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O MUSEU COMO ESPAÇO DE AFIRMAÇÃO DO CURADOR-AUTOR
Alessandro Varela dos Santos
Universidade Luterana do Brasil - ULBRA
A visibilidade é uma armadilha.
Michel Foucault.
O resultado de minha dissertação de mestrado foi o trabalho O telefone celular e as
transformações nos modos de ver de jovens estudantes em museus1, inspirado a partir de uma
saída de estudos da escola onde atuava para visitar a exposição Gênesis, de Sebastião Salgado,
em Porto Alegre, na Usina do Gasômetro, no início de 2014. Observei que a maioria dos
estudantes usava as câmeras de seus celulares para capturar às imagens das fotos expostas à sua
frente, gerando uma nova fotografia. Havia uma mudança de comportamento naqueles jovens
quanto ao seu modo de olhar.
E não apenas novos modos de ver surgiam, mas deslocamentos na forma de olhar os
museus, o que acabava por gerar conteúdo com destino as Redes Sociais. Mesmo que as
postagens e troca de informações colocassem os espaços museológicos em evidência como
nunca havia ocorrido, o olhar do frequentador passava e ainda passa por uma mediação direta
de um “autor” que faz daquele espaço o seu local de trabalho. E não estamos falando do artista
que elaborou as obras de arte expostas. Falamos do curador, sujeito que interfere e cria o
ambiente de uma mostra dentro de um museu ou galeria. Observar e entender o curador com as
ferramentas teóricas oferecidas pelo filósofo Michel Foucault, mesmo que não estejam
associadas ao campo dos Estudos Culturais, ao qual me vinculo, auxiliam na busca de
entendimento sobre o curador como um possível e potente autor. E como sugere Fischer (2012,
p. 30), Foucault nos serve como uma possibilidade de “multiplicar as perguntas sobre o que nos
inquieta no presente”.
1 Dissertação de Mestrado de Alessandro Varela dos Santos disponível em
https://servicos.ulbra.br/BIBLIO/PPGEDUM222.pdf
Que nosso olhar era mediado dentro de um museu não chega a ser uma novidade em
pesquisas ou artigos consultados. O que pode ter uma condição de novo é encarar o curador
quando ele utiliza o discurso autoral para realizar e promover uma exposição. Por isso este
estudo, instigado por um olhar mais atento ao trabalho curatorial, tentar entender o discurso do
curador por caminhos já traçados por Foucault e, pretende problematizar as marcas autorais do
curador quando promove uma exposição interferindo fisicamente sobre o que ela quer
comunicar.
O presente ensaio busca captar os rastros e caminhos percorridos pelo curador quando
se faz autor em duas exposições ocorridas em Porto Alegre: Nem eu, nem tu: Nós. A obra de
Karin Lambrecht e o olhar do colecionador, ocorrida no Santander Cultural, e Iberê Camargo
– diálogos no tempo, - abrigada no Museu Iberê Camargo, as duas mostras já encerradas em
2017. O artigo analisa a curadoria dessas exposições com base no texto A ordem do discurso,
de Michel Foucault. Em poucos termos, nessa perspectiva, o discurso da curadoria é controlado
por mecanismos de poder e de controle externo, produzindo uma verdade. O discurso produzido
pelo curador-autor está fundado em ações que podem ser delimitadas e amparadas dentro e fora
do lugar de exposição, como poderemos compreender neste texto amparado por Foucault.
O interesse de análise sobre o movimento curatorial remete o estudo e a atenção para os
catálogos, a montagem do espaço, caminhos e textos que são tornados evidentes dentro e fora
do museu. Dois eixos de estudo são destacados neste artigo: a seleção de obras e os textos
publicados sobre as mostras em catálogo e no espaço museológico. Os dois eixos poderão
evidenciar uma discursividade do curador-autor que só existe quando a obra de arte se torna
pública e passa a ser objeto mediado pelo curador.
