o direito fundamental À memÓria · tese de conclusão do doutorado do programa de pós- ......
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O DIREITO FUNDAMENTAL MEMRIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO RECIFE
2008
2
FABIANA SANTOS DANTAS
O DIREITO FUNDAMENTAL MEMRIA
Tese de concluso do curso de Doutorado em Direito Constitucional, orientada pelo Prof. Dr. Andreas Joachim Krell, para apresentar-se ao Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Federal de Pernambuco.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO RECIFE
2008
3
Dantas, Fabiana Santos O direito fundamental memria / Fabiana Santos Dantas. Recife : O Autor, 2008.
283 folhas. Tese (Doutorado em Direito) Universidade Federal
de Pernambuco. CCJ. Direito, 2009. Inclui bibliografia.
1. Memria - Direito fundamental - Eficcia e efetividade. 2. Direito memria e democracia. 3. Direito memria - Efetivao. 4. Memria no Brasil - Polticas pblicas - Efetividade. 5. Brasil. [Constituio (1988) - Art. 5 e 216]. 6. Patrimnio cultural - Direito memria - Suporte. 7. Patrimnio cultural - Instrumentos legais. 8. Tombamento - Registro - Legislao - Brasil. 9. Direitos humanos - Direitos fundamentais. 10. Direitos da personalidade - Brasil. l. Ttulo.
4
FABIANA SANTOS DANTAS
O DIREITO FUNDAMENTAL MEMRIA
Tese de concluso do Doutorado do programa de ps-graduao da Faculdade de Direito do Recife, Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito para obteno do grau de Doutor em Direito. rea de Concentrao: Direito Pblico. Orientador: Prof. Dr. Andreas Joachim Krell.
A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidncia do primeiro, submeteu a candidata defesa de tese doutoral e a julgou nos seguintes termos:
5
In memoriam, aos meus avs Albino Ferreira
Dantas e Mrio Barbosa dos Santos, e minha
vov Aline.
Aos meus pais e minha vov Eurdice, por tudo,
sempre.
Aos meus irmos, aos meus sobrinhos e aos meus
cunhados, porque no poderia ser diferente.
Ao Prof. Dr. Andreas Joachim Krell, por sua
orientao segura e pela confiana depositada no
nosso trabalho.
6
Agradecimentos
Agradecer lembrar.
Lembro que a UFPE a instituio qual devo a minha formao profissional, de
onde hoje retiro o meu sustento e que me permite realizar os projetos e expectativas de vida.
Nesses tempos em que to fcil falar mal das Universidades Pblicas, tenho o orgulho de
agradecer a oportunidade de estudar na Graduao, no Mestrado e no Doutorado com
excelentes professores, concluindo a formao acadmica que foi posta minha disposio,
acredito, nas melhores condies possveis.
Lembro do esforo e da presteza dos seus servidores, em especial da Biblioteca e
da Escolaridade, bem como os funcionrios que proporcionam boas condies para o
aprendizado, tais como a limpeza das salas e o mimo do cafezinho.
Lembro do apoio dado pelos colegas e amigos de trabalho na UFRPE, em especial
sua Procuradoria Judicial: Nadja W. de Siqueira de Moura Leite, Hebe Campos Silveira,
Maria Inez Lira Gomes, Jane Coelho Magalhes Melo, sempre, Manoel Caetano da Silva,
Eliane C. Alves, Edneide Maria F. da Silva, Samuel Leite Botelho e Margarete, muito
obrigada. Agradeo tambm compreenso e apoio dos colegas da Procuradoria Regional
Federal da 5 Regio, especialmente ao Dr. Ricardo Cavalcante Barroso.
Lembro do incentivo da FAFIRE para ingressar no desafio do Doutorado, em
especial ao Sr. Diretor Adjunto de Pesquisa e Ps-graduo, Dr. Antnio Gildo Paes Galindo,
pela confiana; ao seu corpo docente pela compreenso e solidariedade; aos meus alunos, pela
convivncia e pela colaborao, quase espontnea, na pesquisa.
Lembro dos amigos negligenciados, especialmente Denise Teixeira de Oliveira,
Simone Siqueira Campos de Almeida e Vinicius Gouveia de Miranda.
Lembro da contribuio preciosa de todos professores do curso de Direito da
UFPE, desde a graduao, e no Doutorado, especialmente queles com os quais tive o prazer
da interlocuo: Profa. Margarida Cantarelli, Prof. Gustavo Ferreira Santos, Prof. Michel
Zaidan Filho, que ministraram as disciplinas; Prof. Andr Rosas e Prof. Ivo Dantas, que
procederam ao seminrio de tese; Prof. Artur Stamford da Silva, pelas observaes e
conselhos na banca de qualificao.
Lembro daqueles que no foram aqui nominados, mas tambm no foram
esquecidos: esto apenas preservados para agradecimentos futuros. A gratido tambm conseqncia da memria.
Muito obrigada.
7
Memria
Amar o perdido deixa confundido
este corao.
Nada pode o olvido contra o sem sentido
apelo do No.
As coisas tangveis tornam-se insensveis
palma da mo.
Mas as coisas findas muito mais que lindas,
essas ficaro. (Carlos Drummond de Andrade)
8
RESUMO
O direito fundamental memria corresponde necessidade individual e coletiva de
afirmao e conhecimento atuais do passado, implicitamente previsto pelo artigo 5, 2 da
CF/88, cuja existncia e eficcia pode ser deduzida das normas de competncia legislativa ou
material, e das disposies contidas nos artigos 215, 216 e 225. Ainda pode ser concebido
como uma faceta do direito fundamental herana, previsto pelo artigo 5, XXX, da CF/88.
Sua eficcia manifestada em posies jurdicas de primeira, segunda, terceira ou quarta
dimenses: no aspecto individual, abrange a memria dos vivos e dos mortos, enquanto que
na dimenso prestacional, envolve o direito a participar da elaborao de polticas pblicas
para a conservao do patrimnio cultural e utilizao dos bens pblicos que o constituem.
A dimenso transpessoal compe-se da manifestao como direito de terceira e de quarta
dimenso, abrangendo sujeitos atuais e as geraes futuras, que so ligados por laos de
solidariedade intergeracional. A elaborao de polticas pblicas para a preservao da
memria, de cunho marcadamente discricionrio, demanda a superao dos valores
consagrados, como a beleza e a monumentalidade, dissonantes do art. 216 CF/88. A
representatividade social hoje o critrio para a instituio da proteo estatal dos bens
culturais, sendo passvel de controle, inclusive judicial, para atender ao mximo a diversidade
e a fragmentao de interesses de uma sociedade pluralista e democrtica como a brasileira.
Palavras-chave: direitos memria individual e coletiva patrimnio cultural.
9
ABSTRACT
The Right of Remembrance corresponds to the individual and collective need for affirmation
and current knowledge of the past; this right is implicitly guaranteed by article 5, 2 da
CF/88, the existence and efficacy of which can be inferred from material or legislative norms,
and from the contents of articles 215, 216 e 225. It can also be understood as a facet of the
fundamental right to inheritance, guaranteed by article 5, XXX, of CF/88. Its efficacy is
expressed in judicial positions of first, second, third, and fourth generations: at the individual
level, it comprises the memory of the living and the dead, whereas at the second (positive
obligations), it involves the right of participation in the elaboration of public policy toward
the conservation of cultural heritage and the use of the public assets that comprise it. The
transpersonal level is expressed at the third and fourth levels, involving present-day
individuals as well as the future generations, which are linked by the bonds of
intergenerational solidarity. The elaboration of policy for the preservation of memory, of a
markedly discretionary nature, requires the abandonment of established values, such as beauty
and monumentality, which contradict article 216 CF/88. Social representativity nowadays is
the criterion for governemntal protection of cultural assets, being subject to control, including
juducial control, in order to conform to the largest extent possible to the diversity and
fragmentation of interests of a democratic and pluralist community such as the Brazilian
society.
Keywords: rights individual and collective memory cultural heritage
10
LISTA DE SIGLAS
ANCINE - AGNCIA NACIONAL DO CINEMA
BN - FUNDAO BIBLIOTECA NACIONAL
CF/88 CONSTITUIO FEDERAL DE 1988
CUPI - CONVENO SOBRE AS MEDIDAS A SEREM ADOTADAS PARA PROIBIR E
IMPEDIR A IMPORTAO, EXPORTAO E TRANSFERNCIA DE PROPRIEDADE
ILCITAS DOS BENS CULTURAIS
FCP - FUNDAO CULTURAL PALMARES (FCP)
FCRB - FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA
FUNARTE - FUNDAO NACIONAL DE ARTES
ICOM - CONSELHO INTERNACIONAL DE MUSEUS
IPHAN - INSTITUTO DO PATRIMNIO HISTRICO E ARTSTICO NACIONAL
MEC MINISTRIO DA EDUCAO E CULTURA
OEI - ORGANIZAO DE ESTADOS IBEROAMERICANOS PARA A EDUCAO,
CINCIA E CULTURA
SPHAN SERVIO DE PROTEO DO PATRIMNIO HISTRICO E ARTSTICO
NACIONAL
UNESCO UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL
ORGANIZATION
11
SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................ 13 1. A DIMENSO CULTURAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ...................
27
1.1 Direitos humanos versus direitos fundamentais: uma distino preliminar necessria ........................................................................................................................
27
1.2 Sobre os direitos fundamentais e seu significado para a vida em sociedade ............
31
1.3 Importncia e significado cultural dos direitos fundamentais ..................................
33
1.4 Importncia e significado da Cultura para os direitos fundamentais .......................
35
2. CARACTERIZAO DO DIREITO FUNDAMENTAL MEMRIA ..........
42
2.1 A Memria: uma necessidade individual e coletiva fundamental ............................
42
2.2 A construo da memria coletiva brasileira: o exemplo da anistia ........................
48
2.3 Conceito do direito fundamental memria ............................................................
55
2.4 Caracterizao ..........................................................................................................
57
2.5 A justificao dogmtica ..........................................................................................
59
2.6 Princpios aplicveis .................................................................................................
