i. as fontes histÓricas dos fragmentos´ · aprender a filosofar é diferente de estudar ... como...
Post on 20-Jan-2019
213 Views
Preview:
TRANSCRIPT
1
I. AS FONTES HISTÓRICAS DOS FRAGMENTOS´
Aula de Introdução à História da Filosofia
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
UnB – Fil
2017.1
I.1. Do modo de nos achegarmos aos gregos
Em busca do princípio da história da filosofia nos achegamos à filosofia grega.
Para que este achegar se torne, porém, de fato, uma introdução, isto é, um caminho
que nos leve para dentro, para o imo, o íntimo, da filosofia grega, é preciso filosofarmos.
Não outro modo de nos introduzirmos na filosofia a não ser filosofando. “Só a filosofia
é começo dela própria; só ela é medida dela mesma; só ela é acesso a ela própria; por
fim, só ela pode se revelar a si própria. Nada de fora dela pode nela pretender introduzir,
ou explicá-la, ou justificá-la”1. Por conseguinte, para que aconteça uma real introdução
à história da filosofia, é preciso que nos relacionemos com a filosofia grega não com o
mero interesse de adquirir conhecimentos historiográficos sobre ela, mas com o
interesse de aprender a pensar. Os conhecimentos historiográficos que adquirirmos
sobre a história da filosofia serão de pouco valor se não formos além deles, isto é, se
não fizermos do nosso estudo da filosofia um empenho de aprendermos a pensar.
Assim, em vez de conhecer sobre a filosofia dos gregos, queremos pensar em diálogo
com o pensamento destes pensadores, melhor, buscamos pensar aquilo de que trata
este pensamento, a coisa que está em causa neste pensamento deles. Em vez de tomar
a filosofia grega como uma realidade do passado, queremos tomar a filosofia grega
como uma oportunidade vigente para assumirmos a possibilidade de aprender a pensar
1 Fogel, Gilvan. Da solidão perfeita: escritos de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 53-54.
2
hoje, no nosso presente, em resposta à interpelação que nos chega desde o futuro. É
preciso, pois, que agarremos esta possibilidade e nos deixemos formar por ela, até que
esta possibilidade se nos torne uma necessidade de nossa liberdade.
Estudar para conhecer sobre a filosofia é, pois, diferente de estudar para
aprender a pensar, a filosofar. Quem estuda para conhecer sobre a filosofia busca mais
informações para saber mais, para poder mais, para assegurar-se mais. Quem estudo
para aprender a pensar busca esvaziar-se mais e desaprender mais para arriscar-se mais
a ser mais. Quem estuda para conhecer sobre a filosofia quer aumentar o repertório de
informações e o receituário de técnicas para tratar de problemas, para se tornar mais
eficiente em dar respostas. Quem estuda para aprender a pensar, busca desprender-se
do pretensamente sabido para, no não poder e no não saber, aumentar as possibilidades
de viver e de morrer.
Aprender a filosofar é diferente de estudar filosofia. Pode-se estudar filosofia e
não aprender a filosofar. Pode-se conhecer muitas coisas sobre o que os filósofos
disseram, sem que se aprenda a pensar o dito e o não dito de suas falas, o pensado e o
impensado de seus discursos. O estudo da filosofia é necessário. Mas não é suficiente.
É preciso, mais, a aprendizagem do filosofar:
Muitas são as diferenças entre a atitude de aprender
e a atitude de estudar. Quem vai estudar quer mais
conhecimentos e informações para saber mais, para poder
mais, para assegurar-se mais. Quem vai aprender quer
esvaziar-se mais e desaprender mais para arriscar mais a ser
mais. Se não apostar a vida, não se aprende nada. Quando
se estuda, cresce o receituário, isto é, o repertório das
receitas; aumentam, em consequência, as possibilidades de
fazer. Quando se aprende, crescem as possibilidades de ser
e realizar-se; aumentam, em conseqüência, as possibilidades
de viver e de morrer”2.
2 Leão, Emmanuel Carneiro, “A história na filosofia grega”, in: Scintilla (Revista de Filosofia e Mística Medieval), n. 1, ano I, p. 32.
3
Como dizia Wittgenstein3, “a filosofia não é uma doutrina. A filosofia é uma
atividade”. É a ação do próprio pensar. Filosofia não é teoria nem doutrina, é realização,
é a atividade de aprender e ensinar a pensar. O pensar, por sua vez, é devotado ao
questionar.
Pôr perguntas; perguntas não são idéias casuais;
perguntas também não são os hoje usuais ‘problemas’, que
‘a gente’ apanha do ouvir dizer e do ter lido e decora com o
gesto aparente de profundidade de pensamento. Perguntas
crescem do confronto com as ‘coisas’. E coisas só estão aí,
onde existem olhos.
....
Poucos são experientes o bastante na diferença
entre um objeto de erudição e uma coisa pensada4 .
Todo aparente cabedal de saber da filosofia esconde na sua aparente riqueza a
pobreza do questionamento. Todo o conteúdo de conhecimento filosófico é um vestígio
de um movimento de questionamento, isto é, de busca, de interrogação, de
investigação. Esta investigação conduz, no entanto, ao “sei que nada sei” socrático. No
não-saber é que se acende a centelha do desejo de pensar. “O pensador em tudo e,
sobretudo, vive o não saber. Pois pensar não é saber. É não saber. Quando se pensa não
se pretende saber, e quando se pretende saber, não se pensa”5. Assim, filosofia não
produção de conhecimento, não é ciência, é exercício de pensamento. Enquanto
pensamento, ela não vive no elemento do saber, mas sim do não saber.
Filosofia é filosofar. Para além de uma mera repetição vazia, que marca passo no
mesmo lugar, isto constitui um aceno para um movimento, um engajamento, uma ação
que provém do âmago do ser humano mesmo e que lhe requer todas as forças para
poder ser realizado: o movimento do perguntar, da busca investigadora do sentido do
3 Tratado Lógico-Filosófico, 5217. 4 Heidegger, M. Da experiência do pensar. 5 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega, uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 20.
4
ser de tudo aquilo que é. Filosofia é filosofar e o filosofar é, principalmente, perguntar.
O perguntar, porém, é a devoção do pensar. No devotar-se em que se engaja o
perguntar filosófico, o todo do ente é trazido para junto da pergunta, no tocante ao seu
ser. Um tal perguntar mostrar-se como o mais vasto, pois na sua envergadura tudo recai,
até mesmo o nada. Mostra-se, ainda, como o mais profundo, pois, nele, somos
conduzidos ao fundo mesmo da vida, e interrogamos a universalidade do ente no
tocante ao seu fundamento, permanecendo em aberto se este fundamento é
propriamente um fundamento, ou se é mais propriamente um abismo. Um tal perguntar
mostra-se, por fim, como o mais originário, pois nele saltamos para uma nova dimensão
de liberdade, transcendendo já sempre o ente para estar junto do ser.
Filosofia, antes de ser doutrina, isto é, apresentação conceitual, temática ou
sistemática de um saber, é movimento. A doutrina, a “teoria”, é sua face externa,
“exotérica”, portanto, uma sua máscara, o movimento do pensar, ou seja, do buscar, do
interrogar, do investigar, é sua face íntima e verdadeira, “esotérica”. Como tal, filosofia
é uma possibilidade eminentemente humana. Quiçá, uma possibilidade radical da
autonomia humana. Filosofia é um estar a caminho, na busca interrogante da
investigação. Nela, nenhum conteúdo importa por si mesmo, mas só importa, à medida
que revela um movimento, que consiste num único e intrépido empenho de
desvelamento, de ausculta, de sondagem, de busca do sentido do ser de tudo aquilo
que é. Deste modo, a filosofia se mostra não como doutrina, mas como um engajamento
humano de ir a fundo, isto é, de ir ao fundo, ao essencial e ao originário da vida mesma.
Neste sentido, o filósofo, como nos alerta Nietzsche, é sempre, de alguma maneira, um
burro trágico, por sucumbir, isto é, ir ao fundo da vida, sob o peso de um
questionamento que ele não pode suportar, nem pode lançar fora. Deste sucumbir, isto
é, deste inevitável ir ao fundo sob o peso da pergunta ou das perguntas radicais, parece
nos falar também Schelling, quando diz:
Pois aquele que se quer colocar no ponto
instaurador da filosofia verdadeiramente livre deve
abandonar até mesmo Deus. Isso aqui significa: aquele que
quer conservá-lo deve perdê-lo e quem se despojar haverá
de encontrá-lo. Somente aquele que chegou ao fundo de si
5
mesmo e conheceu toda a profundidade da vida, que já tudo
abandonou e foi ele mesmo por todos abandonado, para
quem tudo naufragou e que se viu sozinho com o infinito, foi
capaz do grande passo, que Platão já comparou com a
morte6.
É preciso, pois, superar, para dizer com a terminologia de Kant, o “conceito de
escola” de filosofia, para alcançarmos o seu “conceito de mundo”. Mundo, aqui, não
tem um sentido cosmológico, mas sim um sentido existenciário e, por isto, existencial.
Aqui, mundo diz aquela totalidade de sentido em que o ser humano vive e convive, a
partir do qual ele se compreende a si mesmo e se põe em relação com todos os entes.
Filosofia, aqui, seria um modo, quiçá um modo radical e privilegiado, de ser-no-mundo,
de estar em relação com tudo e com todos, com a totalidade do ente como tal. Com
outras palavras, filosofia seria um modo de fazer e sofrer a experiência da existência,
um modo de tomar parte no jogo da vida.
Talvez seja nesta mesma esteira de um “conceito de mundo” da filosofia, e não
de um “conceito de escola”, que Novalis definira a filosofia como “uma saudade de estar
em casa em toda a parte”: “A filosofia é propriamente uma saudade da pátria, um
impulso para se estar por toda a parte em casa”7. A filosofia fala da busca do humano
pela realização de sua possibilidade mais própria. É o anseio por encontrar o seu lugar,
o seu torrão natal. É que o humano já sempre se encontra, de algum modo, des-locado
de sua própria essência. É um ser ex-cêntrico e estranho, um estrangeiro, um exilado. E
a filosofia é uma saudade: vigora como a dor pelo lar perdido (Heimweh), como um
impulso (Trieb) por estar em toda a parte em casa. Enquanto vive, o ser humano está
sempre em busca do Todo. Ele anseia por dar unidade à sua existência. Ele quer ser um
todo em si mesmo e quer ser um com todas as coisas. Não lhe basta ser uma parte, um
pedaço, um número. A totalidade lhe solicita. Por isso, ele está sempre a caminho da
plenitude do ser. Ele é esse “estar a caminho”. Uma travessia. É nesta busca que ele se
6 Schelling, F. W. A essência da liberdade humana. 7 Novalis, apud Heidegger, M. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 6.
6
de-fine, isto é, que ele se finitiza, ou seja, que ele dá uma fisionomia singular a si mesmo
e, assim, põe-se na proximidade de todas as coisas.
Nem por isso, porém, pode-se dizer que a filosofia seja algo como “opinião”, ou
como “visão de mundo” (Weltanschauung)8, e, muito menos, algo como “ideologia”9.
