frege e o argumento modal
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LGICA E METAFSICA
Leandro de Oliveira Pereira
Frege e o Argumento Modal
1 volume
Rio de Janeiro
2009
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Leandro de Oliveira Pereira
Frege e o Argumento Modal
1 volume
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lgica e Metafsica, da Universidade Federal do Rio de janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Lgica e Metafsica.
Orientador: Prof. D. Marco Antonio Caron Ruffino.
Rio de Janeiro
2009
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Leandro de Oliveira Pereira
Frege e o Argumento Modal
Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Lgica e Metafsica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Lgica e Metafsica. rea de Concentrao: Filosofia, Ontologia Lgica, Semntica Filosfica.
Em 08 de Janeiro de 2010.
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Marco Antonio Caron Ruffino, Ps-Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________________________
Maria Adriana Sequeira da Silva Graa, Doutora, Universidade de Lisboa
_____________________________________________________
Luiz Carlos Pinheiro Dias Pereira, Doutor, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro
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Eu dedico a presente dissertao a meus pais, Maurcio e Rosa, a quem devo minha origem e formao enquanto pessoa, a meu estimado irmo Leonardo e, especialmente, a minha querida companheira Priscila, por sua incansvel motivao e seu incondicional apoio.
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Eu agradeo aos professores Luiz Carlos Pinheiro Dias Pereira e Adriana Sequeira da Silva Graa por terem gentilmente se disponibilizado a avaliar esta dissertao. Ademais, eu gostaria de registrar um agradecimento especial a meu orientador Marco Antonio Caron Ruffino, cujo trabalho incansvel tornou mais que possvel a concretizao desta dissertao.
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RESUMO
PEREIRA, Leandro de Oliveira. Frege e o Argumento Modal. Rio de Janeiro, 2010. Dissertao (Mestrado em Lgica e Metafsica) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Com o presente trabalho, ns pretendemos examinar uma discusso que ocupa um lugar central na recente histria da filosofia analtica da linguagem. Essa discusso, colocando de um modo geral, gira em torno da questo de se seria semanticamente consistente o ponto de vista de que nomes prprios, enquanto designadores rgidos, esto associados aquilo que Frege chama de sentido. Esse ponto de vista, apresentado emblematicamente por Frege em seu Sense and Reference (1948), colocado a prova por uma clebre objeo de Kripke: a saber, o argumento modal. Assim, tomando como ponto de partida o embate entre o supracitado ponto de vista fregeano e a mencionada objeo kripkeana, ns discutiremos essa questo envolvendo a tese da referncia indireta (i.e., a tese de que nomes designam suas respectivas referncias por meio de um sentido) e o dado semntico da designao rgida de nomes prprios.
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ABSTRACT
PEREIRA, Leandro de Oliveira. Frege e o Argumento Modal. Rio de Janeiro, 2010. Dissertao (Mestrado em Lgica e Metafsica) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
With the present work, we intend to exam a discussion which occupies a central place in the recent history of analytic philosophy of language. This discussion, putting in a general way, surrounds the question if will be semantically consistent the point of view that proper names, as rigid designators, are associated to something that Frege called sense. This point of view, emblematically presented by Frege in his Sense and Reference (1948), is questioned by Kripkes renowned objection: namely, the modal argument. So, taking the clash between the foresaid fregean point of view and the mentioned kripkean objection as a starting point, we will discuss that question involving the thesis of indirect reference (i.e., the thesis that proper names designate its respective references by means of a sense) and the semantic datum that names are rigid designators.
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SUMRIO
Introduo 2
Captulo 1 A Teoria Fregeana dos Nomes Prprios 8 1.1 A Doutrina Fregeana do Sentido e Referncia 8 1.2 O Sentido e a Referncia de Nomes Prprios 20
Captulo 2 O Argumento Modal de Kripke 23 2.1 O Descritivismo 24 2.2 A Concepo Kripkeana de Mundos Possveis 31 2.3 A Concepo Kripkeana de Designao Rgida 36 2.4 Preliminares a uma Anlise do Argumento Modal 40 2.5 O Argumento Modal 43
Captulo 3 Estratgias Descritivistas contra o Argumento Modal 50 3.1 A Estratgia do Escopo Amplo 51 3.1.1 A Distino entre Escopo Amplo e Escopo Estreito 52 3.1.2 O Escopo Amplo de Nomes Prprios 54 3.2 As Estratgias da Descrio Rigidificada 57 3.2.1 O Descritivismo Atualizado 58 3.2.2 Dthat-Descritivismo 69 3.2.3 Descries Rigidificadas via Operador @ 73
Captulo 4 Crticas s Estratgias Descritivistas 77 4.1 Crtica Estratgia do Escopo Amplo 77 4.2 Crticas s Estratgias da Descrio Rigidificada 81 4.2.1 Crtica ao Descritivismo Atualizado 81 4.2.2 Crtica ao Dthat-Descritivismo 86 4.2.3 Crtica Estratgia da Descrio Rigidificada de Burge 89
5 Concluso 92
6 Referncias 101
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Introduo
Em meados do sculo XX, comea a se consolidar, sobretudo nos nichos acadmicos
de ascendncia anglo-saxnica, um novo modo de se investigar problemas de filosofia, um
modo destacadamente caracterizado pela nfase conferida linguagem, ou, colocando de
outra forma, pela preferncia dada anlise da linguagem enquanto mtodo de investigao
filosfica. Dentre os renomados manuais de histria da filosofia, se convencionou chamar
esse novo modo de proceder em investigao de problemas filosficos de filosofia analtica.
Entretanto, apesar de o surgimento e a consolidao da filosofia analtica terem se
dado majoritariamente no sculo XX e em ambientes anglfonos, ns podemos observar que a
grande inspirao para esse novo modus operandis filosfico nos remonta ao antigo Imprio
Alemo do final do sculo XIX. Mais precisamente falando, o paradigma analtico de se fazer
filosofia oferecido pelo filsofo alemo Frege, que, por meio de clebres livros como
Conceptual Notation (1972) e Os Fundamentos da Aritmtica (1974) e artigos influentes
como Funo e Conceito (1978) e On Concept and Object (1951), estabeleceu as
diretrizes envolvidas naquele paradigma.
Dentre a vasta (e j clssica) bibliografia de Frege, um breve ensaio intitulado Sense
and Reference (1948) merece destaque especial. Esse destaque se deve, sobretudo, a
proposio fregeana de uma nova forma de se conceber a natureza da linguagem e o modo
como essa est conectada com elementos extra-lingusticos (a saber, objetos e pensamentos).
Em suma, essa grande contribuio de Frege consiste em sua perspectiva de que sinais
lingusticos tm sentido e referncia, ou seja, que um sinal designa um objeto (isto , sua
referncia) e o faz por meio de algo (isto , seu sentido) em que est contido um modo de
apresentao (ou propriedade) do objeto designado.
