilatildeo agrave sua deflagraccedilatildeo as emoccedilotildees satildeo

iniciadas apenas diante de eventos que de alguma forma avaliamos relevantes para a

nossa esfera pessoal Nesse sentido satildeo para noacutes subjetivamente importantes aspectos

factuais relacionados a valores necessidades objetivos ou bem-estar geral Quando

alguns destes fatores estatildeo em jogo numa dada situaccedilatildeo e a depender de como os

avaliamos deflagra-se uma especiacutefica resposta emocional (raiva oacutedio aliacutevio vergonha

alegria amor) Portanto o evento-gatilho da emoccedilatildeo precisa ser pessoalmente

significativo pois de outra forma haveraacute indiferenccedila emocional246

Aleacutem de avaliar se um evento eacute significativo ou natildeo surge uma outra etapa do

processo avaliativo em que ponderamos possiacuteveis opccedilotildees para lidar com a situaccedilatildeo Por

exemplo diante de um problema especiacutefico geralmente abrem-se duas estrateacutegias (i)

podemos tratar de solucionaacute-lo porque ele eacute da espeacutecie dos solucionaacuteveis (dialogar ou

entrar com uma medida judicial especiacutefica podem ser alternativas possiacuteveis para

resolver a raiva causada diante de um vizinho que continuamente desrespeite a lei do

silecircncio) (ii) podemos ter que trabalhar as nossas proacuteprias emoccedilotildees diante de

problemas resistentes ou insoluacuteveis (doenccedila crocircnica grave crise financeira etc) Assim

pode ser necessaacuterio a alteraccedilatildeo da significaccedilatildeo pessoal do evento por meio de uma

reavaliaccedilatildeo fundada em bases realiacutesticas Somos seres capazes de substituir

interpretaccedilotildees que deflagrem respostas emocionais disfuncionais e altamente destrutivas

por outras melhores247

246

LAZARUS Richard S LAZARUS Bernice N Passion amp reason making sense of our emotions

New YorkOxford Oxford University Press 1994 p 143 247

Id ibid p 152-161

96

Assim em resumo na avaliaccedilatildeo o sujeito natildeo se limita a ser um mero agente

passivo e receptor das informaccedilotildees externas mas tambeacutem possui um papel ativo na

forma como lida com os fatores ambientais podendo inclusive reavaliar a significaccedilatildeo

do evento ldquouma avaliaccedilatildeo ndash de que as emoccedilotildees satildeo dependentes ndash eacute muitas vezes um

julgamento complexo sobre como estamos nos relacionando com o ambiente e com as

nossas vidas em geral e como lidar com potenciais prejuiacutezos e benefiacuteciosrdquo248

Acrescente-se que no complexo momento avaliativo compreende-se que vaacuterias

escalas de julgamento satildeo possiacuteveis isto eacute podem ocorrer desde avaliaccedilotildees impliacutecitas e

automaacuteticas ateacute aquelas com alto niacutevel de consciecircncia portando conteuacutedo conceitual e

proposicional249

Aleacutem do sistema avaliativo acima descrito destacam-se tambeacutem os seguintes

componentes que estatildeo presentes no processo emotivo (i) componente motivacional

situaccedilotildees emocionalmente relevantes satildeo motivacionais de modo que nos impelem a

alterar o nosso curso de accedilatildeo a fim de adequaacute-lo agraves novas circunstacircncias (ii)

componente orgacircnico o nosso organismo (sistema motor somato-visceral atenccedilatildeo

expressatildeo accedilatildeo) fica integralmente comprometido com a situaccedilatildeo significativa (iii)

componente prioritaacuterio situaccedilotildees emotivas reclamam precedecircncia sobre a nossa atenccedilatildeo

e sobre o nosso controle comportamental250

Uma especiacutefica preocupaccedilatildeo dos teoacutericos da Teoria da Avaliaccedilatildeo diz respeito agrave

verificaccedilatildeo da correccedilatildeo da ideia segundo a qual maacutes decisotildees estatildeo fundadas em

emoccedilotildees e boas decisotildees estatildeo baseadas em razatildeo pura Esta eacute uma questatildeo que

tambeacutem especialmente nos interessa porque via de regra a resistecircncia quanto ao

tratamento teoacuterico das emoccedilotildees estaacute assentada na forte dicotomia ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo

Primeiramente eacute preciso ter em mente que apoacutes a emoccedilatildeo ter sido deflagrada o

controle da resposta emocional por intermeacutedio de avaliaccedilotildees a respeito de que modo

iremos lidar com as tendecircncias de accedilatildeo geradas pela emoccedilatildeo eacute um momento em que a

racionalidade se faz presente Uma accedilatildeo cujas consequecircncias sejam socialmente

destrutivas deve ser num juiacutezo avaliativo repelida Essa ideia de controle emocional

por intermeacutedio da razatildeo natildeo eacute desconhecida e de certo modo esse jaacute era o

248

ldquoAn appraisalmdashon which emotions dependmdashis often a complex judgment about how we are doing in

an encounter with the environment and in our lives overall and how to deal with potential harms and

benefitsrdquo (trad livre) Id ibid p 144 249

SCHERER Klaus R What are emotions And how can they be measured In Social Science

Information vol 44 n 4 2005 695-729 p 701 250

SCHERER Klaus R On the rationality of emotions or when are emotions rational In Social

Science Information vol 50 2011 330-350 p 334-335

97

posicionamento de Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando diz que as emoccedilotildees tecircm a

capacidade de ouvir a razatildeo

Todavia Lazarus afirma que a racionalidade tambeacutem se faz presente no primeiro

momento do processo emotivo o surgimento de uma emoccedilatildeo soacute ocorre porque uma

avaliaccedilatildeo compreende que certos objetivos valores ou crenccedilas acerca do mundo estatildeo

sendo numa determinada situaccedilatildeo prejudicados ou beneficiados Esta avaliaccedilatildeo

depende de racionalidade e vem acompanhada de pensamentos ainda que o raciociacutenio

em que tal julgamento seja embasado possa ser agraves vezes equivocado251

Sob tal perspectiva pode-se dizer que as emoccedilotildees estatildeo fundadas em razotildees

porque elas repousam numa loacutegica proacutepria A raiva de um determinado sujeito pode

soar desarrazoada para um estranho e de fato as atitudes geradas pela referida emoccedilatildeo

podem trazer um grande prejuiacutezo social por falta de adequado controle mas uma

pesquisa mais detalhada dos seus motivos revela que uma avaliaccedilatildeo conduziu a esta

resposta emocional especiacutefica porque entendeu que valores objetivos ou necessidades

do sujeito foram prejudicados numa determinada situaccedilatildeo

Assim anota Lazarus a razatildeo estaacute presente em todos os estaacutegios do processo

emotivo mas isso natildeo significa dizer que haja uma supremacia da razatildeo sobre a

emoccedilatildeo porque entre as duas haacute uma relaccedilatildeo de dupla dependecircncia natildeo apenas a

emoccedilatildeo precisa de aspectos racionais para o seu surgimento e para o seu controle mas a

razatildeo soacute eacute proveitosa diante do balanceamento da emoccedilatildeo Nesse sentido pontua

ldquoexiste algo de equiliacutebrio entre a razatildeo e a emoccedilatildeo Caso contraacuterio aiacute reside a

loucurardquo252

As emoccedilotildees assim tecircm uma funccedilatildeo primordial na sobrevivecircncia na

adaptaccedilatildeo no conhecimento e na qualidade de vida do indiviacuteduo

Uma consequecircncia de tal abordagem reside na reduccedilatildeo da dicotomia ldquorazatildeo vs

emoccedilatildeordquo porque ainda que a avaliaccedilatildeo em que se fundou a emoccedilatildeo seja pouco realista

natildeo-saacutebia e ateacute tola eacute possiacutevel extrair racionalidade que vincula o seu surgimento a

objetivos e crenccedilas do indiviacuteduo Desse modo ao inveacutes de insistir na mencionada

dicotomia eacute mais interessante tentar identificar quando raciociacutenios em que se baseiam

as emoccedilotildees satildeo considerados razoaacuteveis ou natildeo

Lazarus nesse intento relaciona uma lista de motivos que geralmente resultam

num erro de avaliaccedilatildeo (i) retardaccedilatildeo mental psicose e danos cerebrais (ii) falta de

251

LAZARUS R Op cit 1994 p 199-200 252

ldquoThere is something of a balance between them If not there lies madnessrdquo (trad livre) Id ibid p

203

98

conhecimento (iii) crenccedilas pessoais (iv) ambiguidade (v) falta de atenccedilatildeo (vi)

rejeiccedilatildeo253

Por exemplo um relevante segmento da populaccedilatildeo pode avaliar que a presenccedila

de imigrantes estaacute relacionada ao crescimento do cometimento dos mais diversos crimes

e agrave perda da identidade cultural da naccedilatildeo deflagrando-se um generalizado medo social

contra pessoas oriundas de outros paiacuteses Para solucionar tal problema avalia-se que a

melhor accedilatildeo a ser tomada consiste no enrijecimento da poliacutetica de imigraccedilatildeo do paiacutes

Essa avaliaccedilatildeo generalizada pode estar fundada em vaacuterios erros de julgamento

como a falta de conhecimento de estatiacutesticas que comprovem que natildeo apenas o nuacutemero

de imigrantes seja iacutenfimo mas que o nuacutemero de crimes praticados por imigrantes seja

muito irrelevante Ela pode estar pouco atenta ao fato de que o paiacutes natildeo tem uma

poliacutetica de integraccedilatildeo de imigrantes fazendo que muitos deles permaneccedilam excluiacutedos

da sociedade Ela pode desconsiderar o fato de que o paiacutes precisa de matildeo-de-obra

imigrante para o setor de serviccedilos e consequentemente para o seu crescimento

econocircmico E pode ateacute desconhecer que alguns imigrantes estavam em condiccedilatildeo de

risco em seus paiacuteses de origem Assim um trabalho de investigaccedilatildeo estaacute comprometido

em identificar em que se sustenta esse medo para possibilitar a criaccedilatildeo de poliacuteticas

puacuteblicas especiacuteficas que busquem desconfirmar as razotildees que o suportam

Scherer por sua vez ressalta que o paradigma da racionalidade perfeita em que

teriacuteamos todo o tempo possiacutevel para tomar decisotildees e disporiacuteamos de abundantes e

conclusivas informaccedilotildees a respeito do assunto objeto de deliberaccedilatildeo raramente eacute

atingido nas condiccedilotildees da vida praacutetica em que geralmente temos limitado prazo para

solucionar algo e natildeo possuiacutemos tantas informaccedilotildees quanto gostariacuteamos Assim no

mundo real em que vivemos as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas agrave

situaccedilatildeo satildeo bons suportes para decisotildees e compatiacuteveis com as concepccedilotildees de

racionalidade usualmente aceitas (instrumental inferencial e consensual) A seu ver a

tentativa de enquadraacute-las como irracionais eacute incompatiacutevel com a sua importacircncia

o sistema emotivo eacute um dos mais eficientes mecanismos

filogeneticamente evoluiacutedos para a adaptaccedilatildeo em organismos

superiores Mais especificamente pode-se mostrar que foi o

desenvolvimento das emoccedilotildees que libertou os organismos do riacutegido

controle de estiacutemulos proporcionando assim um repertoacuterio

comportamental altamente flexiacutevel e portanto uma oacutetima adaptaccedilatildeo

253

Id ibid p 208-213

99

para um ambiente de constante mudanccedila e de muacuteltiplos contextos

sociais254

Assim diante do modelo teoacuterico exposto parece-nos que uma abordagem que

leve em consideraccedilatildeo as emoccedilotildees natildeo pode partir do pressuposto de que elas natildeo satildeo

dignas de tematizaccedilatildeo por sua manifesta irracionalidade Ademais uma teoria da

argumentaccedilatildeo que encare seriamente o fenocircmeno emotivo precisa acessar um saber

psicoloacutegico sob pena de se construir em cima de bases artificiais

254

ldquoThe emotion system is one of the most efficient phylogenetically evolved mechanisms for adaptation

in higher organisms More specifically it can be shown that it was the development of emotion that freed

organisms from rigid stimulus control thus providing for a highly flexible behavioral repertoire and thus

optimal adaptation to an ever-changing environment and multiple social contextsrdquo (trad livre)

SCHERER K Op cit 2011 p 331

100

3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO

31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito

Se no Capiacutetulo I examinamos a importacircncia do estudo das emoccedilotildees na

Antiguidade o Capiacutetulo II foi dedicado a investigar a sua recepccedilatildeo pela MTA com o

objetivo de inclusive coletar criteacuterios para anaacutelise e para avaliaccedilatildeo de decisotildees

judiciais Nesse intuito construiacutemos o ambiente histoacuterico do surgimento da MTA

observamos a abordagem teoacuterica dos ldquopais fundadoresrdquo examinamos o tema na

disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo percebemos a reaccedilatildeo teoacuterica de Douglas Walton Por fim

analisamos uma abordagem linguiacutestica e descritiva do discurso emotivo bem como o

posicionamento da psicologia cognitiva especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo a

respeito deste assunto

Este Capiacutetulo por sua vez busca refletir especificamente a importacircncia das

emoccedilotildees no acircmbito do direito Assim este toacutepico buscaraacute responder agrave pergunta mais

baacutesica sobre esse tema eacute possiacutevel pensar o fenocircmeno juriacutedico sem as emoccedilotildees Qual a

sua relevacircncia

Um possiacutevel ponto de partida para refletir este toacutepico seria pensarmos a partir do

proacuteprio desenvolvimento teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo e as suas respectivas

consequecircncias na aacuterea do direito Conforme vimos as emoccedilotildees satildeo deflagradas diante

de eventos que avaliamos relevantes do ponto de vista de valores crenccedilas objetivos

bem-estar geral Em outras palavras as emoccedilotildees encontram terreno feacutertil para serem

iniciadas apenas em face de eventos significativamente salientes A este respeito

poderiacuteamos desde jaacute elucubrar que o direito seria o haacutebitat especiacutefico deste tema

porque os assuntos de que ele se ocupa em grande parte nos tocam profundamente e

satildeo deflagradores de fortes emoccedilotildees crimes hediondos homiciacutedio latrociacutenio

maioridade penal direito de famiacutelia divoacutercio adoccedilatildeo uniatildeo homoafetiva direitos

humanos cotas raciais direito do consumidor aborto eutanaacutesia direito agrave sauacutede

indenizaccedilatildeo moral e tantos outros

Contra esta ideia e prosseguindo no raciociacutenio eacute possiacutevel arguir de maneira

plausiacutevel que natildeo deveriacuteamos nos guiar por nenhuma dessas emoccedilotildees eventualmente

suscitadas caso contraacuterio os efeitos seriam catastroacuteficos Assim pessoas com

descontrolaacutevel raiva munidas de tremendo oacutedio e de indignaccedilatildeo ou melhor

101

apaixonadas estatildeo desprovidas da capacidade de raciociacutenio e por isso natildeo podem ser

paracircmetro de direcionamento nem para a legislaccedilatildeo nem para a decisatildeo judicial

O direito estaria assim exclusivamente no campo de uma racionalidade strictu

sensu natildeo lhe sendo admitida a intromissatildeo de qualquer elemento exoacutegeno Nussbaum

nesse ponto diz que uma possiacutevel reaccedilatildeo em face da tentativa de introduzir elementos

emotivos no acircmbito juriacutedico seria alegar a sua completa irracionalidade e por isso a

impossibilidade de levaacute-los em consideraccedilatildeo ldquoexiste um famoso lugar-comum no

sentido de que o direito eacute baseado na razatildeo e natildeo na paixatildeordquo255

Eacute possiacutevel chamar a

tradiccedilatildeo legal que compreende as emoccedilotildees como estranhas ao direito de proposta ldquonatildeo-

emotivardquo Poreacutem um tal posicionamento simplesmente desqualifica tanto o debate

teoacuterico e praacutetico acerca do direito ldquoem primeiro lugar o direito sem apelo agrave emoccedilatildeo eacute

virtualmente impensaacutevelrdquo256

A introduccedilatildeo de uma abordagem emotiva no direito eacute necessaacuteria agrave compreensatildeo

do fenocircmeno juriacutedico em vaacuterios sentidos conseguimos entender por que alguns tipos de

danos contra nossa esfera privada e coletiva satildeo condenados e outros natildeo por que

algumas leis adquirem determinada forma por que decisotildees judiciais podem levar em

consideraccedilatildeo certos tipos de emoccedilatildeo ldquomais profundamente eacute difiacutecil compreender a

racionalidade de muitas das nossas praacuteticas juriacutedicas a menos que levemos em

consideraccedilatildeo as emoccedilotildeesrdquo257

Uma maneira adequada para compreender essa relaccedilatildeo em comentaacuterio consiste

em observar que o direito soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres passiacuteveis de vulnerabilidade

isto eacute a existecircncia de proteccedilatildeo legal apenas pode resguardar sujeitos cujas vidas

possam de algum modo sofrer certos tipos de danos ou contingecircncias Assim num

exerciacutecio de imaginaccedilatildeo natildeo faria sentido uma norma cujo conteuacutedo protegesse seres

invulneraacuteveis autossuficientes imortais porque eles natildeo podem sofrer nenhum

prejuiacutezo nada lhes pode ferir ou causar qualquer espeacutecie de estrago258

E somente em relaccedilatildeo a seres cuja constituiccedilatildeo seja caracterizada pela

vulnerabilidade eacute que as emoccedilotildees fazem sentido Assim as emoccedilotildees satildeo respostas agraves

mais diversas fragilidades existentes no ser humano Por exemplo uma vez que a nossa

