o centro histÓrico de salvador e a sua integraÇÃo sociourbana parte 6
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3º CAPÍTULO
3 O CENTRO DA CIDADE DO SALVADOR
Na Baixa do Sapateiro eu encontrei um dia
A morena mais frajola da Bahia
Bahia terra da felicidade
Morena
Eu ando louco de saudade...
Ary Barroso, Na Baixa do Sapateiro
3 O CENTRO DA CIDADE DO SALVADOR
O CENTRO DA CIDADE DO SALVADOR
Será que o centro de uma cidade, por maior que ela seja, pode
fornecer uma paisagem capaz de justificar um estudo geográfico separado?
Perguntava o geógrafo Milton Santos na sua tese de doutorado (1958) sobre o
centro da Cidade do Salvador; e completava: “não será isso o equivalente a
perguntar se o centro urbano constitui em si mesmo uma realidade geográfica?”1 As
possíveis respostas a essa pergunta envolvem questões tanto de ordem acadêmica
quanto de planejamento e de intervenção urbana.
Antes de mais nada, é preciso delimitar o que é considerado o centro
da Cidade do Salvador, e distinguir — se possível — a área central do seu Centro
Histórico, este último sendo apenas um subconjunto interligado à unidade de análise
maior.
Brandão considera que se pode delimitar como área central da Cidade
do Salvador, isto é, seu núcleo histórico e adjacências, o que Luiz Vilhena, no início
do século XIX, chamava “a cidade”: a Sé, o Pelourinho, o Carmo, a Praia, o
Comércio e o Pilar e os cinco bairros de entorno — Santo Antônio Além do Carmo,
Palma, Desterro, Saúde e São Bento; complementando, para fins de legislação e
articulação viária, com os bairros do Barbalho, Nazaré, Tororó, Barris, Canela,
Garcia e o Campo Grande.2
Seguindo a divisão administrativa de 1958, Milton Santos delimitou
como objeto de seu estudo os distritos da Sé e do Passo, na Cidade Alta, e da
Conceição da Praia e do Pilar, na Cidade Baixa.
Atualmente, acompanhando a dinâmica de crescimento urbano e de
novas espacializações, é considerado centro de Salvador (para a municipalidade)
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uma área de 715 hectares e 85.849 habitantes3 denominada Região Administrativa I
(RA I — Centro), composta pelas localidades do Centro Histórico, Garcia, Barris,
Fonte Nova, Frederico Pontes, Petrobras, Pilar, Rua Chile, Baixa dos Sapateiros,
Elevador Lacerda, Nazaré, Saúde, Barbalho e Lapinha (Figura 16). Dessa maneira,
esse também será o espaço geográfico denominado Centro de Salvador neste livro.
A área central de Salvador tem sido objeto de discussões e reflexões
sob pontos de vista os mais diversos e nos seus mais variados aspectos:
acadêmico, técnico-institucional, cultural, empresarial, entre outros.4 Como elemento
unificador das preocupações destaca-se a deterioração da qualidade urbana e o
esvaziamento das funções tradicionais na região central da cidade, “operada por um
tipo de desenvolvimento econômico e de urbanização que cria novos espaços
mediante o sucateamento dos preexistentes”.5
Até a década de 1960, esta área concentrava, “como nenhuma outra, a
infraestrutura em rede e as facilidades de comunicação”,6 e o velho núcleo de
Salvador mantinha-se como o centro quase absoluto da cidade.
Todavia, um processo de esvaziamento da área central é
implementado no último terço do século XX, com a retirada de várias instituições
públicas, ao tempo em que uma planejada política de favorecimento de
empreendimentos distantes da área consolidada acarretou o “esgarçamento da
malha urbana da cidade e a instalação de novos centros de negócio, áreas
residenciais de alto padrão e grandes bairros programados, em áreas afastadas”.7
As obras de infraestrutura viária realizadas nos anos 1970 alteraram
completamente o padrão de circulação de veículos e pessoas, “de tal maneira que o
Centro Histórico viu-se marginalizado dos processos mais dinâmicos de
transformação da estrutura urbana”.8 A função residencial é comprometida, com a
saída das famílias de renda mais alta e o crescimento de funções não residenciais.
Concomitantemente, “Salvador viu destruírem-se parcelas valiosas de
seu patrimônio urbanístico, arquitetônico e iconográfico. Violentas intervenções
desfiguraram sua área central e, em muitos casos, agrediram sua base físico-
ambiental”.9
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Figura 16 — RA — I (Região Administrativa Centro Salvador)Fonte: Elaboração própria. Base Sicar-Conder, 2000.
123
Entretanto, a degradação que a área central sofre não é linear. Há,
também, investimentos públicos e privados de grande porte nesta mesma região,
com a consequente requalificação urbana e a refuncionalização que provocam.
De fato, em termos amplos, a degradação da área central significa a
decadência da qualidade urbana nesta parte da cidade, que acompanha um
processo de transformação do perfil do usuário e dos investimentos nele realizados.
O centro se transforma em lugar de trânsito e realização de consumo das classes
média-baixa e baixa. “Trata-se de um traço essencial que conforma a peculiaridade
da Área Central e, também, a sua complexidade”.10
Como já foi comentado neste livro, Salvador passou por um processo
de descentralização territorial nas últimas décadas. Da condição de existir na cidade
um “centro único, unipolar e monopólico, limitado no espaço”,11 passam a coabitar na
metrópole dois centros: o velho e o novo, como resultado do crescimento e
modernização urbana.
O processo de modernização das cidades brasileiras aconteceu
através de mecanismos de financiamento patrocinado por uma instituição federal de
desenvolvimento urbano, o BNH (Banco Nacional de Habitação), criado em 1964,
que era o gestor do Sistema Financeiro da Habitação (SFH).12 Para Milton Santos,
nenhuma cidade é, nesta ocasião, mais significativa dessa tendência do que
Salvador, "que é certamente a cidade mais moderna do país depois de Brasília”.13
O acesso ao financiamento habitacional facilitou o surgimento de
bairros de classe média e classe média alta, em localizações privilegiadas de
acessibilidade e pelas decisões políticas de implantação dos conjuntos
habitacionais. Novos centros comerciais se constituíram nesses espaços urbanos
recém produzidos, ajudado pelo marketing imobiliário e pela expansão do uso do
automóvel. Isso propiciou novas formas de centralidade.
Em Salvador, o deslocamento do Centro Administrativo da Bahia (CAB)
para uma área distante 15 km do centro antigo, a construção de uma nova estação
rodoviária e a implantação do Shopping Center Iguatemi orientaram o processo de
descentralização.