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A supracitada perspectiva de que sinais tm sentido e referncia constitui um dos
grandes patrimnios da filosofia da linguagem de tradio analtica. Contudo, no obstante a
indubitvel contribuio representada por essa perspectiva advogada por Frege, de se fazer
notar que, desde sua primeira recepo at os dias de hoje, a doutrina fregeana do sentido e
referncia ainda suscita grandes divergncias. Em especial, o ponto de maior disputa
envolvendo a referida doutrina diz respeito idia, sugerida por Frege, de que o sentido
expresso por um nome prprio seria dado em termos de uma expresso do tipo o x tal que Fx,
isto , uma descrio definida. Na trilha das divergncias suscitadas por essa idia fregeana,
ns poderamos destacar algumas discordncias levantadas por clebres comentadores da
teoria de Frege. Nessa direo, ns poderamos citar Searle (1958), que alega, por exemplo,
que o sentido de um nome prprio seria dado no por uma nica descrio definida simples
do tipo o x tal que Fx, mas sim por um cluster de descries desse tipo, ou, para colocar de
outro modo, esse sentido seria dado por uma descrio definida contendo uma disjuno de
predicados assinalando um objeto determinado como referncia do nome. Contudo, ns
devemos notar que, dentre todas as divergncias envolvendo a doutrina fregeana do sentido e
referncia, a mais contundente talvez seja aquela representada pela assim chamada teoria da
referencia direta (ou para sermos breves referencialismo), teoria de acordo com a qual nomes
prprios so termos diretamente referenciais, isto , so termos que no carregam sentido.
Dentre os inmeros defensores do referencialismo, ns devemos destacar Kripke, que,
alm de ter sido um dos precursores desse tipo de perspectiva anti-fregeana, talvez seja o
crtico mais emblemtico do descritivismo, isto , a teoria de Frege e as demais teorias da
nomeao baseadas na sua doutrina do sentido e referncia. Nessa direo, ns verificamos na
literatura kripkeana, mais precisamente em Naming and Necessity (1980), uma das objees
mais representativas a Frege. Essa objeo seria oferecida pelo seu assim chamado
argumento modal. Resumidamente falando, o ponto de Kripke, ao dirigir o argumento
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modal a Frege, consiste em mostrar, com base em algumas observaes acerca do
comportamento de nomes prprios em contextos modais, que a assuno fregeana de que
nomes tm sentido entra em conflito com um dado intuitivo acerca do funcionamento
semntico desses termos, esse dado, a saber, que nomes so designadores rgidos, ou seja, que
nomes designam invariavelmente o mesmo objeto em todo mundo possvel incluindo esse
objeto. Assim, tal como Kripke supe por meio de seu argumento modal, ns devemos
assumir, contrariamente a Frege e seus simpatizantes, que nomes prprios no tm sentido.
Tendo em vista esse embate entre Frege e Kripke, ns buscaremos, portanto,
examinar, ao longo da presente dissertao, se de fato, tal como parece nos mostrar o
argumento modal, seria impossvel, ento, conciliar a tese fregeana da referencia indireta (isto
, a tese de que nomes prprios designam objetos por meio de um sentido) com a intuio
kripkeana de que nomes so designadores rgidos. Para tanto, ns optamos, a fim de realizar o
proposto exame, revisar o que sustentaram alguns dos principais atores envolvidos no embate
supracitado. Nessa direo, o nosso trabalho dividir-se- em quatro partes gerais: (i) uma
primeira parte dedicada anlise da teoria fregeana dos nomes prprios; (ii) uma segunda
parte dedicada anlise do argumento modal de Kripke; (iii) uma terceira parte dedicada
anlise de algumas estratgias descritivistas contrrias ao argumento modal; (iii) e, por fim,
uma quarta parte dedicada anlise de algumas crticas a essas estratgias.
O curso de nossa dissertao, portanto, dar-se- tal como se segue.
No Captulo 1, ns proporemos uma anlise da teoria fregeana dos nomes prprios.
Nossa anlise da referida teoria de Frege ser dividida em duas partes. Nessa direo, na
Seo 1.1, ns, primeiramente, trataremos de visualizar a base da supracitada teoria, a saber, a
doutrina geral do sentido e referncia, tal como ela foi proposta por Frege. Em seguida, na
Seo 1.2, ns verificaremos como se estruturaria a teoria fregeana da nomeao tendo como
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sua base (i) a doutrina geral do sentido e referncia e (ii) algumas observaes adicionais de
Frege acerca do modo como ns usamos nomes prprios.
No Captulo 2, ns examinaremos a mencionada objeo de Kripke a Frege, isto , o
argumento modal. Ao realizarmos esse exame, daremos nfase a alguns pontos que julgamos
serem essenciais ao argumento modal. Nesse sentido ns analisaremos os seguintes pontos: na
Seo 2.1, o modo como Kripke concebe a teoria fregeana dos nomes prprios enquanto o
que ele chama de descritivismo; na Seo 2.2, a viso kripkeana de mundo possvel; na Seo
2.3, a noo de designao rgida proposta por Kripke; e, finalmente, na Seo 2.5, o
argumento modal.
No captulo 3, nos dedicaremos a examinar o que h pouco chamamos de estratgias
descritivistas. Sobre essas estratgias, ns podemos adiantar que elas equivalem a uma
refutao do argumento modal, uma vez que se caracterizam por serem tentativas de
acomodao da tese fregeana da referncia indireta com a intuio kripkeana de que nomes
prprios so designadores rgidos. Basicamente, ns veremos dois tipos mais gerais de
estratgias descritivistas: a estratgia do escopo amplo e a estratgia da descrio rigidificada.
Assim, ns analisaremos, na Seo 3.1, a estratgia do escopo amplo, tal como ela
proposta por Dummett (1973). Com respeito a essa estratgia, ns podemos antecipar que ela
tem como mote a tese de que a rigidez referencial de nomes prprios seria explicvel em
termos descritivistas, na medida em que assumimos que o sentido de um nome prprio seja
dado por descries definidas que assumem escopo amplo em sentenas modalizadas. A nossa
anlise da estratgia do escopo amplo dividir-se- em duas partes. Inicialmente, na subseo
3.1.1, ns observaremos uma distino fundamental proposta de Dummett, a saber, a
distino entre escopo amplo e escopo estreito de termos singulares em sentenas
modalizadas. Aps observar a referida distino entre escopo amplo e escopo estreito, ns
verificaremos, na subseo 3.1.2, como tal distino utilizada por Dummett a fim de
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explicar que a rigidez referencial de um nome prprio pode ser compatibilizada com a
assuno de que nomes tm o sentido de uma descrio definida com escopo amplo.
Vista a estratgia do escopo amplo, ns examinaremos, na Seo 3.2, algumas
estratgias da descrio rigidificada. Como observao preliminar sobre as estratgias
descritivistas dessa espcie, ns podemos dizer que elas se caracterizam pela alegao de que
o modo mais consistente de conciliar a rigidez referencial de nomes prprios com a tese da
referncia indireta consiste em assumir que o sentido carregado por um nome prprio seria
equivalente ao sentido de uma descrio definida de tipo especial, a saber, uma descrio
definida rgida. Assim, nosso exame das estratgias da descrio rigidificada compreender
trs partes. Na subseo 3.2.1, ns observaremos o descritivismo atualizado, isto , a viso
fregeana proposta por Plantinga (2003) e de acordo com a qual nomes prprios so
designadores rgidos cujo sentido seria dado em termos de uma descrio definida do tipo o F
em . Na subseo 3.2.2, ns observaremos o dthat-descritivismo, ou seja, a viso de que
nomes prprios equivalem semanticamente (semanticamente, isto , do ponto de vista de seus
respectivos sentidos e referncias) a descries definidas do tipo dthat [o x tal que Fx]. E por
fim, na subseo 3.2.3, ns observaremos a estratgia da descrio rigidificada proposta por
Burge (2005), estratgia de acordo com a qual nomes prprios seriam equivalentes
semanticamente a descries definidas do tipo o @ F.