62
2.6.1 Princpios Gerais ...................................................................................................
63
2.6.2 Princpios especficos ............................................................................................
70
2.6.3 Princpios complementares ..................................................................................
74
3. EFICCIA E EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL MEMRIA ...................................................................................................................
75
3.1 A dimenso individual do direito fundamental memria: vivos e mortos .............
76
3.2 Estudo de caso: Mefisto ............................................................................................
83
3.3 A dimenso prestacional do direito fundamental memria ...................................
88
12
3.4 A dimenso transpessoal do direito fundamental memria ...................................
88
3.5 Quanto s competncias constitucionais ..................................................................
91
3.6 Efetividade ................................................................................................................
94
4. O PATRIMNIO CULTURAL COMO SUPORTE DO DIREITO MEMRIA: ANLISE DO ART. 216 DA CONSTITUIO FEDERAL.............
98
4.1 Delineamento do patrimnio cultural brasileiro .......................................................
99
4.1.1 Conceito doutrinrio ..............................................................................................
99
4.1.2 Definio legal .......................................................................................................
103
4.1.3 Natureza jurdica dos bens componentes do patrimnio cultural brasileiro ..........
113
4.1.4 Quanto tutela jurdica de bens culturais ..............................................................
115
4.2 O problema da discricionariedade administrativa na definio do contedo do patrimnio cultural brasileiro..........................................................................................
116
4.2.1 A questo dos valores ...........................................................................................
117
4.2.2 O problema da discricionariedade administrativa no delineamento do patrimnio cultural. ........................................................................................................
130
4.3 O papel do Poder Judicirio no controle da discricionariedade administrativa, no tocante definio do patrimnio cultural......................................................................
143
4.4 Memria coletiva e reconhecimento: a justia simblica como necessidade fundamental ou o valor da herana..................................................................................
146
5. EFETIVAO DO DIREITO MEMRIA .......................................................
155
5.1 Instrumentos legais para conhecer e delimitar o patrimnio cultural: inventrio e catalogao .....................................................................................................................
155
5.2 Instrumentos legais para a preservao do patrimnio cultural ...............................
156
5.2.1 Tombamento ..........................................................................................................
156
5.2.2 Registro ..................................................................................................................
163
5.2.3 Criao de espaos protegidos ...............................................................................
163
5.2.4 Sanes penais, civis e administrativas ................................................................. 166
13
5.2.5 Desapropriao ......................................................................................................
168
5.2.6 Ao civil pblica ..................................................................................................
169
5.2.7 Ao popular .........................................................................................................
172
5.2.8 Estudo de impacto .................................................................................................
172
5.3 Instrumentos para a transmisso do patrimnio cultural .........................................
173
5.4 O dever de memria: a imprescritibilidade como ilustrao ....................................
175
6. DIREITO MEMRIA: FRONTEIRA E DIREITOS CORRELATOS ..........
177
6.1 Fronteira: delimitando o mbito do direito fundamental memria a partir do direito fundamental ao esquecimento .............................................................................
177
6.2 Direitos correlatos ....................................................................................................
183
6.3 O direito memria e os direitos culturais ...............................................................
189
7. DIREITO MEMRIA E DEMOCRACIA: o papel do Estado na construo e execuo de polticas pblicas para a preservao da memria ...........................
191
7.1 A formao da alma brasileira: a inveno da memria no Brasil - antecedentes e importncia .....................................................................................................................
191
7.2 A Poltica da preservao da memria no Brasil ......................................................
207
7.2.1 Sistema administrativo ..........................................................................................
209
7.2.2 Planejamento .........................................................................................................
216
7.2.3 Instrumentos ..........................................................................................................
216
7.2.4 Sistema de financiamento ......................................................................................
217
7.2.5 Sistema de avaliao ..............................................................................................
219
7.3 Direito memria, democracia e polticas pblicas de preservao.........................
220
8. EFETIVIDADE DAS POLTICAS PBLICAS PARA A MEMRIA NO BRASIL .........................................................................................................................
223
8.1 Diagnstico ...............................................................................................................
224
8.2 Atualizao da legislao protetiva do Patrimnio Cultural .................................... 224
14
8.3 Elaborao de poltica de preservao interdisciplinar ............................................
227
9. CONCLUSO: Paz no futuro e glria no passado? ...........................................
239
10. REFERNCIAS .....................................................................................................
248
10.1 Fontes bibliogrficas ..............................................................................................
248
10.2 Fontes documentais ................................................................................................
275
10.2.1 Normas jurdicas referenciadas ...........................................................................
275
10.2.2 Outros documentos escritos ................................................................................. 281
10.3 Vdeos ..................................................................................................................... 282
15
INTRODUO
Chegarei assim aos campos e vastos palcios da memria, onde se encontram os inmeros tesouros de imagens de todos os gneros, trazidas pela percepo. A tambm depositada toda a atividade de nossa mente, que aumenta, diminui ou transforma, de modos diversos, o que os sentidos atingiram, e tambm tudo o que foi guardado e ainda no foi absorvido e sepultado no esquecimento (SANTO AGOSTINHO, 1984, p. 257).
A memria a capacidade humana de reter e evocar experincias, permitindo a
conscincia da passagem do tempo, alm de conferir ao indivduo e coletividade um passado
singular que os caracteriza.
um objeto de estudo que admite diversas definies e interpretaes, variando
profundamente de acordo com a poca e a finalidade consideradas. No Ocidente a memria
tem origem divina, encarnada na deusa grega Mnemosyne, a titanide filha da deusa Gaia e do
deus Urano (CARAZZAI; WERTHEIN, 2000, p. 10), irm de Cronos, tida como a protetora
das Artes e da Histria, do que ressalta a sua ntima relao com o patrimnio cultural: no
toa que na Mitologia Grega considerada a me das Musas.
A deusa Memria carrega o basto da sabedoria talhado em loureiro (skeptron) e
sua funo revelar o que foi e o que ser (VERNANT, 1990, p. 141). Presidindo a funo
potica, concedia aos poetas e adivinhos o poder de voltar s origens e essncia (geralmente
identificadas com o passado) e lembr-las para a coletividade e tambm conferia o dom da
imortalidade, pois quem se torna memorvel no morreria jamais (CHAU, 2001, p. 126).
Uma das funes mais importantes da memria ser fonte de respostas s
questes que intrigam o ser humano - a sua origem, identidade e a sua posio e papel no
mundo - por isso muito significativo que Mnemosyne esteja ligada faculdade da
orientao e da desorientao no tempo e no espao1. A sacralizao da memria e sua
representao como uma deusa mostram a sua importncia social, enquanto que para o
indivduo o esforo da memria consistia em um exerccio de purificao espiritual, dotado
de valor moral decorrente do exame de conscincia, especialmente entre os pitagricos que o
consideravam uma obrigao diria (VERNANT, 1990, p. 155).
A memria permite ao indivduo conhecer a si mesmo pelos seus prprios meios e,
sob a forma de esforo ou disciplina, produziria a virtude individual e o adestramento coletivo
1 The historical and cultural foundations of the Nation should be preserved as a living part of our community life and development in order to give a sense of orientation to the American people. EEUU. National Historic Preservation Act. (16 USC 470 et seq). Section 1 (b) (2).
16
(VERNANT, 1990, p. 169). Depois a concepo de memria mudou bastante: na Grcia,
por exemplo, a sua configurao ocorria atravs da poesia representativa da mimesis
(SMOLKA, 2000, p. 169), de carter predominantemente oral. Gradativamente, a abordagem
racional comea a se impor, perdendo na filosofia platnica o seu aspecto mtico e, com
Aristteles, fica ressaltada a diferena existente entre a mneme (faculdade de conservar o
passado) e mamnesi (faculdade de invocar o passado).
A crtica racional do conceito de memria ganhou relevo entre os primeiros
historiadores, visto que a prpria concepo da Histria (do grego histor, testemunho)
depende da veracidade (ou validade) que se lhe atribuda. Nessa discusso destacam-se as
opinies de Herdoto e Tucdides, o primeiro afirmando a veracidade do testemunho (a
Histria conta o que v), enquanto que o segundo duvida desse carter para conceber a
memria como enganadora, pois na verdade diz o que selecionou, interpretou e reconstruiu.
Essa postura de Tucdides o leva a reivindicar mtodos de fixao dos
acontecimentos para garantir-lhes a fidedignidade, elegendo a escrita como principal
instrumento: a primeira revoluo da memria. Nesse perodo afirma-se enquanto arte para
bons oradores (mnemotcnica), culminando com o deslocamento posterior do tema para o
campo da Retrica, no medievo, quando foi primeiro estudada como tcnica para oradores,
adentrando depois no campo da tica, pois So Toms de Aquino a considera como parte da
virtude da Prudncia, juntamente com a Inteligncia e a Providncia.
Enquanto tcnica, a memorizao baseia-se na sistematizao dos registros a partir
da criao de lugares e de uma ordem de disposio especfica. Os lugares da memria (loci)2
so construes arquitetnicas mentais onde so guardadas as imagens de palavras e coisas.
Quanto mais notveis tais imagens, por serem incomuns, belas, ridculas ou grandiosas, mais
forte impresso causam e so lembradas mais facilmente, por isso o banal facilmente
esquecido (YATES, 1974, p.9).
A escrita modificou bastante a memria coletiva, permitindo o seu
desenvolvimento em duas vertentes: a) a comemorao, que significa a celebrao de eventos
memorveis atravs de monumentos celebrativos, com o predomnio das inscries
(epigrafia). Esses monumentos eram arquivos de pedra cuja finalidade era dar publicidade,
ostentatria e durvel, a uma informao memorvel; b) a segunda vertente foi o documento,
tomado em sua acepo restrita como o texto escrito que armazena informaes, permitindo a
comunicao entre geraes, bem como o reexame, a retificao e reordenamento dos
2 Segundo Yates (1974, p. 31), os lugares da memria tambm podem ser chamados de topoi, afirmando que o livro Tpica de Aristteles provavelmente refere-se a tcnicas mnemnicas.
