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MEDICALIZAÇÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL

MEDICALIZATION AS PUBLIC MENTAL HEALTH POLICY

Eduardo Fagner Machado de Pinho1

Thelma Pontes Borges2

1Universidade Federal do TocantinsPrograma de Pós-graduação em Demandas Populares e Dinâmicas Regionais (PPGDire)

Endereço para correspondência e-mail:pinho.eduardo@gmail.com

2Universidade Federal do TocantinsPrograma de Pós-graduação em Demandas Populares e Dinâmicas Regionais (PPGDire)

Endereço para correspondênciae-mail: thelmapontes@uft.edu.br

RESUMO Este artigo busca problematizar o que é preconizado pela Reforma psiquiátrica e o que embasa as políticas públicas em Saúde Mental no Brasil, observando que as práticas nas instituições substitutivas às asilares repetem a lógica anterior, qual seja: a psiquiatria tradicional, através da medicalização, mas em uma nova roupagem. A Reforma objetiva a quebra de paradigma em re-lação à psiquiatria tradicional, intervindo no campo das relações da sociedade e suas dimensões com o sofrimento mental de qualquer ordem, buscando transformar suas práticas e a sociedade, por meio de ações contra a exclusão social. Contudo, o acompanhamento de pessoas com sofri-mento mental norteia-se pelo enquadre “normal” destas, a partir da intervenção medicamentosa, que produz uma ‘camisa-de-força’ química, enclausurando sem muros, inviabilizando a ação do sujeito e o aprisionando. Assim, as políticas públicas em saúde mental ainda mantêm o mesmo objeto da psiquiatria tradicional, a saber, a doença, seguindo a mesma visão médico-patológica, o sofrimento mental independente das relações vividas, reduzindo a experiência subjetiva do sujeito ao seu próprio controle, fazendo que este se entenda como inadequado, como doente e como impotente. Assim, é imperativo rever as práticas subjacentes às políticas públicas para que o paradigma asilar seja de fato superado.

Palavras chaves:Medicalização; Política Pública; Saúde Mental; Ética da Psicanálise.

INTRODUÇÃO

Trata-se de um ensaio teórico para repensar as Políticas Públicas em Saúde Mental, por meio de revisão bibliográfi ca e da experiência profi ssionais nos CAPS em Araguaína – Tocan-tins, refl etindo sobre os efeitos provocados no sujeito, a partir da hegemonia do discurso médico

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psiquiátrico e da normalização pela via da medicalização dos sintomas e intervir para melhor elaboração do Sujeito sobre si mesmo. Pontuando que os laços sociais são perpassados pela “ro-tulação diagnóstica”. E que o discurso médico psiquiátrico é inerente de uma longa trajetória, logo, envolve a Política Pública de Saúde Mental, seus atores e a sociedade como um todo.

Foram utilizados os conceitos psicanalíticos para propor quebra de paradigma através da visão de sujeito de desejo, sujeito do inconsciente diante do processo terapêutico, da socie-dade e da vida.

SAÚDE SOCIAL, A MEDICALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA

Quando As políticas públicas de saúde no Brasil e no mundo possuem intricada rela-ção com o saber médico e sabe-se que a busca pela saúde através da medicina não se dá exclu-sivamente pelo fato da necessidade essencial do ser humano em ser saudável, mas que a pro-moção de sua saúde também serve a propósitos diferentes de acordo com a noção de Estado a ser constituído, seguindo padrões pré-defi nidos e selecionando os que se enquadram nestes.

A medicina moderna surge num contexto, onde, para além do dever da salvação indi-vidual da alma, pelo poder institucional da igreja, agora os indivíduos deveriam se enquadrar em conjunto para fortalecer o Estado. Logo, as raízes da Psiquiatria têm a ver com controle, poder e retirada de certos grupos de pessoas com características discrepantes do enquadre co-mum.

