liderança feminina e mesquitas só para mulheres: um olhar ... · situação face a face e do...
Post on 22-Nov-2018
218 Views
Preview:
TRANSCRIPT
Liderança feminina e mesquitas só para mulheres: um olhar sobre a comunidade Hui, da
China.
Bruna Valença Bacelar1
1. Introdução
A comunidade Hui é uma etnia muçulmana e existe na China desde o século VII. Sua
realidade é marcada por particularidades: é minoria étnica e religiosa, visto que os Han,
chineses tradicionais, constituem a mais numerosa etnia, e quanto à religiosidade, os não
afiliados são o maior grupo. Outra excepcionalidade da etnia Hui é a existência de mesquitas
e escolas só para mulheres, além de uma marcante liderança feminina na imagem da nu
ahong2, algo pouco convencional na realidade islâmica e que só existe em algumas
localidades do mundo.
Ao chegarem à China, os muçulmanos eram minoria e bem recebidos no país,
estabeleceram-se com facilidade na região central, até o momento em que começaram a
sofrer opressão por parte do governo. A tentativa de assimilação levou o grupo a tomar
medidas para manter a cultura e a religião originária da etnia, uma delas foi ampliar o
espaço de prática e de ensino do Islamismo com a criação das escolas islâmicas conhecidas
como madrassas e com a educação das mulheres, impensado até então. Tais fenômenos não
só explicam parcialmente o surgimento das mesquitas só para mulheres, ou no chinês nusi,
bem como evidenciam um processo de reafirmação de identidade pelo qual a comunidade
passou, o que será explanado mais a frente.
Este trabalho analisa os acontecimentos históricos da etnia que levaram ao
surgimento do papel de destaque da mulher Hui, utilizando a sociologia do conhecimento
para tal. Essa teoria, de Berger e Luckmann, é apropriada para estudar esta comunidade por
explicar a construção de uma realidade por meio da sociabilidade humana, utilizando uma
1 Graduanda em Relações Internacionais – Faculdade Damas da Instrução Cristã, Recife - PE. Email: brunavbacelar@gmail.com 2 Nu ahong é a expressão chinesa para a líder religiosa mulher, em que ahong quer dizer imã e nu significa mulher.
abordagem fenomenológica, fato que a torna uma teoria empírica e de fácil aplicação em
estudos de caso como o nosso.
A análise da construção da identidade do grupo terá como base os autores Castells
(1999) e Woodward (2012), visto que os Hui podem ser considerados como uma identidade
de resistência, bem como uma identidade relacional por surgir ao comparar-se com o outro,
com o que é diferente, no nosso caso, com o que é meramente chinês e não muçulmano. O
trabalho utiliza a metodologia qualitativa e faz uma revisão bibliográfica dos autores citados,
tomando como base histórica a obra de Jaschok e Jingjun (2000), uma pesquisa minuciosa
sobre a história das mesquitas só para mulheres na China islâmica.
2. Abordagem teórica
A sociologia do conhecimento utiliza uma análise fenomenológica para explicar de
forma empírica como o conhecimento governa o comportamento na rotina, ou seja, como a
realidade é construída e percebida pelos membros de um grupo social (BERGER;
LUCKMANN, 2009). A realidade é apreendida pela consciência como estrutura formada por
um conjunto de objetos diversos; quando lida com dois ou mais conjuntos de objetos, a
consciência pode perceber múltiplas realidades, embora apenas uma seja a realidade da vida
rotineira (BERGER; LUCKMANN, 2009).
Esta realidade principal é assimilada como uma realidade já ordenada, organizada em
padrões, em torno de um ‘aqui e agora’ físico e temporal, porém não se limitando apenas
aos fenômenos deste ‘aqui e agora’. A realidade da vida rotineira também é constituída pela
interação com outros, na qual a vida cotidiana se torna real, pois as objetivações e os
significados são os mesmos para os diferentes membros da mesma sociedade (BERGER;
LUCKMANN, 2009).