O pesquisador argentino Néstor García Canclini diz que “um museu é, de certo modo,
uma máquina de classificar objetos para diferenciá-los de outros”. (CANCLINI, 2008, p.70). O
sujeito a quem é atribuído o trabalho de ordenar põe à vista um percurso cronológico ou não,
uma impressão de conjunto, um contexto numa mostra dentro de um museu? Esse é o papel do
curador. O dicionário da língua portuguesa Houaiss nos dá pistas sobre o termo curador, que
significa “quem organiza e mantém exposições de obras de arte em museus e galerias de arte”
(p.205). A Wikipédia anota que a palavra curador vem do latim tutor e denota alguém que zela
por algo ou que tem uma administração ao seu cuidado. Ou seja, alguém que age com prudência
em relação a algo. Neste caso, ao curador é oferecido o papel de informar, comunicar e interferir
no espaço físico onde as peças artísticas de um museu ou galeria estão organizadas e expostas.
Segundo Rupp (2010), os curadores e suas curadorias atuais têm a capacidade de
legitimar artistas, propor obras inéditas e até mesmo propor temas para grandes eventos. Como
é o caso de algumas bienais pelo mundo que são reguladas a partir de uma atividade curatorial
de pesquisa e investigação do trabalho de artistas já consagrados ou totalmente desconhecidos.
Lançar um artista exige um procedimento autoral firme do curador. A produção artística
divulgada pelo curador não é apenas uma aposta, mas um possível atestado de nascimento ao
ser acolhido numa mostra. Rupp (2010) diz que a obra de arte só passa a existir e ter uma
identidade quando é exposta. E, por isso, não se espera neutralidade do curador-autor. “Um
espaço expositivo sempre lembrará ao visitante de sua principal função, por mais que tente ser
neutro em seu projeto arquitetônico, minimizando referências culturais e oferecendo apenas
destaque às obras” (RUPP, 2010, p.152). A autora cita o nome de Marcel Duchamp, que foi um
precursor ao lançar o artista-curador em eventos realizados e promovidos pelos surrealistas a
partir do ano 1920, em Paris:
Além de escolher e convidar os artistas, Duchamp foi um dos responsáveis pela
montagem e decidiu interferir na exposição a tal ponto que ela não poderia
passar despercebida pela história da arte. (2010, pg. 154, RUPP)
O curador tem o controle, habilidade e a pretensão sobre o objeto artístico e pode
reconhecer o que realmente pode ser entendido como arte e se merece atingir o público ou não.
A mediação do artista com o futuro espectador utiliza, cada vez mais, da interferência autoral
do curador, que, em muitos casos, se sobressai às obras exibidas. O curador gera textos que
sugerem e recorrem a outros e isso pode tornar seu discurso possível. Um discurso pode ter
autorização de influência e imortalidade demarcada pelo curador como se o próprio fosse um
autor de romances consagrado. São privilégios reconhecidos a partir da escrita que formam uma
imagem representativa do autor, afirma Foucault (2009).
[...] um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso (que
pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome
etc.): ele exerce um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função
classificatória; tal nome permite reagrupar um certo número de textos,
delimitá-los, deles excluir alguns, opô-los a outros. Por outro lado, ele
relaciona os textos entre si. (FOUCAULT, 2009, p. 273).
Segundo Foucault, a importância e status do nome do autor posiciona os modos de ver
e receber o discurso. “O nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do
discurso” (FOUCAULT, 2009, p. 273). Há um poder de criação autoral dos curadores que opera
na produção de novos textos que acumulam força por onde reverberam. O espaço museológico
pode ser um dos lugares de maior atuação do curador-autor pois é um dos principais pontos de
divulgação de sua obra que se constrói e passa a se impor como uma verdade.
