o pensamento crÍtico e criativo de maurÍcio … ·  · 2014-07-04antônio cândido, michael...

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126 ©RAE VOL. 43 Nº 2 Homenagear Maurício Tragtenberg sempre me parece que é necessário e, ao mesmo tempo, um tributo cujo valor, por maior que seja, tem a pos- sibilidade de ser menor do que deve- ria. Quem teve a oportunidade de conhecê-lo sabe que há sempre mais do que dele se pode dizer. “Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciên- cias Humanas”, organizado por Doris Accioly e Silva e Sonia Alem Marrach é, mais do que uma homenagem, um reconhecimento. Resultado da “Jorna- da Maurício Tragtenberg” realizada na Unesp /Marilia em agosto de 1999, o livro apresenta um conjunto de 28 de- poimentos /análises sobre a vida e a obra desse que foi, sem dúvida, um dos mais criativos, ousados e profí- cuos intelectuais críticos do Brasil. Ao ler, com atenção, cada um dos textos que compõem esse oportuno e bem-vindo livro, fui tomado de emo- ção. Cada depoimento /análise pare- ce ser uma interpretação de uma das O PENSAMENTO CRÍTICO E CRIATIVO DE MAURÍCIO TRAGTENBERG Por José Henrique de Faria Professor Doutor Titular da Universidade Federal do Paraná; Visiting Professor at the University of Michigan. E-mail: [email protected] RESENHA O PENSAMENTO CRÍTICO E CRIATIVO DE MAURÍCIO TRAGTENBERG facetas de Maurício, mas todos mos- tram um mesmo intelectual, um mes- mo homem. Cada texto foi, para mim, de difícil leitura: em nenhum deles fui capaz de ir do começo ao fim sem ser interrompido por lembranças e por reflexões, nem todas exatamente aca- dêmicas, pois é inevitável que surjam replays de conversas, exposições, de- bates. Por isso, mesmo que o livro se apresente em três partes, é impossível separar, em Maurício, o ser humano do intelectual, o pensamento da ação, a generosidade do rigor. Conheci Maurício Tragtenberg em Porto Alegre, em abril de 1978. Em poucos minutos percebi que ele era o guardião de um tesouro e, assim, coloquei-me nesta aventura, que até hoje vivo, de desvendar os mistérios do que parece ser solidamente dado, de não me contentar com as verda- des teóricas definitivas, de não me deixar apanhar pelo dogmatismo. Maurício tinha uma chave para esse percurso: colocar para conversar os que a academia tradicional havia se- parado. Ao ler os depoimentos /aná- lises, vejo que minha percepção apa- rece em todos os textos, tal como aconteceu na homenagem prestada a Maurício na FGV-EAESP. Na primeira parte do livro, encon- tramos Maurício Tragtenberg, como o violinista, no telhado; não apenas o da Rua Catumbi, mas onde habitam seus amigos, alunos, admiradores e críticos. Sonia Marrach, Lélia Abramo, Antônio Cândido, Michael Löwy, Fernando de Carvalho, Evaldo Auraro Vieira, Edgar de Assis Carvalho e An- tonio Valverde falam do Maurício que conheceram, colocando-nos diante do homem. Os depoimentos de Evaldo Vieira e Antonio Valverde são para mim particularmente muito próximos, pois se referem a períodos e observa- ções conhecidas. Todos tratam de si- tuações que revelam a trajetória e as particularidades que o fizeram um MAURÍCIO TRAGTENBERG: UMA VIDA PARA AS CIÊNCIAS HUMANAS De Doris Accioly Silva e Sonia Alem Marrach (Orgs.) São Paulo: Editora da Unesp, 2001.

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RESENHA • ECONOMIA INDUSTRIAL – FUNDAMENTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS NO BRASIL

126 • ©RAE • VOL. 43 • Nº 2

Homenagear Maurício Tragtenbergsempre me parece que é necessário e,ao mesmo tempo, um tributo cujovalor, por maior que seja, tem a pos-sibilidade de ser menor do que deve-ria. Quem teve a oportunidade deconhecê-lo sabe que há sempre maisdo que dele se pode dizer. “MaurícioTragtenberg: uma vida para as Ciên-cias Humanas”, organizado por DorisAccioly e Silva e Sonia Alem Marraché, mais do que uma homenagem, umreconhecimento. Resultado da “Jorna-da Maurício Tragtenberg” realizada naUnesp /Marilia em agosto de 1999, olivro apresenta um conjunto de 28 de-poimentos /análises sobre a vida e aobra desse que foi, sem dúvida, umdos mais criativos, ousados e profí-cuos intelectuais críticos do Brasil.

