marin_uso cond. acesso a recursos hidricos_ marajo _1
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Rosa Elizabeth Acevedo Marin
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USO, CONDIÇÕES DE ACESSO E CONTROLE DOS RECURSOS HÍDRICOS EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO MUNICÍPIO DE SALVATERRA (ILHA
DE MARAJÓ)- PARÁ1
Rosa Elizabeth Acevedo Marin 1- INTRODUÇÃO
É a água que dá o sustento e cria dificuldades, consola e leva ao desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente: sem levantar a voz, sem violência, mas implacável e total (G. Gallo, 1981).
Este estudo realiza uma descrição e análise dos problemas relacionados
com os recursos hídricos, em especial, sobre a água de consumo doméstico em
comunidades quilombolas do município de Salvaterra, ilha de Marajó. Busca-se
compreender como os grupos percebem as dificuldades de não ter acesso à
água e as alternativas encontradas para suprir necessidades do liquido vital. As
restrições aos recursos hídricos estão associadas a diversas situações de
privação de fonte de alimentos, derivados das limitações de realizar a pesca
artesanal2, de dificuldade para aproveitar recursos vegetais da várzea
(extrativismo do açaí), do impedimento de movimentar-se no território pelo
levantamento de cercas que obstaculizam o passo por atalhos que conduzem a
portos, igarapés e lagos. Procura-se revelar uma esfera de ação ou prática como
1 Este artigo foi elaborado no quadro do projeto de pesquisa “Águas da Pan-Amazônia: institucionalização de marcos regulatórios, visões de atores políticos e estratégias” financiado pelo CNPq ASCIN/PROSUL, sub-projeto: “Campesinato étnico em Salvaterra (ilha de Marajó): acesso, controle e qualidade dos recursos hídricos”. CNPQ/UNAMAZ/UFPA/CCB. A autora agradece a colaboração da geógrafa Adaise Gouvêa Lopes, dos alunos do Curso de Turismo da Faculdade de Estudos Avançados do Pará – FEAPA, que participaram na coleta de dados do Censo Domiciliar, no município de Salvaterra. No povoado de Pau Furado tivemos a colaboração da professora Maria da Conceição Sarmento dos Santos, do professor João Batista Paes dos Santos e em Barro Alto de Maurício Pereira de Souza, auxiliar de Enfermagem. 2 A bióloga Cristiane Nogueira desenvolve este problema no seu artigo: Território de pesca no estuário marajoara: comunidades quilombolas, águas de trabalho e conflitos no município de Salvaterra. Belém. 2005. Esse artigo é resultado de pesquisas para dissertação de Mestrado (PLADES/NAEA) em elaboração que teve apoio financeiro e logístico do projeto mencionado.
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é o suprimento de água conectada com um conhecimento material dos recursos,
mas também relacionada com a ineficiência e ausência de serviços que agentes
e instâncias estaduais e municipais não têm procurado dar atendimento.
O trabalho de campo, realizado em 2003 e 2004, orientou-se para mapear
os modos socialmente compartilhados dos recursos hídricos e as formas como os
grupos reagem e buscam resolver os problemas vinculados à água de consumo
domiciliar; descrever as experiências dos membros das famílias, vizinhos e
comunidade na identificação dos problemas relativos a água e organizar e refletir
percepções e mitos associados à água na ilha de Marajó. Os procedimentos em
campo incluíram realizar entrevistas, oficinas e registro de dados quantitativos por
meio do preenchimento do censo domiciliar.
A ilha de Marajó é caracterizada na literatura como “terra anfíbia” (Luxardo,
1951) ou território onde é exercida “a ditadura da água” (Gallo, 1981).
Paradoxalmente, nessa terra com abundância de água, grupos sociais
experimentam a escassez e a má qualidade da água de consumo doméstico. Nas
seis comunidades quilombolas, onde foi realizada a pesquisa de campo – Paixão,
Providência, Siricari, Barro Alto, Pau Furado e Deus Ajude, apenas a última
dispõe de serviço de caixa d’água e de rede de abastecimento (água encanada),
o que fundamenta o discurso da abundância e de excelência (boa qualidade) da
água que utilizam. Contudo, a análise bacteriológica com base em coleta
realizada em potes, garrafas plásticas e poços, realizada nos domicílios e na
caixa d’água do povoado indicam não ser a água de Deus Ajude apta para o
consumo humano. O resultado idêntico aos cinco outros povoados, que não
possuem esse serviço de abastecimento, suscita questões sobre processos
edafológicos, de salinização e de infiltração das águas no lençol freático que
expliquem a contaminação da água e o aumento da salinidade. Todas as
comunidades revelam problema de contaminação. Em Mangueira, a comunidade
com maior número de moradores, os graves problemas com a água de consumo
mobiliza os moradores para realizar um abaixo assinado dirigido às autoridades
municipais e do Estado na busca de soluções para a grave escassez
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experimentada no verão de 2004 (anexo) somada à péssima qualidade da água
disponível para consumo.
A coleta de água de consumo domiciliar para análise bacteriológica foi
realizada paralela ao estudo sócio-antropológico, conseguindo o cruzamento de
discursos de mulheres e homens das comunidades negras sobre os problemas
cotidianos com o abastecimento, as doenças de veiculação hídrica e o
desatendimento deste direito fundamental: garantia do “uso da água para as
primeiras necessidades da vida” 3 (Decreto Nº 24.643, de 10 de julho de 1934 –
Código das Águas).
A primeira parte deste artigo descreve os povoados e os recursos hídricos
compartilhados, segundo concepções de uso comum e normas de reciprocidade;
a segunda descreve as estratégias para resolver os problemas vinculados à água
de consumo domiciliar e as experiências compartilhadas por famílias, vizinhanças
e comunidades. Destaca-se a problemática dos poços, que têm sido a solução de
abastecimento dominante nas comunidades. Na terceira e última, apontam-se
alguns elementos simbólicos associados à água na ilha de Marajó que podem ser
interpretados como mecanismos de regular o uso e realizar a proteção de
ambientes aquáticos: cabeceiras, lagos, igarapés e rios. Ainda, esses elementos,
revelam as negociações e conflitos no interior da comunidade e aqueles que
representam confronto aberto com outros agentes econômicos e políticos e suas
formas de uso dos recursos hídricos.
É importante mencionar que este tipo de estudo está sendo executado
com uma perspectiva de informar e discutir alternativas de solução com os atores
sociais. O projeto realizou uma primeira oficina no III Encontro de Mulheres
Negras Quilombolas, em Mangueiras, de 24 a 27 de junho de 2004, com a
participação de 158 pessoas, representando o conjunto de comunidades negras
de Salvaterra, e dos municípios de Acará, Ananindeua, Castanhal, Mocajuba,
3 Os resultados desta análise feita no laboratório de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará, sob a responsabilidade da profa. Dra. Karla Tereza Ribeiro, foram encaminhados à Secretaria de Saúde e Prefeito do município de Salvaterra; diretora do Programa Raízes, da Secretaria de Justiça do Estado; ao Secretario de Saúde do Estado e, por último, apresentado à Associação de Remanescentes de Quilombos de Deus Ajude, com a finalidade de tomar providências, dada a gravidade das situações verificadas.
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Santa Isabel do Pará, Capitão Poço, Baião e ainda representação Estado do
Amapá. Esse trabalho teve continuação em oficina realizada na comunidade de
Deus Ajude, em outubro de 2004, paralelo ao preenchimento do Censo
Domiciliar4.
Estudos sobre o uso dos recursos hídricos em nível local são prioritários
para identificar e analisar a nova realidade da Amazônia brasileira em relação aos
recursos hídricos. Essa realidade está marcada pela perda quantitativa e
qualitativa de fontes de água e de alimentos; de decisões, emanadas ou não do
planejamento que são contraditórias e incompatíveis com a preservação desses
recursos. O uso da água para exploração agrícola, industrial e comercial gera
inúmeros problemas que afetam populações tradicionais. O propósito desta
pesquisa é apresentar resultados que permitam definir as diretrizes e estratégias
de gestão na esfera local. As populações tradicionais possuem, pelo acúmulo de
experiências, próprias ao seu modo de produzir e de vida mecanismos de
controle que emergem dentro de processos territorialização e de culturas
particulares. Ao longo desses processos desenvolvem-se campos de conflito e de
construção de poderes econômicos e políticos que transcendem à comunidade,
ao povoado ou ao bairro; portanto, não constituem realidades localizadas, nem
isoladas. Jenipapo, povoado situado às margens do lago Arari (município de
Santa Cruz) focalizado na pesquisa realizada por Wagner e Sprandel5 retrata os
problemas da água no quadro de conflitos pelo território entre moradores antigos
do lago e os fazendeiros. Todavia, poucas pesquisas interdisciplinares têm sido
voltadas para a questão do uso dos recursos hídricos e sistemas de controle por
populações tradicionais.
Certamente é uma interpretação naturalista, como afirma o Pe. Gallo, que
na ilha de Marajó ou qualquer lugar desta quem manda é a água (GALLO, 1981: 4 Estes procedimentos de pesquisa têm-se desdobrado para o município de Concórdia, onde o trabalho de pesquisa iniciou com o I Encontro de Saúde Preventiva e Meio Ambiente no Município de Concórdia do Pará, realizado no dia 14 de agosto de 2004, na Escola de Curuperé (ver anexo). 5 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; SPRANDEL, Márcia Anita. Palafitas do Jenipapo na ilha de Marajó: a construção da terra, o uso comum das águas e o conflito, 2000. 35 p. (Mimeo).
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p. 63). As relações homens – natureza são amalgamadas por relações sociais e
de poder que se sobrepõem ao domínio das águas e, pretender situar a natureza
no plano de autoridade, é metafórico. O embate homem-água, que poderia
distinguir o conflito ambiental, precisa, antes, que se defina o conflito social.
2. Ocupação da sub-bacia do rio Paracuari
A cartografia antiga e moderna sobre o arquipélago de Marajó6 revela a
intrincada malha aquática e confere veracidade à identificação da ilha tão regada,
e banhada de tantos rios ... além dos seus muitos rios, tem e muitos e grandes
lagos... como escreveu o Pe. João Daniel (1722-1776) (1976: v. I, p. 66). As
primeiras descrições da ilha de Marajó tão cercada de outras ilhas, quase por
todos os lados e de ilhotas que a faz parecer uma mãe cercada de muitos filhos,
foram feitas pelo padre João Daniel no seu “Tesouro Descoberto no Rio
Amazonas”, que descreve a formação e desembocadura do rio Amazonas e situa
a contribuição das “ribeiras da banda sul do Marajó”: Pouco abaixo do Rio das Areas, o Amazonas se divide em dois braços. O principal vai para o Norte e deságua junto a Caiana onde recebe algumas ribeiras da banda do Sul da Ilha do Marajó. Este braço austral do Amazonas, mais caudaloso, com as águas de tantos rios, especialmente do Tocantins, continua o seu curso depois da Baía Marapatá e vai repartindo o terreno em várias ilhas. Forma as baías de Atuá e sai à grande baía chamada Marajó onde muito se espalha e estende. (Daniel, 1975; v. I, p. 40)
6 A descrição da Ilha de Marajó pelo Pe. João Daniel mantém atualidade. O religioso escreveu discurso ao dizer que a Ilha do Marajó, merece o primeiro lugar por ser a maior de todas. Ela foi chamada também de Joanes ou Ilha Grande. Forma todo o continente do Rio Amazonas entre as suas duas grandes bocas, uma que busca o Norte, que é a principal, e outra que deságua pelo Sul. Entre as referidas bocas está este grande torrão de terra com o nome de Ilha Grande, pois lhe dão de comprimento mais de 60 léguas e outras 60 de largura. Medindo o comprimento de Leste a Oeste, principia-se um pouco acima do Tajupuru, até onde ela faz frente ao mar, que chamam de Barreiras. Retoma o debate dizendo sobre seu comprimento de Norte a Sul, porém todos concordam que é Ilha do Marajó é uma das maiores do mundo. Ela é repartida em muitas ilhas e penínsulas com os rios que juntamente a banham e fertilizam (Daniel, 1975; v. I, p. 64-65).