Assim, essa nova lei do valor dentro da cidade passa a reinar “em
detrimento do centro velho”14 que não podia, a partir do pequeno capital nele
presente, participar desse novo movimento urbano.
Naquele primeiro momento o centro novo competiu com o centro velho,
pois as funções urbanas nele ainda não se haviam instalado de maneira definitiva, e
os novos hábitos da população não se haviam igualmente estabelecido. Esse novo
centro também competiu porque os recursos, todos públicos, “a ele se dirigiam
criando um desnível dentro da cidade”.15 Dessa forma, o centro novo aparecia como
um elemento que levava à ruína o centro velho.
O Estado ainda não estava disposto a uma intervenção em massa no
Centro Histórico de Salvador, a “única capaz de renovar o centro velho, a única
passível de êxito”,16 como começou a ser feito a partir de 1992.
Hoje é diferente, porque as funções desses dois centros se estabeleceram de forma não apenas separada, mas oposta. Cada um é representativo de um feixe de funções urbanas. E talvez não seja exagero dizer que o nexo de um é apenas o mercado — o mercado sobretudo, porque o mercado se acompanha da cultura própria, então não é só o mercado —, e o outro centro tem como eixo a cultura acompanhada do mercado próprio.17
Quer dizer, cultura de mercado no novo centro — o Iguatemi — e
mercado de cultura no Pelourinho. Dessa forma, apesar de opostos, esses centros
se complementam.
Pelo exposto, o crescimento da cidade criou novos vetores econômicos
e espaciais, e dessa maneira a área central perdeu gradualmente algumas de suas
características tradicionais, ao mesmo tempo em que redefinia e consolidava novas
características.
Novos polos geradores de atividades foram surgindo, sem que
subtraíssem da área a sua identidade como centro de referência cultural e espaço
de exercício de cidadania para a população citadina. “As mais expressivas
manifestações culturais e políticas ocorrem aí”.18 O carnaval acontece na área
central. “As passeatas e os blocos desfilam por outras áreas da cidade mais como
marketing e convocação para a grande apoteose que ali se dá”.19
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Neste sentido, apesar de todas as transformações socioespaciais, o
centro da Cidade do Salvador continua a ser o seu centro antigo, ao persistir a
denominada “centralidade simbólica.20 Ele é, por excelência, o espaço público que é
patrimônio coletivo dos habitantes da cidade.
A área central se constitui objeto do interesse e das ações de múltiplos
agentes — públicos e privados — o que “demonstra a complexidade da engenharia
político-institucional que envolve o seu planejamento e intervenções”.21 Isso ocorre
no sentido da modernização do centro antigo ampliado, até pouco tempo degradado;
no caso do Pelourinho, dá-se o “rejuvenescimento parcial”22 adaptado às exigências
da atividade turística.
Porém, o impacto das mudanças não se encerra na requalificação
funcional turística, pois, por esta ser ainda uma atividade sazonal e de média escala
na economia da cidade, por si só não provém de sustentabilidade a área revitalizada
do Centro Histórico. Ações mais amplas se fazem necessárias, e são perseguidas
pelos atores institucionais envolvidos. Ao mesmo tempo, intervenções motivadas
prioritariamente pelo interesse econômico podem colocar em risco o patrimônio
urbano. Assim aconteceu ao longo do século XX e continua a ocorrer.
Esta é a paisagem urbana a ser descrita neste capítulo.
TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM SALVADOR
Nas primeiras décadas do século XX Salvador ainda mantém sua
estrutura colonial de cidade portuária e comercial, com incipiente desenvolvimento
do setor industrial. Não obstante, a cidade continua a expandir-se, e cresce a
necessidade de obras urbanas para a instalação de transportes, iluminação, redes
de água e esgoto e para a melhoria do porto.
O bonde se torna o principal meio de deslocamento da população, o
que provoca o crescimento da cidade e a ocupação de novos espaços. Mesmo
assim, o centro torna-se cada vez mais denso, e surgem definições sociais e
funcionais mais nítidas para a cidade. “Até 1940 o crescimento urbano caracteriza-
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se pela expansão dos bairros afastados e a conquista crescente de terras ao mar,
na Cidade Baixa”.23
Na tentativa de transformar a estrutura colonial vigente, o governador
José Joaquim Seabra (1912-1916) promove uma importante reforma urbana na área
central de Salvador. Essa reforma será realizada dentro do contexto de importantes
referências internacionais anteriores, como a reforma de Paris por Haussman (entre
1853 e 1870), e o plano de expansão para Barcelona, de Ildefonso Cerdá (1859-
1864). No Brasil, a reforma do centro de Salvador será influenciada pelo movimento
modernista nas cidades, que terá como marco a reforma urbana do Rio de Janeiro,
realizada pelo prefeito Pereira Passos (1903-1906), um “discípulo” de Haussman.24
Ao assumir o governo, J.J. Seabra tem como projeto prioritário
introduzir a modernidade nas ruas da velha Salvador, em função das novas
necessidades de circulação, atreladas a uma “espacialização-modelo, um novo
modo de vida, uma nova estética, um novo sentido público e uma civilização do
espetáculo e da velocidade”.25
A reforma urbana de Salvador, dentro do espírito da época
(modernismo), foi concebida dentro do geometrismo “o mais descabido”,26 com o
“alinhamento reto, os arcos de círculo, as formas de esquadro e a completa
destruição de uma estrutura urbana nascida e desenvolvida de forma orgânica no
decorrer de mais de duzentos anos”.27
No distrito da Sé realizam-se demolições de parte das edificações da
Rua da Misericórdia e da Ladeira da Praça, para o alargamento das ruas; derrubam-
se as partes frontais de todas as edificações dos quarteirões (do lado da terra) da
Rua Chile até a Praça Castro Alves, que têm suas fachadas reconstruídas no novo
estilo em moda (ecletismo e neoclassicismo).28 Derruba-se também a Igreja da
Ajuda, em 1912, para o alinhamento da rua do mesmo nome.29
Valiosos exemplares da arquitetura civil, religiosa e pública são
demolidos, e as demolições ocorrem de modo pacífico, “ante a justificativa de que
devem deixar passar o progresso”.30 Os proprietários são indenizados, e a
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reconstrução dos imóveis fica sob sua responsabilidade. Novos estilos
arquitetônicos se impõem — o neoclassicismo e o ecletismo — oriundos da Europa.
