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2 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 8 a 14 de setembro de 2008

Mailde J. Trípoli

“Há pessoas que nãosabem, ou não se lembramde raspar a casca do risopara ver o que há dentro”.

Machado de Assis

achado de Assis éincontestavelmen-te um dos maioresescritores da lite-ratura brasileira.Está citado no li-

vro Gênio, de Harold Bloom, reno-mado crítico da atualidade, entre oscem maiores escritores mundiais. Se-gundo Bloom, “Machado reúne os pré-requisitos da genialidade. Possuiexuberância, concisão e uma visão irô-nica ímpar do mundo”.

Apesar de todo reconhecimento ehomenagens, cem anos depois de suamorte, há ainda quem insista em repe-tir a leviana afirmativa de Hemérito dosSantos, de que o escritor não se envol-veu na causa abolicionista e negou suaorigem.

Com o propósito de oferecer umacontribuição, ainda que pequena, noestudo da personagem negra, seu múl-tiplo processo de construção, sócio-his-tórico-literário, e nele começar a des-velar a face da personagem negra naobra de Machado de Assis, desenvol-vemos uma pesquisa, concluída em1997, que resultou no livro Imagens,Máscaras e Mitos; o negro na obra deMachado de Assis.1

“A ficção é imitação [...] da ação, istoé, disto que já conhecemos como ação einteração no envolvimento físico e soci-al”,2 afirma Paul Ricoeur. Ao buscarmosa personagem negra na literatura,estamos também buscando a represen-tação desta “ação e interação” do elemen-to negro na sociedade do seu tempo.

No tempo de Machado, as teoriasraciais e crenças etnocêntricas aindaapregoavam uma hierarquia etnográ-fica na qual o negro ocupava o últimograu da escala social. Assim, emboraelemento integrante (juntamente como branco e o índio) da civilização bra-sileira, era marginalizado. A literaturanão o omitiu, mas sua voz e ação, mui-tas vezes, quando não apagadas, foramtolhidas, distorcidas, ou mascaradas.Sua presença, em geral, se dá por tipos.O indivíduo representa o coletivo.

O discurso a seu respeito variavaconforme o posicionamento de quemescrevia: estereotipada, a imagem donegro, passa de dócil, infantil, fiel,subjugada a violenta, feroz, vingativa, emrazão dos interesses do momento e con-texto em que é inserido o estereótipo.

Nos discursos, porém, a classifica-ção não é estanque. Textos qualifica-dos em uma das duas categorias, àsvezes, trazem em seu interior peque-nos deslizes do autor, que denunciamum posicionamento diferente do anun-ciado ou proposto. As Vítimas Algozes,de Joaquim Manoel de Macedo, publi-cado em 1869, é um bom exemplo dis-to; embora se apresente como um libe-lo contra a escravidão, seu discurso é,ao mesmo tempo, antinegro. Para de-monstrar quão danosa é a instituiçãoda escravidão e a necessidade de abo-li-la, o autor anuncia que contará estó-rias verdadeiras e mostrará “os víciosignóbeis, a perversão, os ódios, os fe-rozes instintos do escravo, inimigonatural e rancoroso do seu senhor”3

MACEDO.Joaquim Manoel de. - As Vítimas

Algozes: quadros da escravidão. Rio deJaneiro: Garnier, 1871. 2a. ed., p. XIV..

As Vítimas Algozes são o que po-demos chamar de romance de tese,conforme Silviano Santiago: “no ro-mance de tese, a verdade se insinua pordetrás de cada palavra, de cada gesto,cada cena, induzindo o leitor a pensarser ela a única a apreender corretamen-te o significado das cenas ou do dramaapresentado pelo texto”4. Nesse senti-do, Macedo não está sozinho.

O contraponto é que, ao criar umaimagem do negro escravizado, basean-do-se na concepção ideológica senho-rial, o autor do discurso, de certa for-ma constrói, também, a sua própriaimagem. Em oposição à selvageria, àindolência, à submissão, à promiscui-dade, ele é a civilidade, a moral, o do-mínio, a posse, a superioridade. Ele éo que o outro não é. Sem se dar conta,talvez, de que nesta construção, ausen-tando-se o outro, a sua tão bemconstruída imagem deixa de existir.

É o que se pode ver, bem elabora-do, no conto O Espelho5: esboço deuma teoria da alma humana, de Ma-chado de Assis, publicado em PapéisAvulsos, em 1882.

Nele, Jacobino, um jovem pobre, épromovido a alferes da Guarda Nacio-nal. Tal fato é festejado e motivo deorgulho para toda a família. Na fazen-da de sua tia, uma fazendeira escra-vista, não é mais chamado pelo nome,só pelo título. Todos os escravos estãoobrigados a tratá-lo de “senhor alferes”.Um dia, estando a tia ausente da fa-zenda, os escravos fogem, abandonan-do o alferes, privando-o da admiraçãoa que estavam obrigados.

