misticismo e ideologia no contexto cultural portugués
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-
7/25/2019 Misticismo e ideologia no contexto cultural portugus
1/10
M i g u e l E s t e v e s C a r d o s o
*
Anl ise
Social ,
vol.xviii (72-73-74),1982-3.-4.-5.,1399-1408
Misticismo e ideologia
no contexto cultural portugus:
a saudade, o sebastianismo
e o integralismo lusitano
Servindo-me da metodologia relativista sugerida por Peter Winch em The
Idea o f a Soc ia l Sc ience
l
para a anlise das aces sociais no co ntex to cultural a
que naturalmente pertencem, quero servir-me da saudade e do sebastianismo
como ideal types (no sentido heurstico que lhe deu Weber)
2
, para abord-los
naquilo que ambos contm de ressonncia poltica.
Apresentarei a doutrina do integralismo lusitano como exemplo til dum
esforo de soluo ideolgica da contradio portuguesa entre a saudade
(aqui expressa no medievalismo) e o sebastianismo (revelado no tema do
Quinto Imprio). Para tal, servir-me-ei com especial realce do percurso doutri-
nrio de Antnio Sardinha, que, como adiante se ver, oscilou e depois per-
correu o espao entre as duas concepes propostas.
Tanto a saudade como o sebastianismo so donos de um determinado tipo
de discurso e pertencem, embora no hermeticamente, a um especial tempo
verbal. Definamos ento ambos estes modos de ver naquilo que tm de assi-
nalvel e til.
A SAUDADE
Tomou-se um lugar-comum isolar a saudade dentre aquelas caractersticas
mais ou menos salientemente originais da nossa cultura. Embora tambm se
possa dizer que os lugares-comuns fabricam, com a sua frequncia e assidui-
dade,
a sua prpria justificao de existncia e verd ade ; creio no ser d escabido
tomar a saudade como tema obsessivo da nossa literatura e cultura.
Para que seja me todolog icam ente til, necessrio defini-la en qu an to
modo
de ver
(dirigido a pessoas, a lugares ou prpria histria), caracterizada por
determinada
mane ira de sen ti r
que atribui um a escala de valores de acordo com
uma concepo descontnua do tempo. O que se
valoriza
ento o passado
custa do prese nte e, de certo mod o perverso, ma s coeren te, o prese nte custa do
futuro. Dantes que era bom ser a expresso popular que sintetiza boal-
mente a primeira contraposio e As coisas vo de mal a pior a segunda.
Tal como S Carneiro escrevera, Para mim sempre ontem, tambm os
integralistas da primeira gerao assim concentravam o seu olhar. A saudade
no apenas, ou tanto, um olhar como um a
relao
entre olhares, comparao
do mal de hoje com o bem de ontem.
* GlS /Institu to de Cincias Sociais e Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa.
1
Peter Winch,
The Idea o faSoc ia l S c i e nce ,
Londres, 1958.
Edward Shils e Henry A. Finch (eds.),
The Methodologyo ftheSoc ia l S c i e nce s ,
Glencoe, 1949.
1399
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Tem interesse considerar, por instantes, a noo de
saudade histrica, j
poe-
ticam ente em pregue por Fern and o Pessoa. Se cada olhar escolhe ou escolhido
pelo o bjecto qu e o fascina, certo qu e, na obra integralista (e no s) existem
dois focos onde se concentra a ateno saudosa. At porq ue a maior parte do tra-
balho doutrinrio dos integralistas se destinava a reabil itarasfiguras e os pero-
dos histricos que pensavam dever constituir a sua
tradio
e, neste sentido,
creio ser lcito falar na construo , ou recon struo , dum
passadod igno ,
valo-
rizao que no diferente, nem to-pouc o se distingue clara m ente, do processo
de embelezamento dobemperdidoque est na natureza do fenmen o saudoso.
Esses do is focos sero, no to grossomodocomo se poder partida pensar,
o perodo quatrocentista, pr-Descobrimentos, entendido aqui como o ponto
mais desejvel, mas ainda no desenvolvido, da Idade Mdia, e o perodo
quinhentista, dos Descob rimentos, entendido aqui como
o
pon to menos desej-
vel,
mas ainda no decadente, da Renascena.
Estes dois temposacarretam , no iderio histrico dos integralistas, conside-
raes tomadas como consequncias ideolgicas sobre a Nao e o Estado
portugus.
