globalização e trabalho
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Globalização e trabalho
Em artigo de opinião publicado no jornal Valor Econômico, o economista Fernando Mattos
analisa os dados de trabalho das últimas décadas e destaca as consequências da globalização
sob o capitalismo contemporâneo.
Valor Econômico, 29 de setembro de 2009
Fernando Augusto Mansor de Mattos
O processo de globalização que teve origem com a desregulamentação dos fluxos de capitais,
ocorrida de forma mais acentuada a partir da "contra-revolução" liberal iniciada com as eleições
de Thatcher (Reino Unido, 1979) e Reagan ( EUA, 1980) e que desaguou na crise atual gerou
uma série de assimetrias e movimentos tendenciais importantes cuja análise mais cuidadosa
muitas vezes escapa ao debate recente, centrado nas propostas de reformas necessárias para
“superar” a crise financeira internacional.
Dados das contas nacionais dos principais países capitalistas, referentes aos anos 1980 em
diante, revelam pelo menos três movimentos bastante claros: (a) queda da parcela salarial na
renda nacional na maioria dos países; (b) aumento da taxa de lucro (ou taxa de retorno) nas
atividades produtivas; (c) o referido aumento da taxa de lucros não tem se traduzido em
aumento na taxa de investimento produtivo na quase totalidade dos países capitalistas
desenvolvidos.
Uma parte importante da literatura crítica acerca do processo de globalização financeira dos
idos tempos do neoliberalismo destaca que o crescimento da acumulação financeira tem
superado, de forma destacada, a acumulação do capital em sua esfera produtiva. A despeito
da correção desse diagnóstico, a ênfase nessa suposta dicotomia entre capital financeiro e
capital produtivo esconde um fato ainda mais significativo e este sim um resultado bastante
característico da globalização sob o capitalismo contemporâneo: trata-se da degradação do
mercado de trabalho, manifesta na ampliação da massa de valor extraída do Trabalho, no
aumento do desemprego na maior parte dos países, na concentração da renda, da riqueza e
do tempo livre.
A queda da parcela salarial “abriu espaço” para a ampliação da “taxa de retorno”, mas a
financeirização da riqueza acaba redefinindo os critérios de aplicação do capital produtivo,
cada vez mais compelidos pela necessidade de acumulação de curto prazo e alta lucratividade
possibilitada pelas diversas e criativas modalidades de aplicações financeiras, pelo menos até
que a crise atual fosse deflagrada.
As decisões de abrir mão da liquidez em favor de aplicação do capital na esfera produtiva
tornavam-se, portanto, cada vez mais constrangidas pelo custo de oportunidade que
significavam os altos retornos esperados e de fato obtidos (até que a crise chegasse) pela
aplicação do capital na esfera financeira. Esse “desvio” de recursos da esfera produtiva para a
financeira, portanto, é que explica a degradação dos mercados de trabalho e os movimentos
concentradores promovidos pela ordem financeira desregulada que ora se encontra em xeque.
Para as grandes corporações, a dicotomia capital financeiro versus capital produtivo não
impedia, pelo menos até a eclosão da crise ainda vigente, um aumento da acumulação de
capital. A dicotomia capital financeiro-capital produtivo revela-se uma falsa e fútil disjuntiva,
posto que, no âmbito das estratégias das grandes corporações capitalistas, tratava-se apenas
de definição da composição do portfólio de aplicação do capital. A marca do processo de
globalização financeira liberal foi, na verdade, a degradação do Trabalho.
Os dados referentes aos anos 80 em diante mostram que houve aumento da concentração da
renda e da riqueza na maior parte dos países capitalistas desenvolvidos. Houve também o que
chamaremos aqui de concentração do tempo livre, pois a finança desregulada promoveu, ao
mesmo tempo, uma ampla e crescente parcela de desempregados ao lado de uma pequena
(mas também crescente) parcela de indivíduos vivendo de rendas retiradas de diversas
modalidades de aplicações financeiras. Ou seja, muitos não usavam seu tempo no trabalho
simplesmente por não terem trabalho, enquanto outros (os rentistas) desfrutavam de um tempo
livre cada vez maior, dada a não–necessidade de trabalhar, por retirarem sua renda das suas
próprias aplicações financeiras, cada vez mais rentáveis.
Nos anos mais recentes pré-crise as diversas modalidades de desigualdades acima aludidas
pareciam se acentuar. Dados recentes da OIT revelam que, entre 2003 e 2007, nos EUA, o
pagamento dos altos executivos cresceu 45%, em termos reais, enquanto os de médio escalão
cresciam 15%, contra apenas 3% do trabalhador americano médio. Desde 1970, o salário
médio americano tem estado quase estagnado, o que ajuda a explicar a crise atual, pois a
ampliação da parcela do consumo na renda nacional – uma marca do capitalismo americano
das últimas décadas do século – só seria possível, dada a estagnação salarial, pelo crescente
endividamento das famílias, o que, de qualquer forma, não poderia durar para sempre, ainda
mais quando passou, cada vez mais, a apoiar-se em bases tão frágeis quanto as do sistema
subprime, conforme agora se sabe. A OIT revelou que as desigualdades de renda aumentaram
em diversos outros países, de vários continentes.
Trabalhando-se dados também recentemente divulgados pela OIT pode-se constatar que, em
1991, a parcela do emprego das economias avançadas representava 17,5% do total do
emprego mundial e, em 2004, esta parcela era de 15,5%. A partir de 2004, porém, esse
movimento inicialmente alvissareiro, em favor dos países periféricos, cessou de ocorrer, sendo
possível prever que a digestão da crise atual pode estar degradando esse raro movimento
desconcentrador ocorrido sob a ordem internacional que vigorou nas últimas décadas.
A superação do Consenso de Washington, justamente celebrada por muitos, não garante
necessariamente que a mesma será sucedida por uma ordem internacional menos indigesta
para o Mundo do Trabalho. Os sinais de recuperação emitidos pelos indicadores econômicos
das últimas semanas podem contribuir para criar a ilusão de que apenas pequenas mudanças
são necessárias para retomar o processo de crescimento econômico. Mudanças profundas na
regulação dos movimentos de capitais – colocando o setor financeiro a serviço da produção –
são fundamentais para promover melhorias no Mundo do Trabalho.
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