Dando prosseguimento a nossa dissertao, ns observaremos, no Captulo 4, algumas
crticas s estratgias descritivistas. Essas crticas, tal como podemos afirmar, tm o sentido
de mostrar que essas estratgias falham de um modo ou de outro em oferecer uma teoria da
referncia indireta para nomes prprios que seja efetivamente consistente. Nessa direo, ns
analisaremos, na Seo 4.1 e na subseo 4.2.1, as crticas de Soames (1998) a (i) a estratgia
do escopo amplo de Dummett e (ii) o descritivismo atualizado de Plantinga. Adiante, na
subseo 4.2.2, ns analisaremos uma outra crtica de Soames, dessa vez, sua crtica ao dthat-
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descritivismo. E, por fim, ns analisaremos, na subseo 4.2.3, uma crtica a estratgia da
descrio rigidificada proposta por Burge.
Ademais, no Captulo 5, ns terminaremos o presente trabalho oferecendo algumas
consideraes finais acerca de tudo que ser observado na medida em que desenvolveremos
nosso objetivo, isto , como j dissemos h pouco, verificar se de fato concilivel uma
explicao fregeana da nomeao que d conta do problema levantado pelo argumento
modal: a saber, a dificuldade em conciliar a tese da referncia indireta com a rigidez
referencial de nomes prprios.
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Captulo 1 A Teoria Fregeana dos Nomes Prprios
No presente captulo, ns examinaremos a teoria dos nomes prprios de Frege. Essa
teoria, tal como ns compreendemos, constitui a base das chamadas teorias da referncia
direta, ou, como diria Kripke, descritivismo. Inicialmente, o que ns podemos dizer a
respeito dessas teorias, em especial a de Frege, que elas esto fundamentalmente suportadas
na idia de que a conexo semntica entre um nome prprio e sua respectiva referncia
mediada por meio de um sentido. Assim, no que segue, ns observaremos em detalhes como
Frege vislumbra o modo segundo o qual um nome prprio, seu sentido e sua referncia esto
linguisticamente associados. Para tanto, ns, por um lado, observaremos como funciona, de
um ponto de vista mais geral, a distino fregeana entre sentido e referncia, ou seja, ns
veremos como Frege introduz e elucida a referida distino a fim de explicar a relao entre,
de um lado, elementos lingusticos (isto , a linguagem propriamente dita) e, de outro,
elementos extra-lingusticos (contedos cognitivos e objetos). Alm dessas observaes
preliminares acerca da teoria fregeana, ns iremos, por outro lado, propor uma anlise de
como Frege aplica sua distino geral entre sentido e referncia ao caso especfico
envolvendo nomes prprios.
1.1 A Doutrina Fregeana do Sentido e Referncia
A distino entre sentido e referncia tratada por Frege pela primeira vez em um
ensaio chamado Funo e Conceito (1978). L, Frege (Ibid., pp.43-44) afirma:
Se dizemos a Estrela Vespertina um planeta cuja revoluo menor que a da Terra, o pensamento que exprimimos diferente do da sentena a Estrela Matutina um planeta cuja revoluo menor que a da Terra; pois quem no saiba que a Estrela Matutina a Estrela Vespertina, poderia considerar uma das sentenas como verdadeira e a outra como falsa; e, no entanto, ambas as sentenas devem ter a
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mesma referncia, pois apenas se trocaram as palavras Estrela Vespertina e Estrela Matutina, que tm a mesma referncia, isto , so nomes prprios do mesmo corpo celeste.
Para Frege, portanto, quando analisamos os significados de expresses lingusticas que
designam um mesmo objeto, ns podemos notar que o significado envolve um duplo aspecto.
Por um lado, os significados dessas expresses coincidem, no sentido em que essas
expresses se referem ao mesmo objeto, ou seja, elas coincidem, na medida em que tm a
mesma referncia. Esse o caso, por exemplo, quando comparamos as expresses
mencionadas por Frege na citao acima, a saber, Estrela Matutina e Estrela Vespertina.
Essas expresses, ns podemos colocar, coincidem no sentido em que nomeiam o mesmo
objeto, o planeta Vnus. No entanto, repara Frege que, no obstante esse primeiro aspecto, o
da identidade entre as referncias das expresses, h, por outro lado, uma diferena bastante
chamativa entre expresses co-referenciais, uma diferena envolvendo algo que est presente
no modo como tais expresses esto associadas aos objetos por elas nomeados. Esse elemento
presente na associao entre um sinal e sua referncia, segundo Frege, alm de poder variar
entre expresses co-referenciais, justamente aquilo que explica o fato de expressarmos
pensamentos distintos quando proferimos sentenas dos tipos F e F, tal que os termos
e so co-referenciais. Tendo isso em vista, Frege (1978, p.44) diz:
Temos de distinguir entre sentido e referncia. Certamente 24 e 4x4 tm a mesma referncia, isto , so nomes prprios do mesmo nmero, mas no tm o mesmo sentido. Da terem 24 = 4x4 e 4x4 = 24, na verdade, a mesma referncia, mas no o mesmo sentido, isto , neste caso no contm o mesmo pensamento.
Sobre a distino indicada acima, a saber, a distino entre sentido e referncia, Frege
adverte que de imediato ela possa parecer um tanto arbitrria e artificial. Em funo dessa
primeira impresso possvel, Frege alega, ento, que se faz necessrio uma justificao mais
pormenorizada para a anlise do significado lingustico em termos de uma distino entre
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sentido e referncia. E essa justificao aquilo que ele, Frege, prov no seminal ensaio
Sense and Reference (1948).
O carro chefe da doutrina fregeana do sentido e referncia consiste na tese, advogada
por Frege, de que os sinais ou smbolos da linguagem, alm de possurem uma referncia, so
dotados, tambm, de um sentido. Por sinais ou smbolos da linguagem Frege tem em vista em
especial trs tipos distintos de expresses lingusticas: a saber, termos singulares, termos
gerais e sentenas. Sobre os termos singulares, ou nomes prprios, como chama Frege, ns
podemos descrev-los como aquelas expresses cuja referncia consiste num objeto singular.
Dentre os tipos de termos singulares, ns podemos distinguir, por um lado, descries
definidas, como o autor da Metafsica e o maior filsofo nascido em Estagira, por outro,
nomes prprios, como Aristteles, Estagira e Metafsica, e, ainda, os chamados indexicais,
como eu, aqui e agora. J os termos gerais, ou termos conceituais, como chama Frege,
so aquelas expresses cuja referncia consiste no num objeto singular, mas num conceito,
ou seja, algo que diferentes objetos singulares podem ter em comum. Dentre alguns exemplos
de termos gerais ou conceituais, ns podemos citar predicados como homem, filsofo,
grego, etc. Por fim, acerca das sentenas, ns podemos dizer que expresses desse tipo
consistem em combinaes de sinais mais complexas e dotadas de valor de verdade e cuja
referncia, sustenta Frege, consiste justamente nesse valor. Figuram como casos de sentenas
expresses tais como, para dar um exemplo, Aristteles foi o maior filsofo nascido em
Estagira, o autor da Metafsica era grego, dentre outras.