“Achei-me só, sem mais ninguém,entre quatro paredes (...) Nenhum fô-lego humano.(...) ninguém, um mole-quinho que fosse. Gatos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filoso-

favam a vida, sacudindo as moscas, etrês bois... nenhum ente humano. Pa-receu-lhes que isto era melhor do queter morrido? Era pior”.6

Jacobino, sem os sustentadores desua “identidade”, percebe-se sem ima-gem no espelho, único espaço onde,ainda, podia se refletir. O que restouna fazenda foram apenas os animais,instrumentos de produção; bens semo-ventes, categoria em que os escravoseram incluídos. A questão é que os ani-mais não representam a alteridade, nosentido de refletir a identidade do ou-tro. Na ausência do escravo, cai porterra a ordem escravocrata e com issoo autoconceito de superioridade apre-goado pela ideologia vigente em rela-ção aos senhores.

Há nesse conto um absoluto silên-cio a respeito tanto da escravidão quan-to aos possíveis acontecimentos rela-cionados aos escravos fugidos. Entre-tanto, como reflete Eni Orlandi,”O si-lêncio é. Ele significa.”7 Ao calar-se,Machado abre espaço para uma signi-ficação outra, que a óbvia. Uma formasutil, para gerar idéias.

Mas, se no conjunto da obra do au-tor estão incorporados elementos his-tóricos e sociais a serem lidos nas en-trelinhas, há também momentos emque sua colocação é explícita. Isto ocor-re, sobretudo, nas crônicas e na críti-ca. Vejamos, por exemplo, o trecho deuma carta endereçada a José de Alen-car, datada de fevereiro de 1868, naqual Machado tece elogios a CastroAlves8. Esta carta era, de fato, a críticado escritor, sobre o drama Gonzaga,escrito pelo poeta, portanto, destinadaa ser lida pelo público.

“Eu não podia, por exemplo, dei-xar de mencionar aqui a figura do pre-to Luiz. Em uma conspiração para a

gem, instituída para amenizar as rela-ções entre senhor e escravo, aumentar aprodução, garantir fidelidade e diminuiras fugas e as revoltas, bem como as des-pesas com segurança ostensiva.

No conto, como em outras obras,não há floreios nem uso de meias pa-lavras. Machado não transforma o ne-gro em herói ou ser extraordinário, nemo pinta com as cores miseráveis daideologia dominadora. Ele o apresentacomo ser humano que é, sujeito em suacondição de oprimido. Sem fazer apo-logia, mas de forma sutil, o autor, a seumodo, desnuda a realidade senhorial erevela uma sociedade em que a condi-ção econômica define o indivíduo, de-termina sua exclusão ou aceitação.Uma sociedade que, sob uma fachadamoderna e liberal, oculta as bases dosistema colonial, o escravismo e oclientelismo, como bem explicitaRoberto Schwarz em Ao Vencedor asBatatas.11

A crônica foi outro gênero de pro-dução escrita que Machado de Assisexerceu com a habilidade criativa ecrítica que lhe era peculiar. Nelas, en-contramos um Machado de Assis irô-nico e sarcástico, que enfoca diversosestágios do período abolicionista, asmanipulações dos senhores, a violên-cia inerente ao sistema de dominação.Faz isso, ora de forma direta, ora dis-simulada, mas preservando um distan-ciamento crítico e lançando mão dosrecursos de estilo que lhe eram comuns.

Muitos seriam os exemplos a seremaqui elencados, mas por que não dei-xar para o leitor o prazer deste desve-lar? Uma leitura mais atenta de algu-mas das obras e se pode perceber deque lado o escritor está. Para isso, senecessário, não faltam bons guias:Roberto Schwarz, John Gledson, Sid-ney Chalhoub e outros. Podemos adi-antar que a preocupação de Machadode Assis era com o homem, o ser huma-no e sua interioridade psicológica emoral. O escravo, antes de sua condi-ção servil, era um ser humano; e assimMachado o via e o retratava em sua obra.

Experimente ler, reler! Permita-se umpasseio pelo universo cifrado das obrasmachadianas. Por prazer, deleite-se!

