o cÂncer infantil histórico · devido ao impacto do diagnóstico do câncer e do tratamento, “a...
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O CÂNCER INFANTIL
Histórico
Há quatro décadas o máximo que se poderia esperar de uma criança com câncer era
uma sobrevida de alguns anos. Este quadro mudou e o câncer infantil deixou de ser
uma doença inevitavelmente fatal. Atualmente cerca de 70% para todos os tipos de
câncer são curáveis (Wierner, L, Battles, 2006), chegando a 90% para alguns tipos de
tumor (Mitby, PA, Robison, LL, 2003). Embora estatísticas apontem que só entre 2 e
3% de todos os tumores malignos acometem crianças (INCA, 2008), eles constituem a
principal causa de morte infantil nos países desenvolvidos e, no Brasil, ficam atrás
apenas das causas por acidente (incluindo a violência). Uma atenção especial, portanto,
deve ser dada a esta doença, já que, segundo o INCA, era esperado para os anos de
2008/2009 um total de aproximadamente 10.000 casos novos em nosso país.
Efeitos tardios1
Estima-se um grande contingente de jovens e adultos curados de câncer na infância
(atualmente, 1 entre 450 adolescentes e adultos jovens no mundo, Monteleone, PM e
Meadows, AT, 2009). Esta realidade revela o problema dos efeitos tardios do
tratamento do câncer, cujos principais responsáveis são os agentes quimioterápicos (a
intensidade com que são administrados) e a radioterapia (em especial na região do
sistema nervoso central).
Seqüelas físicas mais comuns:
• neurológicas
• cardiopulmonares
• endócrinas
• músculo-esqueléticas
• infertilidade
• risco aumentado para segundas neoplasias
A partir de estudos que relacionam as seqüelas do câncer infantil com a qualidade de
vida, importantes alterações na terapêutica oncológica foram efetuadas. Por exemplo,
não se submete mais o paciente com leucemia à radioterapia do sistema nervoso
1 Efeitos tardios são quaisquer efeitos adversos do tratamento que surgem depois do final do
tratamento, ao longo do processo de desenvolvimento da criança e do adolescente (Monteleone, PM e
Meadows, AT, 2009).
central em função das seqüelas neuropsicológicas advindas deste procedimento; em
crianças com tumores de sistema nervoso central não é mais recomendado que se faça
radioterapia no neuro-eixo em menores de 3 anos, pois verificou-se que as sequelas
neurológicas eram muito severas nesta população, ainda que do ponto de vista estrito
da cura esta seja a melhor terapêutica a seguir.
Cura e qualidade de vida
O câncer infantil não deixou de ser uma doença grave. Seu tratamento tampouco
deixou de ser agressivo (quimioterapias incapacitantes, cirurgias extensas), longo
(pode durar até 30 meses sem recidivas) e dolorido (punções venosas às vezes diárias,
exames recorrentes como o líquor), de modo que seus efeitos secundários não ocorrem
apenas na esfera física-orgânica, mas também, e talvez sobretudo, nas esferas
emocionais e sociais das crianças (Moreira, 2002).
Quando uma criança é diagnosticada com câncer, “seu mundo de criança é
esfacelado bem no seu ponto nuclear” (Segundo Spinetta, JJ e Deasy-Spinetta, P,
1986).
A atenção às seqüelas psicológicas / sociais tem levado a investigações nestas esferas
mas, por serem recentes, alguns de seus resultados ainda são contraditórios e
inconsistentes (Wierner, L, Battles, 2006). Em relação à capacidade de adaptação dos
jovens/adultos tratados de câncer na infância, por exemplo, estudos apontam para um
número considerável de sobreviventes que apresentam índices elevados de distúrbios
psicológicos – depressão, ansiedade, problemas de comportamento, baixa auto-estima.
Outros estudos apontam para índices de funcionamento psico-social compatíveis com
o grupo controle (sem história de doença), ou ainda para scores acima da população
normal. Quando se constata que a população de sobreviventes do câncer infantil
apresenta dificuldades psicológicas – como a menor capacidade de estabelecer laços
sociais e controlar a própria vida – verifica-se que durante o tratamento houve
rompimento de laços sociais (como os escolares) e que a criança vivenciou uma falta
completa de controle do que lhe aconteceria.
Entre as dificuldades apontadas pode-se citar ainda:
• a excessiva dependência dos pais,
• o menor interesse em relacionamentos,
• a maior tendência a distúrbios emocionais e de comportamento,
• a preocupação constante com a saúde e com a possível volta do câncer,
• o menor desempenho escolar e no trabalho.
É recorrente que as lembranças do tratamento reapareçam constantemente para estes
sobreviventes, de forma inesperada e abrupta – às vezes na forma de pesadelos –
mesmo após anos de seu término (Wierner, L, Battles, 2006). Há uma tendência em se
compara estas lembranças ao Distúrbio de Estresse Pós-Traumático.
Estudos que apontam que não há mudanças na motivação interna e na sensação de
controle nas atividades cotidianas registram, no entanto, que os sobreviventes têm
menor satisfação em seus relacionamentos e uma questão importante relativa à
fertilidade. Este comportamento justifica-se pelas alterações na qualidade das relações
da criança no período do tratamento. Muitos pacientes que enfrentaram um câncer e
superaram esta experiência, acreditam estar mais aptos a lidar com adversidades e
acreditam ter melhor qualidade de vida.
O que é comum a todos os sobreviventes, no entanto, é a incerteza em relação ao
futuro e o temor em relação à volta do câncer. O bom funcionamento das relações
pessoais aparece também neste estudo no centro da qualidade de vida. Os efeitos
psicossociais do câncer na infância são mais evidentes para os sobreviventes de
tumores de sistema nervoso central, para os quais observaram maior dificuldade em
assumir uma vida adulta.
O papel da família
O modo de funcionamento familiar durante o período do tratamento determina a
presença ou não de sintomas psicológicos posteriores da criança (Spinetta, JJ, Deasy-
Spinetta, P, 1986). Dentre estes fatores que posteriormente produzem efeitos negativos
na saúde mental da criança, estão:
• uma família continente que permite que a criança expresse seus medos e se
sinta acolhida nas suas incertezas,
• uma família superprotetora que afaste a criança de todos os seus vínculos,
especialmente o escolar,
• uma família que se cale em relação ao que acontece durante o tratamento.