A realidade da vida cotidiana é de tal forma encerrada em si mesma que para
contestá-la é preciso grande esforço. Outras realidades são apreendidas de forma limitada,
pequenos conjuntos de objetos imersos numa lógica dominante. A religião é um exemplo de
realidade finita que proporciona uma experiência específica e limitada temporalmente,
devendo a consciência voltar-se para a realidade dominante da rotina quando a experiência
chega ao fim (BERGER; LUCKMANN, 2009).
Em relação à interação social na realidade da vida cotidiana, a melhor forma de
experimentar o outro é na situação face a face, na qual o ‘aqui e agora’ de dois ou mais
indivíduos coincidem. Este tipo de interação, quando ocorre na rotina, é padronizada e
permite a utilização de esquemas tipificadores. Quando as tipificações se distanciam da
situação face a face, tornam-se anônimas e passam a carregar um padrão de
comportamento em seu significado adquirido. Estas tipificações e seus padrões de interação
são o que constituem a estrutura social (BERGER; LUCKMANN, 2009).
Berger e Luckmann (2009) também enfatizam que a realidade da vida cotidiana só
existe devido às objetivações, que são os objetos produzidos a partir da subjetividade
humana. As objetivações auxiliam na manutenção das interações sociais para além da
situação face a face e do ‘aqui e agora’. Um modo específico de objetivação é a produção de
sinais e de sistema de sinais, por exemplo, a linguagem é o mais importante sistema de
sinais em um grupo social. De acordo com os autores, “a linguagem é capaz de se tornar o
repositório objetivo de vastas acumulações de significados e experiências, que pode então
preservar no tempo e transmitir às gerações seguintes” (2009, p. 57).
Por meio da linguagem é possível transcender a realidade cotidiana totalmente pela
utilização do conhecimento acumulado (histórico e biográfico) e de conjuntos de símbolos,
sendo a religião um dos mais antigos e mais importantes destes conjuntos. A linguagem
também permite invocar objetos que estão em todos os sentidos ausentes da lógica do ‘aqui
e agora’ (BERGER; LUCKMANN, 2009).
Antes de prosseguir, é preciso ressaltar que a natureza humana não determina o
processo de humanização ou a construção sociocultural do homem, na verdade, está
submetida ao contexto em que está inserida. O homem é capaz de produzir a si mesmo em
conjunto com outros, na interação e na transmissão e construção conjunta de
conhecimentos (BERGER; LUCKMANN, 2009). Por isso, tudo o que foi citado anteriormente,
como a realidade da vida cotidiana, as tipificações, as objetivações, a linguagem, bem como
o que será elencado a seguir, como as instituições, os papéis, a legitimação, são produto da
exteriorização humana. É levando isto em consideração que analisaremos a realidade da
comunidade Hui, uma construção humana, resultado da necessidade do grupo em manter as
tradições religiosas devido à situação histórica em que se encontravam.
Outro produto da ação social humana é a construção da ordem social, para explicar
de que forma isto acontece, Berger e Luckmann (2009) se utilizam de uma teoria da
institucionalização. Segundo os autores, a institucionalização é uma consequência da
padronização da ação humana, ou seja, de uma atividade que repetida diversas vezes
converte-se em hábito. Este hábito carrega consigo um significado que o torna parte do
conhecimento humano, sendo acreditado como a ação correta para determinada situação. A
institucionalização acontece propriamente quando há uma tipificação recíproca dos hábitos
e dos atores que os praticam; estas tipificações de condutas podem ser caracterizadas como
papéis sociais quando acontecem de forma coletiva (BERGER; LUCKMANN, 2009).
As instituições são, por excelência, representadas pelos papéis, afinal, é na execução
dos papéis que aparecem a necessidade da institucionalização e a estrutura da instituição
propriamente dita. Embora existam outras formas de representar as instituições, como as
objetivações linguísticas, os objetos simbólicos, etc., estas só se tornam significativas quando
integram a conduta humana (BERGER; LUCKMANN, 2009).