O museu como um dos domínios do curador-autor
A atuação engajada do curador-autor pode ser percebida quando se dão os primeiros
passos dentro de um museu ou galeria. Inicia-se com o texto de apresentação de uma exposição,
que geralmente tem uma exibição legível e bem localizada. Ali está uma das posições e modo
de atuar do curador-autor de maior representatividade. É a condição mais direta de fazer circular
sua autoria a se misturar com a do artista que ele apresenta. As pontes construídas pelo curador-
autor tecem um texto curatorial que beira a ficção e torna-se ilegível ao público em alguns
casos. A Wikipédia2 qualifica a atuação do curador como o “profissional capacitado pela
concepção das obras de arte, montagem e supervisão de uma exposição de arte, além de ser o
responsável pela execução e revisão do catálogo da exposição”. Segundo a enciclopédia
virtual3, o curador, na maioria das vezes é “um especialista em História da Arte, Filosofia ou
Estética”. Requisitos na maioria das vezes preenchido pelos curadores que procuram graduar-
se em História ou História da Arte nas universidades. O Guia de Carreiras do G14 explica que
o profissional na área de curadoria de arte deve ser “crítico, imaginativo, bom escritor e amante
dos museus”, além de ter como “papel estabelecer relações entre as obras e fazer com que
dialoguem com o público”. A editoria de educação do G15 site afirma que o curador de arte é o
“responsável pela preparação, concepção e montagem de exposições” e pode ser especializado
em áreas como história, filosofia ou comunicação. No Brasil, existem alguns cursos de
2 Texto retirado do Wikipédia está disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Curador_(artes). 3 Texto retirado do Wikipédia está disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Curador_(artes).
4 Texto retirado da matéria Curador de arte, prepara, concebe e monta exposições, de Fernanda Nogueira está
disponível em http://g1.globo.com/educacao/guia-de-carreiras/noticia/2010/10/curador-de-arte-prepara-concebe-
e-monta-exposicoes2707.html. 5 Texto retirado da matéria Curador de arte, prepara, concebe e monta exposições, de Fernanda Nogueira está
disponível em http://g1.globo.com/educacao/guia-de-carreiras/noticia/2010/10/curador-de-arte-prepara-concebe-
e-monta-exposicoes2707.html.
graduação disponíveis para formar curadores. Um deles situa-se na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo no curso de Graduação em Arte com ênfase em História, Curadoria e
Crítica.
Outro rastro do curador-autor são as obras escolhidas do artista em destaque. Por que o
curador-autor as escolheu? Qual o significado de suas opções? De que forma as obras foram
classificadas? Que itinerários o curador-autor indicou ao visitante da mostra? E o catálogo?
Quem seleciona os textos, as imagens, o ensaio crítico em destaque? Na maioria das vezes, esse
trabalho é assinado pelo curador. Ao visitar a exposição Iberê Camargo: Diálogos no Tempo,
inaugurada em abril de 2016, era perceptível a intenção da curadora Angélica de Moraes em
elevar a importância do artista gaúcho Iberê Camargo para o Estado e o país. Havia também
um jogo de intenções proposto além da obra do pintor gaúcho.
A seleção para Iberê Camargo: Diálogos no Tempo percorre um período de 1982 até a
morte de Iberê, em 1994, aos 79 anos. Entre pinturas, gravuras em metal, serigrafias, litografias
e desenhos, a curadora escolheu expor charges políticas feitas pelo artista entre as décadas de
1980 e 1990, período em que Iberê fazia críticas duras ao governo da época - João Figueiredo
(1979-1985) e José Sarney (1986-1990) - sob o pseudônimo de Maqui, que era como se
chamavam os soldados da resistência francesa à invasão alemã da França, durante a Segunda
Guerra Mundial. A opção da curadora por estas obras obteve uma intenção de mostrar o Iberê
crítico, político, informado, que utiliza a sua arte para interrogar a sociedade sobre o fim da
ditadura militar e a viabilidade de eleições diretas no Brasil. Mas qual o objetivo de trazer esse
momento de Iberê em 2016/17? Por que razão a curadora da exposição recorre a essa estratégia?
