o capitalismo como religião michael löwy

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Filosofia

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O capitalismo como religio

O capitalismo como religioEm texto preparado para conferncia que far no Brasil, o pensador marxista Michael Lwy segue Walter Benjamin e defende que o sistema social atual um fenmeno essencialmente religioso.

MICHAEL LWY

Entre os documentos inditos de Walter Benjamin [1892-1940] publicados em 1985 por Ralph Tiedemann e Hermann Schweppenhuser no volume 6 de "Gesammelte Schriften" (Suhrkamp Verlag), h um particularmente obscuro, mas que parece de uma atualidade surpreendente: "O capitalismo como religio". So trs ou quatro pginas contendo anotaes e referncias bibliogrficas; denso, paradoxal, s vezes hermtico, o texto no se deixa decifrar facilmente. Como no se destinava publicao, o autor no tinha qualquer necessidade de torn-lo legvel e compreensvel... Os comentrios a seguir so uma tentativa parcial de interpretao, baseada mais em hipteses do que em certezas, e deixando de lado certas "zonas de sombra".O texto de Benjamin , com toda evidncia, inspirado por "A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo" (Cia. das Letras, 2004), de Max Weber [1864-1920]. No entanto, como veremos, o argumento de Benjamin vai muito alm de Weber e, sobretudo, substitui sua abordagem "axiologicamente neutra" (Wertfrei) por um fulminante requisitrio anticapitalista.

" preciso ver no capitalismo uma religio". Com essa afirmao categrica comea o fragmento. Segue-se uma referncia, mas tambm um distanciamento em relao a Weber: "Demonstrar a estrutura religiosa do capitalismo -isto , demonstrar que ele no somente uma formao condicionada pela religio, como pensa Weber, mas um fenmeno essencialmente religioso- nos levaria ainda hoje pelos meandros de uma polmica universal desmedida".Benjamin continua: "Podemos entretanto, desde j, reconhecer no tempo presente trs traos dessa estrutura religiosa do capitalismo". Benjamin no cita mais Weber, mas de fato os trs pontos se alimentam de idias e argumentos do socilogo, dando-lhes um novo alcance, infinitamente mais crtico, mais radical -social e politicamente, mas tambm do ponto de vista filosfico (teolgico?)- e perfeitamente antagnico tese weberiana da secularizao.

O culto

"Primeiramente, o capitalismo uma religio puramente cultual, talvez a mais extremamente cultual que j existiu. Nada nele tem significado que no esteja em relao imediata com o culto, ele no tem dogma especfico nem teologia. O utilitarismo ganha, desse ponto de vista, sua colorao religiosa."Portanto, as prticas utilitrias do capitalismo -investimento do capital, especulaes, operaes financeiras, manobras bolsistas, compra e venda de mercadorias- so equivalentes a um culto religioso. O capitalismo no exige a adeso a um credo, a uma doutrina ou a uma "teologia"; o que conta so as aes, que representam, por sua dinmica social, prticas cultuais. Benjamin, contradizendo um pouco seu argumento sobre a Reforma e o cristianismo, compara essa religio capitalista ao paganismo original, tambm ele "imediatamente prtico" e sem preocupaes "transcendentes".Mas o que que permite assemelhar essas prticas econmicas capitalistas a um "culto"? Benjamin no o explica, mas utiliza, algumas linhas depois, o termo "adorador"; podemos assim considerar que o culto capitalista comporta certas divindades que so objeto de adorao. Por exemplo: "Comparao entre as imagens de santos das diferentes religies e as notas de dinheiro dos diversos pases". O dinheiro, em forma de papel-moeda, seria assim o objeto de um culto anlogo ao dos santos das religies "comuns".No entanto, o papel-moeda apenas uma das manifestaes de uma divindade mais fundamental no sistema capitalista cultual: o "dinheiro", o deus Mammon, ou, segundo Benjamin, "Pluto... deus da riqueza". Na bibliografia do fragmento mencionada uma passagem virulenta contra o poder religioso do dinheiro: est no livro "Aufruf zum Sozialismus", do pensador anarquista judeu-alemo Gustav Landauer, publicado em 1919, pouco antes do assassinato de seu autor por militares contra-revolucionrios. Na pgina indicada pela nota bibliogrfica de Benjamin, Landauer escreve:"Fritz Mauthner ("Wrterbuch der Philosophie") mostrou que a palavra "Deus" (Gott) originariamente idntica a "dolo" (Gtze), e que as duas querem dizer "o fundido" [ou "o escorrido'] (Gegossene). Deus um artefato feito pelos humanos, que ganha uma vida, atrai para si as vidas dos humanos e finalmente torna-se mais poderoso que a humanidade. O nico escorrido (Gegossene), o nico dolo (Gtze), o nico Deus (Gott) a que os humanos deram vida o dinheiro (Geld). O dinheiro artificial e vivo, o dinheiro produz dinheiro e mais dinheiro, o dinheiro tem todo o poder do mundo. Quem no v, quem ainda hoje no v, que o dinheiro, que o Deus no outra coisa seno um esprito oriundo dos seres humanos, um esprito que se tornou uma coisa (Ding) viva, um monstro (Unding), e que ele o sentido (Sinn) que se tornou louco (Unsinn) de nossa vida? O dinheiro no cria riqueza, ele a riqueza; ele a riqueza em si; no existe outro rico alm do dinheiro". verdade que no podemos saber at que ponto Benjamin compartilhava esse raciocnio de Landauer; mas podemos, a ttulo de hiptese, considerar esse trecho, mencionado na bibliografia, como um exemplo do que ele entende por "prticas cultuais" do capitalismo.