255

ldquoThere is a popular commonplace to the effect that the law is based on reason and not passionrdquo (trad

livre) NUSSBAUM Martha Hiding from humanity disgust shame and the law PrincetonOxford

Princeton University Press 2004 p 5 256

ldquoFirst of all law without appeals to emotion is virtually unthinkablerdquo (trad livre) Id ibid p 5 257

ldquoMore deeply it is hard to understand the rationale for many of our legal practices unless we do take

emotions into accountrdquo (trad livre) Id ibid p 6 258

Id ibid p 6

102

reputaccedilatildeo eacute vulneraacutevel e por isso pode ser socialmente destruiacuteda estamos sujeitos agrave

vergonha e a lei penal nos protege por meio da tipificaccedilatildeo dos crimes de caluacutenia de

difamaccedilatildeo ou de injuacuteria A lei penal tambeacutem nos protege do medo de eventualmente

termos nossa integridade fiacutesica psiacutequica patrimonial violada porque em todas essas

aacutereas somos sujeitos a vaacuterias espeacutecies de danos

Assim um ser cuja constituiccedilatildeo natildeo possa de alguma forma sofrer danos natildeo

poderaacute experimentar uma resposta emotiva Nada lhe deflagraraacute medo jaacute que nenhum

mal pode lhe sobrevir Nada lhe provocaraacute vergonha raiva ou qualquer sorte de emoccedilatildeo

deflagrada pela razoaacutevel possibilidade de ocorrer prejuiacutezos agrave sua esfera pessoal ldquoeles

natildeo possuiriam razotildees para ter tristeza porque sendo autossuficientes natildeo amariam

nada fora de si pelo menos natildeo com o necessaacuterio tipo de amor humano que daacute origem a

uma profunda perda e depressatildeordquo259

Neste momento parece-nos apropriado retomar a ideia estoica de apatheia

Conforme vimos os estoicos possuiacuteam uma escala de valores bem singular a uacutenica

coisa boa que existe eacute a virtude e a uacutenica ruim eacute o viacutecio a virtude se confunde com a

felicidade e o viacutecio com a infelicidade Assim sauacutede beleza riqueza fama bens

materiais satildeo considerados indiferentes eacute certo que alguns satildeo preferiacuteveis (sauacutede por

exemplo) e outros natildeo-preferiacuteveis mas ainda assim todos satildeo indiferentes porque a

sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a conquista da felicidade Eacute possiacutevel ser feliz na miseacuteria

na doenccedila na tortura Poreacutem eacute impossiacutevel ser feliz caso o indiviacuteduo natildeo possua virtude

Os indiferentes se caracterizam pela sua contingecircncia e pela sua ambiguidade isto eacute

eles satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna mundana aleacutem de poderem ser tanto beneacuteficos

quanto maleacuteficos Nessa ordem de ideias ateacute a sauacutede pode ser mal utilizada caso a

detenccedilatildeo de boa sauacutede seja instrumentalizada para objetivos ruins (participar de roubos

assaltos etc)

Nesse modelo teoacuterico as emoccedilotildees precisam ser eliminadas porque quem

experimenta as emoccedilotildees do homem comum valora equivocadamente o que de fato eacute

bom ou ruim O saacutebio estoico tendo atingido a suma racionalidade no caminho para a

compreensatildeo do mundo corretamente livrou-se de todas as emoccedilotildees desvinculou-se

dos bens externos (indiferentes) e tornou-se um ser autossuficiente e virtuoso ldquoos

filoacutesofos estoicos gregos e romanos recorreram a esta ideia ao pedir na medida em que

259

ldquoThey would have no reasons for grief because being self-sufficient they would not love anything

outside themselves at least not with the needy human type of love that gives rise to profound loss and

depressionrdquo (trad livre) Id ibid p 6

103

pudermos para nos tornarmos pessoas autossuficientes extirpando as emoccedilotildees de

nossas vidasrdquo260

Diante de tal concepccedilatildeo eacute possiacutevel indagar o modelo estoico da apatheia eacute uma

abordagem plausiacutevel para a compreensatildeo do sistema juriacutedico tal qual o conhecemos

Certamente natildeo

O sistema juriacutedico eacute um conjunto de regras e princiacutepios que tutela os nossos bens

materiais a nossa integridade fiacutesica e psiacutequica a nossa sauacutede a nossa esteacutetica o nosso

patrimocircnio cultural a nossa intimidade a nossa reputaccedilatildeo social e identidade E assim o

faz porque atribuiacutemos enorme valor a todos esses aspectos de nossa existecircncia

Ademais por valorarmos todos esses aspectos e por temermos possiacuteveis prejuiacutezos ou

danos em relaccedilatildeo a eles o direito leva em consideraccedilatildeo as nossas emoccedilotildees

Se desprezarmos todas as respostas emocionais que nos ligam a este

mundo daquilo que os estoicos chamavam de lsquobens externosrsquo

deixamos de lado uma grande parte da nossa humanidade e uma parte

que estaacute no cerne de explicar por que temos leis civis e criminais e

que forma elas tomam261

Assim qualquer ordenamento juriacutedico apenas adquire contorno apoacutes a seleccedilatildeo

das condutas e dos bens (materiais e imateriais) em virtude dos quais as nossas

respostas emotivas satildeo relevantes A estrutura das leis criminais e civis espelha o medo

social de sua eacutepoca As leis que protegem a vida expressam a medida desse temor e

declaram a indignaccedilatildeo contra condutas que se contraponham aos seus mandamentos

ldquotoda a estrutura do direito penal pode-se dizer que implica uma imagem do que temos

razotildees para estar zangado ou temerosordquo262

Mas a questatildeo natildeo se restringe apenas agrave formataccedilatildeo da legislaccedilatildeo Por exemplo

em 1976 a Suprema Corte americana declarou inconstitucional a lei da Carolina do

Norte que estabelecia pena de morte porque natildeo possibilitava que o reacuteu apresentasse a

sua histoacuteria de vida nem apelasse agrave compaixatildeo dos jurados nos seguintes termos

Um processo que atribui nenhum significado para relevantes facetas

de caraacuteter e os antecedentes do infrator ou as circunstacircncias de

determinado delito exclui de consideraccedilatildeo na fixaccedilatildeo da pena de

morte a possibilidade de fatores de compaixatildeo ou atenuantes

decorrentes das diversas fragilidades do ser humano Ele trata todas as

260

ldquoThe Greek and Roman Stoic philosophers draw on this idea when they ask us all to become such self-

sufficient people insofar as we can extirpating the emotions from our livesrdquo (trad livre) Id ibid p 6 261

ldquoIf we leave out all the emotional responses that connect us to this world of what the Stoics called

lsquoexternal goodsrsquo we leave out a great part of our humanity and a part that lies at the heart of explaining

why we have civil and criminal laws and what shape they takerdquo (trad livre) Id ibid p 7 262

the whole structure of criminal law might be said to imply a picture of what we have reason to be

angry at what we have reason to fear (trad livre) Id ibid p 11

104

pessoas condenadas por um delito natildeo como seres humanos

unicamente individuais mas como membros de uma indiferenciada

massa sem rosto para serem submetidos agrave imposiccedilatildeo cega da pena de

morte263

De outra parte no direito norte-americano o acusado de crime de homiciacutedio

voluntaacuterio pode obter uma reduccedilatildeo penal caso prove que o homiciacutedio tenha sido

cometido em resposta a uma provocaccedilatildeo da viacutetima que tal provocaccedilatildeo tenha sido

ldquoadequadardquo que a raiva do acusado possa ser enquadrada como uma raiva atribuiacutevel a

um homem-meacutedio e que o homiciacutedio tenha sido cometido no calor da emoccedilatildeo sem

tempo suficiente para reflexatildeo264

No Brasil de seu turno uma violenta emoccedilatildeo eacute causa

atenuante da pena de acordo com os arts 65 III ldquocrdquo 121 sect 1ordm e 129 sect 9ordm do Coacutedigo

Penal

Para a configuraccedilatildeo da legiacutetima defesa exige-se que ela seja praticada em face

de uma conduta que provoque medo razoaacutevel de modo que o medo precisa ser

argumentado para fins da decisatildeo judicial Ademais o apelo agrave compaixatildeo eacute largamente

admitido no direito penal norte-americano ldquomesmo os juristas mais cautelosos

concordam que a compaixatildeo eacute construiacuteda no processo de condenaccedilatildeo e qualquer

tentativa de eliminaacute-la viola os direitos fundamentaisrdquo265

Nussbaum partindo dos estoicos e da filosofia claacutessica recorre ao modelo da

psicologia cognitiva a fim de utilizar um paradigma teoacuterico acerca das emoccedilotildees

passiacutevel de ser empregado para compreender o direito Assim a seu ver as emoccedilotildees satildeo

resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos Apenas temos respostas

emocionais diante de algo ou de uma situaccedilatildeo significativamente relevante para a nossa

esfera pessoal Caso a situaccedilatildeo envolva banalidades ela seraacute emocionalmente

irrelevante Desse modo diferentemente da propagada ideia popular que as

compreende como meros impulsos instintuais ou algo desprovido de qualquer

raciociacutenio as emoccedilotildees natildeo podem ser consideradas irracionais num sentido descritivo

embora elas o possam ser num sentido normativo isto eacute quando fundadas em crenccedilas

263

Trata-se do caso Woodson v North Carolina (1976) citado por Nussbaum ldquoA process that accords no

significance to relevant facets of the character and record of the individual offender or the circumstances

of the particular offense excludes from consideration in fixing the ultimate punishment of death the

possibility of compassionate or mitigating factors stemming from the diverse frailties of humankind It

treats all persons convicted of a designated offense not as uniquely individual human beings but as

members of a faceless undifferentiated mass to be subjected to the blind infliction of the penalty of

deathrdquo Id ibid p 21 264

Id ibid p 37 265

ldquoeven the most cautious jurists agree that compassion is built into the sentencing process and that any

attempt to eliminate it violates fundamental rightsrdquo Id ibid p 56

105

ou pensamentos equivocados (racismo sexismo etc)266

ldquopodemos destacar quando a

emoccedilatildeo de algueacutem repousa sobre crenccedilas que satildeo verdadeiras ou falsas e (um ponto

separado) razoaacutevel ou natildeo razoaacutevelrdquo267

No entanto o mais importante a ser destacado eacute que elas satildeo factiacuteveis de

observaccedilatildeo e de discussatildeo criacutetica Para aleacutem de tal constataccedilatildeo descritiva (as emoccedilotildees

satildeo resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos) tambeacutem eacute possiacutevel

avaliar as emoccedilotildees vale dizer eacute aceitaacutevel ponderar o papel que elas desempenham em

determinados ramos do direito e de que modo elas poderiam ser o nossos guias na vida

puacuteblica restabelecendo assim o debate aristoteacutelico entre emoccedilotildees

adequadasinadequadas de acordo com as circunstacircncias e as emoccedilotildees perversas isto eacute

aquelas que natildeo deveriam ser os nossos paracircmetros em nenhuma hipoacutetese

Exemplificativamente a repugnacircncia268

eacute uma emoccedilatildeo bastante marcante na

vida do ser humano e na constituiccedilatildeo da formaccedilatildeo cultural de uma sociedade Ela estaacute

relacionada ao acircmbito de nossas necessidades iacutentimas ao que entendemos por limpeza

por sujeira ou imundiacutecie agrave maneira pela qual administramos os resiacuteduos fecais a urina

os gases puacutetridos as secreccedilotildees o lixo ela gerencia os odores suportaacuteveis e natildeo

suportaacuteveis do indiviacuteduo estaacute relacionada ao que entendemos por nojento repulsivo

asqueroso tem uma funccedilatildeo na fisiologia humana porque nos adverte sobre possiacuteveis

contaminantes existentes no ambiente (comida liacutequido etc) que podem nos infectar

provocando doenccedilas e ateacute a morte Em resumo a repugnacircncia nos guia na nossa rotina

diaacuteria de limpezas escovaccedilotildees asseios lavagens isolamentos embalagens

organizaccedilotildees no uso de bactericidas de inseticidas de perfumes de aromatizantes etc

Mas para aleacutem do acircmbito das intimidades e da funccedilatildeo fisioloacutegica a repugnacircncia

invade outras aacutereas da existecircncia humana Assim a nossa vida moral eacute tambeacutem

constituiacuteda por essa emoccedilatildeo que nos conduz a fazer certas escolhas no domiacutenio privado

e puacuteblico Por consequecircncia (e inevitavelmente) ela adentra no acircmbito do direito ldquoa

repugnacircncia tambeacutem desempenha um papel poderoso no direito Ela aparece em

primeiro lugar como a principal ou mesmo a uacutenica justificaccedilatildeo para tornar algumas

condutas ilegaisrdquo269

266

Id ibid p 10-11 267

ldquoWe can point out that someonersquos emotion rests on beliefs that are true or false and (a separate point)

reasonable or unreasonablerdquo (trad livre) Id ibid p 31 268

O termo inglecircs eacute disgust cuja traduccedilatildeo tambeacutem pode ser vertida por nojo ou por aversatildeo mas que

preferimos a expressatildeo ldquorepugnacircnciardquo por acharmos mais adequada agrave nossa cultura emocional 269

ldquoDisgust also plays a powerful role in the law It figures first as the primary or even the sole

justification for making some acts illegalrdquo (trad livre) Id ibid p 72

106

Assim a lei que regula os atos obscenos eacute guiada em grande parte pelos

pensamentos de repugnacircncia prevalecentes no padratildeo moral da sociedade de sua eacutepoca

A Suprema Corte americana observou quando da aplicaccedilatildeo da lei de atos obscenos que

a proacutepria palavra ldquoobscenordquo deriva do latim caenum cujo significado eacute repugnante A

repugnacircncia do criminoso em relaccedilatildeo a uma viacutetima homossexual jaacute foi considerada fator

atenuante em crime de homiciacutedio Aleacutem disso a repugnacircncia do juiz ou do juacuteri tambeacutem

eacute considerada um guia para ponderar na decisatildeo a presenccedila de potenciais fatores

agravantes no fato delituoso270

Na comissatildeo de exame de assuntos eacuteticos do governo americano acerca das

pesquisas de ceacutelulas-tronco o especialista em bioeacutetica Leon Kass argumentou que as

novas possibilidades da medicina deveriam ser submetidas agrave ldquosabedoria da

repugnacircnciardquo a fim de alcanccedilarmos uma conclusatildeo eacutetica sobre o seu disciplinamento

juriacutedico Quanto agrave possibilidade de clonagem humana o seu banimento foi justificado

por idecircntico motivo271

No Brasil a repugnacircncia eacute criteacuterio expresso em nossa legislaccedilatildeo para a criaccedilatildeo

de fatos tiacutepicos Assim os crimes hediondos satildeo aqueles que nos provocam repulsa

repugnacircncia nojo aversatildeo Hediondo vem da palavra em latim ldquofoetibundusrdquo que

significa ldquoo que cheira malrdquo a outra palavra relacionada em latim eacute ldquofoetererdquo que

significa ldquofeder ter mau cheirordquo

Em defesa da repugnacircncia como guia na vida puacuteblica podem-se colher os

seguintes argumentos (i) toda sociedade tem o direito agrave autopreservaccedilatildeo moral e para

isso as leis devem ser elaboradas levando em consideraccedilatildeo as respostas emotivas de

repugnacircncia dos seus membros (ii) a repugnacircncia eacute uma sabedoria social que nos

impede transgredir o que eacute moralmente profundo numa determinada comunidade (iii) eacute

preciso combater os viacutecios de uma determinada sociedade por meio de sentimentos de

repugnacircncia e (iv) a repugnacircncia eacute essencial para condenar e reprimir crueldades272

Todavia alega Nussbaum a repugnacircncia nunca deveria ser paracircmetro para

elaboraccedilatildeo de leis pois tal emoccedilatildeo estaacute ligada a pensamentos de pureza de

contaminaccedilatildeo de contaacutegio Do ponto de vista teoacuterico estaacute conectada agrave ideia do

decaimento das condiccedilotildees naturais do nosso corpo da nossa mortalidade da nossa

animalidade A repugnacircncia historicamente foi direcionada a certos grupos sociais

270

Id ibid p 72 271

Id ibid p 72-73 272

Id ibid p 73

107

(mulheres homossexuais negros etc) que eram associados a todos os predicados

(imundos sujos nojentos fedorentos) respeitantes a tal emoccedilatildeo

ao longo da histoacuteria certas propriedades repugnantes ndash viscosidade

fedor ligosidade decadecircncia imundiacutecie ndash tecircm repetida e

monotonamente sido associadas ou melhor projetadas em grupos de

referecircncia a quem os grupos privilegiados procuram contrastar o seu

estado humano superior Judeus mulheres homossexuais intocaacuteveis

pessoas de classe baixa todos eles satildeo imaginados como maculados

pela sujeira do corpo273

Outra emoccedilatildeo fortemente relacionada ao direito eacute a vergonha No direito norte-

americano discute-se a imposiccedilatildeo de penalidades que tenha a capacidade de

profundamente envergonhar o cidadatildeo em substituiccedilatildeo agraves denominadas ldquopenas

alternativasrdquo (penas pecuniaacuterias ou prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade) jaacute que estas

natildeo tecircm a aptidatildeo de gerar a transformaccedilatildeo do caraacuteter do indiviacuteduo Ateacute a cadeia

ambiente em que o indiviacuteduo estaacute longe do olhar social punitivo natildeo tem a capacidade

de lhe humilhar Assim as penalidades que imponham severos sentimentos de vergonha

conseguiriam atingir de maneira muito mais eficiente o propoacutesito de retribuiccedilatildeo de

dissuasatildeo de expressatildeo e de reforma ou reintegraccedilatildeo necessaacuterios para a vida em

sociedade274

Com efeito os exemplos acima descritos demonstram que a relaccedilatildeo entre o

direito e as emoccedilotildees eacute muito mais profunda do que se pode a princiacutepio imaginar