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Nessas observações, focaliza o embate das águas do rio Amazonas (o
monarca dos rios) com o mar que faz recuar por muitas léguas” e o perigo que
representam a grande baía do Marajó e Arari que se comunica com a baía de
Carnapijó e são bravas e perigosas pelos seus muitos baixos (Daniel, 1975; v. 2,
p. 41). Da grande Ilha Marajó, “abraçada” pelo rio Amazonas “com os seus dois
braços” os mais caudalosos cursos de água são o rio Anajás, que deságua no
Tajupuru, Marajó e Arari, que desembocam nas baías do mesmo nome, e o
Igarapé Grande, que deságua fora da barra para Nascente. (Daniel, 1975; v. 2, p.
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O rio chamado Igarapé Grande que deságua para o Sul da ilha de Marajó
é, como escreve Agassiz, um “corte” que põe em evidencia três formações
geológicas do Amazonas e que abriu caminho para as invasões das marés do
Oceano Atlântico (Agassiz apud Marajó, 1992; p.59). Para as populações que se
estabeleceram na parte denominada Marajó Oriental o Igarapé Grande é o
principal eixo fluvial, também conhecido como rio Paracuari. Os pescadores e
barqueiros das comunidades negras que conhecem suas voltas lhe dão três
denominações que correspondem a segmentos de um espaço aquático – Rio
Paracuari, Igarapé Grande e São Lourenço – que é continuo e resulta familiar ao
seu modo de vida. Também para eles são familiares todos os furos que seus
ancestrais conheceram por tê-los transitado e até batizado como o furo do
Miguelão7, Taboca e de Santa Lourdes. Navegar pelos furos é sempre uma forma
de reduzir a periculosidade de trechos do grande rio ou de ter a vantagem de
encurtar a distâncias, muitas vezes encontrando outros perigos8. Foram esses os
7 Durante a pesquisa realizamos, no mês de outubro de 2004, uma viagem de barco de Mangueiras a Soure, que tardou cinco horas, realizado durante a noite. Navegamos pelo furo Miguelão que oferece grande perigo nas curvas por causa dos fundos e da vegetação que fecha as margens com risco de choques. Seis dias depois desta viagem, tivemos a notícia de um acidente que vitimou o Sr. Manoel Alcântara, de 81 anos que regressava de Soure onde tinha recebido sua aposentadoria. O barco se chocou com uma árvore e ele que vinha sentado no convés do barco teve as pernas mutiladas. As condições dessa viagem de barco eram péssimas, mais de 30 pessoas, entre crianças e adultos, apinhavam-se dentro da embarcação: algumas em rede, outras deitadas no piso do barco, junto com bicicletas, sacolas e caixas. As autoridades não atentam para os problemas do transporte e as pessoas estão obrigadas a submeter-se a estas situações. 8 O Pe. João Daniel apresenta detalhes sobre os furos “que elegem por evitarem os perigos das costas nas Baías Arari, Marajó”. Destaca, além do seu significado em língua brasílica – igarapé
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caminhos transitados pelos escravos fugitivos das fazendas localizadas às
margens esquerda e direita do Igarapé Grande.
A ocupação colonial foi realizada acompanhando os rios, lagos e igarapés.
À margem direita do rio Paracauari, foi formada a fazenda São Lourenço e,
aderente a essa, estava a Roça de São Macário, que reunia os índios aldeados
trabalhando nos plantios de mandioca. Fazenda e roça formavam parte do
patrimônio dos padres mercedários9 (BAENA, 2003, p. 191). Ademais desta,
possuíam duas fazendas no rio Arari; uma na foz, de nome Santa Anna, e, outra,
no interior. Na costa boreal da ilha de Joanes tinham as fazendas: São Pedro,
Dos Retiros, São João, São José; Guajará; São Jerônimo, na foz do rio Arari.
Também os jesuítas tinham cinco fazendas de gado vacum e cavalar na ilha
Grande de Joanes. Os Carmelitas contavam com posses menores; na ilha de
Marajó era apenas uma fazenda de gado no rio Câmara.
Na passagem do século XVIII ao XIX, o número de escravos africanos
aumentou nas terras dedicadas ao cultivo da cana de açúcar e nos engenhos,
localizadas na parte ocidental. A criação de gado dominava os campos naturais
da parte oriental e setentrional. Nas vésperas da Independência, a população
escrava da ilha representava menos de ¼ do total. As notícias de fuga de
escravos10 não eram raras, direcionando-se para os pequenos cursos de água e,
rumo ao norte, procuravam alcançar Macapá e Caiena (GOMES, 1999;
ACEVEDO, 1985; SALLES, 1978). Os pequenos cursos e furos que se
encontram na história; os escravos e seus descendentes; passam
mirim – pequeno caminho de canoas que os índios tinham superstição pois ali habitam seus pajés e quando por eles passam e atravessam lhe oferecem algum mimo em sinal de respeito e adoração que deixam pendurados dos ramos das arvores, que cobrem e assombram o furo (Pe. Daniel, 1976. V. I, p. 46-47). Em viagens pelos furos os barqueiros dão avisos nas curvas estreitas, prestam atenção e permanecem silenciosos em estado de alerta. 9 Em 1794, a fazenda São Lourenço ou Paracauari foi seqüestrada dos Padres Mercedários. Posteriormente, passou a ser conhecida como fazenda São Macário. Essa informação é um elo importante da história doas terras do povoado de Bacabal. 10 Gomes informa, com base em pesquisa de arquivo, a existência de mocambos na Ilha de Joanes, Soure, Caviana, Mexiana, Arari e Chaves (GOMES, 1999, p. 286). No estudo de Gomes e Nogueira (1999) sobre a deserção na época colonial, citam os mocambos descobertos e as prisões realizadas em Chaves e Ponta de Pedras. Expedições foram feitas nos mocambos situados no igarapé Acorahy e rio Iaraucu nas proximidades das vilas de Veiros, Pombal e Souzel (GOMES & NOGUEIRA, 1999, p. 216-217).
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desapercebidos nos estudos de geógrafos mais atenciosos (NUNES PEREIRA,
1956; FERREIRA PENA, 1971).
As comunidades quilombolas abriram retiros e povoados próximos de
igarapés e vários compartilham igarapés, rios e lagos de menor volume, mas de
grande importância para sua existência física. O igarapé Siricari11 é central para
pessoas que vivem e se cruzam indo para Siricari, Caetano, Providência e Deus
Ajude. Já o rio Siricari e o denominado lago de Siricari tornam-se muito próximas
para os moradores de Barro Alto e Pau Furado. Os povoados de Bacabal, Pau
Furado e Barro Alto têm em comum compartilhar do rio São Macário, distinção
feita a uma parte do rio São Lourenço.
O igarapé São Tomé é o enlaçamento da história das famílias do retiro
Boa Fé, do povoado de Paixão de Boa Esperança. Ao norte, os igarapés Aterro e
o rio São Joaquim são compartilhados pelas famílias de Salvá e Mangueira, além
de ter um território comum banhado pelas águas do rio das Tartarugas e do rio do
Saco.
Os lagos, permanentes ou temporários, próximos do povoado, são
destacados pelos moradores como referência do ecossistema de campinas e
campos da ilha onde elaboraram modos de vida, de trabalho e de produção por
mais de uma centúria. Nesses lagos, pescam; e, nas margens, encontram
arvores frutíferas. Em vários casos, esses lagos têm existência temporária, o
significativo é o valor que adquirem para as comunidades.
3. Recursos hídricos e regras de uso comum
Os rios Anajás, Arari, Muana, Marajó-Açu, Cujuuba, Afuá, Atua, Arapixi,
Quió, Paracuari e Câmara viram formar, nas suas margens, fazendas originadas
em doações de sesmarias dos séculos XVIII até 1822, que nem sempre foram
confirmadas como estabelecia a lei de 1702. Esse instrumento de controle de
imensas áreas com vistas à pecuária, não se estendeu à exploração dos rios e
11 O cotejamento dos rios e igarapés mencionados por Nunes Pereira no seu famoso trabalho de geografia sobre a ilha de Marajó apenas menciona o rio Sericari, que deságua no rio Paracuari.
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lagos, ricos em espécies ictiológicas desconhecidas dos colonizadores. Portanto,
não foram os rios integrados a esse sistema de apropriação. D. Afonso criou, por
Carta Real, as Pescarias Reais que se destinavam ao suprimento de alimento
das tropas, das tripulações dos barcos da metrópole e de exportações que se
dirigiam ao reino (ACEVEDO, 1985, p. 81).
A prosperidade dos pesqueiros reais foi curta e, em 1818, o de Soure
passou da administração provincial para as mãos de concessionários, até ser
suprimido, em 1827. Os Aruans – mestres pescadores – haviam ficado
arregimentados por ordem real ao pesqueiro e, com seu fim, estavam livres
dessa sujeição. Baena afirma que não havia nenhum capital suscetível de manter
esse número de pescadores e nem eles aceitariam voltar ao regime anterior
(BAENA, 1839, p. 281-282). A pesca se transformou em atividade de pequenos
pescadores pobres, que pagavam impostos ao fisco provincial quando sua
produção se destinava à capital.
Os modos de existência e as formas de organização desses pescadores
lhes permitem controlar territórios de pesca, relativamente independentes das
terras controladas e vigiadas pelos feitores dos fazendeiros; em especial, trata-se
de ocupação de igarapés e de rios menores e lagos.
O território das comunidades quilombolas de Salvaterra situa-se na sub-
bacia12 do rio Paracuari e os pequenos igarapés que o circundam e cruzam
12 Segundo a Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente – SECTAM, a ilha de Marajó está compreendida na região Hidrográfica Portel-Marajó, que ocupa uma área de 10,8% da área do estado. As principais drenagens são provenientes dos rios Anapu, Pacajá, Marinau, Tueré, Pracuruzinho, Curió, Pracupi, Urianã, Arataí, Mandaquari, Jacaré-Paru Grande, Jacaré Paruzinho, Anajás, Aramã, Jacaré, Cururú, Afuá, Jurupucu, Jurará e o rio dos Macacos. Esta região é composta pelos municípios de Portel, Pacajá, Bagre, Novo Repartimento, Anapu, Breves, Chaves, Afuá, Anajás, Curralinho, São Sebastião da Boa Vista, Muaná, Soure, Salvaterra, Cachoeira do Ararí, Santa Cruz do Arari e Ponta de Pedras. O clima nesta área é equatorial úmido, com amplitude térmica mínima, temperatura média em torno de 27ºC, sendo que a mínima superior em torno de 18ºC e a máxima em torno de 36ºC. Umidade máxima elevada em torno de 90%, com alta pluviosidade nos seis primeiros meses do ano, sendo o trimestre mais chuvoso fevereiro, março e abril, chegando a coletar 350mm, no último mês; enquanto que os meses de agosto, setembro e outubro, aparecem como o período menos chuvoso, com a precipitação aproximada de 70mm no mês de outubro. O índice pluviométrico anual é em torno de 2300mm. A insolação média anual é aproximadamente 2.200 horas. Essa sub-região abrange a ilha do Marajó, que representa um dos locais mais ricos em termos de recursos naturais no estado do Pará. Devido às diferenças em suas características fisiográficas, ela divide-se em Marajó Ocidental e Marajó Oriental. A Bacia dos Rios da Região Ocidental do Marajó tem como coordenada geográfica em torno de -00º42'36'' a -01º53'24'' de latitude, e
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corresponde a formas de apropriação e de uso comum de recursos hídricos.
Esses igarapés formam uma rede de conexões sobre a qual temos uma
aproximação por meio das informações de campo.
Segundo as informações de moradores de Deus Ajude, o igarapé Siricari é
o mais importante para esta comunidade: Siricari, Caetano e Providência. Este se
encontra com o Mãe de Deus
Vai pelo igarapé Siricari, chega no Mãe de Deus e daí pode chegar até Câmara. No período do inverno vai até Rosário e dali vaia no Câmara. No verão fica seco e passa-se em um lugar chamado Conceição. Paixão e Conceição estão perto. Conceição é perto de Siricari. Ali somente tem uma casa.
O igarapé São Tomé serpenteia e, às suas margens, estão o retiro Boa Fé
e Paixão. Para Barro Alto, o igarapé Matopirituba é o mais importante.
Nas comunidades existe consenso sobre a importância dos igarapés para
pescar e catar sarrara, siri, camarão e caramujo. Neles fazem tapagem na
procura desses alimentos. Outro reconhecimento é sobre a importância das
cabeceiras dos igarapés, pois nelas “desovam os peixes”.