Revela-se uma total insensibilidade em relação à Salvador colonial, e a
imprensa local se encarrega de “doutrinar a população”31 a favor das reformas. São
os “politécnicos do urbanismo” que chegam com a “ideologia do progresso”,32 com a
ordem de “demolir o passado, derrubar o antigo casario e os monumentos, abrir
avenidas e conquistar espaços ao mar”.33 Os argumentos dominantes são a higiene,
a estética e a circulação.
Ao intervir nas ruas, derrubando edificações e alargando os espaços
públicos, procura-se mudar hábitos e modos de vida, com a eliminação de tudo que
se constitua em risco para a saúde da população (insalubridade, águas paradas,
lixo...). Porém, intervir apenas no espaço público não é suficiente. Intervir também
no espaço privado por meio das obras, com a consequente valorização do solo na
área central, possibilita que dali se retire a população pobre, para deixar livre o
centro, espaço apropriado pela burguesia.34 Este é um bom exemplo de um
organizado processo de exclusão na cidade.
A estética “também é um instrumento da construção da nova cidade,
de uma nova urbanidade, de uma nova identidade e de uma nova imagem”.35 Os
governantes afirmam a necessidade de embelezar as áreas consideradas sem
atrativos, com ruas estreitas e sem arquitetura “moderna”. Arquitetos, escultores,
pintores e decoradores são trazidos de São Paulo, para a realização de planos e
projetos de embelezamento com a construção de novos monumentos e edifícios.
Urbanismo demolidor ou destruição criativa? David Harvey considera
que a imagem da “destruição criativa” é “muito importante para a compreensão da
modernidade, precisamente porque derivou dos dilemas práticos enfrentados pela
implementação do projeto modernista”.36 E pergunta: “como poderia um novo mundo
ser criado sem se destruir boa parte do que viera antes? Simplesmente não se pode
fazer um omelete sem quebrar os ovos”.37
Será que a “tragédia da modernidade”38 é ter de destruir para criar? A
destruição, a demolição, a expropriação e as rápidas mudanças do uso como
resultado da obsolescência são os sinais mais reconhecidos da dinâmica urbana,
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segundo Harvey. Para ele, Haussmann trabalhando na Paris do Segundo Império
(1852-1870) é um modelo da “imagem nietzschiana da destruição criativa e da
criação destrutiva”.39
David Harvey conclui:
Note-se que o economista Schumpeter empregou essa mesma imagem para compreender os processos do desenvolvimento capitalista. O empreendedor, que Schumpeter considera uma figura heróica, era o destruidor criativo par excellence porque estava preparado para levar a extremos vitais as consequências da inovação técnica e social. E era somente através desse heroísmo criativo que se podia garantir o progresso humano. Para Schumpeter, a destruição criativa era o leitmotif progressista do desenvolvimento capitalista benevolente.40
Intervenções urbanas (1912-1916)
A mais importante intervenção urbana em Salvador durante o primeiro
governo J.J. Seabra (1912-1916) foi a abertura da Avenida Sete de Setembro. É
feita a retificação de várias ruas e vielas, e a obra se estende da Praça Castro Alves
até o Farol da Barra. São demolidos importantes edifícios da cidade, como a Igreja
de São Pedro Velho, a ala esquerda do edifício do Senado estadual, parte da Igreja
do Rosário e do Convento das Mercês.41 Os edifícios civis e religiosos parcialmente
demolidos são remodelados com novos estilos arquitetônicos.42
O traçado da avenida projetada tem um total de 4.600 metros de
extensão, 21 metros de largura com 3 metros de calçada, “com exceção da ladeira
que dá acesso à Barra, cuja largura permanece com as dimensões originais”.43 O
objetivo de tal empreendimento é a abertura de um vetor de expansão que desafogue o
Distrito da Sé e oriente o crescimento urbano em direção às áreas nobres da cidade —
moradia das classes abastadas — os bairros da Vitória e da Barra, situados no litoral
sul, em local arejado e saneado, com melhor qualidade de vida.
A elite idealiza uma cidade europeizada e “branca”, mas encontra limites para sua materialização, por ser Salvador uma cidade composta por aproximadamente 75% de negros e mestiços, Como alternativa, a burguesia cria espaços onde possa fabricar essa cidade idealizada, europeizada — Barra e Ondina, além da Vitória e Graça. A classe média assenta-se predominantemente na segunda linha de cumeada, em bairros como Nazaré, Barris, Barbalho etc. Os mais pobres
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amontoam-se em áreas centrais não reformadas, ou se deslocam para bairros ao norte do centro, como Liberdade e São Caetano.44
O governo da Bahia, apoiado pelos comerciantes, representados pela
Associação Comercial, também intervém na parte construída da Cidade Baixa,
demolindo edificações para ampliar as ruas e alinhar as construções. A nova
urbanização amplia a malha urbana da Cidade Baixa com o típico urbanismo em
quadrícula, o que muda a aparência do bairro comercial denominado Comércio.
Entretanto, essas intervenções mantêm o traçado urbano original.
Um aspecto importante a ressaltar é que essas intervenções não
modificam a malha urbana de Salvador, nem introduz novos elementos, alheios à
sua configuração. Aproveita-se o tecido urbano existente e alargam-se algumas das
principais artérias, criando-se novos eixos e orientando a expansão da cidade. O
novo alinhamento é conseguido pelo alargamento de ruas e becos existentes,
mantendo-se o traçado original. Por ser respeitado o traçado anterior das ruas,
essas não resultam necessariamente em vias retas. “Dois exemplos resultantes
dessa forma de atuação são a Avenida Jequitaia, na Cidade Baixa, e a Avenida Sete
de Setembro, na Cidade Alta”45.
Em relação a essa especificidade, Milton Santos observa que o centro
de Salvador “é formado por diversos meios sociotécnicos, o velho centro cristalizando
velhas formas, apenas atravessadas por algumas artérias criadas depois para
atender às revoluções dos transportes”.46 Primeiro foi a revolução dos bondes, depois,
com a Rua Carlos Gomes, a revolução do automóvel. Mas o que se vê é o mesmo
“esqueleto” ali estabelecido há decênios.