Ademais eacute interessante notar que essa constataccedilatildeo tem sido objeto de investigaccedilatildeo nos

EUA haacute algum tempo originando um campo de estudo hoje denominado de ldquoLaw and

Emotionrdquo em cujo contexto a obra de Nussbaum estaacute inserida

Maroney destaca que a trajetoacuteria do movimento ldquoLaw and Emotionrdquo tem sido

dura porque a construccedilatildeo teoacuterica da modernidade juriacutedica estaacute fundada na ideia de que

a razatildeo e a emoccedilatildeo se localizam em campos tatildeo distintos que eacute necessaacuterio eficiente

policiamento a fim de que as emoccedilotildees natildeo escorreguem no campo do direito e

corrompam o discurso juriacutedico ldquoEste modelo teoacuterico tem persistido apesar de sua

273

ldquothroughout history certain disgust propertiesmdashsliminess bad smell stickiness decay foulnessmdash

have repeatedly and monotonously been associated with indeed projected onto groups by reference to

whom privileged groups seek to define their superior human status Jews women homosexuals

untouchables lower-class peoplemdashall these are imagined as tainted by the dirt of the bodyrdquo (trad livre)

Id ibid p 108 274

Id ibid p 227-228

108

implausibilidade como modelo de como os seres humanos vivem ou de como o nosso

direito eacute estruturado e administradordquo275

Natildeo obstante esse novo campo de estudo em que a interdisciplinaridade se faz

fortemente presente recentemente tem conseguido cada vez mais adeptos sendo

possiacutevel visualizar as seguintes abordagens teoacutericas sugeridas por Maroney

Haacute um interesse no estudo das emoccedilotildees em si mesmas isto eacute investiga-se de

que modo emoccedilotildees especiacuteficas influenciam ou deveriam influenciar a elaboraccedilatildeo de

leis Assim conforme visto a repugnacircncia a vergonha e o medo satildeo exemplos de

emoccedilotildees que despertam curiosidade de anaacutelise e de criacutetica

O medo por exemplo aumenta sentimentos de percepccedilatildeo de risco e gera

demanda por novos mecanismos de seguranccedila promovendo significativas alteraccedilotildees

juriacutedicas ldquoo medo torna os indiviacuteduos mais propensos a apoiar medidas de seguranccedila

em detrimento de outras liberdades importantes e incentiva o apoio a poliacuteticas

conservadoras em geralrdquo276

Por outro lado exemplificativamente discute-se como o

medo decorrente da ldquosiacutendrome das mulheres agredidasrdquo isto eacute uma especial condiccedilatildeo

mental presente em mulheres constantemente viacutetimas de agressatildeo por seus

companheiros deve ser considerado na defesa do processo penal para configuraccedilatildeo da

legiacutetima defesa277

Tambeacutem eacute objeto de preocupaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma teoria das emoccedilotildees com

metodologia categorias e conceitos proacuteprios a fim de possibilitar uma aplicaccedilatildeo

sistemaacutetica e coesa ao direito278

Existe a chamada abordagem doutrinaacuteria em que se estuda como uma especiacutefica

aacuterea do direito incorpora poderia ou deveria incorporar uma determinada emoccedilatildeo Haacute a

abordagem da teoria juriacutedica que analisa criticamente sob o seu ponto de vista a teoria

das emoccedilotildees E haacute uma abordagem sobre a influecircncia das emoccedilotildees sobre o papel dos

atores juriacutedicos ldquoa abordagem do ator-juriacutedico enfatiza os seres humanos que povoam

275

ldquoThis theoretical model has persisted despite its implausibility as a model of either how humans live or

how our law is structured and administeredrdquo (trad livre) MARONEY Terry A Law and Emotion A

Proposed Taxonomy of an Emerging Field In Law and Human Behavior vol 30 2006 119-142 p

120-121 Disponiacutevel em httpssrncomabstract=726864 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 276

PIZARRO David We cannot be emotionless but we are capable of rational debate Disponiacutevel

em httpwwwtheglobeandmailcomglobe-debatewe-cannot-be-emotionless-but-we-are-capable-of-

rational-debatearticle4310309 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 277

MARONEY T Op cit p 126 278

Id ibid p 126

109

os sistemas juriacutedicos e explora como a emoccedilatildeo influecircncia e informa ou deveria

influenciar ou informar o desempenho da funccedilatildeo legal atribuiacuteda a essas pessoasrdquo279

Portanto ao contraacuterio do que poderia aparentar agrave primeira vista as emoccedilotildees

participam em vaacuterios niacuteveis da constituiccedilatildeo do direito e de sua praacutetica de modo que

uma abordagem que tambeacutem privilegie o seu estudo permitiraacute uma melhor compreensatildeo

da dinacircmica do fenocircmeno juriacutedico possibilitando proveitosamente novas formas de

criacutetica teoacuterica agrave maneira pela qual o direito eacute estruturado

32 Anaacutelise

Uma vez exploradas algumas conexotildees existentes entre o direito e as emoccedilotildees

parte-se agora para a anaacutelise de trecircs decisotildees judiciais do STF em cujo corpo

procuraremos demonstrar a presenccedila de argumentos emotivos Escolhemos os julgados

pela sua repercussatildeo social assim como para demonstrar que as emoccedilotildees estatildeo

presentes ao contraacuterio do que se poderia imaginar nos mais variados temas juriacutedicos

Neste toacutepico nosso intuito consiste em realizar um exame argumentativo apenas

sob um vieacutes descritivo utilizando como auxiacutelio a classificaccedilatildeo argumentativa proposta

por Micheli no Capiacutetulo II Conforme vimos na referida classificaccedilatildeo existe a emoccedilatildeo

dita a emoccedilatildeo demonstrada e a emoccedilatildeo suportada Embora ao longo de nossa anaacutelise

iremos destacar quando presentes as emoccedilotildees ditas e as demonstradas o nosso

objetivo consiste em evidenciar de que modo as emoccedilotildees satildeo suportadas no discurso

Ademais conveacutem registrar que considerando a grande extensatildeo dos votos seratildeo

selecionados os principais argumentos utilizados pelos ministros para sustentar uma

determinada emoccedilatildeo

321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo

Na Arguiccedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental ndash ADPF nordm 101 (DJ

2462009) ajuizada pelo Presidente da Repuacuteblica estava em discussatildeo a

constitucionalidade da importaccedilatildeo de pneus usados e remoldados em territoacuterio nacional

O julgamento era necessaacuterio porque numerosas decisotildees proferidas por juiacutezes federais

das Seccedilotildees Judiciaacuterias do Cearaacute do Espiacuterito Santo de Minas Gerais do Paranaacute do Rio

279

ldquoThe legal-actor approach focuses on the humans that populate legal systems and explores how

emotion influences and informs or should influence or inform those personsrsquo performance of the

assigned legal functionrdquo (trad livre) Id ibid p 131

110

de Janeiro e de Satildeo Paulo amparavam a importaccedilatildeo de tais pneus que segundo o autor

da accedilatildeo violava preceitos fundamentais da Constituiccedilatildeo Federal ndash CF tais como dentre

outros o direito agrave sauacutede e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art 196 e 225

da CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencido o ministro Marco Aureacutelio

A seguir iremos analisar mais detidamente o voto da relatora da accedilatildeo a

ministra Caacutermen Luacutecia que foi acompanhada pelos demais ministros e em seguida

resumidamente os votos dos ministros Gilmar Mendes Carlos Ayres Brito e Joaquim

Barbosa Por uacuteltimo mencionamos o posicionamento do ministro Marco Aureacutelio

A ministra Caacutermen Luacutecia apoacutes cuidar de questotildees formais em toacutepicos

direcionados ao ldquoobjeto da accedilatildeordquo agrave ldquoadequaccedilatildeo da accedilatildeordquo e agrave ldquoexclusatildeo de alguns

arguidosrdquo bem como apoacutes apresentar algumas questotildees preparatoacuterias para o

enfrentamento do problema num toacutepico denominado ldquobreve histoacuterico da legislaccedilatildeo da

mateacuteriardquo inicia a sua argumentaccedilatildeo propriamente dita na seccedilatildeo destinada a dissertar

sobre o ldquopneurdquo

A partir daiacute a ministra utiliza para fundamentar a sua decisatildeo da estrutura

cognitiva tiacutepica do medo isto eacute argumentos de consequecircncia negativa Walton destaca

que o medo eacute estruturado do ponto de vista argumentativo por meio de consequecircncias

negativas ldquoo argumento do tipo apelo ao medo [] eacute uma espeacutecie de argumento de

consequecircncias negativasrdquo280

Diferenciando o apelo ao medo do apelo agrave ameaccedila cuja estrutura eacute mais

complexa porque conteacutem mais um elemento que eacute a ameaccedila do proponente Walton

observa que ambos satildeo argumentos de consequecircncia ldquoeacute o argumento de consequecircncias

como a estrutura subjacente na qual tanto o apelo ao medo quanto o apelo agrave ameaccedila satildeo

construiacutedos que explica a real relaccedilatildeo entre os doisrdquo281

Aleacutem disso de acordo com os criteacuterios apresentados por Micheli outro ponto a

ser observado consiste em identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo narrada eacute

esquematizado pois a avaliaccedilatildeo acerca da incapacidade de controle de algo negativo eacute

condizente com a deflagraccedilatildeo e a majoraccedilatildeo de sentimentos de medo

Assim estabelecidas essas premissas adentra-se agora nos argumentos do

julgado

280

ldquothe fear appeal type of argument [hellip] is a species of argument from negative consequencesrdquo (trad

livre) WALTON Douglas Scare tactics arguments that appeal to fear and threats Springer 2000 p

143 281

ldquoit is argument from consequences as the underlying structure upon which both appeal to fear and

appeal to threat are built that explains the real relationship between the twordquo (trad livre) Id ibid p

139

111

Inicialmente a ministra num toacutepico destinado a discorrer sobre ldquoa induacutestria

automobiliacutestica e o resiacuteduo da borrachardquo estabelece que haacute uma enorme quantidade de

pneus vulcanizados em circulaccedilatildeo no mundo ressaltando um primeiro problema que eacute

a difiacutecil decomposiccedilatildeo do seu material e enfatizando a incapacidade de controle de sua

destinaccedilatildeo apoacutes o uso ldquoresultado haacute um total de aproximadamente 4 bilhotildees de pneus

novos em circulaccedilatildeo pelo mundo feito de borracha vulcanizada que eacute um material de

difiacutecil decomposiccedilatildeo e de mais difiacutecil ainda gestatildeo de sua destinaccedilatildeo apoacutes o usordquo

Ao enfrentar o argumento da defesa segundo o qual um dos melhores meios

para superar a questatildeo referente agrave destinaccedilatildeo dos pneus usados consiste em reutilizaacute-los

na manta asfaacuteltica adverte-se que tal mistura resulta na maior emissatildeo de poluentes no

momento em que a roda do automoacutevel entra em fricccedilatildeo com o asfalto advindo a partir

daiacute consequecircncias negativas ldquoentretanto emite mais poluentes no momento da fricccedilatildeo

do pneu aleacutem de ser mais oneroso e com probabilidade de ocasionar doenccedilas de

natureza ocupacionalrdquo

Quanto agrave chamada reciclagem energeacutetica dos pneus para fins de geraccedilatildeo de

calor tambeacutem se enfatiza a sua incontrolabilidade ldquotodavia tambeacutem aqui se depara

com o problema da administraccedilatildeo dos resiacuteduos decorrentes dessa incineraccedilatildeordquo

Assim a tecnologia das incineradoras natildeo controla a situaccedilatildeo porque eacute incapaz

de zerar a emissatildeo de material queimado e a consequecircncia disso eacute que materiais

poluentes metais pesados e compostos toacutexicos (dioxinas e furanos) satildeo liberados na

atmosfera

O que se constatou eacute que apesar de eficiente a queima em

incineradoras dedicadas nunca lsquozerarsquo o material queimado dele

podem resultar efluentes soacutelidos e gasosos que aleacutem de conterem

material poluente podem se apresentar com alto grau de

contaminaccedilatildeo de metais pesados aleacutem de compostos orgacircnicos

toacutexicos em especial dioxinas e furanos

Desse modo em face de liberaccedilatildeo de tais poluentes na atmosfera e com o

consequente processamento quiacutemico dos compostos o efeito negativo reside na

formaccedilatildeo de chuvas aacutecidas

o ponto negativo desse tipo de destinaccedilatildeo dada aos pneus eacute que

produz poluiccedilatildeo ambiental pois nesse processo satildeo emitidos gases

toacutexicos em especial o dioacutexido de enxofre e a amocircnia que em

contato com as partiacuteculas de aacutegua suspensas no ar provocam o

fenocircmeno denominado chuva aacutecida

112

Por sua vez a chuva aacutecida eacute causadora de consequecircncias deleteacuterias numa seacuterie

de oacuterbitas ldquoa chuva aacutecida eacute responsaacutevel por grandes formas de aniquilamento do meio

ambiente por provocar danos nos lagos rios florestas e nos animais bem como nos

monumentos e obras construiacutedos pelos homensrdquo

Outra possiacutevel destinaccedilatildeo para os pneus seria o seu uso na co-incineraccedilatildeo

principalmente nas faacutebricas de cimento todavia novamente outra consequecircncia

negativa ldquosob altas temperaturas esses materiais datildeo origem agraves dioxinas e furanos

considerados substacircncias canceriacutegenasrdquo

Num outro momento do julgado jaacute apoacutes discorrer sobre normas constitucionais

respeitantes ao assunto a rel novamente aborda as consequecircncias negativas do descarte

de pneus usados mas agora se enfatiza o aparecimento de doenccedilas tropicais tal como a

dengue e o subsequente risco agrave vida das pessoas

Constatado que o depoacutesito de pneus ao ar livre ndash a que se chega

inexoravelmente com a falta de utilizaccedilatildeo dos pneus inserviacuteveis

mormente quando se daacute a sua importaccedilatildeo nos termos pretendidos por

algumas empresas - eacute fator de disseminaccedilatildeo de doenccedilas tropicais

[]

Entretanto as pesquisas e as estatiacutesticas satildeo taxativas ao comprovar os

riscos agrave vida acarretados pelas doenccedilas tropicais em especial a

dengue que tem como uma de suas principais causas exatamente a

presenccedila de resiacuteduos soacutelidos como os pneus natildeo utilizados e natildeo

descartados de forma a garantir a salubridade

A seguir enfatiza-se a fragilidade do controle em relaccedilatildeo ao armazenamento dos

pneus usados

A ceacutelere urbanizaccedilatildeo aliada agrave maacute qualidade da limpeza urbana

sem adequados procedimentos de remoccedilatildeo de entulhos em

especial pneus velhos eacute responsaacutevel pelo aparecimento de

criadouros de mosquitos

Alerta-se quanto a outro possiacutevel efeito negativo pois considerando o formato

oval do pneu um ambiente ideal para armazenar organismos vivos eacute possiacutevel que

doenccedilas sequer imaginadas ou ateacute jaacute erradicadas sejam trazidas para o nosso paiacutes

trazendo sofrimento e risco de perda de vida de cidadatildeos

Informa-se ainda que os pneus usados que chegam de outros Paiacuteses

podem conter ovos de insetos transmissores de doenccedilas ateacute agora

natildeo incidentes no Brasil ou jaacute erradicadas no Paiacutes o que demandaria

ndash aleacutem de maior sofrimento das pessoas - mais gastos estatais com a

jaacute precaacuteria condiccedilatildeo da sauacutede puacuteblica no Brasil sem falar insista-se

no risco de perda de vida de cidadatildeos

113

Ademais o aumento de doenccedilas e a consequente fragilizaccedilatildeo da sauacutede da

populaccedilatildeo tecircm uma seacuterie de efeitos negativos para o paiacutes sendo um deles a perda do seu

potencial econocircmico Em outras palavras ateacute o produto interno bruto eacute atingido quando

um governo eacute incapaz de promover uma boa poliacutetica de sauacutede para os seus cidadatildeos

A cada ano a Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ndash ONU elabora uma

classificaccedilatildeo dos Paiacuteses e mede a qualidade vida em pelo menos trecircs

elementos sauacutede educaccedilatildeo e produto interno bruto Jaacute se concluiu

que enquanto um Paiacutes natildeo tiver resolvido problemas relacionados

agrave sauacutede (saneamento baacutesico incluiacutedo) e agrave educaccedilatildeo da populaccedilatildeo

natildeo haacute como elevar o seu produto interno bruto

De seu turno o ministro Gilmar Mendes tambeacutem fundamenta o seu

posicionamento por meio de argumentos da mesma espeacutecie isto eacute apontam-se as

consequecircncias negativas (ldquoproliferaccedilatildeo de doenccedilasrdquo ldquosubstacircncias nocivas agrave sauacutede e ao

meio ambienterdquo ldquomaterial de difiacutecil composiccedilatildeordquo) e a ausecircncia de controle acerca da

situaccedilatildeo avaliada como negativa (ldquofalta de meacutetodo atualmente eficiente de controlerdquo)

resumindo assim alguns dos argumentos presentes no voto da ministra Caacutermen Luacutecia

O grau de nocividade a falta de meacutetodo atualmente eficiente de

controle da eliminaccedilatildeo das substacircncias nocivas agrave sauacutede e ao meio

ambiente (constataccedilatildeo de descumprimento reiterado da Resoluccedilatildeo