A cura do câncer infantil traz consigo o constante temor da recidiva, de tal modo que a
forma como se lida com esta ameaça determina a qualidade da adaptação e reinserção
da criança e sua família no período de sobrevivência.
Em relação à cura física sobrepõem-se as dimensões psicológica e social da cura.
Arrais, AR & Araújo (2000) constataram que metade dos pais de crianças curadas de
câncer entrevistadas por elas evitavam pensar no futuro de seus filhos, e interpretam
isto como se “a possibilidade da volta do câncer tivesse lhes roubado a capacidade de
desejar algo para o filho sobrevivente.” Em seus relatos sentem-se livres do
tratamento, mas não do câncer.
O final do tratamento e a cura
Do ponto de vista médico ainda é controverso em que momento se considera uma
criança curada de câncer – o critério mais adotado entre os pesquisadores é dois anos
após o final do tratamento ou 5 anos desde o diagnóstico, e ainda assim muitos deles
preferem o termo “sobrevivente” em lugar de “curado”. Isto porque o risco de uma
recidiva ou de uma segunda neoplasia é muito maior nesta população do que na
população em geral. O final do tratamento não significa um afastamento completo do
hospital, pois permanece uma rotina de consultas de controle e exames, que ainda
ocuparão a vida da criança e da família por alguns anos.
A cura, segundo Moreira (2002) não é algo que se dê instantaneamente com o anúncio
do final do tratamento. Devido ao impacto do diagnóstico do câncer e do tratamento,
“a cura da doença exige uma readaptação pessoal num processo que apresenta avanços
e recuos.” Para D. Brun (1987) a “morte” trazida pela doença não deixa de existir após
o final do tratamento, mas pode passar a vigorar ainda com mais força a partir de
então. A dificuldade em se tratar a criança curada de câncer como uma criança normal
é relatada por Brun como o índice de uma impossibilidade: por que ter que tratar como
normal uma criança que acaba de viver algo que foge muito do normal, que
transformou-se em função disto em algo que não pode voltar a ser o que era, e que
apresenta uma série de seqüelas e que ainda outras irão aparecer? Querer tratar a
criança que teve câncer como normal é, segundo Brun (1987), uma falácia, e daí a
dificuldade que todos encontram em fazê-lo. Talvez o ponto para que a criança se
reinsira na vida não seja tratá-la como normal, como se nada tivesse ocorrido, mas
tratá-la na sua diferença – naquilo que ela é, naquilo que ela se tornou.
A questão da escolaridade das crianças e dos sobreviventes de câncer assume um
papel central dentro das seqüelas psicossocias do câncer infantil. Ela é tomada
como uma das principais medidas relativas ao funcionamento psicossocial do paciente
curado de câncer na infância. Ao lado dos fatores estressores do tratamento, o
afastamento escolar neste período está diretamente correlacionado, no estudo de
Wierner (2006), aos sintomas de sofrimento psicológicos nos sobreviventes. O acento
é colocado não apenas no desempenho escolar comprometido pelas ausências, mas,
sobretudo, pelo rompimento de laços sociais significativos para a criança. Chekryn, J.
Deega (1987) aponta que o papel da escola é considerado uma das cinco áreas de
maior prioridade na pesquisa psicossocial do câncer infantil, e que a reabilitação
psicossocial da criança inclui o planejamento para a reinserção escolar. Segundo
Moreira (2002), a atenção à escolaridade da criança com câncer é fundamental para
que se possa minimizar as seqüelas psicossocias da doença e do tratamento. No ano de
1993 o comitê psicossocial da SIOP (Sociedade internacional de oncologia pediátrica)
lançou um guia de Orientações psicossociais em oncologia pediátrica. Neste manual
uma ênfase especial é dada ao papel da escolarização na reinserção social da criança
com câncer, desde o início do tratamento: “A reintegração da criança com câncer na
escola é uma parte essencial do programa de tratamento global. Inicia-se durante
a fase diagnóstica, prossegue durante o período de tratamento e continua depois
de terminado o mesmo. Apenas a cooperação entre a família, a equipe
profissional e os educadores, somando-se a um bem estruturado programa, pode
ajudar a alcançar esta meta e prevenir sérias conseqüências negativas.” E é papel
da equipe de saúde e educação entrar em contato imediatamente após o diagnóstico
com a equipe de ensino da criança diagnosticada. Para Gonçalves, CF & Valle, ERM,
1999, o prejuízo do afastamento escolar da criança com câncer não é apenas
educacional; a maior conseqüência deste afastamento é o isolamento social. Nas
recomendações dadas aos pais de crianças com câncer pela American Câncer Society
afirma-se a importância do retorno à escola o mais breve possível, uma vez que “a
escola não é apenas uma lugar de aprendizado, mas de prazer e amizade.”, e compara-
se a escola da criança ao trabalho do adulto: “os adultos possuem trabalhos que os
ancoram à vida – crianças têm a escola”. Numa pesquisa realizada por Valle, 1994 os
problemas escolares são apontados pelos pais das crianças curadas de câncer como
uma das principais conseqüências psicossociais do câncer e de seu tratamento.
Henning, J & Fritz (1983) aponta que uma bem sucedida volta à escola é decisiva
para o desenvolvimento futuro da criança, tanto intelectual quanto social, para
uma futura profissão e construção de uma família.
Apesar de haver estudos que apontam para um desempenho escolar destas crianças
após o tratamento semelhante ao das outras crianças, a maior parte dos estudos aponta
um déficit de desempenho escolar nas crianças tratadas de câncer, que pode se
aprofundar com o passar dos anos. A razão mais imediata e evidente deste déficit se
refere às seqüelas físicas, em especial neurológicas do tratamento, de pacientes
tratados por tumores de sistema nervoso central e que receberam radioterapia na região
do neuro-eixo (especialmente as crianças pequenas) e aqueles tratados por leucemia e
que receberam quimioterapia intra-tecal. Tais terapêuticas comprovadamente
produzem danos no sistema nervoso central que implicam em alterações nas funções
neuropsicológicas que participam do processo de aprendizagem, tais como memória,
atenção, armazenamento de informação nova, planejamento e organização, evocação
de informação visual, leitura (American Cancer Society). Além disto, dificuldades
motoras, visuais, auditivas podem dificultar a realização de tarefas escolares.