17
registros (LE GOFF, 2000, p. 18). Nesse perodo surgem as instituiesmemria: arquivos,
bibliotecas e colees.
A segunda revoluo da memria ocorreu com a imprensa, que trouxe o
predomnio da escrita sobre a oralidade. At ento havia equilbrio ou predomnio da
oralidade, pois os textos eram escritos para serem decorados3, e dessa poca at o sculo XVI
valia o adgio tantum scimus, quanto memoria tenemus 4 (WEINRICH, 2001, p. 69).
Os efeitos da Imprensa foram sentidos plenamente a partir do sculo XVIII, no s
porque grande quantidade de informaes passou a circular, mas tambm porque puderam ser
traduzidas e compartilhadas com outros povos: surgem ento os arquivos e museus nacionais.
Alm disso, a funo memorial dos monumentos entrou em decadncia, com a gradual
substituio dos livros de pedra por tecnologias mais modernas (CHOAY, 2001, p. 21).
A terceira revoluo da memria foi o surgimento de tcnicas de registro e
reproduo de udio e vdeo tais como o disco, a fotografia, o cinema e o computador. A
apreenso e o resgate das informaes agora so feitos quase ao vivo: h imagem e som
vindos do passado. Entretanto, tais avanos so relativos pois a acelerada obsolescncia e a
rpida substituio de tecnologias so capazes de determinar a amnsia na sociedade.
Ora, a memria produzida, estabilizada, contida e mobilizada atravs da
construo do patrimnio cultural, que consiste em topos partilhado, aceito e transmitido pelo
grupo social (SMOLKA, 2000, p. 188). Nessa linha de raciocnio, Pollak (1989, p. 3) afirma
que os monumentos e tradies so os lugares da memria, que servem como indicadores
empricos do que comum a um grupo, e que ao mesmo tempo o torna singular,
diferenciando-o dos outros.
Como se viu, a memria j foi objeto da Poesia, da Histria, da Filosofia e da
Retrica, agora se pretende mostrar a sua importncia jurdica. Mas, por que a memria seria
um objeto fundamental para o Direito?
O Direito utiliza-se da memria de vrias formas: desde a previso do testemunho,
que memria individual sobre fatos, at utilizao de documentos como meios de prova. A
atividade jurdica consiste, basicamente, no registro e soluo de conflitos e, por isso, os
arquivos judiciais so uma importante fonte de pesquisa dos costumes, da linguagem e das
relaes sociais, embora o interesse dos historiadores e socilogos sobre eles seja
relativamente recente (CHALHOUB, 2007).
3 Decorar (do Latim de cor), saber de corao, porque esse rgo era tido como a sede dos sentimentos, da inteligncia e do saber (CUNHA, 2001, p. 216). 4 S sabemos tanto quanto temos na memria.
18
O Direito abrange fontes memoriais como o costume jurdico e o precedente
judicial, onde a soluo jurdica herdada, e sua legitimidade decorre da antigidade e da
constncia da transmisso mais do que uma racionalidade ou utilidade social (OST, 2005, p.
95), alm de respeitar as situaes constitudas atravs do princpio da segurana jurdica,
como o direito adquirido, em clara exortao de respeito ao passado.
H ainda uma memria jurdica no modo de ser do Direito e de constru-lo: as
vestimentas utilizadas, a linguagem, as normas transmitidas. Porm, o mais importante que
a memria permite consolidar as inibies que fazem do Direito um importante sistema de
controle social: sem ela os homens no saberiam o que lcito ou ilcito, nem mesmo a
diferena entre ambos. Ainda pensando em controle, Giorgi (2006, p.64) destaca que a
validade para o Direito a memria do sistema, que lhe permite recordar e esquecer normas,
como forma de selecionar e controlar a sua adequao.
Alm desses aspectos, pretende-se demonstrar que a memria pode ser objeto de
demandas individuais e coletivas, em funo de sua importncia para a subjetividade, a
identidade e a representatividade social e poltica, assumindo o status de fundamentalidade
prprio dos direitos inerentes dignidade humana.
Por que um direito memria? Existem fatos, aes e pessoas que no podem e
no devem ser esquecidos porque servem de modelos positivos e alicerce para o
desenvolvimento da sociedade, ou representam experincias que no devem ser repetidas.
Tais elementos, quando capazes de marcar profundamente a existncia de uma comunidade,
precisam ser mantidos presentes na memria individual e coletiva, a fim de que se possa
compreend-los, question-los, evit-los no futuro e, se necessrio, sanar as suas
conseqncias.
Muitas sociedades mantm vivos os fatos considerados importantes atravs de
rituais, celebraes e at mesmo protestos. Um exemplo marcante, pelas suas dimenses, foi o
recente protesto dos chineses contra o Ministrio da Educao Japons, que deliberadamente
omitiu dos livros didticos os crimes de guerra cometidos na China no perodo compreendido
entre a dcada de 30 e o final da Segunda Guerra Mundial.
A revolta neste caso contra o esquecimento do extermnio de vinte milhes de
chineses pelo Exrcito Japons, alm das torturas, estupros em massa e uso de guerra
bacteriolgica (epidemia de peste bubnica provocada) nas provncias de Hunan e Zhejiang.
A omisso desses fatos nos livros de Histria, teme-se, poderia culminar no seu esquecimento
e conseqente impunidade (CORDEIRO, 2005, p. 164-165).
19
Atualmente algumas sociedades que vivenciaram perodos ditatoriais no sculo
XX procuram meios para resgatar a memria histrica, com o duplo objetivo de reabilitar os
opositores assassinados ou desaparecidos, e tambm cobrar responsabilidades dos agentes
polticos, podendo ser citados como exemplos a Ley de la Memria Histrica da Espanha,
bem como os recentes julgados das Supremas Cortes da Argentina e do Chile que declararam
inconstitucionais as respectivas leis de anistia.
No Brasil no se vivencia uma experincia parecida, sendo freqente a afirmao
de que o brasileiro no tem memria5. A conseqncia desse esquecimento geral e
institucionalizado a repetio de velhos erros que aparentemente condenam a sociedade
brasileira estagnao poltica e falta de cidadania, pois dia a dia os bens que fazem parte
dessa tradio arrunam-se fsica e espiritualmente. Alm disso, no se pode olvidar que a
memria base de qualquer planejamento, o quadro de referncias que permite identificar
os problemas e construir possveis solues, legando s geraes futuras a possibilidade de
aperfeioar as instituies sociais e polticas, desenvolvendo-se de forma plena.
Memorizar6 guardar significados obtidos de experincias passadas, enquanto
que lembrar consiste em resgatar esses significados para utiliz-los no cotidiano da vida
social, como fonte de sentido da existncia coletiva e individual. A memria aquisio, o
esquecimento perda: o que se guarda constitui o referencial para compreender e interpretar o
mundo em conformidade experincia de cada um.
Entretanto, a lembrana precisa de estmulos para ser construda e ativada.
necessrio ensinar aos indivduos os valores e experincias passadas construindo a sua
memria e, por outro lado, garantir-lhes as condies adequadas ao resgate dessas
informaes atravs da proteo do patrimnio cultural tangvel e intangvel.
Deve-se reconhecer ao indivduo e coletividade o direito preservao dos
sentidos da sua existncia, genericamente chamado de direito memria, revestido do status
de fundamentalidade porque indispensvel existncia digna do ser humano. O seu exerccio
compreende dois aspectos principais: o primeiro, de aprendizagem das experincias sociais
passadas, que servem de orientao e base para a construo de um futuro melhor7; e, em
5 Como afirma Lima Barreto (2001, p. 68): entre ns tudo inconsistente, provisrio, no dura. No havia ali nada que lembrasse esse passado. 6 Segundo Santo Agostinho (1984, p. 262), a memria guarda as informaes mas cogitando que o Homem dela se utiliza para fazer associaes. Remete origem da palavra cogito (colher), que nesse caso se refere a uma atividade exclusivamente espiritual de colher as informaes da memria. 7 Porque o futuro tem um corao antigo, frase atribuda a Dante Alighieri, que tambm o ttulo de um famoso livro de Carlo Levi.
20
segundo lugar, a formao da conscincia de pertena do indivduo ao grupo (identidade
cultural), fundamental para a sua insero poltica e para o exerccio efetivo da sua cidadania.
O direito fundamental memria tambm exige e viabiliza a reviso crtica e
reconstruo do passado, visando ao aperfeioamento das instituies sociais: garantir esse
direito a maneira de ajudar a construir cidados completos, ntegros no seu passado,
presente e futuro.
A apropriao do patrimnio cultural atravs da transmisso, pressuposto do
direito memria, facilita o comprometimento do indivduo com o bem coletivo pois os
valores sero compartilhados e posteriormente assumidos como prprios, o que permite a sua
insero nas instituies (ROBBINS, 2005, p. 379).
Ainda a ttulo de justificativa, podem ser destacadas outras boas razes para
advogar o reconhecimento do direito fundamental memria. Por exemplo, o conhecimento
tradicional pode ter importncia comercial e ser um diferencial no Comrcio Exterior, tal
como ocorre com a cachaa brasileira, cujo modo de fazer caracterstico protegido pelo
Decreto n 4.062/01. A cachaa, alm de ser uma bebida tpica brasileira, tambm um
elemento identitrio e integra modo de viver e celebrar de determinadas classes sociais.
Outros segmentos da Economia tambm so beneficiados pelos diferenciais
ofertados pela tradio: o Turismo e a Indstria Cultural podem fazer da preservao do
patrimnio cultural e da memria uma fonte de desenvolvimento permanente e sustentvel.
Apesar de toda sua importncia, a memria ainda no obteve um tratamento
jurdico especfico e nem foi contemplada com a formulao explcita de uma poltica
pblica, que depende fundamentalmente da priorizao de servios pblicos tais como a
educao, os arquivos, museus e bibliotecas que, como os demais, enfrentam a crnica
escassez de recursos materiais, humanos e tecnolgicos, como destaca Jardim (1995, p. 7).
fato notrio que no Brasil a poltica educacional e todo o aparato institucional
para a preservao do patrimnio cultural tm obtido um xito bastante reduzido em relao
s crescentes demandas sociais. E o resultado desse insucesso pode ser facilmente sintetizado
na assertiva o brasileiro no tem memria.