Assim possvel distinguir os dois tipos de raa e os dois tipos de pas que
pertencem a cada tempo:
Por um lado, no temp o medieval,oPortugusum
lavrador poeta
maneira
de D. Dinisapegado terra, suavemente catlico e supersticioso, de brandos
costumesepaixes. Por
outro,
no tempo dos Descobrimentos,oPortugus um
navegador guerreiro maneira de Albuquerque
sedento de aventura, mais
para o m ar do q ue para a terra, apaixonado , violento e dum a religiosidade terna-
mente mstica.
Ao primeiro portugus corresponde um Portugal-quinta, a piquena casa
lusitana de que falava Cam es; e ao segundo um P ortugal-im prio, aquele que
dera novos mundos ao mundo.
Na historiografia integralista, estes dois modelos
cham emos-lhes
assim servem e so servidos na construo das respostas perenes sobre a
naturezae odes t inode Portugal e dos Portugu eses; ou seja, aquilo qu e Portugal
e os Portug ueses eram man i fe s tamen te e so agoran o fundo aqui lo que j foram
ou poderiam ter sido e agora deveriam finalmente assumir. Esta questo, que
Sardinha circunscreveu com as palavras A Verdade Portuguesa,encontra-se
evidentemente na base de todas as interrogaes que se fizeram, se fazem e
decerto continuaro a fazer-se sobre a identidade interior e exterior do Pas
lugar dos Portugueses e de Portugal, e de uns e outro, no mundo.
possvel dividir as fontes desta reconstruo do passado, como saudade
histjica, de acordo com o seu fundamento na realidade perceptvel e interpre-
tveLA ssim com o a saudade
toutcourt
pode co nter um m aior ou me nor grau de
embelezamento
e
transformao (ao pon to de
o
letrista An bal Naz ar ter excla-
ma do que at os tempo s mau s, na saudade, pareciam bo ns)
3
, tamb m a saudade
histrica se pode ap roximar m ais, ou men os, dum a tentativa sincera de conhe -
cer o passado , seleccionado o mais fielmente possvel, na escolha e no estudo de
uma tradio.
Chamando real idadehistricao conjunto de dados mais ou me nos verifica-
dos e comprovados q ue so plausivelmente interpretados e inter-relacionados,
pode fazer-se a seguinte discriminao:
1. Real idade histrica
Um a interpretao razoavelm ente optimista desta.
3
Dotempo da mocidade /S a saudade icou.. . IChega agen te a ter saudade /Dashorasms que
1400 passou
(Mascarenhas Barreto,
Fado,
Lisboa, s. d.)
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2.
Re al idade histrica modif icada-
Aqui se situa o tratamento dado por
Sardinha e pelos outros integralistas a mitos e lenda s, com o sejam, mais gritan-
temente, o Milagre de Ourique e a lenda sebstica. Alfredo Pimenta, alis,
definiu com honestidade o relativismo que presidia sua viso e reviso da
histria.
Tal como Antnio Sardinha dissera que no podemos hoje encarar a
questo do milagre de Ourique com o critrio exterior, todo pio e circunscrito,
atravs do qual Alexandre Herculano a encarou
4
, tambm Alfredo Pimenta
escreveu corajosamente:
A v erdade a verdad e? . Mas a verdad e, fora da Revelao, no existe.
Se tenh o de tom ar um a verdade relativa, adopto
a
verdade que serve a minha
Ptria, e no a que pode prejudic-la ou dim inu-la. Porisso,tenho para m im,
sinto-o e proclamo-o, que a minha Ptria a mais bela, a mais nobre, a
maior de todas as Ptrias, e que so estas que devem servir a m inha , e no a
minha que deve servir a dos outros
A batalha de Aljubarrota contada pela Histria de Portugal uma; a
mesma batalha contada pela Histria de Castela outra. Qual delas a ver-
dadeira? No mundo das transcendncias, se calhar, nem uma nem outra;
mas,
como eu vivo neste mu ndo , no hesito: A verdadeira a dos portugue-
ses,porque nos exalta, e nos distende os nervos em estmulos de herosmo.
N um a palavra: em histria de Portugal verdad eiro tudo qu anto glorifique a
Nao P ortuguesa; falso tud o qu anto a deprima, a dim inua, a enerve e a
enxovalhe.
Por isso, eu, historiador, se fosse historiador, seria um historiador objec-
tivo com a reserva acima indicada
5
.
3. Real idade histricahipotticaTrata-se de um a curiosa forma de his-
tria, freque ntem ente feita pelos integralistas, que consistia em tecer conside-
raes baseadas numa premissa condicional pretrita, na forma da proposio
Se isto [no] tivesse acontecido [...] ento [...]. Pressupe, implicitamente,
uma situao de encruzilhada na qual dois ou mais caminhos poderiam ter sido
escolhidos, tendo embo ra sido historicamente seleccionados um, ou o, cam inho
menos desejvel.