Mas o mais interessante é que os estudos não apontam o baixo desempenho escolar das
crianças que se trataram de câncer como a causa das dificuldades psico-sociais
posteriores, mas sim o afastamento escolar durante o período do tratamento e a
qualidade da reinserção escolar durante e/ou após o seu término. De tal modo que
mesmo o desempenho escolar é conseqüência tanto deste afastamento quanto de uma
reinserção mal sucedida. Em estudo realizado com 46 pacientes entre5 e 17 anos, por
exemplo, Henning (1983) verificou que as dificuldades de desempenho escolar eram as
que menos contavam entre as dificuldades enfrentadas pelos alunos no retorno à
escola. As principais delas eram as preocupações das crianças, seus medos de serem
zombadas pelos outros, de sua aparência modificada, de ter que falar sobre o câncer. A
importância do fator escola na vida infantil se refere fundamentalmente ao seu papel
social para a criança. Marchesan, EC, Bock, AMB et al (2009), em seu estudo sobre a
escola hospitalar apontam que na visão dos pacientes o que caracteriza
fundamentalmente a escola é a presença de colegas, de amigos, a tal ponto que a escola
no hospital não é vista como uma escola: “os amigos são possivelmente aquilo que
marca de forma mais intensa os sentidos acerca da escola de origem.”
O grande número de faltas na escola, se evidentemente justificado pela intensidade do
tratamento, freqüência de idas ao hospital, hospitalizações quando necessárias,
cirurgias, etc., não é, segundo Stevens, MCG, Kaye, JI et al (1988), o único
responsável pelo afastamento da criança da escola – a ansiedade e a criação de uma
relação de dependência entre os pais e a criança também estão entre estes fatores, sua
insegurança em confiar seu filho doente à escola, em acreditar na importância da
manutenção da vida escolar durante o tratamento ou em acreditar na capacidade
cognitiva da criança após o tratamento (Ross, JW & Scarvalone, SA,, 1982); as
dificuldade psicológicas da criança retornar à escola durante e após o tratamento, tais
como insegurança, vergonha por sua aparência, fobia, fadiga - apesar de que a maioria
dos estudos apontam que a criança doente quer muito retornar a escola e permanecer
nas atividades escolares durante o tratamento, e que ressente de seu afastamento
(Chekryn, 1987, Gonçalves e Valle, 1999); e por fim a falta de preparo da equipe de
ensino, em especial do professor em receber uma criança doente ou curada de câncer.
Os estudos são unânimes em apontar para a necessidade de a criança retornar à
escola ainda durante o tratamento, o mais cedo possível, tanto por razões
educacionais quanto sociais (Stevens, MCG, Kaye, JI, et al, 1988, Ross, 1982 ), dado
o papel nuclear que a escola representa na vida de uma criança –“a escola é o lugar de
trabalho da criança” (Chekryn, 1987). O afastamento das atividades escolares
durante o tratamento pode resultar num fracasso de desempenho durante este
período, que poderá comprometer a vida acadêmica futura da criança (Ross,
1982). Num momento em que a criança perde quase que completamente o controle de
sua vida, poder ir à escola e realizar as tarefas exigidas é uma forma de manter este
controle numa esfera de sua vida (Ross, 1982). Henning (1983) chega a afirmar que
todo o esforço deve ser feito para que a escola continue a ser uma experiência valorosa
para a criança, mesmo quando o câncer estiver em estagio avançado. Segundo Stevens
(1988) a volta o mais rápido possível para a escola permite um retorno à normalidade
para a criança com câncer, e aponta que para os pacientes curados os efeitos do
afastamento escolar durante o tratamento estão entre as mais importantes
conseqüências do câncer.
Programas especiais de educação para crianças com câncer vêm sendo criados ao redor
do mundo no intuito de permitir que o afastamento destas crianças da escola seja o
mais breve possível e que seu retorno se dê de modo satisfatório. Estudos mostram a
eficácia destes programas. Em estudo com amostra de 12.000 sobreviventes há mais de
5 anos do diagnóstico Mitby (2003) investigaram utilização do serviço de educação
especial e o desempenho acadêmico dos sobreviventes. Teve por resultado que parte
considerável dos sobreviventes utilizou na sua vida escolar o serviço de educação
especial (23%), em especial aqueles diagnosticados antes da idade de 6 anos e os
tratados de tumores de sistema nervoso central e leucemia (quimioterapia intratecal e
radioterapia craniana). Apontou também que sobreviventes de alguns tipos de câncer
não chegaram a concluir o ensino médio, mas que quando acompanhados pelo serviço
de educação especial esta taxa de abandono escolar não ocorria, apontando para a
conclusão de que crianças diagnosticadas com câncer devem ter um acompanhamento
escolar rigoroso para que se possa detectar precocemente dificuldades a fim de saná-
las a tempo de impedir uma desistência do processo acadêmico. A realidade da criança
brasileira com câncer difere, no entanto, significativamente dos relatos dos artigos
internacionais. Por aqui é comum a interrupção da vida escolar se não durante todo o
tratamento ao menos em boa parte dele (Marchesan, 2009), tornando a volta à escola
ainda mais difícil para a criança. O abandono escolar ainda é uma realidade para as
crianças com câncer no Brasil, ao contrario do que ocorre nos paises desenvolvidos. O
Brasil carece de programas específicos para permitir a continuidade da vida escolar
durante o tratamento oncológico infantil. (Gonçalves e Valle, 1999) Em relação à
realidade brasileira, Moreira (2002) afirma que “a escola não está preparada para
receber a criança doente de câncer.” A questão da inserção escolar de crianças tratadas
de câncer é algo ainda novo no meio da educação, não havendo legislação específica
para a educação de crianças com câncer. Apesar disto, ênfase na importância de
permanecer na escola durante o tratamento é algo que está tomando corpo no Brasil, o
que nos aponta insistentemente os trabalhos do GACC de Ribeirão preto.
A figura do professor aparece, nos estudos, como central para a questão da
reinserção escolar da criança com câncer. Grande parte deles aponta a
desinformação do professor a respeito do câncer e seu tratamento como um dos
obstáculos a esta volta à escola. Esta falta de conhecimento coloca o professor
muitas vezes diante de dilemas a respeito do seu aluno: o que pode exigir do aluno
em termos pedagógicos e disciplinares? Como dispensar uma atenção especial a
ele sem prejudicar os demais? Como falar com a criança e com os colegas a
respeito do câncer? Como agir se a criança passar mal em sala de aula?
Além da desinformação as pesquisas apontam também para o envolvimento emocional
do professor que recebe a notícia de que um de seus alunos está com câncer.