A vida e ritmos dos igarapés forma parte de histórias e conhecimentos
compartilhados. Um entrevistado de Paixão fez a síntese das vivências dos
moradores da comunidade com o igarapé São Tomé:
O igarapé São Tome de novembro para dezembro fica seco. Eu viajei muito por ele de canoas a remo. Ia para a fazenda Cacoal, na mesma margem desse rio que vai para o rio de Soure, o Igarapé Grande. O São Tomé acaba no rio Paracuari. Essa viagem foi feita há quatro anos e durou 6 horas. As cabeceiras estão no igarapé Mata Fome, mas essa cabeceira foi serrada. O igarapé precisa de cuidado. O peixe vem do rio de Soure, mas esse braço esta serrando e não está transitando mais.
48º18'22'' a 51º24'21'' de longitude. Seus limites são: ao norte o estado do Amapá e o oceano Atlântico; ao sul o rio Pará; a leste a bacia dos rios da Região Oriental do Marajó e a oeste o estado do Amapá. A área desta Região é de 37.062,201 km2 correspondendo a 3,0 %. A Bacia dos Rios da Região Oriental do Marajó tem aproximadamente como latitude - 00º22'02'' a -01º45'00'' e longitude 48º18'06'' a 49º52'03''W. Aparece como limites: ao norte Oceano Atlântico; ao sul o rio Pará; a leste a Baia do Marajó e a oeste a bacia dos rios da Região Ocidental do Marajó. Sua área é de 21.328,425 km2 que corresponde a 1,7 % do estado.
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Nesses igarapés situam-se portos e trapiches que constróem parte da
história dos povoados, por ter sido o meio de comunicação mais importante e
uma forma de construir uma unidade. A referência de distâncias e tempos de
viagens entre os portos e trapiches foi feita a partir de vários depoimentos. Do porto de Pau Furado para o porto de Bacabal o tempo de
viagem de canoa é de 10 minutos. Do Porto de Deus Ajude para Mangueira é de três horas e media. Do porto de Santa Luzia para Deus Ajude é de duas horas e desse mesmo porto para Mangueira o percurso demora três horas. Do porto de Bacabal para Mangueira são duas horas e do Porto de Deus Ajude para Santa Luzia media hora.
Esse é o tempo calculado para atualizar relações de parentesco, de trocas,
de serviços e de seguir o tempo santoral desta parte da ilha de Marajó. Essa
referência de distância muda muito devido à construção de ramais entre os
povoados e os moradores terem feito, da bicicleta, o meio de transporte mais
freqüente, aposentando as canoas. De uma década para cá, a bicicleta é o bem
de consumo mais cobiçado.
As canoas, os barcos e os portos vão ficando para trás, exceção dos
múltiplos movimentos para chegar nos territórios de pesca que disputam com os
fazendeiros.
Os igarapés exigem cuidados que o desuso não facilita. Antes havia uma
rotina dos canoeiros cortar os paus: quando tínhamos canoas, limpávamos o rio
com machado. Era a passagem da canoinha que necessita esta limpa. O
abandono dessa embarcação não está dada apenas pela mudança do meio de
transporte: bicicletas e carros que entram no ramal, mas também pela falta de
“paus para fazer canoa”. Em Paixão, o conflito com o fazendeiro lhes impede
entrar na terra para ir buscar as madeiras. Eles não têm dinheiro para cortar. Os
conhecedores da confecção de canoas não aposentaram sua prática, apenas
experimentam a restrição de “não poder tirar mais madeira para fazer nada, não
poder tirar uma palha”. Os conflitos pela “beirada” e os lagos onde podem pescar
torna-se mais acintosa.
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As comunidades enfatizam os lagos que estão dentro dos seus territórios
e, essa referência também considera os problemas de acesso a lagos que
ficaram seqüestrados dentro das cercas das fazendas.
Os povoados A ilha de Marajó de hoje é produto de um processo de partilha da terra
entre grupos sociais formados nos séculos XVIII e XIX, o que dificultou, em
grande medida, a expansão da agricultura e do campesinato em tempo mais
recente. Roceiros, vaqueiros e pescadores lutaram para permanecer, muitas
vezes, no meandro das fazendas e dependentes de uma espécie de aristocracia
com poder de controle sobre a terra. O fato mais persistente na ilha é o processo
de concentração de terras e a formação dessa aristocracia local que demarca a
continuidade de relações sociais de subordinação de camponeses, sitiantes,
vaqueiros, pescadores, aos donos das fazendas. Entretanto, é importante
reconhecer que o mundo agrário do arquipélago também tem uma diversidade
considerável de tamanho de propriedades, de formas de acesso, de grupos
sociais formados pelos herdeiros e deserdados.
O povoamento da ilha tem sido objeto de observações que ressaltam o
“vazio da ocupação humana” enquanto o boi e búfalo tomaram conta dos campos
naturais. Essa visão hegemônica não considera a existência de um campesinato
negro que se originou da formação de mocambos na ilha, da existência de
pequenos sítios, de concessões, doações e aquisições de terras por grupos de
famílias que lutam por uma condição de autonomia e que, na maioria das
situações, ficaram limitadas pelas cercas das fazendas. É importante assinalar a
diversidade de acesso a terra, via doações, registro de posse e de ocupação por
várias gerações e compra de pequenas áreas como forma consuetudinária
principal de deter o usufruto da terra, floresta e cursos de água. Vários povoados
revelam essas origens diferenciadas. Hoje, sua contribuição á agricultura, pesca
e criação suína e de aves, na ilha, é um fato inegável. O seu grau de
envolvimento com o mercado e os negócios urbanos registra uma tendência ao
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aumento, em parte pelo impacto de rupturas das relações de reciprocidade com
menor regularidade das trocas entre comunidades e as famílias. De muito tempo
atrás data seus envolvimentos para enviar seus filhos a trabalhar na cidade como
amas e domésticas. A vida social se desenvolve dentro do limite do mundo do
sítio rodeado das fazendas, com diferentes envolvimentos como trabalhadores,
como cultivadores com acesso autorizado pelos fazendeiros ou gerentes. Nesse
tecido social distinguem-se os herdeiros e não herdeiros. Na ilha de Marajó
observam-se diferenças nos modos e meios sociais de vida. Pode-se afirmar que
o arquipélago incorpora poucas mudanças; em especial se a atenção é colocada
nos movimentos lentos de desconcentração da terra, por partilha dos grandes
herdeiros e vendas, mas em geral a ilha experimenta lento crescimento
demográfico.
Alguns antigos pequenos povoados decrescem por força de um processo
de implosão feito de dentro dos povoados. Outros, como Mangueira, cresceu; e
informam que cada vez menos pessoas nascem em fazendas, igual situação
ocorre em Deus Ajude, o “Grande Caldeirão e Campinas”, significando uma
quebra do padrão de relações dos antigos vaqueiros, que permaneciam por
décadas vivendo dentro da fazenda e se integram aos povoados.
Nos sítios estão reunidos os “herdeiros de uma terra”, como representação
tanto de uma filiação como de formas de acesso a um patrimônio. Trata-se de
uma herança compartilhada por filhos e filhas, característica que foi destacada
por Eric Wolf examinando outros contextos sociais e históricos nos seus estudos
sobre campesinato. A partir destas práticas se reconhece o direito dos herdeiros
e a “descendência bilateral”.
O município de Salvaterra, o de menor extensão de terra da ilha,
compartilha, com Soure, o rio Grande, Paracuari ou São Lourenço. Entretanto, a
divisão administrativa decretada pelas autoridades revela pouco significado para
entender a história da formação e compreender a intrincada rede de relações
entre os “povoados”, as diferentes localizações dos sítios que lhe deram origem.
Mangueira, por exemplo, com dificuldades de transporte, estabelece maior
intercâmbio comercial com Soure. Todavia, está na jurisdição de Salvaterra. Na
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atualidade, o efeito desta divisão tende a produzir diferentes feixes de relações
em função de serviços.
Salvaterra tem uma extensão de 804km e uma população total de 14.615
habitantes (censo de 2002), desta população 56,7% é considerada urbana e
43,7% rural. O survey realizado nos 11 povoados, com uma maioria de população
negra e mestiça, indica um total de 1916 pessoas, o que representa 35% da
população rural. Nesta contagem não está incluído Caldeirão, com mais de 100
casas. As famílias que vivem no lugar mantêm vínculos estreitos com os
povoados negros que se formaram nos séculos XIX e XX. Este dado é
significativo da importância desses grupos na economia e sociedade local.
População nas comunidades
5% 12%
17%
10%23%2%
6%
4%2%4%
15%
Deus Ajude Bacabal
Barro altoBoa VistaM angueirasPaixão
Pau FuradoProvidência SalváSiricari
Vla União
Os herdeiros de Deus Ajude e de Providência
A origem do povoado Deus Ajude apresenta-se completa em duas
narrativas conectadas: uma a existência de um “retiro” que tinha uma casa de
nome Retiro Deus Ajude. Este é o lugar de onde se expande o antigo povoado.
Esse retiro pertencia a Luís, que teve várias mulheres. Uma índia ele cassou no
mato. Também teve como mulher uma escrava. Outra mulher vivia em
Mangueiras. Tinha roças e gado. Aliás, ele chegou a comprar terras em Deus me
Ajude, Natividade Boi Gordo, Mangueira e Dalas. Em cada um desses lugares
tinha uma mulher e muitos filhos.
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Na área de Natividade Boi Gordo, abriu terras para plantar e também fez-
se uma vila. Ali morou Jorge Florêncio e Irmã. Neste lugar há coqueiros antigos e
mangueiras. Parte do território de Deus Ajude compreende a doação feita por um
alferes.
Para compreender a existência social do campesinato da ilha de Marajó é
preciso adentrar na noção de herança da terra, que tem um alto valor social em
cada povoado. Deus Ajude começa sua história em um “Retiro” com esse nome.
Uma pequena casa relativamente isolada que aumentou com novas famílias,
novas roças e necessidades, e se transformou em um sitio. Deus Ajude formou-
se de uma parte que foi doada, em 1914, por um Alferes e uma compra realizada
por Luis Antonio de Souza. A área se compõe de Nossa Senhora de Natividade
do Boi Gordo, enquanto a compra recebeu o nome de Deus Ajude.
Luis Antonio de Souza é figura central na história de Mangueira e de
Providência, onde também formou família e teve muitos filhos. Negro, homem
livre, casou com uma mulher que era escrava e, esta, foi a célula do povoado de
Deus Ajude.
Nessas terras ele fazia roça e tinha algum gado. Era costume que, em
relação ao território da família titular da herança, se levasse um dos filhos para
tomar conhecimento sobre os limites da terra. O Sr. Lair lembra que, quando
jovem, seu pai o levou até o limite da terras.
Em Deus Ajude, atualmente, vivem 19 famílias, embora algumas
permaneçam um tempo fora do povoado. A Associação de Quilombo Deus Ajude
reivindica a herança. As famílias estão atentas aos limites. Um fazendeiro “mais
teimoso” entrou 100 metros. Esta entrada ocorreu onde eles mantiveram a
floresta em pé por pelo menos noventa anos.
Deus Ajude está ensaiando a agricultura do arroz e do milho,
coletivamente, como nos demonstrou o senhor Laerson Alcântara de Souza, de
66 anos.
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Providência
O povoado situa-se no caminho de Deus Ajude a Mangueira. Nessa área
de campo, os moradores registram ter havido aumento de rebanho de búfalos e,
ainda, várias cabeças são dos vizinhos, que solicitam para o rebanho pastar nos
campos do povoado. Com isto são obrigados a construir cercas em torno das
casas para evitar as investidas dos búfalos.
Algumas pessoas afirmaram ter título do terreno e pagar anualmente uma
taxa. Em pequenas áreas realizam plantios e cuidam da produção da farinha, a
qual gera renda para a família. Outras espécies cultivadas nos quintais são
destinados apenas para consumo.
O povoado de Providência fica situado bem no centro de um campo
natural, pouco distante de – 3 km apenas – de Deus me Ajude. Entre ambos
existe uma estrada metade piçarra, metade areia.