Eloísa Pinheiro pergunta: “até que ponto a realização dessas
intervenções haussmannizam Salvador”?47 Após definir sucintamente o que considera
haussmannização,48 e relativizar o uso desse “conceito” para o caso de Salvador,
Pinheiro esclarece:
O fato de em Salvador não se terem realizado as aberturas, os rasgos de quarteirões, as percées — uma forma radical de intervenção, descrita pelo próprio Hausmann como “regularização — não significa que a reforma de Salvador tenha sido mais branda que as demais. Pode-se usar o termo regularização para caracterizar os chamados “planos geométricos” , que se realizam em outras cidades através do alargamento das ruas existentes. Dependendo da
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quantidade das intervenções realizadas, esse processo pode ser tão radical, ou mais, que o implantado em algumas reformas realizadas através da demolição total ou parcial dos quarteirões construídos. Pode-se mudar totalmente a fisionomia de uma cidade apenas com o alargamento de suas ruas e a reconstrução de seus edifícios.49
Foi imenso o impacto dessas intervenções no Distrito da Sé. São
alargadas ruas e levantadas novas construções, e as obras consolidam a sua
centralidade. Ocorre uma refuncionalização de setores e acentua-se a estratificação
social, com a Rua Chile abrigando “bonitas confeitarias e luxuosas lojas de moda,
onde se encontram os últimos lançamentos da Europa, que atraem a classe mais
rica, a elite social e intelectual da capital”;50 já a Rua da Vala (Baixa dos Sapateiros)
é “frequentada por uma população mais pobre e remediada, que busca lojas mais
simples, oficinas e serviços mais humildes”.51
Uma parte da área central mantém a estrutura colonial, com
edificações dos séculos XVII e XVIII e os monumentos mais significativos da cidade.
Essa área é hoje designada como Centro Histórico, ou Pelourinho, e no período
estudado se constitui em local de moradia para uma população pobre — artesãos,
desempregados, vendedores ambulantes... — sendo que nos anos 1920 delineia-se
um novo quadro social na área, com a formação de um grande meretrício no
Pelourinho, forçado pela ação repressiva da polícia de costumes, que, dentro dos
limites desse bairro, liberou a prostituição, como forma de controle dessa prática,
acompanhando a política higienista de então.52 Isso atraiu para a área atividades
relacionadas à prostituição: o tráfico de drogas e o banditismo53 — que terminaram
por envolver toda a zona residencial.
Nessa área física e socialmente degradada, seus casarões arruinados
são subdivididos e transformados em cortiços e casas-de-cômodo, e nos andares
térreos se desenvolve um comércio modesto. Essa parcela do solo urbano central
construído sobrevive ao urbanismo demolidor da época. Por que razão?
Uma resposta possível já foi aqui aventada: o propósito era criar um vetor de
expansão urbana em direção aos bairros nobres ao sul, com a abertura da Avenida Sete
de Setembro, tomando como ponto de partida a antiga Igreja da Sé.54 Nesse momento
(1912-1916) não se realizam as reformas projetadas para a área ao norte.55
Todavia, o principal fator da preservação daquele que é hoje
considerado o maior conjunto barroco colonial das Américas talvez tenha sido o
financeiro, ou a sua falta. A escassez de recursos para a continuidade das
intervenções — como efeito da Primeira Guerra Mundial — foi providencial para
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impedir a continuidade da sistemática demolição do patrimônio histórico monumental
de Salvador.
Cabe aqui uma pergunta: como foram financiadas essas intervenções?
O panorama econômico da época é favorável à Bahia, que vivia um período de
recuperação econômica, ao ocupar, já em 1905, o primeiro lugar na produção e
exportação mundial de cacau. Uma lei federal que permitia a tomada de
empréstimos estrangeiros, com a emissão de apólices estatais, é aprovada, o que
possibilita a entrada do capital financeiro internacional. Grandes empresários
brasileiros também resolvem investir. Essas condições viabilizam a “realização das
tão desejadas reformas em Salvador”.56
1 SANTOS, M., 1959, p. 21.2 BRANDÃO, Maria de Azevedo. Uma proposta de valorização do Centro de Salvador. In: Pelo Pelô. História, cultura e cidade. GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia/ Faculdade de Arquitetura/Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, 1995, p. 97.3 Dados do último Censo Nacional, de 2000.4 FRANCO, Ângela. Não só de referência cultural (sobre)vive o Centro de Salvador. In: Pelo Pelô. História, cultura e cidade. GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia/ Faculdade de Arquitetura/Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, 1995, p. 31.5 Idem, ibidem, p. 31.6 BRANDÃO, M. A., 1995, p. 96.7 Idem, ibidem, p. 96..8 Idem, p. 96.9 Idem, p. 95.14 Idem, ibidem, p. 24.15 Ibidem, p. 22.16 Ibidem, p. 24.17 Ibidem, p. 24.18 FRANCO, A., 1995, p. 32.19 Idem, Ibidem, p. 32.20 Ibidem, p. 32.21 Ibidem , p. 33.22 SANTOS, M., 1995, p. 17.23 PINHEIRO, E. P., 2002, p. 220.24 MACHADO. Marcello de Barros. Cartões-postais. A produção do espaço turístico do Rio de Janeiro na modernidade. Revista geo-paisagem ( on line )Vol. 1, número 1, 2002 Janeiro/junho de 2002 Disponível em: http://www.feth.ggf.br/Cart%C3%B5es-Postais.htm Acesso em: 26 ago 2006.25 PINHEIRO, E. P., 2002, p. 226.26 PREFEITURA da Cidade do Salvador, 1979, v.4, p. 495 apud PINHEIRO, Eloísa Petti, 2002, p. 230.27 Idem, ibidem, p. 230.28 O neoclassicismo é um movimento artístico (séculos XVIII-XIX) de reação ao barroco e ao rococó, que revive os princípios estéticos da Antigüidade Clássica. Em alguns casos percebe-se maior influência romana, com obras marcadas pela severidade e monumentalidade; em outros casos se sobressaem as características gregas, com maior graça e pureza. Já o ecletismo em arquitetura (Séculos XIX-XX) é o uso ou mistura de estilos do passado em uma única construção, utilizando influências do barroco, arte oriental, clássico e também dos movimentos mais recentes art decor e art nouveau.29 PINHEIRO, E. P., 2002, p. 232.30 Idem, ibidem, p. 237.31 Ibidem, p. 223.32 PERES, Fernando da Rocha. Memória da Sé. Salvador: Macunaíma, 1974, p. 37 apud PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador:
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A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) vai, afortunadamente, estancar
o dreno de recursos para a continuidade da “destruição criativa” do centro da Cidade
do Salvador.
Demolição da Igreja da Sé
O traçado original da abertura da Avenida Sete de Setembro, na altura
do Distrito de São Pedro, passa sobre a área do Mosteiro de São Bento, “onde seria
construído um conjunto de edifícios para abrigar as novas instalações do serviço
público”.57 Uma mobilização popular coordenada pelo abade do Mosteiro o salva da
destruição.