O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fi xar, assim, a sociedade em um espaço esqua-drinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos. (FOU-CAULT, 1979, p.89)

A medicina desempenhou papel importante para a consolidação das cidades e dos Es-tados, foi usada para a organização e manutenção destes espaços e de suas populações. Fun-cionando como instrumento para hegemonia estatal, não sendo voltada para o tratamento de doenças, ou para diminuir o sofrimento que causavam. As más condições de saúde na Europa no século XVIII propiciaram um grande adoecimento da população, principalmente da parte pobre da população. Com a urbanização e a industrialização houve acumulo de riquezas e con-centração econômica díspare, gerando confl itos e questões sociais e sanitárias.

Segundo Foucault (1979), é possível distinguir três etapas na formação da medicina social: a medicina de Estado, surgida na Alemanha do século XVIII com a organização de um sistema de observação da morbidade, com a normalização do saber e práticas médicas, a su-bordinação dos médicos à uma administração central e a integração de vários médicos em uma organização médica estatal, tendo esta como principal objetivo a qualifi cação dos indivíduos como componentes de uma nação; a medicina urbana, com seus métodos de vigilância e hos-pitalização, por sua vez, não é mais do que um aperfeiçoamento, na segunda metade do século XVIII, do esquema político-médico da quarentena.

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Não se investia no corpo das pessoas como corpos doentes que precisavam ser trata-dos. Porém, tampouco se investia nos corpos saudáveis com o objetivo de preveni-los de doenças. Investia-se nos corpos como corpos do Estado. Enfi m, o Estado somente poderia ser forte e poderoso se os seus indivíduos assim o fossem (AMARANTE, 2003, p. 27).

Em outra etapa, segundo Foucault (1979), surgida na França, a higiene urbana tinha como preocupação central a análise das regiões de amontoamento que signifi cassem ameaça à saúde humana, como os cemitérios e os matadouros, propondo sua ‘re-localização’ e o controle da circulação do ar e da água. Era a medicalização das cidades.

Em terceiro momento, com o desenvolvimento do proletariado industrial na Inglaterra no fi nal do século XIX, o processo de desenvolvimento da medicina confi gurou-se em meio a um grande crescimento populacional motivado pela aceleração industrial e um regime capita-lista. Com um grande acumulo de riqueza e a formação de grupos sociais dominantes, a pobreza destoa em relação à tentativa de uma sociedade homogênea, e sobre a ordenação pensada pelo Estado. Portanto, sentindo os efeitos da Revolução Industrial em relação à saúde, foram criadas instituições e decretos de saúde pública, voltadas principalmente à assistência da população pobre. Ainda segundo Foucault (1979), a medicina inglesa começa a tornar-se social através da ‘lei dos pobres’. Caracterizada pela assistência e controle autoritário dos pobres, a implantação de um cordão sanitário que impunha o controle do corpo da classe trabalhadora por meio da va-cinação, do registro de doenças e do controle dos lugares insalubres; visava torná-la mais apta ao trabalho e menos perigosa para as classes ricas.

O Decreto de Saúde Pública de 1875 proveu um código sanitário completo que, com consolidação e ajustes, permaneceu em vigor pelos cem anos seguintes. Criou uma autoridade de saúde pública em cada área do país. Os sistemas de Health Service e Health Offi cers, criados então, impunham uma série de medidas de controle de do-enças e de lugares insalubres. Com este conjunto de medidas, a medicina social in-glesa voltava-se fundamentalmente para o trabalhador pobre, ao mesmo tempo que, ao prevenir sua condição de contagiante, procurava qualifi ca-lo como mão-de-obra. (AMARANTE, 2003, p. 34).

Então para Foucault (1979), para além de curar doentes, a medicina social, torna-se um instrumento de normatização, governando a vida das pessoas, invadindo espaços da sociedade. As casas, lugares por excelência privados, sofrem com vigilâncias sanitárias e seus mandos e dizeres. Saberes da medicina social passam a reverberar como produção de verdade estabele-cendo quais os padrões deveriam ser seguidos para se considerar membro da sociedade.