(Chekryn,1987). Stevens (1988) afirma que os professores recebem a notícia do câncer
com o mesmo impacto emocional que os familiares ou amigos próximos da criança.
Ross (1982) aponta que o professor tenderá a significar a doença da criança a partir de
experiências prévias de perdas de pessoas próximas por câncer. Vários estudos
apontam que uma das principais dificuldades trazidas pelo diagnóstico de câncer é o
estigma de morte que ainda o acompanha. Checkryn (1987) explica o impacto
emocional causado por uma criança com câncer no professor como oriundo da
percepção do câncer como uma doença que coloca em risco a vida. Este estigma
também participa das dificuldades que o professor encontra. Gonçalves CF & Valle,
ERM (1999) aponta o dilema que vivem as professoras ao ter que “sufocar o desejo de
proteger em função da necessidade de tratar a criança com naturalidade.”, de não saber
a medida certa no trato com a criança doente e de muitas vezes comparar internamente
o doente com seus próprios filhos. Ortiz, LCM e Freitas (2002) apontam que a
superproteção de professoras com alunos curados de câncer pode ser devida a um
posicionamento maternal que elas assumem em relação a eles. “Não acho que ele está
dando tudo de si, mas não sei se posso esperar isto dele” é a fala de um dos professores
entrevistados por Cherkyn (1987). Outro afirma que a pior situação que teme enfrentar
com seu aluno com câncer seria ele ter se esforçado ao máximo e ainda assim não
conseguir atingir os critérios para passar de ano – reprová-lo, na visão de alguns
professores, seria algo muito difícil de fazer. O dilema não apenas profissional, mas
emocional que vivem estes professores é novamente expresso por um entrevistado de
Chekryn (1987):
“As vezes acho difícil ser rigoroso com ele porque ele faz
bem o seu trabalho de escola. Mas há dias em que ele
chega e seu rosto está tão cinza e ele parece tão para
baixo.... eu penso, o que importa a escola? Sua mãe diz
não!, faça-o cumprir suas atividades. Mas alguns dias eu
sinto pena dele... eu deixaria ele fora disso... Então eu fico
um pouco preocupado, não estou sendo coerente com ele.”
Encontramos também o contrário, professores que se recusam em fazer concessões à
criança doente alegando que “o padrão deve ser mantido”. (Henning,1983)
Valle, 1999 aponta que as dificuldades que vivem os professores diante da criança com
câncer pode ser explicado pelo impacto que causa este diagnóstico numa criança, uma
vez que a criança representa a vida, o futuro, sendo a ameaça de morte de uma criança
contrária à ordem das coisas. Parte da dificuldade das professoras origina-se também
do distanciamento que muitos pais tomam da escola neste momento – por não quere
falar sobre a doença do filho – deixando os professores sozinhos na tarefa de levar
adiante a escolarização da criança. (Valle, 1999, Ross, 1982) Segundo estudo apontado
por Gonçalves &Valle (1999) realizado em Campinas com 24 crianças com câncer,
seus pais e professores, todos os professores destas crianças julgavam-se
despreparados para trabalhar com estas crianças, necessitando tanto de informações a
respeito da doença quanto de apoio emocional para assumir este papel. O professor não
está preparado nem profissionalmente, nem emocionalmente para lidar com uma
criança doente em sua sala de aula (Ross, 1982). Chekryn (1987) aponta também que
os professores pedem mais do que apenas informações gerais a respeito do câncer e de
seu tratamento. Sua principal demanda era a respeito das mudanças emocionais
causadas na criança doente, e especificamente no seu aluno. Queriam saber quais as
perspectivas daquela criança e de que modo a escola poderia participar destas metas.
Para Cyphert, FR (1977) um dos principais obstáculos à reinserção escolar da
criança com câncer é a dificuldade do professor em aceitar uma criança nestas
condições – por medo da doença, por sua dificuldade em lidar com a morte, pela
crença de que o câncer seja transmissível, pela lembrança da perda de um ente querido
por câncer. Diante de uma criança com câncer muitos professores reagem com
hostilidade. E no momento em que estas dificuldades, estas crenças, estes pensamentos
do professor está agindo diante de seu aluno doente, percebemos o obstáculo que elas
representam para a reintegração deste aluno no processo educacional. Nas palavras de
Cyphert: “um professor é para a criança uma das pessoas significativas. O que ele
comunicar verbalmente ou não-verbalmente afetará materialmente o conceito que ela
tem de si mesma.”. Tone, LG, Valle, ERM et al (1990) em sua Carta ao professor de
uma criança com câncer apontam falas de pais ali que mostram o efeito da posição do
professor em seu aluno tratado de câncer: “o Carlinhos ficou bravo porque a professora
deu menos lição para ele que do que para os outros – “quero ser igual”; “O Ari ficou
feliz porque levou castigo na escola como os outros meninos.”
Uma das formas de sanar este despreparo da escola e do professor para lidar
com o aluno com câncer ou sobrevivente de câncer tem sido a aproximação da equipe
de saúde que tratou a criança com a escola onde ela estuda. Um grande número de
pesquisas aponta para a necessidade de uma comunicação estreita entre hospital e
escola desde o início do tratamento oncológico, comunicação que deve ser estendida
ao período pós-tratamento. (Stevens, 1988, Gonçalves, 1999, Larcombe, 1990,
Baskin,1983, Moreira,Checryn, Gonçalves e Valle,1999....). Em estudo visando avaliar
a transformação ocorrida em professores ao participar de um workshop a respeito do
câncer infantil, Baskin, CH, Saylor, CF (1983) concluiu que importantes mudanças
ocorreram na percepção dos professores em relação a suas habilidades para lidar com
seus alunos com câncer: estavam mais bem informados a respeito dos impactos físico e
emocional do câncer, mais tranqüilos e confiantes para lidar com a criança doente.
Moreira (tese) em sua pesquisa mostra que a informação a respeito do câncer no
âmbito escolar deve ser destinada não só aos professores, mas aos colegas que irão
receber a criança doente, e que este trabalho informativo suaviza de modo relevante a
ansiedade e o medo que a criança com câncer apresenta ao retornar para a escola e as
indagações das outras crianças a respeito da aparência física do colega que, quando
mantidas sob a forma de enigma tendem a gerar reações hostis por parte delas. Conclui
que o trabalho informativo é uma importante ferramenta para a reinserção escolar das
crianças com câncer. A principal forma de auxiliar os professores que têm uma criança
com câncer ou curada de câncer, tem sido apontada pelos estudos como uma
associação entre a equipe de saúde (o hospital) e a escola: “o retorno bem sucedido à
escola de pacientes com câncer pediátrico é conseguido quando a família, a escola e o
centro de tratamento trabalham juntos.”