Um estudo filosófico da história da filosofia não pode se contentar com os dados
historiográficos, nem se deixar prender no visgo das orientações ideológicas ou das
posições de visão de mundo (Weltanschauung). Pensar não é simplesmente tomar
posição ou manifestar oposição. Pensar é pôr em questão as posições e oposições em
suas pressuposições. Isso vale tanto para as posições e oposições de outrem, como para
as nossas próprias. Por isso, a leitura dos textos filosóficos há de ser libertadora, ou seja,
precisa libertar-nos de toda opinião e de toda resposta feita para a liberdade de pensar
aquilo que, em todos os tempos, nas obras dos pensadores, provoca o pensamento a
pensar.
8 A expressão “Weltanschauung” foi criada no interior da filosofia moderna alemã. Não há nenhuma expressão semelhante em grego e em latim. Não há algo assim como “kosmotheoria”. A palavra não existia no grego nem no latim porque a coisa que ela nomeia não existia no mundo grego nem no mundo medieval. Visão de mundo é algo que só aparece com a subjetividade e com o sistema. Visão de mundo é uma concepção global, em si unitária, sobre a estrutura, o fim, o sentido, o valor, do todo do ente, o mundo. Visão de mundo pressupõe a imagem do mundo. Visão de mundo acontece quando o mundo se torna, ele mesmo, imagem. Instalação. É na época da subjetividade e da objetividade e da representação que se apresenta, pois, o fenômeno da visão de mundo. É uma forma de convicção fundamental que, explicita ou implicitamente, guia, orienta o sujeito no seu relacionamento com mundo. É uma atitude que dá suporte e determina fundamentalmente a sua vida. É a busca de um abrigo ante a niilidade da vida, frente à falta de apoio do homem na realidade. Pela visão de mundo o homem busca abrigar-se no todo do ente, sem arriscar o questionamento do sentido do ser e sem se expor à vertigem frente ao abismo do nada. Visão de mundo é, ainda, postura, atitude, ou seja, o modo como o homem se imposta em meio aos acontecimentos da vida, da história, e se confronta com o ente no todo. Esta busca de abrigo e postura podem perder, porém, força e cadência, e, na decadência, tornar-se mero agenciamento e empreendimento ideológico. A propósito, confira-se o que diz o prof. Carneiro Leão: “Para a experiência do Pensamento originário se inverte nosso senso de amparo. Amparo, já não é ter em cima tetos, telhados, coberturas, ou possuir embaixo solo, cimento e asfalto ou dispor de correntes, trancas e trincos, é viver sem teto para a cabeça, sem nenhum solo para os pés, sem nenhum esteio para as mãos. É o sentido grego que antecede a passagem do evangelho: ‘As raposas têm covas e as aves do céu têm ninhos, mas o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça’ (Mt 8, 20)” (Filosofia Grega, uma introdução, p. 18). 9 Ideologia é a defesa de um sistema econômico-político de produção. Ela é a defesa desse sistema através de princípios de realização humana. A ideologia geralmente se planta nos conhecimentos de sociologia e psicologia social. Os fenômenos sociais têm um processo de encaminhamento a respeito de sua origem, finalidade, e de sua presença. A ideologia é a justificativa teórica desse sistema sócio econômico de produção. É um procedimento operativo e técnico, por isso a ideologia é a técnica dos fenômenos socioeconômicos. Determina a sua origem, seu alcance, sua influência, o alcance de seu poder político. A ideologia trata sempre do que deve ser “o que é”. Ela tem a pretensão de dizer como deve ser “o que é”.
7
Não se pode estudar filosoficamente a história da filosofia renunciando ao
empenho de pensar para além de todo cálculo historiográfico e de toda opinião de visão
de mundo. Estudar filosoficamente a história da filosofia requer ler as obras de uma
maneira libertadora e criadora, ou seja, no intuito de aprender a pensar, ou seja, de
aprender a questionar as questões fundamentais que solicitam o pensamento de todos
os tempos e que fundam a necessidade da filosofia na história. Ora, se considerarmos
que a leitura das obras da tradição histórica da filosofia são oportunidades para
aprendermos a pensar, a filosofar, então a resposta plausível pode ser: não estudamos
os gregos, nem qualquer outro pensador da história, para pensar o que eles pensaram,
para repetir em outra língua o que eles disseram, os problemas que colocaram, as
respostas que deram. Estudamos os gregos para pensar, com o que eles pensaram,
novos caminhos de pensamento. Só assim é que nos tornamos contemporâneos a eles
e, ao mesmo, não alienados de nós mesmos.
Uma leitura filosófica das obras da história da filosofia ultrapassa a objetividade
historiográfica e a subjetividade ideológica. É que qualquer ideologia não pensa: é cega
para si mesma, opaca para a sua origem, impermeável ao questionamento que põe em
questão os limites de suas próprias possibilidades e a firmeza de suas pressuposições e
sustentações. Fazer uma leitura filosófica das obras da história da filosofia é pôr em
movimento a própria atividade, o próprio exercício de pensar, que, aliás, implode os
limites ideológicos inclusive das próprias obras da tradição:
Pois, toda obra criadora, caso seja realmente criadora, isto é, uma obra que nos liberte a capacidade de pensar, transcende sua própria filosofia, ultrapassa seus próprios parâmetros, remetendo-nos para fora e para além da posição fundamental em que ela mesma se planta. O único sentido de uma obra filosófica é precisamente rasgar novos horizontes, é desencadear novos impulsos, é instaurar novo princípio em que os recursos, os caminhos e padrões da obra se apresentem superados e insuficientes, se mostrem exauridos e ultrapassados pelo novo nascimento histórico. Instituindo novos parâmetros de questionamento, uma obra de pensamento cria novas regras de leitura. 10
10 Leão, E. C. A história na filosofia grega. In: “Scintilla. Revista de Filosofia e Mística Medieval” (FAE,
Instituto São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval). Vol. I, n. 1, 2004, p. 25-26. 17
HEIDEGGER, M. O que é isto – a filosofia? São Paulo-SP: Duas Cidades, 1978, p. 22.
8
O estudo filosófico, que ultrapassa o estudo historiográfico e ideológico, da
história da filosofia é essencialmente necessário para a própria filosofia. Não há filosofia
sem ancestralidade. Sobretudo em um tempo em que o pensamento se vê interpelado
a ultrapassar o que houve até agora e a fundar as possibilidades de outro início,
necessária se faz uma apropriação produtiva da tradição. Esta apropriação produtiva da
tradição requer uma destruição fenomenológica do que ela nos legou. Destruir não é,
neste contexto, aniquilar. Pelo contrário, destruir é desentulhar o legado da tradição,
abrindo espaço para as suas fontes, para o seu originário. O retorno destrutivo ao
passado é uma redução, ou seja, uma recondução às suas fontes, às suas proveniências,
aos seus pressupostos. É uma introdução, no sentido de ir para dentro da profundidade
de sua proveniência, no empenho de ler no dito o seu não-dito, de inteligir no seu
pensado, o impensado. Num relacionamento assim com a tradição, transforma-se o seu
significado para a nossa existência histórica. “A tradição não nos entrega à prisão do
passado e irrevogável. Transmitir, délivrer (fr.), é um libertar para a liberdade do diálogo
com o que foi e continua sendo...”17. É nesta atitude de diálogo com o que foi e que
continua vigente em nosso presente, nos antecipando em todos os nossos esforços de
fundar o porvir, que nos aproximaremos da filosofia grega. Esta atitude pode nos dispor
a descobrir no cruzamento de antigos caminhos, novas encruzilhadas de ser e não ser se
dando no contínuo vir a ser de nossa história, isto é, de nossa destinação.
Tudo o que dissemos até agora deve nos ajudar a interrogar a posição metafísica
de fundo da filosofia grega. Esta posição metafísica de fundo se articula de modo
quádruplo: pelo modo como se projeta o ser do ente, ou seja, sua entidade; pelo modo
como se delimita a essência da verdade do ente; pelo modo como o homem é homem
e se sabe a si mesmo no relacionamento de ser e pensar com o ser do ente no seu todo;
e, enfim, pelo modo como o homem, no exercício de sua responsabilidade de ser, recebe
e dá a medida à verdade do ente enquanto tal e no seu todo. Com outras palavras, em
nosso estudo da história da filosofia grega vamos ficar de olho, sobretudo, na “posição
metafísica de fundo” que vai emergindo através das diversas posições singulares
fundamentais dos pensadores que tomaremos em consideração. Isto significa estudar o
“ontológico” do pensamento grego. Com o termo “ontológico” queremos indicar
determinado sentido do ser, que age, no fundo do ente no seu todo, constituindo os
9
gonzos principais das ramificações na estruturação de uma época. Esses gonzos
principais se expressam nos chamados conceitos ou categorias de fundo desta época.
Por isso os conceitos fundamentais, que emergem no exercício de pensar dos
pensadores medievais nos servirão de fio condutor para compreendermos as suas
posições singulares e, a partir daí, no diálogo do pensamento, a posição metafísica de
fundo que caracteriza a filosofia grega.
I.2. O TEMPO-EIXO E O DESPERTAR DO PENSAMENTO NA FILOSOFIA GREGA
No homem, hominização e humanização se condicionam, assim como evolução
e desenvolvimento, natureza e cultura. Isso tudo, porém, se dá graças à dinâmica de
transformação do ter em ser.
No homem, ter é conquista de ser. Ele só se realiza,
subordinando tudo, que tem, ao ser que é. O ter, o homem
está recebendo, ao nascer continuamente, e está perdendo,
ao morrer constantemente no curso de sua vida. O humano
de todo homem vai emergindo, sem cessar, do processo
desta realização insistente numa multiplicidade de
transformações do ter em ser.
Não se dá hominização sem humanização. Pois
hominização se instala num trabalho sem fim, em que ter e
ser perfazem e constituem um movimento não apenas
único, como sobretudo inteiriço. Isto significa: no homem,
todo ter pertence a uma dinâmica de integração com o ser
que nunca se repete, mas sempre compete, com
originalidade, em tudo, incorporando mudanças e
promovendo inovações11.
Desde os primórdios de sua história o homem foi se tornando humano, isto é,
tornando-se o que ele é, em relação com o que ele não é: primeiro com os animais,
11 Leão, E. C. Filosofia contemporânea. Teresópolis: Daimon, 2013, p. 243.
10
depois, com as plantas e, por fim, com as pedras. Em seus relacionamentos com os
animais e com as plantas o homem experimentou a sua primeira humanização: a
evolução natural-orgânica desembocou no desenvolvimento cultural, com a descoberta
do fogo e a invenção de ferramentas, a formação da linguagem, a organização em
grupos e em comunidades, a instituição de tabus, a criação de mitos.
Em seus relacionamentos com a pedra, o homem chegou às altas culturas:
cultuou os mortos, inventou a escrita, descobriu as leis, as cidades, o deus e os deuses12,
a tradição, a história. Com a descoberta da história, experimentou e concebeu a
tradição, a transformação, o porvir, a passagem em épocas. Erguendo pedras, buscava
erigir a si mesmo. Menires, dolmens, estelas, obeliscos, pirâmides (Egito, México, Peru),
zigurates, estupas, pilares, colunas, templos, testemunham esta busca. O homem
buscava tornar-se ereto e reto no mundo, bem assentado na terra e elevado para o céu.
