o anjo de copacabana - perse · do rio de janeiro, conhecida como a princesinha do mar, um bairro...
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Copyright© 2004 by Fabio Bastos
Direitos em Língua Portuguesa reservados ao autor
Revisão: Ana Lúcia Proa
Edição Digital
INDICE
Assembleia celestial
Seu Gusmão
Dona Iolanda do 702
Thiago, o garotão do 1306
Zefinha, a faxineira
Atevaldo, o Ceará
O angélico Seu Gusmão
Dona Iolanda e Thiago
Zefinha e Ceará
O barato do Seu Gusmão
Pode me chamar de Iolanda
O Ceará das coroas
De Iolanda para Ioiô
Creche escola Anjo da Guarda
Novas experiências do Seu Gusmão
O sonho de Ioiô
Missão cumprida
Autobiografia
Sou carioca, nascido e criado em Ipanema,
engenheiro químico aposentado, tradutor e flamenguista.
Dedico meu tempo, que já foi precioso e hoje é ocioso, a
uma caminhada na orla, um mergulho no mar, um
cineminha, uma boa leitura e a escrever. Prefiro os textos
curtos, mas de vez em quando me arrisco num mais longo.
Comecei quando tinha uns cinquenta anos e não parei
mais. A propósito, cito um trecho do livro Dom Casmurro
de Machado de Assis. “Essa sarna de escrever quando
pega aos cinquenta anos, não despega mais. Na mocidade
é possível um homem curar-se dela...”. Foi essa sarna que
me pegou.
E-mails do autor: fbastos@uninet.com.br e
fabiobastos99@gmail.com
Nota do autor
Escrevi este texto e publiquei uma edição impressa
em 2004. Relendo agora alguns trechos resolvi reescrevê-
lo e publicar esta edição digital. Nos nove anos que se
passaram entre a edição impressa esta digital, aprendi
novas técnicas nos cursos e oficinas que participei e
acredito que minha escrita evoluiu. Os que me
acompanham desde o inicio podem avaliar se isto
realmente aconteceu. Sendo esta história uma das minhas
favoritas, uma sátira aos personagens cariocas e seus
costumes, modifiquei algumas partes, corrigi pequenos
erros e atualizei a trama. Para os que leram a versão
impressa, vale a pena ler de novo. Para os que não leram, é
a oportunidade de apreciar as aventuras de um anjo da
guarda em Copacabana. Agradeço à minha amiga e
cronista Ana Lúcia Proa que fez a revisão ortográfica.
Assembleia celestial
Como sempre acontece no início de cada século, os
anjos, arcanjos, querubins, serafins e outros afins
representantes de entidades angelicais estavam reunidos
numa grande assembleia celestial. O objetivo do encontro
era avaliar os resultados do século que findara e traçar
planos para o novo que se iniciava. Como de hábito a
classe mais numerosa e barulhenta, a dos anjos da guarda,
era a que mais reclamava e reivindicava. A queixa
principal era o excesso de trabalho.
— A população desse planeta ficou maluca —
declarou o porta-voz da classe, um anjo velho e com um
semblante cansado — no século XX tivemos duas guerras
mundiais e várias outras menores. E este século XXI já
começou quente com o atentado terrorista que derrubou as
torres gêmeas de Nova York. As perspectivas não são
nada boas e para executarmos com eficiência nossa tarefa
de proteger a humanidade temos que aumentar o número
de anjos da guarda — ele concluiu sob os aplausos dos
colegas.
— Impossível — retrucou de imediato o SGA
arcanjo Gabriel, Secretário Geral Angelical — a história
da humanidade está marcada por guerras e outros flagelos
e vocês sempre deram conta do recado. O que precisam é
se organizar melhor para cumprir suas tarefas. Não há a
menor hipótese de aumentarmos o número de anjos da
guarda — concluiu com firmeza pondo um ponto final na
questão.
Para os leitores não familiarizados com anjos da
guarda, vou abrir um parêntese para explicar sucintamente
como a coisa funciona. Para cada ser humano que nasce é
designado um anjo da guarda que é responsável pela sua
proteção corporal e espiritual, para afastá-lo do mal e
conduzi-lo para o bem. A seleção dos anjos é feita pela
data do nascimento e assim, o mesmo anjo fica
responsável por diversas pessoas em várias partes do
mundo. Para continuar lendo a história é só o que vocês
precisam saber, por isso fecho o parêntese. Quem quiser
saber mais, consulte o Google.
