o fundamentalismo religioso como sintoma na polc3adtica contemporc3a2nea

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RELIGIOSO

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O Fundamentalismo Religioso como Sintoma na Polític a Contemporânea

Moysés da Fontoura Pinto Neto 1

RESUMO: Nesse trabalho busco elucidar a presença do fundamentalismo religioso como fenômeno contemporâneo que se mostra sintoma do liberalismo consumado. Para tanto, inicio a análise a partir das célebres entrevistas de Jacques Derrida e Jürgen Habermas acerca dos ataques de 11 de setembro, relacionando-os com o processo de globalização, e passo à crítica da Teoria da Justiça de John Rawls enquanto fundamento teórico do liberalismo político implementado faticamente no mundo concreto em que vivemos. À guisa de conclusão proponho a apropriação da religião enquanto saber profano, nos termos propostos por Walter Benjamin e, mais recentemente, Giorgio Agamben.

PALAVRAS-CHAVE: Religião – Sintoma – Fundamentalismo – Liberalismo – Crítica.

“God is concept by which we measure our pain”.

(John Lennon, “God”)

I. O Retorno da Religião

Ainda é prematuro para afirmar com certeza qualquer coisa acerca de um século com apenas 10 anos, mas tudo indica que a religião é um elemento que ingressa tumultuadamente no século XXI como parecia impossível para um observador de 30 anos atrás imaginar. A ascensão do islamismo na Europa e nos EUA (observado, é claro, que se tratam de muitos islamismos com muitas diferenças entre si), o cristianismo fundamentalista do Tea Party e o recentíssimo fenômeno do crescimento dos evangélicos no Brasil em contraponto a um certo laxismo religioso que lhes antecedeu estão a indicar que a forma como se tratou da questão no século XX pode ser insuficiente para nossos dias. A tendência ao gradual abandono da religião e certa “laicização” da sociedade dá lugar ao crescimento exponencial de fundamentalismos. Por fundamentalismo religioso entendo uma atitude dogmática incapaz de abrir-se à alteridade, com forte tendência a impor suas crenças mediante o recurso da violência física ou simbólica. O terrorismo aparece algumas vezes como expressão visível dessa tendência. Assim, se o século XXI começa com o acontecimento “11 de Setembro”, certo é que não podemos deixar de considerar suas particularidades em relação ao que veio antes. 1 Doutorando em Filosofia (PUCRS). Trabalho apresentado para o Seminário Metaética, Ética Normativa e Filosofia Política em John Rawls, ministrado pelo Prof. Dr. Nythamar Fernandes de Oliveira.

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Como primeiro ponto de análise, é preciso sinalar que se tratam de fundamentalismos heterogêneos ligados a distintas circunstâncias. Creio ser possível dividir esses fundamentalismos em pelo menos dois grupos: os fundamentalismos marginais, vindos do Oriente Médio ou das camadas mais pobres brasileiras, ligados ao islamismo e aos evangélicos, de um lado, e os fundamentalismos do stablishment, tal como por exemplo o cristianismo de algumas regiões dos EUA, ligados ao Tea Party e outros, que podem ser vistos como do lado “dos vencedores”. Tratarei nesse artigo apenas da primeira espécie de fundamentalismos – o dos “marginais”2.

Usarei como referência para debate sobre o tema as entrevistas concedidas a Giovanna Borradori por Jürgen Habermas e Jacques Derrida, debatendo sobretudo a emergência do terrorismo no início desse século. Apesar de, por óbvio, o fundamentalismo não se esgotar no terrorismo, o gancho do debate entre dois dos mais importantes filósofos do século XX em torno do tema parece imperdível como referencial teórico, sobretudo por articular alguns dos conceitos que nos servirão para diagnosticar a religião como sintoma na política contemporânea: ressentimento, vazio normativo, consumismo, marginalização, hospitalidade etc. Após, traçarei uma breve crítica à estrutura teórica do liberalismo político, entendendo o fenômeno do fundamentalismo como efeito colateral da consumação fática do pensamento liberal. Para tanto, me servirá de referencial especialmente Walter Benjamin, autor que perpassa como base teórica fundamental desse trabalho, mas também em menor escala Giorgio Agamben, Michel Foucault, Jacques Derrida e Ricardo Timm de Souza.

II. O Debate em torno do terrorismo de Habermas e D errida como referencial

Habermas explica o fundamentalismo, desvinculando-o necessariamente do dogmatismo e da ortodoxia, como a circunstância em que “a inocência da situação epistemológica de uma perspectiva mundial abrangente é perdida, e quando, sob as condições cognitivas de conhecimento científico e pluralismo religioso, propaga-se um retorno ao exclusivismo das atitudes de crença pré-

2 Pois – e essa afirmação é puramente aproximativa – diria que enquanto o fundamentalismo “dos vencedores” se aproxima pura e simplesmente do fascismo (e, p.ex., dos movimentos seculares ultranacionalistas europeus), o segundo caso, em especial na sua faceta terrorista, parece um “anarco-fascismo”, espécie de grito violento de vozes silenciadas, como haveremos de desenvolver com base em Habermas. E, dentre eles, me concentrarei mais no caso do islamismo que dos evangélicos no Brasil, seja porque há mais material filosófico em torno daquele, seja porque creio que ainda há muito que observar para traçar conclusões em torno do fenômeno brasileiro, em especial devido à incrível capacidade de sincretismo típica do Brasil.