Ainda que também com resistência, igual sorte não teve a Igreja da Sé.
Sua morte foi anunciada através da Resolução Municipal n° 344, de 29 de agosto de
1912, no projeto de melhorias para o Distrito da Sé, com o propósito de demolição
da Igreja da Sé e do Palácio Arquiepiscopal, entre outras edificações e quarteirões
inteiros.58
EDUFBA, 2002, p. 223.33 PINHEIRO, Eloísa Petti, 2002, p. 22334 Idem, ibidem, p. 254.35 Ibidem, p. 254.36 HARVEY, David. Condição pós-moderna. 14 ed. São Paulo: Loyola, 2005, p.26.37 Idem, ibidem, p.26.38 Ibidem, p.84.39 Ibidem, p.26; “Arder nas tuas próprias chamas, deverás querer; como pretenderias renovar-te se antes não te tornasses cinza!” In: NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São. Paulo: Círculo do Livro, s/d, p.79.40 HARVEY, D., 2005, p.26.41 PINHEIRO, E. P., 2002, p. 238.42 Mesmo os imóveis que não são afetados pela reforma modificam as suas fachadas, para acompanhar o novo estilo em moda: o ecletismo.43 PINHEIRO, E. P., 2002, p. 238.44 Idem, ibidem, 2002, p. 257.45 Ibidem, 2002, p. 264.46 SANTOS, M., 1995, p. 22.47 PINHEIRO, E. P., 2002, p. 263; a autora define brevemente haussmannização como uma “reforma urbana direcionada para a abertura de ruas e demolições, num tecido urbano densamente construído, com vistas à criação da cidade burguesa”. Ibidem, p. 66.48 A autora define brevemente haussmannização como uma “reforma urbana direcionada para a abertura de ruas e demolições, num tecido urbano densamente construído, com vistas à criação da cidade burguesa”; Ibidem, p. 66.49 PINHEIRO, E. P., 2002, p. 264.50 Idem, ibidem, 2002, p. 256.51 Ibidem, 2002, p. 256.52 No Rio de Janeiro, o prefeito Pereira Passos também delimita uma zona para funcionamento do meretrício.53 ESPINHEIRA, C. A., 1971, p. 11.54 A Igreja da Sé seria também derrubada, já no ano de 1933.55 A intenção do Governador J. J. Seabra era de construir uma “grande avenida, que iria da Barra até o Largo de Santo Antônio Além do Carmo. In: LEAL, G. C., 2002, p. 112.57 Idem, ibidem, p. 242.
133
No ano de 1916, a Companhia Linha Circular de Carris da Bahia,
concessionária dos serviços de bonde na cidade, pretendeu modificar o tráfego dos
seus veículos até o local em que estava a Igreja da Sé (construída em 1552) e
ofereceu indenização ao Arcebispado.
D. Jerônymo Thomé da Silva, arcebispo de Salvador, pede autorização
ao papa para vendê-la, expondo que “o governo do Estado da Bahia deseja adquirir
uma igreja na Cidade da Bahia, com o fim de demolir, para o trânsito público se
tornar mais fácil”;59 sua Eminência argumenta que “a sobredita igreja não tem valor
artístico nem é necessária para o culto porque perto dela há seis outras igrejas”.60
De Roma, a Sagrada Congregação do Concílio, com autorização de
sua Santidade N. S. Bento pp. XV, dá a sentença final, atendendo à petição. Porém,
exige que no local “se deva fazer uma Cruz”.61 Corria o ano de 1919.
Note-se no evento descrito a cumplicidade entre o Poder Público e a
iniciativa privada, pois a compra deveria ser feita pelo governo da Bahia e o
pagamento do imóvel pela empresa concessionária dos bondes.
Porém, há resistência na cidade contra tal ato. Por dezessete anos
seguidos trava-se uma luta entre os representantes da Igreja, apoiados pela
imprensa, e os intelectuais da Bahia, em número cada vez maior. Projetos
alternativos de engenharia são oferecidos, salvando a velha Sé da destruição. A
batalha é travada nos jornais da cidade. Tendo como título “A Sé multissecular que
tudo resiste”, editorial do jornal A Tarde de 22 de maio de 1928 conclama:
Têm dez anos as primeiras negociações. O atual intendente cogita de demolir a Sé? Já viveu demais. Há pela cidade outros monumentos do passado que podem ser conservados sem prejuízos. Mãos à obra, pois! Recorramos à campanha da demolição da Sé.62
No mesmo ano de 1928 um grupo de pessoas proeminentes contra-
ataca, assinando um protesto, com o argumento de que a Sé era um templo
histórico, tradicional e palco de importantes fatos religiosos ali ocorridos.
59 Padre Manoel Mesquita dos Santos. In: LEAL, G. C., 2002, p. 117.60 Padre Manoel Mesquita dos Santos. In: Idem, ibidem, p. 117.61 Padre Manoel Mesquita dos Santos. In: Ibidem, p. 117.62 LEAL, G. C., 2002, p. 124.
134
O Diário da Bahia de 10 de julho de 1928, ao comentar a nomeação do
engenheiro baiano Francisco de Souza para a Prefeitura de Salvador, e dando como
eminente a derrubada da Sé, o enaltece como o “mago que realizou o milagre,
destruindo o feio sortilégio”, e demoniza a velha Catedral de Tomé de Sousa,
aplaudindo “em definitivo que se pusesse abaixo o trambolho ignóbil”.63 Os
argumentos para a demolição são os mesmos já descritos neste capítulo: a higiene,
a estética, a circulação, a modernidade e o progresso.
A execução da sentença deu-se no dia 7 de agosto de 1933, e a Igreja
da Sé foi derrubada. Muitos artistas e intelectuais dela se despedem com crônicas e
poesias lamentando o acontecimento. O então jovem escritor baiano Jorge Amado
publicou na revista Rio Magazine uma crônica transcrita em 10 de agosto de 1933 pelo
jornal O Estado da Bahia, em que fazia o seu protesto:
Bahia de ruas de nomes gostosos: Santo Antônio da Mouraria, Cruz do Paschoal, Rua dos Quinze Mistérios, Ladeira do Pelourinho, Portas do Carmo, Ladeira do Taboão, Bahia que vive de saudades, saudades da Igreja da Sé que a Light vai derrubar...64
A Igreja da Sé foi demolida para deixar o bonde passar... No ano de
1940 dois quarteirões contíguos são derrubados, abrindo espaço para a atual Praça
da Sé, então ponto final dos bondes.