Duas características são marcantes nas instituições: a historicidade e o controle. A
historicidade procede do fato de que as tipificações recíprocas são constituídas ao longo do
tempo de uma interação social. O controle é consequência da padronização da ação humana
(BERGER; LUCKMANN, 2009). Isso não quer dizer que as instituições sejam fixas e imutáveis,
como foi exposto anteriormente, elas são consequência da produção humana, portanto a
relação entre o homem e a instituição é dialética, um exerce influência sobre o outro. E, de
acordo com Berger e Luckmann, “é mais provável que o indivíduo se desvie de programas
estabelecidos para ele pelos outros do que de programas que ele próprio ajudou a
estabelecer” (2009, p. 89).
Quando a necessidade de existência de uma instituição é reconhecida pela
sociedade, esta passa a transmitir o significado da instituição como parte do conhecimento
social. Tal transmissão se dá quando há um aparelho social: quem possui e propaga o
conhecimento e quem é caracterizado como receptor. Também é possível especificar que a
distribuição do conhecimento será determinada pelos papéis sociais, visto que cada papel
exige um acervo próprio de conhecimento (BERGER; LUCKMANN, 2009).
Berger e Luckmann ainda adicionam sobre a institucionalização:
“A segmentação da ordem institucional e a concomitante distribuição do conhecimento levarão ao problema de fornecer significados integradores que abranjam a sociedade e ofereçam um contexto total de sentido objetivo para a experiência e o conhecimento social fragmentado do indivíduo (2009, p. 116-117).”
É justamente essa segmentação institucional sobre um indivíduo com conhecimento
social fragmentado que oportuniza a existência de subuniversos de significação. Os
subuniversos são consequência, por exemplo, da especialização dos papéis sociais, da
divisão do trabalho e dos excedentes econômicos; e, por isso podem ser categorizados com
base em idade, sexo, gênero, religião, etc. (BERGER; LUCKMANN, 2009). Veremos depois
como os espaços exclusivos para as mulheres levarão à criação de um subuniverso de
significação próprio do gênero.
A sociologia do conhecimento conceitua legitimação como o processo de objetivar o
sentido e significado das instituições, razão pela qual é importante na transmissão da ordem
institucional de uma geração para a outra. Berger e Luckmann (2009) também elencam
vários níveis de legitimação, sendo o mais básico aquele que acontece na transmissão de um
sistema de objetivações linguísticas e o mais complexo o dos universos simbólicos, ou seja,
os conjuntos de teoria que envolvam e expliquem a ordem institucional.
Quando um universo simbólico encontra outro diferente, dito de outra forma,
quando uma cultura encontra outra, nota-se uma espécie de ameaça de uma pela outra,
levando um grupo a criar mecanismos de manutenção para seu universo. Alguns destes
mecanismos são a mitologia, a teologia, a filosofia e a ciência, nesta ordem de aplicação.
Quanto à aplicação, duas são as formas: terapêutica e aniquilação (BERGER; LUCKMANN,
2009). A terapêutica é a única que nos interessa por ser a que explica melhor a situação da
comunidade Hui.
A aplicação terapêutica dos mecanismos de manutenção serve para conservar
membros de uma sociedade dentro do seu próprio universo simbólico. Utiliza, portanto, das
instituições para exercer sua influência e seu controle social. Porém, como um produto
humano, os universos simbólicos podem ser modificados (BERGER; LUCKMANN, 2009). É a
partir dos mecanismos de manutenção que iremos entender como a ameaça e a
necessidade levaram as mulheres hui a assumir novos papéis dentro da organização
institucional do seu grupo étnico.