Diante da impossibilidade do aumento do quadro,
os anjos da guarda se reuniram em separado para discutir
o problema e procurar alternativas. A que mais agradou
foi a da mudança de critério na seleção dos anjos: além da
data de nascimento seria incluído um critério geográfico.
Um anjo seria responsável pelas pessoas nascidas dentro
de uma área limitada. Seriam criados anjos especialistas
que conheceriam melhor os hábitos de cada povo, o que
facilitaria a tarefa de protegê-los.
A sugestão foi colocada em votação e aprovada.
Mas antes de pô-la em prática, foram designados alguns
anjos para testar o novo sistema. Eles seriam enviados
para os diversos países do mundo por um ano e viveriam
como humanos para se tornarem especialistas na cultura e
nos hábitos de cada povo. Por sua grande experiência e
pela sua característica de se adaptar facilmente aos lugares
e às situações, Natanael foi indicado para ser o anjo
brasilianista e aprender o famoso jeitinho brasileiro.
Ao saber que havia sido indicado para o Brasil,
Natanael consultou o seu tablet celestial para escolher um
lugar para viver. Encantou-se por Copacabana, no coração
do Rio de Janeiro, conhecida como a princesinha do mar,
um bairro chique, próspero, com gente jovem e bonita. O
que ele não reparou é que o arquivo, desatualizado, era
datado de meados do século XX.
Seu Gusmão
Só que foi na Copacabana do século XXI que o
anjo Natanael escolheu para viver. Ele estranhou quando
chegou, mas se conformou, pois estava ali a trabalho e não
para se divertir. Já que a Copacabana atual era um bairro
de idosos ele resolveu se caracterizar como um deles. Em
Roma como os romanos.
Após avaliar vários candidatos Natanael decidiu se
incorporar em Aderbal Gusmão, que tinha um perfil
adequado para o que ele queria: um comerciante
aposentado, viúvo e que morava sozinho num apartamento
em Copacabana. Seu Gusmão, como ele era conhecido,
havia sofrido um infarto e estava no CTI de um hospital,
desenganado pelos médicos.
Natanael foi até o hospital e explicou sua missão
para o Anjo da Morte com sua roupa preta que esperava
pacientemente o moribundo bater as botas para conduzi-lo
para o outro mundo.
— Pode ir sem susto companheiro e deixa esse aí
comigo. Mas volta daqui a um ano para buscá-lo.
Natanael se despediu do colega e se acomodou
como pode no corpo do Seu Gusmão para dar inicio a sua
missão. Ao abrir os olhos, já como simples mortal,
Natanael se viu numa cama de hospital, entubado e
monitorado, com uma máscara de oxigênio na cara, uma
mangueira enfiada goela abaixo, cateteres e fios
espalhados pelo seu corpo e com os braços amarrados na
cama. Parecia um computador velho ligado a seus
periféricos.
Com dificuldade ele conseguiu abanar as mãos,
balançar a cabeça e emitir um grunhido na tentativa de
chamar a atenção de alguém. Algum tempo depois uma
enfermeira que passava no corredor levou um tremendo
susto ao ver aquele quase defunto se mexendo. Há cinco
dias que ele jazia imóvel naquela cama, sem som e sem
imagem, esperando o coração parar de bater para liberar o
leito para outro infeliz.
— Cruz credo! Num é que o homem está se
mexendo! — ela exclamou fazendo o sinal da cruz.
Pouco depois o leito de Seu Gusmão estava
cercado de médicos que não acreditavam no que viam. Os
resultados dos exames não mostraram nada de anormal no
coração dele e nenhum vestígio do infarto. Seu Gusmão
reclamava que queria ir embora e, diante dos fatos, os
médicos se convenceram que ele estava recuperado e em
condições de voltar para casa.
— Não há uma explicação científica para o fato.
Só pode ser coisa do sobrenatural — eles concluíram sem
saberem que estavam cobertos de razão.