CONAMA nordm 25899) a proliferaccedilatildeo potencial de vetores de

doenccedilas e outros agravos e o aumento do passivo ambiental de

material inserviacutevel de difiacutecil decomposiccedilatildeo satildeo elementos que

constituem a formaccedilatildeo do convencimento juriacutedico acerca do

conhecimento cientiacutefico existente sobre a potencialidade dos danos

ambientais decorrentes do descarte irregular dos pneus usados

O ministro Carlos Ayres apoacutes destacar que os pneus natildeo satildeo biodegradaacuteveis

enfatiza cinco consequecircncias negativas em relaccedilatildeo agrave importaccedilatildeo de pneus usados e

remoldados (i) ocupaccedilatildeo de consideraacutevel espaccedilo fiacutesico para sua armazenagem (ii) risco

de faacutecil combustatildeo (iii) poluiccedilatildeo de rios lagos e correntes de aacutegua (iv) transmissatildeo de

doenccedila por insetos (incluindo a dengue que ele qualifica ser ldquotatildeo temida entre noacutesrdquo) (v)

e os pneus remoldados tem vida uacutetil muito curta e se tornam mais rapidamente um

passivo ambiental O referido ministro tambeacutem expressa indignaccedilatildeo com o fato de que

nos paiacuteses de origem tais pneus natildeo passam de ldquolixo ambientalrdquo e a sua importaccedilatildeo faz

do Brasil ldquouma espeacutecie de quintal do mundordquo com graves danos a bens juriacutedicos (sauacutede

e meio ambiente) tutelados pela Constituiccedilatildeo Federal

Por sua vez o ministro Joaquim Barbosa enfatiza a incontrolabilidade de

situaccedilotildees negativas natildeo haacute meacutetodo eficaz para lidar com os resiacuteduos dos pneus o que

114

ocasiona danos diretos ao meio ambiente natildeo haacute controle sobre o empilhamento e

descarte de pneus o que aumenta a proliferaccedilatildeo de vetores de doenccedila Aleacutem disso alega

a existecircncia de risco de aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees no campo das relaccedilotildees internacionais por

desobediecircncia agraves normas da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio - OMC

Por uacuteltimo destaque-se que o ministro Marco Aureacutelio entendeu que para proibir

a importaccedilatildeo de tais pneus deveria haver lei especiacutefica nesse sentido Ademais procura

deslegitimar os argumentos de consequecircncia negativa acima deduzidos ao dizer que a

mera proibiccedilatildeo de importaccedilatildeo natildeo seria suficiente para ldquosalvar a Matildee Terrardquo ldquo[] como

disse e parece que encerrado este julgamento estaraacute salva - a Matildee Terrardquo

Com efeito a argumentaccedilatildeo vencedora no presente caso eacute consistente com a

descriccedilatildeo do medo realizada por Aristoacuteteles em sua retoacuterica isto eacute a possibilidade de

acontecimento de algo ruim que tenha a capacidade de nos provocar danos ou seacuterios

prejuiacutezos Nesta mesma direccedilatildeo Walton enfatiza que o argumento que apela ao medo

envolve a demonstraccedilatildeo da existecircncia de algum perigo que pode ou poderaacute causar

prejuiacutezos a um determinado sujeito implicando a ideia de que eacute necessaacuterio tomar

alguma accedilatildeo para evitaacute-lo282

Portanto na referida decisatildeo estatildeo em consideraccedilatildeo perigos que iratildeo atingir a

ldquopopulaccedilatildeordquo os ldquocidadatildeosrdquo e o ldquomeio-ambienterdquo do Brasil E os males capazes de

atingi-los satildeo muitos materiais poluentes gases toacutexicos dioxinas e furanos substacircncias

canceriacutegenas metais pesados compostos orgacircnicos toacutexicos doenccedilas de natureza

ocupacional ovos de inseto doenccedilas tropicais e desconhecidas poluiccedilatildeo de rios lagos e

correntes de aacutegua chuva aacutecida dengue aumento de gastos estatais para tratar novas

doenccedilas e ateacute o impacto na economia Ademais eacute expressamente dito que tais perigos

tecircm a capacidade de ldquoaniquilarrdquo o meio ambiente e pocircr em risco a vida das pessoas

Tendo em vista a ausecircncia de tecnologia ou de fiscalizaccedilatildeo que tivesse a capacidade de

controlar tais consequecircncias negativas a procedecircncia da accedilatildeo buscou fundar

sentimentos de aliacutevio

Por uacuteltimo eacute interessante tambeacutem notar que embora as palavras ldquoperigordquo ou

ldquoperigosordquo apareccedilam com frequecircncia na decisatildeo a palavra ldquomedordquo natildeo eacute em si mesma

dita mas a despeito disso observa-se que o medo foi argumentado por meio de

argumentos de consequecircncia negativa isto eacute ele foi o suporte emotivo da decisatildeo

282

Id ibid p 143

115

322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo

Na ADPF nordm 54 (DJ 1242012) ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos

Trabalhadores na Sauacutede ndash CNTS estava sob julgamento a possibilidade juriacutedica da

antecipaccedilatildeo terapecircutica do parto na hipoacutetese de fetos anenceacutefalos uma vez que diversos

juiacutezes e tribunais negavam tal pleito agraves gestantes com fundamento nos dispositivos que

regem o crime de aborto no Coacutedigo Penal Os preceitos fundamentais da CF apontados

como violados foram a dignidade da pessoa humana o princiacutepio da legalidade da

liberdade da autonomia da vontade e o direito agrave sauacutede (arts 1ordm IV 5ordm II 6ordm e 196 da

CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencidos os ministros Ceacutesar Peluso e

Ricardo Lewandowski

Primeiramente iremos analisar a argumentaccedilatildeo do voto do ministro Peluso

Poreacutem para entender a construccedilatildeo argumentativa do referido ministro eacute necessaacuterio

expor a estrutura cognitiva da indignaccedilatildeo

Para nosso objetivo pode-se dizer que tal emoccedilatildeo eacute deflagrada mediante a

avaliaccedilatildeo negativa de uma situaccedilatildeo (accedilatildeoomissatildeo) geradora de sofrimento e danos cuja

responsabilidade causal eacute passiacutevel de imputaccedilatildeo a um agente culpaacutevel Assim existe

uma accedilatildeoomissatildeo atribuiacutevel a algueacutem que eacute julgada condenaacutevel injusta pois causa

um especiacutefico prejuiacutezodanosofrimento a um sujeito283

Portanto a fim de caracterizar a indignaccedilatildeo no discurso eacute preciso analisar como

a accedilatildeoomissatildeo eacute narrada quem eacute o agente responsaacutevel como ele eacute caracterizado no

discurso quem eacute o sujeito passivo e como ele eacute caracterizado no discurso Neste julgado

especiacutefico os dois atores objeto de predicaccedilatildeo satildeo a gestante (a matildee) e o feto

Assim posto isso conveacutem dizer que apoacutes estabelecer que ldquotodos os fetos

anenceacutefalos [] satildeo inequivocamente dotados dessa capacidade de movimento

autoacutegeno vinculada ao processo contiacutenuo da vida e regida pela lei natural que lhe eacute

imanenterdquo o ministro afirma que o aborto de feto anecenfaacutelico eacute conduta criminosa

No seguinte trecho em que o ministro conclui com uma notaacutevel exclamaccedilatildeo

(emoccedilatildeo demonstrada) a conduta condenaacutevel e injusta eacute narrada como ldquofunestamente

danosa agrave vida ou agrave incolumidade fiacutesica alheiardquo caracterizando sofrimento e dano ao

feto ldquonatildeo se concebe nem entende em termos teacutecnico-juriacutedicos uacutenicos apropriados ao

283

Nesse sentido cf MICHELI R op cit 2014 p 113 e NUSSBAUM M op cit 2004 p 99 e 166

A raiva e a indignaccedilatildeo tecircm basicamente a mesma estrutura cognitiva de modo que poderiacuteamos utilizar

tanto uma quanto a outra emoccedilatildeo

116

caso direito subjetivo de escolha [] de comportamento funestamente danoso agrave vida

ou agrave incolumidade fiacutesica alheia e como tal tido por criminoso Eacute coisa abstrusardquo

No seguinte trecho haacute a estrutura completa da indignaccedilatildeo isto eacute o agente

culpado (a gestante) eacute caracterizado como algueacutem com poder desproporcional agrave viacutetima

(ldquoser poderoso superior detentor de toda forccedilardquo) existe a conduta condenaacutevel e

geradora de danos e sofrimentos que eacute comparada a um ato brutal de violecircncia

(ldquoextermiacuteniordquo ldquopena de morterdquo) e existe o sujeito passivo que eacute descrito como algueacutem

totalmente indefeso ldquono caso do extermiacutenio do anenceacutefalo encena-se a atuaccedilatildeo

avassaladora do ser poderoso superior que detentor de toda a forccedila inflige a pena

de morte ao incapaz de pressentir a agressatildeo e de esboccedilar-lhe qualquer defesardquo

A conduta da gestante eacute caracterizada como condenaacutevel injusta e infligidora de

sofrimento vaacuterias vezes Assim a fim de lhe emprestar conteuacutedo emotivo tal

procedimento eacute comparado com situaccedilotildees que via de regra nos provocam ou deveriam

provocar indignaccedilatildeo e raiva tais como a ldquopena capitalrdquo o ldquoracismo sexismo e

especismordquo e ateacute o nazismo Aleacutem disso tal conduta nominada de ldquoodiosardquo reduz o

feto ldquoagrave condiccedilatildeo de lixordquo

[] ao feto reduzido no fim das contas agrave condiccedilatildeo de lixo ou de

outra coisa imprestaacutevel e incocircmoda natildeo eacute dispensada de nenhum

acircngulo a menor consideraccedilatildeo eacutetica ou juriacutedica

[]

Essa forma odiosa de discriminaccedilatildeo que a tanto equivale nas suas

consequecircncias a formulaccedilatildeo criticada em nada difere do racismo do

sexismo e do chamado especismo Todos esses casos retratam a

absurda defesa e absolviccedilatildeo do uso injusto da superioridade de

alguns (em regra brancos de estirpe ariana homens e seres humanos)

sobre outros (negros judeus mulheres e animais respectivamente)

Em outra passagem novamente a conduta eacute comparada com situaccedilotildees que nos

provocam ou deveriam provocar sentimentos de indignaccedilatildeo e raiva podendo-se

inclusive cogitar que a argumentaccedilatildeo implica o medo de que um passado baacuterbaro da

nossa histoacuteria volte novamente a se repetir O ministro demonstra ao final a emoccedilatildeo

com uma exclamaccedilatildeo Confira-se

Faz muito a civilizaccedilatildeo sepultou a praacutetica ominosa de sacrificar

segregar ou abandonar crianccedilas receacutem-nascidas deficientes ou de

aspecto repulsivo como as disformes aleijadas surdas albinas ou

leprosas soacute porque eram consideradas ineptas para a vida e

improdutivas do ponto de vista econocircmico e social

117

Num toacutepico que trata sobre ldquoriscos de eugeniardquo o ministro tambeacutem utiliza de

argumentos de consequecircncia negativa (medo) a fim de demonstrar os perigos que

poderatildeo advir caso a accedilatildeo seja julgada procedente O primeiro deles seria permitir que

outras mulheres possam pleitear tratamento juriacutedico semelhante sob qualquer motivo

(anomalia fetal social econocircmico familiar) implicando a ideia de que novamente seraacute

infligido sofrimento a outros seres inocentes

Eacute possiacutevel imaginar o ponderaacutevel risco de que julgada procedente

esta ADPF mulheres entrem a pleitear igual tratamento juriacutedico a

hipoacuteteses de outras anomalias natildeo menos graves ou porque a gravidez

seja indesejada em si mesma ou porque agrave conta de fatores

econocircmicos sociais familiares etc seria insuportaacutevel ou

insustentaacutevel ter um filho

A ausecircncia de tecnologia meacutedica que permita diagnoacutestico 100 seguro eacute

apontada como outro fator de risco em relaccedilatildeo agrave permissatildeo de tal espeacutecie de aborto

demonstrando assim a incontrolabilidade da situaccedilatildeo sob julgamento

E o que surpreende e admira eacute que quem a invoca parece ignorar que

a temaacutetica estaacute indissociavelmente vinculada ao problema da

dificuldade teacutecnico-cientiacutefica de se detectar com precisatildeo absoluta

quais casos satildeo de anencefalia de modo a diferenciaacute-los de outras

afecccedilotildees da mesma classe nosoloacutegica das quais se distingue apenas

por questatildeo de grau

[]

Por que se evite possibilidade concreta de em decorrecircncia das

incertezas teacutecnico-cientiacuteficas e da consequente falibilidade dos

diagnoacutesticos eliminarem-se arbitrariamente fetos acometidos de

malformaccedilotildees diversas da anencefalia eacute imperioso proibir-lhes o

aborto ainda em tais casos

Ademais para o ministro Peluso a matildee ao pretender a permissatildeo juriacutedica para a

praacutetica do referido aborto configura-se um ser ldquoegocecircntricordquo e ldquoindividualistardquo que em

nome do ldquoprinciacutepio do prazerrdquo e a fim de evitar seu sofrimento psiacutequico e suas

anguacutestias recusa o oferecimento de compaixatildeo e piedade a quem na verdade eacute

merecedor desses sentimentos isto eacute o feto

[] reflete apenas uma atitude individualista e egocecircntrica enquanto

sugere praacutetica cocircmoda de que se vale a gestante para se livrar do

sofrimento e da anguacutestia

[]

Tal ansiedade que voltada para si mesma depende da histoacuteria e da

conformaccedilatildeo psiacutequicas de cada gestante eacute exaltada na proposta em

detrimento do afeto da piedade da compaixatildeo da doaccedilatildeo e da

abnegaccedilatildeo que participam da dimensatildeo de grandeza do espiacuterito

humano

118

Por outro lado se nos votos dos demais ministros eram claramente divergentes

as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do iniacutecio da vida ou do que eacute a vida da laicidade

estatal de questotildees penais de princiacutepios juriacutedicos (dignidade da pessoa humana

autonomia da vontade etc) parece que havia pelo menos um ponto de consenso que

era a necessidade de se ter compaixatildeo para com o sofrimento vivido pela gestante

Lazarus destaca que o tema nuacutecleo da compaixatildeo consiste em ser movido pelo

sofrimento alheio284

Por sua vez na estrutura cognitiva da compaixatildeo existe uma

avaliaccedilatildeo acerca da seriedade do sofrimento vivido por determinado sujeito e de certo

modo estatildeo ausentes consideraccedilotildees acerca da culpa do proacuteprio sujeito por estar em tal

situaccedilatildeo aflitiva285

Assim no voto do relator ministro Marco Aureacutelio realiza-se uma comparaccedilatildeo

entre as emoccedilotildees positivas que geralmente se fazem presentes numa gestaccedilatildeo normal e

as emoccedilotildees negativas que a gestante tem que suportar na hipoacutetese de anencefalia do

feto

Enquanto numa gestaccedilatildeo normal satildeo nove meses de

acompanhamento minuto a minuto de avanccedilos com a predominacircncia

do amor em que a alteraccedilatildeo esteacutetica eacute suplantada pela alegre

expectativa do nascimento da crianccedila na gestaccedilatildeo do feto anenceacutefalo

no mais das vezes reinam sentimentos moacuterbidos de dor de

anguacutestia de impotecircncia de tristeza de luto de desespero dada a

certeza do oacutebito

Assim conclui-se pela impossibilidade de se exigir que a matildee suporte tamanho

sofrimento a que se compara agrave tortura

O ato de obrigar a mulher a manter a gestaccedilatildeo colocando-a em uma

espeacutecie de caacutercere privado em seu proacuteprio corpo desprovida do

miacutenimo essencial de autodeterminaccedilatildeo e liberdade assemelha-se agrave

tortura ou a um sacrifiacutecio que natildeo pode ser pedido a qualquer pessoa

ou dela exigido

Mostra-se inadmissiacutevel fechar os olhos e o coraccedilatildeo ao que vivenciado

diuturnamente por essas mulheres seus companheiros e suas famiacutelias

Igualmente o ministro Joaquim Barbosa anota a presenccedila de um conjunto de

emoccedilotildees negativas (culpa raiva tristeza etc) deflagradas para os pais quando do

diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal concluindo com uma pergunta retoacuterica (emoccedilatildeo

demonstrada)

as reaccedilotildees emocionais dos pais apoacutes o diagnoacutestico de malformaccedilatildeo

fetal abrangem conjuntamente ou natildeo os seguintes sentimentos

284

LAZARUS R Op cit 1991 p 289 285

NUSSBAUM M Op cit 2004 p 49-50

119

ambivalecircncia culpa impotecircncia perda do objeto amado choque

raiva tristeza e frustraccedilatildeo Eacute facilmente perceptiacutevel a enorme

dificuldade de se enfrentar um diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal E eacute

possiacutevel imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que

passam aqueles que de suacutebito se veem diante do dilema moral de

interromper uma gestaccedilatildeo unicamente porque nada se pode fazer para

salvar a vida do feto Seria reprovaacutevel uma decisatildeo pela

interrupccedilatildeo da gestaccedilatildeo nesse caso

Por sua vez a ministra Caacutermen Luacutecia expressamente se refere agrave necessidade de

se ter compaixatildeo para com a gestante tendo em vista o enorme sofrimento gerado pela

presenccedila de inuacutemeras emoccedilotildees negativas (medo vergonha anguacutestia) atribuiacutedas agrave

mulher

A mulher que natildeo pode interromper essa gravidez tem o medo do que

vai acontecer o medo de que lhe pode ser acometido o medo fiacutesico o

medo psiacutequico e o medo ainda de vir a ser punida penalmente por

uma conduta que ela venha a adotar

[]