Para analisar a comunidade Hui, elencamos até aqui a construção social da realidade
com base em realidades objetivas e institucionais, porém daremos prosseguimento com
alguns outros teóricos que tratam da construção social da identidade. Segundo Castells
(1999), “a construção social da identidade sempre ocorre em um contexto marcado por
relações de poder”. A identidade de resistência é uma das formas de construção identitária
elencadas pelo autor, caracterizada por condições desvalorizadas de uma minoria numa
sociedade, que implicam no surgimento de comunidades fechadas com valores diferentes
dos dominantes.
Há ainda outros aspectos que marcam a formação da identidade de um povo, de
acordo com Woodward (2012), a identidade só se torna um problema, um questionamento
que precisa de resposta e reconhecimento quando entra em uma espécie de crise. Durante
uma crise, o passado e o presente de um povo têm um papel fundamental na criação de
novos aspectos da identidade, pois esta se molda às adversidades temporais e políticas, sem
deixar de guardar o fundamento histórico que baseia o grupo social (Woodward, 2012).
É possível dizer com isso que as identidades não são unificadas (Woodward, 2012),
são construídas pela interação social e, portanto, estão em constante modificação. Em
especial, no caso da etnia Hui, seus valores e suas características são constantemente
desafiados pela lógica dominante, como explicaremos a seguir. Outros atributos de uma
identidade elencadas por Woodward (2012), também importantes para o nosso estudo, é
ser marcada por um conjunto de símbolos e pela lógica do gênero. Prosseguiremos na
próxima parte com os acontecimentos históricos da comunidade Hui e a análise com base no
conhecimento teórico abordado até aqui.
3. A comunidade Hui
A comunidade Hui é atualmente formada por, em média, 9 milhões de integrantes
num total de, aproximadamente, 20 milhões de muçulmanos que vivem na China, e é uma
entre as 10 etnias de muçulmanos chineses; está presente em várias regiões da China,
embora seja apenas na região central que estão localizadas as mesquitas só para mulheres,
as nusi. Os Hui são de origem árabe e persa, migraram para a China por volta do século VII,
espalharam-se pelo país no século XIII e vivenciaram um período de renascimento espiritual
entre os séculos XVI e XVII, quando surgem as madrassas (JASCHOK; JINGJUN, 2000).
Entraram no país como comerciantes, majoritariamente homens, em um período de
política de portas abertas e trocas comerciais e culturais entre a China e o Império Árabe,
embora tratados com respeito e educação, não deixavam de ser reconhecidos como
estrangeiros, pois notáveis eram as diferenças entre eles e a etnia chinesa Han, os chineses
tradicionais (JASCHOK; JINGJUN, 2000). Devido ao frutuoso comércio, alguns desses
negociantes se estabeleceram em pequenas comunidades estrangeiras e muçulmanas, onde
tinham liberdade para praticar sua religião, podendo construir mesquitas e até usar as leis
islâmicas em algumas ocasiões (JASCHOK; JINGJUN, 2000). É possível notar que desde a
chegada dos primeiros migrantes muçulmanos, os Hui podem ser considerados dentro do
espectro da identidade de resistência e assim continuarão até os tempos atuais.
Passaram, então, por um processo de miscigenação e integração à sociedade chinesa
através dos casamentos interculturais e da participação na vida política. Em vista da grande
quantidade de casamentos, o governo chinês proibiu que os estrangeiros levassem suas
esposas embora do país, com a intenção de proteger as mulheres chinesas (JASCHOK;
JINGJUN, 2000). O fato contribuiu ainda mais para a permanência e acomodação destes
muçulmanos que mantiveram grande parte da sua cultura original, como língua (tanto árabe
como persa) e práticas religiosas, visto que suas esposas aderiram à sua religião. Neste
período inicial da história da comunidade Hui, já podemos notar indícios do processo de
construção social da realidade deste povo, que pode apenas ser considerada, ainda, como
uma realidade limitada dentro da realidade dominante marcada pela cultura chinesa.