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modernas”3. Para ele, no entanto, o fundamentalismo atual não se confunde com o pré-moderno (tal como a “caça às bruxas” medieval). Prefere ligar, ao contrário, o fundamentalismo atual à globalização dos mercados, particularmente do mercado financeiro, e a expansão dos investimentos estrangeiros. Para ele, a sociedade mundial está rachada entre vencedores, beneficiários e perdedores. Ao mesmo tempo em que os EUA representam uma força propulsora da modernização capitalista no mundo árabe, vivencia-se entre essa população espécie de “insulto à autoconfiança” (combinado com admiração ao modelo), servindo o Ocidente como bode expiatório para a experiência muito efetiva de perda da sua tradição cultural. Mas enquanto na Europa essa destruição foi produtiva (por circunstâncias favoráveis), nesses locais não há promessa de compensação pela dor de ruptura com os modos habituais de vida4. Por isso,

“O recurso furioso dos fundamentalistas a um conjunto de crenças – nas quais a modernidade não acarretou qualquer processo de aprendizado auto-reflexivo nem qualquer diferenciação entre religião, conhecimento secular e política – ganha uma certa plausibilidade porque essas crenças se nutrem de uma mesma substância que aparentemente desapareceu no Ocidente. Um Ocidente materialista enfrenta outras culturas – que devem o seu perfil à marca de uma das grandes religiões do mundo – apenas com a irresistibilidade provocativa e vulgarizante de uma cultura consumista padronizadora”5.

É nesse sentido que Habermas, ao contrário de grande parte dos analistas do 11 de Setembro propunham, percebe a substância política do atentado, vinculando o crescimento do fundamentalismo da “guerra santa” àqueles que eram, há poucos anos, nacionalistas seculares nesses países. Ele ainda salienta a necessidade de diferenciar a heterogeneidade dos “terrorismos” (assim como nós salientávamos a necessidade de diferenciar os fundamentalismos): o checheno ou o palestino, mais típico da “guerrilha”, do “terror global” que culminou com o “11/09”. Este, ao contrário, carregaria “traços anarquistas da revolta impotente dirigida contra um inimigo que não pode ser derrotado em qualquer sentido pragmático”6. Seria, portanto, uma espécie de grito desesperado e altamente violento de vozes descontentes com o processo de globalização atualmente em andamento.

3 HABERMAS, Jürgen. Fundamentalismo e Terror: um Diálogo com Jürgen Habermas. In: Filosofia em Tempos de Terror: Diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida . BORRADORI, G. (org.). RJ: Jorge Zahar, 2004, p. 44. 4 HABERMAS, Jürgen. Fundamentalismo e Terror: um Diálogo com Jürgen Habermas, p. 44-5. 5 HABERMAS, Jürgen. Fundamentalismo e Terror: um Diálogo com Jürgen Habermas, p. 45. 6 HABERMAS, Jürgen. Fundamentalismo e Terror: um Diálogo com Jürgen Habermas, p. 46.

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Habermas confessa que à luz da violência do 11 de setembro não teria sido colocada em xeque toda sua teoria da ação comunicativa. Apesar de longa, vale a pena fazer a citação do trecho da entrevista por inteiro:

“Nós, do Ocidente7, vivemos em sociedades pacíficas e prósperas; e, no entanto, elas comportam uma violência estrutural à qual, até certo ponto, nós nos acostumamos, isto é, a desigualdade social desproporcionada, o empobrecimento e a marginalização. Precisamente porque nossas relações sociais são permeadas pela violência, ação estratégica e manipulação, existem dois outros fatos que não deveríamos ignorar. Por um lado, a práxis de nossa vida cotidiana conjunta repousa sobre uma sólida base de convicções fundamentais comuns, verdades culturais auto-evidentes e expectativas recíprocas. Aqui, a coordenação da ação passa pelos jogos de linguagem comuns, por meio de reivindicações de validade pelo menos implicitamente reconhecidas no espaço público de razões mais ou menos boas. Por outro lado, e por isso, os conflitos surgem da distorção da comunidade, do mal-entendido e da incompreensão, da insinceridade e da impostura. Quando as conseqüências desse conflito tornam-se dolorosas o bastante, elas vão parar em um tribunal ou no consultório de um terapeuta. A espiral de violência começa como uma espiral de desconfiança recíproca, à ruptura de comunicação. Se a violência começa, assim, como uma distorção na comunicação, depois que ela entrou em erupção é possível saber o que não deu certo e o que deve ser consertado”8.

Essa percepção se torna mais aguda, diz ele, pela distância entre culturas, modos de vida e nações. Mesmo no esforço de que haja uma legislação internacional, Habermas percebe que no discurso intercultural em diversos níveis acerca da interpretação dos direitos humanos esses encontros formais não podem cessar a espiral de estereótipos. E, voltando a uma perspectiva marxiana bastante surpreendente, afirma que sem a domesticação política de um capitalismo irrefreado, “a estratificação devastadora da sociedade mundial permanecerá intratável”. As disparidades na dinâmica do desenvolvimento econômico mundial, dirá ele, “teriam de ser pelo menos equilibradas em 7 Seria interessante indagar se Habermas considera também a América Latina como parte do Ocidente. Digo isso não por ironia ou sarcasmo, mas realmente por dúvida, uma vez que está longe de ser pacífico entre os habitantes dos EUA e Europa que a América Latina seja parte do “Ocidente”. Pelo fato de Habermas falar de sociedades “pacíficas e prósperas”, a dúvida retumba (pois, mesmo no Brasil, não vivemos em uma sociedade pacífica, bastando para tanto conferir o índice de homicídios, e a prosperidade, se existe, é certamente um fenômeno que não estava insofismavelmente presente em 2001). 8 HABERMAS, Jürgen. Fundamentalismo e Terror: um Diálogo com Jürgen Habermas, p. 48.