A cidade e o Estado nascem de todos estes esforços. Neste movimento encontraram-se
povos e culturas aos quais estão relacionados nomes como Uruk, Ur, sumérios, acádios,
assírios, babilônios, fenícios, hititas, egípcios, Creta, Micenas. No extremo oriente
asiático, destacam-se a Índia e a China. Nesta era de sua humanização, o homem
aprendeu a se beneficiar dos grandes rios (Nilo, Tigre e Eufrates), chegou à regulação
das correntes fluviais, à criação de cidades, à centralização do poder, à burocratização;
à invenção da escrita (sumérios: c. 3300 a.C; egípcios: c. 3000 a.C; china: c. 2000 a.C;
fenícia: alfabeto – c.1000 a.C). Surgiu a classe dos escribas, que eram funcionários da
administração estatal e, ao mesmo tempo, a aristocracia intelectual. De início, formam-
se povos com unidade de língua, cultura e mitos. Mais tarde aparecem impérios: o
assírio e o egípcio, o hindu e o chinês. O homem passa a viver a partir da sua consciência:
exercita a memória e a racionalização. Despontam-se as figuras de soberanos e sábios.
O homem tem consciência da fugacidade das coisas e dele mesmo e anseia pela
12 Já entre negros da África, polinésios e ameríndios surge, aqui e ali, a ideia de um deus supremo, criador do mundo e/ou civilizador. Os espíritos-vigias ligados a monumentos de pedras se transformam em deuses ligados aos templos. Entre os deuses, sobressaem, aqui e ali, uma divindade soberana. “Desde o século IX até o VI encontramos entre os povos orientais, os primeiros que atingem um conhecimento matemático e astronômico, um forte movimento que levou à ideia fundamental de uma causa espiritual unitária. Formas principais: o monoteísmo solar dos Egípcios, a astronomia e a astrologia babilônica, com cosmologias naturalistas, que os caldeus puderam desenvolver baseados na velha cultura dos sumérios e acádios, o monoteísmo ético dos hebreus e, dentro da cultura indo-germânica, as doutrinas teológicas dos iranianos (persas) e industanos” (Dilthey. História da filosofia. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, s/d, p. 12).
11
imortalidade. Escritos como o “Diálogo do cansado da vida com sua Alma” (Egito); e a
epopeia de “Gilgamesch” (Babilônia) traduzem algo das tradições sapienciais destas
culturas.
As ideias primitivas que nessas etapas é possível
detectar constituem a primeira condição imprescindível de
todo o desenvolvimento ulterior do espírito humano. Entre
tais ideias apresentam-se, por toda a parte, estas: o culto dos
mortos, o animismo, a adoração das potências que
condicionam o homem, vinculada especialmente ao
espetáculo e à contemplação dos astros, a consciência de
responsabilidade contida no direito e o prestígio divino dos
costumes, do direito e das instituições13.
De uma grande crise desta era histórica das altas culturas e da ruptura com seu
modo de ser, irromperam as culturas do novo tempo, aquele que Karl Jaspers chamou
de tempo-eixo (entre os séculos VIII e V a.C.)14. Se as culturas do Egito e da Babilônia
representaram a configuração mais grandiosa das altas culturas dos primórdios, as
culturas que emergem da crise do tempo-eixo abriram novas possibilidades históricas
para o futuro: chineses, hindus, iranianos, judeus e gregos tiveram este papel15.
Eis, pois, que soprou sobre a face da terra um novo vento, que fez despertar o
espírito dos povos. Entre estes, as destinações de três povos possibilitaram as eras
vindouras no oriente e no ocidente: os hindus e os chineses criaram as condições do
modo de ser oriental; os gregos, as do modo de ser ocidental.
Este tempo de crise e de ruptura, mas, ao mesmo tempo, de irrupção do novo
entre os povos, foi experienciado como um extraordinário despertar do espírito
13 Dilthey, Wilhelm. História da filosofia. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, s/d, p. 11. 14 Jaspers, Karl. Origen y meta de la historia. Madrid: 1968, p. 20-21. 15 Karl Jaspers anota que Egito e Babilônia não conheceram a crise e, por isso, também não conheceram a transformação. Continuaram sendo o que eram, em sua configuração, que incluía a ordenação da vida social e estatal, a arquitetura e a pintura, a religião mágica. A cultura babilônica desembocou e sumiu na cultura persa primeiramente, e, depois, na cultura sassânida e no islamismo. Já a cultura egípcia foi absorvida no mundo greco-helenista primeiramente, e, depois, na cultura romana e no cristianismo. Foi contrapondo-se a estas culturas que judeus e gregos configuraram suas próprias identidades, tão importantes para o mundo ocidental.
12
humano. Foi como que o irromper de uma nova humanização do homem: uma nova
experiência e compreensão de ser. Karl Jaspers assim descreve este despertar:
A novidade desta época constitui no fato de que nos
três mundos o homem se eleva à consciência da totalidade
do ser, de si mesmo e de seus limites. Sente a terribilidade
do mundo e a própria impotência. Formula perguntas
radicais para si próprio. Aspira, desde o abismo, à libertação
e à salvação; enquanto toma consciência de seus limites,
propõe-se a si mesmo as finalidades mais altas. E, enfim,
chega a experimentar o incondicionado, tanto na
profundidade do próprio ser, como na claridade da
transcendência. Isto resulta da reflexão. Um dia a
consciência se faz consciente de si mesma, o pensamento se
volta para o pensamento e o faz seu objeto. Produzem-se
combates espirituais pelo intento de convencer os demais
mediante reflexões, raciocínios, experiências. Ensaiam-se as
posições mais contraditórias. A discussão. A formação de
partidos, a divisão do espiritual, cujas partes, não obstante,
relacionam-se entre si na forma de contraposição, geram
inquietude e movimento até lidar com o caos espiritual.
Nesta época constituem-se as categorias com as quais
pensamos, e se iniciam as religiões mundiais das quais vivem
os homens ainda hoje. Em todos os sentidos, os homens se
põem de pé no universal. Em virtude deste processo, as
concepções, os costumes, as situações são submetidas a
exame e à prova, postas em questão, dissolvidas. Tudo cai no
vórtice. O que da substância transmitida tradicionalmente
estava vivo até então na realidade foi esclarecido em suas
manifestações e de modo transmudado16.
16
13
Esse vento trouxe novo alento à humanidade. Na China surgem os sábios
Confúcio e Lao-Tsé, meditam Mo-Ti e Chuang-Tsé. Na Índia surgem os Upanischades e
vive Sidarta Gautama, o Buda. No oriente-médio, mais precisamente na mesopotâmia
(Irã), Zaratustra ensina a sua doutrina do combate entre o bem e o mal. Na palestina,
em Israel, aparecem os profetas, desde Elias e Eliseu, seguidos por Isaías e Jeremias e
outros profetas, até Ageu e Zacarias (c. 515)17. E, na Grécia, entre os séculos VII e V,
surgiram aqueles que chamaremos de os pensadores originários, que antecederam aos
filósofos decisivos para o ocidente, Sócrates, Platão e Aristóteles.
I.2.1. Três figuras do espírito
Profeta, sábio e pensador são figuras diferentes da vida espiritual do homem.
I.2.1.1. O profeta (vidente)
17 Entre os profetas podemos lembrar, em tempos mais arcaicos, as figuras de Abraão e a de Moisés; em tempos mais recentes, a figura de Maomé. Assim como Moisés foi fundamental para a constituição de Israel, Maomé foi fundamental para a fundação do Islamismo.
15
Profeta Oseias – escultura em Bamberg 1230
O profeta faz a experiência do espírito divino como aquele que lhe sobrevém,
que faz a sua vida dar um giro, uma guinada, que o avassala, e que o elege para ser seu
porta-voz. Ele é um vidente: na vigência do presente percebe a vigência do ausente, isto
é, do passado e do futuro, ao mesmo tempo. O profeta segue um chamado, que se dirige
a ele, mas que, não raro, vai contra ele e contra o seu povo. Ele é chamado a profetizar
contra seu povo e contra o seu mundo. A estes ele aponta e faz notar as suas errâncias
e as suas iniquidades. Sua palavra é clara, ardente e apaixonada, quer em denunciar as
injustiças, quer em anunciar a salvação que vem de Deus – um Deus transcendente,
criador do mundo e senhor da história. A experiência profética do espírito é a do êxtase:
o homem é lançado para fora de si mesmo18. Mas, desde o êxtase, ele é conduzido
sempre de novo a se envolver com a destinação histórica dos homens.
O espírito profético é marcado tanto pela solidão como pelo comprometimento
com a história. A solidão marca, por exemplo, as sagas bíblicas de Moisés e de Elias, dois
dos maiores profetas de Israel. Por graça dessa solidão é que Moisés pôde ser o
intermediador entre o Deus do povo e o povo de Deus. É nesta solidão que ele recebe a
revelação do “Eu Sou Aquele que Sou”. (Ex. 3, 14). É desde essa solidão que ele vai ao
encontro do sofrimento do povo escravo e o conduz para fora da terra da escravidão. É
nesta solidão que ele tem de suportar as hesitações e os vacilo do povo no deserto. É
desde esta solidão que ele admoesta o povo e o chama de volta para o seu Deus. É desde
18 Filon de Alexandria (nascido entre os anos 20 e 10 a. C e morto cerca do ano 41 d.C.) foi o primeiro judeu a inserir a mensagem bíblica e a experiência profética do espírito em diálogo com a filosofia grega. No êxtase místico, o homem se esvazia de si mesmo, se esvazia mesmo de seu intelecto ou pensamento (nous), para receber em si a plenitude do espírito divino (pneuma). Enquanto, para o grego, a experiência máxima do espírito era o intelecto (nous), para Filon, esta experiência é a de ser arrebatado pelo espírito divino, como no caso dos profetas. Se o grego experimenta o espírito em si mesmo como intelecto (nous), considerado o divino no homem (Aristóteles), o profeta experimenta o espírito (pneuma) como vigor divino que inspira. Na compreensão grega, o espírito (nous) está na posse do homem. Na compreensão profética, o homem é que está na posse do espírito (pneuma) e só estando nesta posse do espírito é que ele é plenamente homem, consumando a sua natureza transcendente. Na Idade Média, Moisés Maimônides, o maior dos pensadores judeus medievais, dirá que o verdadeiro filósofo é o profeta. No entanto, na modernidade, outro judeu, Spinoza, irá considerar a profecia algo de nível inferior ao conhecimento intelectivo, pois pertencente ao âmbito do conhecimento imaginativo.