Em Providência a primeira observação recai sobre o campo de futebol,
verdejante entre o final da estação chuvosa e início do período de seca. As casas
da comunidade estão construídas formando um semi-círculo, distantes umas das
outras uns 30 ou 50 metros; outras são acessíveis atravessando o campo. Os
terrenos não são demarcados por cerca e os búfalos vivem a pastar durante a
maior parte do dia no povoado e só ao final da tarde eles são presos em um
curral. Esses búfalos são criados para serem revendidos quando a situação
financeira da família não está muito boa.
No povoado de Providência há fornecimento de luz elétrica, porém não há
igreja, escola e sede comunitária. As crianças do povoado estudam em “Deus
Ajude”. A terra de herança do Sr. Gilberto Leal de Sousa foi recebida do seu pai.
Ele decidiu, muito jovem, tentar a vida no Amapá e em Belém e, mesmo, em
Salvaterra. Depois da morte do pai foi chamado para assumir o seu pedaço de
terra e nele cultiva, cria galinhas, porcos e búfalo. Os filhos ajudam no dia-a-dia.
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As pessoas do povoado de Providência estabelecem laços de amizade e
vizinhança. Dentre os problemas existentes no povoado estão a falta de um
transporte que possa levar os moradores até Salvaterra ou para outros povoados,
em especial nos casos de doença, quando a bicicleta não resolve. Falta também,
no povoado, uma escola para as crianças e um posto de saúde que venha a
cuidar dos doentes em suas necessidades básicas.
Siricari
O estudo sobre os povoados da ilha de Marajó focaliza, em uma
perspectiva mais abrangente, o papel dos pequenos criadores e roceiros na
economia da ilha e em relação à expansão do sistema de fazendas. Também
considera situações que não são exclusivas do município de Salvaterra, pois as
relações sociais e econômicas são entrelaçadas e freqüentes com os moradores
de sítios e povoados de Cachoeira do Arari, Soure e Muaná, ou com grupo de
fazendeiros e de comerciantes da ilha.
Cada povoado distingue-se pelas suas formas de inserção e pelo perfil das
unidades de produção. Mangueira, Deus Ajude e Siricari têm mais acentuada a
criação de animais. A formação desta constelação de povoados destaca-se numa
área de campos que foi ocupada por fazendas, enquanto os roceiros e pequenos
criadores organizam sua base territorial no interstício das terras não apropriadas
pelos fazendeiros.
Siricari têm menor número de unidades familiares, contudo confere-se a
importância da criação, em primeiro lugar de suínos, com 73 animais, seguido de
bufalinos. Uma informação de campo indica que havia 40 búfalos13 embora no
formulário preenchido em cada uma das casas este dado não seja confirmado. A
formação desse grupo de pequenos criadores revela uma dupla estratégia de
criação para o consumo e de reserva de um patrimônio que pode ser negociado
em caso de necessidade. A questão é compreender quais são as oportunidades
13 Entrevista com a professora do povoado de Siricari, em julho de 2003.
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para adquirir animais e de ascender à condição de pequenos criadores? Que
significado eles atribuem à criação de búfalos? Que renda é gerada com a
criação de suínos e bufalinos e como este patrimônio é concebido? Como é visto
quem acumula mais animais? Estas questões foram examinadas para Siricari
como possibilidade de conhecimento sobre a organização econômica e social do
povoado.
Siricari conta com população maior que Providência e menor que Deus
Ajude. Os três estão mais ao norte e mais próximos do rio Paracuari, divisa entre
os municípios de Soure e Salvaterra. Outro detalhe é que guardam entre si
pequena distância e utilizam caminhos para estreitar seus vínculos, o que é
facilitado pelas passagens ou atalho. Esses roteiros de acesso a cavalo, de
bicicleta ou a pé entrelaçam vidas e histórias. Antes esse acesso era mais
freqüente pelo igarapé Siricari utilizando canoas e pequenos barcos.
De Siricari à sede do Município a distância é de 10km que são percorridos
por uma estrada acidentada, não asfaltada e com uma ponte. A bicicleta é o meio
de transporte mais freqüente. O trajeto entre Siricari e Deus Ajude pode ser feito
em menos de 25 minutos de marcha, tomando-se um atalho que encurta a
distância ao atravessar o sítio denominado Caetano. Outro percurso é feito
tomando o ramal grande de piçarra, mais distante da estrada comum a Deus
Ajude e Siricari, onde se encontra um núcleo de casas chamado de Passagem
Grande e, mais adiante, Boa Vista, que é fronteira com Paixão.
Em Passagem Grande e Boa Esperança nasceram algumas pessoas que
se mudaram para Siricari. À margem direita da estrada encontra-se o lugar
conhecido como São Cristóvão (ver croqui). Na parte norte e oeste, está
definida a fronteira com o povoado de Deus Ajude; na parte leste está o povoado
de Boa Vista e, na parte sul, limita-se com a fazenda do “Baiano” e o igarapé
Siricari.
Atualmente, Siricari conta com 17 famílias e o cálculo é que a população
alcança cem moradores, segundo a informação oferecida pela professora da
escola que reconhece o aumento de moradores. O levantamento feito durante a
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pesquisa cobriu 14 unidades domésticas censadas. Todavia o número de
construções é maior, incluindo casas vazias, galpões e casas de farinha.
A dispersão das casas indica uma estratégia, pois a localização,
reservando terrenos entre as moradias permite garantir um espaço lateral maior e
impedir o fechamento das fazendas. Nesses terrenos abrem-se os quintais, os
chiqueiros, as casas de farinha e os paióis. Pelo ramal da Passagem Grande
tem-se acesso ao um conjunto de onze casas. Do lado esquerdo estão duas
outras: em uma funciona um pequeno comércio, com uma mesa de bilhar. Este
espaço representa Siricari, propriamente. Do lado direito segue uma pequena
estrada, com quatro casas; este permite chegar a Caetano onde se encontram
três outras moradias.
Na parte central onde está a escola, bem na sua frente observa-se uma
área de campo de pastagens, utilizado na forma de uso comum pelos criadores
de gado e búfalos. Assim, a vegetação de campo domina no centro do povoado.
Na parte norte, mais ao fundo, observa-se um corredor por onde transita o
rebanho de alguns fazendeiros vizinhos que teimam em trazer para pastar seus
animais, ou atravessam por Siricari na busca de alimento e água nas
proximidades.
Roceiros, pequenos criadores e pescadores de Siricari elaboram
estratégias de reprodução e estas dependem de romper os limites físicos que
lhes impedem ter acesso às fontes de água e de alimentos. A diversificação das
atividades e a inserção de grupos de idade e sexo, nelas, forma parte dessa
estratégia. O povoado experimenta o cercamento realizado pelas fazendas que
levantam cercas de arame farpado para impedir a passagem dentro dos limites,
em muitos casos, arbitrários. Também, elas impõem o trânsito contínuo do
rebanho por dentro das terras do povoado. O conflito é permanente entre os
roceiros de Siricari e os donos de grande rebanho que atravessam o povoado de
leste a oeste.
Durante o II Encontro de Mulheres Negras Quilombolas do Pará as
representantes de Siricari apontaram as situações que desencadeiam tensões e
choques. De um lado, entre os vizinhos se estabelece um tipo de conflito que
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afeta as relações comunitárias e gera rupturas internas devidas à privação de
frutos e de interdições sobre a passagem por herdeiros de terras que contam
ainda com maior número de cabeças ou se reconhecem com direito a maior área.
Outros choques ocorrem entre os roceiros e pequenos criadores com os
fazendeiros que possuem grandes rebanhos e que, no movimento para fazer a
ampliação de domínios privados, têm reduzido o território do povoado. Esse
entrosamento dos animais é ainda mais grave, pois, boi e búfalos “estragam” as
plantações e rompem com o sossego.
A vida social se opera entre esses marcos e situações de enfrentamento
cotidiano. O vínculo com Deus Ajude é estreito e as famílias de ambos os
povoados compartilham as festas religiosas e alguns processos políticos, tal
como a emergência do movimento organizativo para formar Associações, o
avanço do grupo de mulheres ou eventos políticos nos quais são discutidas
alternativas para resolver as questões de terra e que permitam reduzir as tensões
entre pequenos criadores (também roceiros) e os médios e grandes fazendeiros.
Deus Ajude e Siricari dividem o igarapé Siricari e herança das terras.
Algumas famílias criam búfalo, mas o maior problema do povoado é ter sido
transformada em lugar de passagem do gado das fazendas vizinhas. Os velhos de Siricari eram cinco irmãos. E essa é uma herança de Lili,
Luciano e Osinho. Mas o povoado está sob a pressão dos fazendeiros e das
tensões internas.
NO OUTRO RAMAL – Baçabal, Pau Furado, Barro Alto e Boa Vista
Bacabal Na ilha de Marajó, o domínio das grandes fazendas se estabelece na base
de uma interligação de conflitos com os moradores dos sítios, que, ao mesmo
tempo, são trabalhadores e mantém as fazendas em funcionamento. As relações
sociais e políticas entre fazendeiros e moradores são fonte de instabilidade das
famílias e dos trabalhadores. Desta forma, os povoados cercados pelas fazendas
são pressionados para reduzir a área de roça e oferecer força de trabalho para a
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limpeza dos pastos e cuidados com o gado. Assim, o povoado apresenta graus
de dependência dos fazendeiros e, embora as famílias disponham tempo para a
roça, dependem da liberação do terreno.
A cerca é uma instituição na ilha e dispõe o território e os movimentos
cotidianos das famílias que podem necessitar mais tempo para ir até o rio, ou são
obrigados a atravessar as cercas.
Bacabal registra uma seqüência de conflitos com fazendeiros. Nos anos
50, é reconhecido um proprietário “alemão”, que atuava com despotismo e foi
desafiado por um homem da família Pereira. A briga foi considerada como uma
ocorrência comum com agressões físicas entre as partes. A polícia quis prender
cinco pessoas de Bacabal e, em todo momento, agiu a favor do alemão, que
pouco tempo depois abandonou a terra.
Como os documentos e proprietários da terra na ilha de Marajó parecem
nascer como a salvação na ilha de Marajó. Nos anos sessenta, chegou um
“fazendeiro” dizendo que era dono das terras de Bacabal e cercou o terreno.
Algumas pessoas solicitaram que deixasse um pedaço para fazer a roça. O
Joaquim Nunes proibia a passagem pelos caminhos, a pesca no rio, abrir roças e
caçar. A cerca fechou todo o terreno e os moradores ficaram presos. Nesse
tempo, o povoado ficou reduzido a dez famílias, pois muitos preferiram sair que
suportar essa situação.
A cerca da fazenda São Macário aprisionou o povoado que não dispõe de
área para plantar. Com a instalação da cerca foram derrubados os bacurizeiros e
as casas. Este fazendeiro já é morto e as famílias de Bacabal enfrentam suas
sucessoras, uma delas dona do cartório de Soure, a Dra. Eva Bofaiate.
No início a proprietária contratava os homens para serviços braçais. O
sistema era o de “deixar campo” ou formar capim. Depois não deu mais trabalho
e mandou prender um deles, que queria levantar uma escola.
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Barro Alto
Mariquara14, São Sabá, Santa Maria, Mãe de Deus, Campo Alegre, São
Pedro e São Luis15, são os nomes de sítios ou vilas que hoje ficaram engolfados
pelo nome oficial de Barro Alto. Cada um destes sítios reúne unidades
domésticas que adquiriram independência e, como tal, são merecedoras de
designação específica, na visão dos seus moradores, apesar da indiferença dos
“outros” para esta sua teimosia em dar nome e valorizar uma micro-história local.
No trabalho de campo surgem outras identidades espaciais que os
entrevistados buscam ressaltar e, muitas vezes, o pesquisador somente
consegue apreender depois de várias visitas e entrevistas um nome oficial para
um povoado e as designações para outros muitos lugares que se entrelaçam na
história de famílias, de sua mobilidade, de estratégias de sobrevivência. Além dos
sítios, os moradores de Barro Alto destacam os retiros onde começou sua história
de vida. Um entrevistado sublinhou “o retiro onde nasci chama-se Retiro Carmo”,
e, outros, acrescentaram ter nascido ou ter vivido no “Retiro Grande”. O “Retiro
Carmo”, talvez é o mesmo que “Vila do Carmo”. Também há a “Vila Galvão” que
também forma parte de Barro Alto. Ainda necessita ser acrescentado uma
localidade chamada Valentim e o lugar Roque.