Do que foi dito no pargrafo acima, fica estabelecido, portanto, que a noo de
referncia, na perspectiva fregeana, diz respeito justamente quilo que designado por uma
expresso lingustica. A natureza do que quer que venha a ser designado por uma expresso,
isto , sua referncia, varia dentre os diversos tipos gramaticais: termos singulares designam
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ou tm como referncia objetos singulares, termos gerais ou conceituais designam ou tm
como referncia conceitos e sentenas designam ou tm como referncia valores de verdade.
Bom, mas o que dizer sobre a noo fregeana de sentido? De um modo geral, ns
podemos definir o sentido de um sinal lingustico como sendo uma espcie de contedo
cognitivo do tipo informativo ou descritivo expresso pelo sinal e por meio do qual uma
referncia assinalada para a expresso. Um outro modo de definir o sentido, tal como indica
Frege, consiste em caracteriz-lo como aquilo que expresso por um sinal e contm um modo
de apresentao (ou propriedade) associado(a) ao objeto designado por esse sinal, isto , sua
referncia. Nessa direo, ns poderamos dizer, em conformidade com a viso de Frege, que
o sentido expresso pela descrio definida o nmero par e primo contm um modo de
apresentao do nmero dois, referncia dessa descrio: esse modo de apresentao, a saber,
a propriedade de ser nmero par e primo.
Mas por que assumir que os sinais, alm de designar um objeto, expressam um
sentido? Ou, para colocar de outro modo, por que no nos darmos por satisfeitos em
considerar que o significado lingustico se esgota na referncia? De que forma seria
explicativo e, ainda mais, justificvel, do ponto de vista do uso que fazemos da linguagem, a
assuno da noo fregeana de sentido? Uma justificativa para a necessidade do sentido, ns
podemos encontrar no argumento epistmico oferecido por Frege. Esse argumento
introduzido inicialmente como uma tentativa de dar resposta s seguintes questes: a
identidade ou igualdade, isto , aquilo que expresso por enunciados dos tipos A A ou A
B, seria uma relao? Uma relao entre objetos designados pelos sinais ou entre os sinais que
designam aqueles objetos?
Assim, primeiramente, Frege se prope a argumentar contrariamente hiptese da
identidade ser tomada enquanto relao entre objetos. De acordo com o autor, se isso fosse o
caso, as sentenas das formas A A e A B no poderiam diferir do ponto de vista de seus
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respectivos valores cognitivos. Por exemplo, as sentenas a estrela da manh a estrela da
manh e a estrela da manh a estrela da tarde afirmariam, nesse caso, a mesma coisa: isto
, que o objeto referido pelas duas descries definidas componentes, a saber, o planeta
Vnus, idntico a si mesmo. Mas isso no poderia ser o caso, porque ns, intuitivamente,
reconhecemos que h uma diferena de valor cognitivo entre as duas sentenas, ou seja, nossa
compreenso natural a de que a primeira sentena, diferentemente da segunda, afirma algo
que necessariamente sabido a priori. Logo, a identidade, decreta Frege, no pode ser uma
relao entre os objetos.
Descartada a hiptese da identidade enquanto relao entre objetos, Frege busca, em
seguida, refutar a possibilidade de considerarmos que os enunciados dos tipos A A ou A B
afirmarem uma relao entre seus sinais componentes. Nesse caso, a identidade seria
estabelecida pela conexo entre um determinado sinal e um determinado objeto. Todavia, tal
conexo relativa a um determinado conjunto de regras, um conjunto estipulando quais sinais
ns devemos usar, e como us-los, a fim de designar objetos. Mas aqui, nada impediria
algum que quisesse se referir a um determinado objeto de lanar mo de qualquer outro sinal
que no seja aquele estabelecido pela conveno, isso, porque a conexo entre um sinal e um
objeto arbitrria. Assim, na medida em que tomamos a identidade como uma mera relao
entre sinais, ns implicamos, por exemplo, que com o proferimento da sentena Aristteles
o autor da Metafsica um falante esteja a comunicar simplesmente que os sinais Aristteles
e o autor da Metafsica designam um mesmo objeto segundo uma dada conveno de uso de
sinais. Nesse sentido, ao chamarmos a ateno de um interlocutor para o nosso proferimento,
ns diramos apenas que, mediante determinada conveno gramatical, certos sinais entram
numa certa relao de identidade, o que no acrescenta propriamente nenhum conhecimento
acerca do objeto designado, mas apenas comunica uma informao meramente gramatical.
Tendo isso em vista, Frege sustenta, portanto, que, tanto do ponto de vista dos sinais
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exclusivamente, bem como do ponto de vista dos objetos designados por sinais
exclusivamente, ns no explicamos a diferena entre os valores cognitivos de sentenas dos
tipos A A e A B.
Assim, dando por refutadas as duas hipteses acima, a saber, a identidade como
relao entre objetos e a identidade como relao entre sinais, Frege conclui que ns devemos
admitir algo alm da referncia que explique a diferena entre os respectivos valores
cognitivos de sentenas das formas A A e A B. Nessa direo, Frege nos convida a
considerar o seguinte exemplo: um tringulo cujas linhas a, b e c ligam seus vrtices internos
com os pontos mdios dos lados opostos. Nesse caso, o que temos um ponto de interseo p
entre as linhas a e b, ponto esse que o mesmo ponto de interseo das linhas b e c, e,
tambm, o mesmo das linhas a e c. Diante disso ns temos que ora podemos usar, para
designar esse mesmo ponto de interseo, a combinao de sinais ponto de interseo de a e
b, e ora podemos usar a combinao ponto de interseo de b e c. E, ademais, podemos
usar, para designar p, uma terceira combinao de sinais: ponto de interseo de a e c.
Sobre o quadro descrito acima, a posio assumida por Frege a de que, apesar de
designarem um mesmo objeto, o ponto p, as trs diferentes combinaes fazem isso evocando
em cada caso algo de distinto, algo de distinto, mas que, no entanto, converge para o mesmo
objeto: a saber, um modo de apresentao desse objeto. Assim, o que temos aqui, segundo
Frege, so trs combinaes de sinais (ponto de interseo de a e b, ponto de interseo de
b e c e ponto de interseo de a e c) usadas para designar um mesmo objeto (o ponto p),
mas designando esse mesmo objeto por meio de um modo de apresentao distinto (ser o
ponto de interseo entre a e b, ser o ponto de interseo entre b e c e ser o ponto de
interseo entre c e a). Assim, de acordo com Frege, quando usamos a combinao de sinais
ponto de interseo de a e b, o que ns fazemos considerar o ponto p enquanto o ponto de
interseo das linhas a e b, ou seja, ns consideramos esse objeto apenas sob o ponto de vista
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de um de seus modos de apresentao, no caso, ser ponto de interseo de duas determinadas
linhas a e b que ligam os vrtices internos de um tringulo aos pontos mdios dos lados
opostos.
Com base nisso Frege alega, portanto, que uma diferena de valor cognitivo entre
sentenas dos tipos A A e A B verdadeiras se torna evidente somente se diferena entre
os sinais corresponde uma diferena no modo de apresentao daquilo que designado. Por
conseguinte, ns podemos dizer, em conformidade com a alegao de Frege, que a expresso
de uma identidade entre dois diferentes sinais A e B, se verdadeira, corresponde ao
pensamento de que tal relao se d entre os sentidos, e no entre as referncias, de A e B,
isso, na medida em que cada sinal contm um diferente modo de apresentao daquele objeto
designado pelos dois sinais.