Essa frase ingnua, repetida ad nauseam por todos, revela dois aspectos cruis do
mesmo problema: atribui ao brasileiro, ao indivduo, a culpa social de no resgatar traumas,
feridas e conflitos do passado para solucion-los, o que acarreta um agravamento da presente
situao, ao mesmo tempo em que exime o Estado da responsabilidade de construir essa
memria social de forma consciente, democrtica e responsvel.
21
O resultado dessa poltica do esquecimento (consciente ou no) ver inmeros
cidados deriva, desorientados, excludos das instituies, sem noo de suas identidades,
passados, presente e conseqentemente, do seu futuro. Nesse panorama, constata-se que o
direito memria e o patrimnio cultural que lhe serve de suporte so vtimas de toda sorte de
problemas, desde a falta de previso explcita na Constituio Federal de 1988 (CF/88),
passando por fatores econmicos e religiosos, chegando mesmo a questes meramente
quantitativas, como o aumento da presso demogrfica.
Para ilustrar, veja o que afirmava Lima (1969, p. 18) h quase quarenta anos:
Entre ns, nada. Imitao do estrangeiro e destruio ou abandono do passado. Nossas velhas cidades que o digam. Igrejas em runas, chafarizes abandonados, pilhagem desavergonhada de velhos mveis e pratarias, completa indiferena ou desapreo absoluto pela tradio barroca e pelo legado colonial. Nem a primeira Repblica poderia criticar o Imprio, nessa tendncia geral, do governo e do povo, em considerar como totalmente despiciendo o que possuamos como herana dos nossos antepassados.
Nesse mesmo tom, a pungente reportagem-denncia de Franklin Oliveira, que em
1967 publicou o livro A morte da memria nacional, mostrando que os rgos oficiais de
proteo do patrimnio cultural j naquela poca sofriam um completo desmonte e
encontravam-se beira do colapso, no s pela falta de renovao do seu corpo funcional
tcnico mas principalmente pela dotao oramentria irreal e mesquinha frente s
necessidades da preservao. Denunciou, ainda, a inexistncia de uma poltica arquivstica
una e eficiente, bem como o roubo, a degradao e o abandono dos bens culturais brasileiros
(OLIVEIRA, 1967, p. 36, 203).
triste constatar que esses alertas no serviram ainda implantao de uma
poltica de preservao eficiente, e que o desprestgio dos rgos oficiais da Cultura ainda
uma realidade traduzida em dotaes oramentrias insuficientes.
A conseqncia desse conjunto de fatos o perdimento de bens e a corroso das
instituies sociais, em sua razo de ser e finalidade, porque perdem a sua base de sustentao
que a necessidade conjunta e o significado para a populao, culminando em um efeito
desagregador do tecido social que se experimenta no Brasil. nesse contexto de
descontinuidade que os questionamentos sobre a memria ganham grande relevo, diante da
perda sem substituio de valores, o vazio e da falta de perspectiva enfrentados pela
sociedade.
O objetivo geral do presente estudo consiste em identificar e demonstrar a
existncia do direito memria no Ordenamento Jurdico Brasileiro, sistematizando as
22
normas que lhe fazem referncia implcita ou explcita, descrevendo, analisando e observando
a sua aplicao, eficcia e efetividade. A construo jurdica do tema do partiu da concepo
terica de um direito fundamental memria que, embora no conte com a previso
constitucional explcita, j se encontra positivado no Brasil, podendo citar-se como exemplo a
Lei n 3.036/2002, que institui o Plano Diretor de publicidade do Distrito Federal8.
A especificao do tema Direito fundamental memria foi feita a partir da sua
delimitao pelos critrios espacial, de singularidade e de abordagem (ECO, 1998, p. 8). Pelo
primeiro, limitou-se a anlise da proteo ao patrimnio cultural e do direito memria
conforme o Direito Brasileiro, devido ao carter (ainda) territorial da maioria das normas
jurdicas que servem de fundamento sua tutela; depois, embora considerando a
transversalidade do tema, restringiu-se a anlise abordagem proporcionada pelo Direito
Constitucional. E finalmente, pelo critrio da singularidade, optou-se por estudar um dentre os
vrios direitos fundamentais: o direito memria.
No foi aplicado ao tema o critrio temporal, uma vez que a anlise sistmica aqui
desenvolvida tem cunho dogmtico e, por isso mesmo, restringe-se legislao vigente em
conformidade CF/88.
Para alcanar o objetivo geral proposto necessrio realizar uma descrio e
interpretao das normas que tm por objeto o direito memria e o patrimnio cultural
brasileiro, bem como dos rgos e instrumentos criados para implementar a sua proteo,
possvel atravs da anlise dos seus fundamentos e institutos contidos na vasta legislao
aplicvel ao tema, resultando em uma pesquisa terica.
Caracterizando-a assim, pretende-se esclarecer que a perspectiva ser conceitual,
adotando-se para tanto o mtodo dedutivo na anlise do nosso objeto, em especial do artigo
216 da Constituio Federal, e sua reconstruo atravs da interpretao sistmica de outras
normas que compem o seu universo normativo (OLIVEIRA, 1997, p. 62-63). Entretanto, a
predominncia desse mtodo no significa a impossibilidade de utilizar e recorrer induo
porquanto, como bem ressaltam Souto e Souto (1983, p. 62), eles so apenas momentos
diferentes do raciocinar cientfico.
Quanto metodologia, utilizou-se a pesquisa bibliogrfica, realizada atravs da
anlise e fichamento crtico dos livros, artigos cientficos, de revista e de jornal referidos no
8 Veja o que dispe o artigo 5 da Lei n 3.036/2002: (...) Para efeitos desta Lei ficam estabelecidos os seguintes conceitos: XXII - patrimnio cultural: bem de natureza material ou imaterial, tomado individualmente ou em conjunto, de valor histrico e cultural, cuja preservao assegure ao cidado o direito memria;
23
captulo 11, alm da pesquisa documental, realizada pela anlise da jurisprudncia dos
Tribunais Superiores sobre o tema, bem como sobre leis e outros instrumentos normativos.
Pontualmente, utilizou-se a tcnica do estudo de caso, compondo-se das etapas de
delimitao da unidade (caso Mephisto), coleta de dados (documentais), anlise e
interpretao, e tambm a observao direta, consistindo na percepo do fenmeno atravs
da experincia sensvel, cujas impresses foram anotadas em dirio de pesquisa de forma
objetiva, sendo depois interpretadas e contextualizadas (SOUTO, C; SOUTO, S, 1983, p. 66),
especialmente para verificar o estado de conservao dos monumentos escolhidos em Recife,
como forma de ilustrao do exerccio de competncias constitucionais e da eficcia das
disposies relativas legislao protetiva.
Quanto metodologia de anlise, considerando que toda norma jurdica uma
forma de discurso, para a abordagem da legislao e da jurisprudncia relativa ao patrimnio
cultural brasileiro foram utilizados aspectos da tcnica de anlise de contedo, consistindo na
escolha dos documentos relativos ao patrimnio cultural e memria, adotando o critrio
da exaustividade (BARDIN, 2000, p.97), realizada atravs de pesquisa em stios de busca na
Internet e, especialmente, na pgina do Ministrio da Cultura e o portal de legislao do
Senado Federal, seguida a seleo das normas jurdicas pelo critrio da pertinncia ao objeto
do estudo, categorizao dessas normas, primeiro por diferenciao (quanto hierarquia e
finalidade), depois por reagrupamento, adotando os critrios da excluso mtua,
homogeneidade, pertinncia e objetividade, e, finalmente, anlise sistmica e interpretao
dessas normas, com base na Doutrina e na Jurisprudncia.
O ponto de partida - a hiptese de trabalho consistiu em afirmar a existncia do
direito memria, mesmo que implcito na Constituio Federal, e que a degradao do
patrimnio cultural pe em risco o seu exerccio, na medida em que impede o acesso dos
indivduos ao acervo das experincias passadas da coletividade, obstaculando o seu
aprendizado dos modos de viver e sentir e, conseqentemente, a sua identificao cultural.
A primeira dificuldade encontrada na abordagem jurdica do tema foi a
multivocidade dos conceitos envolvidos, dentre os quais se destaca a Cultura, tema to
amplo e compreensivo de tantos aspectos da vida humana, que diversas Cincias a estudam
sob abordagens distintas e especficas. Por esse motivo, a fundamentao terica deste estudo
foi necessariamente interdisciplinar, abrangendo principalmente a Sociologia, a Antropologia,
a Histria e o Direito, esse ltimo constituindo foco de investigao.
A Sociologia abordada para compreender os processos que levam formao da
Cultura, enquanto fenmeno social e fator institucionalizante da sociedade, bem como a
24
dinmica de sua transformao. J a Antropologia de fundamental importncia pois as
definies de Cultura e de patrimnio cultural, conceitos bsicos do tema, lhes so
tributadas, integrando assim o referencial terico (SILVA, 2001, p. 29). Disso resulta que a
CF/88 consagra termos antropolgicos, tais como modos de ser e de viver, manifestaes
populares, identidade cultural, na definio daquilo que considera como patrimnio
cultural brasileiro.
A Histria desempenha dois papis fundamentais neste estudo: contextualizar o
patrimnio cultural para que se possa compreender o seu sentido conforme a poca em que foi
construdo e servir de fiel memria, visto que possui um contedo objetivo de busca da
verdade (por ser Cincia), enquanto aquela est mais permevel s impresses subjetivas.
Dentre os seus diversos ramos, adotou-se o vis da Histria Cultural, dada a sua
funo de explicar a importncia e a funcionalidade de objetos, bem como das instituies
sociais no seu prprio tempo (FALCON, 2002, p. 74). Com isso, pretende-se determinar e
reconhecer critrios para identificar o patrimnio histrico nacional, bem como obter a base
terica necessria demonstrao da importncia do patrimnio cultural.