16
a solidão que ele recebe os envios e os mandatos de Deus para o seu povo. Marc Chagall
pintou muito bem este encargo do profeta:
Por volta do ano 2000, o filósofo Paul Ricoeur deu uma série de entrevistas à
televisão francesa. O conjunto das entrevistas se compilou num livrinho chamado
17
“L’unique et le singulier” (O único e o singular). A primeira entrevista se intitula “Deus
sem nome...”. Os três pontos que seguem ao título apelam para um complemento. Este
é: “inumeráveis nomes divinos”. Ricoeur diz: “entre o inominável e a profusão dos
nomes divinos estão a religião, a filosofia, a crítica da religião por parte da filosofia, a
crítica da filosofia por parte da religião”19. Ele se lembra como Isaías nomeia o Deus
inominável que se revelou a Moisés com o nome que mais esconde que descobre “Eu
Sou Aquele que Sou” dizendo: “É chamado conselheiro admirável, Deus forte, Pai para
sempre, Príncipe da Paz” (Is 9, 5). E, ao lado deste testemunho bíblico, cita um
fragmento de Heráclito: “Um deus, muitos nomes. Deus é dia e noite, inverno e verão,
guerra e paz, saciedade e fome, mas muda como o fogo quando misturado a diversas
plantas aromáticas: toma o nome segundo o perfume destas”. Depois disso, Ricoeur
evoca uma imagem. Trata-se de um oratório de Schönberg, intitulado “Moisés e Aarão”,
na qual, segundo ele, encontra-se a dialética entre o inominável e os múltiplos deuses.
A passagem escolhida por Ricoeur é a do bezerro de ouro. E comenta:
Moisés sobe sobre a montanha, desaparece e se
encontra face a face com Deus, que o isola completamente
do povo. Este fato perturbou Schönberg e a sua música,
porque ele mesmo fazia a experiência de uma escritura
musical não audível pelos outros; além disso, ele era atraído
pela música popular, especialmente a húngara.
Enquanto Moisés vê Deus, mas não vê mais o povo,
Aarão vê o povo, mas não vê mais Deus. Neste ponto se tem
o bezerro de ouro.
Do espírito profético o ocidente herdou o ímpeto da revolução, do rompimento
e da irrupção com o mundo dado, a busca de novas arrancadas históricas, na direção do
futuro. Um traço profético se inseriu também na filosofia. Por virtude e força deste traço
profético, a filosofia aparece como um movimento de pensamento que vai contra o seu
tempo:
19 Ricoeur, Paul; Blattchen, Edmond. L’único e il singolare – intervista.
18
Pois bem, nosso tempo ou nossa época precisa ser
sempre nosso grande adversário, nosso grande inimigo. É ele
(ou ela) que nos constrange, que nos coage, que nos oprime,
sim, mas que também nos redime. Para isso é preciso
conquistar nosso tempo, nossa época, ou seja, o que é nosso,
o que nos é dado. Conquistar, porém, é ir ao encontro. E uma
boa maneira de ir-se ao encontro de algo é também,
inicialmente, ir contra este algo. Ao ir contra uma época, um
tempo – seus valores, suas significações, sua cultura – este
tempo começa a nos revelar suas vísceras, seu “de onde” e
seu “para onde”. Ou seja, assim, desse modo, este tempo
começa a perder para nós sua positividade. E é isso, só isso,
que se quer ao se querer conquistar um tempo, uma época:
transcender, superar seu caráter de “coisa”, de dado, de
positividade e então ascender à sua dinâmica, à sua gênese,
à sua vida e devir, que é sua força de proveniência e, então,
a evidência de seu direito presente e de seu direito de
cunhagem do futuro. É isto, a saber, tal conquista, a
participação num devir histórico, isto é, vital20.
Como o profeta do Antigo Testamento, é o filósofo
uma espécie de crítico e sátiro do momento, do seu
momento. Por isso, no livro de Amós, cap. 7, versículo 14, é
narrado como Jahvé arrancou Amós de seu cotidiano, de seu
dia-a-dia, que era o idílico pastoreio de cabras ou de ovelhas
e o cuidar de suas figueiras, e lhe disse: “Amós, vá e seja
profeta contra o meu povo Israel”. É como se dissesse: vá e,
para redimir meu povo, desestabilize o que nele perigosa e
perversamente está estabilizado, sedimentado como o calo
do hábito e do vício, assim intoxicando-o e pervertendo-o,
isto é, desviando-o do caminho que precisa ser seu próprio
destino e sua necessidade. Vá e desperte meu povo dele
20 Fogel, Gilvan. Que é filosofia? Filosofia como exercício de finitude. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2009, p. 11-12.
19
mesmo, sacuda-o, instigue-o, açule-o, faça-o sair de um sono
letárgico21.
Essa contraposição ao próprio tempo não é motivada por saudosismo do
passado nem por impulso progressista, futurista. Cada época tem sua grandeza e sua
miséria. Mas a época em que o homem vive, em virtude de sua inserção no presente,
lhe é dada como uma tarefa, como desafio de conquista, de apropriação criativa. Mas
para conquistar o seu tempo, o homem precisa perdê-lo. É preciso perdê-lo como dado
de fato, reificado, naturalizado, para conquistá-lo como tarefa, como criação, na
resposta ao apelo do futuro, do porvir. A filosofia impõe, assim, uma experiência de
“orfandade, solidão, pensamento, criação”22. A filosofia requer um distanciamento do
próprio mundo, do próprio tempo, para poder conquistá-lo.
É graças a isso, a este mundo, a esta herança, que
sou e serei isso que sou e que hei de ser. Para que o viver, o
existir, porém, aconteça de maneira maiúscula e genuína,
isto é, transformadora, criadora, é preciso perder este
mundo dado, quer dizer, para tal impõe-se, de algum modo,
distanciar-se dele para, paradoxalmente, dele se aproximar
e, assim, ganhá-lo, porém desde seu enraizamento ou
gênese23.
Em virtude deste distanciamento, a filosofia adquire um caráter inatual e
impopular. O distanciamento acontece, porque o filósofo não se contenta com a
tradição, com a herança, o legado que recebeu tal como lhe aparece no seu hoje, mas
quer regredir à origem, à gênese, ao princípio desta própria tradição histórica. O filósofo,
fica, assim, à margem de seu tempo. Mas é deste lugar à margem, à parte, que ele olha
para o seu tempo com estranheza e, por isso mesmo, de maneira questionadora. Ele sai
da correnteza, da onda, do arrastão de seu tempo, da publicidade, do “a gente”, que é
“todo mundo” e “ninguém”; vem para fora do que está em voga, fica à margem, para,
dali perceber com novos olhos o seu mundo familiar, o mundo de seu tempo.
21 Idem, p. 28. 22 Idem, p. 16. 23 Idem, ibidem.
20
O imperativo da distância, a necessidade do
afastamento do mundo e das coisas faz com que filosofia e
filósofo carreguem nas tripas o estigma da inatualidade e da
impopularidade. Porque conquistada desde o afastamento,
a distância e a solidão, por isso, a verdadeira filosofia não é
coisa de sucesso, de grande e unânime aceitação. Não é
coisa de onda, de corrente, de arrastão. Enfim, nada tem a
ver com o reconhecimento, o beneplácito ou a bênção da
opinião pública e da moda. Sempre que uma filosofia virar
onda, corrente, moda, alguma coisa está errada, fora dos
gonzos24.
Este distanciamento, no entanto, é conjugado com a responsabilidade histórica,
com o compromisso. “A filosofia é coisa inatual e impopular por radical, por absoluto
compromisso com a realidade, isto é, com o mundo, com as coisas e até com o próximo
e concidadão”25. O filósofo não pode ser o que ele é sem um comprometimento com o
comprometimento histórico. Numa carta de 14 de abril de 1888, escrita desde Turim a
seu amigo, músico e musicólogo, Carl Fuchs, Nietzsche caracteriza este modo paradoxal
de responsabilização histórica do filósofo. Ele fala do silêncio da cidade, da proximidade
dos Alpes, das montanhas e geleiras, e diz: “para cá arrastei toda a minha cangalha de
preocupações e de filosofia”. Depois de lembrar-se de sua casa de verão em Sils-Maria,
ele comenta: “minha paisagem, tão distante, tão apartada da vida, tão metafísica...”. E
conclui:
Como tudo se distancia! Como tudo se afasta! Como
a vida se faz silenciosa, calada! Ao redor de mim, nenhum
homem que me conheça. Minha irmã na América do Sul.
Cartas, cada vez mais raras. E ainda não sou velho! Somente
filósofo! Somente à margem, à parte! Somente
comprometidamente à parte!26
24 Idem, p. 23-24. 25 Idem, p. 24. 26 Apud Fogel, G. Op. Cit., p. 26.
21
Desta solidão comprometida sabem, num saber de experiência feito, todos os
grandes filósofos da história. Dela sabia Descartes. Nietzsche também. Também Hegel,
quando, em 1807, escrevia, numa carta a Zellmann, que o pensamento tem algo de
solitário, não só por se cumprir como um “diálogo” – para dizer com Platão – “áfono
consigo mesmo” (Sofista 263e), mas porque neste diálogo sempre está em jogo o
indizível. Este indizível, lembra Hanna Arendt, é o solo nutriz da filosofia27. O filósofo é
aquele que não somente se espanta com o simples, mas que faz deste espanto a sua
morada. Nesta morada, ele experimenta, na ação-recepção do pensamento, “presença
e ausência, abrigo e desabrigo, proximidade e afastamento”28. Em 1934, Heidegger
recusou um convite para ir ensinar na Universidade de Berlim. Num texto em que
explicava o motivo de sua recusa, ele evoca a experiência de solidão na sua cabana em
Todnauberg, na Floresta Negra. Ele descreve a paisagem em que a sua cabana estava
inserida, mas, logo em seguida, ele anota: “É o meu mundo de trabalho visto com os
olhos do turista ou do veranista”. E completa: “eu mesmo nunca olho a paisagem. Sinto-
lhe a transformação contínua, dia e noite, no grande ir e vir das estações”. Ele não hora
de fora a paisagem. Ele a vive a partir de um relacionamento íntimo de pertencimento.
E diz:
Tudo isso só se dá quando a existência se encontra
consigo mesma no trabalho. Somente o trabalho abre o
horizonte de realidade da montanha. O andamento do
trabalho se funde com o acontecer da paisagem. Quando, no
fundo da noite de inverno, uma tormenta de neve brame,
debatendo-se em torno do abrigo, escurece e cobre tudo, é
a hora propícia da filosofia. O questionamento tem, então,
de deixar-se fazer simples e essencial. A elaboração de cada
pensamento não pode ser senão árdua e severa. O esforço
de formar as palavras se identifica com a resistência que os
abetos oferecem de pé à tormenta29.
27 Cfr. Arendt, H. Martin Heidegger faz oitenta anos, p. 226. 28 Idem, p. 228. 29 Heidegger, M. Por que ficamos na província? In: Revista de Cultura Vozes, ano 71, Volume LXXI, maio 1977, p. 44.
