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“Le leggende del castello nero”, de Igino Ugo Tarchetti: a dimensão fantástica
como espelho da realidade
Jéssica Soares FRADUSCO1
Resumo
Ainda que as histórias fantásticas sejam consideradas, na maioria das vezes, como
meras narrativas acerca de assuntos improváveis e, por isso, sejam postas em uma
dimensão à parte daquela vivida pelas pessoas no mundo real, é recorrente, no entanto, a
possibilidade de conexão entre as duas dimensões (mundo real e mundo fantástico). Tal
conexão se faz possível, até mesmo, por meio de uma espécie de reflexo e/ou
representação da realidade contida nos elementos fantásticos de uma narrativa.
Inúmeras vezes, o acontecimento fantástico advém de uma situação típica do cotidiano e
pode ser considerado como uma interpretação de tal cotidiano. Desta forma, o que se
tenta demonstrar neste artigo são tanto a possibilidade de recorrência do fantástico no
cotidiano de toda e qualquer pessoa como o modo por meio do qual essa manifestação
do fantástico pode se apresentar, na verdade, como um reflexo do mundo real,
estabelecendo-se assim, uma relação de complementariedade entre as duas dimensões.
Sendo assim, a partir desse pensamento, passar-se-á de uma relação de oposição mundo
real versus mundo fantástico a uma relação, assim como mencionado anteriormente, de
complementariedade, em que os dois níveis não se oporiam, mas se complementariam
em busca de uma explicação da narrativa.
Palavras-chave: Literatura fantástica. Igino Ugo Tarchetti. Representação. Mundo
onírico.
Abstract
Although the fantastic stories are considered, in most cases, merely as narratives about
unlikely subjects and, therefore, are put into a different realm from the one experienced
by people in the real world, the possibility of connection between the two dimensions
(real world and fantasy world) is, however, recurring. Such connection is possible, even
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários pela UNESP – Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – CEP: 14800-901 - Araraquara - SP -
jessicasfradusco@gmail.com
due to a kind of reflex and/or representation of reality contained in fantastic elements of
a narrative. Countless times, the fantastic event comes from a typical everyday situation
and can be considered an interpretation of such. Thus, what one aims at demonstrating
in this article is not only the possibility of recurrence of the fantastic element anybody’s
everyday life, but also the way in which this fantastic manifestation may present itself -
actually as a reflection of the real world - thus establishing a complementary relation
between the two dimensions. Hence, concerning this train of thought, the relation of
opposition between real world and fantastic world will cease to exist, giving its place
to a relation, as previously mentioned, of complementarity, wherein the two levels are
not opposed to each other, but complementary to each other, seeking an explanation of
the narrative.
Keywords: Fantastic literature. Igino Ugo Tarchetti. Representation. Oniric world.
Introdução
Mas o real e o sonho são agora uma
unidade.
Gaston Bachelard (1978)
Igino Ugo Tarchetti, em sua obra Racconti fantastici, de 1869, traz uma
coletânea contendo cinco contos fantásticos e seis pensamentos acerca de ideias
universais presentes em seus contos. Já naquela época, meados do século XIX, a Itália
não considerava como dignos de serem nomeados como literatura, textos que tratassem
de elementos de natureza sobrenatural em seu enredo. Dessa forma, Tarchetti, assim
como alguns outros poucos escritores que tentaram desenvolver essa modalidade
literária em solo italiano, foram relegados à margem da sociedade literária.
Por outro lado, ainda que Tarchetti tenha buscado desenvolver narrativas de
cunho fantástico, é bastante evidente em seus contos a preocupação filosófica,
fortemente reflexiva e presente nos enredos, deixando transparecer uma real utilidade do
fantástico nas entrelinhas de seus textos. Dessa forma, no conto fantástico tarchettiano,
os elementos sobrenaturais, na verdade, são meros instrumentos que visam a apresentar
e discutir temas comuns e também polêmicas que assolam o imaginário da sociedade,
desde temas do imaginário - como a figura do vampiro - até algo mais profundo - como
a existência de uma outra vida, ou seja, a possibilidade de reencarnações. Sendo assim,
é possível afirmar que o autor tenha se utilizado de uma temática interessante e mais
simples para tratar de assuntos mais densos de interesse geral, lapidando a simples
literatura fantástica por ele confeccionada com o típico cunho filosófico italiano.