A repercussão nacional da demolição da Igreja da Sé foi um dos
principais motivos para que, a apenas 20 dias da decretação do golpe de Estado
liderado por Getúlio Vargas, a ditadura do Estado Novo,65 se instituísse uma política
jurídica de defesa do patrimônio brasileiro, com o Decreto-Lei nº 25, que organiza a
proteção ao patrimônio histórico e artístico em nível nacional.
Ah... e a exigência papal que no local da demolição se devesse construir
uma Cruz, só foi realizada no ano de 1999, quando se contrata o artista plástico Mário
Cravo para fazer “uma escultura monumental em aço inox com 12 metros de altura”,66
como homenagem à antiga Sé Primacial do Brasil. Segundo o historiador baiano Cid
63 Idem, ibidem, p. 124-125; Francisco de Souza chega do Rio de Janeiro com experiência de trabalho na equipe “demolidora” de Pereira Passos. In: idem, ibidem, p. 124.64 Jorge Amado In: LEAL, G. C., 2002, p. 131; Light é o nome abreviado da empresa estrangeira que investe em infra-estrutura na cidade de Salvador à época, inclusive em transportes urbanos. 65 A Ditadura do Estado Novo foi declarada em 10 de novembro de 1937.
135
Teixeira, “encomendou-se a Mário Cravo uma cruz fraturada como símbolo do
arrependimento tardio por ter-se demolido a igreja da Sé”67 (Figura 17).
Figura 17 — Cruz Caída, de Mário Cravo. Foto. Juarez Duarte Bomfim. Em 12 set. 2006.
SITUAÇÃO DO CENTRO DE SALVADOR NA ATUALIDADE
Quando, em 1958, o professor Milton Santos publicou o seu estudo
sobre o centro da Cidade do Salvador, ele chamava a atenção para a significativa
especificidade da área:
A importância do centro de Salvador em relação à cidade provém de dois fatos: a concentração antiga e cada vez mais acentuada dos recursos financeiros, técnicos e sociais da região na capital do Estado e a acumulação das funções urbanas nos distritos centrais da cidade. Com efeito, e por isso mesmo, o centro é indiscutivelmente representativo da vida urbana e regional.68
E o autor enfatizava a função metropolitana de Salvador, como cabeça
de uma vasta região de influência, que superava os limites do próprio Estado da
Bahia.
136
Apesar de todo o processo de descentralização que a área central da
cidade passou nas últimas décadas, a região continua a ser considerada muito
dinâmica em relação à cidade e à Região Metropolitana de Salvador, e dados
econômico-financeiros de meados dos 1990 são muito esclarecedores quanto à sua
“mitificada degradação”.69
A Área Central concentra 26% dos estabelecimentos do comércio varejista e atacadista de Salvador, sem contar com os de serviços e outras atividades, e nenhuma outra zona abriga mais estabelecimentos que ela (...) Só para se ter uma idéia, a zona da Pituba (que abrange Iguatemi, Pituba, Itaigara, Nordeste, Amaralina, Rio Vermelho) detém 11,5% do total de estabelecimentos da cidade.70
O centro é o espaço de concentração do setor informal,71 o que
qualifica essa área como locus estratégico de obtenção de renda das camadas
pobres da população. Nessa área se verifica o fenômeno de convergência de uma
multiplicidade de formas de atividades informais, desde aquelas relativamente
legitimadas pela permanência até as mais eventuais — das “barracas de chapa” aos
numerosos camelôs — onde se revela “a complexa interdependência entre a
concentração de algumas categorias de informais e a diversificação de modos de
informalidade”.72
No interior da área central está a Baixa dos Sapateiros (de 1835) o
maior e mais antigo centro de comércio popular da cidade. Esta rua dá nome a uma
internacionalmente conhecida canção brasileira, escrita pelo compositor Ary
Barroso. Quando da drenagem do Rio das Tripas ela foi batizada “com o nome do
seu benfeitor”,73 o governador J.J Seabra; porém, um periódico baiano esclarece que
já era um tanto tarde, pois “o movimento dos árabes vendedores de couro e dos
italianos fazedores de sapato tinha aprofundado suas marcas e jamais ninguém
conseguiria chamar aquele lugar por outro nome, que não o tão popular Baixa dos
Sapateiros”.74
No centro destaca-se também um “corredor mais recente”75 (a partir
dos 1980) de comércio popular que começa da Rua do Forte de São Pedro, se
estende por toda a Avenida Sete e vai até a Praça da Sé, com ramificações na
Barroquinha. Nas calçadas, o comércio formal disputa espaço e clientela com os
vendedores ambulantes. Ocorre “a coincidência entre a concentração de informais e
69 FRANCO, A., 1995, p. 36.70 FRANCO, A,, 1995, p. 39; são informações de 1995, porém acredita-se que os percentuais não foram significativamente alterados.71 Estima-se que metade dos vendedores ambulantes de Salvador atuem na Área Central. In: CIDADE tem mais de 8 mil camelôs Disponível em http://www.tribunadabahia.com.br/ Acesso em 14 set. 2006.72 FRANCO, A., 1995, p. 42.
137
a concentração do comércio formal”.76 Pode-se observar a complexa articulação
entre o comércio de rua e certo tipo de comércio e serviços estabelecidos e a
contradição entre o exercício daquele e a fruição do espaço público.77
A faixa que é considerada o “núcleo” da área central (Cidade Alta e
Comércio) abriga órgãos da administração municipal, funções de comércio, serviços
privados mais populares, bancos e uma população residente em parte dependente
do trabalho local e com grande necessidade de promoção socioeconômica, além de
grupos locais e recém-chegados de classe média.78
Os dados censitários para o centro da Cidade do Salvador afirmam
que ele corresponde por cerca de 4% dos domicílios e por 3,5% da população da
cidade;79 entretanto, essa zona sofre declínio populacional desde 1980, e é a área
de menor densidade populacional entre todas as zonas da cidade.80 Atualmente, a
função residencial na região é apenas residual, e observa-se a deterioração das
áreas residenciais, seja pela deterioração dos níveis de renda dos residentes, seja
pela falência da própria função residencial destas áreas.