Barro Alto, por influência externa, está também sendo reconhecido como
“Bairro Alto” pela força de codificação que produz essa toponímia, a qual não
chega a retratar realidades espaciais e sociais e procede a confundi-las. Portanto,
o primeiro esclarecimento é sobre o nome: trata-se de Barro Alto ou Bairro Alto?
A segunda identificação, com inspiração em uma espacialidade urbana, insiste
em Bairro Alto, uma categoria e classificação própria dos censos demográficos.
Ela é consoante à fala de técnicos e de setores políticos de Salvaterra, que
encontram eco nas localidades vizinhas, demonstrando, entretanto, falta de
conhecimento da história local. Dona Conceição, filha do fundador do povoado, o
Sr. Miguel Sarmento – rebela-se e desmente a denominação de “Bairro Alto”, pois
14 Conferem-se duas grafias desse nome: Marinquara e Mariquara; esta última consta mais freqüentemente nas entrevistas. 15 Alguns referem à denominação de passagem São Luis e o indicam como lugar de nascimento.
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o nome original está associado com a história de vida do seu pai conhecido pelo
apelido de Miguel de Barro Alto.
A descrição de Barro Alto necessita ser feita a partir dos seus sítios para
responder por uma realidade local que estabelece diferenças na toponímia, nos
planos de organização social e se baseia em micro-histórias. Esta diversidade de
sítios, retiros e vilas, de espaços pouco amplos, sugere, ainda, os deslocamentos
e as relações com a terra, segundo um processo de territorialização que
necessita fazer frente ao mundo das fazendas.
O grupo pensa o território no presente como formado por essas
experiências coletivas de ocupação que concretizam em cada sítio. Este
representa uma construção coletiva, associado a uma terra herdada e às
ocupações e modo de vida. Os herdeiros constróem suas casas, abrem
pequenos criatórios, cultivam roças e formam pequenas áreas de capoeira,
limitado pelas fazendas confinantes. No povoado, o sítio ou Passagem São Luis é
um dos mais antigos. Nele nasceu o senhor Marinho dos Santos. Mariquara é
igualmente centenário. Vila Galvão aparenta ser o mais novo aglomerado. Barro
Alto é um nome convencional. A Prefeitura de Salvaterra interveio e começou a
chamar de Bairro Alto para o aglomerado de casas, e isto facilitava seu controle
de informações sobre o conjunto. Os moradores resistem a está iniciativa
classificatória e mostram que não é possível confundir através deste nome todos
os sítios, que são diferenciados e menos se pode, arbitrariamente, referir todos
eles como “Bairro Alto”. Dona Conceição destaca sua experiência entre Barro
Alto e Maricuara: “eu nasci aqui em Barro Alto, terra do meu pai e fui casar em
Mariquara”16, neste caso são as inter-relações entre as pessoas que são
valorizadas e a socialização de coletivos.
Nos sítios estão reunidos os “herdeiros de uma terra”, como representação
tanto de uma filiação como de formas de acesso a um patrimônio. Dona
Conceição e seus irmãos receberam a herança de Miguel de Barro Alto; as filhas
de Maria Leal também se reconhecem como herdeiras. Trata-se de uma herança
16 Entrevista com Dona Maria da Conceição Sarmento dos Santos, professora aposentada.
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compartilhada por filhos e filhas, característica que foi destacada por Eric Wolf
(2000) nos seus estudos sobre campesinato. A partir destas práticas se
reconhece o direito dos herdeiros e a “descendência bilateral” semelhante ao
estudo dessas demarcações sociais descritas para o povoado de Jenipapo, no
lago Arari por Almeida e Sprandel (1998, p. 3).
No interior do grupo doméstico é posta em prática uma série de
consentimentos sobre: quem reconhece os limites da terra herdada; aquele
chamado a guardar a documentação; quem responde legalmente pelo
pagamento de taxas (ITR, por exemplo); aquele que realiza o registro em cartório;
o grupo de pessoas que decidem a atribuição de uma fração da terra para
estabelecer moradia, abrir roça ou colocar animais. Portanto, regras de inclusão
de um novo usuário de parte da terra herdada.
O estudo sobre Barro Alto parte da premissa de que a história local é
tecida no próprio entrelaçamento de histórias coletivas e individuais dos
herdeiros; dos direitos que são construídos por eles; dos antagonismos que se
estabelecem com os fazendeiros e outros agentes externos que interferem na
continuidade desse sistema de regras de uso e acesso à terra, recursos
florestais, hídricos e pesqueiros. As situações sociais na qual se produzem
antagonismos dificultam a permanência na terra e põem em risco a linha de
continuidade da herança, porque interferem nas formas de apropriação de
recursos (solos, hídricos e florestais) e exercem um poder de coerção sobre as
unidades familiares.
A organização dos sítios é a base para a formação dos povoados que são
englobados por esta estrutura que começa a se definir pela existência de capela.
Perto de São Luis, hoje Barro Alto, existiam Maricuara, São Sabá, Santa Maria e
Mãe de Deus. Nos documentos é registrado o sítio São Luis, origem de Barro
Alto. Esse nome se origina no apelido de Barro Alto que foi dado a um membro
das famílias fundadoras, de nome Miguel Sarmento, e foi consagrado pela
prefeitura de Salvaterra .
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A terra é reivindicada em nome dos herdeiros de Joaquim Marinho, que
calculam em 50 famílias. O documento de terra é guardado com zelo por uma
das famílias.
O povoado está cercado, na parte leste, pela fazenda Forquilha, pela parte
norte tem a Estação Experimental da EMBRAPA e, na parte sul, a fazenda São
Macário. A fazenda “Forquilha” tem como proprietário uma pessoa que
identificam como “o americano” e está sob a responsabilidade de um gerente. A
cerca foi construída e, no seu traçado, entrou cem metros no povoado.
Vários agricultores de Barro Alto plantam “na terra do americano” e,
atualmente, o abacaxi é o cultivo mais freqüente. Eles pagam com a limpeza do
campo, o que significa trabalhar oito dias por ano na fazenda. Os moradores
informaram que existem 30 pessoas que “dão serviço” para a Forquilha.
A padroeira de Barro Alto é Nossa Senhora do Bom Remédio.
Pau-Furado
No sítio chamado Bom Jardim que se originou da terra recebida por Miguel
Antonio Sapocaia, um escravo que foi morgado – rei e por essa distinção recebeu
de Dom Pedro II esse favorecimento, nasceu Francisca Gonçalves e sua irmã
Dorialva Gonçalves. Os filhos dessas mulheres, quando adultos, foram morar no
sítio Pau Furado, onde nasceu Domingos Engelhard Carneiro (1925). Este é um
eixo da história do povoado que somente é compreensível quando se conhecem
as relações familiares dos herdeiros e a existência do documento que comprova
os seus direitos sobre esse território.
No primeiro trabalho de campo em Pau Furado fomos conduzidos, por
uma das herdeiras das terras de Pau Furado, até a casa da “pessoa que toma
conta do documento”. Na primeira fase, o entrevistado foi instado a falar sobre a
terra e o povoado, o qual disse: “É um documento de terra muito antigo” . Os
filhos de Domingos Engelhard Carneiro receberam em heranças as terras que
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estão desde alguns anos empresadas pela fazenda Forquilha e a fazenda São
Macário.
Pau Furado e Pau Furado II são duas áreas de terra – uma dos herdeiros
de Domingos Engelhard17 Carneiro e outra de Guilherme de Jesus Correa. Estes
dois sítios compreendem áreas de menos de cem hectares com características
diferentes. Enquanto Pau Furado agrupa um grupo de herdeiros e não herdeiros
em 18 unidades domésticas que compartilham a terra, o chamado Pau Furado II
é, também, uma pequena propriedade na qual vivem duas famílias (pai e filho)
que têm gado e terra disponível, que cedem para os trabalhadores de Pau
Furado.
O dono dessa terra em Pau Furado II e seu filho são, respectivamente, tio
e primo do responsável da herança de Pau Furado. Ambos os povoados têm em
comum experimentar tensões e confrontos com os proprietários e feitores das
fazendas Forquilha e São Macário.
Um documento de terras no Cartório de Soure, em 1956, identifica,
conforme normas de registro de imóveis, um “lote de terras” no lugar denominado
Pau-Furado, “situado nas cabeceiras do rio “Matupiriuba”. Um dos seus limites
era um marco da fazenda São Macário que pertencia a Frederico Hundertermak,
situada ao oeste. Limitava-se, ao norte, com as terras de Severino Fonseca da
Silva e, ao sul, com terras devolutas. Este lote media oitenta e sete hectares e
teve título expedido pela Secretaria de Obras Públicas, Terra e Viação a favor de
Maria Martins de Jesus, em 1940. A família de Maria Martins formou uma
“herdade”.
Desses títulos são herdeiras Manelina, Santana de Jesus, Raimunda de
Jesus, filhas da família de Maria Martins.
Outros herdeiros são Airton José Chaves, Marina Paiva, Benedita, Elvira
dos Santos. O documento citado, quando da morte da testamentária, foi
17 Os Engelhard são figuras centrais na história dos povoados estudados em Salvaterra. Domingos recebeu o nome Engelhard em honra ao Prefeito do Município de Soure, daquela época.
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transferido, sob responsabilidade, no último tempo, a Rosemiro Alves Carneiro, já
morto. O relato sobre heranças e documentos sugere um significado redobrado
aos papéis de terra. Esses papéis correspondem a direitos e a representação de
condição social de herdeiros.
A vintena de famílias de Pau-Furado buscam terras para plantar nas
fazendas próximas. Para pescar, atravessam a fazenda São Macário até alcançar
o rio. Esta passagem entre as cercas significa tensão permanente. Os herdeiros
de Domingos Engelhard Carneiro são praticamente todos os moradores de Pau
Furado. Todos compartilham uma pequena área de 87 hectares. Esta herança
segue uma cadeia que começou com Maria Martinez de Jesus, mãe de
Domingos. A área que ocuparam eram de terras devolutas do Estado. A narrativa
sobre a iniciativa de ocupar a terra, segundo o entrevistado, “essa herança foi
obra do meu avô. Ele era muito ligado ao dono da fazenda. Meu avô era amigo
desse fazendeiro e fizeram um acordo. O fazendeiro deu muita força. Foi o
fazendeiro que tirou a terra em nome do meu avô”. Nessa terra vivem e
trabalham 16 famílias que constituem os descendentes de Maria de Jesus e seu
filho. Por consenso do grupo, quem toma conta do “documento da terra” é o neto
– o Sr. Ademir Correia Carneiro. Os Carneiro têm outra herança, na distinção de
serem os filhos do primeiro professor de Pau Furado, de nome Benedito Tomas
Carneiro casado com Maria Martinez de Jesus. Este é motivo de orgulho dos
seus netos, entre eles o entrevistado Ademir Correia Carneiro.
Benedito lecionava na sala de sua casa e, como sua mulher, também
dispunha de tempo para abrir e cuidar da roça de mandioca.
Paixão
Na estação das chuvas o igarapé São Tomé ganha maior volume de água
e é diferente do fluxo minguado que corre na época da seca. Esse tempo
diferenciado pela natureza é vivido pelos moradores do povoado de Paixão de
forma rotineira: consertam as táboas para atravessar uma ponte de uns 50
metros e ir detrás das terras de cultivo; igualmente, saem em varias direções
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procurando os pontos de pesca para cima ou para baixo. Também para desfrutar
a maior abundância de água para tomar banho e inventar brincadeiras. Se for
necessário, lavar a roupa e, se necessário também, retirar o líquido para usar nos
serviços da casa. Esse discurso e as descrições que evocam não correspondem
à situação presente do igarapé, da ponte, e do que era um porto.
O primeiro motivo é que o igarapé São Tomé ficou fechado dentro da
cerca e os movimentos dos homens, mulheres e crianças estão sendo impedidos.
A ponte que antes era objeto de reparos e cuidados, repondo-se táboas ou
pregando as que ficavam soltas, não está mais sendo realizado. Não podem
retirar madeira para fazer os consertos. Não possuem mais cascos e canoas,
pois têm dificuldades de retirar paus para dedicar-se a fabricar esses meios de
transporte. Antes, quando transitavam de canoas, prestavam atenção aos paus e
as plantas que nasciam e as retiravam para evitar que fechasse o igarapé; com
isto evita-se a “enseada”. A funcionalidade da ponte e do trapiche para o povoado
era essencial. Essa essencialidade não mudou, o que se transformou foram as
condições de uso e acesso.