Alguns professores entrevistados por Chekryn (1987) relataram que fizeram
modificações em suas aulas em função das necessidades de seu aluno doente, levando
em conta que aquilo que é uma necessidade para um aluno varia consideravelmente em
relação a outro aluno – isto é, a adaptação a ser feita por um professor em sua aula
diante de um aluno com câncer não será a mesma que terá que fazer outro professor
diante de outro aluno nestas condições. Henning (1983) também aponta nas suas
sugestões de intervenção que a construção de um protocolo rígido para abordar o
retorno da criança com câncer é inútil – as intervenções devem ser individualizadas
para cada criança, cada família, cada escola (Ross, 1982 Chekryn,1987).
No estudo que estamos propondo, queremos focalizar o papel do professor nesta
reinserção escolar da criança diagnosticada de câncer, no que se refere à sua concepção
do câncer infantil. Várias razões apontadas acima nos conduzem a este tema: o papel
da escolaridade na definição da condição psico-social presente e futura da criança com
câncer; o papel central que ocupa o professor no processo de reinserção escolar destes
alunos; o comprovado despreparo da equipe escolar em relação às especificidades de
aprendizagem e sociais da criança com câncer; o grande número de abandonos
escolares durante o tratamento de câncer infantil no Brasil; a grande escassez de
estudos que focalizem tanto a questão da reinserção escolar da criança com câncer
quanto especificamente o papel do professor nesta reinserção. Apesar da importância
crescente atribuída às seqüelas psicossociais do câncer infantil em todo o mundo, ainda
é reduzido o número de estudos brasileiros nesta área. Em estudo sobre as publicações
brasileiras relacionadas a aspectos psicossociais do câncer infantil entre 1998 e 2004,
Silva, GM. Teles, SS & Valle (2005) analisou 56 publicações com esta temática dentre
os quais apenas 4 trabalhos tiveram como temática a escolaridade da criança com
câncer, e nenhum deles abordando diretamente a questão do professor da criança com
câncer.Em estudo realizado a respeito das publicações internacionais e brasileiras
acerca da condição psicossocial do adulto jovem tratado de câncer na infância, Teles e
Valle (2009) não encontrou qualquer publicação brasileira a este respeito.
Este projeto se origina de minha experiência de 12 anos como psicóloga do Instituto de
Oncologia Pediatria GRAACC/UNIFESP e de uma experiência atual com um projeto
de inclusão escolar em escolas públicas da cidade de são Paulo, de crianças que
terminaram o tratamento oncológico há mais de 2 anos. Através destas experiências
pude conhecer com alguma profundidade a realidade do tratamento oncológico
infantil, o impacto físico e emocional vivido pelas crianças e familiares, o afastamento
escolar e suas conseqüências desastrosas para a criança doente, e as dificuldades
marcantes de reinserção social de adolescentes e adultos/jovens que terminaram o
tratamento oncológico há muitos anos. São vários aspectos de uma realidade dolorosa
que ainda está para ser investigada e transformada. A escolha da escola como ponto de
investigação, dentre outros possíveis, está na importância, que notadamente se
comprovou pela literatura, da questão escolar para a criança com câncer: os danos
causados pelo afastamento escolar, as perspectivas que se abrem ao se apostar na
capacidade escolar de uma criança doente, o papel determinante de uma fracassada
reinserção escolar após o diagnóstico no estatuto psico-social destas crianças no futuro.
O professor aparece como a figura que, por representar a escola para a criança, é
aquele que dispõe de instrumentos para permitir ou inviabilizar o retorno à vida escolar
da criança acometida de câncer. Tal investigação poderá ajudar na orientação de
profissionais da saúde que trabalham com estas crianças, na proposição de modelos de
parceria entre hospital-escola, centrados nas necessidades dos professores que mais
diretamente lidam com estas crianças. Queremos também investigar o imaginário do
professor, reflexo talvez de um imaginário social que aparentemente ainda vige nos
dias de hoje, na associação do câncer à morte. Nada mais pernicioso para uma criança
que luta por sua vida, encontrar-se com um professor que a vê sem possibilidades de
futuro. Será que o paradoxo da cura, apontado por Arrais e Araújo, não está em jogo
também na esfera social da vida da criança, em especial na escola? será que as outras
cianças, os professores e diretores também não vêem com reticência o anúncio da cura
do câncer de seu aluno? Para Ross e Scarvalone, 1982 parte da tensão emocional que
vivem os pacientes e familiares com câncer origina-se do estigma social e do medo que
ainda evocam esta doença. A significação de morte do câncer é também para segundo
eles, a principal dificuldade com que o professor da criança com câncer tem que lidar.
Para Françoso, citada por Gonçalves, 1999, o câncer continua a ter nos dias de hoje
uma significação de morte.
Vamos utilizar como ferramenta teórica para investigar a concepção do
professor da criança com câncer na escola a noção de imaginário tal como formulada
pela psicanálise de J. Lacan. Vale lembrar que no levantamento bibliográfico feito por
Teles e Valle (2005) a respeito das publicações brasileiras e internacionais em relação
a aspectos psicossociais do câncer infantil entre 1998 e 2004, nenhuma das pesquisas
se fez sob o referencial teórico da psicanálise. Talvez esta seja uma contribuição a mais
deste estudo.
II -Fundamentação teórica
No início de seu percurso profissional, o jovem psiquiatra J.