É válido ressaltar neste primeiro momento que a época em que se situa o
escritor Igino Tarchetti é caracterizada pela busca da estabilização da Itália como país;
um momento bastante conturbado que se inicia com a Revolução Francesa, passa pela
queda de Napoleão e se aflora com a significativa preocupação em relação à criação de
uma identidade nacional, bem como uma profunda reflexão acerca dos assuntos sofridos
pelo país até este determinado momento.
Assim, em meio a um panorama histórico-cultural que se mostra bastante
complexo, passando por uma expansão de seu público-leitor e, por isso, necessitando de
uma expansão também nos temas e nas formas literárias, surgem novos nomes literários
para suprir com os gostos do novo público e retomar raízes então esquecidas na cultura
do país. Tal cenário é apontado desta forma:
[...] os agitados acontecimentos franceses e as prementes convulsões
políticas e militares ocorridas por todo o continente impuseram a
intelectuais e artistas inadiáveis escolhas de campo; criaram um
público mais amplo e com novas exigências, determinando mudanças
de gosto e de pensamento. (SQUAROTTI, 1989, p.385)
Com isso, ainda que Tarchetti não desenvolva seu trabalho literário da
mesma forma como os grandes nomes do contexto literário em que situa, pois busca
representar, como dito anteriormente, um grupo tido como literariamente inferior, acaba
sendo influenciado por um destes grandes nomes que se destacaram no período
conhecido como Romanticismo (Ottocento). O autor em questão demonstra a forte
influência em sua escrita de Giacomo Leopardi, grande escritor italiano da época, ainda
que nem mesmo ele tenha tido o mesmo reconhecimento direcionado ao ícone do
Ottocento, Alessandro Manzoni, por conta de sua natureza literária profundamente
filosófica.
Dessa forma, por meio da influência de grandes nomes estrangeiros da
literatura fantástica, como E.T.A. Hoffmann, Théophile Gautier e Edgar Allan Poe,
Tarchetti irá criar narrativas fantásticas que retomam traços característicos desse gênero,
mas, simultaneamente, por trás de uma simples narrativa repleta de elementos
sobrenaturais e inusitados, poder-se-á encontrar uma reflexão significativamente
profunda a respeito de temas universais, tais como a vida, a morte, o amor, a mulher etc.
No artigo em questão, tomando-se como objeto de análise apenas um dos cinco contos
presentes na obra Racconti fantastici,“Le leggende del castello nero”, o escritor
desenvolverá, mais especificamente, a intersecção ou mesmo a relação de
complementariedade que se estabelece entre o mundo onírico, aqui representando como
o mundo onde impera as leis do fantástico e, de outro lado, o mundo real, manifestado
na vida cotidiana de cada indivíduo.
A intersecção entre os níveis da diegese e da metadiegese
Como costuma acontecer nas narrativas de natureza fantástica, há uma
moldura que antecipa a história que será contada ao espectador, como se fosse uma
espécie de prólogo apresentada pelo contador de história com o intuito de preparar seu
ouvinte para uma situação diferente que está por vir. Seguindo nesta linha de raciocínio,
é como se o narrador já preparasse seu público para uma mudança de nível – ainda que
não seja bem isso que aconteça nesse momento - como se o avisasse que está prestes a
entrar em uma outra dimensão.
Desempenhando o papel de narrador ao estilo “marinheiro comerciante”,
assim como o apresenta Walter Benjamin (1994), este narrador, por conta de suas
viagens ao redor do mundo e, consequentemente, por muito conhecimento adquirido,
apresentará uma longa reflexão acerca dos mistérios da vida e suas possibilidades de
concepção, temática esta que assola a mente de grande parte da população.
A partir disso, é apresentada uma narrativa aparentemente comum: trata-se
da história de um jovem rapaz de família simples que, em uma noite, estando com sua
família a escutar as histórias de um misterioso tio – nota-se mais uma vez a figura do
narrador viajante que tudo conhece – vê a narração interrompida por um manuscrito que
é atirado contra a janela da sala onde a família se encontra e, deste momento em diante,
iniciam-se as situações de suspense e caráter sobrenatural na narrativa.