No século XIV, a Dinastia Ming enrijeceu o controle sobre a comunidade e os Hui
começaram a sofrer tentativas de assimilação, um exemplo foi a medida política que proibia
os casamentos entre os pertencentes do mesmo grupo étnico. Para preservar sua cultura
sem infringir a lei, os muçulmanos casavam com alguém da etnia Han e o pressionavam à
conversão, fosse homem ou mulher. No caso de casar com mulher, a situação era mais
simples, uma vez que tanto a lógica islâmica como a confucionista pregavam que a mulher
deveria identificar-se com a cultura do marido (JASCHOK; JINGJUN, 2000). A partir desta
época, ser Hui significava pertencer a um nível social baixo e ser muçulmano se tornou uma
questão privada, ainda que a prática da religião estivesse permitida e que novas mesquitas
tenham sido construídas.
Ao final do governo da dinastia Ming e inicio do da dinastia Qing, entre os séculos XVI
e XVII, o declínio e a marginalização do islamismo fundamentou o surgimento de um
movimento cultural de massa. Visando tornar o islã mais acessível aos chineses, um novo
modelo de educação religiosa foi criado e as escrituras foram traduzidas para o chinês, pois
até então era função do pai introduzir o filho homem na religião utilizando a língua materna,
árabe ou persa. Iniciado na China Central, o movimento logo se espalhou para outras partes
do país, concentrando-se na educação de homens e mulheres. Nas palavras das autoras
Jaschok e Jingjun (2000, p. 79), “assim como o iluminismo alastrou-se, um movimento
cultural de massa foi gradualmente formado com a participação de todos os muçulmanos” 3.
Muitas escolas começaram nas casas dos professores ou em outros locais igualmente
precários, pois não importava a estrutura física quando a intenção era ensinar os textos
sagrados. E logo os alunos assumiam a mesma responsabilidade e tornavam-se professores
também, indo ensinar em diferentes cidades e províncias. Como os hui estavam há muito
tempo imersos na cultura han chinesa, as escolas e os professores do islamismo utilizavam
muitas vezes a terminologia confucionista para ensinar a escritura islâmica (JASCHOK;
JINGJUN, 2000). Entre as matérias estudadas estavam as línguas árabe e persa, a história do
islamismo, os textos do Alcorão, os ritos religiosos, etc.
A partir da ampliação da atuação da religião na vida da comunidade, saindo apenas
do escopo da mesquita, criando escolas confessionais e educando também as mulheres, a
realidade limitada da comunidade Hui está em construção para tornar-se realidade 3 Tradução livre: “As enlightnment spread, a cultural mass movement was gradually formed with the participation of all Muslims.”
cotidiana. A cultura e atividade religiosa passam a integrar as situações face a face, deixam
de ser apenas história do povo para ser fenômeno do ‘aqui e agora’. E, como elencado
anteriormente, esta interação face a face gera tipificações que carregam um padrão de
comportamento; é nas escolas que os hui vão começar a aprender vocabulário, maneira de
agir, formas de vestir próprias da sua cultura, ou seja, vão aprender o que é e como ser um
hui.
O ensino das línguas tradicionais árabe e persa se torna uma das mais importantes
ferramentas para manter a interação social e a realidade cotidiana e presente. Berger e
Luckmann (2009) apontaram como a linguagem é capaz de acumular conhecimento histórico
e biográfico, permitindo a preservação temporal e a transmissão de tal conhecimento,
exatamente o que o árabe e o persa irão proporcionar para os hui: sair do ‘aqui e agora’ da
cultura chinesa, remeter ao passado islâmico do grupo, invocando a história e a tradição do
povo e transmitindo-os aos estudantes.
No tocante à preservação e à transmissão dos costumes islâmicos dentro da
comunidade, a educação das mulheres foi de extrema utilidade. Enquanto muitos deixavam
sua fé, as mulheres permaneciam muçulmanas devotas e orgulhosas (JASCHOK; JINGJUN,
2000). As escolas para mulheres, ou nuxue, foram fundadas por homens e, incialmente, eles
eram responsáveis por ensiná-las. Porém, os fundamentos do islamismo e do confucionismo
consideravam inapropriado que homens ensinassem às mulheres, fato determinante para
que elas assumissem a função de professoras. As primeiras a fazê-lo eram, geralmente,
esposas do ahong que aprenderam o ofício com ele ou com outros membros da família.