Lacan defrontou-se – como tantos outros – com a clássica oposição entre a psicogênese
e a organogênese que concorriam na explicação dos distúrbios nervosos. Em sua Tese
de doutorado2 (1932), em que descreve o caso de uma jovem senhora paranóica, Lacan
se apodera da noção de personalidade na tentativa de escapar à oposição mencionada,
dar início a uma nova teoria do sujeito não idêntico ao eu consciente da psicologia, e
encontrar uma nova explicação para as enfermidades psíquicas. Esta noção é
expurgada de qualquer sentido fenomenológico remetido a uma interioridade, para
ganhar com Lacan um sentido novo ao atribuir-lhe uma gênese social, um estatuto de
articulador do meio social no homem. O que se vislumbra é um sujeito que não seja
identificado nem a uma interioridade inacessível, “espiritual”, e tampouco a ser mero
efeito de um organismo em funcionamento (pura materialidade). Lacan visa descobrir
uma região teórica em que seja possível pensar uma relação indissociável e não
hierárquica entre a subjetividade (o desejo) e o “objeto” (a “objetividade”). O “social”é
o que permite a Lacan considerar o “sentido” tão caro à fenomenologia sem ter que
toma-lo como fruto de uma interioridade “espiritual” e portanto ilusória. Ao contrário
também dos estruturalismos, que ao descobrir a determinação do sujeito pela estrutura
recusam de modo absoluto a categoria de sujeito, Lacan é original ao postular a
existência de um sujeito não autônomo – prenuncio do que será o sujeito do
inconsciente. Um sujeito determinado por algo que o ultrapassa, por algo que
necessariamente desconhece – tal o sujeito da psicanálise. Um “sujeito dependente”,
diz Ogilvie3. Dependente do que? Determinado pelo que? A resposta a esta pergunta
assumirá variações ao longo da obra de Lacan, que não se desviarão, todavia, desta
primeira formulação feita em 1936: “a natureza do homem é a sua relação ao
homem”4. O meio humano no qual o sentido de seus atos e pensamentos se estabelece
e torna-se possível, é a relação a outro homem – a ‘sociedade’, neste momento da obra
de Lacan.
2 Sigo aqui as análises de B. Ogilvie em A formação do conceito de sujeito 3 Ogilvie, op. cit., p. 46 4 Lacan, J., Au dela du príncipe de réalité, citado por Ogilvie, op. cit, p. 88
Depois da Tese, o “social” que ali se tematiza será abandonado,
e no seu lugar conceitual, erigido o conceito de imaginário – inicialmente pensado no
campo da biologia e válido, portanto, para todas as espécies animais, posteriormente
reformulado como registro próprio da realidade humana. Da sociedade em questão na
Tese, Lacan passa para a “família” nos “Complexos Familiares”, para chegar ao
“imaginário” no Estádio do Espelho, para futuramente situar neste lugar a linguagem.
Em todas estas teorizações (social, família, imaginário e linguagem) o que está no
centro é a dimensão da alteridade como razão da constituição do sujeito5.
A noção de imaginário em Lacan nasce a partir da sua
concepção do estádio do espelho. Inicialmente formulada em 1936 (comunicação não
publicada) , terá sua versão acabada em 1949 (Escritos). O que está em jogo neste
texto, como o próprio título aponta, é a formação do eu a partir de uma experiência
chamada estádio do espelho. Este eu que se forma nesta experiência não é, nos adverte
Lacan de início, assimilável ao que a tradição filosófica e psicológica designam por
consciência. A experiência a que Lacan se refere é aquela descrita por Wallon, da
criança diante da sua imagem no espelho. A criança humana, diferentemente de
qualquer espécie animal, possui uma reação única diante de sua imagem no espelho:
reação de júbilo, de alegria, que dá início a uma série de gestos em que a criança
parece reconhecer a correspondência entre seus movimentos e os movimentos da
imagem. Para Wallon este é o momento em que se forma para a criança a noção de
corpo próprio. Sua perspectiva, todavia, é cognitiva – trata-se de postular que esta
noção ocupa um lugar central no desenvolvimento da consciência humana em direção
a uma apreensão progressivamente mais fiel da realidade. A perspectiva de Lacan é
completamente outra; serve-se desta experiência para mostrar o que eu humano é uma
função marcada desde seu nascimento pela alienação porque ele se forma por
identificação a uma imagem de seu corpo que não corresponde à experiência que tem
deste mesmo corpo. O que está em jogo para Lacan quando trata da imagem no
espelho é o papel formador desta imagem, isto é, não há um “eu” que anteceda o
aparecimento desta imagem; o eu é posterior à identificação – vê-se aqui toda a
diferença da imitação para a operação de identificação.
O que dá sustentação teórica a Lacan para formular o estatuto da
imagem no homem como formador de seu psiquismo, são dois conceitos derivados da
5 Ogilvie, op. cit. P. 102
biologia: a noção de meio e a noção de prematuração. Uma das maiores contribuições
do biólogo alemão J. Uekull (1864-1944) foi a investigação de como os organismos
percebem seu ambiente e como esta percepção determina seu comportamento. A noção
de “meio” (Unwelt) significa que para cada espécie há um meio próprio, de tal modo
que a realidade de um cavalo não é a mesma que a realidade de uma ameba, que não é
a mesma realidade que a do homem6. O meio de comportamento próprio para o vivente
é um conjunto de excitações que tem valor e significações específicas. Ou seja, há um
imbricamento entre o organismo e o meio, e não uma ação unilateral das excitações
externas sobre o organismo, pois para que estas excitações ajam sobre ele, é preciso
que o organismo se interesse por elas, que ele as perceba e se volte para elas. Não há
uma passividade do sujeito em relação ao meio, e nem uma separação absoluta entre
eles – é isto o que o conceito de Umwelt trás para Lacan. Para Lacan este conceito
permitirá afirmar que o meio próprio do homem é a cultura. Ora, esta diferença entre
um real puro suposto e o meio próprio a cada espécie7 é o que Lacan designa, no
seminário 1 como ‘imaginário’. O imaginário neste sentido não é prerrogativa humana
– mas terá características próprias no homem.. O imaginário é o que dá consistência ao
meio, o que nodula a relação entre o indivíduo e a realidade. Não é nem algo interior,
nem algo exterior. As imagens não são puramente mentais, tampouco algo que emane
dos objetos. O exemplo da maturação das gônadas da pomba é bastante elucidativo:
para que a pomba possa, em dado momento de seu desenvolvimento atingir a
maturidade sexual, é preciso que ela veja um outro indivíduo de sua espécie. O mesmo
efeito pode ser obtido se a colocarmos diante de um espelho. A imagem de outra
pomba por si só não produziria esta maturação se este não fosse o momento biológico
deste acontecimento, e esta maturação não ocorreria jamais se a imagem de outra
pomba não aparecesse para o indivíduo. A imagem, é assim, o solo próprio de todo
animal; é, propriamente, o seu meio. A imagem substitui a realidade, tornada a partir
6 “O meio do qual o organismo depende é estruturado, organizado pelo próprio organismo. O que o meio oferece ao ser vivo é função da demanda. É por isso que, daquilo que aparece ao homem como um meio único, diversos seres vivos extraem, de modo incomparável, seus meios específicos e singulares. Aliás, enquanto vivo, o homem não escapa à lei geral dos seres vivos. [...] de sorte que o meio ambiente, ao qual se supõe reagir, está originariamente centrado nele e por ele.” (Canguilhe, La connaissance de la vie, citado por Ogilvie, 71). 7 “De fato, enquanto meio próprio de comportamentos e de vida, o meio dos valores sensíveis e técnicos do homem não tem em si mais realidade do que o meio próprio de um crustáceo ou de um rato cinzento. A qualificação de real só pode, a rigor, convir para um universo absoluto, o meio universal de elementos e movimentos verificado pela ciência, cujo reconheciemtno como tal se acompanha necessariamente da desqualificação, a titulo de ilusões ou erros vitais, de todos os meios próprios subjetivamente centrados, inclusive o do homem.” (ogilvie 72)
de então, inacessível. Mas até aqui isto vale para tanto para o homem como para os
animais.