Natildeo se haacute negar compaixatildeo porque seria injusticcedila menos ainda o

direito porque seria antijuriacutedico agrave mulher que trazendo um pequeno

caixatildeo no que eacute o seu berccedilo fiacutesico vai agraves portas do Judiciaacuterio a

suplicar pela sua vida

[]

A mulher gestante de feto anenceacutefalo vive anguacutestia que natildeo eacute

partilhaacutevel pelo que ao Estado natildeo compete intervir vedando o que

natildeo eacute constitucionalmente admissiacutevel como proibido

Em igual sentido o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux assinalam a

necessidade de se levar em consideraccedilatildeo para a soluccedilatildeo da controveacutersia o sofrimento

que a mulher tem que passar nesse percurso de gestaccedilatildeo

Entrementes o aborto do feto anenceacutefalo tem por objetivo preciacutepuo

zelar pela sauacutede psiacutequica da gestante uma vez que desde o

diagnoacutestico da anomalia (que pode ocorrer a partir do terceiro mecircs de

gestaccedilatildeo) ateacute o parto a mulher conviveraacute com o sofrimento de

carregar consigo um feto que natildeo conseguiraacute sobreviver segundo a

medicina afirma com elevadiacutessimo grau de certeza (ministro Gilmar

Mendes)

[] levar a gestaccedilatildeo ateacute os seus uacuteltimos termos causa na mulher um

sofrimento incalculaacutevel do qual resultam chagas eternas que podem

ser minimizadas caso interrompida a gravidez de plano (ministro

Luiz Fux)

O ministro Carlos Ayres o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber

enfatizam o mesmo aspecto isto eacute o sofrimento pelo qual a mulher passa eacute

desnecessaacuterio comparando-o novamente a uma tortura

120

Daiacute que vedar agrave gestante a opccedilatildeo pelo aborto caracteriza um modo

cruel de ignorar sentimentos que somatizados tem a forccedila de derruir

qualquer feminino estado de sauacutede fiacutesica psiacutequica e moral aqui

embutida a perda ou a sensiacutevel diminuiccedilatildeo da autoestima

[]

Por isso que levar agraves uacuteltimas consequecircncias esse martiacuterio contra a

vontade da mulher corresponde agrave tortura a tratamento cruel

Ningueacutem pode impor a outrem que se assuma enquanto maacutertir o

martiacuterio eacute voluntaacuterio (ministro Carlos Ayres)

Nessa especiacutefica situaccedilatildeo a causa supralegal mencionada traduziraacute

hipoacutetese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa uma

vez que inexistente em tal contexto motivo racional justo e legiacutetimo

que possa obrigar a mulher a prolongar inutilmente a gestaccedilatildeo e a

expor-se a desnecessaacuterio sofrimento fiacutesico eou psiacutequico com grave

dano agrave sua sauacutede e com possibilidade ateacute mesmo de risco de morte

consoante esclarecido na Audiecircncia Puacuteblica que se realizou em funccedilatildeo

deste processo (ministro Celso de Mello)

[] a imposiccedilatildeo da gestaccedilatildeo contra a vontade da mulher eacute tortura

fiacutesica e psicoloacutegica em razatildeo de crenccedila (natildeo importa se

institucionalizada por meio de lei ou de decisatildeo juriacutedica ainda eacute mera

crenccedila) nos exatos termos da Lei dos Crimes de Tortura (ministra

Rosa Weber)

Assim sob uma anaacutelise emotiva pode-se dizer que enquanto o voto do ministro

Ceacutesar Peluso construiacutedo atraveacutes de uma forte predicaccedilatildeo contra o aborto de feto

anenceacutefalo era fundado na indignaccedilatildeoraiva direcionado agrave conduta da gestante no

medo em relaccedilatildeo agraves consequecircncias do julgamento e na tentativa de criar compaixatildeo para

com o feto os votos dos demais ministros forneciam razotildees para se ter compaixatildeo para

com o sofrimento da matildee que era descrito como uma tortura um sofrimento a que ela

natildeo deu causa um martiacuterio desnecessaacuterio Desse modo observa-se que as emoccedilotildees

foram argumentadas por meio de suas estruturas cognitivas e muitas vezes

expressamente ditas e atribuiacutedas aos atores (gestante feto) objetos de consideraccedilatildeo no

julgamento

323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo

A ADI nordm 4976 (DJ 1052014) foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repuacuteblica

contra dentre outros dispositivos os arts 37 a 47 da Lei nordm 12663 de 5 de junho de

2012 que concediam aos jogadores titulares ou reservas das seleccedilotildees brasileiras

campeatildes das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970

121

um precircmio em dinheiro no valor fixo de R$ 10000000 (cem mil reais) e um auxiacutelio

especial mensal para jogadores sem recursos ou com recursos limitados De acordo com

a argumentaccedilatildeo presente na peticcedilatildeo inicial da referida ADI a concessatildeo de tais

benefiacutecios financeiros ao referido grupo de jogadores violaria o princiacutepio da isonomia

A ADI neste ponto foi julgada por unanimidade improcedente

No voto do rel ministro Ricardo Lewandowski apoacutes ser destacado que a CF

por meio do art 217 fomenta as praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais protege e

incentiva as manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacional e atraveacutes do art 215 e 216

salvaguarda as manifestaccedilotildees da cultura popular e os bens de natureza imaterial chega-

se agrave conclusatildeo que o fundamento para desequiparaccedilatildeo consiste no fato de que tais

atletas conseguiram uma ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo Aleacutem do

mais em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com

recursos limitados sustenta-se que a ldquoextrema penuacuteria materialrdquo vivida por alguns

colocaria em xeque o ldquoprofundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras

que disputaram as Copas do Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFArdquo

Diante dessas diretrizes constitucionais parece-me plenamente

justificada a iniciativa dos legisladores federais - legiacutetimos

representantes que satildeo da vontade popular - em premiar materialmente

a incalculaacutevel visibilidade internacional positiva proporcionada por

esse grupo especiacutefico e restrito de atletas bem como em evitar que a

extrema penuacuteria material enfrentada por alguns deles ou por suas

famiacutelias ndash com a perda de dignidade pessoal que acompanha essas

circunstacircncias ndash ponha em xeque o profundo sentimento nacional

em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras que disputaram as Copas do

Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFA as quais representam ainda

hoje uma das expressotildees mais relevantes conspiacutecuas e populares

da identidade nacional

Nesse pequeno trecho esboccedila-se a presenccedila de vaacuterias emoccedilotildees que

fundamentam a desequiparaccedilatildeo a ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo e a

ldquoidentidade nacionalrdquo satildeo expressivas do sentimento do orgulho a ldquoextrema penuacuteria

materialrdquo diz respeito agrave compaixatildeo ldquoo profundo sentimento nacionalrdquo faz uso do apelo

aos sentimentos do povo

Lazarus destaca que o nuacutecleo temaacutetico do orgulho diz respeito agrave ldquomelhoria da

identidade do ego de algueacutem tomando creacutedito um objeto valioso ou uma conquista seja

a nossa proacutepria ou a de algueacutem ou a de um grupo com o qual nos identificamos - por

122

exemplo um compatriota um membro da famiacutelia ou um grupo socialrdquo286

Assim no

orgulho estaacute presente uma avaliaccedilatildeo positiva de que nossa imagemidentidade foi

significativamente melhorada e engrandecida em virtude da conquista por noacutes mesmos

ou por outros com qual nos identificamos de algo socialmente relevante O evento

deflagrador do orgulho aleacutem de ser considerado positivo aumenta o valor da nossa

imagem

Em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com

recursos limitados a desequiparaccedilatildeo tambeacutem eacute justificada a tiacutetulo de compaixatildeo

porque os ldquojogadores daquela eacutepocardquo natildeo ganhavam o suficiente para uma

aposentadoria digna

Recordo nesse sentido que a final da Copa do Mundo de 1950 entre

as seleccedilotildees brasileira e uruguaia realizada no Rio de Janeiro ndash oito

anos portanto antes do primeiro tiacutetulo nacional ndash teve o maior

puacuteblico da histoacuteria do Estaacutedio do Maracanatilde superando 200 mil

pessoas Natildeo obstante como eacute notoacuterio poucos foram os jogadores

daquela eacutepoca mesmo os de maior renome que obtiveram

rendimentos suficientes para garantir na inatividade um sustento

digno para si e seus familiares

No voto do ministro Luiz Fux os ex-campeotildees satildeo descritos como ldquoverdadeiros

heroacuteis do paiacutesrdquo Por sua vez as suas conquistas construiacuteram o ldquonosso patrimocircnio

histoacuterico nacionalrdquo e ldquoalccedilaram o Brasil a outro patamar em termos desportivosrdquo de

modo que natildeo existe agressatildeo agrave isonomia em razatildeo do reconhecimento por ldquotamanho

feitordquo

[] as consequecircncias dos mundiais de 1958 na Sueacutecia de 62 no

Chile e de 70 no Meacutexico foram decisivas para a construccedilatildeo desse

patrimocircnio histoacuterico nacional

Daiacute por que natildeo haacute qualquer ofensa agrave Lei fundamental de 1988 em

especial ao princiacutepio da isonomia quando o Estado promove por

meio de concessatildeo do benefiacutecio ora previsto o reconhecimento por

tamanho feito

Natildeo se pode negligenciar que esses atletas ao representarem o paiacutes

em tais mundiais alccedilaram o Brasil a outro patamar em termos

desportivos

O ministro diz que a importacircncia da conquista de tais jogadores eacute enorme

porque fez com que abandonaacutessemos o complexo de que ldquosoacute seriamos uma paacutetria que

286

ldquoenhancement of ones ego-identity by taking credit for a valued object or achievement either our

own or that of someone or group with whom we identify mdash for example a compatriot a member of the

family or a social grouprdquo (tradlivre) LAZARUS R Op cit p 271

123

calccedila chuteirasrdquo Assim alegar a inconstitucionalidade de tal norma significa ir de

encontro agraves conquistas de que ldquoo povo brasileiro tanto se orgulhardquo

reconhecer a importacircncia dos atores dessa transmudaccedilatildeo por que

passou o Brasil e a identificaccedilatildeo do paiacutes com o futebol abandonando

o complexo de que noacutes soacute seriacuteamos uma Paacutetria que calccedila

chuteiras evidencia a implementaccedilatildeo de poliacutetica puacuteblico-estatal de

reconhecimento que contempla o princiacutepio da isonomia

Afirmar a inconstitucionalidade de tais preceitos concessa venia eacute

desestimular e depreciar as conquistas das quais o povo brasileiro

tanto se orgulha

Quanto agrave atual situaccedilatildeo de miseacuteria de alguns jogadores ela eacute justificada pela

ausecircncia de profissionalismo no futebol de antigamente Ademais tal condiccedilatildeo de

penuacuteria eacute atestada pelos telejornais e pela rede mundial de computadores

Natildeo havia o profissionalismo que vivenciamos nos dias de hoje e

justamente por isso - esse eacute um argumento talvez interdisciplinar ndash

muitos desses verdadeiros heroacuteis do paiacutes natildeo possuem condiccedilotildees

materiais miacutenimas para a sua subsistecircncia Natildeo raro haacute relatos nos

telejornais e na proacutepria rede mundial de computadores de ex-

campeotildees do mundo vivendo em completo esquecimento e ateacute

mesmo na miseacuteria de maneira que merece ser festejada e natildeo

tripudiada a iniciativa do Estado Brasileiro

Ao final do seu voto o ministro Fux atribui ao povo brasileiro mais duas

emoccedilotildees positivas relacionadas aos feitos dos ex-atletas (alegria e gratidatildeo)

Por fim Senhor Presidente egreacutegia Corte eu tenho certeza de que o

povo brasileiro por todas as alegrias que esses atletas

proporcionaram tem uma diacutevida de gratidatildeo e natildeo repudiaraacute a justa e

merecida homenagem feita pela lei

Para o ministro Luiacutes Barroso inexiste violaccedilatildeo agrave isonomia porque a concessatildeo

de tal premiaccedilatildeo e do auxiacutelio-especial estaacute fundada na ldquoavaliaccedilatildeo poliacutetica de que os

referidos jogadores realizaram um feito notaacutevel contribuindo para desenvolver um

traccedilo marcante da cultura nacional e difundir o nome do Brasil no mundordquo De resto

observa que alguns ex-jogadores enfrentam ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo e que na

deacutecada de 50 60 70 natildeo se retirava proveito econocircmico da atividade esportiva como

hoje em dia

Por sua vez o ministro Dias Toffoli oferece outra razatildeo para se ter orgulho das

conquistas dos ex-jogadores qual seja apoacutes ser campeatildeo contra a Sueacutecia em 1958 as

empresas suecas ldquodescobriram o Paiacutesrdquo o que resultou em ldquoriquezas para a Naccedilatildeo

brasileirardquo

124

Em 1958 quando o paiacutes vivia aquele processo de industrializaccedilatildeo da

eacutepoca de Juscelino Kubitschek as induacutestrias suecas olharam para o

Brasil exatamente quando viram o Brasil jogar na Sueacutecia e ser

campeatildeo numa final da Copa do Mundo contra a Sueacutecia As grandes

empresas suecas na aacuterea de tecnologia na aacuterea automobiliacutestica que

se instalaram haacute cinquenta anos no Brasil descobriram o Paiacutes por

conta do futebol o que resultou em riquezas para a Naccedilatildeo

brasileira com a geraccedilatildeo de empregos e de desenvolvimento

Indagado se o Brasil era de fato desconhecido do mundo antes de 1958 o

ministro Toffoli diz que a industrializaccedilatildeo sueca estaacute registrada nos livros Ademais

tais conquistas no futebol resultaram no soft power brasileiro no mundo

Ah eu natildeo vou citar os nomes das empresas mas isso estaacute nos livros

Estaacute na histoacuteria do desenvolvimento brasileiro basta ler Senhor

Presidente Basta ler a histoacuteria do desenvolvimento brasileiro

Verifique se tinha induacutestria sueca antes de 58 investindo no Brasil e

verifique depois

[]

[] a muacutesica brasileira traz retorno ao Brasil a cultura brasileira as

novelas brasileiras que passam no exterior trazem um capital agregado

ao Brasil

Isso eacute o soft power Trata-se do soft power

[]

esse chamado soft power ele traz um retorno agrave Naccedilatildeo brasileira ele

traz dividendos que extrapolam a proacutepria aacuterea do futebol a proacutepria

aacuterea do desporto e agrega valor a toda a Naccedilatildeo brasileira e repercute

na economia de modo geral Como eacute um fato - isso eacute um fato eacute um

dado histoacuterico - que muitas empresas suecas que hoje estatildeo

instaladas haacute mais de cinquenta anos no Brasil olharam para o

Brasil apoacutes a Copa de 1958 laacute organizada

De seu turno o ministro Gilmar Mendes alega que a hegemonia no futebol eacute

benfazeja simpaacutetica no mundo e eacute disso que se trata o soft power Embora natildeo se refira

expressamente aos dispositivos constitucionais acima mencionados ele chega a destacar

que caso bem aproveitada a Copa serviria para ldquorevirar esse complexo de vira-latardquo E

o ministro Marco Aureacutelio alega que o reconhecimento dos ex-atletas eacute justo embora

tenha vindo tarde (cinquenta e quatro anos depois)

Observa-se portanto que a estrutura cognitiva do orgulho se fez bastante

presente na argumentaccedilatildeo desenvolvida pois para fins de justificar a desequiparaccedilatildeo de

tratamento legislativo se avaliou que a imagem do Brasil ou a identidade brasileira foi

significativamente melhorada (e ateacute construiacuteda) apoacutes a vitoacuteria nas copas mundiais

masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970 Vaacuterias descriccedilotildees a respeito

de tal conquista confirmam isso ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo

125

ldquotamanho feitordquo ldquofeito notaacutevel ldquoalccedilou o Brasil em outro patamar em termos

desportivosrdquo ldquoabandonou o complexo de que seriacuteamos uma paacutetria que soacute calccedila

chuteirasrdquo ldquoas grandes empresas suecas descobriram o Brasilrdquo ldquosoft power mundialrdquo

ldquoagrega valor a toda Naccedilatildeo brasileirardquo Desse modo o orgulho foi uma emoccedilatildeo

expressamente atribuiacuteda agrave populaccedilatildeo e extensamente argumentada pelos votos

Por outro lado a estrutura cognitiva da compaixatildeo tambeacutem esteve presente pois

o sofrimento dos ex-jogadores eacute descrito como ldquoextrema penuacuteria materialrdquo ldquomiseacuteriardquo

ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo tudo isso atestado pelos ldquotelejornaisrdquo e pela ldquorede

mundial de computadoresrdquo Tambeacutem estava fora de consideraccedilatildeo questotildees acerca da

culpa dos proacuteprios jogadores para estarem em tal estado de miserabilidade jaacute que via

de regra os ministros avaliaram que naquela eacutepoca natildeo se ganhava tanto dinheiro

quanto hoje em dia Ademais vimos que a alegria e a gratidatildeo foram emoccedilotildees

expressamente atribuiacutedas agrave populaccedilatildeo

33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Este uacuteltimo toacutepico estaraacute divido em trecircs momentos O primeiro busca responder

se eacute possiacutevel uma retoacuterica estoica no direito O segundo tece consideraccedilotildees criacuteticas

sobre os julgados a fim de tentar explicitar em que medida os argumentos emotivos

colaboraram positivamente ou natildeo para a decisatildeo Sobre esse segundo momento eacute

preciso ressaltar que no atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo natildeo conseguimos

identificar criteacuterios que pudessem ser aplicados de maneira sistemaacutetica e coesa

resultando numa rigorosa metodologia de avaliaccedilatildeo de argumentos emotivos Desse

modo sobre este especiacutefico momento avaliativo eacute preciso registrar que muito se tem

para evoluir sobre o tema e por isso natildeo faremos mais do que esparsamente e sem o

rigor desejado ponderar a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum a relevacircncia

dos argumentos identificados e a sua integraccedilatildeo no contexto de uma argumentaccedilatildeo

juriacutedica Portanto intencionamos natildeo mais do que coletar alguns criteacuterios miacutenimos que

pudessem servir para ulterior desenvolvimento teoacuterico acerca da avaliaccedilatildeo de

argumentos Por fim o terceiro momento tentaraacute responder se existe uma eacutetica no uso

das emoccedilotildees na decisatildeo juriacutedica buscando construir paracircmetros de neutralidade para o

julgador

Inicialmente em relaccedilatildeo ao primeiro ponto conveacutem relembrar que a eacutetica

estoica influenciou fortemente a formataccedilatildeo de sua retoacuterica que era considerada uma