A relação de usos prioritários e da indispensabilidade desse pequeno
igarapé no cotidiano é certamente marcado pelas estações, mas também pelas
situações de vida de homens e mulheres que reconhecem o igarapé na
existência do povoado e dos indivíduos. Podiam acrescentar-se observações,
muito necessárias sobre as dimensões simbólicas, estéticas e afetivas que detém
o igarapé São Tomé, braço do rio de Soure. Foi através dessas palavras que
alguns entrevistados iniciaram suas falas sobre Paixão.
O igarapé está presente na memória de várias gerações que fizeram de
suas margens e leito parte de uma história em comum. Essa história divide-se no
tempo do ser e estar “libertos” e no tempo da “maldita cerca”. Recorrente estas
expressões no seu discurso, o pesquisador é conduzido a encontrar os
significados para as expressões de resistência e revolta.
Neste trabalho estão as memórias e formas de expor a existência e os
problemas de sobrevivência de mais de 20 famílias que vivem em Paixão e Boa
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Fé. Este último é descrito como um “retiro” no qual encontrou refúgio a família
Rodrigues que, descontente e amedrontada com as pressões e violência dos
fazendeiros, buscou na “sobra de terra” um espaço em que se sente menos
atingida.
As restrições ao uso do território, definido por seus recursos hídricos,
faunísticos e florestais, têm tido profundo efeito sobre a estratégia de vida das
famílias. Terra e água são elementos vitais para a sobrevivência de uma
coletividade humana e, destes dois elementos, estão privadas as famílias do
povoado de Paixão e de Boa Fé. No primeiro, contam-se 16 famílias e, no
segundo, cinco famílias.
Ponte de madeira sobre o igarapé São Tomé. A margem direita está o retiro Boa Fé. (Foto A. Lopes, 2004).
Antigamente, homens e mulheres se moviam em um espaço mais alargado
que o povoado de Paixão ou das fazendas, para realizar a exploração de seringa,
abrir roças e pescar; com liberdade para seus deslocamentos em busca de
alimento, madeira para fazer lenha ou fazer casas, espaço de roças e lugares de
pesca.
Homens, mulheres e crianças sentem a perda do território onde gozavam
de liberdade para trabalhar, transitar, tomar banho de igarapé, brincar, jogar bola
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e correr, todas práticas que estavam enraizadas na sociabilidade e cultura do
grupo.
Essa dinâmica social e espacial sintetiza as formas de territorialização e a
noção de territorialidade que na Antropologia, sugere concepções de espaço e de
materialização de movimentos e de relações sociais que um grupo desenvolve
em um espaço social que é cultural e ecologicamente identificado na sua história
(OLIVEIRA, 1998).
O processo de territorialização, para Oliveira, revela o conjunto das
profundas mudanças no funcionamento das instituições e manifestações culturais
de um determinado grupo social decorrente da atribuição de uma base territorial
fixa, juridicamente definida (OLIVEIRA, 1998, p. 54-55). Essas mudanças
implicam, simultaneamente, a criação de uma unidade sociocultural, o que
provoca a reelaboração da relação do grupo com sua cultura e com a memória
(produção de uma “etnicidade”) e a constituição de mecanismos políticos
especializados e na redefinição do controle social.
O território é constituído pelas relações entre agentes, agências,
expectativas, memória e natureza. Todo elemento físico ou histórico que entra na
sua composição passa pelo crivo de um processo de simbolização que os
desmaterializa, mas por outro lado, constitui a entrada de novos elementos que
provocam rearranjos no conjunto e em especial sobre os recursos ambientais.
Portanto, o processo de territorialização pode ser visto como um dos
efeitos dessa naturalização, ao mesmo tempo em que como um de seus mais
eficazes mecanismos, por meio do qual uma territorialidade formada por fluxos,
trocas, sobreposições e empréstimos cede lugar a uma espacialidade definida
pela solidez de um “dentro” e um “fora”.
A visão dos povoados formados por grupos negros em Salvaterra é de
uma intrincada rede de relações sociais, elaborada com base em uma estratégia
de localizalização que estabelece um contínuo físico e imaterial de
comunicações. As ligações usando os rios e igarapés foram redefinidas pela
construção de ramais. Cortando a PA 154 segue uma estrada de piçarra situada
à altura das casas de Campinas, logo em seguida encontra-se Boa Esperança e,
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mais adiante, está Paixão. A comunicação entre esses povoados é constante.
Paixão está em relação estreita com Boa Esperança por ser o lugar onde fica a
escola freqüentada pelas crianças. Os vínculos com Campina e Vila União
também são regulares. As famílias usam a bicicleta para vencer a distância até a
“pista” e, com alguma freqüência, entram as kombis e carros no ramal de Paixão
para deixar algum passageiro.
Quando os entrevistados são instados a falar de Paixão mencionam dois
outros sítios próximos: Rosário, onde nasceram algumas pessoas que logo
vieram morar em Paixão e os que viviam em São Tomé, um e outro situados a
cada margem do igarapé. Mais adiante estava o sítio Trindade e Vista Alegre,
mais próximo de Boa Vista. De outro lado, às referências são Jubim, Campina,
São Benedito e Condeixa.
4. Poços, potes e vasilhame para armazenar água.
Grupos humanos que vivem tanto em meio rural como em urbano têm a
qualidade da água em nível de domicílio como fator ambiental mais importante
(HOGAN,1995) para sua estabilidade e qualidade de vida. Os diagnósticos locais
sobre os recursos hídricos são instrumentos de conhecimento que escapa às
cartografias e análise geral. Esse tipo de diagnóstico requer um trabalho
sistemático de observação.
O uso comum dos recursos hídricos e o problema da água de consumo
doméstico na ilha de Marajó não representam problemas novos, sendo que
diversos tipos de literatura já enfatizaram sua incidência e gravidade. Não se trata
apenas de situações derivadas de estações climáticas e sua incidência tem que
ser considerada como questão eminentemente social e política.
Estudo antropológico escrito por Wagner e Sprandel com base em trabalho
de campo realizado em 1993, 1994 e 1997, apresenta uma descrição etnográfica
do povoado de Jenipapo, construído sobre as águas, na margem direita do alto
do rio Arari, próximo do lago e que está comprimido entre os imóveis rurais de
pequenos criadores que deixam pastorar seus rebanhos nas bordas do lago. A
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despeito de condições físicas adversas, como é a elevação do nível das águas do
lago, os moradores do povoado desenvolvem adaptações de suas vivendas e
espaço de trabalho regido por um sistema aberto de usufruto comum dos
recursos básicos. Não há, neste trecho da referida margem, que se estende até a sede municipal, nem cercas, interditando o acesso às águas e pastagens, nem vigias, coibindo o seu uso. Não obstante a titulação em cartório, os recursos básicos são mantidos em aberto, em conformidade com regras centenárias que disciplinam o usufruto comum. Os campos e as beiras, de igual modo que os rios, os lagos e os igarapés, possuem assim características de uso comum que são concomitantemente públicas e privadas. Ademais são acatadas de maneira consensual quer seja pelos pequenos criadores e pescadores entre si, quer seja entre seus pares e internamente a cada um destes segmentos. Atestam-no não apenas o gado de diferentes donos, pastando em comum, mas também os critérios de apropriação não-permanente dos chamados pontos, que dividem o lago entre as diferentes equipes de pesca durante o verão. O individual não se sobrepõe ao uso comum, antes com ele se articula, permitindo que se imagine um amplo pacto entre estes e aqueles, quanto ao manejo dos recursos essenciais.
No tocante ao problema de água, Jenipapo, semelhante a todos os outros
assentamentos da ilha não possui saneamento básico. O abastecimento de água
para uso doméstico desse conjunto de povoados é critica. Almeida e Sprandel
observam o caráter crítico para os moradores que vivem em palafitas: Durante o verão, o lixo e os dejetos acumulam-se sob o casario
palafitado. Neste período do ano, as mulheres e as crianças, em pequenos barcos (denominados localmente de cascos), remam até a correnteza central do rio Arari, onde as águas idealmente seriam mais limpas, enchendo baldes e bilhas. Crianças também buscam água nas margens, onde registramos diversos homens adultos ensaboados, se banhando. A água recolhida no meio do rio e levada para casa é despejada num reservatório chamado "tamborão". Com esta água, as mulheres precisam cozinhar, lavar as roupas, limpar a casa, fazer a sua higiene pessoal e a de seus filhos. É também a água disponível para a maioria da população beber. Na sede municipal há um reservatório, que capta a água diretamente do Lago Arari conduzindo-às habitações apenas nas primeiras horas da manhã. O encanamento já atinge o Jenipapo, atendendo no entanto a poucas casas. No inverno, quando as águas sobem ao nível das edificações, surgem diversos problemas. O da comunicação, anteriormente apenas possível por embarcações, vem sendo resolvido pela ampliação de grandes extensões de pontes de
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madeira, com largura de 1.20 metros, e a 3 metros do solo, unindo as partes do povoado... O problema do abastecimento de água, porém, ainda é dramático. Com a água que cresce, se misturam os dejetos e a sujeira. O sistema de caixas de madeira como depósito fecal revela-se inócuo. As águas contaminadas por bactérias, parasitas e fezes de homens e animais (porcos, búfalos, reses), entre outros poluentes, envolvem todo o povoado. Sem opção, os moradores se vêem obrigados a consumir estas águas servidas. As consequências aparecem nos registros feitos pelo Posto de Saúde de Jenipapo: inúmeros casos de gripe, pneumonia (que atinge principalmente as crianças), diarréia (casos de morte de crianças de 0 a 5 anos), hepatite, cólera (nove óbitos em 1992 e três em 1993), diabete e hipertensão. A amebíase, conforme expressou um funcionário e agente de saúde, "não tem quem não tenha". Durante o trabalho de campo desta pesquisa foram registradas distribuições regulares de hipoclorito, insuficiente para tratar de toda a água necessária para o consumo. No inverno aumentam ainda os casos de feridas purulentas, conhecidas como "maria preta", comum nos braços, pernas e nádegas das crianças pequenas. O Posto de Saúde, que funcionava com apenas três agentes de saúde e cinco auxiliares de enfermagem, não tinha estufa de esterilização nem geladeira para conservar vacinas. Para conseguir uma água de melhor qualidade, além do uso de hipoclorito e de filtros, as mulheres de Jenipapo, durante o inverno, enchem os "tamborões" com água da chuva. Deste reservatório, no início do verão, sai a água utilizada para a lavagem de roupas, em bacias, no "terraço das casas"; para "ariar vasilhas" no "lavatório", que consiste numa tábua apoiada do lado de fora da janela da cozinha, ao lado do "tamborão"; para "assear" a casa, ou seja, lavar, varrer e espanar; para preparar a "bebida"(que consiste no café, chá de erva cidreira ou chá de capim marinho), o almoço e o chamado "chibezinho" (mistura de água com farinha, levada pelos homens nas pescarias).
Estas observações apontam para práticas dos moradores que tentam
minimizar os problemas, difíceis de solução sem o posicionamento firme das
autoridades políticas para criar a infra-estruturas de saneamento e controlar atos
que afetam o coletivo. Um vereador de município de Santa Cruz do Arari
explicava aos antropólogos que, de 1992 a 1996, a sede municipal havia estado
sem água potável pela destruição, pela passagem dos búfalos, dos canos
plásticos, pouco resistentes ao peso dos animais, o que tinha afetado toda a
cidade e os povoados conectados a essa rede de distribuição.
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É importante estabelecer algumas relações para situar claramente o
problema de uso da água nas comunidades negras rurais de Salvaterra. Já foi
mencionado o problema de contaminação da água de consumo doméstico nos
seis povoados onde se fez coleta e análise bacteriológica do líquido. Esta
questão é fundamental e reconhecida com preocupação.
Em Paixão, os cinco poços que foram cavados perto das casas do
povoado têm problemas de contaminação. Os moradores reconhecem essa
situação pela cor amarelada da água e o cheiro desagradável, o que tem tornado
a água potável uma demanda premente para a administração municipal.