HOSPITAL, O LUGAR PARA MEDICALIZAÇÃO

Outra percepção que elucida sobre os saberes da medicina, da psiquiatria e da saúde, e consequentemente maior entendimento sobre a saúde mental, seus pressupostos, práticas e reformas é que sua história está ligada as instituições, e uma em especial, o hospital. Contudo, este nasce como uma instituição religiosa, fi lantrópica, de caridade, de assistência aos pobres e

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desamparados, com a missão de praticar caridade, o hospital hospedava devassos, prostitutas, desabrigados, pobres, delinquentes, doentes, loucos, entre outros. Não tinha conotação de lu-gar para se buscar quanto à intenção de curar doenças, mas um lugar que oferecia amparo aos moribundos.

O personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último sacramen-to. Esta é a função essencial do hospital. Dizia-se correntemente, nesta época, que o hospital era um morredouro, um lugar onde morrer. E o pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas a conseguir sua própria salvação. Era um pessoal caritativo - religioso ou leigo - que estava no hospital para fazer uma obra de caridade que lhe assegurasse a salvação eterna. Assegurava-se, portanto, a salvação da alma do pobre no momento da morte e a salvação do pessoal hospitalar que cuidava dos pobres. (FOUCAULT, 1979, p. 101-102).

Lembrando que a sociedade não é mais pautada apenas pela igreja e proteção divina, mas também por um desempenho do Estado, e com a criação do Hospital Geral de Paris, o hospital deixa de ser uma instituição religiosa. Com a preocupação de separar da sociedade os que poderiam contagiá-la, passa a internar pessoas independentemente do sexo, da religião e do status social. Foucault denominou de grande internação ou grande enclausuramento por sua natureza semi-jurídica de controle e segregação social. Depois de um tempo passa a ser uma instituição médica.

Criam-se (e isto em toda a Europa) estabelecimentos para internação que não são sim-plesmente destinados a receber os loucos, mas toda uma série de indivíduos bastante diferentes uns dos outros, pelo menos segundo nossos critérios de percepção: encer-ram-se os indivíduos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração, em resumo todos aqueles que, em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de ‘alteração’ (FOUCAULT, 1968, p.78).

Com a ideia da medicina urbana e de análise desta para melhoria da cidade e do Estado, o hospital passou a abrigar os excluídos, portanto, também deveria ser higienizado, tendo como agente o médico. O médico não faz mais apenas visitas esporádicas, tendo o hospital como seu lugar cotidiano, e fi gura como arauto da ciência e da verdade. Com o espaço, hospital, onde podia observar todos os tipos de doentes, de doenças e a situação das diversas pessoas que estavam ali, era possível, para o médico, isolar, observar, administrar, sistematizar, descrever, comparar, classifi car estudar diversas doenças, e estabelecer o enquadre dos indivíduos doen-tes. Portanto, havia a imposição de um saber sobre o outro, de um dizer sobre aquele outro.Um outro que não fala sobre si.

Segundo Amarante (2003), a psiquiatria nasce simultaneamente aos eventos da moder-nidade da medicina e da reforma do hospital e instituição médica. Logo o isolamento, a orga-nização do espaço asilar, relação terapêutica baseada na autoridade fazia parte das instituições psiquiátricas. Portanto, mesmo em casos de saúde mental, os enfermos seriam isolados como princípio para tratamento, separando-os e ordenando-os em categorias que se apresentavam misturadas no grande enclausuramento. Assim com o isolamento das diversas formas de loucu-ra foi possível elaborar o conceito de alienação mental, que passaria mais tarde, ao conceito de doença mental, juntamente com a imposição de suas normatizações e rótulos.

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SEGUINDO A NORMA, MEDICALIZAÇÃO DO BRASIL

A história das políticas públicas de saúde no Brasil seguiu o mesmo pretexto civilizató-rio sanitarista impositivo quanto a sua idiossincrasia. Com a importação do pensamento cienti-fi co europeu a lógica também foi da medicalização da sociedade.