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relação a suas conseqüências mais destrutivas – a privação e a miséria de regiões e continentes inteiros nos vem à mente”9. E segue:

“Isso não diz respeito meramente à discriminação de outras culturas, sua humilhação ou a ofensa contra elas. O chamado ‘choque de civilizações’ [Kampf der Kulturen] é freqüentemente o véu que mascara os interesses materiais indispensáveis do Ocidente (campos de petróleo acessíveis e suprimento garantido de energia, por exemplo)”10. [Habermas materialista?]

Para reverter essa situação, Habermas afirma a necessidade do estabelecimento de relações simétricas de adoção de perspectivas mútuas, superando a dificuldade hermenêutica de escapar dos pré-entendimentos em que estamos inseridos. Para tanto, caberia reforçar as estruturas de uma comunicação livre de distorção, realçando sobre a violência da distorção e a ambigüidade constitutiva da linguagem seu papel crítico de pôr fim à violência sem reproduzir ciclos de nova violência11. Embora Habermas reconheça que a tolerância está ligada à autoridade, ligada a uma conotação paternalista, ele retruca que no Estado constitucional, pelo reconhecimento de direitos iguais e recíprocos, não há como um soberano estabelecer quem deve ser tolerado. É a Constituição que ocupa esse papel. Assim como no caso da desobediência civil, “a proteção se estabelece para além da ordem estabelecida”, ampliando-se auto-reflexivamente para incluir a dissidência. O padrão universalista, ao estender a proteção de direitos iguais, possibilitaria a individualidade e alteridade de todos12.

A leitura de Jacques Derrida acerca do fundamentalismo e do terrorismo relacionado com o 11 de setembro passa por um eixo relativamente semelhante, ainda que mais radical. Derrida menciona os “processos auto-imunitários”, pelos quais um organismo vivo procede a eliminação do seu processo sistema imunitário. Um processo auto-imunitário, diz ele, “é aquele

9 HABERMAS, Jürgen. Fundamentalismo e Terror: um Diálogo com Jürgen Habermas, p. 48-9. 10 HABERMAS, Jürgen. Fundamentalismo e Terror: um Diálogo com Jürgen Habermas, p. 49. 11 HABERMAS, Jürgen. Fundamentalismo e Terror: um Diálogo com Jürgen Habermas, p. 50. 12 Em seguida, Habermas distingue o “universalismo de fachada”, que seria apenas a utilização do discurso universalista como pretexto para impor particularismos ideológicos; e rechaça a desconstrução do universalismo, afirmando que ela pressupõe para atuar justamente aquilo que ela critica (p. 55). Na realidade, há uma falácia na argumentação de Habermas: a desconstrução jamais recusa seu caráter “universal”, ainda que esse universalismo seja bem mais cauteloso e hesitante que o iluminismo de Habermas, justamente para não efetivar aquilo que este noticia: o uso ideológico do universalismo como expansão dos particularismos. A imagem da desconstrução como “vale-tudo” multicultural é uma pobre caricatura desenhada por adversários que provavelmente sequer se deram ao trabalho de ler o que criticam.

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estranho comportamento pelo qual um ser vivo, de maneira quase suicida, trabalha ‘por si mesmo’ para destruir sua própria proteção, para se imunizar contra sua ‘própria’ imunidade”13. Nesse sentido, o 11 de setembro pode ser entendido a partir de três auto-imunidades do Ocidente: (1) o “inimigo” da força-de-lei que sustenta a credibilidade dos Estados Unidos no mundo vem como se fosse de dentro, isto é, de forças que parecem impotentes em si mesmas, mas são capazes de encontrar meios de, com o próprio aparato tecnológico norte-americano, provocarem o evento. E isso sem esquecer ter sido a Guerra Fria que viabilizou essa estratégia suicida de treinar pessoas como “bin Laden”14; (2) além do trauma inerente ao acontecimento voltar-se como uma ferida inapropriável, e justamente por isso constituir-se como tal, esse trauma volta-se igualmente para o futuro, incorporando, por exemplo, a ameaça “total”, que seria a ameaça nuclear. Trata-se de um risco da ordem do incalculável, pois agora não se trata mais de equilíbrio entre dois pólos, mas ameaça que vem de forças anônimas absolutamente imprevisíveis e incalculáveis. “O que está portanto em risco sob a aterrorizante lógica auto-imunitária”, diz ele, “é nada menos do que a existência do mundo, do próprio âmbito mundial”; e (3) sabe-se desde a psicanálise que “todos os esforços para atenuar ou neutralizar o efeito do traumatismo (negar, reprimir, esquecer ou superar) não passam de tentativas desesperadas de muitos movimentos auto-imunitários que produzem, inventam e alimentam a própria monstruosidade que alegam superar”15. Ou seja, a repressão trabalha para regenerar a curto ou longo prazo as causas do mal que alega erradicar.