Assim, com base em seu argumento epistmico, Frege d por justificada a necessidade
de assumirmos que as expresses da linguagem, alm de designarem um objeto, sua
referncia, expressam um sentido, ou seja, aquilo no qual est contido um modo de
apresentao do designado. De acordo com Frege, a justificativa dessa necessidade, como ns
vimos anteriormente, reside na fora explicativa que a noo de sentido imprime a nossa
teoria da linguagem tendo em vista a resoluo de problemas epistmicos envolvendo a
relao entre linguagem, conhecimento e mundo, problemas como, por exemplo, o de explicar
a diferena cognitiva entre enunciados de identidade verdadeiros dos tipos A A e A B.
Outro ponto da doutrina fregeana do sentido e referncia que merece destaque o
modo como Frege vislumbra a conexo entre sinal, sentido e referncia. Sobre isso, Frege
(1948, p.211) afirma:
A conexo regular entre o sinal, seu sentido e sua referncia de tal modo que ao sinal corresponde um sentido determinado e ao sentido, por sua vez, corresponde uma referncia determinada, enquanto que a uma referncia (a um objeto) no deve pertencer apenas um nico sinal.
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Assim, de acordo com Frege, o modo de associao entre sinais, sentidos e referncias, em
geral, tal que o sinal expressa um e somente um sentido e, alm disso, designa uma e
somente uma referncia. Essa caracterizao de como um sinal, seu sentido e sua referncia
esto associados o que Frege chama de conexo regular. Entretanto, sobre isso, Frege
adverte que a idia de conexo regular no implica que a cada referncia corresponda um e
somente um sentido e, consequentemente, um e somente um sinal, ou seja, a uma referncia
podem estar associados diversos sentidos e, por conseguinte, vrios sinais. A fim de
exemplificar essa ideia fregeana de uma conexo regular entre sinal, sentido e referncia,
vamos considerar a descrio definida o nmero par e primo. Essa descrio definida, ns
podemos afirmar, designa um objeto, a saber, o nmero dois e o faz por meio de uma certa
descrio desse nmero, uma descrio do tipo o indivduo com tal e tal propriedade,
propriedade que, no caso da descrio em questo, consiste no modo de apresentao ser
nmero par e primo. Aqui, portanto, nos vemos diante de uma expresso lingustica qual
corresponde um e somente um sentido, aquele contendo o modo de apresentao ser nmero
par e primo. A razo para tanto consiste no fato da descrio definida o nmero par e primo
descrever o que quer que ela designe invariavelmente atravs da mesma propriedade e no
outra. Ademais, ns temos ainda que ao sentido expresso por essa descrio definida,
consequentemente, corresponde uma e somente uma referncia: o nmero dois; a razo para
tanto que apenas esse nmero possui a propriedade de ser o nmero par e primo. Por fim,
ns devemos observar que ao nmero dois podem corresponder outros sentidos e outros
sinais: por exemplo, o nmero natural que sucede um e precede trs. Portanto, com base
nessas observaes, ns podemos afirmar que a descrio definida o nmero par e primo
representa um caso de expresso lingustica que satisfaz o critrio da conexo regular
estipulado por Frege.
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Contudo, no obstante conceber uma conexo regular entre sinais, sentidos e
referncias tal como h pouco caracterizamos, Frege admite a existncia de casos anmalos,
isto , expresses lingusticas que contrariam sua idia de conexo regular. Segundo Frege,
esses casos seriam representados em larga escala pelo advento das chamadas linguagens
naturais. A respeito disso, Frege (1948, p.211) comenta:
verdade que excees a esta regra ocorrem. Certamente deveria corresponder, a cada expresso, que pertena a uma totalidade perfeita de sinais, um sentido determinado; mas, frequentemente as linguagens naturais no satisfazem a esta exigncia e deve-se ficar satisfeito se a mesma palavra tiver sempre o mesmo sentido num mesmo contexto. Talvez possa se assegurar que uma expresso gramaticalmente bem construda, e que desempenhe o papel de nome prprio, sempre tenha um mesmo sentido. Mas com isto no se quer dizer que ao sentido corresponda sempre uma referncia.
Na literatura fregeana, ns podemos observar que Frege leva em conta trs tipos de
contra-exemplos noo de conexo regular, contra-exemplos esses oferecidos pelas
linguagens naturais.
O primeiro tipo de contra-exemplo representado pelas expresses lingusticas
carentes de referncia. Para dar um exemplo desse tipo de contra-exemplo, tomemos a
expresso o maior nmero mpar. Essa expresso, embora suscite ou carregue uma certa
descrio de um suposto objeto, no se refere a efetivamente nada, isso, uma vez que no h
na srie dos nmeros um objeto para o qual possamos atribuir de modo definitivo a
propriedade de ser o maior nmero mpar. Colocando de outro modo, aqui ns temos uma
expresso lingustica, a descrio definida o maior nmero mpar, que, no obstante
expressar um sentido, nesse caso, aquele contendo o modo de apresentao ser nmero natural
mpar, no designa uma referncia.
Um segundo tipo de contra-exemplo noo de conexo regular mencionado por
Frege seria oferecido por aquelas expresses que h pouco ns chamamos de indexicais.
Como observa Frege, expresses desse tipo, palavras tais como, por exemplo, aqui, ali,
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hoje, amanh, etc., embora carreguem um sentido e, alm disso, no sejam carentes de
uma referncia, no se adequam noo de conexo regular, porque sua referncia sensvel
ao contexto, ou seja, mesma expresso, em diferentes contextos de proferimento, podem
corresponder diferentes objetos como sua referncia. Consideremos o seguinte caso discutido
por Frege em The Thought A Logical Inquiry (1956). L, Frege (Ibid., p.296) afirma:
Se algum quer dizer hoje o mesmo que expressou ontem usando a palavra hoje, ele deve substituir essa palavra por ontem. Embora o pensamento seja o mesmo, sua expresso verbal deve ser diferente de tal modo que o sentido, que de outro modo seria afetado pelos diferentes tempos de proferimento, seja reajustado. O caso o mesmo com palavras como aqui e ali.
Com isso, ns nos deparamos com algo que certamente contraria o princpio da conexo
regular: a saber, que se utilizamos um termo sensvel ao contexto, tal como um indexical, em
contextos diferentes, ns podemos vir a designar diferentes referncias por meio do mesmo
sinal. Tal como sugerido por Frege na citao acima, se ns deixamos de realizar a
mencionada substituio de palavras de tal modo que, em dois contextos diferentes, ontem e
hoje, digamos, ns proferimos uma sentena contendo a expresso hoje, ns designamos
atravs dessa expresso, em cada contexto, coisas evidentemente distintas. E o mesmo, tal
como admite Frege, se aplica s demais expresses indexicais, ou seja, uma expresso desse
tipo pode ter diferentes referncias em contextos de uso distintos. Assim, alm das expresses
carentes de referncia, indexicais, tambm, vo de encontro ao princpio da conexo regular
no pela falta de referncia, mas por poderem no designar a mesma referncia, em diferentes
contextos.