O Direito o foco da presente investigao, mas tal delimitao no torna mais
simples a tarefa de estudar o tema, que pode ser ao mesmo tempo abordado sob diversos
ramos: Constitucional, Penal, Civil, Ambiental, Administrativo. Alis, a predominncia da
bibliografia sobre o tema destaca o aspecto administrativista da proteo ao patrimnio
cultural, certamente pela natureza estatal dos instrumentos da tutela (tombamento, registro,
inventrio), bem como por ser o Poder Pblico o sujeito mais atuante em sua defesa. Portanto,
para torn-lo mais analtico, o referencial de Direito foi dividido em dois aspectos: a
configurao terica dos direitos fundamentais e o contedo normativo referente ao
patrimnio cultural brasileiro.
Para o tema direitos fundamentais, o ponto de partida terico conceb-los de
forma contextual e finalstica, reiterando a idia de que nascem da sociedade, das suas
necessidades e instituies, as quais funcionam como mbitos de sentido e concretude. Os
direitos fundamentais nascem e desenvolvem-se dentro da instituio, e possuem o contedo
que elas lhes atribuem, em consonncia s suas finalidades (BONAVIDES, 2002, p. 574).
Supera-se, assim, a falsa oposio entre indivduo e Estado, admitindo limitaes
das liberdades de ambos conforme as regras estruturantes da instituio, ou seja, fundamenta a
interpretao da extenso dos direitos fundamentais na idia de Estado de Direito, sem olvidar
a importncia da cidadania participativa.
25
Ao lado da doutrina dos direitos fundamentais, a abordagem suficiente do tema
depende de um aporte no Direito Ambiental Constitucional no tocante definio e
interpretao do patrimnio cultural brasileiro pois: a) convergindo diversos ramos do
Direito, possibilita um exerccio hermenutico amplo a partir de normas constitucionais de
contedo ambiental; b) o artigo 216 da CF/88 permite considerar o patrimnio cultural como
parte integrante do conjunto de bens ambientais; c) a tutela do patrimnio cultural feita a
partir dos princpios do Direito Ambiental Constitucional; e d) as normas pertinentes devem
ser interpretadas a partir dos princpios fundamentais da Constituio Federal, por exemplo, a
dignidade da pessoa humana, autodeterminao dos povos, democracia.
Embora a importncia terica de diversos outros ramos do conhecimento para o
tema seja evidente e reconhecida, tais como a Pedagogia, a Cincia Poltica, a Psicologia, a
Filosofia e a Administrao, no foram contemplados especificamente no referencial terico
porquanto foram utilizados em contribuies episdicas.
Constatando que a lei tem a capacidade de consagrar a memria de indivduos, de
grupos ou categorias de indivduos9, ou de fatos, que precisam ou merecem ser lembrados
pela populao, o raciocnio da exposio foi assim traado: o estudo em si e os seus captulos
vm precedidos de citaes que indicam o teor e a diretriz do tema abordado. Essas epgrafes
tm a funo no de resumir, mas de sinalizar aspectos importantes dos temas debatidos em
cada captulo.
O captulo 2 consistir em um estudo sobre os direitos fundamentais, com o intuito
de identificar as suas principais caractersticas e significados, para construir a base terica
para o item seguinte.
O captulo 3 ser o delineamento terico do direito memria como direito
fundamental, a partir do estudo feito no captulo anterior. Demonstrar-se- que o contedo
objetivo do direito memria consiste no acesso e utilizao do patrimnio cultural, alm de
servir de base para o exerccio de outros direitos fundamentais, cujo significado e extenso
dependem da contextualizao social.
O captulo 4 tratar da eficcia e efetividade do direito fundamental memria,
analisando a partir do seu contedo jurdico e de sua observncia pelas autoridades
constitudas.
9 Lei n 11.121, de 25 de maio de 2005. Institui o Dia Nacional em Memria das Vtimas de Acidentes e Doenas do Trabalho.
26
O captulo 5 contemplar a definio do conceito do patrimnio cultural brasileiro
enquanto suporte do direito fundamental memria. Esse captulo importante para a boa
definio do tema, haja vista que para memorizar primeiro necessrio aprender algo e o
aprendizado do indivduo consiste, exatamente, na apreenso dos bens componentes do
patrimnio cultural, explicitando-se a ntima relao entre a proteo do patrimnio cultural e
o exerccio do direito memria.
Demonstrar-se- ainda que o acesso aos bens culturais e o exerccio do direito
memria so fatores fundamentais para a construo de uma identidade cultural nacional e
tambm individual, de carter determinante para a satisfao do indivduo enquanto pessoa
humana. Dessa maneira, a memria imprescindvel para o exerccio da cidadania, que
depende da insero de cada um na comunidade poltica, o que ocorre a partir da sua
identificao cultural com o grupo.
O captulo 6 tratar dos mecanismos de efetivao do direito memria, com a
anlise dos instrumentos legais que garantem a permanncia e a transmissibilidade dos bens
culturais aos indivduos, especialmente quanto sua eficcia. O aprendizado cultural
satisfatrio e o conseqente exerccio do direito memria dependem diretamente da efetiva
utilizao desses mecanismos de conhecimento, proteo e difuso do patrimnio cultural.
O captulo 7 tratar dos direitos correlatos que se revelam enquanto derivaes ou
complementos da anlise do direito fundamental memria, servindo-lhes tambm de limites
interpretativos. Especialmente quanto a esse ltimo aspecto, devemos considerar que o
exerccio do direito memria requer e pressupe o exerccio de outros direitos inerentes
Democracia, tais como o direito livre expresso e criao artsticas, vida, diferena e
resistncia, o que demonstra estar intimamente ligado noo de cidadania democrtica.
O captulo 8 tratar da poltica da memria praticada no Brasil, analisando os seus
antecedentes, importncia, estrutura administrativa, modos de financiamento, de um ponto de
vista crtico quanto sua efetividade na proteo do patrimnio cultural e do exerccio do
direito memria.
O captulo 9 pretende complementar a anlise do captulo anterior, sugerindo
parmetros e estratgias para o aperfeioamento da poltica de conservao da memria
brasileira. Com tal anlise acredita-se poder contribuir para uma melhor compreenso do tema
especfico, bem como de outros problemas circundantes que, aparentemente, so frutos da
falta de reverncia e respeito pelo passado e pela memria do povo brasileiro, tais como, a
inflao legislativa, polticas e obras pblicas inacabadas, insucesso dos modelos
institucionais, a desvalorizao dos idosos.
27
O captulo 10 ser dedicado s concluses, elaboradas em forma de sntese dos
temas tratados, mais as sugestes pontuais elaboradas.
Sero apontadas as referncias bibliogrficas e documentais ao final. Foram
pesquisados documentos de variada procedncia e formato: desde livros, relatrios, artigos de
peridicos, teses e dissertaes, mas tambm textos publicados na Internet, vdeos, filmes,
pinturas, esculturas, poesia, msica e outras obras de arte, notcias de jornal e televiso,
justificando-se a diversidade das fontes pela heterogeneidade dos suportes da memria.
O tema do presente estudo novo na bibliografia jurdica brasileira, havendo a
notcia da existncia de apenas uma dissertao de Mestrado intitulada Direito memria a
proteo jurdica ao patrimnio histrico-cultural brasileiro, defendida por Jos Ricardo Ori
Fernandes em 1995 perante a Universidade Federal do Cear, cuja abordagem panormica
permite uma anlise abrangente das normas de proteo ao patrimnio cultural brasileiro.
Entretanto, nessa obra o direito memria concebido apenas como o poder difuso de acesso
s fontes da Cultura nacional, sem formulaes quanto s outras dimenses jurdicas que o
integram.
Com exceo dessa obra especfica, predominam os trabalhos referentes
preservao do patrimnio cultural nas reas de Direito Ambiental, Penal e Administrativo,
porm sem a construo ou a inteno de tratar diretamente sobre a proteo da memria. A
predominante abordagem indireta no era adequada tarefa aqui proposta, da a necessidade
de recorrer a outras fontes como livros de Pedagogia, Psicologia, Arte, Histria, Economia,
Geografia, Administrao, entre outros, cuja amplitude s vezes poderia levar tergiversao
e fuga do foco.
preciso, pois, fazer a seguinte ressalva: a proposta deste trabalho esclarecer um
caminho interpretativo para o artigo 216 da Constituio Federal, que abrange conceitos de
Cincia, Arte, Turismo, Histria, Antropologia, Arqueologia, da a necessidade de busc-los
nessas fontes que permitam a interpretao adequada da legislao pertinente. Essa
interdisciplinariedade, que acarreta a importao de conceitos de outras Cincias, leva
necessidade de especific-los, como adverte Leff (2001, p. 83-84), e acrescente-se, restringi-
los mais dentro do tema proposto, para construir uma linguagem menos sujeita a equvocos.
Diante disso, tentou-se especificar conceitos gerais de outras Cincias e, mesmo,
dos diversos ramos do Direito (Ambiental, Administrativo, Civil, Penal, Constitucional, etc.)
envolvidos, tais como artstico, paleontolgico, turstico, esttico, paisagstico e
etc., em vista do que apresentar-se-o sempre, e talvez excessivamente, restritos.
28
Finalmente, de se notar que a linguagem explicativa adotada resultou de duas
necessidades: a primeira, de evitar a confuso conceitual de muitos termos jurdicos, cuja
definio cambia de autor para autor principalmente pelo desacordo lingstico; e, segundo,
pela esperana de que este trabalho seja analisado e criticado tambm por cidados e
estudiosos de outras reas, interessados na defesa da memria e do patrimnio cultural,
ofertando-lhes uma abordagem diferente e inteligvel do tema.
29
1. A DIMENSO CULTURAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Um direito fundamental direito sem o qual se entende que no admissvel viver
(MARTINS NETO, 2003, p. 144).
O objetivo deste captulo realizar um estudo abrangente sobre os direitos
fundamentais, realizando uma breve reflexo sobre a importncia recproca entre esses e a
Cultura, com o intuito de construir a base terica necessria abordagem do direito
memria.