Na teoria exposta anteriormente, o processo de institucionalização de uma realidade
social inicia com a tipificação recíproca dos hábitos e dos atores; no caso dos Hui, ao longo
dos anos, as mulheres assumiram o papel de educadoras, de detentoras do conhecimento, e
tal hábito foi institucionalizado quando a ação de ensinar remetia diretamente ao papel da
mulher. E, devido ao fervor e à dedicação das mulheres para melhorar seu conhecimento e
para sustentar as nuxue, estas foram desenvolvendo-se e, posteriormente, transformaram-
se em mesquitas (JASCHOK; JINGJUN, 2000).
As nusi propriamente surgem apenas ao final do século XIX e início do século XX. A
princípio, as mulheres tinham poucas responsabilidades, ensinavam e administravam, depois
passaram a acumular mais funções: professora, guia espiritual, conselheira, educadora
sexual e higiênica, etc (JASCHOK; JINGJUN, 2000). É preciso apontar que a nusi carrega
consigo as duas características das instituições, a historicidade e o controle social,
respectivamente significando que foi formada ao longo do tempo pela interação social e
pela tipificação, e que estabeleceu um padrão de interação social.
Na nusi, muitas mulheres eram, e ainda são, instruídas para assumir a função de
professora ou de nu ahong. É o que Berger e Luckmann (2009) apontam como o aparelho
social, alguém propaga o conhecimento a respeito do significado e função da instituição, e o
outro recebe o conhecimento, fato que mostra o reconhecimento social da necessidade de
existência da nusi.
Esta divisão do trabalho e especialização dos papéis sociais na comunidade Hui,
homens ensinando para homens e mulheres para mulheres, possibilitou o surgimento de
subuniversos de significação, visto que cada indivíduo possui um conhecimento social
fragmentado. As mulheres estudarão alguns documentos a menos que os homens, a nu
ahong não poderá fazer alguns rituais religiosos exclusivos do ahong, a nusi será também um
lugar de orientação e liberdade, ou seja, um subuniverso criado e específico para as que ali
participam. Podemos também elencar as diferenças entre o subuniverso na nusi e na
realidade da mulher chinesa quando levamos em consideração que esta não recebe
qualquer instrução semelhante, seja de orientação sexual e higiênica, seja acerca de básicas
realidades fisiológicas do corpo feminino, assim como é evidente a submissão e dependência
ao homem, seu papel é quase sempre secundário4.
Na abordagem teórica, vimos como a legitimação está dividida em alguns níveis. O
mais básico, a transmissão do sistema de objetivações linguísticas, já notamos como ocorreu
e explicamos anteriormente. O mais complexo, os universos simbólicos, se refere, no caso da
comunidade, a quando as teorias religiosas constituem a realidade cotidiana de todos os hui.
Nota-se, também, que, estando o universo simbólico dos hui em constante ameaça pelo 4 Tais observações a respeito da mulher chinesa foram feitas a partir dos relatos apresentados no livro “As boas mulheres da China” de Xinran.
universo simbólico dos han, os chineses tradicionais, as escolhas, as nuxue, as nusi, etc.
foram e são utilizadas como uma aplicação terapêutica dos mecanismos de manutenção da
realidade.
As nusi foram expandindo sua área de existência e hoje estão numa proporção de 1:7
em relação às masculinas, e, na província de Henan (principal localidade das mesquitas), são
em torno de 91 registradas. Algumas são independentes, outras são ligadas às masculinas,
mas todas estão sob a administração da Associação Islâmica da China, organização criada em
1953 que reúne todos os nacionais muçulmanos. Elas ganharam mais força após a Revolução
Cultural, principalmente por volta dos anos 1990 quando foram reconhecidas oficialmente
pelo governo (JASCHOK; JINGJUN, 2000).