A composição social dos residentes na área central é majoritariamente
de classe baixa e média baixa, uma vez que 41,2% da população percebem até 3
salários mínimos. Entretanto, a área também é marcada pela heterogeneidade
social, e no topo da pirâmide social encontram-se aqueles que percebem
rendimentos de mais de 10 salários mínimos (14,0%) e mais de 20 salários mínimos
(5,7%)81
A população da área central está agrupada em bairros antigos cuja
dinâmica imobiliária é dada mais pela mudança de uso das edificações e menos por
novos empreendimentos imobiliários localizados em determinadas áreas, como os
bairros do Garcia, Politeama, Nazaré e Barris. Isto diferencia a área central, “mas
não a ponto de colocá-la, através desses subespaços, como locus privilegiado dos
investimentos imobiliários para fins residenciais”.82
Revitalização do bairro do Comércio
Observa-se na atualidade um movimento de reorientação de
investimentos imobiliários para a área central, notadamente no bairro do Comércio,
que sofreu nos últimos anos com o processo de deslocamento de escritórios, lojas e
bancos para outros pontos de Salvador. Além disso, sendo de caráter
78 BRANDÃO, M. A., 1995, p. 97.79 Censo Demográfico de 2000. Os percentuais são válidos para 2006, posto que proporcionais. In: Tabela 26 - População residente, taxa de crescimento médio anual, densidade populacional e número de domicílios segundo ZI e RA. Elaboração: PMS/Seplam/FMLF. 80 138,18 Hab/ha. Dados do Geocad. Universidade Católica do Salvador. Departamento de Geografia, 2004.
138
monofuncional, o bairro do Comércio não tinha atividades diuturnas, virando uma
cidade fantasma à noite, nos fins de semana e feriados.
Considera-se que o processo de esvaziamento pelo qual passava o
Comércio comprometia, de certa forma, o investimento realizado para a recuperação do
Centro Histórico, e sendo o bairro comercial uma área de entorno deste último,
deveriam ser criadas demandas de uso diário para o Comércio e demais bairros
vizinhos, assim como equipamentos públicos, estacionamentos e melhoria de acesso.
Projeta-se um possível funcionamento conjunto do Comércio e do Centro Histórico, nos
fins de semana, incluindo a exploração turística do patrimônio histórico ali existente. A
ideia é a de que essas intervenções possam catalisar e sustentar os investimentos que
se fazem para a recuperação do Centro Histórico, e consequentemente revitalizando os
bairros de entorno, isto é, a região central.
Deu-se início a um movimento planejado de revitalização dessa área
do centro com a criação do “Escritório de Revitalização do Comércio”,83 vinculado à
Setin (Secretaria Municipal de Infraestrutura), parcerias com o governo do Estado e
com a iniciativa privada, como a Associação Comercial da Bahia e a Associação dos
Empresários do Comércio (Aecom).
A proposta de revitalização visa a atenuar o caráter de “bairro
escritório” que o Comércio tem, atraindo para lá outras atividades e funções. Das
treze diretrizes traçadas para a sua revitalização, algumas visivelmente estão em
implantação, tais como: a atração de atividades; melhoria ou adequação de serviços
públicos de infraestrutura (drenagem, iluminação, saneamento, pavimentação);
melhorias no imobiliário urbano, praças, espaços abertos e áreas de pedestres;
preservação dos prédios ou monumentos de interesse histórico ou cultural;
recuperação de prédios deteriorados e melhor segurança pública.
Cerca de 60 novos empreendimentos foram instalados de 2004 até
agosto de 2006, e o fluxo diário de pessoas no bairro aumentou de 90 mil para 130
mil, um crescimento de 44%.84
No setor educacional três faculdades foram implantadas, e quatro call
centers de grandes empresas foram ali instalados, com numerosos funcionários. A
transferência do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) do bairro de Nazaré para o
Comércio, com todas as suas 39 varas funcionando em um só lugar, atende
“diariamente a um público de aproximadamente 10 mil pessoas”.85
A mudança para o bairro de outros órgãos públicos, a exemplo de
algumas secretarias municipais, como as de Serviços Públicos (Sesp), de
83 PROPOSTA de revitalização. Disponível em http://www.revitalizarcomercio.com/f_apresentacao_proposta.php Acesso em 31 ago 2006.
139
Desenvolvimento Social (Sedes), da Saúde (SMS), de Comunicação Social (SMCS)
e a Ouvidoria do Município86 também são ações importantes para a revitalização
daquele espaço urbano.
Em janeiro de 2006 foi assinado um contrato para a elaboração do
Planejamento Geral de Requalificação Urbana da Zona do Bairro do Comércio, o
Masterplan,87 entre a Prefeitura e empresas de consultoria especializada. Uma das
propostas para a área é a incorporação de oito armazéns do porto de Salvador, “que
passarão a abrigar hotéis, bares, restaurantes, boates, uma marina, lojas e centros
comerciais em uma área que soma 50.000 m²”,88 abertas para o mar.
Ufanisticamente, o coordenador geral do Escritório de Revitalização do Comércio, o
Sr. Marcos Cidreira, afirma que “Salvador vai repetir experiências de sucesso em
muitas cidades do mundo, a exemplo de Barcelona, Boston, Lisboa e São
Francisco”.89
Nota-se na proposta de intervenção para o bairro do Comércio, em
Salvador, aquilo que Harvey considera como o urbanismo da pós-modernidade,
quando ele identifica nos círculos de planejamento urbano uma significativa
evolução, e o tema da revitalização urbana substitui a “vilificada” renovação urbana
“como a palavra-chave do léxico dos planejadores”.90 Harvey pondera que na
atualidade é norma procurar estratégias “pluralistas” e “orgânicas” para a abordagem
do desenvolvimento urbano como uma “colagem” de espaços e misturas
diferenciados, em vez de se perseguir planos grandiosos baseados no zoneamento
funcional de atividades diferentes. A “cidade-colagem” é agora o tema.91
Quanto às demais diretrizes propostas pelo Escritório de Revitalização,
de fato são ainda apenas intenções, pois, apesar das adaptações na legislação do
uso e ocupação do solo para a requalificação funcional do Comércio, no intuito de
torná-lo um bairro também residencial, vêm-se encontrando barreiras de todos os
tipos, como, por exemplo, a situação jurídica dos imóveis a serem reformados e
convertidos (com conflito de interesses entre herdeiros),92 que inibe investimentos
privados para fins habitacionais. Dessa maneira, a proposta de fixação de
moradores na área central ainda não se concretizou, apesar de ser um intento de
mais de década.
As demais propostas para o Comércio, como a melhoria de
acessibilidade, circulação e estacionamento de veículos e melhoria dos transportes
87 PROPOSTA de revitalização. Disponível em http://www.revitalizarcomercio.com/f_apresentacao_proposta.php Acesso em 31 ago 2006.88 REVITALIZAÇÃO cria um novo Comércio. Idem.89 ibidem; bem... idéias e projetos para a revitalização do Comércio é que não faltam, o que faltam são recursos e viabilidade de execução.