Machado (1978) conta que a medicina, no seu objetivo de criar uma sociedade sadia, queria transformar indivíduos desviantes em seres normais. Ressaltando que a esta época a me-dicina se autonomeou “medicina – política”.Assim, medicalização, possui uma função política de intervenção sem limites em várias esferas da sociedade. A cidade, os bairros, as famílias são instâncias que, a partir do século XVIII, estavam sujeitas ao controle da medicina social, me-canismo de controle dos corpos.

Medicalização é uma estratégia biopolítica, poder que é exercido sobre o coletivo e atuando sobre a constituição do sujeito. Não é o corpo somente que deve ser discipli-nado, mas o controle deve recair também sobre a “[...] vida dos homens, [...], ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite, ao homem-espécie” (FOUCAULT, 2005, p. 289).

Como colônia portuguesa, o Brasil seguiu o mesmo plano europeu, ainda com o agra-vante da vinda da Família Real no ano de 1808, e com sua chegada, um crescimento expo-nencial da cidade sede, Rio de Janeiro, de sua estrutura administrativa, comercial e industrial. Portanto, para organizar a nova condição do país, foi utilizado o modelo da medicina social, ou seja, a lógica da medicalização.

Com o advento da medicina social, Machado (1978) discorre que esta desloca o ob-jeto da medicina para a saúde e não mais a doença com o pretexto de organizar a sociedade e garantir seu bom funcionamento, impedindo o aparecimento de doenças, e assim, o médico se tornaria agente de controle de periculosidade e prevenção em todos os espaços sociais.

Machado (1978) aponta que a Moral entra como saber da medicina a partir do momento em que esta defende o equilíbrio e se opõe às paixões, aos excessos, demonstrando também uma preocupação com a loucura.

A moral passa a ser causa da doença, e, a partir daí, a ser objeto da medicina. Por-tanto, para que a saúde da população seja preservada, deve-se criar uma sociedade sem paixões, sem caos, onde reine a ordem. Década de 30 do XIX. E, claro, esse processo deve ser guiado pelos médicos, que conhecem profundamente o homem. (MACHADO,1978, p. 197).

Para esquadrinhar as cidades, o Brasil também precisou de grandes instalações criadas pelo governo e pelos médicos a fi m controlar a cidade e seus habitantes. “Formar ou reformar física e moralmente o cidadão.” (MACHADO,1978, p. 281). As teorias sobre os loucos e o que fazer com estas surgiam e eram discutidas. O saber médico e cientifi co clamava por ações e lugares apropriados, sem caráter fi lantrópico de sua origem e com o médico como responsável e agente da ciência de tal instituição. As reivindicações foram atendidas e em 1852 o Hospício de Pedro II foi inaugurado.

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Mas, Resende (1987) diz que, apesar da criação do hospício ter representado uma con-quista fundamental na apropriação da responsabilidade da loucura para os médicos, não assegu-rava ainda a consolidação da hegemonia alienista. Este objetivo só seria alcançado com a che-gada do regime republicano em 1889, quando os médicos obtiveram autonomia e poder efetivos para realizar diagnósticos, internações, tratamentos e altas. A partir daí surgiram as condições que viabilizariam a ampliação e a consolidação das demandas da psiquiatria brasileira.

A promoção de salubridade também era cerceada, então a garantia de cuidados e direi-tos às pessoas em sofrimento foi pautada por lutas e movimentos sociais no Brasil. Campanhas Sanitárias, modalidades de seguro social, Caixas de Aposentadoria e Pensões. Fica claro que a promoção de atendimento qualifi cado as necessidades destas pessoas, não possuía intenção deliberada do Estado brasileiro.

A proposta da Reforma Sanitária brasileira representa, por um lado a indignação contra as precárias condições de saúde, o descaso acumulado, a mercantilização do setor, a incompetência e o atraso e, por outro lado, a possibilidade da existência de uma viabilidade técnica e uma possibilidade política de enfrentar o problema (AROUCA, 1988, p. 2).