1.1 Direitos humanos versus direitos fundamentais: uma distino preliminar necessria.
Toda norma jurdica nasce como soluo para uma necessidade social. So
identificadas as situaes convivenciais em que o comportamento humano deve ser
disciplinado, atravs de categorias socialmente construdas para classific-los como
desejveis/indesejveis, lcitos/ilcitos, sendo fixadas condutas permitidas, proibidas ou
obrigatrias, conforme os valores vigentes nessa sociedade, em dado momento histrico,
permitindo assim a vida em comum dos indivduos (GARCA HERRERA, 2004, p. 119).
O Direito, como qualquer outro bem cultural, uma estratgia de adaptao do
Homem ao meio ambiente natural e social. Para Tomasello (2003, p. 5), a diferena especfica
da espcie humana consiste na evoluo cumulativa dessas estratgias, que permitem o
aperfeioamento paulatino de artefatos e instituies, viabilizada pela transmisso cultural.
Cada conhecimento construdo uma plataforma para o posterior, permitindo a
evoluo e a inovao de duas maneiras: dois ou mais indivduos tentam, juntos, solucionar
problemas vivenciais e tcnicos; ou quando, mesmo no sendo contemporneos, os indivduos
colaboram para aperfeioar o conhecimento (TOMASELLO, 2003, p.56). O patrimnio
cultural o conjunto dessas conquistas adaptativas transmitidas, que ao longo do tempo
forjam a identidade dos grupos, o seu modo especfico de viver e sobreviver, de onde resulta a
diversidade cultural (CLARK, 1985, p. 79), enquanto que a memria acaba sendo um
30
instrumento para a adaptao rpida indispensvel sobrevivncia individual e coletiva
(GOUDOT-PERROT, 1979, p.7).
No mundo orgnico h a seleo biolgica enquanto que na Cultura,
especificamente no Direito, cada povo constri o conjunto de normas e direitos mais
adequados ao seu modo de ser e de viver. Por isso a importao acrtica de valores e normas
estranhas realidade social em que sero aplicadas geralmente redunda em total
inefetividade: a fora normativa da Constituio e das demais normas jurdicas assenta-se na
sua correspondncia ao esprito da poca (HESSE, 1991, p. 21).
Por isso, o enraizamento na tradio aparece como condio de eficcia das
normas jurdicas, porque existe um discurso invisvel, uma cultura jurdica no plano de
fundo que indica uma expectativa de sentido das normas. O prprio sistema jurdico preexiste
lei nova, que ser elaborada, lida e entendida em sua conformidade (OST, 2005, p. 95).
A gnese dos Direitos Humanos, como os valores mais abrangentes do Direito,
decorreu de uma viso especfica do Homem e da Humanidade, bem como da constatao de
que existem necessidades comuns aos seres humanos. Assumiu como pressupostos a
existncia de uma natureza humana universal, possvel de ser conhecida pela Razo;
essencialmente diferente e superior ao resto da realidade e, em razo disso, cada indivduo
possui uma dignidade absoluta e irredutvel, a exigir a satisfao de suas necessidades mais
vitais, de forma igualitria (BOAVENTURA SANTOS, 2003, p. 439).
Para Bobbio (2004, p. 36) no h um fundamento absoluto, nem mesmo a natureza
humana universal, capaz de justificar a existncia de direitos irresistveis, porque os direitos
nascem e adaptam-se a circunstncias histricas, como as novas demandas sociais, o exerccio
do poder poltico e as transformaes tcnicas dos meios de efetivao.
Entretanto, a Declarao Universal de 1948 foi celebrada sem a participao da
maioria dos povos, razo pela qual se verifica uma profunda resistncia na aceitao de alguns
dos direitos humanos incompatveis com determinadas Culturas. Na verdade, a idia de
direitos humanos representa uma imposio bem sucedida de uma viso de mundo local,
constituindo-se em mais um fator de choque entre as civilizaes (BOAVENTURA
SANTOS, 2003, p. 435).
O compartilhamento de contedos e valores atravs dos direitos humanos no , e
no pode ser, totalmente consensual, haja vista o multiculturalismo e a natural divergncia de
pensamentos que ocorrem no seio das sociedades. Admitir um consenso unnime
consubstanciado nas normas que os consagram s pode ser fruto da opresso, alm de violar a
autodeterminao dos povos (TASSARA 1992, p. 63).
31
Por isso, cada Estado livre para positivar internamente os direitos humanos10 que
entende necessrios e adequados para a vida social atravs da Constituio, que o seu
estatuto identitrio, onde os valores e expectativas compartilhados pela sociedade so
explicitados (WEILER, 2004, p. 112). A razo de ser do Estado contemporneo garantir a
efetivao desses direitos fundamentais dos seus cidados, porque so o alicerce da ordem
poltica e, em seu conjunto, identificam a essncia do regime e do prprio ordenamento
jurdico (MORAL, 2004, p. 508).
O momento constituinte, quando so definidos os direitos fundamentais e
institudos os mecanismos de sua efetivao, sede das questes mais controvertidas da
sociedade, onde atuam foras heterogneas. Os direitos so incorporados pelo ordenamento
jurdico estatal unicamente se respondem s demandas sociais determinadas, ainda que em
carter prospectivo, e tambm se so conformes aos valores professados pela Cultura reinante
(MORAL, 2004, p. 507). Por essa razo, os direitos fundamentais so considerados mais do
que simples direitos subjetivos: na verdade so normas objetivas de princpios e decises
axiolgicas que possuem eficcia em todo ordenamento jurdico (SOARES, 2003, p. 410).
Cada Constituio o retrato da sociedade que a produziu11, e os direitos
reconhecidos como fundamentais devem ser historicamente contextualizados, a partir dos seus
elementos informadores: antropolgico, que so as necessidades que decorrem da condio
humana e geram exigncias ticas; o elemento axiolgico, que afirma a extenso, finalidade e
contedo dos direitos, e o aspecto jurdico, que determina a sua intersubjetividade, impedindo
a adoo de uma concepo individualista de direitos (MORAL, 2004, p. 502). Mais do que
um documento jurdico, Constituio o espelho do legado cultural de um povo, e explicita o
seu modo especfico de existncia: por isso, quando os direitos fundamentais so positivados,
em geral j encontram o contexto social adequado ao seu surgimento.
Os direitos fundamentais podem ser positivados de quatro maneiras: como normas
programticas definidoras de tarefas e fins do Estado, em normas de competncia, como
garantias institucionais ou como direitos (CANOTILHO, 2001-b, p. 37-38).
No Brasil muitos direitos fundamentais foram positivados em normas
constitucionais programticas, caracterizando a CF/88 como dirigente, uma vez que define
os fins e objetivos para a sociedade e para o Estado, planejando um futuro ideal e servindo de
orientao permanente da atuao estatal (BERCOVICI, 1999, p. 37-40). A realizao do 10 Essa idia de que os direitos fundamentais so direitos humanos positivados na Constituio compartilhada por Galuppo (2003, p. 233). 11 Fraois Ost (2004, p. 29) afirma que as Constituies narram a evoluo poltica das comunidades, como mitologias contemporneas.
32
programa constitucional, e conseqentemente a efetivao dos direitos fundamentais nele
contemplados, depende da confiana e da vontade poltica dos agentes e rgos competentes,
bem como de uma atuao transparente e definio clara das linhas de ao.
Tambm possvel identificar e deduzir direitos fundamentais a partir das
competncias estatais e, por outro lado, conceber a organizao estatal, com seu organograma
e competncias, voltada para a efetivao desses direitos, os quais acabam por moldar o
desenho institucional do Estado (LAPORTA, 2001, p. 470-476).
Os direitos fundamentais podem ser positivados atravs de garantias institucionais,
obrigando o legislador a proteger a essncia das instituies (famlia, sade pblica,
administrao local) e adotar medidas condizentes com o seu valor social eminente. Ou
positivados como direitos subjetivos pblicos, inerentes ao espao existencial do cidado, tal
como ocorre no rol do artigo 5 da Constituio Federal.
No existe uma diferena ontolgica entre o que se denomina direitos
fundamentais e direitos humanos, visto que ambos encerram em seu contedo a
consagrao e defesa das necessidades vitais dos indivduos, que so os pressupostos
elementares de uma vida digna e livre (BONAVIDES, 1990-91, p.2).
Na verdade ambos representam uma convergncia entre os outrora dicotmicos
mbitos da Moral e do Direito, pois muitos Tratados de Direitos Humanos incorporaram
como normas princpios morais e, por outro lado, os direitos fundamentais representam a
institucionalizao de ideais morais, consagrados no tempo e no espao pelas Constituies
(GOMES, 2003, p. 118). Os direitos humanos e os direitos fundamentais representam o limite
e a reao contra o arbtrio do poder poltico (liberdades), a busca pela igualdade atravs da
atuao positiva dos Estados no mbito social, como elemento transformador da realidade,
bem como a garantia da qualidade de vida e da coexistncia solidria entre todos.
H, sim, uma diferena quanto forma de positivao visto que os direitos
humanos so consagrados em diplomas legais, ou no, de cunho internacional enquanto que
os direitos fundamentais so aqueles encontrados no Direito Interno, nas normas
constitucionais e, tambm para quem assim admite, nas normas infra-constitucionais. Os
direitos fundamentais gozam de maior positividade porque os direitos humanos geralmente
so previstos em normas internacionais como as Declaraes e Convenes, tidas como soft
law, o que no autoriza consider-los como meras exortaes morais.
H tambm uma diferena quanto ao grau de concretude, o que decorre da
densidade normativa dos instrumentos que consagram a ambos. Enquanto que os direitos
humanos em geral so previstos em normas de baixa da densidade normativa (soft law), os
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direitos fundamentais so consagrados pelas Constituies dos Estados que, no obstante
eventualmente possam conter normas de eficcia contida, possuem aplicabilidade mais direta
e imediata que as normas internacionais. Na CF/88, os direitos fundamentais podem possuir
trs origens: constar do catlogo dos direitos fundamentais; ou serem deduzidos do regime
constitucional e dos princpios, ou ainda, estarem previstos em Tratados internacionais
(VELLOSO, 2003, p. 347).