Chegando-se, portanto, aos níveis narrativos, assim como os teorizou
Gerard Genette, o nível narrativo em que se situa a vida real do protagonista – sua rotina
– pode ser caracterizado como a diegese, ou seja, a narrativa primeira, aquela em que
estão inseridas todas as outras passíveis de desenvolvimento na história contada; aquela
que, portanto, dá origem às demais. Já no segundo nível narrativo, encontra-se a
metadiegese, ou seja, a narrativa que está contida na diegese; neste caso, trata-se da
situação que se passa no mundo fantástico, representada nesse conto pelo mundo onírico
do protagonista.
Ainda que seja comum considerar a narrativa primeira como principal, será
possível perceber no decorrer dessa análise que, na verdade, a narrativa que se mostra
essencial para o desenvolvimento das ações é aquela que está situada no segundo nível
narrativo, ou seja, a que representa o mundo fantástico, uma vez que grande parte das
ações se passará nesse nível.
Como proposto inicialmente, haverá uma intersecção nos dois níveis
presentes no conto em questão, intersecção esta que acabará por demonstrar a relação de
complementariedade entre os dois níveis existentes na história. Como ponto de partida,
o elemento que proporcionará o início dessa intersecção será o manuscrito atirado na
casa que, nessa situação, representará o elo entre os dois mundos: real e onírico.
A partir disso, o protagonista começará a ter acesso ao espaço fantástico por
meio de seus sonhos que, na realidade, servirão para compreender o que se passa em sua
vida real.
No espaço onírico, o personagem principal terá acesso a uma outra época
por ele vivida e, assim, entrará em contato com uma donzela que exercerá uma função
de oráculo, revelando a ele seu passado, presente e futuro, o que servirá para a
compreensão de sua situação vivida no mundo real. Nesse ponto, estabelece-se a
conexão entre os dois níveis.
Por meio da revelação da donzela-oráculo, o protagonista aprende a lidar
com a situação por ele vivida no tempo presente e em seu mundo real, fazendo com que
o nível em que se situa o fantástico se sobressaia em relação ao da sua vida, que se
desenvolve no plano primeiro, já definido como o da diegese. Dessa forma, para que o
personagem possa compreender o problema que o assola e, além disso, resolvê-lo, ele
depende das recomendações dadas por sua donzela, personagem que ele só pode
encontrar através de seus sonhos. Assim sendo, há uma relação não só de
complementariedade, como também de interdependência entre os dois níveis, em que
um não faz sentido sem o outro mas, claramente, observa-se a relevante importância do
nível fantástico.
Além do manuscrito, que funciona como primeiro elo entre os dois níveis,
conforme se torna mais forte e clara a relação entre sonho e realidade, as sensações e
impressões vividas no plano onírico passam a se mesclar com aquelas sentidas na vida
real do protagonista, fazendo com que o nível onírico seja considerado como um
espelho do mundo real, que tem por função refletir tudo que é da ordem da realidade no
mundo dos sonhos.
Aveva venticinque anni: nella mia mente si erano come agglomerate
tutte quelle idee, tutte quelle esperienze, tutti quegli ammaestramenti
che il tempo mi avrebbe fatto subire durante gli anni che segnavano
quella differenza tra l’età sognata e l’età reale; ma io rimaneva
nondimeno estraneo a questo maggiore perfezionamento, benchè il
comprendessi. Sentiva in me tutto lo sviluppo intelletuale di quell’età,
ma ne giudicava col senno e cogli apprezzamenti proprii dei miei
quindici anni. Vi erano due in me, all’uno apparteneva l’azione,
all’altro la coscienza e l’apprezzamento dell’azione. (TARCHETTI,
1869, p.62)
Por outro lado, ainda que no momento inicial fique clara a diferença entre os
dois níveis, a partir da revelação da donzela, acontece uma espécie de confluência,
mistura e abolição da diferença de níveis, uma vez que, segundo sua fala, tudo o que o
personagem vê em seu sonho, em sua realidade e que chegará a viver num futuro ainda
longínquo, nada mais é do que um único ciclo que o protagonista deverá completar mais
uma vez. Nesse sentido, passado, presente e futuro, na realidade, são a mesma coisa,
não há diferença de tempo e, portanto, não há diferença de planos. Tal abolição fica
mais evidente no final do conto, quando, ao se cumprir a profecia da donzela, o
personagem principal morre exatamente quando foi previsto pela donzela-oráculo.