Assim como Habermas identifica certo teor político no fundamentalismo terrorista, ligado a uma espécie de gesto paradoxalmente potente/impotente e anárquico/tradicional, Derrida também faz observações importantes acerca da assimetria inicial que dá vazão a esse gesto violento. Começa por problematizar o que precisamente pode ser qualificado como terrorismo, citando os casos da Argélia, da Irlanda do Norte, da Córsega, de Israel, da Chechênia ou da Palestina – onde a decisão é muito mais complicada. “Poder dominante é aquele que consegue impor e assim legitimar, na verdade até legalizar (pois se trata sempre de uma questão de lei), em um palco nacional ou mundial, a terminologia e a interpretação que mais lhe convém em uma determinada situação”16. Poderíamos ir adiante e, admitindo a existência de um terrorismo de Estado (como o da França contra a Argélia, de 1954 a 1962),

13 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida. In: Filosofia em Tempos de Terror , p. 104. 14 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, p. 105. 15 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, pp.107-109. 16 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, pp. 114-115.

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questionar se não há um terrorismo em se “deixar morrer” verdadeiras populações inteiras – de fome, AIDS, falta de tratamento médico etc.? Talvez o terrorismo não esteja apenas ligado a ações deliberadas, mas como simples resultado de um aparato que opera quase como “por conta própria”, sem que nenhum sujeito consciente, nenhum “eu”, tenha consciência disso ou se sinta responsável.

“Todas as situações de opressão estrutural social ou nacional produzem um terror que não é natural (à medida que é organizado, institucional), e todas essas situações dependem desse terror, sem que aqueles que dele se beneficiam cheguem jamais a organizar atos terroristas ou a serem tratados como terroristas.”17.

Quando o terrorismo é tudo e nada, isso significa que nos mantemos na paradoxal situação de, por um lado, nos solidarizarmos com a dor das vítimas que perecem e rejeitar veementemente a violência empregada; mas, por outro, perceber que há algo de qualitativo que permite dizer que certas ações são terroristas e outras não – geralmente estando essa qualidade ligada à respectiva vítima (e se reside em Nova York, Madrid, Ruanda, Camboja, Palestina, Iraque etc.).

Derrida prossegue buscando dissolver mais uma vez a dicotomia assimétrica entre o Ocidente racional e o Oriente irracional por meio do desmascaramento do caráter secular de uma das partes: não apenas porque os Estados Unidos, de um lado, apóiam regimes que não podem ser qualificados como “laicos” (Arábia Saudita, Paquistão, Israel), mas porque, de outro, os EUA estão igualmente sustentados – pelo menos no nível dos que os governam – por suposições teológicas (por exemplo, do “God Bless America” ou em qualificar seus adversários como “Eixo do Mal”)18, sem adentrar mais profundamente no próprio caráter ontoteológico do conceito de soberania19. Não se trata, portanto, de uma disputa entre dois espaços homogêneos, mas o oposto: de espaços heterogêneos, onde nem os terroristas são totalmente “outros” (pois foram recrutados, treinados e armados pelo Ocidente, e além disso o “outro lado” não constitui um bloco unitário que possa ser chamado de “Islã”, “mundo árabe”, ou “Oriente Médio árabe-islâmico”, uma vez que atravessado por divergências,

17 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, p. 118. 18 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, p. 127. 19 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, p. 120.

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resistências e tensões), e tampouco o “Ocidente” constitui esse todo monolítico (bastando comparar, para tanto, a forma como os EUA e uma certa Europa lida com essas questões)20. É preciso, no entanto, que um pensamento político torne essa “desordem” tão inteligível quanto possível.

Isso não significa, no entanto, que Derrida ratifique os atos terroristas ou que leve o tema até o limite da indiferença. Ao contrário: o filósofo sinala que o inaceitável para os atos de “Bin Laden”, além da crueldade e uso da tecnologia para fins fanáticos, é o fato desse discurso não se abrir para futuro algum21, salvo que “todas as forças capitalistas e tecnocientíficas modernas sejam postas a serviço de uma interpretação em si mesma dogmática da revelação islâmica do Uno”22. O que, evidentemente, é inadmissível. Por isso, “no desencadeamento da violência sem nome, se eu tivesse que optar entre um dos dois lados e escolher em uma situação binária, eu o faria”, diz ele23. Mas justamente o ponto fundamental da desconstrução é escapar das divisões binárias, abrindo a possibilidade do Novo.

Por fim, Derrida liga, como Habermas, a questão do fundamentalismo à chamada “globalização”. Para aquele, a globalização, em primeiro lugar, “não ocorre”. Uma vez que as disparidades entre sociedades humanas e desigualdades sociais e econômicas talvez nunca tenham sido tão intensas (por exemplo, em números absolutos jamais houve tantas epidemias, desnutrição, desastres ecológicos etc.), somente alguns países se beneficiam realmente da globalização. Esses países alegam estar agindo em nome daqueles “condenados” pela globalização, os que estão à margem (excluídos ou rejeitados, privados de direitos etc.) para testemunhar o espetáculo ofensivo da riqueza dos outros. No caso particular das culturas islâmicas, cuja história