Ao ler, com atenção, cada um dostextos que compõem esse oportuno ebem-vindo livro, fui tomado de emo-ção. Cada depoimento /análise pare-ce ser uma interpretação de uma das

O PENSAMENTO CRÍTICO ECRIATIVO DE MAURÍCIO TRAGTENBERG

Por José Henrique de FariaProfessor Doutor Titular da Universidade Federal do Paraná; Visiting Professor at the University of Michigan.

E-mail: [email protected]

RESENHA • O PENSAMENTO CRÍTICO E CRIATIVO DE MAURÍCIO TRAGTENBERG

facetas de Maurício, mas todos mos-tram um mesmo intelectual, um mes-mo homem. Cada texto foi, para mim,de difícil leitura: em nenhum deles fuicapaz de ir do começo ao fim sem serinterrompido por lembranças e porreflexões, nem todas exatamente aca-dêmicas, pois é inevitável que surjamreplays de conversas, exposições, de-bates. Por isso, mesmo que o livro seapresente em três partes, é impossívelseparar, em Maurício, o ser humanodo intelectual, o pensamento da ação,a generosidade do rigor.

Conheci Maurício Tragtenberg emPorto Alegre, em abril de 1978. Empoucos minutos percebi que ele erao guardião de um tesouro e, assim,coloquei-me nesta aventura, que atéhoje vivo, de desvendar os mistériosdo que parece ser solidamente dado,de não me contentar com as verda-des teóricas definitivas, de não medeixar apanhar pelo dogmatismo.Maurício tinha uma chave para esse

percurso: colocar para conversar osque a academia tradicional havia se-parado. Ao ler os depoimentos /aná-lises, vejo que minha percepção apa-rece em todos os textos, tal comoaconteceu na homenagem prestada aMaurício na FGV-EAESP.

Na primeira parte do livro, encon-tramos Maurício Tragtenberg, como oviolinista, no telhado; não apenas oda Rua Catumbi, mas onde habitamseus amigos, alunos, admiradores ecríticos. Sonia Marrach, Lélia Abramo,Antônio Cândido, Michael Löwy,Fernando de Carvalho, Evaldo AuraroVieira, Edgar de Assis Carvalho e An-tonio Valverde falam do Maurício queconheceram, colocando-nos diante dohomem. Os depoimentos de EvaldoVieira e Antonio Valverde são paramim particularmente muito próximos,pois se referem a períodos e observa-ções conhecidas. Todos tratam de si-tuações que revelam a trajetória e asparticularidades que o fizeram um

MAURÍCIO TRAGTENBERG: UMAVIDA PARA AS CIÊNCIAS HUMANASDe Doris Accioly Silva e Sonia Alem Marrach (Orgs.)

São Paulo: Editora da Unesp, 2001.

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FRANCISCO ALVESJOSÉ HENRIQUE DE FARIA

brilhante outsider (Valverde), alguémque viveu “a honradez com inteligên-cia” (Vieira), que soube “dar o salto”(Abramo), um “servidor da verdade”(Cândido) que “se destacou pela coe-rência política e intelectual” (Löwy),“um espírito crítico e sensível” (F. deCarvalho), que “apostava em um mun-do mais livre e menos recalcado (E.de A. Carvalho).

A segunda parte do livro é dedica-da à análise das contribuições deTragtenberg para as Ciências Huma-nas, que compreendem suas concep-ções acerca do socialismo e da auto-gestão, tendo a solidariedade comopano de fundo (Doris Accioly e Sil-va); de sua identificação com RosaLuxemburgo e sua (injusta) crítica aHerbert Marcuse (Isabel Loureiro); desuas reflexões críticas à burocracia, àadministração e à lógica capitalista(Ricardo Antunes); de seu investimen-to contra a “delinqüência acadêmica”,em que, em defesa de suas convicçõesque incluem o anarquismo, “lança umpetardo certeiro na universidade bra-sileira” (Edson Passetti); de seu pen-samento heterodoxo fundamentadoem uma prática que escapou dos en-quadramentos burocráticos (LúciaBruno); de sua prática literária que nãopoupava críticas a qualquer forma deautoritarismo (Antonio Ozaí da Silva);do acadêmico diferenciado, fora dopercurso de rotina, sem pergaminhosde escola, um judeu sem templo, ummilitante sem partido, um intelectualsem cátedra (Paulo-Edgar AlmeidaResende); do combatente pela edu-cação, cujos compromissos eram asidé ias e os princ ípios (AguedaBernadete Bittencourt Uhle) que exi-giam a responsabilidade social dospesquisadores, dos quais Mauríciocobrava a finalidade do conhecimen-to, cuja ausência se constitui em fa-tor de delinqüência acadêmica (Ra-quel Pereira Chainho Gandini); do“descolonizador” da história, que