Encontramos aqui as conjecturas do tipo Se no tivssemos perdido a
batalha de Alccer Q uibir..., Se no tivssemo s partido para a ndia... ou Se
D.
Miguel tivesse podido continuar como rei de Portugal...
Este tipo de anlise contm dois aspectos diversos. O primeiro a recons-
truo do presente surgindo de um passado corrigido (conve nientem ente alte-
rado); e o segundo uma espcie de autocompaixo nacional resultante da
conscincia de oportunidades perdidas e da avaliao negativa do presente tal
qual ele . Evide ntem ente, imp utam-se responsabilidades pela utopia gorada e
tiram-se ilaes segundo a proposio O que poderamos ser se....
Os integralistas, na sua primeira fase, utilizavam esta realidade histrica
hipott ica sobretudo em relao aos Descobrimentos-aquilo que Portugal
poderia ter sido se no tivesse empreendido essa ambio. o que Alberto
Monsaraz diz no primeiro nmero da Nao Portuguesa:
Se a voz do Velho do Restelo fosse ouv ida, as ma deiras d as naus seriam
arados para lavrar a terra fecunda e semear a alegria, a abund nc ia e a paz
6
.
4
Antnio Sardinha,
NaFeirados Mitos ,
Lisboa, 1926, p. 145.
5
Alfredo Pimenta,
N ovos Estudos Filosficos e Crticos ,
Lisboa, 1935, pp. 106-107.
6
A. M , O nosso rei, in
NaoPortuguesa ,
l.
a
srie, n.3, Junho de 1914, p. 67. 14 1
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4.
Real idade histrica
imaginr ia Esta fonte inclui todas as explicaes
patentemente absurdasemredordeperodo s cuja distncianot empoefaltade
documentosseprestamespeculaoe inveno. Na grande maioriadoscasos
trata-se
de
responder
a
perguntas sobre
a
origem
da
nacionalidade p ortuguesa
com teorias mais
ou
menos mitopoticas, como
foi a
descendncia
dos
Portu-
gueses, traada por An tnio Sardinhaem
O Va lorda
Raa,at aos habitan tesda
ilha lendria
de
A tlntida
7
.
,
contudo,
uma
manipulao pouco popular
na
generalidade dosescritores integ ralistas.
So estas, portanto,
as
fontes
de que se
servem
os
integralistas para reco ns-
truir
o
passado digno
de
Portugal.
Incidindo sobretudo sobre
a
poca
de
Quatrocentos,
os
integralistas cons-
truram um paraso medieval portugus,
contra
a viso do imprio que lhe
sucederia.
Segundo esta viso, de um Portugal tranquilo, pacatamente prspero e
tradicional, a Idade Mdia ter sido o ponto alto da histria portuguesa, a
acalmia antesda tempestadedandia,e todaela tem ocarcter duma saudade,
de embelezamento do passado, de arrependimento, de dolorosa e doce lem-
brana.
Lus
de
Almeida Braga, escrevendo
em
1931, dizia
que
verdadeiramente
no havia entoclasses
pobres;
s osindivduoso podiam ser, por virtude
de cir-
cunstncias excepcionais efortuitas
incndios, pestes,asgrandes fomes,as
doenas longas. Mas esses tinham nos mosteiros hospitalidade generosa e
terna
8
.
Mais adiante,
e
repare-se
na
especial nfase
da
linguagem , toda
ela
tingida
de saudade:
A ningum faltava
uma
pedra redonda para erguer
o
lume,
nem
havia
quem
no
tivesse onde abrigar-se
noite.
As
matas
da
Coroa davam lenh a
a
uns,
a
outros madeira para rbicas
de
arados
e
para caibros [...]
9
No faltam
na
obra integralista descries deste tipo.
A
ideia dominante
duma beleza interrompida. Como explica Antnio Sardinha
na
Teoria
das
Cortes Gerais, utilizando
os
dois conceitos
de
concrdia
e de
imperiumpara
o
efeito (descrever
os
conflitos
da
concrdia
com o
imperium
descrever, quase
clinicamente,
o
pathos atrofiador
da
Nacionalidade)
10
,
a
interrupo
dos
Descobrimentos
ps fim
possiblidade
de uma
harmonia econmica, social
e
poltica quase atingida:
Cortadoameiodasua jorn ad a histrica,no pde P ortugal, pela pertur-
bao cosmopolita deQu inhentos, seguira linha naturalda sua formao.