Ao final, diferena e igualdade podem ser apenas uma questo de nfase: os
direitos humanos e os direitos fundamentais tm em comum a sua razo de ser, que servir de
fronteira ao intolervel (TASSARA,1992, p. 71), representando o limite da dignidade humana
que, sem a proteo de contedos essenciais, seria irremediavelmente violada. Porm, em
relao aos primeiros, os direitos fundamentais tm a virtude de j nascerem traduzidos para a
realidade social, atual ou desejada, em que sero efetivados.
1.2 Sobre os direitos fundamentais e seu significado para a vida em sociedade
Os direitos fundamentais so espcies de direito subjetivo, ou seja, um poder
conferido pela norma ao sujeito de Direito sobre determinado bem da vida, capazes de
garantir as condies mnimas necessrias existncia humana digna, cuja diferena
especfica est na qualidade da intangibilidade pelo legislador ordinrio, garantida
formalmente atravs de sua incluso entre as clusulas ptreas constitucionais (MARTINS
NETO, 2003, p.78).
Entretanto, no so fundamentais apenas aqueles abrangidos pelo artigo 60, 4 da
CF/88, admitindo-se como tal todos aqueles previstos no Ttulo II da Constituio, inclusive
os previstos no artigo 7 e 8 e os direitos implcitos previstos no artigo 5, 2 da Magna
Carta12. A conseqncia prtica desse entendimento admitir a existncia de direitos
fundamentais fora do catlogo constitucional, em face do carter exemplificativo do rol
contido nos artigos 5, 6, 7 e 8 da Constituio Federal, possibilitando ao intrprete e
aplicador do Direito busc-los em outras disposies constitucionais13.
Do ponto de vista material um direito pode ser fundamental se corresponder a uma
necessidade. Para Robert Alexy (1999, p. 61) a fundamentalidade diz respeito ao contedo
dos direitos, pois cada um deles corresponde a uma carncia ou necessidade que garantida 12 Compartilhando desse entendimento, Sarlet (2004, p. 172), Krell (2002, p. 49). 13 Nesse sentido, Sarlet (2004, p. 89), quando afirma poder equiparar direitos fora do catlogo constitucional aos direitos fundamentais, agregando-os Constituio material, e Branco (2000, p. 160).
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ou protegida pela coercitividade do Direito. Quando essa carncia ou necessidade, ao ser
inobservada ou desatendida significa a morte, privao ou sofrimento graves, ou toca o ncleo
essencial da autonomia do indivduo, pode-se constatar se ou no fundamental.
O termo necessidade pode ser definido como uma carncia ou desejo, de
natureza fsica ou social. Embora os indivduos sejam diferentes, e por isso tenham diversas
necessidades reais ou artificiais, a sociedade que os engloba homogeneza as personalidades e,
em certa medida, nivela as necessidades (CARONE, 1992, p.92). O conceito material
considera que os direitos fundamentais so aqueles atribudos pela norma aos indivduos, de
forma a lhes garantir as condies mnimas de uma existncia digna. Ou seja, representam o
reconhecimento de necessidades que devem ser regulamentadas pelo Ordenamento Jurdico
na forma de direitos subjetivos.
Exatamente por representarem as mais importantes necessidades do indivduo e da
sociedade, os direitos fundamentais concretizam os valores que mais lhes so caros, tornando-
os por isso intangveis. Embora possam variar de acordo com o contexto histrico e social,
ser fundamental o direito que representar os pressupostos de uma existncia digna do ser
humano, sem os quais no h realizao, convivncia ou sobrevivncia possveis.
Pode-se perceber que os direitos fundamentais desnudam os principais anseios,
expectativas e perspectivas dos indivduos e da sociedade. Sua importncia manifestada
juridicamente pelas caractersticas que geralmente lhes so reconhecidas, indicativas de sua
posio privilegiada no Ordenamento: a consagrao em normas constitucionais,
inalienabilidade e a justiciabilidade; eficcia reforada frente aos demais direitos previstos na
Constituio, em razo do princpio da aplicabilidade imediata e da plena eficcia, previsto
pelo artigo 5, 1 da CF/88 (SARLET, 2004, p. 265), e seu efeito irradiante, j que os direitos
fundamentais quando concebidos como valores irradiam-se para todos os campos do Direito,
vinculando inclusive os particulares, para proteger as pessoas da opresso exercida pelos
poderes sociais no estatais, hoje difusos na sociedade (SARMENTO, 2003, p. 2005).
Vinculando a existncia dos direitos fundamentais a necessidades reais e
prementes dos indivduos e coletividades, impe-se reconhecer o seu carter universal,
considerando que os direitos fundamentais dizem respeito prpria condio humana, que
compartilhada por todos, com a liberdade e a dignidade que lhes so inerentes (BONAVIDES,
2002, p. 515)14, evidenciando ainda o seu carter histrico e relativo, j que os direitos
nascem em certas circunstncias de luta em defesa de novas demandas contra velhos poderes,
14 A mesma idia exposta por Joo Batista Lanari Bo (2003, p. 146) ao afirmar que o universal so aquelas singularidades que fazem pressentir a unidade da Humanidade.
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aparecem de forma gradual e gradualmente o seu contedo vai sendo explicitado (LAFER,
2004, p. 25).
Como o Estado efetivar a satisfao das necessidades individuais e coletivas?
Em primeiro lugar, por um comportamento omissivo, abstendo-se de interferir naquele mbito
das liberdades individuais; depois, atravs de prestaes positivas para efetivar os direitos
ditos sociais, ou de segunda gerao; e, finalmente, agindo conjuntamente aos membros
da sociedade, com base na solidariedade e na cooperao que devem presidir as relaes
humanas, que correspondem a terceira e quarta geraes de direitos.
1.3 Importncia e significado cultural dos direitos fundamentais A legitimao do Estado hoje no se assenta na raa, lngua ou em uma Cultura
imposta, mas no compartilhamento e aceitao de valores e princpios comuns pelos
indivduos e grupos, a despeito de suas diversidades (ROLLA, 2004, p. 135). Por outro lado,
falar em direitos fundamentais indagar sobre o papel do Estado democrtico contemporneo,
pois sua razo de existir buscar a efetivao mxima desses direitos, que se transforma na
medida de sua legitimidade (BONAVIDES, 2002, p. 4). Como bem destaca Bonavides (2002,
p. 534), a interpretao dos direitos fundamentais depende da concepo de Estado e de
cidadania, cristalizados em uma ideologia, sem a qual seriam ininteligveis.
Os direitos fundamentais so elementos de suma importncia no Ordenamento
Jurdico porque so os pressupostos elementares de uma vida digna e livre (BONAVIDES,
1990/1991, p. 1), explicitada atravs das suas trs funes: estrutural, legitimadora e
hermenutica. A funo estrutural decorre da circunstncia de que os direitos fundamentais
so a condio de existncia do Estado Democrtico de Direito e determinam o seu desenho
institucional, que deve ser voltado sua efetivao atravs de polticas pblicas.
A funo legitimadora decorre do fato de que os direitos fundamentais so um
parmetro de aferio da legitimidade do poder estatal e da prpria ordem constitucional,
alm de servirem de limites explcitos e implcitos ao exerccio dos poderes estatais
compondo, junto forma de Estado, ao sistema de governo e organizao do poder, o
ncleo material da Constituio (SARLET, 2004, p. 68). No se pode olvidar que o Estado
uma mquina criada para buscar a plena satisfao dos direitos fundamentais, e nisso reside a
sua legitimidade (CLVE, 2003, p. 388).
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Em sua dimenso objetiva, os direitos fundamentais possuem a eficcia vinculante
formal e institucional de delimitar o exerccio dos poderes pblicos, no s porque esto
excludos da sua esfera de disponibilidade, mas tambm por fixar deveres de atuao para
garantir as condies mnimas de existncia digna do ser humano, que so o pressuposto
material de sua efetivao. Como destaca Garzn Valds (1999, p. 150), os direitos
fundamentais so o umbral mnimo de negociao entre a sociedade, os poderes constitudos e
o indivduo, aqum do qual no h legitimidade possvel.
A funo hermenutica dos direitos fundamentais decorre da sua eficcia
irradiante pois, no Direito Brasileiro, possuem o carter principiolgico e axiolgico,
permitindo conceb-los no apenas como meros limites ou imposies atuao estatal, mas
um verdadeiro critrio hermenutico atravs do qual aferida a legitimidade e a licitude da
conduta dos entes pblicos e dos particulares (SARMENTO, 2003, p. 256).
A eficcia irradiante dos direitos fundamentais ocorre porque a Constituio
Brasileira est impregnada de valores humansticos, os quais devem permear toda a
elaborao e interpretao da legislao inferior, realizando uma verdadeira filtragem
constitucional, e se faz manifesta especialmente na determinao dos conceitos
indeterminados.
Reconhecer o carter axiolgico dos direitos fundamentais implica afirmar que a
sua interpretao baseada em valores e estimativas, com duas conseqncias destacadas por
Sarmento (2003, p. 272): primeira, os valores devem ser historicamente considerados, o que
condiciona o contedo dos direitos fundamentais s correntes valorativas de cada poca; e, em
segundo lugar, deve-se considerar que as tradies nem sempre so favorveis sua criao
ou efetivao, razo pela qual devem ser considerados como normas obrigatrias, sem o que
padecero de inefetividade. exatamente neste contexto desfavorvel que os direitos
fundamentais apresentam a sua importncia como fator de desenvolvimento e
aperfeioamento das instituies sociais, como um elemento transformador.
Quanto ao significado cultural, os direitos fundamentais representam conquistas
civilizatrias, explicitando e transformando o modo de vida da sociedade, alm de permitirem
a proteo de grupos especficos, mais vulnerveis, como as minorias tnicas, religiosas, que
devem ser protegidos e tambm beneficiados com polticas pblicas.