A década de 70 foi marcada pela busca de mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, da defesa da saúde coletiva, da equidade na oferta de serviços, pela inserção dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tec-nologias de cuidado. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), movimento formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sin-dicalistas, membros de associações de profi ssionais e pessoas com longo histórico de interna-ções psiquiátricas, surge em 1978.

“No fi nal da década de 1970, a Previdência Social chegou a destinar 97% dos recursos da assistência psiquiátrica para o pagamento das internações na rede hospitalar conveniada e contratada” (AMARANTE, 2003, p. 38). Passa-se a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a, construir coletivamente, uma crítica e reforma ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocên-trico na assistência às pessoas com transtornos mentais.

REFORMA, MAIS A MEDICALIZAÇÃO AINDA ESTÁ PRESENTE

No início dos anos de 1980, a experiência italiana de desinstitucionalização é inspira-dora. Passam a surgir as primeiras propostas e ações para a reorientação da assistência. O II Congresso Nacional do MTSM (Bauru/SP,1987), adota o lema “Por uma sociedade sem ma-nicômios”. Neste mesmo ano, é realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio de Janeiro).

Consolidada no Congresso de Bauru repercutiu em muitos âmbitos: no modelo assistencial, na ação cultural e na ação jurídico-política. No âmbito do modelo assis-tencial, esta trajetória é marcada pelo surgimento de novas modalidades de atenção, que passaram a representar uma alternativa real ao modelo psiquiátrico tradicional

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(AMARANTE, 1995, p. 82).

Yasui (1989) conta, que o processo de reforma psiquiátrica ganhou repercussão nacio-nal a partir da intervenção da Secretaria de Saúde do município de Santos no hospital psiquiá-trico particular Casa de Saúde Anchieta, após uma série de óbitos de internos, o que gerou um processo que possibilitou condições para a implementação de um sistema psiquiátrico comple-tamente substitutivo ao modelo manicomial.

Este processo, foi muito importante no campo da saúde mental no país, representou a mudança em relação ao hospício, sem duvida, um marco no período mais recente da Reforma Psiquiátrica brasileira, construindo um novo espaço social para a loucura, questionando e trans-formando as práticas da psiquiatria tradicional e das demais instituições da sociedade. Houve a criação de Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), cooperativas, associações, projetos de residencialidade, dentre outros.

A proposta é de intervenção no campo das relações da sociedade com a loucura, trans-formando as relações para com o transtorno mental. Isto se dá, por um lado, através, de práticas contra a exclusão e, por outro, de estratégias de inclusão social dos sujeitos. Para tanto, a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 de autoria do ex-deputado federal Paulo Delgado dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

A lei enumera uma série de direitos do descrito como portador de transtorno mental, tendo como princípios: inclusão, solidariedade, cidadania; tais serviços tornaram-se modelos para todo o país visando a transformação do modelo assistencial em saúde mental.

Entretanto, é importante teorizar sobre as políticas recorrentes das reformas psiquiá-tricas, pois no centro de suas questões está a reivindicação do respeito às pessoas como cida-dãs, mas não podemos esquecer que o signifi cado, a importância e o que é um cidadão estão intimamente ligados a interesses morais excludentes articulados ao atendimento de interesses econômicos desde sua origem.

Seguindo o contexto contemporâneo, parece haver um rompimento com esta transfor-mação, quando o que norteia o acompanhamento de pessoas com sofrimento mental é o en-quadre destas a partir do disposto no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mental – DSM, por exemplo, e tem como foco a intervenção medicamentosa.

O disposto no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mental – DSM, que orienta o acompanhamento médico nas instituições de Saúde Mental, consequentemente, por força hegemônica, direciona as demais ações profi ssionais e terapêuticas dentro dos serviços, é descrito como ateórico, e se apresenta sem concepção etiológica, ou seja, não se baseia em nenhuma concepção sobre a causa dos transtornos, enfatizando a individualização do sofrimen-to.