Abastardou-se
s
a
realeza, corrompeu-se
o
Municpio,
as
classes,
de
ncleos
necessrios
resistncia
da
Nao, mudaram-se,
com o
andar
dos
tempos,
em simples caritides
do
poder
11
.
7
Ver o
captulo O esprito
de
Atlntida
em
O
Valor daRaa,
Lisboa, 1915,pp. 72-102, sobre-
tudo pp. 80-94. Depois
de
tentar estabelecer
a
existncia
da
Atlntida, Sardinha traa
as
origens
do
qu e
ele
chama H.-Atlanticus quela ilha.
8
Lus
de
Almeida Braga, Dos tempos ureos,
inIn tegra l i smo Lus i tano ,
vol.
i,
fasc. vi, Setem-
br o
de
1932, p.
285.
9
Id.,
ibid.
p. 286.
10
Antnio Sardinha, Teoria
das
Cortes Gerais, prefcio
edio
de 1924 das Me mr ias
e
A lguns Documen tos para
a
His tria
e
Teoria
das
Cortes Gerais
[...]
Ordenadas
e
Compos tas
em
1824
pe lo
2.
Visconde
de
Santarm,
Imprensa
de
Portugal-Brasil, Lisboa,
p .
cxxxi.
14 2
n
Id.
ibid.
p.
cxiv.
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O SEBASTIANISMO
Por ser conhe cida a viso que de Qu atrocentos tin ham os integralistas, cujo
lema era, prec isam ente , restaurar, no sculo XX, a Mona rquia de Qua-
trocentos
12
possvel compar-la com a outra viso dos integralistas, que j
no visava Quatrocentos, mas sim Q uinhen tos, que j no amb icionava aconcr-
dia ,
mas sim o
imperium.
Estoutra viso sucede primeira, nom eadam ente no
percurso ideolgico de Antnio Sardinha, rejeitada mais ou m enos completa-
mente pelos seus companheiros da primeira gerao (Hiplito Raposo, Lus de
Alm eida Braga, Jos Pequito R ebelo), mas b em acolhida pela segunda gerao
(Marcelo Ca etano , M anue l M rias, Pedro Teotn io Pereira), a qual iria ajudar
a
implantar o Estado Novo.
Se primeira viso de saudadepertencia um a imagem idilicamen te
med ieval de P ortugal, alicerando-se a a dou trina poltica integralista, de tradi-
cionalismo, nacionalismo isolacionista, descentralizao e anti-imp erialismo,
segunda
sebas t ian i s ta
correspondia um a imagem g loriosamente pica, que
praticamente invertia aqueles valores anteriores, optando agora pelo interven-
cionismo, pelo peninsularismo, pelo imperialismo e, necessariamente, pelacentralizao.
Como metforas sugestivas destas duas posies temos, de um lado (o da
saudade , A s Lricasde Cames e o antagonismo em relao Espanha e, de ou-
tro (o do sebas t ianismo , O s Lusadas e a proposta de aliana peninsular, base
para o ambicionado Quinto Im prio, o Ibero-Am ericano, que reuniria os pases
ocidentais de expresso castelhana
e
portugu esa e faria do ocean o Atlntic o, nas
palavras de Antnio Sardinha, um lago portugus.
So dois tipos de discursos diferentes. Basta comparar a linguagem de
Sardinha na Teoria das Cortes Gerais, uma exaltao de
concrdia ,
com a
exaltao de
imperium
que m arca os editoriais da 2.
a
srie da revista
Nao
Por-
tuguesa
e colectneas como
A A l i a na Pen i n su la r .
O discurso sebastianista,
plenamente assumido e reconhecido, vemo-lo na seguinte passagem de Sar-
dinha:
Talvez que uma secreta voz nos grite que a Portugal o Senhor reserve,
pela paixo e morte que est padecendo, a misso sacratssima do restau-
rador da Christanda de desfeita. A nossa peq uen ez, a destruio en tre ns de
tud o qua nto se conve ncionou cham ar o existente [...] represe ntam , ou no
representam , sinais de predestinao indubitvel?S e,pelo desvio do eixo da
civilizao do Med iterrne o para
o
Atlntico, a idade mo derna se deve a Por-
tugal e se Portugal, em mais de uma jorn ada de epope ia, salvou a Euro pa da
onda islam ita, porq ue n o acreditarmo s no milagre que h-de vir n o mila-
gre de que a misria actual o preo de o haverm os me recido no s desgnios
profundos de Deus?