Um terceiro contra-exemplo ao princpio da conexo regular, como indica Frege, seria
representado por aquelas expresses tais como Aristteles, Estagira, Liceu, enfim, nomes
prprios. De acordo com Frege, nomes prprios, tal como ns os usamos ordinariamente,
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contrariariam o princpio supracitado, na medida em que podem estar associados a diferentes
sentidos. Sobre isso, afirma Frege (1948, p.210, n.2):
No caso de um nome prprio real tal como Aristteles, as opinies sobre o seu sentido podem divergir. Ele poderia, por exemplo, ser tomado da seguinte forma: o pupilo de Plato e professor de Alexandre o Grande. Qualquer um que fizesse isso atribuir um outro sentido sentena Aristteles nasceu em Estagira que no aquele que ser atribudo por um homem que toma como sentido do nome: o professor de Alexandre o Grande que nasceu em Estagira.
Sobre essa afirmao, ns podemos estabelecer, portanto, que, do ponto de vista fregeano,
nomes prprios podem no ter um sentido determinado. A razo para tanto, como Frege
sugere na citao acima, se deve possibilidade de diferentes falantes associarem diferentes
sentidos a um mesmo nome prprio. Aproveitando o exemplo dado por Frege, num caso, um
falante poderia associar ao nome prprio Aristteles, como seu sentido, algo representvel
em termos da descrio definida o pupilo de Plato; num outro caso, outro falante poderia
tomar o sentido do mesmo nome como sendo dado por outra descrio, digamos, o professor
de Alexandre o Grande. Assim, o princpio da conexo regular no se aplicaria ao caso
envolvendo nomes prprios, na medida em que expresses desse tipo, tal como ns as
utilizamos ordinariamente, podem estar associadas no a um mesmo sentido, mas a vrios.
Aqui, seria interessante examinar um outro aspecto relevante da doutrina fregeana do
sentido e referncia. Como vimos h pouco, Frege, ao discutir o uso que fazemos de nomes
prprios, sinaliza para a possvel relatividade do sentido. Sobre isso, algum, tendo em vista
que diferentes indivduos podem conceber de maneiras distintas o sentido associado a um
mesmo nome prprio, poderia confundir o sentido fregeano com uma espcie de imagem
interna da referncia, isto , uma imagem que, produzida individualmente, representa, na
mente de cada indivduo, uma representao subjetiva do objeto designado. A respeito dessa
confuso, Frege observa, contudo, que, apesar do sentido poder variar (em especial, o sentido
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expresso por nomes prprios), no se segue que ele equivalha a uma representao subjetiva
da referncia. Em favor dessa distino, Frege (1948, p.212) acrescenta o seguinte:
Se a referncia de um sinal um objeto perceptvel pelos sentidos, minha representao dela uma imagem interna, surgida de memrias de impresses sensveis que eu tive e de atividades, tanto internas quanto externas, que eu realizei. Tal representao saturada de sentimento; a claridade de suas partes varia e oscila [...] Isso constitui uma distino essencial entre representao e o sentido de um sinal, que pode ser propriedade comum a muitos e portanto no uma parte ou um modo da mente individual.
De acordo com Frege, a razo para diferenciarmos sentido de representao, tal como ns
compreendemos, consiste no modo como ns acessamos ou apreendemos cada um. Para
Frege, por um lado, apesar de ns podermos associar diversos sentidos a um mesmo nome
prprio, nada impede que vrios indivduos apreendam o mesmo sentido. Por outro lado, no
entanto, esses mesmos indivduos, diz Frege (Ibid.), no podem ter a mesma representao.
Nessa direo, ele afirma:
Quando dois homens representam a mesma coisa, ainda assim cada um tem sua prpria representao. De fato, s vezes possvel estabelecer diferenas entre representaes, ou mesmo as sensaes de homens diferentes; mas uma comparao precisa no possvel, porque no podemos ter ambas as representaes juntas na mesma conscincia. (FREGE, Ibid.)
Assim, no que diz respeito quilo que associamos aos sinais, a perspectiva fregeana
implica uma diferenciao. Sobre essa diferenciao, Frege acrescenta algumas comparaes
bastante esclarecedoras. Nessa direo, ele coloca:
Algum observa a lua atravs de um telescpio. Comparo a lua referncia; ela o objeto da observao, mediado pela imagem real projetada pela lente no interior do telescpio, e pela imagem retiniana do observador. A primeira, eu comparo ao sentido, a segunda, representao. A imagem ptica no telescpio de fato unilateral e depende de um certo ponto de vista de observao; mas ela ainda assim objetiva, na medida em que ela pode ser utilizada por diversos observadores. Ela poderia ser arranjada para que muitos possam utiliz-la simultaneamente. Mas cada um tem sua prpria imagem retiniana. Em funo dos olhos dos observadores possurem diferentes formas, mesmo uma congruncia geomtrica dificilmente seria
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alcanada, e uma coincidncia real estaria fora de cogitao. (FREGE, 1948, p.213)
Assim, a diferenciao fregeana entre sentido e referncia, de um lado, e representao, de
outro, compatvel com a compreenso de que a linguagem, ou melhor, a linguagem tal como
ns a utilizamos, envolve dois planos: um objetivo e um subjetivo. No plano objetivo, ns
teramos, portanto, sentido e referncia, que so objetivos, na medida em que podem ser
acessados igualmente por diferentes indivduos. J no plano subjetivo, por outro lado, ns
encontramos a representao, que subjetiva, na medida em que s pode ser acessada
exclusivamente pelo indivduo que a detm como representao de um objeto.
Dadas essas observaes, ns estamos agora aptos, portanto, a delinear uma breve
caracterizao do que entendemos ser uma teoria fregeana da nomeao. Assim, ns
apresentaremos, na seo seguinte, nossa compreenso acerca de como se poderia caracterizar
uma teoria fregeana da nomeao tomando como base para essa caracterizao o modo como
Frege aplica sua distino entre sentido e referncia a nomes prprios.
1.2 O Sentido e a Referncia de Nomes Prprios
De acordo com Frege, a designao de um objeto por parte de um sinal se d por meio
da expresso de um sentido, isto , algo no qual est contido um modo de apresentao desse
objeto. Sobre isso, Frege pondera, portanto, que, em geral, a associao entre sinal, sentido e
referncia tal que a cada sinal corresponde um sentido determinado e, consequentemente,
uma referncia determinada. Como vimos anteriormente, Frege admite, no entanto, que
excees a essa regra (o que chamamos de princpio de conexo regular) podem ocorrer.
Uma dessas excees seria representada pelos nomes prprios.
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Assim, com base nas ponderaes de Frege acerca de como nomes prprios no
satisfazem a idia de conexo regular, ns buscaremos oferecer um quadro explicativo do que
se poderia chamar de teoria fregeana da nomeao.
Segundo Frege, nomes prprios, do ponto de vista de como eles so usados
ordinariamente, podem estar associados a diversos sentidos. A razo para tanto, como ns
vimos h pouco, reside na possibilidade de diferentes indivduos associarem diferentes
sentidos a um mesmo nome prprio. Para dar um exemplo, possvel, por um lado, que um
certo indivduo tome que o sentido expresso pelo nome prprio Aristteles contenha o modo
de apresentao ser discpulo de Plato. Entretanto, concordaria Frege, que possvel,
tambm, por outro lado, que um outro indivduo tome que o sentido expresso pelo mesmo
nome contenha no aquele modo de apresentao, mas outro: digamos, ser professor de
Alexandre o Grande. Assim, ns podemos estabelecer como um primeiro aspecto da teoria
fregeana da nomeao a assuno, feita por Frege, de que nomes prprios podem expressar
diferentes sentidos.