Da casa de campo ao castelo medieval: a relação entre os espaços
Na mudança de nível vivenciada pelo protagonista, um aspecto importante
que merece devida atenção é a diferenciação entre os espaços por ele habitados.
Enquanto na vida real, o personagem principal se encontra em sua casa, provavelmente
uma singela casa de campo; em seu sonho, ele se encontra também em um campo, mas,
desta vez, observa-se uma significativa semelhança com um castelo de estilo medieval,
local este que dá nome ao conto, il castello nero.
Atentando-se para, mais especificamente, o conceito de casa relacionado à
ideia de lar e tomando-se como referência a teoria de Gaston Bachelard em sua Poética
do Espaço, deparamo-nos com a concepção de casa como um local de proteção, abrigo.
Acima de tudo, porém, este é um lugar onde se encontram guardadas memórias antigas,
segredos, ou seja, as verdadeiras revelações. É este também, o local onde memória e
imaginação se mesclam. A casa ainda é algo superior ao conceito de local onde se vive,
o que sugere que uma simples descrição não seria capaz de atingir a magnitude de sua
definição. Em outras palavras, a verdadeira casa é, geralmente, acessada por meio de
sonhos e devaneios. Como diz Bachelard (1978, p.207), “pelos sonhos, as diversas
moradas da nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos”.
Nesse sentido, mostra-se justificada a revelação com a qual o protagonista
entra em conjunção cada vez que sonha ou, em outras palavras, por meio do espaço
onírico, o jovem entra em contato com uma outra vida que, segundo indícios do texto,
tenha ele vivido e que, de alguma forma, serve para justificar situações em que ele se
encontra no tempo presente.
Dessa forma, aplicando esta concepção ao conto tarchettiano e retomando o
posicionamento de que a narrativa fantástica representada pelo mundo onírico seja, de
fato, a narrativa principal, ao sonhar, o protagonista, na verdade está acessando sua
verdadeira casa, o local para aonde irá definitivamente assim que cumprir seu destino –
assim como o prevê sua donzela. Além disso, mostra-se evidente no conto que, para que
o protagonista possa compreender sua realidade, necessita entrar em conjunção com o
conhecimento obtido a partir das informações lhe são fornecidas apenas através das
revelações feitas em seus sonhos.
Sendo assim, mais uma vez é possível dizer que se confirma a supremacia
do fantástico em relação ao real, mas, mais do que isso, ficam claras a identificação e a
relação entre os dois níveis, fortalecendo-se, portanto, ainda mais sua interdependência:
para que o real seja compreendido, é necessário que haja o fantástico e seus elementos
para explicá-lo. Por outro lado, o fantástico existe para explicar o real quando suas
próprias leis não são suficientes para suprir certas necessidades.
Nesse momento, ou seja, no momento em que a personagem passa a dar-se
conta de que necessita do sonho para entender o que se passa em sua realidade, revela-
se para o leitor o espelhamento e a intersecção dos dois níveis, o diegético e o
metadiegético. É como se o protagonista se olhasse diante de um espelho e, por meio de
seu reflexo, pudesse ver não somente seu presente, seu eu no momento, mas ver-se a si
mesmo em um passado e um futuro. Todos os tempos e espaços convergem para um
mesmo, único e cíclico lugar: sua verdadeira casa, o lugar onde poderá repousar assim
que cumprir seu destino.
Essa sensação cíclica, na verdade, já é apresentada desde o início da
narrativa, ainda na moldura da diegese, diga-se assim, na “pré-diegese”. Acentuando
ainda mais o teor filosófico-reflexivo mencionado na introdução deste artigo, o narrador
do conto traz à luz de sua reflexão a possibilidade de mais de uma vida, ou seja, de que
haja reencarnações.