13
Sardinha, embora sempre u m m stico, havia conden ado o misticismo na sua
infncia doutrinria positivista e maurrasiana, dando-a por caracterstica da
alma castelhana, naturalm ente oposta portuguesa. No entanto , num dos seus
momentos mais lcidos assinala a viragem e, influenciado por Sorel, exalta o
que ele pensa ser o valor dos m itos, entre os quais o sebstico ocupa ria lugar de
especial realce:
Sem um poder mstico que unifique, as sociedades no perduram.
O m ilagre deOuriquefoi para ns o sentido oc ulto de um a vocao imortal a
12
Ns, integralistas, muito dispostos a ressuscitar neste sculo vigsimo do nascimento de
Nosso Senhor Jesus Cristo a monarquia quatrocentista de El-Rei D. Joo II (Antnio Sardinha,
Glossr io dos Tempos ,
Lisboa, 1942, p. 103).
13
Nao
Portuguesa
2.
a
srie, n. 1,
p
5. 14 3
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cumprirfoi uma finalidade que nos comunicou segurana e altivez nas
grandes jornada s da nossa histria. Desde que o mito esm oreceu n os hori-
zontes da vida portuguesa, nunca mais arrancmos jornada direita, nem
soubemos que destino realizar. A nossa histria tomou-se ento, na frase
incisiva de algum, uma histria de ocasies perdidas. O que a misria
presente explica-se bem pela ausncia duma fduma crena , que nos
estimule as vontades e obtenha assim a vontade que a Nao nopossui
14
.
Compare-se este depoimento com aquela famosa passagem de Fernando
Pessoa em qu e se faz como que um convite auto-sebastianiza o daliteinte-
lectual portuguesa, para se compreender a funo do sebastianismo nas
doutrinas nacionalistas da I Repblica, das quais o integralismo lusitano ser a
mais importante:
Temos, felizmente, o mytho sebastianista, com razes profundas no
passado e na alma portuguesa. Nosso trabalho pois mais fcil; no temos
que criar um my tho, seno que renov-lo. Com ecem os por nos em beb edar
d esse
son ho, por o integrar e m ns, por o incarnar. F eito isso, por cada um
de ns independentemente e a ss consigo, o sonho se derramar sem
esforo em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosphera estar
creada, em q ue todos os outros, com o ns, o respirem . Ent o se dar na alma
da Nao, o phenmeno imprevisvel de onde nascero as Novas Desco-
bertas, a Creao do Mu ndo
Novo,
o Qu into Imp rio. Ter regressado El-Rei
D. Sebastio
15
.
Na bibliografia do integralismo vemos que o sebastianismo aproveitado
das seguintes formas:
1.
Como caracterstica racial.
2.
Como forma de nacionalismo.
3.
Como justificao de misso divina.
4.
Como justificao do imperialismo.
1.A p rimeira, j tratad a por O liveira M artins e Teixeira de Pa scoais, encon-
tra eco em Sardinha: NoSebas t ian i smo se conden sa, pelo e xposto , a filosofia
inata da alma portugu esa
l6
, e deve com preend er-se como a afirmao esperan-
osa, ela prpria talvez sebastianista, de um a reserva mstica ex istente na pop u-
lao portuguesa, a qual os integralistas esperavam vir a recorrer para pr em
prtica os seus planos polticos.
2.
A segunda , tam b m inspirada pela conhe cida opinio de Oliveira Martins
segundo a qual o sebastianismo teria sido uma prova pstuma da Nacionali-
dade,
segue-se logicam ente prime ira, servindo de base m tica ideologia inte-
gralista que Sardinha adoptou depois do seu exlio em Espanha e que entrava
em conflito com aquela estabelecida inicialmente.
Curiosamente, Sardinha utiliza-a de uma maneira diferente
ou seja, no
v o sebastianismo j como uma afirmao de nacionalidade contra a nacio-
nalidade castelhana, mas como uma forma superior, universal, da aspirao
nacional.
14
Antnio Sardinha,
Glos sr io dos Tempos ,
Lisboa, 1942, p. 115.
15
Fernando Pessoa, Portugal-imprio: um inqurito nacional,
in
Petrus,
Re gres so ao Sebas-
t ian i smo,
p. 108.
14 4
16
Antnio Sardinha,
A A l i a na Pen i n su la r,
4.
a
ed., Lisboa, 1974, p. 95.