140
coletivos são problemas estruturais que só poderão ser equacionados
metropolitanamente.
Em relação à proposta de valorização dos pontos de interesse turístico,
nota-se a existência de planejamento público e profissionalização da atividade
turística na Bahia; por último, sobre a valorização da paisagem urbana,
“notadamente quanto ao chamado frontispício constituído pela visão da Baía, da
Cidade Alta e da Cidade Baixa”93, ações significativas foram tomadas como a
recuperação do Plano Inclinado do Pilar94 e a abertura à visitação pública do Forte
São Marcelo, transformado em espaço cultural,95 — este sem dúvida o melhor
mirante do frontispício da cidade do Salvador.
Todavia, ocorrem ameaças e agressões concretas ao tecido urbano
central, como as intervenções na Avenida do Contorno, no local dos antigos
trapiches da zona portuária (ao lado do II Distrito Naval), com as grandes e
verticalizadas construções de apoio à atividade náutica, que roubam espaços
abertos voltados para a Baía de Todos os Santos (Figura 18).
93 PROPOSTA de revitalização. Idem.94 PLANO Inclinado Pilar volta à ativa. Disponível em http://www.cultura.gov.br/noticias/na_midia/index.php?p=14711&more=1&c=1&tb=1&pb=1 Acesso em 23 ago 200595 FORTE em Salvador vira espaço cultural. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2803200610.htm. Acesso em 28 de mar. 2006
141
Figura 18 — Obras do Porto Trapiche Residence. Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 12 set. 2006.
Essas agressões ao patrimônio urbano acontecem porque a dinâmica
da acumulação capitalista, tida como força determinante das “relações sociais de
produção e consumo do espaço”,96 fundamentam as ações e os interesses dos
agentes econômicos urbanos, que no mais das vezes agem desrespeitosamente
sobre o espaço e as coisas públicas, e dessa forma “a rua, os passeios, as praças,
as margens de rios e mares, o verde, são objetos de permanente rapina”.97
Por outro lado, o Estado, que deveria ser o órgão regulamentador e
fiscalizador desse processo, se mancomuna com o poder econômico em detrimento
do cidadão e da cidade, e o frontispício de Salvador, que tão “forte impressão”
provocava aos viajantes oitocentistas — e provoca até os dias de hoje — vai aos
poucos perdendo os seus encantos, que pode trazer conseqüências negativas para
o fluxo turístico em Salvador. É como matar a “galinha de ovos de ouro”.
Por que a cidade assiste a essa “rapina” tão passivamente?
Brandão afirma que os vários atores sociais que se manifestam na
cidade atuam com interesses distintos:
[...] a população, como demandante de espaços, ritmos, bens e serviços, mas também portadora de imagens, interesses e diferenciados níveis e formas de poder; o capital, que também não é uniforme, homogêneo, nem sempre previdente ou lúcido, mesmo quanto a seus interesses, e intrinsecamente contraditório em seus objetivos e decisões; o poder público local, que tende a subordinar-se aos interesses dos grupos econômicos mais fortes.98
A autora complementa dizendo que também devem ser levados em
conta os atores extralocais, órgãos supranacionais, legislação e fontes de recursos
nacionais e conjunturas políticas.
Quando todas essas condicionantes estão postas, envoltas “num
ambiente simbólico e normativo, historicamente produzido, muitas vezes
mistificador, autoritário, legitimador de privilégio,99 cria-se a situação para a
rapinagem.
É frente a essas graves questões que o processo de revitalização do
Centro Histórico de Salvador se depara.
96 CORREIA, Claudia. Entre o global e o local: Salvador em tempo de crise. Quem faz Salvador. COSTA LIMA, Paulo et al. (Coord.). Salvador: UFBA, 2002, p. 85.97 BRANDÃO, Maria de Azevedo. Salvador: da transformação do centro à elaboração das periferias diferenciadas. Quem faz Salvador. COSTA LIMA, Paulo et al. (Coord.). Salvador: UFBA, 2002, p. 151
142
10 FRANCO, A., 1995, p. 32.11 SANTOS, Milton. Salvador: centro e centralidade na cidade contemporânea. In: Pelo Pelô. História, cultura e cidade. GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia/ Faculdade de Arquitetura/Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, 1995, p. 16.12 O BNH foi extinto, por decreto presidencial, em 1986.13 SANTOS, M., 1995, p. 20.56 PINHEIRO, E. P., 2002, p. 225.58 Ibidem, p. 232.66 MARIO Cravo Junior. Biografia resumida. Disponível em http://www.cravo.art.br/pohistorico.htm Acesso em 04 set. 2006.67 INSTITUTO Cid Teixeira. Disponível em http://www.cidteixeira.com.br/Template.asp?Nivel=00030009&IdEntidade=462 Acesso em 04 set. 2006.68 SANTOS, M., 1959, p. 95-96.73 AVENIDA secular. Baixa dos Sapateiros completa hoje 170 anos de existência conservando suas características de mercado livre. Disponível emhttp://www.correiodabahia.com.br/2005/07/26/capaeditoria.asp?codedit=capaAqui_Salvador.xml. Acesso em 26 jul 2005.74 Idem, ibidem.75 BRANDÃO, M. A., 1995, p. 98.76 FRANCO, A., 1995, p. 42.77 Idem, ibidem, p. 32.81 Censo 2000. IBGE. Dados do Geocad. Universidade Católica do Salvador. Departamento de Geografia, 2004.82 FRANCO, A., 1995, p. 32.84 Dados da Codeba (Companhia das Docas do Estado da Bahia) Disponível em http://www.codeba.com.br/noticias.php?cod_noticia=255&link_noticia=in Acesso em 31 ago 2006.85 REVITALIZAÇÃO cria um novo Comércio. Disponível em http://www.tribunadabahia.com.br/ Acesso em 23 ago 2005.86 Idem, ibídem.90 Harvey, D., 2005, p.4691 Idem, ibidem, p.46.92 Um obstáculo à intervenção nos edifícios da área é o conflito de interesses entre os herdeiros dos imóveis, muitos deles imóveis de mais de 50 anos de construídos, assim como interesses especulativos por parte desses herdeiros. Na reforma do Pelourinho esses problemas foram enfrentados e resolvidos pelo Governo da Bahia, conforme veremos no capítulo seguinte.98 BRANDÃO, M. A., 2002, p. 151.99 Idem, ibidem, p. 151.
143
NOTAS DO 3º CAPÍTULO
144
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