No entanto, diante da possibilidade da variao do sentido, algum poderia indagar se
a referncia de um nome prprio, bem como seu sentido, est sujeita a tal variao, ou seja,
se, tambm, possvel que diferentes indivduos associem diferentes referncias a um mesmo
nome prprio. Sobre essa possvel indagao, Frege (1948, p.210, n.2) afirma que enquanto a
referncia permanecer a mesma, tais variaes de sentido podem ser toleradas, embora elas
devam ser evitadas na estrutura terica de uma cincia demonstrativa e no devam ocorrer em
uma linguagem completa. A respeito dessa afirmao, ns podemos supor, portanto, que a
variao de sentido que Frege tem em vista aquela que justamente no afeta a referncia de
um nome prprio. Ou seja, para Frege, ns podemos, por exemplo, associar diferentes
sentidos ao nome prprio Aristteles, contanto que, ao fazermos isso, ns associemos
sentidos que contenham diferentes modos de apresentao do mesmo objeto, a saber,
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Aristteles, sua referncia costumeira. Nessa direo, no seriam sentidos passveis de serem
associados ao nome prprio Aristteles aqueles representados pelas descries definidas o
discpulo de Alexandre e o professor de Plato, uma vez que tais sentidos contm modos de
apresentao que no correspondem a Aristteles. Assim, ns poderamos estabelecer como
segundo aspecto da teoria fregeana da nomeao a idia de que a referncia de nomes
prprios, ao contrrio do seu sentido, no est sujeita variao.
Por fim, ns poderamos mencionar, ainda, um terceiro aspecto bastante representativo
do ponto de vista fregeano acerca da nomeao. Como vimos h pouco, ao comentar a
possibilidade de nomes prprios estarem associados a diferentes sentidos, Frege sugere que
esses sentidos seriam passveis de ser formulados em termos de uma expresso da forma o x
tal que Fx, ou seja, descries definidas. Essa sugesto seria atestada pelo fato de Frege, ao
exemplificar os possveis sentidos expressos pelo nome Aristteles, representar esses
sentidos atravs de expresses como o discpulo de Plato e o professor de Alexandre o
Grande, a saber, descries definidas. Desse modo, se os sentidos expressos por nomes
prprios podem ser representados por descries definidas, nada ns impede de concluir que o
sentido (e, por conseguinte, a referncia) de um nome prprio um contedo do tipo
descritivo, ou seja, o mesmo contedo carregado por alguma descrio definida. Nessa
direo, ns teramos, por exemplo, que o sentido expresso pelo nome prprio 2, nome do
nmero dois, seria dado por alguma descrio definida, uma descrio como, digamos, o
nmero par e primo. Assim, ns podemos estabelecer que outro aspecto destacvel da teoria
fregeana da nomeao seria representado pela compreenso de que nomes prprios tm um
sentido descritivo, ou seja, expressam um sentido que o mesmo expresso por alguma
descrio definida.
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Captulo 2 O Argumento Modal de Kripke
O captulo que se segue ser dedicado especialmente a Kripke, ou, especificamente
falando, anlise do seu assim chamado argumento modal. Essa terminologia inspirada
em Soames1, que alega haver trs tipos de argumentos oferecidos por Kripke contra aquelas
teorias semnticas que analisam o significado, ou a referncia, de nomes prprios em termos
do significado, ou denotao, de descries definidas associadas a esses nomes. Assim, de
acordo com Soames, ns teramos os argumentos semnticos, os argumentos epistemolgicos
e os argumentos modais. O primeiro tipo de argumento, o semntico, se caracteriza enquanto
uma tentativa de provar que nomes prprios no tm sua referncia determinada
linguisticamente como sendo a denotao de uma descrio definida. A razo para isso, de
acordo com o argumento semntico, seria que tal descrio pode no denotar nada, ou, ainda,
denotar um outro objeto que no aquele referido pelo nome. O segundo tipo de argumento, o
epistemolgico, diz que o status epistmico de uma sentena contendo nomes prprios difere
do status epistmico de uma sentena correspondente contendo descries definidas. Para dar
um exemplo, as sentenas se N existe, N o x tal que F(x) e se o x tal que F(x) existe, o x
tal que F(x) o x tal que F(x) expressam proposies de tipos distintos: a saber, essa
sentena, ao contrrio daquela, expressa uma proposio cujo valor de verdade ns
certamente sabemos a priori. De acordo com o argumento epistmico, isso suportaria que a
descrio o x tal que F(x) e o nome N no tm de fato o mesmo significado. O terceiro e
ltimo tipo de argumento2, o modal, basicamente tem em vista que os perfis modais de
sentenas contendo nomes prprios e sentenas contendo descries definidas so distintos.
1 SOAMES (1998, p.1).
2 Como ns veremos mais adiante, nossa caracterizao do argumento kripkeano destoa ligeiramente daquela
dada por Soames muito embora ambas se aproximem, na medida em que destacam a nfase conferida por Kripke ao comportamento modal de nomes prprios e descries definidas.
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Isso seria usado para mostrar que os significados de nomes no so dados pelas descries
associadas a eles.
O argumento modal de Kripke, apresentado em Naming and Necessity3, representa,
portanto, uma de suas mais significativas objees teoria dos nomes prprios de Frege. No
entanto, antes de propriamente apresentar e analisar o argumento modal, trs pontos bastante
distintivos da objeo defendida por Kripke devero ser tratados. A razo para isso se deve ao
fato de que o tratamento desses pontos fundamental para a promoo de um claro
entendimento do tipo de objeo que Kripke, ao formular o argumento modal, dirige teoria
fregeana. Os trs pontos caractersticos da objeo kripkeana em questo, isto , aqueles
pontos a serem tratados tal como preliminares apresentao e anlise do argumento modal
de Kripke, consistem basicamente em:
(1) o modo como caracterizada a teoria fregeana dos nomes prprios;
(2) o tratamento dado noo de mundo possvel;
(3) o tratamento dado noo de designao rgida.
2.1 O Descritivismo
Nesta seo, ns procuraremos explicitar, a partir da nossa anlise acerca de certas
passagens de Naming and Necessity4, como Kripke caracteriza a teoria fregeana dos nomes
prprios ou, para usar a terminologia corrente, o descritivismo fregeano. Como ns j
mencionamos anteriormente, essa caracterizao representa um dos pontos fundamentais da
objeo que Kripke, ao prover seu argumento modal, dirige teoria fregeana dos nomes
prprios.
3 KRIPKE (1980).
4 Ibid.
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Na Lecture I5 de Naming and Necessity, ao discutir a relao entre nomes prprios e
descries definidas, Kripke apresenta o descritivismo fregeano como uma espcie de
contraponto teoria dos nomes no-conotativos de Mill. L, Kripke (1980, p.27, nossa
traduo) afirma precisamente que:
[...] a tradio clssica da lgica moderna tem sido fortemente contrria perspectiva de Mill. Frege e Russell pensaram, e parecem ter chegado a esses resultados independentemente um do outro, que Mill esteve equivocado num sentido bastante forte: um nome prprio, usado de modo apropriado, simplesmente uma descrio definida abreviada ou disfarada. Frege especificamente diz que uma tal descrio d o sentido do nome.