O crescimento da comunidade Hui e a forma como se fechou em sua própria cultura
mostra como continua sendo uma identidade de resistência. Outro fator contribuinte para
marcar a identidade Hui atual foi a perseguição política durante as dinastias Ming e Qing,
pois na busca por manter suas tradições vivas, a comunidade colocou a mulher num novo
papel de protagonista para reafirmar a própria história. O novo significado dado à mulher
marcou a identidade Hui pelo gênero, afinal, a mulher passou a ser mais valorizada nesta
comunidade muçulmana do que em outras. Também as nusi e nuxue são consideradas
símbolos que diferenciam a comunidade Hui da sociedade chinesa e da muçulmana. Em
comparação a outras comunidades islâmicas na China, a Hui é a única que tem escolas
confessionais para mulheres; nas outras, as meninas muitas vezes não são mandadas para a
escola secular com intuito de preservar sua virtude. A falta de nuxue é motivo para as
meninas muçulmanas não frequentarem escola alguma e para não terem relevância em suas
comunidades.
4. Conclusão
A construção da realidade Hui e o surgimento das nusi são consequência da ação
humana, da opressão e tentativa de assimilação por parte dos governantes, da resposta dos
homens da comunidade com a criação das escolas confessionais e da escolha pela educação
das mulheres. Embora a posição das mulheres na comunidade Hui ainda não seja
completamente emancipada, visto que muitas nusi são dependentes, suas funções ainda são
menores e menos valorizadas que as dos homens, apenas a existência de uma liderança
feminina e de um espaço exclusivo para mulheres é um caso que chama bastante atenção.
Isto ocorre pelo fato da religião islâmica ser famosa no ocidente pela subjugação e
degradação da imagem da mulher, e o que, aparentemente, é apenas um resultado histórico
e pontual, na verdade, não infringe a lei islâmica, ao contrário, tem embasamento no
próprio Alcorão.
Muitos autores argumentam que a condição inferior da mulher nas culturas árabe-
muçulmanas é resultado da hegemonia masculina e patriarcal na leitura e interpretação das
escrituras sagradas (HAJJAMI, 2008). A autora Hajjami (2008) defende que o Alcorão
inaugura uma mensagem de igualdade entre os seres humanos sem qualquer distinção, seja
entre homens, mulheres, raça, etc.; segundo a autora, o próprio profeta coloca ambos,
homens e mulheres, de forma igual diante das leis, além de incentivar os homens a cuidar da
casa.
Outros argumentos dentro da lógica confucionista ou islâmica podem ser utilizados
para legitimar a existência das nusi e da liderança feminina no papel da nu ahong, porém
este não é o objetivo deste artigo e o assunto é extenso para tratar aqui, podendo ser
abordado em um outro momento. Por enquanto, apenas podemos afirmar neste sentido
que as nusi são uma representação do que tantas vezes é defendido e buscado por mulheres
muçulmanas ou chinesas, levando em consideração que mesquitas só para mulheres e
liderança feminina religiosa existem em poucas localidades do mundo.
5. Bibliografia
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 30ª ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 22-28. HAJJAMI, Aïcha El. A condição das mulheres no Islã: a questão da igualdade. In: Cadernos Pagu, Campinas, n. 30, p.107-120, jan-jul. 2008. Disponível em: <http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8644850>. Acesso em: 09 set. 2016.
JASCHOK, Maria; JINGJUN, Shui. The History of Women’s Mosques in Chinese Islam: a mosque of their own. Richmond: Curzon Press, 2000 KORTE, Guilherme. Islamismo na China. 2009. Disponível em: <http://br.china-embassy.org/por/zggk/t150680.htm>. Acesso em: 09 set. 2016. WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: HALL, Stuart; SILVA, Tomaz Thadeu da (Org.); WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 12. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012, p. 7-35.
top related