126

ciecircncia e uma virtude (diferentemente do que entendia todas as escolas filosoacuteficas da

antiguidade) No entanto a retoacuterica estoica tinha uma seacuterie de peculiaridades pois ao

inveacutes de propoacutesitos persuasivos buscava a correccedilatildeo do discurso Assim para atingir tal

desiderato natildeo utilizava ornamentos valorizava ao maacuteximo a brevidade e o apuro

gramatical repudiava coloquialismos e sobretudo natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero

descrevia esse estilo como seco severo compacto e apaacutetico Em suma o discurso

retoacuterico estoico absorvido na sua dialeacutetica era apresentado destituiacutedo de carga emotiva

para ser assentido pelo puacuteblico

No entanto a utilizaccedilatildeo desse modelo de discurso como paradigma para o

direito especialmente no que tange agraves emoccedilotildees natildeo eacute viaacutevel por uma seacuterie de motivos

Inicialmente se formos realmente radicais nessa ideia ela teria que ser bem

sucedida em sua capacidade de esvaziamento da linguagem de seu conteuacutedo emotivo

Mas isso seria impossiacutevel desde que as palavras se destinam a carregar uma constelaccedilatildeo

de informaccedilotildees experiecircncias e emoccedilotildees por detraacutes delas Seria inclusive desnorteante

retirar o peso emotivo de palavras teacutecnicas e eacuteticas do direito tais como boa-feacute

dignidade da pessoa humana direitos humanos etc Tais palavras tecircm uma dimensatildeo

emotiva forte e por isso satildeo causas de agir isto eacute nos impulsionam em suas

prescriccedilotildees conforme destaca Stevenson ldquodefiniccedilotildees eacuteticas envolvem um casamento de

significado descritivo e emotivo e consequentemente possuem um uso frequente no

redirecionamento e intensificaccedilatildeo de atitudesrdquo287

Ademais Fillmore destaca que toda definiccedilatildeo eacute composta por duas partes uma

parte descritiva relacionada ao significado de uma palavra especiacutefica sendo que esta

parte eacute dependente de outra qual seja o fundo de conhecimento culturalmente

compartilhado da palavra Assim toda palavra eacute dependente de frame isto eacute ldquouma

estrutura de conhecimento ou de conceituaccedilatildeo que subjaz ao significado de um conjunto

de itens lexicais que em certos sentidos apelam para essa mesma estruturardquo288

Portanto um projeto de apatia do discurso juriacutedico precisaria elaborar uma eficiente

287

ldquoethical definitions involve a wedding of descriptive and emotive meaning and accordingly have a

frequent use in redirecting and intensifying attitudesrdquo (trad livre) STEVENSON Charles L Ethics and

language New Haven Yale University Press 1944 p 210 Sobre a importacircncia da linguagem emotiva

na argumentaccedilatildeo cf WALTON Douglas MACAGNO Fabrizio Emotive language in argumentation

New York Cambridge 2014 288

ldquoby frame I mean a structure of knowledge or conceptualization that underlies the meaning of a set of

lexical items that in some ways appeal to that same structurerdquo (trad livre) FILLMORE Charles J

Double-decker definitions the role of frames in meaning explanations In Sign language studies

vol3 2003 p 267

127

terapecircutica para se livrar das caracteriacutesticas da proacutepria linguagem e dos seus anseios

comunicacionais mais baacutesicos

Todavia a impossibilidade de uma retoacuterica estoica no direito ultrapassa uma

questatildeo estritamente linguiacutestica Conforme vimos o direito leva em consideraccedilatildeo as

nossas emoccedilotildees porque a proteccedilatildeo juriacutedica soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres cuja

constituiccedilatildeo seja passiacutevel de danos pois eacute a partir dessa fragilidade constitutiva que se

deflagram respostas emocionais juridicamente relevantes O direito assim se constroacutei

atraveacutes de um conjunto de normas e decisotildees que fornecem elementos para entendermos

com que tipos de danos temos razatildeo para nos indignar ou para ter raiva ou que tipos de

sofrimento nos habilitam a buscar prestaccedilatildeo jurisdicional Portanto existe uma eacutetica

emotiva que informa a elaboraccedilatildeo das leis instrumentaliza-se processualmente e muitas

vezes ingressa no discurso juriacutedico Em outras palavras o direito eacute um sistema de

normas fundado em emoccedilotildees

Isso estaacute intrinsicamente conectado com a anaacutelise das decisotildees que apresentamos

no toacutepico anterior e que agora passamos a discutir

Por exemplo no ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo natildeo faria o menor sentido utilizar a

estrutura cognitiva do medo (argumentos de consequecircncia negativa) caso a existecircncia

de determinados perigos natildeo tivesse a possibilidade de realmente provocar seacuterios

danos a sujeitos e bens juridicamente tutelados pela CF isto eacute a sauacutede da populaccedilatildeo e o

equiliacutebrio do meio-ambiente

Desse modo o uso de argumentos de medo se fez necessaacuterio porque estava em

discussatildeo a presenccedila de riscos juridicamente relevantes que precisavam ser

evidenciados e ponderados Na audiecircncia puacuteblica realizada em 9 de junho de 2008

diversos especialistas manifestaram posicionamentos a favor e contra a importaccedilatildeo dos

pneus usados e remoldados de sorte que para uma boa soluccedilatildeo da questatildeo a

visualizaccedilatildeo de perigos relacionados agrave referida importaccedilatildeo era fundamental

Conveacutem destacar que na decisatildeo o uso de argumentos de medo estava

embasado em material teacutecnico elaborado por especialistas Ademais os referidos

argumentos estavam integrados dentro de uma argumentaccedilatildeo juriacutedica porque os

ministros desenvolveram a ideia de que aqueles perigos contrariavam dispositivos

constitucionais relacionados ao tema tais como o direito ao meio-ambiente

ecologicamente equilibrado o princiacutepio da precauccedilatildeo e o direito agrave sauacutede Por exemplo

em relaccedilatildeo ao art 225 da CF destaca-se o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado o que impotildee ao poder puacuteblico o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as

128

presentes e futuras geraccedilotildees O princiacutepio da precauccedilatildeo exige a necessidade de prevenir-

se contra riscos de danos previsiacuteveis quanto ao art 196 da CF enfatiza-se o dever de

atuaccedilatildeo do poder puacuteblico em face de riscos agrave sauacutede da populaccedilatildeo

Assim tal argumentaccedilatildeo demonstra a atualidade da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica de que

o medo pode ser beneacutefico para a deliberaccedilatildeo de determinados assuntos que envolvam

perigos Walton tambeacutem evidencia este aspecto ao dizer que argumentos que apelem ao

medo satildeo legiacutetimos e racionais quando a decisatildeo envolva a necessidade de ponderar as

consequecircncias de determinadas escolhas ou mais especificamente quando existe um

dilema entre manter um benefiacutecio atual ou visualizar aspectos de seguranccedila a longo-

prazo ldquoestes argumentos frequentemente envolvem uma escolha entre a seguranccedila a

longo-prazo e a gratificaccedilatildeo imediatardquo289

No presente caso pode-se dizer que estava em

discussatildeo a seguranccedila a longo prazo da populaccedilatildeo e do meio-ambiente em face da

manutenccedilatildeo dos interesses econocircmicos de certas empresas290

De outra parte analisando o ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958

1962 e 1970rdquo entendemos que os argumentos emotivos foram mal utilizados pelos

motivos a seguir desenvolvidos

Em primeiro lugar antes de prosseguir eacute preciso registrar que homenagens

puacuteblicas (sem premiaccedilatildeo em dinheiro) a cidadatildeos brasileiros que alcanccedilaram relevante

ecircxito em suas aacutereas de atuaccedilatildeo profissional (artiacutestica cultural cientiacutefica esportiva etc)

e divulgaram positivamente o nome do Paiacutes satildeo comuns e fazem parte da conduta da

Administraccedilatildeo Puacuteblica Todavia na referida ADI natildeo estava em discussatildeo uma mera

homenagem mas a constitucionalidade de dispositivos da Lei nordm 12663 de 2012 que

destinavam a especiacuteficos ex-jogadores a tiacutetulo de premiaccedilatildeo um relevante montante de

dinheiro puacuteblico no valor total de R$ 52 milhotildees de reais aleacutem de um auxiacutelio especial

Assim considerando a singularidade da homenagem seria necessaacuterio demonstrar que o

uso do dinheiro puacuteblico no caso buscava atingir algum propoacutesito constitucional

bastante relevante

289

ldquoThese arguments frequently involve a choice between long-term safety and immediate gratificationrdquo

(trad livre) WALTON D Op cit 2000 p 23 290

Sunstein em obra especiacutefica explora a relaccedilatildeo entre o medo e o princiacutepio da precauccedilatildeo Em contextos

altamente emotivos o autor argumenta que ocorre o fenocircmeno da negligecircncia probabiliacutestica isto eacute as

pessoas tendem a ignorar a real probabilidade de acontecimento dos riscos imaginados tomando assim

decisotildees irracionais Cf SUNSTEIN Cass R Laws of fear beyond the precautionary principle New

York Cambridge University Press 2005

129

Todavia da leitura dos votos dos ministros observa-se que o uso de argumentos

emotivos suplantou qualquer tentativa de desenvolvimento argumentativo a respeito dos

motivos constitucionais que fundamentariam tal premiaccedilatildeo

Apenas o relator o ministro Lewandowski conseguiu desenvolver um pouco

alguns suportes constitucionais para a decisatildeo mas ainda assim de maneira

problemaacutetica

No primeiro suporte cita-se o art 217 da CF cujo caput diz que eacute dever do

Estado fomentar praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais a autorizaccedilatildeo para a

referida homenagem estaria no inciso IV deste dispositivo o qual diz que devem ser

observados ldquoa proteccedilatildeo e o incentivo agraves manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacionalrdquo

Todavia a expressatildeo ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo que parece indicar a necessidade de proteccedilatildeo

de manifestaccedilotildees desportivas criadasoriginadas no Brasil eacute entendida em outro sentido

Assim ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo eacute compreendida no sentido de ldquoincorporada aos costumes

nacionaisrdquo

Desse modo o ministro Lewadowski chega agrave conclusatildeo de que o futebol como

esporte incorporado ao costume nacional ldquodeve ser protegido e incentivado por

expressa imposiccedilatildeo constitucional mediante qualquer meio que a Administraccedilatildeo

Puacuteblica considerar apropriadordquo Em outras palavras a Administraccedilatildeo Puacuteblica natildeo

estaria sujeita a limites quando no intuito de fomentar determinada praacutetica desportiva

a protege e incentiva com dinheiro puacuteblico inclusive atraveacutes de homenagens a pessoas

especiacuteficas Parece que tal conclusatildeo natildeo estaacute condizente com a ideia de limites

juriacutedicos presente num Estado Democraacutetico de Direito

O segundo suporte seria uma combinaccedilatildeo do art 215 sect1ordm com o art 216 da CF

Aquele primeiro dispositivo reza que ldquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas

populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo

civilizatoacuterio nacionalrdquo Assim o sect 1ordm do art 215 preocupa-se com as manifestaccedilotildees das

culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do

processo civilizatoacuterio nacional porque compreende que a vulnerabilidade de culturas

pertencentes a grupos minoritaacuterios necessita de proteccedilatildeo estatal diferenciada para natildeo

desaparecerem

Todavia o ministro Lewandowski realiza uma ablaccedilatildeo no referido dispositivo

ao retirar a parte que fala de ldquo[] indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos

participantes do processo civilizatoacuterio nacionalrdquo Na sua decisatildeo aparece apenas um

pedaccedilo do dispositivo senatildeo vejamos ldquovale lembrar ainda nesse diapasatildeo que o art

130

215 sect 1ordm da Carta Magna dispotildee que lsquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas

popularesrsquordquo

O art 216 por sua vez declara que o patrimocircnio cultural brasileiro eacute

constituiacutedo por bens de natureza material e imaterial ldquo[] tomados individualmente ou

em conjunto portadores de referecircncia agrave identidade agrave accedilatildeo agrave memoacuteria dos diferentes

grupos formadores da sociedade brasileirardquo Assim o ministro Lewandowski chega agrave

conclusatildeo de que o futebol eacute um bem de natureza imaterial e faz referecircncia aos incisos I

e II deste artigo quais sejam ldquoformas de expressatildeordquo e ldquoos modos de criar fazer e

viverrdquo

Poreacutem no direito brasileiro eacute preciso ressaltar que para ganhar tal alcunha os

bens culturais de natureza imaterial por expressa determinaccedilatildeo do art 216 sect 1ordm da CF

estatildeo sujeitos a processo de registro e de reconhecimento especiacutefico pelo Instituto de

Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional - IPHAN regulamentado pelo Decreto nordm

3551 de 4 de agosto de 2000291

Assim ateacute hoje foram registrados pelo IPHAN os seguintes bens culturais de

natureza imaterial ofiacutecio das paneleiras de goiabeiras kusiwa (linguagem e arte graacutefica

Wajatildepi) ciacuterio de Nossa Senhora de Nazareacute samba de roda do recocircncavo baiano modo

de fazer viola-de-cocho ofiacutecio das baianas de acarajeacute jongo no Sudeste modo artesanal

de fazer queijo de Minas samba do Rio de Janeiro frevo cachoeira de Iauaretecirc (lugar

sagrado dos povos indiacutegenas dos Rios Uaupeacutes e Papuri) feira de Caruaru e roda de

capoeira toque dos sinos em Minas Gerais ofiacutecio de Sineiro festa do Divino Espiacuterito

Santo de Pirenoacutepolis Rtixogravekograve (expressatildeo artiacutestica e cosmoloacutegica do Povo Karajaacute)

etc292

A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura ndash

UNESCO apenas reconhece como patrimocircnio cultural imaterial da humanidade os

seguintes elementos do Brasil roda de capoeira frevo yaokwa (ritual do povo

enawene) expressotildees orais e graacuteficas dos wajapis e samba de roda do recocircncavo

baiano293

291

Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimocircnio cultural

brasileiro cria o Programa Nacional do Patrimocircnio Imaterial e daacute outras providecircncias 292

Cf em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid=12456ampretorno=paginaIphan

Acesso em 19 de marccedilo de 2015 293

Cf em httpwwwunescoorgnewptbrasiliacultureworld-heritageintangible-cultural-heritage-list-

brazilc1414250 Acesso em 19 de marccedilo de 2015

131

De toda sorte todos os dispositivos acima citados pelo ministro satildeo brevemente

desenvolvidos na argumentaccedilatildeo e mesmo assim natildeo parecem conceder uma

autorizaccedilatildeo para a dita homenagem com o uso de dinheiro puacuteblico

A partir de entatildeo apenas surgem argumentos emotivos que procuram dar razotildees

para se ter orgulho e compaixatildeo pelos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e

1970 Todavia a questatildeo eacute que tais argumentos desconectam-se dos seus motivos

juriacutedicos afastam-se da questatildeo central em discussatildeo que era a verificaccedilatildeo do

atingimento de propoacutesitos constitucionais e adquirem um peso desproporcional na

argumentaccedilatildeo passando a ser irrelevantes

Conveacutem destacar que a argumentaccedilatildeo realizada pelo ministro Luiz Fux chega a

apresentar as caracteriacutesticas do que seria uma patologia do orgulho Segundo Lazarus o

orgulho pode demonstrar uma faceta doentia quando proveniente de uma identidade

extremante fraacutegil e em duacutevida sobre o seu proacuteprio valor294

Desse modo ao dizer que as

conquistas dos referidos jogadores fizeram com que abandonaacutessemos ldquoo complexo de

que noacutes soacute seriacuteamos uma paacutetria que calccedila chuteirasrdquo o ministro fornece um fundamento

patoloacutegico para a concessatildeo da premiaccedilatildeo Ademais dizer que as vitoacuterias da seleccedilatildeo

proporcionaram bastante alegria agrave populaccedilatildeo e que tal premiaccedilatildeo seria uma diacutevida de

gratidatildeo do povo brasileiro eacute irrelevante para a soluccedilatildeo juriacutedica do caso

O ministro Toffoli por sua vez destaca sem especificar fontes bibliograacuteficas

que a descoberta das empresas suecas pelo Brasil ocorreu em virtude da vitoacuteria de 1958

e seria um bom motivo para se orgulhar da seleccedilatildeo Tal argumento como tantos outros

foge da questatildeo central em julgamento e eacute igualmente irrelevante

De outra parte o uso da compaixatildeo que formatou a concessatildeo legislativa do

chamado auxiacutelio especial e ingressou nos argumentos juriacutedicos tambeacutem se mostra

problemaacutetico

Primeiramente eacute preciso dizer que a compaixatildeo eacute uma emoccedilatildeo de importante

cultivo na vida puacuteblica pois seria impossiacutevel conviver numa sociedade cujos membros

natildeo tivessem a capacidade de reconhecer a seriedade do sofrimento vivido pelos demais

e de lhes auxiliar Assim Nussbaum destaca que tal emoccedilatildeo quando bem utilizada

pode desempenhar relevante funccedilatildeo no direito ldquoela pode fornecer bases cruciais para

programas de assistecircncia social para a ajuda externa e outros esforccedilos para a justiccedila