Assim, as políticas públicas em saúde mental ainda mantêm o mesmo objeto da psi-quiatria tradicional, a doença, e seguindo a mesma visão método patológica de outrora. Antes, e já posto aqui, Machado (1979), falou sobre a troca de objeto que a medicina fez “deixando” a doença pela saúde, hoje vemos a discussão sobre o deslocamento da doença mental para a saú-de mental. Então, objetivamente, o que está sendo realizado até então é a luta Antimanicomial,

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ainda com substitutivos, e como reforma, garantia de direitos. Políticas públicas foram criadas, o saber da psiquiatria, reformas, estas últimas leva-

ram em consideração os direitos de cidadãos dos indivíduos ditos como doentes. Porém, tais direitos, lugares e consequentemente o tratamento não deixou de atender ao perfi l imposto pelo saber médico, Estado e pelos mais abastados. Como cuidar, onde cuidar, com o que cuidar. E não coincidentemente, os vulneráveis, são maioria neste delimitado espaço entorpecedor.

A palavra cidadão tem por signifi cado: habitante da cidade; e indivíduo que, como membro de um Estado, usufrui de direitos civis e políticos por estes garantidos e desempenha os deveres que, nesta condição, lhe são atribuídos. Portanto, ainda é na busca de um papel como trabalhador, produtor para servir e ser visto como pertencente ao Estado, que está direcionada a política pública de saúde mental. Foucault (1998) fala que o biopoder apresentou-se como ferramenta indispensável para o desenvolvimento do capitalismo, pois atuava sobre o controle dos corpos no aparelho de produção e regulação da população nos aspectos econômicos. O capitalismo intentava docilizar, tornar úteis os corpos e para conseguir isto foram utilizadas estratégias.

A insígnia de Reforma aponta a difi culdade para se afastar de uma origem, que busca formatar para um sistema normativo. Os termos utilizados para as práticas hoje, sugerem o novo, porém são novas roupagens do mesmo:serviço substitutivo, usuário, plano terapêutico; pois não exprimem refl exão e autonomia, apenas direito ao consumo de vários produtos, sem muros, mas com remédios que prendem com maior efi cácia.A visão do homem como cidadão iguala o sujeito, determina um padrão, ou seja, segue o propósito da medicalização. O termo Reforma parece denunciar a medicalização da medicalização, pois não cumpriu quebra de pa-radigma a uma construção de pensamento científi co, social e de sujeito mais abrangente, que não o de um ideal capitalista, onde a inclusão por direito de seu cidadão ainda reivindica papéis pré-determinados até ao que são colocados como em tratamento. Apenas higienizou-se consi-derando seus próprios conceitos.

Apesar das Reformas Psiquiátricas ocorridas no mundo e no Brasil compreendendo estas, como uma nova maneira de enxergar as pessoas consideradas com transtornos mentais, fomentando com isso a criação de políticas públicas em Saúde Mental, práticas e serviços que não as trata como alienadas, desprovidas de razão e juízo, pode-se observar que uma ordem mé-dica hegemônica ainda é mantida. Diferente da psiquiatria tradicional, a pessoa com sofrimento psíquico passa a ser olhada como Sujeito. Porém, qual sujeito? Qual a noção e expectativa sobre este sujeito? O que é dito sobre este sujeito? O que este diz sobre si mesmo?

ÉTICA DA PSICANÁLISE, O RESGATE DO NOME

Não se pode desconsiderar quão válida é a luta contra o regime asilar e suas terríveis práticas desumanas, com números exorbitantes de mortes frias e violentas. É importantíssima a visibilidade e a garantia de direitos dado aos que procuram ajuda, sem que estes sejam isolados e executados como outrora. Contudo, o sujeito cidadão, atendido hoje pelos aditivos da política pública de saúde mental são tratados a exemplo do que diz Roudinesco (2000), como seres anô-nimos, pertencentes a uma totalidade orgânica. Imersos numa massa em que todos são criados

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para serem clones. Para eles são receitados o mesmo conjunto medicamentoso, de acordo com um compilado grupo de sintomas. Foi criado um modelo novo de tratamento focado na necessi-dade e não no desejo, uma resposta que iguala, esquecendo-se do que de fato diferencia.