Será o conceito de prematuração do bebê humano, originado
também de um biólogo, Bolk, o que possibilitará a Lacan estabelecer o que é próprio
ao imaginário humano, pois é esta prematuração que tornará inteligível a operação de
identificação à imagem, a função formadora da imagem para o homem. Se a noção de
meio permite a Lacan estabelecer a relação com o outro (o “social”) como a realidade
própria do homem, é o inacabamento próprio do indivíduo humano ao nascimento o
que dará a este meio o estatuto de determinação, de causa da subjetividade. O que o
animal não faz é tomar-se como a imagem, tomar-se como o outro. O nascimento
“incompleto” em termos de maturação e de instintos, faltoso, do ser humano determina
que este ser seja particularmente aberto às determinações do “meio”, do “social”, da
“imagem”. Esta é uma idéia fundamental, que não estava na Tese: o social não é algo
que vem a se acrescentar no homem, “mas vem ocupar o lugar de uma carência”8, e é
por isto que terá um papel constituinte no psiquismo humano. É neste lugar de falta, de
carência, de imperfeição que Lacan encontrará o ponto de apoio para conceitualizar o
lugar da causa da subjetividade: o social, a imagem, o simbólico, o Outro. Ora, a
primeira determinação deste meio se faz sob a forma de uma imagem, imagem que se
apresenta para a criança, imagem na qual a criança será capturada, imagem sobre a
qual constituirá seu eu. A criança humana se torna algo a partir da imagem, da
identificação á imagem – é isto que explica a reação de júbilo da criança diante de sua
imagem, a propriamente dizer, alegria diante de seu nascimento como sujeito. Não há
algo preexistente, em termos de subjetividade, a esta operação de identificação. 9 É isto
que faz Lacan afirmar que o eu é outro: “O homem se vê, se concebe como outro que
não ele mesmo.” 10 Aquilo que deveria representar nossa interioridade mais essencial
tem sua origem num fora, e portanto a autonomia do eu não passa de uma ilusão – tal a
subversão que Lacan estabelece na categoria do sujeito. O sujeito não pré-existe ao
mundo das imagens, mas é antes constituído por ele. Mas o alcance é ainda maior: não
se trata apenas da constituição do eu, mas da própria realidade humana; o que está em
8 Ogilvie, op. cit., p. 92 9 “o conceito de identificação... que implica que uma realidade aceda à apreensão de sua identidade numa outra, ou ainda, que esta alteridade venha lhe dar existência e conteúdo, elimina todo o confronto entre um interior e um externior.” (Ogilvie, 96) 10 Lacan, J., Seminário 1, citado por Ogilvie, op. cit., p. 117
causa é “a estrutura ontológica do mundo humano.”11 O “espelho” não é aqui uma
experiência particular, datada historicamente: “é todo e qualquer comportamento de
um outro que lhe responda”12
O imaginário, neste momento da obra de Lacan, constitui a
pedra fundamental da constituição psíquica: “ a identificação a uma imago é a relação
psíquica por excelência”13 . Mas há outro ponto a ser debatido: se a experiência do
espelho não é uma experiência concreta, que imagem é esta, onde ela se situa, imagem
que constitui o núcleo do eu da criança? Este é um ponto fundamental para a
concepção do imaginário: esta imagem, quem a fornece é um outro humano e por esta
razão, é uma imagem investida de desejo. O espelho, a bem dizer, é um outro humano
na sua face de desejo, um outro desejante - a mãe, no momento da constituição do
aparelho psíquico. A imagem com a qual a criança se identificará será a imagem
fornecida por este outro, como aquilo em relação ao qual seu desejo se estabelece,
como aquilo que corresponderia ao objeto deste desejo. O que nos permite
compreender esta relação da imagem com o desejo do outro é a noção freudiana de
narcisismo. É no texto introdução ao narcisismo que Lacan irá encontrar a
fundamentação teórica para estabelecer a constituição do eu a partir da identificação a
uma imagem. Neste texto Freud postula que o narcisismo é um achado clínico
derivado do que ocorre no momento da desestruturação esquizofrênica: a retirada do
investimento libidinal dos objetos e o armazenamento desta libido no eu. Isto o obriga
a admitir que o eu pode ser objeto da pulsão sexual (até então era concebido apenas
como sede das pulsões de auto-conservação). O eu é assim objeto dentre os objetos.
Ora, diz Freud, se a introversão da libido no eu ocorre no momento do surto,
configurando uma situação narcísica secundaria, é necessário supor que houve um
momento inaugural em que o eu foi tomado como objeto da pulsão sexual, momento
de sua constituição – narcisismo primário. O eu não está dado desde o início, nos diz
Freud, ele é constituído por uma operação psíquica. Então, nos diz Freud, o narcisismo
primário da criança é constituído através do amor dos pais, que colocam em cena o seu
próprio narcisismo abandonado da infância na criança que agora surge. A criança
constitui o seu eu, o seu eu-objeto-de-amor naquilo que os pais investem nela em
função de seu próprio narcisismo, do amor pleno que um dia também lhes dirigiram.