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Assim possvel destrinar trs aspectos desta aplicao do sebastianismo,
metaforicamente ligados ao desejo de independncia durante a monarquia
filipina:
a A afirmao e descrio da decadncia presente;
b
A culpabilizao dos responsveis pela presente misria;
c A possibilidade de redeno e seus agentes.
A ligao, que j vimos estabelecida por Sardinha, e que tambm Afonso
Lopes Vieira usou largamen te, entre a mx ima misria do presente e a mxim a
glria possvel do futuro evidentemente pertinente e interessante, porque
paradoxal e apenas racionalizvel num plano mstico:
Talvez que, nas derrotas sobre derrotas em que parecemos ir a pique,
D eus esteja a pagan do para construir connosco algum a coisa de mais slido e
de melhor. Tenhamos f. No Portugal um re ino de mi lagre , segundo
Garrett, nosso mestre? Se o , porque no havemos de acreditar no milagre
de Ourique?
17
3.
O sebastianismo aplicado com o justificao de uma m isso divina, de um
destino, s se explica com a referncia memria histrica da grandeza dos
Descobrimentos. Recorde-se que o integralismo puro repudiava e culpabili-
zava os Descobrimentos, enquanto o revisionismo de Sardinha, to sebastia-
nista como o outro era saudoso, os tomava precisamente como seu fulcro te-
rico justificativo.
Neste sentido, tambm Afonso Lopes Vieira escrevia:
A maior revoluo da Histria [...] tem a sua maior razo na fatalidade
mstica qu e a arma, e que fez com que esta sociedade
n oqueiraser sa lva .
[...-]
E, vindo da sua Histria, da sua Dor, das qualidade s do rm entes mas raras do
seu Povo, Portugal po de e deve ser, outra vez ainda, heri e guia. Esta derra-
deira esperana, a mais alta e a mais curta, ilumina-se e cresce por cima de
todo o lixo morto das coisas e das almas, e finalmente significa
a lt ima
en carnao do Encoberto
18
.
A ntima ligao en tre a verificao da decadn cia e a certeza da glria futura
uma das componentes essenciais do sebastianismo
quanto pior , melhor
h-de ser, e tam b m esta se encontra no s textos integralistas da segunda fase.
Antnio Sardinha, em cujo percurso se assinala a passagem de um discurso
saudoso para outro, sebastianista, explicitou esta paradoxal relao entre mis-ria presente e glria futura:
A nossa pequenez, a destruio entre ns de tudo quanto se conven-
cionou chamar o existente, e, para mais, a nossa posio privilegiada
de varandim da Europa, lanado de encontro s terras moas do Oci-
dente, representam, ou no representam, sinais de predestinao indubi-
tvel?
19
Repare-se que neste pargrafo existem duas razes msticas (a destruio
do existente e a pequenez de Portugal) e uma positiva (a posio geogrfica
de Portugal). O sonho de tornar o Atlntico um lago portugus encontra depois
17
Antnio Sardinha,
Glos sr io dos Tempos ,
pp. 118-119.
18
Afonso Lopes Vieira,
Em Demanda do Graa l ,
Lisboa, 1922, pp. 323-325.
19
Antnio Sardinha,
A Pro l do Comum,
Lisboa, 1934, p. 173.
1405
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eco no imperialismo da segunda gerao de integralistas, como adiante
veremos.
4.
A misso divina de Portugal justam ente a criao dum a verso m oderna
do Qu into Imp rio. Se a prim eira gerao de integralistas fala nela metaforica-
m ente , ou, como mais tarde faria Ferna ndo Pessoa, como um im prio espiritual,
j a segunda gerao se no cobe de lhe dar forma prtica, nomeadamente
atravs da apologia do Imprio Portugus fsico e tangvel, tanto em frica
como noutros continentes.
Assim, Augusto da Costa, responsvel pela famosa frase Imperialistas?
Porque no? , que, nas pginas da
Nao Portuguesa,
assinala a viragem do
movimento, anteriormente pacato e isolacionista, retoma o mote de Sardinha
para afirmar, no artigo Apologia do Imprio Portugus, que a posio
geogrfica de Portugal dar-nos-, mais tarde ou mais cedo, sozinhos ou acom-
panhados,ahegemoniadoAtlntico
20
. N o difcil reparar no apro veitam ento
pragmtico, literalmente oportunista, que o Estado Novo faria, em bora incom-
ple tam ente , do revisionismo integralista iniciado por Sardinha. alis possvel
sugerir, embora para tanto se no preste esta breve comunicao, que o EstadoNovo aproveitou do primeiro integralismo
integralismo saudo so e do
segundo integralismo sebastianista apenas aqueles aspectos parciais que
poderiam convir a um regime republicano ditatorial como foi o de Salazar,
empenhado em comear a explorao colonial e pretendendo estimular um
discreto capitalismo monopolista.