20 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, p. 125. 21 Aqui poderíamos correlacionar essa impossibilidade de futuro com o que Nietzsche qualificava como “ressentimento”, justamente a incapacidade de olhar para o futuro ficando preso à vingança por uma agressão (real ou imaginária) em um passado. De fato, podemos verificar o reconhecimento entre islâmicos não-fundamentalistas de que a questão se liga ao ressentimento em relação ao mundo ocidental e suas relações até hoje colonialistas com o Oriente Médio (uma ferida que já perdura alguns séculos, pelo menos desde a Idade Média, quando o Ocidente se constrói pela exclusão cultural, geográfica, étnica e religiosa do Oriente, provocando “ressentimento e hostilidade”, como afirma LAHRECH, Oumama Aouad. De um humanismo a outro: pontes e fronteiras. In: Islamismo e Humanismo Latino. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 26). A solução nietzschiana é a aceitação do trágico em uma espécie de “niilismo afirmativo”. Porém, se de um lado o ressentimento fica preso ao passado impedindo a construção de um novo futuro, por outro não se pode deixar de lado o caráter violento da injustiça histórica e o quanto o ressentimento carrega consigo também uma demanda por justiça. O equacionamento dessas questões leva ao caráter fundamental das políticas de memória e esquecimento na atualidade da filosofia política. 22 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, p. 123. 23 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, p. 123.

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deveria ser cuidadosamente examinada (pelos colonialismos, imperialismos, ausência de iluminismo e assim por diante),

“essas populações não estão não só privadas de acesso ao que chamamos de democracia (por causa da história que relembrei brevemente), mas despojadas até das chamadas riquezas naturais da terra, o petróleo da Arábia Saudita, por exemplo, ou do Iraque, ou até mesmo da Argélia. São despojadas a um só tempo pelos proprietários – isto é, pelos vencedores – e pelos exploradores e clientes, na verdade, pela própria natureza do jogo em que as duas partes se engajam nessas alianças ou transações mais ou menos pacíficas. As riquezas “naturais” são de fatos os únicos bens não-virtualizáveis e não-desterritorializáveis que restam hoje; são a causa de muitos os fenômenos que estamos discutindo. Com todas essas vítimas da suposta globalização, o diálogo (ao mesmo tempo verbal e pacífico) não está ocorrendo. O recurso à pior violência é assim freqüentemente apresenta como a única ‘resposta’ a ‘ouvidos surdos’”24.

Desse lado, portanto, a globalização é um mero simulacro que escamoteia um desequilíbrio crescente, uma nova opacidade. De outro, onde se crê que a globalização esteja acontecendo, é para melhor e para pior. Crescem movimentos não-governamentais, novas oportunidades democráticas. Mas é preciso pensar para além do ideal cosmopolita greco-cristão (dos estóicos, de Paulo e Kant) para assistir ao surgimento de uma aliança universal ou uma solidariedade que se estenda além da internacionalidade dos estados-nações e, assim, além da cidadania. Se, por um lado, há um papel positivo desempenhado pelo formato Estado (poderíamos pensar em formas mais violentas como o terrorismo, o mercado, a proliferação de armas), por outro seus efeitos negativos ligados à soberania e à herança teológica continua, por exemplo, fechando suas fronteiras para não-cidadãos e etc. É a lógica do pharmakon25.

No pensamento desse algo que vem depois do cosmopolitismo, do qual não se pode ainda traçar os contornos exatos, mas que se apresenta como tarefa ao pensamento, a tolerância não pode ser descartada, embora se mostre claramente como legado de uma certa posição paternal de poder: uma lógica cristã ou, mais especificamente, católica. Pois se os embates contra a

24 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, p. 123. 25 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, p. 133.

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intolerância na Europa protagonizados por Zola e Voltaire, por exemplo, devem ser celebrados, por outro hoje as circunstâncias são outras – como se um terremoto tivesse transformado a paisagem26. Por isso Derrida finaliza a entrevista trabalhando o conceito de hospitalidade como abertura incondicional à alteridade, pondo em questão conceitos centrais como autonomia, cidadania, soberania, fronteira, estrangeiro e até mesmo direitos humanos27.

III. Os Efeitos Colaterais Imanentes ao Liberalismo Político

"A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável."

(Walter Benjamin, Oitava Tese sobre a História)

Ambas as perspectivas – de Habermas e Derrida – conquanto divirjam razoavelmente entre si, contêm a mesma idéia: o fundamentalismo (e nesse caso especialmente o fundamentalismo terrorista, que não esgota todas as formas possíveis de fundamentalismo) é uma resposta dos “vencidos” diante dos “vencedores” na contemporaneidade. Resposta inadmissível, para ambos, mas vinculada a um processo histórico em que há disputas de poder, opressores e oprimidos.

Quanto se tem conta os problemas do mundo contemporâneo (violência, miséria, fundamentalismos, degradação ambiental, extermínios em massa etc.), possível encontrar pelo menos duas perspectivas a respeito: aquela que os explica como déficits de aplicação do liberalismo, situando-os como um espaço vazio de efetividade das normas que devem ser corrigidos por políticas 26 DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida, pp. 135-136. 27 O desenvolvimento da idéia de hospitalidade excederia os limites desse trabalho, cuja vinculação teórica está mais presa a Benjamin que Derrida, conquanto se pense possível aproximar os autores.

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reformistas capazes de reverter o processo; ou aquela outra que prefere percebê-los como efeitos de uma lógica imanente do liberalismo político, melhor dizendo: como efeitos colaterais, implícitos ou não-declarados. Hans-George Flickinger assim descreve a primeira das correntes:

Em primeiro lugar, a época atual parece apresentar-nos um mundo marcado pelo triunfo final do sistema liberal, fazendo com que cada reflexão crítica a esse respeito seja encarada como desmancha-prazeres frente às conquistas das últimas décadas e, mais precisamente, dos anos que seguiram à implosão do socialismo real. As crises recentes, reconhecidas também pelos defensores mais árduos da visão liberal, não são consideradas crises substanciais da lógica desse sistema. Ao contrário, sua interpretação, enquanto realização ainda imperfeita do ideal liberalista, vem contribuir para uma interpretação cada vez mais completa e rigorosa28.