Io sento, e non saprei esprimere in qual guisa, che la mia vita – o ciò
che noi chiamiamo propriamente con questo nome – non è
incominciata col giorno della mia nascita, non può finire con quello
della mia morte: Io sento colla stessa energia, colla stessa pienezza di
sensazione con cui sento la vita dell’istante benchè ciò avvenga in
modo più oscuro, più strano, più inesplicabile. E d’altra parte come
sentiamo noi di vivere nell’istante? Si dell’esistere può non essere
circoscritta esclusivamente negli estretti limiti di ciò che chiamiamo
la vita. Vi possono essere in noi due vite – è sotto forme diverse la
credenza di tutti i popoli e di tutte le epoche – l’una essenziale,
continuata, imperitura forse; l’altra a periodi, a senz’altra è la
rivelazione, è la forma. Che cosa muore nel mondo? La vita muore,
ma lo spirito, il segreto, la forza della vita non muore: tutto vive nel
mondo. (TARCHETTI, 1869, p.55, grifo nosso.)
Nesse caso, admitindo-se as várias vidas do personagem, a importância que
elas têm entre si e pautando-se pela poética apresentada por Bachelard, pode-se
interpretar essa vida essencial, contínua e eterna como a casa para qual o personagem
voltará para manter-se permanentemente ao lado de sua donzela. Esta casa representará
o início e o fim de tudo, exemplo primordial nesta obra do que seria considerado cíclico.
Aventurando-se por associar as vidas do protagonista às próprias narrativas
presentes no conto, ou seja, a narrativa primeira e a segunda, é possível identificar certa
analogia em que a narrativa primeira figuraria como esta vida imóvel que se mostra
existente e à espera do protagonista em seu sonho. Por outro lado, a narrativa segunda
viria associar-se à vida atual e real do jovem personagem, tendo valor de secundária por
servir, ao final, como subsídio para a realização das ações previstas no mundo onírico.
O fantástico como desdobramento do real
Quando se fala em fantástico, é recorrente pensar em um mundo paralelo
àquele real, um espaço onde é possível se encontrar criaturas de todo o tipo: fadas,
monstros, animais que falam, entre outros; ou seja, um espaço-oposição em relação ao
mundo onde vigora a realidade e, acima de tudo, a racionalidade.
Considerando-se assim, não seria possível ou, pelo menos em princípio, não
seria viável considerar a possibilidade de complementariedade entre esses dois mundos,
uma vez que um representaria a total liberdade imaginativa e o outro, em contrapartida,
seria a manifestação da razão. No entanto, no conto aqui analisado, faz-se possível
estabelecer tal relação de complementariedade e, até mesmo, segundo Genette (1995),
estabelecer uma relação de causalidade direta entre os acontecimentos da metadiegese e
os da diegese.
Para isso, é necessário considerar, assim como colocado no capítulo sobre
diegese e metadiegese, os dois mundos sendo representados por níveis diegéticos, como
se se tratasse de dois planos e/ou duas dimensões.
Pensando-se assim, o nível metadiegético, ou o universo fantástico, seria
uma resposta às questões do mundo real – diegese. “Todas essas narrativas respondem,
explicitamente ou não a uma pergunta do tipo ‘Quais os acontecimentos que
conduziram à situação presente?’” (GENETTE, 1995, p.231)
Nesse momento, mais uma vez se mostra presente o espelhamento dos dois
mundos: um faz uma pergunta e o outro a responde. O sonho, local onde a imaginação
se une à memória, possibilita a liberdade tão necessária para a compreensão de assuntos
que extrapolam as regras do mundo real. O espaço onírico torna possível o acesso às
respostas capazes de suprir as lacunas existentes na realidade, permitindo que o
fantástico funcione como um desdobramento da realidade. A realidade fornece ao ser
humano a base, o necessário; o sonho, por sua vez, oferece o além de respostas e
possibilidades. É necessário livrar-se das amarras da racionalidade para atingir o
conhecimento buscado, para isso, a ausência de amarras oferecida pelo fantástico faz-se
necessária para a compreensão da realidade.
Ainda que, em um primeiro momento, o fantástico não tenha a obrigação de
servir ao mundo real já que seu próprio universo e suas próprias personagens são
regidas por suas próprias leis, é possível compreendê-lo no conto tarchettiano
funcionando como um universo-auxílio para a compreensão do mundo real.
Como já apresentado, o universo real da narrativa apresenta as situações que
lhes são próprias, bem como justifica a ocorrência de cada uma dessas situações.