Sem trguaA segunda caracterstica do capitalismo "est estreitamente ligada a essa concreo do culto: a durao do culto permanente". "O capitalismo a celebrao de um culto "sem trgua e sem piedade". No h "dias comuns", nenhum dia que no seja de festa, no sentido terrvel da utilizao da pompa sagrada, da extrema tenso que habita o adorador."

Sem descanso, sem trgua e sem piedade: a idia de Weber retomada por Benjamin, quase literalmente; no sem ironia, alis, evocando o carter permanente dos "dias de festa": na verdade, os capitalistas puritanos aboliram a maioria dos feriados catlicos, considerados um incentivo ao cio. Portanto, na religio capitalista, cada dia v a mobilizao da "pompa sagrada", isto , os rituais na bolsa ou na fbrica, enquanto os adoradores seguem, com angstia e uma "extrema tenso", a subida ou a descida das cotaes das aes.

As prticas capitalistas no conhecem pausa, elas dominam a vida dos indivduos da manh noite, da primavera ao inverno, do bero ao tmulo. Como bem observa Burkhardt Lindner, o fragmento empresta de Weber o conceito do capitalismo como sistema dinmico, em expanso global, impossvel de deter e do qual no podemos escapar.Enfim, a terceira caracterstica do capitalismo como religio seu carter culpabilizador: "O capitalismo provavelmente o primeiro exemplo de um culto que no expiatrio (entshnenden), mas culpabilizador". Benjamin continua seu requisitrio contra a religio capitalista: "Nisso, o sistema religioso precipitado em um movimento monstruoso. Uma conscincia monstruosamente culpada que no sabe expiar se apodera do culto, no para nele expiar essa culpa, mas para torn-la universal, para faz-la entrar fora na conscincia e, enfim e sobretudo, para implicar Deus nessa culpa, para que no fim das contas ele mesmo tenha interesse na expiao".Benjamin evoca, nesse contexto, o que chama de "ambigidade da palavra Schuld" - isto , ao mesmo tempo "dvida" e "culpa". Segundo Burkhard Lindner, a perspectiva histrica do fragmento baseia-se na premissa de que no podemos separar, no sistema da religio capitalista, a "culpa mtica" da dvida econmica.Encontramos em Max Weber dois raciocnios anlogos, que tambm jogam com os dois sentidos de "dever": para o burgus puritano, "o que consagramos a fins "pessoais" "roubado" do servio glria de Deus"; tornamo-nos assim ao mesmo tempo culpados e "endividados" em relao a Deus. "A idia de que o homem tem "deveres" para com as posses que lhe foram confiadas e s quais ele est subordinado como um intendente devotado (...) pesa sobre sua vida com todo o seu peso glido. Quanto mais aumentam as posses, mais pesado torna-se o sentimento de responsabilidade (...) que o obriga, para a glria de Deus (...), a aument-las por meio de um trabalho sem descanso". A expresso de Benjamin "fazer a culpa entrar fora na conscincia" corresponde bem s prticas puritanas/capitalistas analisadas por Weber.