Que práticas são essas? Foucault (2016) diz que o discurso é histórico e constituído “de
acontecimentos reais e sucessivos”. Fischer (2012) menciona que o pensamento de Foucault
aceita as práticas dentro do discurso. “Porque para ele interessa fundamentalmente a ideia de
que o discurso constitui, de que o discurso é constitutivo de alguma coisa”. (FISCHER, 2012,
p. 39). Quem sabe o discurso praticado pelo curador-autor nesta exposição não seja criar um
fato político e polêmico do artista para denunciar algo? “Para Foucault, dizer é uma forma de
fazer, e esse é seguramente um de seus temas mais importantes e definidores de sua obra”.
(FISCHER, 2012, p. 39). Talvez pensar numa autonomia do discurso seja um excesso.
A formação do discurso é complexa. Vai muito além de acreditar que “no interior de
cada discurso, ou num tempo anterior a ele, se pudesse encontrar, intocada, a verdade, desperta
então pelo estudioso”. (FISCHER, 2012, p. 74).
Analisar o discurso seria dar conta exatamente disso: de relações históricas, de práticas
muito concretas, que estão “vivas” nos discursos. Por exemplo, analisar textos oficiais
sobre educação infantil, nessa perspectiva, significará antes de tudo tentar escapar da
fácil interpretação daquilo que estaria “por trás” dos documentos, procurando explorar
ao máximo os materiais, na medida em que as palavras são também construções; na
medida em que a linguagem também é constituidora de práticas. (FISCHER, 2012, p.
74).
De acordo com Fischer (2012), Foucault vai assinalar que o discurso se produz a partir
de relações de poder. Nesse caso, é interessante refletir que a exposição Iberê Camargo:
Diálogos no Tempo pode ser autoral porque tem uma finalidade que se estrutura como
consequência de uma crise econômica que abala a Fundação Iberê Camargo que é mantenedora
do Museu desde 2008. Conforme o site do jornal Zero Hora 6(ZH) em matéria publicada no
mês de agosto de 2016, a Fundação Iberê Camargo demitiu nove funcionários e reduziu os
horários de visitação ao museu de sexta a sábado, das 13h às 18h, com o intuito de economizar
com serviços terceirizados como conservação, limpeza e segurança. Antes, o espaço de
exposição fechava apenas na segunda-feira. O site também trouxe uma matéria que avaliava já
em 2015 que a Fundação já estava com problemas financeiros pois havia interrompido projetos
importantes como a Bolsa Iberê Camargo que possibilitava a viagem de artistas para residência
fora do Brasil, e o Ateliê Gravura que convidava artistas a expor no museu. Neste ano, o site
ClicRBS, que abriga o jornal ZH, divulgou a notícia7 no mês de janeiro (03/01) anunciando que
a Fundação Iberê Camargo (FIC) acabara de lançar em dezembro de 2016 uma campanha de
arrecadação de fundos ao museu. Havia rumores que se tornavam cada vez mais concretos sobre
o fechamento do espaço cultural em Porto Alegre. Além da força-tarefa para angariar dinheiro,
havia sido promovida uma nova direção da FIC com o propósito de buscar patrocínios, cortar
6 Texto publicado no site ClicRBS no link do jornal Zero Hora com o título de Fundação Iberê Camargo demite
e reduz horário de funcionamento a dois dias por semana. A matéria está disponível em
http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/arte/noticia/2016/08/fundacao-ibere-camargo-demite-e-reduz-horario-
de-funcionamento-a-dois-dias-por-semana-
7326713.html#showNoticia=T1BeZH1cX1k1MDY2OTU3OTk2MjExMzY3OTM2L2osNjc2MTY4MTE3Mjc1
MzI1NTc0OEBEbTIwNDgxMzMzNzM0MzEzODIwMTZuIVZSTntbJFBGSWpnMmxqZ0U=. 7 Texto publicado no site ClicRBS no link do jornal Zero Hora com o título de Fundação Iberê Camargo
organiza força-tarefa para superar crise e aproximar-se do público, em 03/01/2017. E disponível em
http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/arte/noticia/2017/01/fundacao-ibere-camargo-organiza-forca-tarefa-
para-superar-crise-e-aproximar-se-do-grande-publico-9087772.html.
custos e planejar uma nova Fundação para o ano que iniciava. Mas o fantasma do museu fechar
as portas ainda rondava o noticiário.