O conjunto dos direitos fundamentais so um indicador de desenvolvimento, e sua
realizao progressiva viabiliza a melhoria das condies de vida de indivduos ou grupos.
Evidentemente, no se trata de impor um modelo de desenvolvimento social, econmico e
37
cultural, mas de assegurar a cada Estado e aos povos o poder de se desenvolver segundo as
suas tradies.
Infelizmente, o progresso moral no mensurvel e no tem os mesmos
indicadores claros do progresso tcnico e cientfico, como destaca Bobbio (2004, p. 70), razo
pela qual a existncia de direitos e sua efetiva realizao podem servir de termmetro. A
ampliao quantitativa e qualitativa de direitos fundamentais, e sua indispensvel
concretizao, refletem a melhoria das condies de vida dos cidados, de forma gradual,
contnua e no reversvel (pela proibio do retrocesso).
Uma vez estabelecidos, os direitos fundamentais podem exercer as funes
sugestivas, apelativas, educativas e conscientizadoras para os cidados e os poderes pblicos,
expressando o desenvolvimento cultural e fundamentando as esperanas de aperfeioamento
social (KRELL, 2002, p. 28-29). Nesse contexto, a atuao subsidiria da sociedade civil
fundamental para superar a inadequao das estruturas burocrticas estatais, com fundamento
na reciprocidade entre cidados e na cumplicidade social (CANOTILHO, 2001-a, p. 114).
Por isso, ao lado da defesa das posies institudas, os direitos fundamentais
exercem funes instituintes de significaes sociais, devendo ser fortalecidos atravs da
permanente rememorao que permite mant-los e aperfeio-los (OST, 2004, p. 23).
1.4 Importncia e significado da Cultura para os direitos fundamentais
A interpretao de normas jurdicas realizada a partir de uma determinada
concepo de Direito. Para a Dogmtica jurdica clssica, a interpretao uma atividade
eminentemente lgica, que se utiliza de critrios formais (Lex Superior, Lex Posterior, Lex
Specialis) e valores sistmicos para determinar o sentido e o alcance das normas jurdicas,
conforme entendimento corrente entre os juristas, a partir da anlise do texto normativo
(mtodo gramatical), da sua coerncia interna (mtodo lgico), da sua consistncia com outras
normas do Ordenamento Jurdico (mtodo sistemtico), da sua contextualizao (mtodo
histrico) e da fixao da sua finalidade (mtodo teleolgico), que podem ser utilizados
sucessiva ou simultaneamente, especialmente porque nenhum deles , em si, suficiente ou
infalvel.
Entretanto, ao aplicar uma norma, o intrprete no segue apenas as regras da
Lgica tradicional: a Lgica aplicvel resoluo dos conflitos humanos, que exigem uma
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razo impregnada de perspectivas estimativas e critrios valorativos, depende diretamente do
contexto scio-cultural em que se insere a norma (SOSA, 1997, p. 221):
Tratar formas a priori, isto , essncias necessrias e universais por mtodos de lgica, gnoseologia e ontologia formais, parece sem dvida adequado e correto. Entretanto, resulta superlativamente discutvel, com certeza gravemente errneo, aplicar estes mesmos mtodos ao tratamento dos contedos jurdicos, da matria emprica que se originou em certo lugar e em certo tempo, em funo de necessidades histricas e em vista de certos fins particulares15.
Portanto, o contedo jurdico de uma interpretao, e sua adequao ao conflito
concreto, no pode ser obtido atravs de uma lgica puramente matemtica, dependendo sua
validade de uma conformidade tcnica (quanto subsuno correta do fato norma e
determinao precisa da extenso dos direitos e deveres) e tambm de uma conformidade aos
valores jurdicos do corpo social, que se encontram abrangidos pelo patrimnio cultural.
Atenta a essas necessidades, a Hermenutica Constitucional, essa maneira especial
de interpretar, significa uma mudana radical de mtodos de interpretao pois at ento, para
os positivistas, ela consistia em fazer um juzo dedutivo, de subsuno das normas aos fatos.
Com a razoabilidade e a proporcionalidade h um juzo indutivo, partindo de um conflito de
princpios/direitos fundamentais verificado concretamente, sendo passvel a soluo de ser
generalizada mas no formalizada.
Superando os tradicionais critrios dogmticos, o mtodo indutivo, proporcional e
razovel de solucionar conflitos, permite ao intrprete dar conta da equivocidade dos
princpios constitucionais, em verdade o reflexo do pluralismo de idias e tenses que existem
na sociedade, reconstruindo de forma contextualizada o sentido da norma atravs da
ressignificao. Nesse processo interpretativo ideal combinar os mtodos tradicionais com o
mtodo tpico16, dada a necessidade de perquirio permanente da realidade social e da
composio interesses sociais heterogneos (BONAVIDES, 2002, p. 452).
A Hermenutica Constitucional, e conseqentemente a interpretao de direitos
fundamentais, caracterizada pelo pluralismo de mtodos de interpretao que, alm dos
15 Traduo prpria. No original: tratar formas a priori, esto es, esencias necesarias y universales por mtodos de lgica, gnoseologa y ontologa formales, parece sin duda adequado e correcto. En cambio, resulta superlativamente discutible, con seguridad gravemente errneo, aplicar esos mismos mtodos al tratamiento de los contenidos jurdicos, de la matria emprica que se origin en cierto lugar y en cierto tiempo, al conjuro de unas necesidades historicas y en vista de ciertos fines particulares. 16 A tpica tambm pode ser tratada como uma tcnica indutiva muito til na determinao de conceitos polissmicos ou indeterminados e na concretizao de valores, alm de permitir a atualizao da norma frente s mudanas sociais (LEITE, 2002, p.44, 69).
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tradicionais acima referidos (gramatical, lgico, sistemtico, histrico e teleolgico), utiliza o
direito comparado, o mtodo emprico, a interpretao conforme, entre outros. Como bem
destaca Callejn (2004, p.246), a norma constitucional tem estrutura peculiar, e sua amplitude
e generalidade exigem a adoo de diversos mtodos interpretativos: a unidade metodolgica
da Hermenutica Constitucional no exige e nem significa a unicidade de mtodos, mas a sua
congruncia na interpretao17.
Ora, a Constituio um produto da Cultura porque os significados e categorias
das suas normas s podem ser interpretados em consonncia realidade social, que cultural,
alm do que os valores constitucionais tm origem scio-cultural (LPEZ, 2004, p.150).
Como ressalta Umberto Eco (1997, p. 28), todo texto uma imagem do mundo e possui um
contedo mnimo que no pode ser contrariado pelo intrprete sob pena de incorrer em
superinterpretao, pois as palavras tm um sentido convencionado, o que pode ser aplicado
tambm ao texto constitucional.
Por outro lado, a modificao da realidade social pode acarretar uma mudana na
interpretao do texto constitucional, e a conseqente necessidade de adapt-lo para evitar a
sua ruptura (FIGUEIREDO, 2004, p. 123). Portanto, a interpretao dos direitos fundamentais
condicionada pelo contexto cultural, no s porque a realidade social quem forja os
valores em que tais direitos baseiam-se, mas porque o intrprete um sujeito situado18 e
possui toda uma bagagem cultural que forma a sua pr-compreenso (FIGUEIREDO, 2004,
p. 124; COELHO, 2000, p. 14), reflexo do seu tempo e da sua Cultura. Por isso, vale a
advertncia de Sarmento (2003, p. 304), ao afirmar que:
...Conquanto carregue valores substantivos e transporte programas, a Lei fundamental deve ser dotada de plasticidade material suficiente para abrigar ideologias e cosmovises diferentes, sem optar de modo definitivo por nenhuma delas. Sob esse prisma, os direitos fundamentais no devem significar o engessamento da sociedade, cabendo-lhes, ao inverso, catalizar o debate entre idias e projetos divergentes, convertendo-se com isso em instrumentos de promoo do pluralismo.
A Hermenutica Constitucional, mais do que descobrir o sentido e o alcance do
texto normativo, deve perquirir o significado social da aplicao da norma constitucional, 17 No existe uma regra tcnica capaz de apontar qual ou quais os mtodos adequados interpretao mais eficaz em cada caso. Entretanto, o contexto cultural em que a norma jurdica atua pode antecipar o seu sentido ao intrprete, desde que esse esteja em sintonia com a realidade social (STRECK, 2003). 18 Tem razo Streck (2003, p. 108) ao afirmar que a tradio em que nasce o indivduo condiciona a sua concepo de mundo e, conseqentemente, a interpretao que faz das normas jurdicas: a inefetividade dos direitos fundamentais verificada no Brasil pode ocorrer porque esses so interpretados com velhos e inservveis paradigmas. Alm disso, no se pode esquecer que a prpria interpretao tem um contedo tradicional, revelado atravs dos adgios e dos brocardos jurdicos.
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como fator de desenvolvimento scio-cultural. A efetivao mxima dos direitos
fundamentais, que representam conquistas civilizatrias, o instrumento mais adequado
realizao dos valores mais caros sociedade brasileira, em especial do princpio da
dignidade da pessoa humana, que se realmente perseguidos poderiam provocar uma profunda
alterao da realidade social.
importante, tambm, destacar que essa realidade social multiforme,
multicultural, onde todos devem ser igualmente acolhidos e contemplados para realizar o ideal
da sociedade justa, fraterna e solidria, razo pela qual a interpretao e a concretizao dos
direitos fundamentais tambm no se dar de maneira uniforme.
O Poder Judicirio tem um importante papel na interpretao e efetivao dos
direitos fundamentais, no s porque lhe cabe a guarda da supremacia constitucional na via
concentrada ou difusa, mas tambm pela sua atuao na soluo de conflitos e, por que no,
na fiscalizao das polticas pblicas, ou da falta delas. Cabe-lhe fazer cumprir as polticas
estabelecidas nas leis ordinrias e na Constituio, exercendo uma funo scio-teraputica e
de promoo dos direitos fundamentais, a partir de sua prpria reinveno estrutural e cultural
e mudana dos seus paradigmas interpretativos, ali
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