trabalhou com Kantilya e clássicosorientais pouco lidos no Ocidente(Paulo Ribeiro da Cunha); de um so-cialista libertário que buscava no diá-logo de Marx com Weber a crítica dainfra-estrutura e da superestrutura docapitalismo (Pedro Roberto Ferreira);do leitor impaciente quanto aos fun-damentos das harmonias administrati-vas entre capital e trabalho (Felipe LuizGomes e Silva). Enfim, de uma obraque provoca reflexões sobre a ausên-cia da política no contexto contem-porâneo (Franklin Leopoldo e Silva).

A terceira parte do livro trata da-quilo que foi a mais importante ca-racterística de Maurício: a coerênciaentre teoria e prática, sua práxis re-volucionária. Marinice Fortunato falado professor interessado nos alunos,da empatia, da humildade e da soli-dariedade social; José Carlos OrsiMonel fala da solidariedade não so-fística de Maurício com os movimen-tos populares de cunho autogestio-nário, de seu engajamento não só teó-rico, mas de sua ação; Iolanda ToshieIde fala sobre solidariedade de gêne-ro e do compromisso de Mauríciocom a luta dos direitos humanos, ten-do em Rosa Luxemburgo o exemploentre teoria e prática; Liliana RolfsenPetrilli Seguini fala do amigo, do in-telectual intransigente, da pessoa ge-nerosa e irreverente e do compromis-so ético de manter vivo seu pensamen-to; Célia Aparecida Martins fala da voznão silenciada, que não foi destruídapor nenhuma objetivação ou cotidia-nização alienadora; José Carlos Britofala das lutas autogestionárias, tendopor referência o ABC paulista e, juntocom Cleodon Silva, lembra o interes-se e o envolvimento de Maurício nalinha de frente do combate em favordas livres e independentes formas deorganização.

Ler esse livro de depoimentos eanálises sobre Maurício Tragtenberg éler uma história de vida que parece

rara nos dias de hoje. No momentoem que o “centrismo” político tomaconta da sociedade, em que o confor-mismo abraça a academia, em que acrítica é tratada como “denuncismo”diante dos “pragmatismos solucionis-tas”, torna-se necessário resgatar aobra de Tragtenberg como exemplo deuma luta que não faz concessões aqualquer tipo de violência, pois, comoensina Hanna Arendt, “quando tudoé permitido, tudo é possível”.

Quando tantos e tão importantesprofessores se unem para homena-gear um outro professor, em uma rea-lidade que não é dada a esse tipo dereconhecimento e delicadeza entrepares, normalmente voltados a suasautopromoções, é porque o home-nageado é de tal sorte referenciadoque transcende à própria lógica do“complô de belas almas”. O livro queresulta dessa homenagem talvez fos-se encarado pelo homenageadocomo desnecessário ou exagerado,mas para os que conheceram Maurí-cio Tragtenberg e para os que não oconheceram e precisam conhecer, éoportuno e preenche um vazio naqualificação daquele que foi um dosmais importantes intelectuais críticosbrasileiros e que pertence para sem-pre à história do pensamento original.O livro é, na verdade, um grande pre-sente que as organizadoras e os auto-res ofereceram para todos os que acre-ditam no pensamento original, críti-co e criativo.

Ao final, divido meus sentimentoscom Passetti a respeito dos eventoscomemorativos e suas finalidades. Há,nesses casos, sempre o risco de umacerta prática televisiva em que o ho-menageado, rumando para o “indes-trutível”, já possui a reportagem pron-ta antes do fato final. A qualidade dosdepoimentos e reflexões constantes de“Maurício Tragtenberg: uma vida paraas Ciências Humanas” é, de fato, umaantítese da festa dos culpados.

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