22
Desde esse lugar de solidão, o pensador procura ouvir o clamor do “ser”, isto é,
a interpelação do “tempo” em sua tríplice vigência: a vigência que se dá como presença
no presente e como ausência no passado e no futuro, e a ela responder, isto é,
corresponder, em sua responsabilidade de ser e pensar30. Para o olhar filosófico, o hoje
aparece não como algo de absoluto. Aparece como inserido numa destinação histórica
(Geschichte – Geschick): entre um envio-de e um envio-para. Por isso, o olhar filosófico
está sempre se re-portando à proveniência desta destinação e ao por-vir. Para ele, o
hoje, o agora, não é o mero atual, é, antes, o instante que recolhe tanto a vigência do
que foi quanto a vigência do por-vir:
É assim que o filósofo se faz arcaico, originário,
fundamental, pois é por esta via, por este procedimento ou
por esta atitude que se faz, que se cumpre toda a dinâmica
do tempo fazendo-se tempo ou auto-gerando-se, o que
perfaz a história (acontecer, suceder, devir e não
historiografia!), quer dizer, a articulação de implicação e
pertinência da estrutura passado-presente-futuro, em
jogando o jogo de destinação de... para..., o que concretiza a
hora, o instante, que é a vida e o princípio de todo real se
realizando.31
O filósofo mora na passagem, na transitividade, pois é este o lugar primordial do
homem na terra. Na história, ele precisa desenvolver um olhar hermenêutico. Para o
olhar hermenêutico “ser, em qualquer real, em qualquer ideal, em qualquer possível,
diz sempre o vigor de uma vigência, tanto na presença, quanto na ausência” (Carneiro
Leão).
Por isso, tò mé ón – o não ser – diz a força de não-vigência, que se mete e se dá junto com a instauração de qualquer vigência, isto é, em qualquer instalação de vigência, acontece uma não-vigência, como dinâmica e força de articular transformações, de promover mudanças, de instalar progresso, de desenvolver o desenrolamento de novas possibilidades de encontro e desencontro.
Esse sentido de vigor, na vigência e não-vigência de todo ser e de toda realização, remonta na existência dos gregos a Homero.
30 Cfr. Rombach, H. Leben des Geistes, p. 26. 31 Idem, p. 25.
23
Poderíamos ler a Ilíada e a Odisseia buscando encontrar tal experiência: onde é que, na Ilíada, por exemplo, mais antiga do que a Odisseia, poderíamos encontrá-la? Implicitamente, poderemos deparar-mo-nos várias vezes com o entendimento de que o vigor da vigência, tanto na presença quando na ausência, constitui não só o ser como também o não-ser de todas as coisas que são. Há uma passagem essencial, logo no começo da Ilíada, Canto I, 67ss. Estamos com os gregos diante de Tróia. É crítica a situação, pois, há nove dias, graça no acampamento a peste enviada por Apolo. Para um grego, há aqui contradição, um impasse com um grande desafio a desvendar-se: qual é a mensagem de Apolo na peste? Se toda a campanha e expedição contra Tróia foi organizada, empreendida e realizada sob o manto e a obediência a Apolo, como ele mesmo agora impossibilita o cumprimento da missão imposta aos gregos? É esse o paradoxo que, inicialmente, os heróis gregos sentem quando começa a grassar a peste enviada por Apolo. Agamênon convoca os chefes gregos para na assembléia resolver o impasse: temos de suspender a guerra contra Tróia? Devemos levantar o cerco e voltar para a Grécia? Será essa a mensagem da peste? Pois a peste impossibilita toda a campanha. É a questão é levantada na assembléia dos chefes por Aquiles. Aquiles mesmo sugere que se consulte Calcas, o áugure da expedição. Antes de passar a palavra a Calcas, Homero nos apresenta o mais antigo registro da experiência grega do que significa interpretar (E. Carneiro Leão).
Interpretar, em grego, hermeneuein, significa trazer a mensagem do mistério. É
por isso que a palavra hermeneus remete ao nome de Hermes, o mensageiro, o
anunciador dos deuses, ou seja, aquele que atua a embaixada do destino divino, que
traz a mensagem do envio do mistério. Hermeneus é aquele que deixa ser a fala do
mistério, a sua auto-exposição, a sua abertura, que é ao mesmo tempo oclusão,
encobrimento que abriga. Assim, nos primórdios da história grega, hermeneus é, antes
de tudo, o vate, o áugure, o que traz a mensagem, o anúncio, o que dá notícia, dos envios
do mistério, do destino, dos deuses.
Vate é outro nome para áugure: o vidente que expõe a mensagem do destino. A
Ilíada, de Homero, apresenta o áugure como aquele que vê, ou melhor, que sabe, por
ter visto. Voltemos ao primeiro livro desta epopeia fundante do povo grego. No décimo
ano da guerra de Tróia, os gregos estão reunidos em assembleia de chefes de guerreiros.
Crisis, o sacerdote de Apolo, viera ao campo deles para resgatar sua filha, que tinha sido
feita prisioneira, mas é repelido e ultrajado por Agamémnon. Ele, então, invoca a
proteção do deus a quem servia como sacerdote. Apolo envia uma peste, como castigo
divino, ao acampamento dos gregos, matando muitos dos seus heróis. Aquiles convoca
24
uma assembleia, promete proteção ao áugure Kalchas (Calcas ou Calcante) contra
Agamémnon, e exorta-o a interpretar a cólera do deus. Homero apresenta Calcas
trazendo à fala em que consiste o ser de um vate, um áugure, um vidente, dizendo:
..........................................Levantou-se-lhes, porém, Calcas, filho de Testor, o mais vigoroso dos áugures, Que conhecia o que é (ta t’eonta), o que será (ta t’essomena) e o que foi antes (pro t’eonta), E que por isso conduziu as naves dos Aqueus até Troia, Pela mancia32, que lhe dá Apolo, o Brilhante (Phoibos Apollon).
A Ilíada apresenta, pois, o áugure como aquele que vê, ou melhor, que sabe, por
ter visto33. Ter visto o que? Resposta: ta t’eonta, aquelas coisas que são; ta t’essomena,
aquelas coisas que serão; e pro t’eonta, aquelas coisas que foram. O áugure é um
vidente que vê o vigente, quer dizer, tanto o presente, o que é, o que está desencoberto,
quanto o ausente, isto é, o que será e o que foi, o que está encoberto. No instante, ele
recolhe a unidade do que foi, do que é, do que será, isto é, do passado, do presente e
do futuro. Acolhe e recolhe toda a vigência: tanto a vigência do presente, quanto a
vigência do ausente, isto é, do passado e do futuro. Vigência é, de fato, tanto patência
quanto latência, a saber, tanto a patência do presente, quanto a latência do futuro e do
passado perfeito. A presença é o espaço aberto da patência em que chega e perdura o
que está sendo. A ausência é também vigência, só que na forma de latência. Passado,
presente e futuro, presença e ausência, patência e latência, se caracterizam como
diferenças de uma identidade: a da vigência do mistério de ser e sua temporalidade. É a
partir da comum referência ao mesmo (identidade), isto é, ao mistério do ser que os
diferentes, o passado, o presente e o futuro, a presença e a ausência, a patência e a
latência, se constituem. O vidente é aquele que sabe por ter visto esta reunião dos
diversos no mesmo. Ele vê no presente o futuro a partir do passado. É só por ter visto
esta unidade que ele é um vidente e só por ser um vidente é que ele é um áugure,
32 A virtude e a arte da predição. Manteúo significa dar oráculos ou respostas, vaticinar, predizer, adivinhar. Mantis é o vate, o adivinho, o profeta. Mantikós, aplicado a pessoas, significa aqueles que têm a faculdade divinatória, profética. 33 Em grego, temos o verbo eidénai é o infinitivo perfeito aoristo do verbo medial eídomai, o qual significa aparecer, ser visível. A este verbo pertence o aoristo segundo eidon, tendo visto, tendo percebido, tendo voltado os olhos para, e o perfeito oida, saber, conhecer.
25
alguém que prevê, portanto, um previdente. E por ser um previdente é que ele é um
providente: alguém que cuida da destinação histórica de uma comunidade, de um povo.
O poeta T.S. Eliot viu bem a unidade do tempo no mistério de ser. No primeiro
dos quatro quartetos, de 1943, ele introduz, como mote, duas sentenças de Heráclito.
A primeira sentença diz: “tou lógou d’éontos xynou dzoóusin hoi pollói hos idían
échontes phrónesin” – “mas enquanto o Lógos vive em con-juntura, a massa vive como
se tivesse um entendimento próprio e particular”. A segunda sentença diz: “hodós áno
káto mía kaì houté” – “caminho, para cima, para baixo, um e o mesmo”. Em consonância
com estes ditos de Heráclito está o dito poético dos primeiros versos do primeiro
quarteto de T. S. Elliot:
Time present and time passed are both Perhaps present in time future. And time Future contained in time passed. If All time is so eternally present, all Time is unredimable34.
O prof. Emmanuel Carneiro Leão retoma o episódio de Calcas da Ilíada e o relê à
luz da experiência grega da idea, como doação de ser. Vejamos a sua interpretação.
Nos versículos 68 a 72 do Canto I da Ilíada, Homero está falando da experiência grega de ser na doação da ideia. Seria interessante ver, em grego, como vige a mensagem e quais são as tensões, os conflitos e a composição que faz Homero nessa passagem. Não temos tempo para isso. Vejamos, então, a tradução, que já é uma interpretação da interpretação. Aquiles interpelou e exortou Calcas a interpretar o sentido da peste enviada por Apolo. Antes de apresentar as palavras de Calcas, Homero diz o que é Calcas. “Calcas é Testoride, filho de Téstor.” Téstor é criador dos augúrios. O áugure, com as interpretações faz a mediação entre o Olimpo e os homens. Descendente da linhagem de Téstor, Calcas tem autoridade para interpretar. É o mais vigoroso dos áugures, och aristos. Donde lhe vinha este superlativo? Porque, “tinha visto o que é, o que será, o que foi antes!” O áugure é áugure porque vê no presente tanto o passado como o futuro. “Ver” aqui, eid- em Homero é o mesmo radical de eidos e Idea de Platão. É por isso, por ver sempre no presente passado e
34 Tradução da edição brasileira: “O tempo presente e o tempo passado / estão ambos talvez presentes no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado. / Se todo o tempo é eternamente presente / todo o tempo é irredimível” (p. 199). A tradução de Carneiro Leão diz: “O tempo presente e o tempo passado / talvez estejam ambos vigentes no / tempo futuro e o tempo futuro contido / no tempo passado. Se todo o tempo / é assim externamente vigente, / todo o tempo é irredimível” (p. 151).
26
futuro, que Calcas conduzira as naves dos Aqueus até Tróia. Este poder lho conferiu uma inspiração, manteia, de Apolo, o Brilhante, Phoîbos. Brilhante é aquele, para o qual não há escuridão, nada lhe é segredo ou escondido. É dessa maneira que Homero usa, com grande maestria e habilidade, para apresentar muito mais do que mera descrição de uma ocorrência nas peripécias de uma guerra.
O áugure está sob a égide de Apolo: o vidente, sob o cuidado e a proteção do
luminoso. Ser o áugure, o vidente, do ser é a vocação ontológica de todo e qualquer
homem.
Áugure, portanto, é uma possibilidade humana, o que significa que todo homem é áugure no sentido de ter sempre a possibilidade de recolher no presente passado e futuro. Antes de ver a situação da peste dos gregos, Calcas já tinha visto e, por isso, é áugure, como se dá e acontece a existência temporal dos homens (E. Carneiro Leão).