AmplitudeMas parece-me que o argumento de Benjamin mais geral: no somente o capitalismo que culpado e "endividado" com seu capital -a culpa universal. Assim, o prprio Deus encontra-se envolvido nessa culpa geral: se os pobres so culpados e excludos da graa, e se, no capitalismo, eles esto condenados excluso social porque " a vontade de Deus" ou, o que seu equivalente na religio capitalista, a vontade dos mercados.

Bem entendido, se nos situarmos no ponto de vista desses pobres e endividados, Deus que o culpado, e com ele o capitalismo. Em qualquer dos casos, Deus est inextricavelmente associado ao processo de culpabilizao universal.At aqui vimos bem o ponto de partida weberiano do fragmento, em sua anlise do capitalismo moderno como religio originria de uma transformao do calvinismo; mas h um trecho em que Benjamin parece atribuir ao capitalismo uma dimenso transhistrica que no mais a de Weber -e tampouco de Marx: "O capitalismo se desenvolveu no Ocidente como um parasita do cristianismo -devemos demonstr-lo no somente a propsito do calvinismo, mas tambm das outras correntes ortodoxas do cristianismo-, de tal sorte que no fim das contas a histria do cristianismo essencialmente a de seu parasita, o capitalismo".O resultado do processo "monstruoso" de culpabilizao capitalista a generalizao do "desespero": "Ele est ligado essncia desse movimento religioso -que o capitalismo- de perseverar at o fim, at a completa culpabilizao final de Deus, at um estado do mundo atingido por um desespero que ainda "esperamos" que seja justo. O que o capitalismo tem de historicamente indito que a religio no mais reforma, mas a runa do ser. O desespero se estende ao estado religioso do mundo do qual se deveria esperar a salvao".No estamos distantes, aqui, das ltimas pginas da "tica Protestante", em que Weber constata, com um fatalismo resignado, que o capitalismo moderno "determina, com uma fora irresistvel, o estilo de vida do conjunto dos indivduos nascidos nesse mecanismo -e no somente daqueles que a aquisio econmica concerne diretamente".Ele compara essa coero a uma espcie de priso na qual o sistema de produo racional de mercadorias encerra os indivduos: "Segundo as opinies de Baxter, a preocupao pelos bens externos no deveria pesar sobre os ombros de seus santos seno como "um leve manto que a qualquer momento se pode retirar". Mas a fatalidade transformou esse manto em uma jaula de ao".De Weber a Benjamin nos encontramos em um mesmo campo semntico, que descreve a lgica impiedosa do sistema capitalista. Mas por que ele produtor de desespero?Sendo a "culpa" dos humanos, seu endividamento para com o capital, perptua e crescente, nenhuma esperana de expiao permitida. O capitalista deve constantemente aumentar e ampliar seu capital, sob pena de desaparecer diante de seus concorrentes, e o pobre deve emprestar dinheiro para pagar suas dvidas.Segundo a religio do capital, a nica salvao reside na intensificao do sistema, na expanso capitalista, no acmulo de mercadorias, mas isso s faz agravar o desespero. o que parece sugerir Benjamin com a frmula que faz do desespero um estado religioso do mundo "do qual se deveria esperar a salvao".

Traduo de Luiz Roberto Mendes Gonalves

So Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005, FOLHA MAIS

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