No entanto, entrava na programação a exposição Iberê Camargo: Diálogos no Tempo,
que desempenharia um papel predestinado sob a batuta da curadora Angélica de Moraes na
escolha de algumas obras e circulação na mídia gaúcha e nos meios culturais. A curadora, que
também é jornalista e crítica de arte, necessitava de um protagonismo autoral para destacar a
obra de Iberê Camargo, ao menos nesta ocasião dramática da FIC. Havia uma luta por controle
da opinião pública sobre o valor da obra de Iberê e do não fechamento do museu. Para isso, a
curadora ocupou o espaço deixado pela imprensa e levantou a discussão para um pintor que,
através da sua obra, mostrava-se politizado e polêmico ao realizar charges que, agora expostas,
também difundiam que o atual momento era de protesto e indignação com a política e a
economia brasileira. A charge Missa do Pedido Ladainha8 traz um texto extremamente político
em que Iberê Camargo deixa clara sua posição: Fazei, senhor, que eu seja menos ladrão; Fazei,
senhor, que eu seja menos preguiçoso; Fazei, senhor, que seja menos corrupto; Fazei, senhor,
que eu tenha menos apego ao poder; Fazei, senhor, que eu seja menos mentiroso; Fazei,
senhor, que eu seja menos cínico; Fazei, senhor, que eu não venda todo o Brasil; Fazei, senhor,
que eu não queime todas as florestas; Fazei, senhor, que eu não empregue todos os meus
parentes; Fazei, senhor, que eu tenha vergonha na cara. Amém. A ladainha foi escrita em 1992
e está atualíssima aos tempos do Brasil atual.
8 Charge disponível em jornal online O Sul http://www.osul.com.br/exposicao-dialogo-no-tempo-apresenta-
charges-politicas-primeiro-outdoor-desenhos-e-gravuras-de-ibere-camargo/
Figura 1 – Charge de Iberê Camargo exposta na Mostra Diálogos no Tempo.
A obra exposta de Iberê Camargo avisa que algo estava errado. Suas charges antes
usadas para denunciar a ditadura militar e os equívocos da classe política promovem a prática
do discurso. Para Fischer, a prática discursiva “significa falar segundo determinadas regras e
expor as relações que se dão dentro de um discurso”. (FISCHER, 2012, p.79). O discurso, para
Foucault (2014), deveria funcionar como uma violência. A curadora-autora assume hoje o que
foi dito pelo pintor e converge seu olhar para as obras como possíveis verdades de um tempo.
Como um regime de verdade que nos posiciona “sempre obedecendo a um conjunto de regras,
dados historicamente, e afirmando verdades de um tempo”. (FISCHER, 2012, p.79). A
curadora-autora chama para si o apelo para que a exibição e o estudo de uma obra não sejam
interrompidos utilizando enunciados que exploram um tempo e formam um discurso amarrado
às dinâmicas de poder e saber. Mas para isso é digno de apreço entender o que está dito.
Interrogar a linguagem “sem a intencionalidade de procurar referentes ou fazer interpretações
reveladoras de verdades e sentidos reprimidos”. (FISCHER, 2012, p.79). É importante
perguntar pelos modos como a linguagem é produzida. Se pretende algo com o que se diz,
escreve e se é um bom momento para divulgar agora e não antes ou depois.
Figura 2 – Tela com o título Sempre exposta na mostra Nem eu, nem tu: nós, da artista plástica Karin
Lambrecht.