Quadro: Problemas da água de consumo em comunidades quilombolas de Salvaterra
Povoado Nº de domicílios
Total habitantes
Problemas em relação à água
Deus Ajude 27 135
Água encanada alimentada por caixa. As pessoas tendem a deixar em desuso os poços. Contaminação verificada
Siricari 17 95 Uso generalizado de poço. Salinidade da água de alguns poços Contaminação verificada.
Providencia 12 Uso generalizado de poço. Contaminação verificada.
Paixão 15 7 Uso generalizado de poço. Contaminação verificada
Barro Alto 67 351
Uso generalizado de poço. Salinidade da água de alguns poços. Escassez de água. Cheiro de água podre
Pau Furado 20 122 Uso generalizado de poço.
Bacabal 61 384 Uso de água encanada e de poço.
Mangueira 91 561 Uso generalizado de poço. Escassez acentuada.
Todas estas comunidades estão situadas em uma área com “riqueza” de
recursos hídricos. Contudo, processos de contaminação do lençol freático ainda
não examinados provocam escassez e a perda da qualidade e quantidade desse
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líquido. A posição na banda oriental da ilha, sob a influência da maré oceânica é
responsável pelo gosto salobro da água na época do verão. Nesta estação a
água é escassa e igarapés, lagos e os poços secam. A água é espessa e
amarela, além de escassa. No inverno, a água de chuva encharca os campos,
mistura-se às fezes dos animais escoando para os poços, provocando sua
contaminação. Com essa mistura, a água se torna escura e de péssimo gosto.
Assim, às condições de degradação ambiental que estão ocorrendo na ilha
somam-se as situações do ritmo das estações. Confere-se que não se trata de
territórios densamente povoados, o que representaria um impacto antrópico maior
sobre rios, igarapés, lagos. O debate sobre população e recursos em
ecossistemas específicos exige analise sobre as condições de degradação
ambiental. Outro foco que é imprescindível neste tipo de estudo desenvolve uma
perspectiva comparativa 18 entre povoados e entre grupos de família conforme
elementos de localização. Nas residências, o objeto mais importante depois do fogão, geralmente a
lenha, é o pote de barro19 para armazenar a água de beber. O pote é uma
aquisição prioritária das famílias e representa a preocupação e cuidados com a
água de consumo. Em geral, os cuidados para proteger o pote levam a fazê-lo
um objeto decorativo na cozinha ou na sala, acessível às crianças de maior idade
e adultos. Enfeitado com capa feita de tecido ou de crochê, não passa
desapercebido como objeto valioso. Normalmente uma pequena estante serve
para colocar os copos de alumínio ou de plástico no qual se servem os
moradores da casa e os visitantes a quem se oferecem o líquido com modéstia.
Nas Escolas também se encontram os potes que são alimentados com a água de
poço ou a água recolhida da chuva, na época de chuvas, quando o líquido que
está no poço é intragável.
18 A segunda parte deste trabalho pretende completar o estudo sobre os povoados de Santo Antônio, São Judas Tadeu, Curuperé e Curuperezinho, no município de Concórdia do Pará, e estabelecer comparações nas situações e discursos sobre a água. 19 Esta observação pode ser ampliada para outras comunidades. No filme “Quilombos da Bahia” (2004), de Antonio Olavo, diversos registros mostram as pessoas entrevistadas sentadas ao lado do pote de barro e, estrategicamente, estão os copos de alumínio e plástico.
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Todos constatam o problema da
água e têm informações sobre os
cuidados mínimos para prevenir como
uso de hipoclorito ou processo de
fervura. Contudo, isto não é suficiente
para pôr em prática esses
procedimentos com a regularidade e
perseverança que o caso exige, dados
os níveis de contaminação.
Os cuidados com o pote é uma
limpeza regular, enquanto a água que
ali é guardada é coada usando um
pedaço de pano fino para reter parte
da terra misturada com o líquido.
Quando têm disponibilidade, algumas
gotas de hipoclorito de sódio; e,
excepcionalmente, algum entrevistado
mencionou que fervia a água.
A concepção de uso comum da água de mananciais por parte da
comunidade rege também o uso de água dos poços. Cada família, conforme suas
possibilidades, empreende a abertura de poço do tipo comum, e
excepcionalmente tipo artesiano. A localização é sempre na parte posterior ou
lateral da casa, o mais próximo da cozinha e do lugar as pessoas tomam banho a
diário. Em geral, essa localização toma distância das fossas, de 12 até 30 metros
dos poços.
Os poços comuns são escavações que têm de 3 até 6 metros de
profundidade. Esse serviço pode ser contratado por uma pessoa que conhece a
técnica de abertura de poço e o cálculo é de R$ 25,00 por metro (em
profundidade); em média o serviço importaria em R$ 150,00. Nesta escavação
não é feito revestimento das paredes o que faz que a água fique misturada
permanentemente com terra, tanto da superfície como das próprias paredes.
Fotos: Poços de Providência
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Estes poços a céu aberto são protegidos com madeira e, em alguns casos, têm
tampa para evitar a queda de folhas, insetos e anfíbios (é comum que os sapos
caiam e morram dentro dos poços). Esse cuidado é observado para evitar
acidentes, em especial a queda das
crianças de menor idade.
No inverno, as terras
encharcadas pelas chuvas escoam
para o interior dos poços que ficam a
um nível igual ou menor do que o
terreno adjacente. Essa água de
chuva é misturada com detritos,
urinas e fezes de animais, que
contaminam os poços.
Correntemente as paredes do poço cobrem-se de limo e a água passa a ter cor
esverdeada ou escura. O cuidado com a limpeza é para retirar a lama
depositada, folhas e animais mortos. A água é retirada utilizando o balde
amarrado a uma corda, sendo cheio na superfície do poço.
O poço artesiano é uma escavação diferente. Cava-se um orifício pequeno
que recebe um cano e com o uso de uma bomba é retirada a água que é
depositada em uma caixa. De todas as comunidades estudadas, verificou-se que
há apenas um poço artesiano em Deus Ajude, com 12 metros de profundidade.
Este sistema cria uma proteção das águas que correm pela superfície do terreno.
Neste caso, o resultado da análise bacteriológica indicou a contaminação por
coliformes fecais, o que se explica pela proximidade da fossa e de criação de
galinhas, a menos de 4 metros do poço.
Quadro: Tipo de poço e distribuição nas comunidades
Povoado
Nº de domicílios Poço comum
Poço artesiano
Total de poços
Deus Ajude 31 12 01 13 Providência - - - - Siricari 19 15 0 15
Foto: Poço “Boca aberta” de Paixão.
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Caetano 3 Paixão - Boa Fé
17 6 2
0 8
Barro Alto 67 56 01 57 Bacabal - - - - Pau Furado 20 11 - 11
Fonte: Pesquisa de campo, 2004. O quadro mostra a distribuição de poços por domicílio. Apesar do poço
estar considerado como um bem particular e aberto no terreno que é tido como
privativo de uma família (terreno, quintal e poço), este pode servir a várias casas
e famílias. Em situação de escassez, alguns poços secam prematuramente e,
neste caso, aqueles que contêm água e que seja “boa”, será utilizado por um
número maior de pessoas. Este é um esquema de divisão do recurso que é
negociado pelo grupo.
Alguns entrevistados têm a recordação de que as “as pessoas se juntavam
para fazer o poço” e, em algumas comunidades, houve tempo em que “todas as
casas tinham poço” apoiado nesse sistema de trabalho. Essa reciprocidade e
solidariedade em relação ao uso da água, é colocada a prova na situação de
escassez: Algumas vezes dividimos a água, onde há água. Eram os vizinhos, que
são famílias que fazem isso sempre.
O poço é aberto por caso. Alguém faz uma casa por aqui. Vai fazer de
barro. O barro que tira do poço já serve para calhar a casa e aí tem que continuar
o poço.
Abrir um poço é um investimento e quando este utiliza a tecnologia do
poço artesiano triplica o gasto.
Discurso sobre as estações e a água
O discurso sobre as estações e a apresentação da assinala opostos: entre
boa água e água de má qualidade.
Inverno
Verão
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A água não é limpa No verão a água seca
O poço enche com as águas da chuva É carência
A água é boa A água é salobra (alguns poços )
Em nenhum caso é usada a água para o serviço doméstico porque é
longe. Somente em caso de lavar roupa e momentos de distração em que tomam
banho.
Em esse igarapé Siricari as pessoas ao tomar banho por esporte. Nos dias de maré grande enche ai dá para tomar banho bom. Quando ele esta seco tem um, dois metros. Ele enche e fica com cinco metros, isso ali no leito do igarapé até acima.
A água do igarapé Siricari é obscura mais é limpa. Mas essa água do igarapé não tem poluição. Essa cor preta é pelas folhas das águas do igarapé.
O poço artesiano não tem problema de sujeira. Ele foi perfurado com maquina. Coloquei tela para evitar que entre terra. Quando eu mandei fazer esse poço eu paguei trescentos reais só para cavar, fora o material.
Essa água era um pouco melindrosa. Eu puxava no balde, coava no pano e colocava no pote. Mas essa água era melindrosa. Ela vivia no aberto e por isto era melindrosa.
O poço comum tem 4 a 5 ou até 8 metros de profundidade. Ainda tem água por aqui que tem água com 4 ou cinco metros. O meu poço, com oito metros, deu na água, mas perfurou mais quatro e deu melhor. Eu utilizava água manual. Não havia eletricidade.
Pode afirmar-se que a água é um problema sobre o qual gira o dia-a-dia
das comunidades que experimentam escassez e má qualidade. Algo diferente de
Deus Ajude que tendo “a água em casa, em torneira e de boa qualidade”, não é
problematizado.
Na concepção do espaço interno e externo da casa O poço tem que estar
próximo da cozinha. Em Providência não tem água encanada. Na casa de Dona
Maria Raimunda o poço tem uns dez metros. Cada casa tem poço. A água para
banho é próximo, mas o sanitário é mais longe.
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No inverno tinha que deixar a água assentar. Assentava e às vezes pegava água para ferver. O tratamento era coar a água. O poço tem que estar longe do banheiro. A lei diz que o poço tem que ter para a fossa 20 metros. O meu poço está na lei.
A água do meu poço é boa, é limpa. Tem gosto bom e é protegida por cano plástico.
Antes a água colocava-se no filtro.
Essa esfera dos cuidados com o poço abrange uma série de discursos que
escapam a uma observação superficial. A primeira necessidade é de cercar o
poço para evitar que os animais o contaminem, caiam dentro. Várias dessas
observações chamam atenção sobre as práticas e cuidados mínimos de ensinar
os perigos, os usos e os cuidados.
No inverno o porco mete o funcho. Há necessidade de colocar aterro e a tampa no poço. Tinha que ter muito cuidado com as crianças. Isso acontece sempre. Tem que cercar o poço A criança vai com a gente, acompanha na beira do poço e tem que falar sobre o perigo. Muitas vezes a madeira esta podre e pode quebrar. Os poços de boca aberta a gente fazia limpeza. Era assim escoava a água, quando estava seco, descia e lavava. Essa limpeza era sempre no verão. O que se tira do poço bem cuidado é folha, a areia. Todo depende do aseio Tem gente que joga pau, lixo, plástico. Se o dono é bem celoso não passa isso. O cheiro ruim da água é quando não limpa e pode cair sapo e ficar podre. Agora não se vê sapo mas no inverno é sapo, galfanhoto, catorra, barata da água, lagarto e até cobra. A folha podre vai ficando e podre vai deixar a água fedorenta.
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Do poço sai também areia, cascalho. Tem poço que dá muita
areia
Em Pau Furado e Barro Alto o formulário respondido por dois professores
e um auxiliar de enfermagem que sintetiza os pontos de vista do conjunto das
famílias, informa que:
a água tem má qualidade. Ela é limpa no inverno e amarela no verão com cheiro de folha podre.
A água é abundante no inverno e escassa no verão. No inverno é limpa e doce e no verão é escassa.
A água é de cor amarelada no verão e tem cheiro estranho.
No inverno a água é limpa e doce no verão é escassa e salobra.
O cuidado com a caixa da água tem que ser feito. E quando a água está com uma cor amarela.
A limpeza dos poços comuns exige vários cuidados, que não se tornam
regulares. A externa é feita cortando o mato arredor do poço. Dentro da cavidade é menos freqüente e com risco.