Seu Gusmão era um daqueles velhos ranzinzas e
sovinas que havia piorado depois que ficou viúvo. Filho
de um português dono de uma marcenaria no subúrbio e
de uma loja no Catete, ele cuidou desde cedo da loja
enquanto seu irmão trabalhou com o pai na marcenaria.
Quando o pai morreu Seu Gusmão ficou com a loja e o
irmão com a marcenaria, que logo vendeu para os
funcionários e foi viver em Portugal.
Seu Gusmão manteve a loja, casou-se, teve um
único filho e um casal de netos. Entretanto, raramente via
a família, pois não se dava com a nora com quem já tivera
diversos desentendimentos. Depois que ficou viúvo, nem
mesmo o natal ele passava com o filho e netos. Levava
uma vida solitária e triste ocupando-se com a loja. Quando
a idade começou a pesar foi obrigado a vender a loja, já
que o filho nunca se interessou em manter o negócio.
Para se ocupar depois que vendeu a loja foi ser
síndico do edifício em que morava em Copacabana.
Passou a ser o terror dos empregados e até mesmo de
alguns moradores. Tinha o hábito de jogar um papel
amassado com a data nos corredores e escadas do prédio
só para ver quanto tempo ele levava para ser recolhido.
Passado alguns dias se o papel ainda estivesse no chão, ele
chamava o responsável pela limpeza, pegavam o papel e
abriam para ver a data, e aí, toma de esporro. Mas justiça
seja feita, o edifício era um dos mais bem cuidados do
bairro. Ele era moralista e os porteiros tinham ordem para
barrar a entrada no prédio de pessoas com aparência
estranha, viados e putas, para ser mais explícito.
— Isso aqui é um edifício família, não é e nem vai
ser um duzentos — dizia ele referindo-se ao famoso
edifício da Barata Ribeiro.
Por conta de seu temperamento intempestivo, vira
e mexe ele se desentendia com moradores. Quando ouvia
música alta depois das dez da noite ou um vizinho
reclamava, ele batia na porta do apartamento e ordenava
que abaixassem o som. Se não fosse atendido chamava a
policia. Foi num desses bate boca com um morador por
causa de uma festinha barulhenta que ele enfartou e foi
levado para o hospital por Dona Iolanda, sua vizinha e
amiga.
Após sua milagrosa recuperação o filho queria que
ele fosse morar com ele, mas Seu Gusmão recusou e o
filho não insistiu, antevendo problemas com a mulher.
Dona Iolanda também ofereceu para que ele passasse uns
dias no apartamento dela, mas também deu graças a Deus
quando ele recusou. Seu Gusmão queria mesmo era ficar
sozinho e dar início a sua missão terrestre. Chegou ao
edifício num taxi com Dona Iolanda e foi recebido e
cumprimentado por empregados e moradores que estavam
na portaria, incrédulos com sua recuperação.
— Vaso ruim não quebra — alguém disse depois
que Seu Gusmão entrou no elevador. Todos riram.
Dona Iolanda do 702
Dona Iolanda era uma das mais antigas do prédio.
Morava num apartamento próprio de dois quartos,
entulhado de móveis antigos que haviam sido da casa dos
pais dela e dos quais ela nunca quis se desfazer. Era uma
mulher vaidosa e preocupada com sua aparência. Quando
lhe perguntavam a idade ela respondia que tinha sessenta
anos, mas na verdade já beirava os setenta. Por muito
tempo ela se disse cinquentona, mas agora já admitia ter
atingido a casa dos sessenta, de onde não pretendia sair.
De certa forma ele tinha razão, se fosse francesa ela faria
soixante-diz, onze, douze, etc., até chegar ao quatre-vint,
sem passar pelos setenta. Só que Dona Iolanda não era
francesa, e sim brasileiríssima. Morava em Copacabana
sendo mais uma representante da terceira idade a
engrossar a estatística do bairro. Do tipo boazuda quando
jovem, ela teve diversos namorados e pretendentes para
casar, mas os relacionamentos não duraram muito.
— Homem pra mim tem que ser com agá
maiúsculo, pra me casar com porcaria eu prefiro ficar
solteira. — ela costumava dizer.
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