De qualquer modo, so os dois discursos conflituosos que encontramos no
integralismo, o da saudade e o do sebastianismo, que o perm item determina r
ideologicamente.Ointegralismo lusitan o, o que aqui se prop e, foi um a te nta-
tiva de conciliar a saudade, com o lemb rana obsessiva de um p assado , e o sebas-
tianismo, como ensaio mstico de um futuro. O nexo entre os dois fornecido
pela epopeia dos Descob rimentosa glria passada que seria eventualmente o
modelo da glria futura.
Sumarizando, com um simplismo que as dimenses desta comunicao no
pod eriam proibir, possvel isolar teoricam ente os dois conceitos e o que signi-
ficavam no iderio integralista (ver quadro da pgina seguinte).
Em bora estejam, na turalm ente, exagerados os aspectos isolados no quadro,
correspondem sinteticam ente s formas que encontram os no todo da bibliogra-
fia integralista.
Como ideologia poltica, o integralismo, inspirando a sua imagem de Portu-
gal e da sua potencialidade num a d eterminad a viso rom ntica do passado, teria
de encontrar a sua ideologia prpria.
Se ,
no integralismo saudoso, o modelo do Portugal qua trocentista pr-Des-
cobrim entos e a atitude em relao Espa nha hostil, no integralismo sebastia-
nista o modelo do Portugal imperial e descobridor de Quinhentos e a atitude
em relao Espanha benvola e interessada. Revela-se a diferena entre os
dois integralismos no juz o que am bos fazem de Os Lusadascomo metfora dos
Descobrimentos e do no isolamento, estando o primeiro solidrio com a
atitude do Velho do Restelo e o segundo com a do jovem D. Sebastio.
No caso de Antnio Sardinha, a transio clara, assim como certo que
Hiplito Raposo e Lus de Alm eida Braga nunca a band onaram o integralismo
saudoso , original. Jos Pequ ito Rebe lo, que no partilhava do pendo r mstico de
Sardinha, situava-se nu m a rea interm dia, dan do-se f do conflito entre as duas
20
Augusto da Costa, Apologia do Imprio Portugus, in
NaoPortuguesa ,
7.
a
srie, n. 8,
1406
1933,
p.
66.
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posies. Falando do Pinhal de Leiria como tendo o carcter especial de um
lugar de transio e de ntimo c ontacto entre a terra
e o
mar, en tre a agricultura e
a navegao, escreveu:
s vezes a tentao martima que triunfa, doutras vezes O Velho do
Restelo geme e suspira e a Ptria, naufragada na sua paixo trgico-mar-tima, tem saudades do ruralismo [...]
21
.
Filosofia
Religio
Esttica
f nacional
Economia 1
l internacional
Poltica
Saudade
Olha para o passado, passiva
Inspirao historicista
Relativista^
. Pessimista, nostlgica
Catlica romana, tolerante
Lrica
Sentimental, gentil, feminina
pequenino, velhinho, bonito
. Rural, buclica
Auto-sufcincia agrria
Descentralizao
Municipalismo, comunalismo
Isolacionismo, proteccionismo
Tradio
Populismo paternalista
Nacionalismo, sem alianas
Monarquia
Antimessianismo
Antipeninsularismo
Sebastianismo
Olha para o futuro, activo
Inspirao mstica
Absolutista
Optimista, esperanoso
Cristo, agressivo
pico
Apaixonado, violento, masculino
grande, novo, belo
Martimo, herico
Explorao colonialista
Centralismo imperial
Estadismo, dirigismo
Imperialismo
Revoluo
Elitismo autoritrio
Internacionalismo, alianas
Monarquia ou repblica
Messianismo
Peninsularismo
Pequito Rebelo tentou resolver a contradio entre a saudade e o sebastia-
nismo, entre a ruralidade buclica e o colonialismo aventureiro. Por um lado
h o ruralismo de Pequito Rebelo:
A todos eu desejava ter dado a noo da terra portuguesa, como ela ,
como ela deve ser, este jard im florido e frondejante, que d boca
o
po bas-
tante e ao olhar o recreio da sua beleza, esta
pequena casa lus i tana ,
que eu
chamaria antes esta pequena herdade portuguesa, to perfeita na sua forma,
to rica na sua vegetao, no am oleced oram ente frtil, para nos obrigar ao
trabalho educativo e civilizador, contendo ainda tantos tesouros por explo-
rar; terra que vale princip alm ente p elo Sol benfico q ue a ilum ina
e
pela grei
to laboriosa e boa qu e a hab ita;esteconsrciodaTerra de Portugal e dagente
portuguesa s ob a ben o do Sol das mais fe l izes unies que tem visto o
mundo; o verdadeiro rural ismo
[sublinhados meu s]
22
.