294

LAZARUS R Op cit 1991 p 273

132

global e para muitas formas de mudanccedila social que abordam a opressatildeo e a

desigualdade de grupos vulneraacuteveisrdquo295

Todavia ela tambeacutem pode ser mal utilizada pelo Estado principalmente em

relaccedilatildeo a uma etapa da estrutura cognitiva da compaixatildeo que diz respeito ao julgamento

eudemonista isto eacute uma fase avaliativa em que aferimos a extensatildeo de pessoas que eacute

objeto de tal emoccedilatildeo296

Eacute caracteriacutestico do ser humano que ele tenha preocupaccedilatildeo

primeiramente por ele proacuteprio e depois por aqueles que lhes satildeo proacuteximos tendendo a

ser indiferente consequentemente com aqueles que estatildeo afastados de seu estreito

ciacuterculo de empatia Tal estrutura de pensamento estaacute presente na descriccedilatildeo da

compaixatildeo realizada por Aristoacuteteles em sua Retoacuterica

Um dos possiacuteveis erros nessa etapa alerta Nussbaum consiste em incluir uma

quantidade muito restrita de pessoas em tal ciacuterculo Ou seja geralmente ocorre que o

conjunto de indiviacuteduos digno de tal sentimento eacute aquele culturalmente proacuteximo ou

simpaacutetico de uma sociedade excluindo-se estranhos e pessoas que estatildeo distantes297

No

que tange agrave criaccedilatildeo de tais ciacuterculos a miacutedia possui um tremendo poder pois atraveacutes da

escolha de imagens e de narrativas e inclusive por pressotildees mercadoloacutegicas tem a

capacidade de produzir empatia e influenciar julgamentos eudemonistas298

Poreacutem o Estado quando se baliza pela compaixatildeo para direcionamento de

recursos puacuteblicos precisa estar atento a isso e realizar uma avaliaccedilatildeo autocriacutetica nessa

etapa de julgamento Estendendo tal raciociacutenio ao presente caso pode-se dizer que no

Brasil o exerciacutecio de compaixatildeo por jogadores campeotildees de futebol padece de um viacutecio

de circularidade cultural por parte do Estado

Assim utilizar argumentos de que determinados atletas mereceriam um auxiacutelio

financeiro porque na eacutepoca de suas atividades profissionais esportivas natildeo se retirava

proveito econocircmico como hoje em dia ou porque a presente situaccedilatildeo financeira de tais

ex-campeotildees colocaria em ldquoxeque o profundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves

seleccedilotildees brasileiras que disputaram a Copa do Mundo de 1958 1962 e 1970rdquo afronta a

isonomia em prejuiacutezo de atletas de outras modalidades excluiacutedas do ciacuterculo cultural da

295

ldquoIt can provide crucial underpinnings for social welfare programs for foreign aid and other efforts

toward global justice and for many forms of social change that address the oppression and inequality of

vulnerable groupsrdquo (trad livre) NUSSBAUM M Op cit p 55 296

Id ibid p 51 297

Id ibid p 346 298

NUSSBAUM Martha Upheavals of thought the intelligence of emotions Cambridge Cambridge

University Press 2001 p 434

133

simpatia social que tambeacutem alcanccedilaram feitos notaacuteveis para o Paiacutes e que atualmente

passam por iguais problemas financeiros

Acrescente-se que a isonomia eacute um instrumento juriacutedico de manutenccedilatildeo da

estabilidade emocional numa sociedade cujo direito valorize a igualdade Desse modo a

desequiparaccedilatildeo arbitraacuteria juridicamente desmotivada ou fraca deve ser evitada porque

deflagra reaccedilotildees juridicamente relevantes de raiva e de indignaccedilatildeo em face do Estado-

legislador

Por uacuteltimo no ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo tem-se um julgamento distinto dos

demais porque os argumentos emotivos ainda que salientes estavam diluiacutedos entre

uma seacuterie de outros argumentos acerca de questotildees penais de dignidade da pessoa

humana de laicidade estatal de autonomia do indiviacuteduo de definiccedilatildeo sobre o iniacutecio da

vida etc

Poreacutem conforme vimos os votos vencedores estavam em sintonia

argumentativa em pelo menos um aspecto qual seja o reconhecimento do sofrimento

da gestante que foi comparado muitas vezes a uma tortura a um martiacuterio revelando a

estrutura cognitiva da compaixatildeo Ademais vaacuterias emoccedilotildees negativas foram

expressamente atribuiacutedas agrave figura da matildee medo vergonha anguacutestia raiva tristeza

Ressalte-se que tal constataccedilatildeo tinha fundamento no depoimento de mulheres que

portaram fetos anenceacutefalos na opiniatildeo de meacutedicos (ginecologistas psiquiatras)

antropoacutelogos e demais especialistas ouvidos na audiecircncia puacuteblica

Acreditamos que tais argumentos eram juridicamente relevantes pelos seguintes

aspectos Primeiramente a demanda considerando o objeto da accedilatildeo soacute faria sentido

diante da seriedade do sofrimento experimentado pela gestante E isso estava

estreitamente conectado a questotildees juriacutedicas respeitantes agrave dignidade da pessoa humana

agrave liberdade e agrave autonomia da vontade ao direito agrave sauacutede que engloba a sauacutede fiacutesica e

psiacutequica

Obviamente a gravidade do sofrimento da gestante era apenas uma entre outras

questotildees que precisavam ser argumentadas e por isso haveria um erro de peso caso os

votos apenas se sustentassem nesse ponto o que natildeo aconteceu No entanto pode-se

dizer que a estrutura argumentativa do julgado estava fundada numa emoccedilatildeo especiacutefica

que era a compaixatildeo e que isso diante das caracteriacutesticas do problema e das normas

juriacutedicas invocadas tinha uma relevacircncia juriacutedica para o deslinde da controveacutersia

Tendo realizado essas observaccedilotildees em relaccedilatildeo aos trecircs julgados do STF

analisados no toacutepico anterior verifica-se que o estudo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo

134

juriacutedica e mais amplamente no direito se justifica pois a partir desta perspectiva eacute

possiacutevel compreender por que alguns julgamentos e ateacute por que algumas leis tomam

determinada formataccedilatildeo sendo admissiacutevel inclusive criticar o uso das emoccedilotildees no

discurso juriacutedico

No entanto para o fechamento deste toacutepico ainda resta discutir mais uma

problemaacutetica que se relaciona agrave eacutetica da utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e suas

implicaccedilotildees para um discurso juriacutedico que tenha a pretensatildeo de neutralidade e de

tecnicidade na soluccedilatildeo de problemas Assim a introduccedilatildeo de elementos emotivos numa

decisatildeo poderia representar uma ameaccedila agrave necessaacuteria imparcialidade exigida da figura

racional do juiz

Em parte pensamos jaacute ter respondido tal duacutevida tanto na exposiccedilatildeo que fizemos

da psicologia cognitiva quanto na anaacutelise das decisotildees judiciais do STF Para a Teoria

da Avaliaccedilatildeo natildeo haveria como falar de racionalidade dissociada das emoccedilotildees sendo

que muitas das boas decisotildees de nossa vida praacutetica estatildeo amparadas em suportes

emotivos

De outra parte vimos que em determinadas decisotildees judiciais seria ateacute

irracional decidir e fundamentar sem recorrer agraves emoccedilotildees como por exemplo no ldquocaso

dos pneumaacuteticosrdquo em que o medo se fez presente atraveacutes da visualizaccedilatildeo das

consequecircncias negativas (perigos) o que era extremamente adequado para a soluccedilatildeo do

problema

Ademais adicionamos que os argumentos emotivos precisam ser juridicamente

relevantes para o caso considerando tanto o conjunto de normas juriacutedicas invocado

quanto a especiacutefica problemaacutetica factual a ser enfrentada Por fim o peso de tais

argumentos precisa guardar uma relaccedilatildeo de proporccedilatildeo com outras questotildees que tambeacutem

precisem ser enfrentadas

Todavia aqui intencionamos tratar de algo diferente e expor um fictiacutecio modelo

humano que pudesse servir de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no julgamento porque

sabemos que elas tanto podem ser bem utilizadas quanto mal utilizadas

Em primeiro lugar o saacutebio estoico natildeo seria um bom paracircmetro de reflexatildeo

porque uma vez que se livrou das emoccedilotildees do homem comum e apenas possui uma

ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees (eupatheia) ele tem uma sistemaacutetica de valores que natildeo

coincide com a nossa e a do nosso ordenamento juriacutedico e provavelmente caso tivesse

que julgar o homem inferior teria uma difiacutecil compreensatildeo dos seus problemas juriacutedico-

mundanos

135

Vimos que Aristoacuteteles confere bastante importacircncia agraves emoccedilotildees em sua teoria

eacutetica e na retoacuterica aleacutem de possuir uma visatildeo sobre o tema que ainda permanece

bastante atual Ademais o homem aristoteacutelico tem a virtude completa porque nele a

parte racional e a parte natildeo-racional da alma desempenham bem a sua funccedilatildeo e atingem

os melhores padrotildees demonstrando corretamente que natildeo existe racionalidade sem

disposiccedilatildeo emocional Todavia vimos que Aristoacuteteles natildeo recepciona na retoacuterica a

classificaccedilatildeo emocional da Eacutetica a Nicocircmaco Aleacutem disso para o Estagirita a virtude

moral eacute conquistada pelo haacutebito o que embora concordemos em parte se distancia dos

propoacutesitos mais intelectuais aqui objetivados

Assim entendemos que um bom ponto de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no

direito e especificamente na decisatildeo juriacutedica seria o modelo do espectador imparcial de

Adam Smith

Na sua Teoria dos Sentimentos Morais Smith procura explanar a estrutura do

julgamento da vida moral na sociedade isto eacute o meio pelo qual aprovamos ou

reprovamos condutas de indiviacuteduos incluindo noacutes mesmos considerando a adequaccedilatildeo

da accedilatildeo de um determinado agente num determinado contexto Primeiramente julgamos

a correccedilatildeo das accedilotildees como espectadores diretos mas em busca de uma melhor

avaliaccedilatildeo tentamos recorrer a outros tipos de espectadores ateacute chegarmos agravequele que

seria o melhor tipo de julgador ou seja o espectador imparcial299

O ato de julgar eacute o desafio de conectar um conjunto de eventos marcados pela

fortuna e por isso pelas suas singularidades a um mundo que necessita ser regido por

padrotildees normativos em comum vale dizer ldquo[] um mundo de mentes que soacute pode ser

um mundo comum quando a imaginaccedilatildeo criativa estabelece normas comuns para a

forma de avaliar os motivos para a accedilatildeo ou seja o que deve ser considerado um motivo

adequado para a accedilatildeordquo300

A fim de realizar devidamente tais julgamentos o espectador precisa estar

munido de dois indispensaacuteveis instrumentos morais quais sejam a simpatia e a

imaginaccedilatildeo Por meio da imaginaccedilatildeo conseguimos superar a descontiguidade fiacutesica

que nos separa necessariamente dos outros homens e o hiato temporal que via de

regra nos aparta da situaccedilatildeo experimentada pelos outros permitindo-nos posicionar

299

SMITH Adam The theory of moral sentiments Cambridge Cambridge University Press 2002 p

XVI 300

ldquo[hellip] world of minds which can only be a common world when the creative imagination sets up

common standards for how to assess motives for action that is for what counts as a proper motive for

actionrdquo (trad livre) Introduccedilatildeo in Id ibid p XVII

136

num mundo de eventos que pessoalmente nunca vivenciamos mas que somos capazes

de reconstruir mentalmente e de alguma forma senti-lo

Como natildeo temos experiecircncia imediata do que os outros homens

sentem natildeo podemos formar uma ideia da forma como eles satildeo

afetados senatildeo concebendo o que noacutes sentiriacuteamos na situaccedilatildeo

semelhante

[]

Pela imaginaccedilatildeo nos colocamos em sua situaccedilatildeo concebemo-nos

suportando todos os mesmos tormentos entramos por assim dizer em

seu corpo e nos convertemos em alguma medida a mesma pessoa que

ele e daiacute formamos uma ideia de suas sensaccedilotildees podendo sentir algo

que embora em menor grau natildeo eacute totalmente contraacuterio ao deles301

Assim eacute atraveacutes da imaginaccedilatildeo baseada em evidecircncias em relaccedilatildeo ao evento

julgado que o espectador consegue compreender os motivos e as emoccedilotildees que

informaram a atitude do agente E a sua simpatia se funda nesta imaginaccedilatildeo pois apenas

ela permite ldquo[] levar para si mesmo cada pequena circunstacircncia de sofrimento que

pode eventualmente ocorrer a quem sofrerdquo302

Assim ao se imaginar na posiccedilatildeo do

agente o espectador iraacute avaliar se agiria da mesma forma simpatizando com os

sentimentos do agente e com a sua conduta

Poreacutem a despeito de o espectador imparcial possuir essa viacutevida qualidade de

imaginar a situaccedilatildeo alheia e por isso ter uma racionalidade composta por emoccedilotildees a

sua especial condiccedilatildeo lhe possibilita estar apartado da violecircncia dos sentimentos

alheios permitindo-lhe produzir julgamentos morais imparciais Assim anota Forman-

Barzilai ldquomas eacute fundamental notar que o modelo de simpatia eacute eficaz para Smith para

produzir juiacutezos morais imparciais porque o espectador eacute ao mesmo tempo envolvido e

desapegadordquo303

Assim o espectador imparcial que eacute a terceira pessoa ideal imaginaacuteria

consegue temperar as emoccedilotildees porque estaacute localizado num lugar que nem eacute

exatamente o nosso proacuteprio com as nossas eternas inclinaccedilotildees e preferecircncias pessoais

301

ldquoAs we have no immediate experience of what other men feel we can form no idea of the manner in

which they are affected but by conceiving what we ourselves should feel in the like situation [hellip] By the

imagination we place ourselves in his situation we conceive ourselves enduring all the same torments we

enter as it were into his body and become in some measure the same person with him and thence form

some idea of his sensations and even feel something which though weaker in degree is not altogether

unlike themrdquo (trad livre) Id ibid p 11-12 302

ldquo[hellip] to bring home to himself every little circumstance of distress which can possibly occur to the

suffererrdquo (trad livre) Id ibid p 26 303

ldquoBut it is key to note that the sympathy model is effective for Smith for producing impartial moral

judgments because the spectator is at once both involved and detachedrdquo FORMAN-BARZILAI Fonna

Adam Smith and the circles of sympathy cosmopolitanism and moral theory Cambridge Cambridge

University Press 2009 p 67

137

nem o da pessoa observada Conforme adverte Nussbaum a emoccedilatildeo precisa ser a

emoccedilatildeo de um espectador ldquoisso tambeacutem significa que noacutes temos que omitir essa parte

da emoccedilatildeo que deriva de um interesse pessoal em nossas proacuteprias metas e projetosrdquo304

Um tal modelo de espectador imparcial implica o desenvolvimento da

capacidade de autocriacutetica e de criacutetica porque lembra Pitts o nosso julgamento do que eacute

louvaacutevel eacute inserido sempre num determinado contexto social e eacute necessaacuterio aprender a

questionaacute-lo em seus preconceitos e nas suas parcialidades Assim ldquonoacutes desenvolvemos

uma concepccedilatildeo do que seria o julgamento de um espectador imparcial observando as

nossas proacuteprias opiniotildees e as de observadores reais ndash membros da nossa proacutepria

sociedade ndash e destes destilando um julgamento desapaixonado e imparcialrdquo305

Smith portanto estava preocupado com a manutenccedilatildeo da ordem social uma vez

que para ele a ausecircncia de determinados preceitos de justiccedila tem forte efeito

desintegrador sobre a sociedade306

Na preservaccedilatildeo dessa ordem confrontar as

inclinaccedilotildees emotivas eacute essencial e isso deve ser realizado numa dupla esfera

individualmente atraveacutes do escrutiacutenio das preferecircncias particularistas e coletivamente

por meio do exame das preferecircncias parciais de facccedilotildees civis e eclesiais que podem se

tornar extremamente fanaacuteticas307

Com efeito tendo visto o que seria o modelo de espectador imparcial de Smith

percebe-se que ele representa um bom ponto de reflexatildeo para pensar a eacutetica da

utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Primeiramente as emoccedilotildees natildeo podem ser aquelas resultantes dos proacuteprios

projetos e inclinaccedilotildees particulares do julgador e nessa medida ele precisa ter a

304

ldquoit also means that we have to omit that portion of the emotion that derives from a personal interest in

our own goals and projectsrdquo (trad livre) NUSSBAUM Martha Emotion in the language of judging

In St Johns Law Review vol 70 issue 1 1996 23-30 p 28 305

ldquoWe develop a conception of what the impartial spectatorrsquos judgments would be by observing our own

opinions and those of actual observers and from these distilling a dispassionate and unbiased judgmentrdquo

(trad livre) PITTS Jennifer A turn to empire the rise of imperial liberalism in Britain and France