Entretanto, para algumas situações, em especial as que não se enquadram nas leis típicas
da realidade, abrem-se diante não só do personagem, como também do público-leitor,
pelo menos, há duas possibilidades de resolução/explicação para tais acontecimentos:
um caminho sempre será aquele que prezará pela racionalidade, buscando sempre uma
explicação plausível que caiba dentro dos parâmetros da realidade e, em contrapartida,
mostra-se possível o impossível, ou seja, há uma opção cuja escolha implicaria um
adentrar uma nova e diferente dimensão; neste caso, a dimensão do sobrenatural, do
surreal.
Geralmente, opta-se pela segunda opção quando todas as evidências
realistas não são capazes de solucionar as situações postas na vida real. Sendo assim,
reiterando o posicionamento a respeito do fantástico como desdobramento do real,
mesmo considerando sua definição mais difundida -a de que ele se situa na fronteira
entre o real e o sobrenatural - a simples suspensão e/ ou dúvida do personagem em
relação à qual caminho seguir é suficiente para comprovar a supremacia do fantástico
quando comparado ao mundo real:
O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta,
deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou
o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser
que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento
aparentemente sobrenatural. (TODOROV, 2012, p.31)
O tempo na dupla narrativa
Atentando-se para a frequência de um dos dados narrativos presentes no
conto, antes mesmo que se faça a análise do conto, por meio da repetição de situações é
possível prever que o momento do sono para o protagonista é de extrema importância,
já que, posteriormente, descobre-se que é por meio dos sonhos que o personagem entra
em conjunção com as informações de que precisa para compreender algumas situações
do mundo real como, por exemplo, o comportamento de seu misterioso tio.
Dessa forma, no momento em que o protagonista avisa que começará seu
sonho, o público é avisado de que o sonho começará e já se instaura um suspense, pois
se sabe que ocorrerá a desestabilização da situação vivida no tempo presente. Tal
desestabilização, por sua vez, é o que define o gênero fantástico: a aparição do elemento
sobrenatural na história apresentada.
Além da frequência dos sonhos, outra questão temporal bastante
interessante no conto tarchettiano é a unificação do tempo a partir do momento em que
se unem as duas narrativas: a real e a onírica.
No momento em que o protagonista começa a sonhar, ele mesmo tem a
impressão de estar mais velho, mas, simultaneamente, ele tem a sensação de que o
contexto em que se vê inserido coincide com determinada situação ocorrida em um
passado significativamente longínquo. Neste cenário, já se tem uma mescla de futuro e
passado.
Quando o protagonista apresenta a seu público o segundo sonho que teve e a
revelação que obteve da donzela, instaura-se uma analepse que é anterior à própria
situação sonhada.
A partir disso, há uma inversão na ordem narrada, ou melhor, quando se
compreende toda a narrativa exposta ao leitor, entende-se que, na verdade, não se trata
de vários tempos diferentes: prolepses e analepses, mas de um único tempo, assim como
no caso do espaço, para onde tudo flui. Desta forma, mais uma vez, faz-se presente na
mesma história a questão do movimento cíclico: assim como o protagonista acabará
voltando para sua casa natal, nesse lugar está o tempo cíclico que une passado, presente
e futuro.
Seguindo-se este raciocínio, é possível compreender o motivo pelo qual o protagonista,
para obter as informações de que necessita no momento presente, recorre, ainda que
inconscientemente, ao sonho. É por meio do sonho e tão somente por ele, que o
personagem pode acessar o conhecimento mais primitivo que o permitirá entender sua
realidade e solucionar as questões que lhe são apresentadas.
Considerações finais
Assim como foi introduzido logo no início deste artigo, realidade e
fantástico são, inicialmente, considerados dois mundos diferentes, sendo que em um
residem a certeza e racionalidade, e, no outro, estão a incerteza, a dubiedade, a dupla
possibilidade. Entretanto, por meio da análise do conto “Le leggende del castello nero”,
foi possível verificar que, ao contrário do que se pensa a respeito destas duas
dimensões, não há entre elas uma relação de oposição “realidade versus fantasia”, mas
se estabelece uma relação de complementariedade, em que a realidade necessita recorrer
ao fantástico para poder se fazer compreensível diante dos olhos do protagonista e, por
outro lado, o fantástico se define de tal modo em comparação à realidade, pois se esta
não existisse, também não poderia existir um fantástico que a ela transgredisse.