21
J o s P e q u i t o R e b e l o , Em Louvor e Defesa da Terra, L i s b o a , 1 9 4 9 , p . 3 7 .
22
I d . , A Terra Portuguesa, L i s b o a , 1929 , p . 67 .
1407
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E do outro lado, revelado primeiro quando da Guerra Civil de Espanha,
altura em que ele preconizava um grande empenho de Portugal com vista a
pode r fortalecer a posio de Portugal na P ennsu la
23
, e depois quando comeou
a resistncia armada em Angola, Pequito Rebelo aceita a natureza herica e
colonizadora de Portugal no mundo.
Ainda em 1980, escrevendo no
Templr io ,
o autor, num artigo intitulado
Integralismo hoje?, sintetiza a dualidade saudade/sebastianismo:
Longe no passado e tamb m longe no Futuro, essa Mo narquia C rist das
liberd ade s que am bicio nam os [...] Passado e futuro [...] Saud ade e espe -
rana [...] Nesta man h de nevoeiro apocalptico um be m portug us sebas-
tianismo q ue deseja o Heri e mais ainda o ideal por ele encarna do [...]
Ideal, pois, m uito longn quo, tanto no passado inspirador co mo no futuro
realizador [...] Mas no ser esta me sm a distncia razo para com a maior
urgncia pormos as mos ao trabalho de reconstruo? [...]
24
CONCLUSO
A aventura doutrinria do integralismo, sugere-se, foi precisamente dar
corpo poltico quilo que viam ser a alma a mb gua da cu ltura portugu esa, resol-
ver a luta travada e ntre
Q
impulso obsessivodopassadoe apredisposio mstica
para o futuro, no campo actual do presente. Por um lado, o desejado medieva-
lismo, cordato e lrico, e, por outro, a ambio do Quinto Imprio, ousada e
pica.
A conciliao preten dida atingir-se-ia atravs de um ap roveitam ento da sau-
dade j antevisto por Pascoais (ao tentar definir a saudad e com o um fenm eno
essencialmente esperanoso). Do passado j no viria o modelo original dos
integralistas Portugal no limiar dos Descobrimentos, mas a poca gran-
diosa que se lhe seguiria. M od erna m ente , prete ndia m Sardinha e os seus segui-
dores uma imitac|o contempornea daquela grandeza que viam em Quinhen-
tos, alicerada sobre uma aliana incompleta com a Espanha e centrada no
Atlntico Oeste. Neste sentido se desenvolveram as conhecidas camp anhas de
aproximao entre Portugal e Espanha, por um lado, e Portugal e Brasil, por
outro.
Tom ando o sebastianismo duma m esma mane ira activa, possivelmente to
contrria ao seu significado (de
espera
aptica e resignao) com o a forma com
que encararam a saudade (de lembrana, desinteressada no presente e com
desconfiana do futuro), eles viram no seb astianismo um a possvel fonte rcica
de grandes energias con strutivas. Se a saudade fornecia o fim, o seb astianism o
fornecia o meio. A primeira inspirava, o segundo mobilizava.
Se certo que o misticismo dos integralistas sebastianistas no era sin-
cerona medida em que a sua preparao intelectual lhes proibia a crena em
milagres de Ourique ou certezas de Quinto Imprio , tam bm verdade q ue,
influenciados pelo trabalho de Sorel sobre o valor social e a potencialidade
mobilizadora dos mitos, caram numa outra espcie de misticismo, que foi
acreditar que o povo portugus fosse sempre o mesmo, o mesmo da Recon-
quista, o mesmo dos Descobrimentos, o mesmo da Restaurao.
Foi talvez a sua viso inflexvel da cultura poltica portuguesa , toma da com o
um valor com a permanncia de uma caracterstica rcica, e logo resistente
histria e imune s suas experincias, que os deitou a perder na aplicao pr-
tica da sua ideologia. Era isso que a
lite
que ria, mas, pelos vistos, no era isso
que Portugal era.
23
Ver, por exemplo,
A Ideia de Portugal Forte ,
Lisboa, 1940.
1408
24
Recorte oferecido pelo autor, sem indicao de data.
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