PrincetonOxford Princeton University Press 2005 p 44 Neil Maccormick busca conciliar o

pensamento de Smith com o de Kant ao formular o seguinte imperativo categoacuterico smithiano ldquoEntre tatildeo

plenamente quanto possiacutevel nos sentimentos de todas as pessoas diretamente envolvidas ou afetadas por

um incidente ou por um relacionamento e imparcialmente forme uma maacutexima de julgamento sobre o que

eacute certo que todos pudessem aceitar se estivessem comprometidos com a manutenccedilatildeo de crenccedilas muacutetuas

estabelecendo um padratildeo comum de aprovaccedilatildeo entre sirdquo MACCORMICK Neil Practical reason in law

and morality OxfordNew York Oxford University Press 2008 p 64 Para uma anaacutelise da

argumentaccedilatildeo do STF e do STJ com base nos paracircmetros fornecidos por Maccormick cf ROESLER

Claudia LAGE Leonardo A argumentaccedilatildeo do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes

inimputaacuteveis e semi-imputaacuteveis In Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Ano 21 Vol 104 Out-

set 2013 pp 347-390 306

SMITH A Op cit p 101 307

FORMAN-BARZILAI F Op cit p 152

138

capacidade de filtrar as suas propensotildees pessoais e tambeacutem criticar as do grupo em que

esteja socialmente inserido e as de outros grupos sociais dominantes a fim de que as

emoccedilotildees alcanccediladas sejam a de um espectador imparcial Poreacutem a despeito disso sabe-

se que ele natildeo eacute um observador apaacutetico de modo que as emoccedilotildees quando juridicamente

relevantes e pertinentes ao conjunto normativo discutido podem ser argumentadas

desde que devidamente fundamentadas em evidecircncias Por fim eacute preciso acrescentar

que o julgador por meio de suas decisotildees eacute responsaacutevel por preservar um ambiente de

normatividade comum na sociedade

A manutenccedilatildeo da confianccedila social na figura do juiz reside na sua capacidade de

se colocar adequadamente nesse papel de espectador imparcial possibilitando a

conservaccedilatildeo do ideal da lei como limites

139

4 CONCLUSAtildeO

No Capiacutetulo I iniciamos este trabalho investigando a importacircncia conferida agraves

emoccedilotildees na Antiguidade precisamente na retoacuterica e na eacutetica da filosofia de Aristoacuteteles e

da escola estoica

Primeiramente contextualizamos o tema e observamos que as emoccedilotildees ganham

oportunidade para tematizaccedilatildeo apenas dentro de uma sociedade em que a cultura do

debate eacute valorizada A retoacuterica surge num ambiente em que a fala articulada se mostra

extremamente necessaacuteria para a soluccedilatildeo de problemas na vida comum nascendo a partir

daiacute a sua teorizaccedilatildeo e tambeacutem a sua criacutetica atraveacutes de Platatildeo que cunha o termo

ldquorhecirctorikecircrdquo Ademais a proacutepria literatura representada na sua maior qualidade pela

obra de Homero impulsiona e antecipa o desenvolvimento teoacuterico da retoacuterica

Por sua vez ao analisar a retoacuterica aristoteacutelica destacamos um ponto pouco

explorado do autor que diz respeito agrave sua mudanccedila de posicionamento acerca das

emoccedilotildees Se no Capiacutetulo I do Livro I da Retoacuterica observamos uma contundente criacutetica

ao uso das emoccedilotildees no discurso a partir do Capiacutetulo II as emoccedilotildees jaacute satildeo consideradas

um dos meios de convencimento e apoacutes dedica-se praticamente a metade do Livro II

para descrever com um grande grau de detalhes as emoccedilotildees em espeacutecie

Vimos tambeacutem que Aristoacuteteles foi influenciado pela evoluccedilatildeo do pensamento

platocircnico e incorpora em sua obra a ideia de sentimentos mistos pois para o

mencionado filoacutesofo as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer e de dor Ademais a fim

de explanar como ocorre o mecanismo de surgimento das emoccedilotildees o Estagirita recorre

agrave ideia de phantasia um termo teacutecnico emprestado de sua psicologia Uma curiosidade

identificada foi o fato de que o tema das emoccedilotildees que a rigor eacute um assunto proacuteprio da

psicologia natildeo eacute desenvolvido na obra aristoteacutelica supostamente adequada para tanto

que seria a ldquoDe Animardquo (Sobre a alma) evidenciando o quanto na sabedoria da eacutepoca

a retoacuterica jaacute estava vinculada a questotildees psicoloacutegicas

De outra parte nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles tambeacutem

confere bastante relevacircncia agraves emoccedilotildees O homem virtuoso aristoteacutelico possui a virtude

completa que eacute alcanccedilada pelo bom funcionamento da parte racional e da parte natildeo-

racional da alma A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que eacute atingida por meio

do haacutebito e ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que significa ser devidamente afetado

pelas emoccedilotildees eacute determinante para aquisiccedilatildeo de uma vida feliz Exploramos as

implicaccedilotildees morais desse modelo eacutetico ao dizer que uma falha na decisatildeo do curso da

140

accedilatildeo moral estaacute tambeacutem relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional do indiviacuteduo Aleacutem disso

constatamos que Aristoacuteteles realiza uma classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e

inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas sendo que estas

uacuteltimas natildeo devem ser sentidas em nenhuma circunstacircncia Por uacuteltimo ao compararmos

a classificaccedilatildeo emocional desenvolvida na Eacutetica a Nicocircmaco com o tratamento teoacuterico

da Retoacuterica percebemos que o orador eacute instruiacutedo a utilizar todas as emoccedilotildees no

discurso inclusive aquelas denominadas de perversas motivo pelo qual se pode dizer

que a retoacuterica foi erigida num domiacutenio proacuteprio

De seu turno os estoicos desenvolveram uma peculiar sistemaacutetica de

pensamento em que a uacutenica coisa considerada boa eacute a virtude que se confunde com a

felicidade e a uacutenica coisa ruim eacute o viacutecio que significa a infelicidade todo o resto

(reputaccedilatildeo riqueza sauacutede bom nascimento beleza etc) eacute considerado indiferente isto

eacute a sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a felicidade Ademais para os fundadores da escola

estoica a alma humana eacute monoliticamente constituiacuteda apenas pela razatildeo sem

possibilidade de haver conflito entre as partes Nessa ordem de ideias as emoccedilotildees que

satildeo entendidas como avaliaccedilotildees por Crisipo devem ser eliminadas da vida comum uma

vez que por meio delas estamos sempre valorando indevidamente a realidade Em seu

caminho para a aquisiccedilatildeo da autossuficiecircncia e para a compreensatildeo correta do mundo o

homem virtuoso estoico que eacute representado pela figura do saacutebio se livrou das emoccedilotildees

do ser humano inferior e adquiriu uma ldquoversatildeo corrigidardquo denominada eupatheia

A retoacuterica estoica por sua vez recebeu uma grande influecircncia da sua eacutetica e por

isso natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero nos traz um relato histoacuterico de oradores estoicos

romanos como figuras que embora haacutebeis na dialeacutetica e no uso de argumentos precisos

possuiacuteam um estilo seco severo apaacutetico e conciso A ineficaacutecia desse modelo de

discurso eacute relatada no julgamento de Rutilius Rufus que ao se defender no estilo estoico

de uma injusta acusaccedilatildeo foi condenado e exilado

Da exposiccedilatildeo da filosofia aristoteacutelica e estoica acerca das emoccedilotildees concluiacutemos

que o tema era extremamente relevante para as referidas escolas de pensamento e que

ambas natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar das emoccedilotildees Aristoacuteteles antes

de explanar sobre os entimemas que eacute a parte do logos na Retoacuterica ou antes de falar

sobre a parte racional da alma na Eacutetica a Nicocircmaco preferiu discursar primeiramente

sobre as emoccedilotildees conferindo uma precedecircncia e um significado simboacutelico ao assunto

Por sua vez ainda que os estoicos em virtude de sua axiologia ilustrassem uma visatildeo

141

negativa sobre as emoccedilotildees eles realizaram um debate de alto niacutevel e extremamente

atual para a reflexatildeo do assunto

No Capiacutetulo II buscamos investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a MTA

que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de Toulmin

e de Perelman-Tyteca Ademais tambeacutem procuramos identificar criteacuterios de anaacutelise e

de avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso Igualmente examinamos o

desenvolvimento teoacuterico das emoccedilotildees para a psicologia cognitiva especialmente para a

Teoria da Avaliaccedilatildeo Ressalte-se que um dos objetivos fundamentais de tal capiacutetulo foi

tambeacutem tentar compreender como o tema das emoccedilotildees que era considerado tatildeo vital

para o discurso e para a eacutetica na Antiguidade foi recepcionado pela MTA

Em primeiro lugar vimos que o surgimento da MTA ocorreu num contexto

histoacuterico bem especiacutefico em que os movimentos totalitaacuterios ingressaram no poder e

dominaram a vida poliacutetica europeia e mundial O tipo de discurso utilizado por tais

movimentos era a propaganda que empregava um forte apelo emocional para mobilizar

as massas A MTA surge com o objetivo de se afastar desse tipo de discurso e de fundar

um modelo de argumentaccedilatildeo racional que viabilizasse a existecircncia da democracia

Nesse sentido tanto Toulmin quanto Perelman-Tyteca natildeo esboccedilaram nenhum interesse

em falar sobre as emoccedilotildees Assim eacute interessante perceber que justamente na chamada

ldquoNova Retoacutericardquo nada sobre as emoccedilotildees da retoacuterica aristoteacutelica foi recepcionado Em

relaccedilatildeo a Viehweg embora o autor demonstre a relaccedilatildeo entre a toacutepica a retoacuterica e o

direito tambeacutem natildeo vimos nenhum interesse em dissertar sobre as emoccedilotildees

A disciplina responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees na MTA foi a teoria das

falaacutecias ldquoadrdquo Dessa forma toda emoccedilatildeo da retoacuterica antiga se transformou num erro de

loacutegica para a argumentaccedilatildeo de modo que o discurso apaacutetico tal como propugnado pela

retoacuterica estoica passou a ser um modelo ideal de argumentaccedilatildeo fazendo com que

pathos retomasse o seu sentido de patoloacutegico Todavia criticamos tal proposta

argumentativa pela ausecircncia de complexidade e por ser incapaz de discutir em que

medida as emoccedilotildees poderiam desempenhar um bom papel na argumentaccedilatildeo

Em resposta ao tratamento dispensado agraves emoccedilotildees pela disciplina das falaacutecias

ldquoadrdquo vimos que Douglas Walton reage com forte criacutetica Uma teoria da argumentaccedilatildeo

que exclua de suas consideraccedilotildees argumentos emotivos se mostra inaacutebil em

compreender a forma como argumentamos na praacutetica Todavia o teoacuterico canadense

alerta que as emoccedilotildees tambeacutem podem ser mal utilizadas pois argumentos emotivos

podem ser irrelevantes numa discussatildeo e o impacto do seu apelo pode querer disfarccedilar a

142

fraqueza da argumentaccedilatildeo Assim a fim de avaliar tais apelos eacute preciso estar atento

para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo para o impacto e para o contexto em

que satildeo utilizados

Em seguida analisamos a abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees desenvolvida por

Micheli representante da escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo que destaca que o

problema do estudo das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade Desse

modo o linguista suiacuteccedilo sistematiza os resultados encontrados na linguiacutestica e oferece

trecircs categorias para a identificaccedilatildeo das emoccedilotildees na liacutengua as emoccedilotildees ditas as emoccedilotildees

demonstradas e as emoccedilotildees suportadas Outrossim verificamos que as emoccedilotildees podem

ser objeto de argumentaccedilatildeo e que manipulaccedilotildees racionais natildeo satildeo distintas de

manipulaccedilotildees emocionais

Por fim considerando que o tema das emoccedilotildees eacute desde a antiguidade

profundamente conectado com a psicologia procuramos dar um suporte psicoloacutegico ao

nosso trabalho com o saber teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo que coloca a ideia de

avaliaccedilatildeo como o centro da deflagraccedilatildeo do processo emotivo

Nesse ponto observou-se a grande atualidade da abordagem aristoteacutelica e

estoica sobre as emoccedilotildees pois ambas tinham uma compreensatildeo cognitiva do assunto

sendo que Crisipo expressamente se pronunciou no sentido de que as emoccedilotildees satildeo

avaliaccedilotildees Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo dependentes da razatildeo para o seu

surgimento e para o seu controle poreacutem neste processo natildeo haacute uma prevalecircncia da

razatildeo porque esta uacuteltima para se manter equilibrada precisa da emoccedilatildeo

Observamos que as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas

atendem a criteacuterios usuais de racionalidade (instrumental inferencial e consensual) Ao

fim concluiacutemos que a construccedilatildeo de uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa tambeacutem

acessar um saber psicoloacutegico sob pena de ser um artefato teoacuterico artificial sobre como

os seres humanos decidem e argumentam

O Capiacutetulo III foi dividido em trecircs partes a primeira se destinou a evidenciar a

importacircncia das emoccedilotildees para o direito a segunda buscou aplicar os criteacuterios de anaacutelise

descritiva do discurso emotivo identificados no Capiacutetulo II a terceira procurou fazer

consideraccedilotildees criacuteticas ao uso das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica

Na primeira parte concluiacutemos que eacute impossiacutevel compreender a estruturaccedilatildeo do

direito sem estudar as emoccedilotildees pois estas satildeo causas para a elaboraccedilatildeo de leis para

ingressar com uma demanda em juiacutezo e para solucionar uma controveacutersia juriacutedica A

apatheia estoica eacute um modelo inadequado para explicar o direito porque o nosso

143

ordenamento juriacutedico valoriza e protege aqueles bens que os estoicos denominariam de

indiferentes Ademais as nossas emoccedilotildees satildeo respostas aos mais diversos tipos de

danos que a nossa vulneraacutevel constituiccedilatildeo fiacutesico-psiacutequica pode apresentar sendo que o

direito leva isso em consideraccedilatildeo quando socialmente relevante

Ao analisar descritivamente trecircs julgados do STF (ldquoo caso dos pneumaacuteticosrdquo

ldquoo caso dos fetos anenceacutefalosrdquo e o ldquocaso dos campeotildees da Copa do Mundo de 1958 de

1962 e de 1970rdquo) observamos o quanto as emoccedilotildees (medo raiva indignaccedilatildeo gratidatildeo

orgulho compaixatildeo) foram determinantes para a soluccedilatildeo do problema juriacutedico

Concluiacutemos que conhecer a estrutura cognitiva de tais emoccedilotildees eacute fundamental para

realizar uma boa descriccedilatildeo dos suportes emotivos do julgamento

Na terceira parte defendemos que uma retoacuterica estoica seria um modelo de

discurso inalcanccedilaacutevel para o direito seja pela impossibilidade de esvaziar o conteuacutedo

emotivo da linguagem seja pela forma como o direito eacute estruturado

Antes de realizar consideraccedilotildees criacuteticas aos julgados expusemos que no atual

estado de arte da teoria da argumentaccedilatildeo natildeo identificamos um meacutetodo para avaliaccedilatildeo

de argumentos emotivos Assim sem pretender efetuar uma avaliaccedilatildeo rigorosa

procuramos a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum identificar alguns criteacuterios

miacutenimos que pudessem ser uacuteteis a um trabalho criacutetico

Apoacutes isso expusemos que o modelo do espectador imparcial de Adam Smith

seria um oportuno ponto de reflexatildeo para compreendermos a eacutetica das emoccedilotildees na

decisatildeo juriacutedica porque as emoccedilotildees do julgador necessitam ser as de um espectador e

para tanto ele deve ter a capacidade de criticar as proacuteprias inclinaccedilotildees emotivas e as de

outros grupos sociais a fim de atingir um estado de imparcialidade e manter um

ambiente de normatividade comum na sociedade

Todavia ainda que seja um espectador imparcial compreendemos que o

julgador natildeo eacute apaacutetico de modo que quando juridicamente relevantes e fundadas em

evidecircncias as emoccedilotildees podem ser argumentadas e integradas dentro do contexto de um

discurso juriacutedico e em referecircncia a um conjunto de normas juriacutedicas

Ao final deste trabalho podemos dizer que natildeo haacute motivos para que as emoccedilotildees

natildeo sejam incorporadas numa Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e mais amplamente no

estudo do direito porque natildeo eacute possiacutevel falar de racionalidade sem falar de emoccedilotildees e

do seu respectivo controle Se existe um receio de que elas sejam elementos irracionais

e que corrompam o discurso juriacutedico acreditamos que tal avaliaccedilatildeo natildeo eacute condizente

com a importacircncia que as emoccedilotildees possuem na estruturaccedilatildeo da psique humana com a

144

forma pela qual o direito jaacute eacute construiacutedo e com a maneira que decidimos e

argumentamos na praacutetica

De outra parte este trabalho procurou tambeacutem evidenciar em que medida as

emoccedilotildees podem ser mal utilizadas a fim de manter uma postura criacutetica em relaccedilatildeo ao

tema Podem-se censurar as emoccedilotildees no direito de vaacuterias formas a partir dos seguintes

criteacuterios a sua relevacircncia juriacutedica a ausecircncia de evidecircncias a sua parcialidade o seu

peso na argumentaccedilatildeo equiacutevocos de avaliaccedilatildeo na estrutura cognitiva da emoccedilatildeo a

emoccedilatildeo em si mesma Tais criteacuterios diante do atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo

precisam ser desenvolvidos teoricamente a fim de resultar numa metodologia segura de

avaliaccedilatildeo

Assim pensamos que o desenvolvimento de uma pedagogia do uso das

emoccedilotildees que recupere o vocabulaacuterio emotivo atualmente perdido na argumentaccedilatildeo

juriacutedica e no direito eacute muito mais interessante do que o seu atual estado de silecircncio

145

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