A exposição A obra de Karin Lambrecht e o olhar do colecionador, ficou exposta de 15
de março a 30 de abril de 2017, fez parte do Projeto RS Contemporâneo Pensamentos
Curatoriais, que há cinco se propõe a divulgar a obra de artistas e a atualidade de seus trabalhos.
A edição de 2017 evidencia a proposta do curador e do colecionador. No artigo Um olhar fora
de si, escrito pelo curador André Venzon para o catálogo torna-se visível a preocupação do
autor em exaltar o papel do colecionador Justo Werlang. O curador-autor projeta a si, ao artista
e ainda expande o trabalho do colecionador. O protagonismo do curador alça o colecionador
também a autor da mostra. O colecionador desempenha uma ação mais elevada quando, de
acordo com Venzon (2017), o ato de colecionar implica numa disponibilidade e preocupação
do colecionador em acompanhar a gênese sobre a produção de cada artista e vida do artista, o
nascimento de fases e questões de trabalho e o convívio nos ateliês. Haveria entre colecionador
e artista um diálogo útil. O olhar do colecionador era imprescindível na elaboração de uma
coleção. O “ato de colecionar é uma construção que, mais do que inversão de recursos
financeiro, requer longo investimento de tempo (VENZON, 2017, p.10). Para o autor a coleção
exprime o pessoal do colecionador:
Entendemos o colecionador como um voluntário que preserva as ideias contidas numa obra de
arte; ideias que marcam o presente e que poderiam desaparecer ou serem esquecidas sem o seu
gesto generoso de olhá-las e conservá-las. Ele não é apenas o proprietário da obra, mas um
parceiro no seu processo criativo. O mistério não é o pensamento embutido no objeto artístico,
mas a potencialidade e as possibilidades do pensar os significados que nele habitam. O
colecionador é o testemunho dessa afirmação ao optar por viver diante da obra e de seus
múltiplos significados. (VENZON, 2017, p. 11).
Venzon acredita que a sua curadoria explicita uma maior compreensão da obra de Karin
Lambrecht ao “se desvendar o percurso do artista ao longo das décadas, as alterações na obra,
modificadas ante as vicissitudes históricas, e, de alguma forma, os eventos de sua biografia”.
(VENZON, 2017, p. 11). Venzon (2017) assinala que o colecionador tem uma relação de
cooperação com o artista e fica evidente um vínculo de respeito, troca de experiências e
desenvolvimento de afinidades. No caso de Karin Lambrecht, em matéria publicada no site Clic
RBS9, em texto do próprio Venzon, existe a proximidade entre a obra da artista e o pensamento
do colecionador. Segundo Venzon, o relevante desta curadoria é, portanto, o diálogo entre o
colecionador e a artista, capaz de estabelecer, por meio do conjunto de obras selecionadas, uma
ampla convivência da coleção com o grande público. Outro aspecto a ser considerado na
matéria é a denúncia de descaso do Estado com a promoção e o incentivo à produção artística
contemporânea. Conforme Venzon, o setor cultural, aqui especificado pelos artistas plásticos,
é recuperado pelos colecionadores particulares que se dedicam durante décadas a constituir um
patrimônio. O colecionador é responsável por preservar uma história e riqueza cultural por
tornarem públicos seus acervos. A função do colecionador é a guarda e a conservação das obras
adquiridas, fato não mais realizado pelo Estado, que segundo o artigo de Venzon, encontra uma
fragilidade na manutenção de grande parte das instituições culturais no país.