Mas, quem é Apolo, sob cuja égide e em nome de quem fala o áugure? Apolo é
o deus da claridade da alétheia. É o irmão gêmeo de Ártemis, Filho de Zeus e de Leto.
Ártemis carrega os mesmos distintivos de Apolo: a lira e o arco. Deusa da selva, virgem
caçadora, acompanhada por ninfas. É a que concede um bom parto às mães e um bom
crescimento às meninas. Ártemis fala do mistério da physis, que tudo origina, fazendo
nascer, erguer-se, crescer e aparecer. É a phosphoros – portadora da luz (brilha com a
luz argêntea da lua – enquanto Apolo brilha com a luz dourada do sol). Pois, onde a vida
(zoé) surge e se ergue, ali, o vivente é dado à luz, vem à luz e aparece em sua grandeza.
O que vem à luz, porém, se mostra em si mesmo e em seu brilho próprio: é
phainómenon. Desoculta-se: é alétheia. Ártemis é a poética da vida. Mas é também a
poética da morte. A lira de Apolo e o arco de Ártemis são o mesmo.
Apolo é chamado o Febo (Phoibos): o luminoso, o puro, o sacro. Ele purifica os
que dele se aproximam35. Apresenta-se nu, ou melhor, des-velado. Onde se dá o des-
velamento, ali encontra-se Apolo. Sua flecha mostra o raio da luz. É o que concede
juventude. Ele é o vencedor das forças ctônicas: é quem mata o dragão Píton (Apollon
Pythios). É o deus do auto-conhecimento (gnôthi seautón: conhece-te a ti mesmo). O
deus dos oráculos, que inspira a pitonisa. O seu dizer mostra, isto é, assinala o
desvelamento e velamento do Ser. Dele, enquanto autor do oráculo de Delfos, Heráclito
35 Em Delfos estava o templo de Apolo, ao qual acorriam os peregrinos, para se purificarem e ouvirem os oráculos da pitonisa.
27
diz que: oute légei oute kryptei allà
semaínei - nem descobre nem encobre, mas mostra. Mas o que é o mostrar do oráculo?
É um acenar para o mistério: “Mostrar é um deixar ver, que, como tal, ao mesmo tempo,
vela e preserva velado. Tal mostrar é o acontecer mais próprio no reino e âmbito da
alétheia – a qual institui o paradeiro no vestíbulo do sagrado36. O templo de
Apolo celebrava a claridade da verdade do Ser, a partir da qual o homem grego se media
com o Céu e a Terra, com o divino e com sua própria mortalidade. O seu lugar era Delfos.
Para os gregos, Delfos era o “umbigo da Terra”. Ali a deusa - gé (Geia, Gaia) pariu o
povo grego para o seu destino. Em Delfos, o templo abre o espaço ao seu redor, fazendo
aparecer na claridade o Céu azul e a Terra com seu vale e suas montanhas escarpadas.
I.2.1.2. O sábio
O sábio faz a experiência do espírito como o que está nele, na sua intimidade. A
unidade de espírito e homem se chama, aqui, iluminação. Para tentar acenar para a
iluminação na experiência do espírito do oriente vamos trazer algumas imagens, com
algumas citações e poucos comentários.
36 Heidegger, M. Griechenlandreisen, p. 239.
28
O monge Hotei e os galos de briga. Aquarela de Myamoto Mosashi (1584-1645)
“Iluminação”37
“Quem possui iluminação é um sábio.
Como galos de briga
estão as coisas postas umas contra as outras.
O sábio não perturba este processo,
37 Rombach, Heinrich. Leben des Geistes: Ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit. Freiburg/Basel/Wien: Herder, p. 179.
29
ele o mantém no equilíbrio,
ele evita a unilateralidade.
No equilíbrio vive afinação,
na afinação, a vida se equilibra.
Iluminação
é o nível mais elevado
a partir do qual
a afinação é vista,
vivenciada, devida e gozada.
Descobre afinação somente quem
não a procura em determinadas leis
em determinadas ordens.
Ela reluz em tudo,
mas somente para quem
sabe captá-la fulminante
a partir do Nada do entremeio.
Iluminação inesperada.
30
Monge Hotei em peregrinação. Aquarela de Liang K’ai (começo do século XIII).
“A imagem do Iluminado”
Aparece aqui como monge mendicante,
que todos os seus haveres
leva numa mochila.
Ele possui tanto,
que é independente dos outros,
e ao mesmo tempo tão pouco,
que é independente de si mesmo.
O sábio dança quando caminha;
jovial e vivaz
mantém-se a massiva figura no topo
como um círculo.
Nele se une
redondo com agudo,
plenitude com ponto,
31
perfeita quietude com
uma traquina mobilidade.
Nisto se anuncia o Tao.
Iluminação.
Isto significa jovial felicidade.
O sábio
sente equilíbrio,
goza do Tao
em si
e em tudo”.
32
“Lao-Tse”
“Segundo a legenda,
viveu na China, alguns séculos antes de Cristo, um sábio, Lao-Tse,
o qual, a partir da experiência do caminho,
formou um profundo ensinamento.
O livro, que a ele é atribuído,
é denominado Tao-te-king,
o livro do caminho e do atuar.
33
Em 81 estrofes ele traz à fala a experiência do caminho.
A experiência do Tao é originária e autônoma.
Ela se encontra, em formas transformadas, também em outras culturas e
religiões.
Imediatamente pertinente é a experiência
da iluminação. O que diz iluminação
pode ser deduzido somente a partir do conhecimento do caminho..”
34
Só se sabe a essência do caminho, sendo a caminho, sendo caminheiro,
peregrino. Caminho é a finitude da vida. O viger da sua niilidade. O pensar do caminho
veio à fala, no oriente, no Livro Tao Te King, o Livro do Caminho, que Lao Tzé teria escrito,
segundo a tradição, a caminho do exílio. O primeiro verso traz a saga, isto é, o dizer da
essência do caminho: “o caminho que pode ser seguido não é o caminho perfeito”38. É
que, enquanto o caminho não se mede com sua impossibilidade, com a aporia, o
inviável, o inacessível, não é caminho. Escutemos o dito de Heráclito: “se não se espera,
não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso”39.
O caminho se torna caminho justamente como ventura e aventura da espera do
inesperado. Somente no acolhimento do inesperado é que o caminho se torna bem-
aventurança. Para o pensamento do caminho, pois, o absoluto é o próprio caminho, a
infinitude se dá como a finitude do caminho. Escutemos a fala do prof. Harada, com
quem o presente autor aprendeu algo da saga do caminho do pensar:
38 O livro do caminho perfeito, p. 1. 39 Pensadores originários, p. 63. Fragmento 18.
35
Caminhar é pois radicalmente abrir-se ao nascimento do sentido. Esse caminhar não tem fim. Ele mesmo como a liberdade do manancial do sentido é propriamente princípio e fim. A experiência do originário, isto é, da fonte nascente do sentido do ser, que Lao Tsé chama de Nada é via, o Tao que constitui a essência do homem. Homem é o olho d’água do manancial do sentido do ser e como tal ele é o en-vio que se perde, se abandona à e é usado pela Nascividade do Nada40.
Heidegger, certa vez, viu na experiência de caminho a correspondência entre o
lógos dos gregos e o Tao dos chineses:
Para o pensamento do sentido, ao contrário, o
caminho pertence ao que chamamos de campo. Para
esclarecer melhor, o campo é a clareira liberadora onde tudo
o que está claro alcança, juntamente com o que está
encoberto, o livre. O liberar-encobrir do campo é aquele en-
caminhar em que surgem os caminhos que pertencem ao
campo (...).
É o campo que concede caminhos. O campo en-
caminha. Entendemos a palavra en-caminhar no sentido de:
conceder e inaugurar caminhos. Normalmente,
compreendemos esse en-caminhar como movimentar, fazer
com que alguma coisa mude de lugar, com que aumente ou
diminua, em suma, com que se altere. Be-wegen, en-
caminhar diz aqui: conferir caminhos ao campo. Seguindo
um antigo uso do dialeto suábio-alemânico, wegen,
caminhar pode dizer: abrir e construir um caminho, por
exemplo, na terra toda recoberta de neve.
Caminhar, wegen, e en-caminhar, be-wegen,
tomados como preparação de caminho e caminho tomado
como um deixar alcançar, pertencem à mesma fonte e à
mesma correnteza que os verbos: wiegen, ninar, wagen,
vagar, wogen, ondear. Talvez a palavra Weg, caminho, seja
40 Harada, Hermógenes. A via de Chuang Tzu, p. 3 (texto datilografado).
36
uma palavra arcaica da linguagem que se prenuncia para o
homem que pensa. A palavra guia do pensamento poético
de Lao-Tsé é Tao e significa “propriamente" caminho. Porque
se costuma representar sem dificuldade o caminho,
atribuindo-lhe o sentido exterior de trecho de ligação entre
dois lugares, muitos consideram nossa palavra “caminho"
inadequada para nomear o que diz Tao. Prefere-se traduzir
Tao por razão, espírito, raison, sentido, logos.
O Tao poderia ser, no entanto, o caminho que tudo
en-caminha, aquele caminho somente a partir do qual se
pode pensar o que essência, razão, espírito, sentido, logos
dizem propriamente, ou seja, a partir do seu vigor próprio.
Talvez na palavra “caminho", Tao, resguarde-se o mistério de
todos os mistérios da saga pensante do dizer, ao menos
quando deixamos esses nomes retornarem para o que neles
se mantém impronunciado. É possível que o poder
enigmático do predomínio atual do método surja do fato de,
não obstante sua força de desempenho, os métodos não
passarem de ressacas de uma imensa onda encoberta, de um
caminho que tudo en-caminha, rasgando para tudo a sua via.
Tudo é caminho41.
41 Heidegger, M. A caminho da linguagem. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2003, p. 154-155.
38
“Onde homens estão, ali existem caminhos”
“Caminho é uma outra coisa do que senda ou estrada.
Senda, insere-se na natureza.
Estrada, passa ao largo da natureza.
Caminho, isto abre a natureza,
mostra sua configuração, seu espírito.
No caminho homem e mundo encontram-se no meio,
perfilam-se mutuamente!
O homem se deixa guiar pela natureza
e, no entanto, inclui aí a sua vontade.
Caminho é acôrdo,
ajuste de afirmação e desempenho,
graça e gesta,
necessidade e liberdade.
Talvez nada exista de mais sublime
do que este acôrdo.
A experiência fundamental “caminho” diz
que o homem, através do
favor do conseguimento
39
pode ser conduzido para fora e para além de si,
entretanto, de tal modo
que ele não é posto de pé pela pressão de um poder estranho,
mas pura e simplesmente na liberdade de si mesmo.
No espírito do caminho
o homem produz o que cresce
deixa vir a ser o que é
é cheio de dedicação e forte,
pensoso e decidido”.
40
A nascividade do nada dando-se como nascedouro do sentido no caminho
aparece também num comentário de Koichi Tsujimura a uma pintura Liang K’ai, do
século XII intitulada “O Sakyamuni que desce a montanha”. Ele desce da montanha,
caminhando em direção ao vale, ao mundo do cotidiano dos homens, como o iluminado.