O perigo de descer no poço para limpar é que a terra pode desmoronar. Pode ficar preso. Alguém tem que limpar. No tempo da mãe do meu marido veio um homem para limpar. Escutou-se o soco e quando foram ver todo estava desmoronado. O poço desmoronou. O poço vai solapando, caindo as pedras. O poço tem olho d’água. O olho vai assolapando. Os poços de boca aberta a gente fazia limpeza. Era assim escoava a água, quando estava seco, descia e lavava. Essa limpeza era sempre no verão. O que se tira do poço bem cuidado é folha, a areia. Todo depende do aseio Tem gente que joga pau, lixo, plástico. Se o dono é bem celoso não passa isso. O cheiro ruim da água é quando não limpa e pode cair sapo e ficar podre.
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Agora não se vê sapo mas no inverno é sapo, galfanhoto, catorra, barata da água, lagarto e até cobra. A folha podre vai ficando e podre vai deixar a água fedorenta. Do poço sai também areia, cascalho. Tem poço que dá muita areia
Algumas vezes coloco cloreto no filtro.
Quando chegou a água encanada em Deus Ajude
A valorização do fato de possuir água encanada não é apenas objetiva.
Um entrevistado em Deus Ajude comentava uma situação assemelhada com a
riqueza: Em Deus Ajude todo pessoal pode ser considerado rico. Antes existia o
sacrifício até de fazer poço. Deus Ajude é um dos poucos povoados negros que
dispõe de água encanada e isto estabelece uma diferença, que poderia situar as
casas e as famílias em um ponto da escala de qualidade de vida. Antes o serviço
era de poço. Esta água é melhor que a água de Belém. Ajude e Providencia sempre tiveram água boa e ate na época da chuva era normal. Este poço foi conseguido através da Associação Quilombola que fez o pedido. Veio por intermédio do CEDENPA e dos Raízes20. Foi já no governo de Jatene. Ele estava em campanha e fez promessa que daria. Já tinham vindo pela Associação para ver os benefícios de Deus Ajude. E nos já tínhamos pedido do prefeito. Nesse pedido também foi o da luz. O engenheiro veio por intermédio CEDENPA; oh! não esse engenheiro veio pelos dos Raízes. Esse engenheiro veio ver o solo. O entrosamento maior para isso era com os Raízes e foi por meio dos Raízes que veio.
A descrição dessa obra foi feita com segurança pelo morador: O poço tem
profundidade de 32 metros e capacidade de 5000 litros. Possui uma bomba
elétrica equipada.
20 O entrevistado faz referência ao Programa Raízes.
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O serviço não é prestado por igual em todos os domicílios e somente três
casas têm água de torneira dentro de casa, aquelas que estão a dez metros da
caixa e cujos proprietários tem liderança interna: Somente duas casas não têm
água encanada e 19 tem água encanada. A água é um tanto conforme para toda a comunidade. Essa área onde tem as três casas com torneira é domínio da família Alcântara, outros pegaram o nome de Souza. As outras casas coletam em vasilha água da torneira que tem uso coletivo.
Os cuidados devem multiplicar-se com o sistema implantado, pois os
animais e carros ameaçam quebrar os canos: Tem que ter carro com os canos
porque o gado pode quebrar. Se passa carro há perigo de quebrar. Quando é no
baixo, na profundidade o gado no quebra
O atendimento da solicitação foi seguido de reuniões para discutir como
seriam realizados os trabalhos e administrados os serviços. Para o processo de
encanamento cada um assumiu os custos e cada um foi comprando o seu cano.
Também fizeram acordos para compartilhar das torneiras. Dona Olavia e sua filha
Sandra têm uma torneira em comum. O recibo da água consumida chega e é
feita a divisão dos custos. O interessante é o funcionamento de estruturas de
administração da comunidade tanto para encontrar soluções, como para fazer
frente a etapas do trabalho, custos e cuidados.
A instalação do serviço em Deus Ajude mostra o divisor de águas do
tempo do poço para o tempo da água encanada. A questão sobre quais as
diferenças nos dois momentos indica o impacto e mudanças provocadas por
serviços realmente básicos na vida da comunidade. Essa diferença foi vista na
qualidade da água, na comodidade e no tempo: A diferença entre água de poço e
água encanada. A água de poço tinha muitas vezes sujo.
Aqui na caixa da água teve um tempo que teve areia. O problema segundo
o Sr. Lair era somente do movimento.
A caixa de água de Deus Ajude é limpa cada 20 dias. Passam sabão e não
pode ser usada na limpeza outra coisa que não seja água sanitária. Aqui são
Aldo e meu sobrinho são os que a limpam. São os homens que fazem.
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O que mudou com a água encanada? Esta resposta suscitou uma serie de
reflexões sobre o cotidiano. As mulheres fizeram observações sobre o trabalho
quando apenas dispõem de poço: A gente cansa de encher água. Eu não sei
lavar louca com pouca água. Por este motivo a mudança se reflete no aspecto
físico:
O movimento do braço... deixou de puxar. Tinha que acordar, ir no meio da chuva para buscar balde. A água é melhor. Antes a pele ficava amarela. A água para lavar roupa, sobretudo a branca ficou melhor. Aumentou o consumo da água pela facilidade do encanamento. Depois que tem a água é encanada a água de poço não é usada mais para lavar roupa.
Água e doenças nas comunidades
No livro “Marajó: a ditadura das Águas”, o Pe. Gallo fez uma descrição da
água que é fiel à realidade das comunidades estudadas: Precisa-se de beber, precisa-se de tomar banho. Entra em cena a portadora de água, água lamacenta, com aquela camada de espuma esverdeada boiando na superfície, fica limpa ou quase com um pingo de sulfato de alumínio. Mas poucos têm sulfato de alumínio, ou pedra-ume, poucos têm filtro; a maioria tapa o nariz, fecha os olhos e mata a sede, curtindo saudades pela água de chuva limpinha e gostosa.
A água com essa apresentação é vetor principal de doenças e do quadro
de desnutrição dentro das comunidades estudadas. No censo domiciliar foram
integradas várias questões sobre a saúde do grupo e a incidência de doenças de
veiculação hídrica. O quadro é alarmante, apesar de não ter sido registrado caso
de mortalidade infantil nos últimos cinco anos. As diarréias foram citadas nos
cinco povoados (exceção de Deus Ajude) como a mais freqüente, seguida de
doenças na pele (coceira, furúnculos, feridas que demoram a sarar).
Os encantados das águas
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“Os ‘encantados-do-fundo’ são designados como ‘bichos-do-fundo’, ‘oiaras’
ou ‘carauanas’. A denominação ‘bichos-do-fundo’ provém da crença de que os
‘encantados’ podem se manifestar sob a forma de diferentes animais aquáticos,
que vivem ‘no fundo’ dos rios, como peixes, cobras, botos, etc. Manifestando-se,
porém, com forma humana; geralmente nas zonas de ‘mangal’ (manguezais), à
margem dos rios e igarapés, os ‘encantados’ surgem na condição de ‘oiaras’. Já
os ‘caruanas’ (também conhecidos como ‘guias’ ou ‘cavaleiros’ são aqueles que
se manifestam sem que se possa visualizar sua forma, nas sessões xamanísticas
dos pajés, incorporando-se neles. ...
Outra faceta dos ‘encantados’ é a sua ‘malineza’. Concebidos como seres
perigosos, podem provocar doenças nos seres humanos, além de outros males.
Por isso, é necessário ter cautela com eles, não só pedindo a proteção divina
contra os males que podem provocar, como adotando atitudes respeitosas no
momento em que se passa pelos locais onde costumam manifestar-se, assim
como quando se esta assistindo ao trabalho de um pajé” (MAUÉS, 1994, p. 75-
76). ‘.... esses seres funcionam também como uma espécie de defensores míticos da floresta, dos rios, dos campos e dos lagos. Tudo tem sua ‘mãe’ (um ‘encantado’); abusos são castigados pela ‘mãe do rio’, quando este é poluído, pela ‘mãe do mato’ quando a floresta é devastada e assim sucessivamente.”
Parece, porém que, em certas áreas, ‘os curupiras foram embora’ desde
que a destruição das motosserras foi mais poderosa’ (MAUÉS, 1994, p. 76). Nas
comunidades negras quilombolas de Salvaterra os encantados das águas
continuam vivos. No igarapé São Tomé a Mãe d’ Água convive com o Santo que
cuida o igarapé e sai a dar pequenos passeios, marcando as pedras. No igarapé
Siricari aparece uma “mulher branca e muito bonita”. É ela que cuida do rio e
impede que a ponte fique de pé. Os cuidados são muitos para não despertar a ira
dos seres das águas e alguém, por irreverente, ser “flechado”. Guardar silêncio e
respeitar as águas é a recomendação de quem atravessa o rio. Os poços podem
ser melindrosos e um discurso de embelezamento da água convive com o
invisível da sua contaminação, contradizendo a aparência de “água boa”.
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Considerações finais
Não é possível pensar que os problemas da água na ilha de Marajó se
resolvem tecnicamente, controlando qualidade, distribuição, consumo, educação,
pois este problema se resolverá depois de ter solucionado a questão da terra e
do uso, transformação e controle dos recursos da natureza, detendo a destruição
e alterando as desigualdades que perpetua o sistema político (mandonismo,
paternalismo e violência). Sobre a questão da água existe uma consciência –
inclusive dos conflitos – que apenas revela princípios de organização política e de
defesa de direitos. Terra e águas são elementos integrados de territórios
quilombolas que se encontram ameaçados pelos atos e decisões em que o
Estado e as elites regionais continuam conduzindo projetos econômicos e seu
poder na ilha de Marajó.
O Pe. João Daniel, no século XVIII, insistia nas contradições do projeto de
destinação das campinas para a pecuária extensiva e observava o que ocorria
nas campinas:
No verão é muito insípida e sua água muito ofuscada, o que se atribui à grande multidão de crocodilos que o infestam e que anda cheio o seu lago, ou fonte, por revolverem o lodo, e pelo seu esterco, águas e imundices; ao que também ajuda muito o muito lodo das suas margens, revolvido pelo muito gado vaccum e cavalar que pastam nas suas Campinas de uma e outra banda em todo o seu distrito.
As elites e os planejadores insistem nessa destinação, hoje amenizada
com os projetos de ecoturismo. O projeto de criação de búfalos por pequenos
criadores apresentado pela EMBRAPA, Sociedade de Produtores, SAGRI,
SEICOM, EMATER, dentre outras agências envolvidas, que foi concebido dentro
do PRONAF, insiste nas vantagens econômicas da produção de leite e carne de
búfalo. Contudo, este tipo de projeto deve fazer revisão dos componentes
ambientais de sua localização. A expansão do rebanho tem-se acompanhado da
destruição de terras cultivadas, lagos permanentes e temporários e destruição de
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igarapés e manguezais. Assim como a presença dos animais têm forte impacto
sobre a pesca. As atividades de criação têm constituído uma forte concorrente
com a agricultura e os pequenos produtores de alimentos.
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Referências
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13 - LAGE, Sandoval. Quadros da Amazonia. Rio de Janeiro: Oficina Grafica Espirito Santo, 1944. 14 - LUXARDO, Líbero. Marajo: terra anfíbia. Belém: Grafisa, 1977. 15 - MATTA, Roberto da. Panema: uma tentativa de analise estrutural. In: __________. Ensaios de Antropologia Estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 63-92. 16 - MARAJÓ, José Coelho da Gama Abreu. Barão de. As regiões amazônicas: estudos corograhicos dos Estados do Gram-Pará e Amazonas. Lisboa: Imprensa de L. da Silva, 1985. p. 268. 17-MAUÉS, Maria Angélica Motta. 'Trabalhadeiras' e 'Camarados': relações de gênero, simbolismo e ritualização numa comunidade amazônica. Belém: Editora Universitária UFPA, 1993. 216 p. 18 - MEGGERS, Betty J.; EVANS JR., Clifford. Uma interpretaçao das culturas da ilha de Marajo. Belém: Instituto de Antropologia e Etnologia do Para, 1954. (Publicaçao 7). 19 - NOGUEIRA, Cristine. Território de pesca no estuário marajoara: comunidades quilombolas, águas de trabalho e conflitos no município de Salvaterra. 20 - MAUÉS, Raymundo Heraldo. A Ilha encantada: medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores, 1976. 21 - SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da escravidão. Belém: MEC/UFPA, 1979.
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