A respeito dessa transgressão, é importante falar que é exatamente desta
forma que o elemento sobrenatural é visto: como um instrumento que possibilita a
transgressão. Com isso, desde seus temas, a literatura fantástica busca transgredir as leis
vigentes do mundo real e tal aspecto se evidencia já nos próprios temas trazidos por esse
gênero literário. No caso do conto de Tarchetti, a temática polêmica trazida pelo
personagem principal e mesmo pelo narrador que se faz presente na moldura da
narrativa, é a possibilidade de mais de uma vida, ou seja, as reencarnações - tema que
começava a ganhar força na Europa e nos Estados Unidos no início e em meados do
século XIX com o surgimento do Espiritismo com a figura de Allan Kardec. Tal tema,
em um país extremamente católico, surtiria efeitos evidentemente negativos e, por isso,
o autor se utiliza da literatura fantástica para abordar esta temática.
Dessa forma, é possível considerar a literatura fantástica como um local que
torna tudo aceitável, local que possibilita o impossível. A mesma transgressão pode ser
notada nos próprios elementos sobrenaturais presentes na narrativa, mostrando que não
há trasngressão apenas na escolha dos temas, mas também nos elementos e nas infinitas
possibilidades de que se utiliza o autor para atingir o objetivo final. Exemplo disso está
no elemento clássico da narrativa fantástica que aparece no conto tarchettiano: o
manuscrito que, neste caso, atravessa dimensões. Trata-se de um objeto que, por sua
própria natureza, tem exatamente essa finalidade, ou seja, a de atravessar gerações,
épocas, culturas, informando a diferentes povos informações de épocas que lhes são
anteriores, fazendo com que as pessoas que o encontrem, entrem em conjunção com
algum tipo de conhecimento muitas vezes, primitivo.
Assim, sendo a literatura fantástica considerada como uma literatura de
transgressão, acaba tendo por finalidade transgredir as leis da realidade diante da qual se
define como fantástico e esse mesmo passo de transgressão é o que acaba por auxiliar a
realidade.
Em outras palavras, é possível afirmar que o fantástico, ainda que sem
querer, serve à realidade exatamente por transcender suas regras. Tal transcendência
opera como uma continuação, uma projeção das possibilidades não existentes no mundo
real, mas que a ele dão maior completude.
Por fim, assim como se buscou afirmar durante todo o desenvolvimento
deste artigo, não se deve limitar as dimensões fantástica e real a uma simples visão de
oposição, uma vez que a primeira nasce da segunda para lhe conferir completude,
estabelecendo, assim, uma relação de complementariedade.
Transferindo tal posicionamento para o conto aqui analisado, assim como
foi demonstrado em sua análise, duas dimensões estão presentes na narrativa, mas o
mundo onírico, ao transgredir tudo que é apresentado no mundo real, ganha a
incumbência de completá-lo e preenche, pois, as lacunas da vida cotidiana do
personagem auxiliando em sua compreensão dos problemas pelos quais se vê
acometido. Nesse sentido, instaura-se a relação de espelhamento dos dois planos: o
fantástico, representado pelo onírico, passa a refletir a realidade de uma forma mais
completa e acabada, oferecendo ao protagonista as informações de que necessita, mas
que não consegue encontrar no plano em que vive.
Desse modo, o fantástico não só reflete o real do qual é oriundo, mas o
ilumina, conferindo à racionalidade toda informação que dela escapa por conta das
regras que em seu plano são vigentes. Assim, o fantástico nada mais é do que uma
continuação, um além-razão da própria realidade que nela mesma se inicia para poder
transcendê-la, criando, dessa forma, a imagem do movimento cíclico, na qual não
haveria mais começo ou fim, mas as dimensões (real e imaginário) formando um todo
que se complementa por sua própria diferença.
Referências bibliográficas
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GENETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. F.C. Martins. Lisboa: Vega, 1995.
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TARCHETTI, I.U. Le leggende del castello nero. In.: ____. Racconti fantastatici.
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