A ela, contrapõe o seguinte:

“o liberalismo não pode ser considerado como um mero ideal abstrato. Muito pelo contrário, sua essência evidencia-se somente a partir da concreta organização social, política e cultural, emersa de seu princípio subjacente. Sob esse ângulo de visão, proponho desvendar o que chamei, antes, de lógica imanente do liberalismo moderno”29.

Nesse trabalho seguirei a segunda linha (mais próxima de Derrida que de Habermas, portanto). Assim como Flickinger, percebo os problemas da contemporaneidade não como falhas pontuais a serem pontualmente corrigidas por um sistema ideal, mas como efeitos colaterais da lógica imanente do liberalismo. Se nesse trabalho não pretendo, por um lado, desvelar essa lógica (para tanto, remeto aos livros do Prof. Flickinger), por outro trabalharei o fundamentalismo como sintoma no liberalismo consumado do mundo em que vivemos, buscando ainda os elementos teóricos que sustentam a expressão fática desse fenômeno. Não vejo tais problemas – fundamentalismo, miséria, degradação ambiental - como defeitos secundários, assessórios ou menores, capazes de apenas tangenciar levemente a lógica do sistema, mas como

28 FLICKINGER, Hans-George. Em Nome da Liberdade: elementos da crítica ao liberalismo contemporâneo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 14. 29 FLICKINGER, Hans-George. Em Nome da Liberdade, p. 14.

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desafios que se apresentam radicalmente pondo em xeque (exatamente como no movimento do jogo de xadrez) as premissas teóricas e a consumação fática do liberalismo político. Assim, sob essa perspectiva que entende a emergência dos fundamentalismos como produtos, e não desvios, do liberalismo político consumado, é preciso observar quais são as questões teóricas que viabilizam o fenômeno (sem cair na armadilha de traçar implicações narcísicas de causa e efeito entre teorias filosóficas e a realidade social30).

A teoria de John Rawls – uma das mais interessantes e consistentes propostas no âmbito do liberalismo político – pode ser um rigoroso parâmetro (pela sua consistência e ousadas pretensões). Identifico nela pelo menos duas lacunas fundamentais: (a) a ausência da dimensão inconsciente; e (b) a inexistência da dimensão do poder/violência inerente às instituições políticas. Por dimensão “inconsciente” entendo não apenas o sentido psicanalítico da expressão, isto é, aquela dimensão própria ou individual do inconsciente, mas também no sentido coletivo. “Inconsciente coletivo” não como propõe Jung, mas como aquilo que transcende os sujeitos e os atravessa, porquanto entre eles (e não dentro nem fora), tal como, por exemplo, as “estruturas sociais” no sistema de Lévi-Strauss ou o próprio conceito de sociedade para Norbert Elias. Essa é a explicação para outro ponto fraco da teoria: a falta de conexão com a tradição, por meio da abstração ingênua (do ponto de vista fenomenológico-hermenêutico) que, ao desenraizar-se, acaba provocando uma ilusão de universalidade a uma condição mundana. Como diz Ernildo Stein, “querer filosofar desenraizado já significa mostrar suas raízes, e talvez mostrá-las mais facilmente à tona do que os outros”31.

Aliás, essa falta de percepção de que a sociedade não é apenas a soma das vontades racionais de sujeitos da consciência, mas o que precisamente passa entre eles (ou seja: a sociedade não se resume à dimensão de contrato)32, acaba desembocando na falta de uma teoria adequada do poder se comparada, por exemplo, àquele que representa um dos principais pensadores da questão no século XX: Michel Foucault. Foucault, partindo da idéia de que é preciso pensar as relações de poder que formam os dispositivos sociais sem a vinculação a sujeitos particulares (ou seja: os jogos de poder na sociedade não são apenas produtos de um “planejamento” ou de “complôs”), chega precisamente à idéia de que essas dimensões são formadas pelo poder. A sociedade não é uma teia de relações contratuais travadas entre indivíduos livres, mas uma teia de relações de poder. Comparando Rawls a Foucault,

30 Atendendo a advertência de Rorty e Foucault, por exemplo, na crítica de ambos à Derrida (conferir: RORTY, R. Desconstrução e Artimanha. In: Ensaios sobre Heidegger e Outros . Rio de Janeiro: Relume-Damará, pp. 133-142 e FOUCAULT, Michel. Resposta a Derrida. In: Três Tempos sobre a História da Loucura . Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001, p. 73). 31 Mundo Vivido, p. 118. 32 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 292.

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percebemos que sua concepção de sociedade está enclausurada na moldura jurídico-contratual que figura como mitologema da Modernidade33. Ao subestimar essas duas lacunas, a dimensão ideal da teoria da justiça sai da posição de “equilíbrio reflexivo” com a teoria não-ideal para ocupar outro papel: ou de uma teoria sem conexão com a realidade, faltando a ela um gancho crítico em relação ao mundo fático, ou de uma ficção que se projeta alucinatoriamente sobre a realidade, enquadrando-se no que antigamente se chamava “ideologia”.