Pensando sobre os questionamentos mencionados e outros mais a partir destes, chega-se a Ética da Psicanálise, onde Lacan (1987) defi ne como uma ética do desejo. Deste modo, trata-se de uma ética que não se enquadra em uma lógica idealista e humanitária e que também não caracteriza uma especialidade ou uma ética profi ssional, tal como a ética médica ou a ética da psicologia. A psicanálise não se enquadra na formação disciplinar que caracteriza a ciência contemporânea, a qual se encontra dividida em especialidades. Desta forma, em sua ética, a psi-canálise interdita a especialidade, pois refere-se a um saber do qual não se tem conhecimento, um saber não sabido, inconsciente, que toma o sujeito como a referência do próprio trabalho. Um saber que deve ser apontado pelo sujeito a partir de sua fala, sendo ela que dá a direção do trabalho.

A psicanálise reivindica para a ciência um sujeito que fala sobre si, um sujeito de desejo e, como consequência disto, tal sujeito pode se deslocar de um lugar de passividade, da univer-salidade, e da determinação imposta pelo outro e do conhecimento que este traz como diagnos-ticador. O foco não é mais externo, sintomático, agora está no discurso de si, na declaração de sua constituição como sujeito.

Para Foucault (1984), modos de subjetivação dizem respeito à constituição dos sujeitos. O conceito de subjetivação estabelece uma forma de compreender, posicionar e agir, a partir de suas diferentes racionalidades e sensibilidades, sobre as expectativas, visões de mundo, as práticas e as posições das pessoas que vivem esta situação. Entretanto, o sujeito da psicanálise é fundamentalmente composto por elementos que escapam à ordem das representações e não se adequam aos “modos de sujeição” (Foucault, 1984) de uma cultura, ou seja, não se sujeitam, permitindo a emergência do sujeito em sua singularidade.

A Ética da psicanálise difere da medicalização, pois é pautada nas inscrições extrema-mente íntimas do sujeito, e que este se manifesta pelo que lhe falta confi gurando seu desejo. Considerando que o que lhe falta jamais será achado e/ou medicado. O seu desejo lhe faz úni-co.

O desejo é o fi o condutor que implicará um sujeito na realidade de seu inconsciente. Inconsciente que só conhece uma lei: a que pede para reencontrar o que lhe falta. Falta causa do desejo. Nasce de uma frustração, mas não se trata de algo a ser realizado, e sim de uma falta nunca realizada. O sujeito é um ser faltante que busca respostas e fórmulas para seguir, porém suas demandas nunca serão satisfeitas, pois estas possuem caráter de substituição, como meto-nímia, ao desejo.

As demandas podem ser diversas, por inúmeras razões, são formuladas diferentemente por cada sujeito. Uns relatam insônia, uso de drogas, problemas conjugais, depressão e outras. A psicanálise buscará que o sujeito se depare com aquilo que causa o desejo, sua falta, angústia, afastando-o da demanda.

Tornando o foco na demanda trazida pelo sujeito, seus sintomas independentes das inscrições inconscientes, reduzindo a experiência subjetiva do sujeito ao seu próprio controle, fazendo que este se entenda como inadequado, doente e impotente, faz com que a pessoa não

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elabore seu sofrimento, não refl ita sobre o desejo, não se implique na busca por fruir, pois quem irá fazer algo é o médico, psicólogo, a medicação e não o sujeito.

Os campos de concentração e outras tantas formas contemporâneas de banalização do mal em nossas comunidades decorrem da desumanização, fruto da universaliza-ção introduzida pelo discurso da ciência, que exclui a singularidade do sujeito do desejo, assim como o aliena de sua implicação e responsabilidade por seus atos (LA-CAN, [1967]2003).