Mailde J. Trípoli é autora do livroImagens, Máscaras e Mitos; o negro naobra de Machado de Assis (Editora daUnicamp)

Machado de Assis e a escravidãoliberdade, era justo aventar a idéia daabolição. Luiz representa ao elementoescravo. Contudo o Sr. Castro Alvesnão deu exclusivamente a paixão daliberdade[...]. Luiz espera da revolu-ção, antes da liberdade, a restituiçãoda filha; é a primeira afirmação dapersonalidade humana; o cidadão virádepois. Por isso, quando no terceiroato Luiz encontra a filha já cadáver, eprorrompe em exclamações e soluços,o coração chora com ele, e a memó-ria, se a memória pode dominar a taiscomoções, nos traz aos olhos a belacena do rei Lear, carregando nos bra-ços Cordélia morta. Quem os compa-ra não vê nem o rei nem o escravo; vêo homem”.

Serão essas palavras de um omis-so, dissimulado para não transparecersua condição racial?

Bastante explícitos também sãoalgumas poesias e contos, vale notar,escritos antes da abolição. O poemaSabina, publicado em 1875, por exem-plo. Embora incluído no livro Ameri-canas, foge à temática indígena, suge-rida inclusive pelo título da obra. Sabi-na é um longo poema que relata a se-dução de uma jovem mucama, nãoembranquecida, mas tratada de formapaternalista. Jovem, virgem de tezmorena, cabelos cor da noite escura,busto moldado em modelo clássico eolhos brandos cor de jabuticabas.

A conquista de Sabina não passapela violência física, prática comum na“ideologia falocrática”9 Sant’Ana, Af-fonso Romano de. - “O CanibalismoErótico na Sociedade Escravocrata.”In.Revista do Brasil. Rio de Janeiro:FUNARJ, 1984. N. 1/84. p. 14., des-crita de forma magistral por CastroAlves, em “A Cachoeira de PauloAfonso”. A abordagem é romântica. Onarrador, indiferente como o rio, “aomal ou bem que lhe povoa a margem”desnuda a alma de ambos.

O jovem conquistador, Otávio, vol-ta para a corte. “Com ela a alma nãofica. De seu jovem senhor.” Não fica aalma, mas fica-lhe um filho no ventre.A reação dos companheiros de desven-tura é de total falta de solidariedade,impera a inveja, o ciúme, a maledicên-cia e a superstição. “Após os dias dasaudade, os dias da esperança”, e adecepção. Otávio volta casado. Emdesespero, Sabina pensa em se matar,mas no último momento desiste.

O poema, embora aparente descre-ver a aceitação do cativeiro, denunciaa trágica ironia do paternalismo e assuas conseqüências. Uma faceta da es-cravidão, muito conveniente aos se-nhores e, em parte, responsável pelacrença de que, no Brasil, a vida dos es-cravos era amena.

A crença na igualdade, pelo trata-mento privilegiado, impede de ver: “ofundo abismo tenebroso e largo quesepara”10 senhores e escravos. A deli-cadeza não garante o afeto, nem evitao abandono da escrava, mas facilita a“caçada” do sinhozinho. Além disso,provoca sentimentos desagregadoresdentro do meio escravo, afastando asolidariedade e a confiança. Preservaa imagem ideológica, segundo a qualescravo é gente dotada de maus senti-mentos, quando não de apatia, servi-lismo e resignação.

Enquanto Castro Alves denuncia aviolência explícita a que os escravose, principalmente as mulheres, negra emulata, estavam expostos, Machadorevela outras formas de violência, nemsempre tão explícitas, mas igualmentecruéis e doloridas. A violência, que pas-sa pela dissimulação e falsa camarada-

M

1 TRÍPOLI, Mailde Jerônimo. Imagens,Máscaras e Mitos: o negro na obra deMachado de Assis. Campinas/SP, EditoraUNICAMP, 2006

2 RICOEUR, Paul. “L’Identité Narrative.” In.Revue des Sciences Humaines. No 221

4 SANTIAGO. Silviano. Desvios da Ficção. InPATROCÍNIO, José do. - Mota Coqueiro. .P. 13.

5 ASSIS, Machado de. “O Espelho“. In. PapeisAvulsos.Rio de Janeiro: Garnier, s/d. p. 221-235

6 ASSIS. Machado de. - “O Espelho”. In OConto de Machado de Assis. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1980. p.142.

7 PUCCENELLI. Eni Orlandi. - As Formas doSilêncio: No Movimento dos Sentidos.Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. 2a. ed.

8 Assis, Machado. Crítica. (Coleção feita porMario de Alencar). Rio de Janeiro, LivrariaGarnier, Sd. p.54 e55. (grafia atualizada).

10 ASSIS, Machado de. “Sabina”. Op. Cit., p.423

11Schwarz, Roberto. Ao Vencedor as Batatas.São Paulo, Duas Cidades, 1981. p. 20.

Machado de Assis: abordagens explícitas e nas entrelinhas

NOTAS:NOTAS:

Foto: Academia Brasileira de Letras

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