O seu caminhar se dá como o acontecer da abertura da liberdade na claridade da
verdade. Caminho é, aqui, abertura de liberdade e abertura de liberdade é, aqui,
caminho. Isto quer dizer: uma abertura-de-liberdade que se movimenta, se põe a
caminho, e um caminho que se abre no viger da liberdade e se ilumina42. O título que
42 Sein und Nichts, p. 36.
41
acompanha a imagem é: “No meio do nada há um caminho”. O nada é, pois, o medium
do caminho. A nascividade do nada é o que deixa-ser o caminho como caminho, isto é,
como abertura de liberdade. Ao comentar sobre a figura de Sakyamuni propriamente,
Tsujimura diz:
Mas, a quem se manifesta esta realidade [a realidade profunda das coisas que o circundam]? Ao que está descendo a montanha ele mesmo, primeiramente, aos seus olhos e ouvidos. Seus olhos veem de modo nítido e penetrante, mas eles miram para nenhuma coisa, eles até mesmo já não ficam fixados a alguma coisa de determinado. Seus olhos veem todo e cada visível e ao mesmo tempo todo e cada invisível – eles atravessam com o olhar todas as coisas. Neste sentido, os seus olhos veem Nada. Somente neste ver do nada (genitivo objetivo) se manifesta a realidade de todo e de cada visível e invisível. No manifestar-se desta realidade o vidente ele mesmo se torna nada, no sentido de nenhum algo. Se o vidente permanece algo de determinado, ele não consegue ver esta realidade. Logo, o vidente mesmo é, aqui, para dizer com uma palavra de meu amigo Ueda, “o nada”43.
Em lugar do êxtase, entra a quietude. Em lugar da irrupção para fora, para junto
dos homens, para denunciar e anunciar, ou para dentro de Deus, pelo êxtase, o retorno
para dentro. Em lugar da palavra, o silêncio. É o caminho do oriente asiático, que se
diferencia tanto da experiência filosófica do ocidente quanto da experiência profética
judaica.
I.2.1.3. O pensador
“Mostrar uma vez vale mais que dizer cem vezes
(Provérbio chinês). Em compensação, a filosofia é forçada a
dizer para mostrar”44.
43 Sein und Nichts, p. 40. 44 Heidegger, Martin – Apud Buzzi, Arcângelo R. – Introdução ao pensar (9ª Edição). Petrópolis: Vozes, 1980, p. 13.
42
O pensador faz a experiência do espírito a partir da autonomia do pensar. Pensar
quer dizer, aqui, viver a partir da própria profundidade, criativamente. O pensar, do que
proveio a filosofia, é, porém, aqui, algo de diverso da atividade de conhecer objetos, de
que proveio a ciência. Pensar quer dizer, originariamente, acolher o mistério da
realidade irrompendo nas realizações do real e a ele corresponder. Desde que o pensar,
porém, tornou-se filosofia, passou a se pôr como a ousadia de perguntar pelo sentido
de ser de tudo o que é. E este perguntar estava a serviço do próprio viver do homem.
Por isso:
Para se encontrar com o pensamento grego, deve-se
ter uma pergunta apenas: a pergunta que brota da unidade
de nosso ser. Por isso, é importante deixar a periferia e ir
para o centro da vida. Pois, somente no centro a pergunta é
essencial. No centro, todo nosso ser transforma numa única
pergunta. Todo o nosso ser é pergunta. Ser todo pergunta
em qualquer estudo da Filosofia Grega é a única maneira de
se aprender a pensar o que pensavam os pensadores
gregos45.
O pensador é aquele que, na época do pensamento originário, vive da inquietude
do corresponder ao mistério de ser, em sua doação e em sua retração, e que, na época
da filosofia, vive da inquietude do perguntar pelo sentido de ser de tudo o que é. Pensar
não é conhecer objetos. Pensar é interrogar para além de todo o conhecido. Pensar é
erguer-se para além de todo o familiar e criar. A atividade criativa do pensar provém do
fogo de Prometeu. Irmão do pensar é o poetar. Irmão do pensador, o poeta.
O que comumente chamamos de “filosofia grega” se desdobra do século VII a. C.
até o século VI d. C. A envergadura de seu arco, portanto, encobre cerca de mil anos. A
filosofia medieval também tem esta longa duração, de cerca de mil anos (do séc. V ao
século XV). A filosofia moderna, por sua vez, tem se estendido por cerca de 500 anos até
agora.
45 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega, uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 28.
43
A filosofia grega é uma experiência de Pensamento.
Mas não é a única experiência de pensamento. Outra
experiência grega de Pensamento é o Mito e a Mística. Uma
outra, são os deuses e o extraordinário. Ainda uma outra é a
Poesia e a Arte. Ainda outra é a Pólis e a Politeía. A última,
por ser no fundo a primeira experiência grega de
Pensamento, é a vida e a morte, éros e thánathos46.
Vamos nos deter, aqui, porém, apenas na experiência de pensamento da
filosofia. E, mesmo assim, apenas em parte da história da filosofia grega. Vamos nos
deter no período que vamos chamar de originário e no período clássico. Isso quer dizer:
vamos nos ater a um lapso de tempo que vai de fins do século VII a. C. a fins do século
IV a. C. Entretanto, em vez de seguirmos um caminho cronológico progressivo, de Tales
a Aristóteles, vamos fazer um caminho reflexivo regressivo, de Platão e Aristóteles a
Anaximandro47.
O desenvolvimento da experiência grega do pensar na filosofia atravessou três
períodos.
O primeiro período é vamos chamá-lo de origem. Aqui o pensar consiste em
acolher a irrupção da realidade nas realizações do real. Esta irrupção da realidade foi
chamada de “Physis”. Por isso, Aristóteles chamou os pensadores deste período de
46 Leão, E. C. Filosofia Grega – Uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 11. 47 Na Grécia, do século VII ao V a.C., surgem os primeiros pensadores: na Jônia, aparecem, em Mileto, Tales (624-546 a.C.), Anaximandro (610-545 a.C), Anaxímenes (588-528 a.C.), e em Éfeso, Heráclito (540?-480?); de Samos, veio Pitágoras (580/70-480); e em Eléia, na Magna Grécia, surgem Parmênides (c. 515-450 a.C.) e Zenão ( c. 490-430 a.C.). Já no século VII haviam começado os jogos olímpicos. No século VI, Sólon, o primeiro poeta ático, tornando-se arconte de Atenas (594 a.C.), promulga uma constituição, cujas leis inauguram a democracia. No século VII, surge a poesia lírica. A ilha de Lesbos oferece a poetisa Safo e o poeta Alceu. No século VI, de Tebas vem Píndaro. Em 534 a. C., no festival de Dionísio, em Atenas, por obra de Téspis, nasce o drama, com a celebração das primeiras tragédias. Abrem-se os caminhos para os poetas trágicos do século V: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. O século V é o século de Péricles, que procura retomar a democracia e, ao mesmo tempo, coligar os gregos em torno de Atenas, não obstante a resistência de Esparta, que sai vencedora desta disputa. Floresce, em seu tempo, a escultura de Fídias e a arquitetura de Ictinos e Calícrates, que supervisionaram a edificação do Partenón. Neste mesmo tempo, afirma-se a sofística, com Protágoras, Górgias e Pródico, e emerge a filosofia, com Sócrates (469-399 a.C). No fim de toda esta fermentação do espírito grego, aparecem os filósofos Platão (427-347 a. C.) e Aristóteles (384-322). O espírito grego, que já nasceu grande, morre também grande com estes dois pensadores. O helenismo, que surge após a expansão do império macedônico de Alexandre Magno (356-323 a.C.)47, e que foi mais extenso, já não trazia a mesma intensidade e o mesmo vigor criativo do pensamento grego originário e clássico. A última grande criação do espírito grego na filosofia foi, o seu “canto do cisne” foi a filosofia neoplatônica (Plotino, Porfírio, Proclo).
44
“physio-lógoi”, aqueles que pensam e discorrem a respeito da “Physis”. Os latinos
traduziram “physis” por “natura”. Nós traduzimos “natura” por “natureza”. Mas nós
entendemos, normalmente, natureza como uma região de ser, a saber, a região de ser
dos entes não humanos: os corpos, os seres vivos, sejam plantas, sejam animais. No
pensamento da origem a “Physis” nomeava tanto o todo daquilo que é (o ente no todo),
como também o ser deste todo. Os pensadores da origem pensaram a partir da
admiração (thaumádzo) com a “Physis”. Fizeram a experiência de seu mistério. Mistério
é o que se dá e, ao mesmo tempo, se subtrai; se des-vela e ao mesmo tempo se re-vela.
Por isso é que Heráclito disse:
“phýsis krýptesthai phýlei – a
natureza ama esconder-se.
A natureza, isto é, a dinâmica de irrupção da realidade, que deixa e faz ser o
surgimento e o desencobrimento das realizações do real como um todo, ama, gosta de
retrair, tende ao encobrimento”48.
Os pensadores dos primórdios que pensaram mais radicalmente a irrupção
originária da realidade em seu jogo de desencobrimento e encobrimento foram
Anaximandro de Mileto, Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eleia49. Vamos chamá-los
de pensadores originários.
Alguns pensadores deste tempo, porém, em vez de se concentrar em pensar a
Physis como ser do ente no todo, se empenharam praticar a “hystoria” (investigação,
pesquisa), com o escopo de produzir conhecimento positivo sobre os entes, à luz da
compreensão da Physis. Nesta direção é que se movimentou, por exemplo, o
pensamento dos milésios Tales, predecessor de Anaximandro, e de Anaxímenes, seu
sucessor. Nesta mesma direção se encaminhou o pensamento de Pitágoras de Samos.
Segundo Heráclito50, Pitágoras foi de todos os homens o que mais “hystorien” praticou.
48 Cfr. Leão, Emmanuel Carneiro & Wrublewski, Sérgio Mário (Tradutores), os Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 90-91. 49 A escola eleática foi fundada pelo jônio Xenófanes, que se fixou na colônia de Eléia, no sul da Itália. A ele seguiu Parmênides. A terceira geração tem como destaque Zenão e Melisso de Samos. 50 Diógenes Laércio VIII, 6.
45
Este foi o que primeiramente denominou o todo do ente de “kósmos”, em homenagem
à sua beleza e à ordem que nele impera, à sua proporção inteligível e harmônica. Embora
jônio de origem, ele viajou ao Egito (onde familiarizou-se com o saber matemático e
astronômico oriental) e criou uma “thíase” (fraternidade consagrada às Musas) em
Crotona, na Magna Grécia (colônias dóricas do sul da Itália).
Enquanto Anaximandro, Heráclito e Parmênides são pensadores ontológicos (do
ser), os demais são investigadores e pesquisadores ôntico-positivos (dos entes já
desvelados). O que hoje chamamos de ciência é, fundamentalmente, o conhecimento
objetivo, funcional, ôntico-positivo. Por isso, nós tendemos a ver nestes pensadores
ôntico-positivos os fundadores da ciência no ocidente. A dificuldade de pensar,
penetrando no mistério do ser, acaba levando o pensamento a se deter no ente e a
buscar produzir conhecimento positivo, por meio da “hystoria”, isto é, da pesquisa.