Seguindo a lógica pautada no diagnóstico, na medição, na ordem médica e poder psi-quiátrico, esta inscreve o sujeito numa ordem, em que pode ocorrer por vezes o engessamento da subjetividade. Por exemplo, tendo como foco a drogadição no lugar do sujeito. Quem é o sujeito, e/ou seus laços sociais não são escutados, o diagnostico passa a defi ni-lo, e posto neste lugar, qualquer forma de construção de laços sociais passará necessariamente por esta inscri-ção, simplifi cando o sujeito, reduzindo-o, segmentando, não produzindo novas formas de ser, compreender e se relacionar.

A nomeação da angústia, pela via do diagnóstico médico, inscreve o sujeito no lugar da “doença”, e não a doença na circunscrição de sua vida, e para tratar, a “medicalização do sofrimento e diminuição da escuta do sujeito”, que permite dizer de um retorno à psiquiatria tradicional. Assim, em Instância da letra, sendo Letra, “alguma coisa” que é determinante na estrutura psíquica Lacan ([1957]1998) coloca: “É que ao tocar, por pouco que seja, na relação do homem com o signifi cante [...] altera-se o curso de sua história, modifi cando as amarras de seu ser” (p.531).

Para encerrar, exemplifi cando, e com a proposta de incentivar discussões que possam superar projetos econômicos generalizadores, que reduzem o sujeito a um código determinado por demandas inalcançáveis. Ao lembrar que o sujeito é tratado como usuário nos serviços de saúde mental, seu nome é pouco utilizado nos prontuários, nos discursos dos servidores, o termo é tido como alternativa melhor a paciente, cliente ou outro qualquer. Porém, usuário, substantivamente, diz-se daquele que por direito pode usar, e, adjetivamente, é algo que serve, que é próprio para uso e ainda de quem tem apenas o direito de uso não a propriedade. Portanto, levando em consideração o esboçado aqui pela psicanálise, o termo fala apenas de demanda, de um querer usar, necessidade de usar.

Parece estranho falar de nome quando se está problematizando sobre universalização, diferenciação, já que todos possuem nome, e este também indica a cidade do sujeito, é des-crito como direito e suas implicações jurídicas. No entanto, o nome por sua intricada rede de signifi cantes desloca o sujeito do coletivo, o inscreve em uma linhagem, cultura, lei, este com seu nome e por seu nome, não é apenas um cidadão, um usuário, um diagnóstico. Com o nome o sujeito é chamado pelo que o antecede, sua origem, memória, signifi cante e as relações do mundo com essas histórias e inscrições a partir destas e do desejo envolvido a partir do próprio nome. Lacan (1961) apontou para a observação de como chamar o sujeito, pois tal feito nunca é indiferente.

A nomeação da angústia, pela via do diagnóstico médico, inscreve o sujeito nolugar da “doença”, e não a doença na circunscrição de sua vida, e para tratar, a“medicalização do

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sofrimento e diminuição da escuta do sujeito”, que permite dizer deum retorno à psiquiatria tradicional. Assim, em Instância da letra, sendo Letra, “algumacoisa” que é determinante na estrutura psíquica Lacan ([1957]1998) coloca: “É que aotocar, por pouco que seja, na relação do homem com o signifi cante [...] altera-se o cursode sua história, modifi cando as amarras de seu ser” (p.531).

Logo, apesar dos serviços de Saúde Mental no Brasil serem regidos por leis funda-mentadas em causas nobres, existe pontos críticos a serem considerados sobre a lógica destes serviços. Trata-se de olhar mais de perto para investigar o que reverbera da ação e da lógica de tratamento destes, não somente, mas aqui neste caso, através de concepções psicanalíticas.

REFERÊNCIAS

AMARANTE, P. Saúde Mental, Políticas e Instituições. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003.

AROUCA, S. A Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1988.

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