11 Lacan, J., O Estádio do Espelho, p. 96 in Escritos 12 Ogilvie, op. cit., p.111 13 Lacan, J., Quelques réflexions sur l’ego, citado por Ogilvie, p.112
Podemos dizer que a criança se identifica a este objeto amado pelos pais – um dos
modos de amor narcísico da mulher, nos diz Freud, é o amor pelo14 filho; Lacan dá
apenas um passo a mais: este objeto amado pelos pais constitui uma imagem, com a
qual a criança se identifica: imagem de perfeição, de onipotência, de plenitude. A esta
identificação corresponde a formação do eu ideal. O outro que fornece a imagem com
a qual a criança se identifica é, assim, o outro do amor – o amor é relação humana por
excelência, nos diz Lacan no seminário 1. Em outras palavras, o “social” é antes de
tudo, a relação de amor. Este é o ponto em que se pode articular, como faz Lacan, o
imaginário com o sexual; a imagem é o que realiza o que Freud chama de “elaboração
psíquica”15 – trabalho de ligação da libido no aparelho psíquico.
Este “valor” do imaginário de um outro sobre a criança é,
portanto, constituinte de sua subjetividade quando este ‘outro’ é a mãe. Dias (2001)
em pesquisa acerca dos efeitos psíquicos nas mães do diagnóstico em crianças com
tumores de sistema nervoso central, aborda a questão do dano imaginário causado na
mãe que recebe o diagnóstico de câncer de seu filho, e aponta para as conseqüências
deste dano para a criança. A constituição do sujeito, diz Dias (2001), deve ser pensada
por duas perspectivas: a da criança em vias de se constituir e da mãe, primeiro outro
com o qual a criança se relaciona. Na perspectiva da criança, dada sua prematuridade,
a constituição do que ela será, dependerá do que lhe for disponibilizado pelo outro que
a mãe representa. Isto que a mãe lhe disponibiliza é um discurso, uma linguagem, que
significa para ela o que ocorre com seu corpo, com seus sentimentos. Este discurso lhe
informará sobre o que o outro deseja dela, o que a mãe espera dela, para que ela possa
se conformar a este desejo, primeiro ponto de ancoragem de sua subjetividade. Da
perspectiva da mãe, o lugar que a criança ocupa em seu desejo deve ser pensado
através das questões do narcisismo e da castração. A criança ocupará o lugar daquilo
que na mãe ficou impedido de se realizar, “cuja função é restaurar a ferida derivada da
castração materna” (Dias, 2001) . A criança é para mãe a representante de seu
narcisismo infantil, representante de seus ideais, sonhos, desejos não realizados. O
narcisismo materno, constituído por seus ideais. A relação da mãe com seu filho é de
fascínio, e é este olhar fascinante que captura a criança como uma imagem, imagem
ideal, imagem da perfeição. Primeiro núcleo do eu constituído no espelho, é esta
imagem da perfeição veiculada pelo olhar materno, eu ideal. É por isso que a doença, a
14 Freud, Pour introduire le narcissisme, p. 95 in La vie sexuelle 15 Freud, op.cit, p.92
morte, o dano, a imperfeição estão mantidos fora do que é esta criança no imaginário
materno: “a doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições ‘a sua vontade própria
não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela
será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação – “Sua majestade o Bebê”
(Freud, 1914, citado por Dias, 2001). O que a criança é nuclearmente é estabelecido
pelo desejo da mãe sob o modo de uma imagem. A mãe é assim, o primeiro espelho a
criança. Ora, pergunta Dias, o que ocorre com esta imagem idealizada veiculada pela
mãe e que diz à criança o que ela é quando a criança adoece, quando um câncer lhe
acomete? A autora entende o impacto do anúncio do câncer justamente como um risco
de fratura nesta imagem ideal fornecida pela mãe com a qual a criança se identifica. O
risco de tal acontecimento é que se produza uma fratura, uma queda, nesta imagem,
fratura que irá destituir a criança do lugar idealizado, lugar de projeções maternas. O
risco de tal destituição envolverá a própria subjetividade da criança. “o bebe imaginado
perfeito e imortal, herdeiro de todas as aspirações e sonhos parentais está em risco:
risco de morte, risco de mutilação. O projeto idealizado foi, portanto, golpeado... A
doença significa o fracasso do projeto idealizado pois, na esfera do narcisismo, não
deveria haver nenhuma ranhura, nenhuma ameaça.” (Dias, 2001) Daí o imperativo de
se trabalhar o impacto do diagnóstico de câncer primordialmente nos pais das crianças
e, no caso de criança pequena, na mãe, para impedir que este imaginário materno se
esfacele diante do significante ‘câncer’, colocando a criança realmente diante de um
risco de vida. A criança assim destituída do lugar de ideal poderá ficar cristalizada
numa nova imagem, imagem de imperfeição, imagem significada pela palavra
‘câncer’.
Será que podemos pensar o impacto do diagnóstico de câncer de
uma criança, em um professor, sob a mesma chave de leitura que o impacto causado na
mãe, isto é, como um golpe em seu imaginário que produzirá efeitos significativos na
criança em questão? A resposta pode ser afirmativa, mas com algumas considerações.
Em primeiro lugar estamos supondo que o professor seja um Outro de tal envergadura
para a criança que forneça, assim como os pais, imagens com as quais a criança se
identifica. Ainda que não estejamos tratando da constituição do sujeito e das primeiras
identificações formadoras do aparelho psíquico, o professor pode ser tomado como um
outro significativo dado o lugar que ocupa para a criança – é ele que representa para a
criança a ordem social, fora do âmbito familiar (e os estudos acerca do papel do
professor na reinserção escolar da criança com câncer nos servem de apoio). O que é
prerrogativa do imaginário materno é a constituição da subjetividade da criança, o que
não significa que outros ‘outros’ não possam produzir para a criança imagens
cristalizadoras que poderão comprometer seriamente seu desenvolvimento. Fazemos a
hipótese de que a palavra do professor e, portanto, o modo como ele será marcado pela
palavra câncer, serão decisivos para a permissão do desenvolvimento escolar da
criança ou para seu impedimento sob a forma de uma imagem a ser investigada –
criança doente, criança morta, criança incapaz, etc. Assim como o que ocorre com a
mãe, o que presidirá no professor a formação deste imaginário determinado pelo
significante ‘câncer’ será sua própria história, suas experiências, suas fantasias, seus
desejos. Portanto, ao trabalharmos com a questão do imaginário do professor em
relação a um aluno com câncer, o que visamos é, além da elucidação deste imaginário,
investigar o possível efeito que ele produz na criança. Se é verdade que a mãe constitui
o primeiro espelho da criança e a primeira imagem que funcionará como núcleo de seu
ser, ela não será na vida da criança o único outro que funcionará como espelho e
produzirá imagens que a afetarão.
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