Nesta mesma direção se encaminha também a pesquisa da multiplicidade do ente
mutável na segunda fase deste primeiro período da filosofia grega, com Empédocles,
Anaxágoras e a atomística (Demócrito). O pensamento se torna, aqui, “etiologia”
(aitiología), busca da razão suficiente do todo do ente, da “aitia” (causa, no sentido da
coisa originária – Ursache – que responde pelo surgimento do ente no todo). O ser do
ente é procurado como um fundamento estável da mudança das coisas. Este
fundamento é encontrado nos elementos (stoicheía) ou raízes (rizómata) das coisas. É a
partir deles que se descobre a relação estável de mistura e de separação entre as coisas.
Nesta etapa, não obstante se aprofunda na estrutura do ente, não se penetra no sentido
do ser como tal. A preocupação do pensar não é tanto com o ser como tal, mas com o
ente e sua entidade e com o conhecimento do ente.
O segundo período do desenvolvimento do pensamento na Filosofia Grega é o
clássico. A terra desta filosofia é a Ática, especialmente Atenas. Com a sofística temos a
passagem do primeiro para o segundo período51. O desenvolvimento da democracia
depois das guerras persas não se limitou a abrir ao indivíduo novas vias de participação
na comunidade, mas pretendeu ao mesmo tempo uma formação cultural superior e
mais segura, para o que se necessitou de professores: os sofistas. Eles ensinavam
51 De início, “sophístes”, como “sophós”, significa aquele que sabe, que domina um saber, que é entendido em alguma coisa, que é perito em algo.
46
sobretudo a forma por excelência da atividade pública: a arte do discurso com vistas a
persuadir, a retórica. Esta era útil não só nas assembleias populares, nas deliberações,
mas também nos tribunais, nos grandes processos políticos. Conexa com a retórica
apareceu a erística: a arte da disputa. Ambas respondiam à necessidade de se
assenhorear do lógos (discurso), do dialégesthai (diálogo), o que implica na dialética.
Neste sentido, os sofistas O ser humano se põe no centro da reflexão. Se interroga sobre
as suas possibilidades de conhecimento e de comportamento ético e político. Como
saber do mundo a sofística está mais ligada ao primeiro período. Mas como saber do
homem, a sofística está mais ligada ao segundo período. No entanto, ela não alcança
uma meditação mais radical a respeito do ser do mundo (natureza) nem a respeito do
ser do homem. Seu interesse é muito mais pelo domínio de um saber relevante do ponto
de vista pragmático, social-político-cultural. A paideía (formação) visa à preparação para
a ação política. Deduzem consequências negativas do ensinamento de Heráclito e de
Parmênides para negar a possibilidade de um conhecimento da natureza. Tem um
espírito iluminista (contrário às crenças religiosas), individualista e cético. Entre os
sofistas destacam-se Protágoras, Górgias, Hippias, Pródico.
Em Sócrates, Platão e Aristóteles se inaugura uma de-cisão Histórica. A história
do ocidente vive desta de-cisão. Esta de-cisão é uma cisão. Trata-se, antes de tudo de
uma cisão entre o pensamento originário e o pensamento metafísico, socrático,
platônico, aristotélico. O pensamento originário aparece como o lusco-fusco de uma
aurora. O pensamento socrático, platônico e aristotélico, aparece, ao contrário, como
uma claridade meridiana.
A filosofia é o princípio que principia a história ocidental. Ela irrompe, no entanto,
como uma virada radical, uma revolução, cuja profundidade e virulência mal
conseguimos perceber. A aurora do mito, da poesia e do pensamento originário, com o
seu lusco-fusco, chega, no século IV a. C., com Platão, ao fim. O mágico e o mítico, o
poético e o trágico, perdem o seu vigor. Acontece um outro advento da realidade.
Emerge a luz clara, solar, meridiana, apolínea, da filosofia, inaugurando a era da
metafísica, que impera através da lógica, tornando-se, não poucas vezes, a ditadura da
razão, entendida como cálculo. Na era da metafísica, a lógica é o supremo tribunal da
verdade, isto é, a instância inapelável para tomar a decisão no julgamento do que é
47
verdadeiro e do que é falso. Surge o homem meridiano, que se compreende a si mesmo
como animal racional, cuja última versão é a do bicho que calcula, que computa, que
inventa a inteligência artificial.
Em segundo lugar, trata-se de uma cisão no interior mesmo do pensamento
metafísico. Desde Platão, o todo do que é (o ente) é marcado, pois, pela dicotomia (cisão
em dois): separam-se o ser e o nada, o permanente e o mutável, a essência e a
aparência, o uno e o múltiplo, o necessário e o contingente, o verdadeiro e o falso, o
bem e o mal. Junto com esta cisão acontece também uma decisão: pelo ser contra o
nada, pelo permanente contra o mutável, pela essência contra a aparência, pelo uno
contra o múltiplo, pelo necessário contra o contingente, pelo verdadeiro contra o falso,
pelo bem contra o mal.
É a partir desta cisão e decisão, que instaura a dicotomia e a dualidade, que
mundo, homem e Deus (os três temas especiais da metafísica) são determinados. O
mundo se divide em inteligível e sensível. O “kósmos noetós” (gr.) ou “mundus
intelligibilis” (lt.), permanente, apresenta-se como normativo para o “kósmos
aisthetikós” (gr.) ou “mundus sensibilis”, mutável, transitório, fugaz. O homem se divide
em racional e animal e sua essencialização, quer dizer, sua humanização, se dá à medida
que, nele, o racional governa o animal. Também o divino, Deus, é entendido a partir
desta cisão e decisão, como o fundamento do ente no seu todo, como a inteligência
suprema. Por exemplo, o Deus de Aristóteles é entendido como intelecto supremo,
espírito puro, não afetado por nenhuma materialidade, como “nóesis noéseos” – o
pensar de pensar, que vive numa constante “theoria”, isto é, numa bem-aventurada
autocontemplação.
Esta cisão e decisão da metafísica suporta a história da filosofia, que é o cerne da
história do ocidente, há vinte e cinco séculos. Depois de Aristóteles, ela expandiu o seu
império por toda a “oikoumene” (o mundo habitado em torno do mediterrâneo,
conquistado por Alexandre Magno, aluno de Aristóteles). Durante o helenismo, ela
assimilou, várias correntes orientais. Ao fim do mundo antigo, ela deu bases para a
institucionalização do movimento cristão, configurando o cristianismo. Na idade média
ela serviu de chave interpretativa para a teologia. Na época moderna, ela sustentou o
humanismo e o iluminismo. E, mais recentemente, ela vige na metafísica da ciência e da
48
técnica atual, cujo domínio se tornou planetário. No entanto, raramente nós
percebemos esta vigência:
Vespertinos do Dia Ocidental, já não sentimos com tanta facilidade a profundeza da revolução que significou a filosofia para toda a existência dos gregos. Estamos plantados num solo, cuja solidez devemos precisamente à ruptura metafísica no curso do pensamento e da poesia. O que desta ruptura prorrompeu, como estrutura e modelo de mundo, como princípio e técnica de conhecimento, como gramática e lógica de linguagem, como norma e conceito de valor, nos determina mais radicalmente do que costumamos suspeitar. Seguimos pela esteira da metafísica ainda quando não queremos nada com filosofia e nos entregamos de corpo e alma a fazer guerra para podermos respirar o ar poluído pelos derivados de petróleo, ouvir os altos decibéis de uma civilização motorizada ou absorver as massagens dos meios eletrônicos de comunicação de massa52.
A história do ocidente é filosófica. A filosofia é o princípio que principia a história
ocidental. Ela irrompe, no entanto, como uma virada radical, uma revolução, cuja
profundidade e virulência mal conseguimos perceber. A aurora do mito, da poesia e do
pensamento originário, com o seu lusco-fusco, chega, no século IV a. C., com Platão, ao
fim. O mágico e o mítico, o poético e o trágico, perdem o seu vigor. Acontece um outro
advento da realidade. Emerge a luz clara, solar, meridiana, apolínea, da filosofia,
inaugurando a era da metafísica, que impera através da lógica, tornando-se, não poucas
vezes, a ditadura da razão, entendida como cálculo. Na era da metafísica, a lógica é o
supremo tribunal da verdade, isto é, a instância inapelável para tomar a decisão no
julgamento do que é verdadeiro e do que é falso. Surge o homem meridiano, que se
compreende a si mesmo como animal racional, cuja última versão é a do bicho que
calcula, que computa, que inventa a inteligência artificial.
Sócrates, Platão e Aristóteles pertencem a uma outra experiência de verdade,
em relação à das origens do pensamento e da poesia grega, experiência que cunha de
maneira nova a essência e a existência do homem. Assim, a filosofia, em Platão, se ergue
a partir de uma oposição não só à tradição mítica da poesia, como também ao
pensamento trágico dos pensadores originários. Porém, trágico não significa, aqui, uma
concepção da vida ou uma visão de mundo pessimista, própria de uma existência
torturada pela impotência. Trágico é o pensar à medida que o ser se revela como o jogo
52 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 114.
49
e o combate entre a luz e a escuridão, o dia e a noite, a diferença e a identidade dos
seres. Trágico é o homem à medida que se autoconstitui em sua humanidade a partir
daquele jogo e dá consistência e fisionomia à sua existência suportando e se expondo
àquele combate. Trágica é a existência à medida que ela se dá e acontece, se projeta e
se realiza, nas tensões e peripécias daquele jogo e combate, na correspondência aos
poderes misteriosos da realidade.
Entretanto, o tempo de criação do pensamento grego, que começou com o
pensamento originário e que passou ao pensamento filosófico-metafísico clássico,
findou com Aristóteles. A grecidade clássica eclipsou-se com ele. Depois dele, com a
expansão do Império de Alexandre Magno, surge uma outra grecidade: a helenista, que,
embora tenha sido grande extensivamente, não foi tão grande em seu alento criador. É
o terceiro período da filosofia grega. Aqui a filosofia grega ingressa no período de
ciências empíricas independentes (matemática, mecânica, astronomia e geografia,
anatomia e fisiologia, filologia e gramática). A especulação metafísica limitar-se ao
problema da conduta e da ação política. A filosofia se escolariza e surgem as disciplinas.
As principais escolas são a epicurista, a estoica, o ceticismo. A última grande criação do
pensamento grego, o “canto do cisne”, foi o neoplatonismo. No peripatetismo se
desenvolvem os trabalhos dos comentadores de Aristóteles.
O império helenista, por sua vez, foi capturado pelo império romano. Depois da
queda do Império Romano do Ocidente, surgiu a Europa. O ocidente medieval surgiu do
fluxo de três tradições, representadas por três cidades: Atenas, de que proveio a filosofia
e os saberes; Roma, de que proveio a metafísica do poder; e Jerusalém, de que proveio
a fé abraâmica, judaica e cristã. Na modernidade, a cultura ocidental moderna acabou
se expandindo planetariamente, por meio das grandes navegações, das invasões e
colonizações, dos imperialismos político-militares, e, por fim, por meio das revoluções
tecnológicos e científicas. Eis como uma avalanche que se deslizou desde o “tempo-
eixo” sobrevém a nós, filhos do progresso.
top related