Ao ignorar que esse sujeito da consciência que livremente contrata com outros indivíduos um pacto social é, na realidade, não uma idealização alcançável como “nôumeno” (eu em si) kantiano34, mas um ser-no-mundo e sem-com-os-outros que se forjou em um contexto muito específico35, Rawls neutraliza a possibilidade de questionar esse próprio indivíduo auto-interessado e seu ethos contemporâneo: a sociedade de consumo36 e do espetáculo37 que hoje coloniza a política com sua lógica própria e impede a discussão a sério de questões fundamentais, dentre as quais a própria subsistência do mundo (questão ecológica). O “homem sem gravidade” contemporâneo – a face real do sujeito liberal auto-interessado38 – é o que se oferece no cenário social de hoje como modelo desse ethos. Navegando no vazio diante da ausência de

33 GIACÓIA, O. Sobre Direitos Humanos na era Bio-política. Kriterion (118), 2008, p. 39. 34 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça, p. 279. 35 O “reasonable man” típico do ethos protestante exaustivamente descrito do Max Weber. Habermas igualmente afirma, analisando trabalho do jovem Rawls, afirma que seu deontologia secular pode ter sido uma sublimação da ética religiosa protestante da qual fazia parte (HABERMAS, J. The Good Life – A ‘Detestable Phrase’: the significance of the Young Rawls’s religious ethics for his political theory. European Journal of Philosophy 18:3, 2010, p. 448). Nienov, nesse sentido, elabora crítica radical de Rawls ao contrastar o selvagem do jusnaturalismo com o bárbaro germânico, trabalhado por Michel Foucault (NIENOV, C. O Bárbaro e o Contratualista. Revista de Estudos Criminais, v. 23, ano VI, p. 201-209, 2006). 36 “Quando não herdamos uma palavra dúbia vindo dos antepassados (e aqui não se trata apenas de núcleo familiar, mas de toda tradição cultural antecedente), um saber que possamos dialetizar a nosso modo, ao nosso tom, resta-nos a frágil sustentação dos mandamentos fraternos, ou seja, dos mandamentos ancorados no efêmero e no presente imediato, nos role-models: Compre tal produto! Seja magro! Seja bonito! Seja rico!’” (MATTUELLA, Luciano. O sentimento de desilusão em Freud e a impossibilidade de construção de um futuro autêntico. Intuitio , vol. 3, n° 1, julho/2010, p. 77). 37 Aquilo que Benjamin já chamava, curiosamente, de “religião capitalista” (apud AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 70, grifo meu). Aliás, mesmo em uma das mais cruéis e inadmissíveis questões geradas pelo fundamentalismo islâmico – a posição subjugada da mulher – o fato é posto não em contraponto à simples “liberdade feminina”, mas à extrema vulgarização do corpo feminino tratado como plataforma da sociedade de consumo e do espetáculo. Trata-se, portanto, de uma confrontação que não corresponde à auto-imagem do Ocidente enquanto “defensor dos direitos humanos”, de um lado, e o Islã primitivo e machista, de outro. A representação jurídica, nesse caso, esconde conflito de nível político e cultural (como Habermas percebera em observação que mencionamos acima). 38 Ao partir do sujeito da sociedade liberal como um ideal neutro e dogmático, Rawls ignora que a antropologia já demonstrou que essa condição contrasta com inúmeras outras em que os sujeitos se posicionam de outras formas no mundo. Pensemos, por comparação, nos estudos de Mauss acerca do potlach, assim como os ensaios de Bataille sobre o dispêndio e o luxo, e mesmo os de Levinas em torno do des-interessamento ou de Derrida acerca do dom.

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metanarrativas em que possa se apoiar, esse sujeito vive no desamparo noticiado por Freud39. E se, como vimos, a emergência dos fundamentalismos está diretamente ligada – embora não se possa reduzi-lo a isso – à marginalização, à violência e ao ressentimento, o fundamentalista que se opõe veementemente ao “homem sem gravidade” é, de um lado, a resposta a esse recalque (ou o retorno do recalcado...); de outro, o resultado da crença de que a esfera procedimental esgota a questão da justiça, enquanto no mundo real essa “vida nua” sente a violência sem qualquer mediação normativa, apontando para algo que não está nas instituições políticas ou na sua falta, mas entre elas: o estado de exceção.

Pensar o fundamentalismo, portanto, não deve ser um exercício de estigmatização que etiqueta como “irracional” e faz parecer como uma irrupção isolada e descontextualizada (louca? Patológica?). Ao considerar o fundamentalismo como consumação do liberalismo em expansão, ou como efeito colateral inerente ao seu funcionamento, precisamos perceber que o recalque da religião está diretamente ligado às duas dimensões ausentes (inconsciente e poder) e diz respeito a uma manobra especificamente liberal-moderna: a substituição da facticidade por uma idealidade de um “ponto zero” da história (o “contrato social”) em que a tradição é erradicada40. A falta da tradição como um elemento mediador entre passado e presente causa o desamparo do sujeito na contemporaneidade. A isso o fundamentalista – marginal que vive nas bordas da “era do vazio” – responde com a tradição (religiosa) na sua forma mais dogmática e violenta. O grau zero do “véu da ignorância” acaba silenciando a tradição, fazendo parecer que é possível abstrair absolutamente da nossa condição mundana41. É verdade que o ajuste do equilíbrio reflexivo, em Rawls, busca corrigir essa assimetria. Mas esse não-lugar ideal, ao apostar em uma dimensão formal para reduzir o desequilíbrio, ignora aquilo que o impulsiona a corrigi-lo (diríamos, nesse caso, a própria justiça, mas em outro sentido42).