Neste ponto, cabe destacar a grande fragilidade em que se encontram as instituições culturais do
país, com raras exceções, assim como as causas que levaram a isso. Esse é o fator que deve
merecer maior atenção por parte da sociedade. A gestão política, e não técnica; a falta de uma
visão e missão claras a que devam se dedicar; o distanciamento entre suas programações e as
necessidades dos públicos; a pouca interação qualificada que mantêm com a área de educação -
são algumas das questões que precisam ser debatidas pela sociedade, pressionando as
autoridades a priorizar investimento e estabelecer critérios de avaliação de desempenho de seus
museus e pinacotecas. A ausência de garantias e incentivos para a doação de coleções e acervos
9 Texto assinado por André Venzon no jornal Zero Hora com o título Exposição apresenta obras de Karin
Lambrecht pelo olha do colecionador e disponível no site ClicRbs em
http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/arte/noticia/2017/03/exposicao-apresenta-obras-da-artista-karin-
lambrecht-pelo-olhar-do-colecionador-
9740209.html#showNoticia=cHFmJjohVmI1MjMzNTQxNzA0NDAwODI2MzY4eUFlODkzMTc2MzA4MzIz
ODkzNTg3Nn5ZSjExOTM0MDIzNzcyMTQ4ODU4ODhOcjNbaH4xOCZUTUcjTkZhOSs=
particulares se apresentam como uma das causas do relativo empobrecimento dos acervos
disponíveis aos públicos10.
Não somente no catálogo como no texto exposto na mostra de André Venzon, a tônica
é oferecida ao curador e ao colecionador. A obra de Karin Lambrecht pode ser encarada como
secundária aos propósitos do curador-autor. A discussão sai do museu e vai para a mídia e torna
pública a atuação do colecionador como um salvador, um mecenas, pois o Estado já não cumpre
sua função dentro dos aparelhos culturais que ainda possui. Fica evidente que a curadoria busca
dar visibilidade a obra do artista que estava em repouso, como escreve Venzon (2017). Mas o
curador-autor também manifesta e torna conhecido o colecionador como um coautor. O curador
pode deixar de lado o propósito de vender a obra de arte como afirma Braga (2010) através das
exposições, a sua admiração pelo artista ou espetacularizar a curadoria, para simplesmente
dividir o pedestal com quem tem uma forte influência política, financeira e cultural no que tange
as artes plásticas. Tanto as exposições de Iberê Camargo como as de Karin Lambrecht, trazem
discursos que controlam e selecionam o que se quer dizer dentro e fora do espaço museológico
como um discurso constitutivo do autor. O curador-autor forma-se a partir de uma luta dentro
e fora do museu por um reconhecimento do público para o enfrentamento de mazelas ou a
afirmação de um artista. As ferramentas são diversificadas e estabelecidas por discussões que
vão da política à crise econômica. Todos os embates se formulam e se constituem como uma
possibilidade autoral do curador.
REFERÊNCIAS
ALVES, Cauê; VENZON, André. Nem eu, nem tu: nós: a obra de Karin Lambrecht e o olhar
do colecionador. São Paulo: Santander Cultural, 2017.
10 Conforme matéria escrita por André Venzon ao jornal Zero Hora e disponível em no site Hora com o título
Exposição apresenta obras de Karin Lambrecht pelo olha do colecionador e disponível no site ClicRbs em http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/arte/noticia/2017/03/exposicao-apresenta-obras-da-artista-karin-
lambrecht-pelo-olhar-do-colecionador-
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ODkzNTg3Nn5ZSjExOTM0MDIzNzcyMTQ4ODU4ODhOcjNbaH4xOCZUTUcjTkZhOSs=
BRAGA, Paula. O curador e a galeria. In: RAMOS, Alexandre Dias (org.). Sobre o ofício do
curador. Porto Alegre: Zouk, 2010.
CANCLINI, Néstor Garcia. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras, 2008.
CASTRO, Edgar. Vocabulário de Foucault – um percurso pelos seus temas, conceitos e autores.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada
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HOUAISS, Antonio e outros. Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2ª edição
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MORAES, Angélica. Iberê Camargo – diálogos no tempo. Porto Alegre: Fundação Iberê
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RUPP, Bettina. O curador como autor de exposições. Revista Valise, Porto Alegre, v. 1, n. 1,
ano 1, p. 141 1 143, julho de 2011. Disponível em
http://seer.ufrgs.br/index.php/RevistaValise/article/viewFile/19857/12801.
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