Há, portanto, um déficit comprometedor de historicidade ou facticidade na Teoria da Justiça que escamoteia a compreensão de que as respostas fundamentalistas da contemporaneidade não podem ser explicadas unicamente como irrupções de fanáticos, loucos ou delirantes, mas também como respostas à violência que se apresenta na fresta entre real e ideal (a que, por acaso, nós vivemos).

39 MATTUELLA, L. O sentimento, cit., p. 75. 40 Borradori percebe a diferença essencial entre Habermas e Benjamin (e, ao lado deste como “sucessor”, Derrida) exatamente nesse ponto (BORRADORI, Giovanna. Reconstruindo o Terrorismo¸ p. 92). 41 Conferir RAWLS, Teoria da Justiça, § 40. 42 SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos: dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

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IV. Depois da Tolerância...

“(...) O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”

(Walter Benjamin, Sexta Tese sobre a História).

Não teria a prepotência de apresentar uma suposta solução para resolver os dilemas apresentados. Certo, porém, que esse é um dos maiores desafios ao pensamento contemporâneo. E, se estivermos corretos, não há como se esquivar de uma proposta substancial que se contraponha, de um lado, à nostalgia pré-moderna que se expressa nos diversos fundamentalismos e conservadorismos; de outro, é preciso superar o ponto de vista apenas procedimental43, pois parece que é justamente no intervalo do procedimento – ou seja, no conteúdo, ou ainda na vida – que está o mais importante. É aqui, propriamente, que as lições de Walter Benjamin parecem servir como referencial a ser discutido e refletido para nosso conturbado século XXI.

Ao desamparo do sujeito contemporâneo é preciso contrastar a religião não como saber sagrado (o que, de modo nostálgico, fazem os fundamentalistas de todos os lados), mas como saber profano. Isso significaria “arrancar a tradição do conservadorismo”, ou seja, não recusar a tradição enquanto algo estranho, irracional, que deve ser simplesmente recalcado, mas como algo que pode receber novo uso, ser jogado, brincado44. No famoso ensaio O Narrador¸ Benjamin já advertia – um século atrás – que esse saber prático vinha cada vez

43 Como fazem tanto Rawls quanto Habermas (A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002, p. 165). 44 Não portanto apenas na dimensão da secularização, que apenas inverte os atores sem mexer na posição das peças, mas como realmente uma devolução ao uso comum daquilo que estava separado aos deuses (AGAMBEN, G. Profanações, p. 68).

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mais se perdendo junto com a arte de narrar. Tratava-se, em síntese, do encurtamento do campo da experiência que acaba produzindo sujeitos pobres de saber45. Essa experiência – origem de um conhecimento distinto típico da episteme ou da “informação” – pode muito bem ser entendida como a própria condição vital, estando nela incluída tudo aquilo que a sabedoria religiosa proporciona. Dar um novo uso a essa sabedoria – desvinculando-a da violência do sagrado – pode ser uma alternativa ao contínuo fechamento monádico (ainda que por “mônadas culturais”) que, na indiferença liberal da tolerância46, acaba produzindo a emergência dos fundamentalismos.

É verdade que o fundamentalista reagiria veementemente ante essa afirmativa, rejeitando-a cabalmente. Mas, por outro lado, é preciso ponderar – como dissemos atrás – que sua postura está associada a uma série de violências colaterais que o provocam a responder de forma também violenta e ressentida. É por isso que para iniciar o diálogo é preciso, em primeiro lugar, destecer a violência que inibe a possibilidade, substancializando a justiça como resposta à injustiça concreta47 ou como abertura ao outro48 (hospitalidade?). Percebe-se que essa dimensão não exclui reequilíbrios posteriores (inclusive e eventualmente contratuais), mas é aquilo que os sustenta. Esse nó fundamental que amarra a justiça não ao equilíbrio distributivo em um panorama neutro, mas à suspensão da violência como forma de viabilizar o encontro poderia ser, por exemplo, parte de uma plataforma política radical que buscasse equacionar o problema do fundamentalismo sem o recurso à guerra. Pois, jogando com as palavras, se o fundamentalista vai até o fundamento, é preciso ser radical o suficiente para perceber que os problemas postos tocam a nossa política nas suas raízes mais profundas.

BIBLIOGRAFIA MENCIONADA:

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994.

45 Não será essa explicação de, por exemplo, existir uma perseguição nostálgica do budismo e da new age mesmo entre esses “sujeitos sem gravidade”? Uma nostalgia pela “espiritualidade perdida” nos montes do Tibet de Dalai-Lama e que contrasta com o vazio, a performance e o consumo como elementos constitutivos do ethos em que vivemos no mundo ocidental? 46 O que não significa não reconhecer que a tolerância é melhor que os fundamentalismos (Derrida, p.ex., é bem claro nesse sentido). Rorty afirmou certa vez que a esquerda cultural norte-americana, desprezando o liberalismo reformista, acabou considerando o bom como contrário do ótimo. Creio que Rorty está certo nesse ponto. Mas, como sua própria frase diz, o bom não é o contrário do ótimo, mas também não é o ótimo. E por que se contentar com o bom se podemos pensar o ótimo? Sobre a tolerância, conferir RAWLS, Teoria da Justiça, § 35. 47SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos, p. 3. 48 DERRIDA, J. Força de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 32.

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