Assim, segundo Kripke, por um lado, ns teramos a teoria de Mill, uma teoria para a
qual nomes prprios no conotam, isto , denotam os indivduos a quem do o nome, mas
no afirmam nem implicam qualquer atributo como pertencente a esses indivduos (MILL,
1974, p.95). Ento, de acordo com a teoria milliana, um nome prprio como Foz do Iguau,
por exemplo, no conteria em seu significado, se h algum, qualquer atributo, ainda que esse
nome tenha sido originalmente associado ao objeto por ele denotado em razo de esse objeto
possuir o atributo de ser a cidade localizada na foz do rio Iguau. Em favor dessa viso, Mill
(Ibid.) argumenta que mesmo se a areia obstrusse a foz do rio ou um terremoto mudasse o
seu curso e o afastasse da cidade, o nome da cidade no seria necessariamente mudado.
Assim, para Mill, nomes prprios ao contrrio de uma outra espcie de nomes individuais
que so conotativos6 denotam objetos independentemente da permanncia de quaisquer uns
de seus atributos e, portanto, tais termos no contm informao alguma sobre o objeto
denotado. Nomes prprios, portanto, afirma Mill (Ibid., p.97), no tm, a rigor, nenhuma
significao.
5 KRIPKE (1980, pp.22-70).
6 Basicamente, o que se deve ter em vista aqui so aquelas expresses que modernamente chamamos de
descries definidas. Para dar uma definio, devemos dizer que, segundo Mill (1974, p.96), um nome um termo individual e conotativo em razo de conter em seu significado algum(s) atributo(s) que seja(m) possudo(s) por um e somente um objeto.
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No entanto, de acordo com Kripke, ns teramos, por outro lado, isto , na contramo
da teoria dos nomes no-conotativos de Mill, a teoria fregeana dos nomes prprios, ou,
simplesmente, o descritivismo. Falando de um modo geral, ns poderamos afirmar que
Kripke caracteriza o descritivismo como consistindo basicamente em uma teoria semntica
para a qual nomes prprios expressam ou carregam um sentido, isto , um contedo descritivo
determinando o objeto designado pelo nome enquanto sendo algo da forma o x tal que F(x).
Assim, de acordo com a caracterizao dada por Kripke, o descritivismo enquanto uma teoria
dos nomes prprios implica que todo e qualquer nome prprio reduz-se, na verdade, a uma
descrio definida, a saber, aquela descrio da forma o x tal que F(x) representando o sentido
supostamente carregado pelo nome. Para dar um exemplo, suponhamos que o nome prprio
Braslia expresse um sentido e que esse, por sua vez, determine a referncia designada pelo
nome enquanto sendo, digamos, a capital do Brasil em 2008. Nesse caso, no haveria
nenhuma diferena semntica entre o nome prprio Braslia e a descrio definida a capital
do Brasil em 2008, uma vez que ambos isto , o nome e a descrio designariam o
mesmo objeto e esse, por sua vez, seria determinado pelo mesmo sentido; ou seja, ambos
teriam sua referncia determinada enquanto sendo a capital do Brasil em 2008. Desse modo,
tal como considera Kripke (1980, p.58), a teoria descritivista supe que nomes prprios
(como Braslia) devam ser tratados enquanto sinnimos daquelas descries definidas
(como a capital do Brasil em 2008) que alegadamente dariam o sentido e, por conseguinte, a
referncia a eles associado.
Assim, de acordo com o quadro descrito acima, o descritivismo parece implicar
justamente aquilo que categoricamente negado por Mill: a saber, que nomes prprios so
termos individuais conotativos. De acordo com esse quadro, portanto, a teoria descritivista, ao
supor que nomes prprios so sinnimos de descries definidas, implicaria que tais nomes,
na verdade, correspondem em significado a tais descries. Nesse caso, dado que descries
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definidas, por definio, pressupem ao menos um atributo relativo ao objeto por ela
designado, e que, por essa mesma razo, tais descries devam ser chamadas termos
individuais conotativos, se o descritivismo, como sugere Kripke, supe que nomes prprios
correspondem em significado a uma descrio definida, se segue, portanto, que, essa teoria,
ao menos implicitamente, admite que nomes prprios devam ser tratados como termos
individuais conotativos, isso, uma vez que tais nomes implicariam, ainda que indiretamente,
aquele(s) atributo(s) pressuposto(s) pela descrio por eles abreviada. Portanto, tal como ns
podemos entender, desse modo que Kripke parece considerar o antagonismo existente entre
o descritivismo e a teoria milliana.
Contudo, como afirma Kripke (1980, p.27), haveria algumas razes muito mais
favorveis ao descritivismo do que teoria dos nomes no-conotativos de Mill. A ttulo de
exemplo, ns podemos citar trs argumentos que, de acordo com Kripke, parecem conclusivos
em proveito do ponto de vista descritivista sobre nomes prprios.
O primeiro argumento, segundo Kripke (Ibid., pp.27-28), uma tentativa de oferecer
uma resposta adequada seguinte questo: como possvel determinar qual a referncia
associada a um nome prprio? Para alguns, a resposta simples: ns sabemos a quem ou a
que um nome prprio se refere porque aprendemos ostensivamente a associar um nome sua
respectiva referncia, isto , ns aprendemos a realizar essa associao observando repetidas
vezes algum apontando o objeto designado pelo nome e relacionando esse objeto ao nome
que o designa. Entretanto, nesse caso, ns no saberamos a quem ou ao que se refere um
considervel nmero de nomes prprios, a saber, aqueles nomes prprios de objetos no mais
existentes como, para dar alguns exemplos, os nomes prprios histricos Scrates, Plato,
Aristteles. A razo para isso que seria impossvel apontar para tais objetos, dado que eles,
evidentemente, no mais existem. Por outro lado, a resposta descritivista parece solucionar
esse problema: segundo tal resposta, ns aprenderamos a associar adequadamente um nome
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prprio sua respectiva referncia na medida em que apreenderamos o sentido carregado
pelo nome; dessa forma, uma vez que esse sentido consiste justamente naquilo que determina
o que vem a ser o objeto designado pelo nome, indiferente que se possa ou no apontar para
esse objeto a fim de saber a quem o nome se refere. Assim, uma forte razo em favor da teoria
descritivista que ela explica, ao contrrio da teoria dos nomes no-conotativos de Mill, o
modo como determinada a referncia designada por certos nomes prprios.
O segundo argumento mencionado por Kripke (1980, pp.28-29) consiste em uma
tentativa de explicar por que certas sentenas verdadeiras do tipo N P, tal que N e P
representam nomes prprios co-referenciais designando um mesmo objeto x, so
informativas. Ou seja, o que temos aqui uma tentativa de explicao de por que tais
sentenas, embora paream afirmar somente que um objeto x idntico a si mesmo, na
realidade, afirmam uma verdade no-analtica. Segundo o argumento, que essas sentenas
sejam informativas se deve ao fato de cada nome prprio componente estar associado a um
sentido que determina de modo particularmente distinto o objeto designado. Assim, uma vez
que os sentidos associados aos nomes N e P sejam dados, respectivamente, por descries
definidas co-referenciais dos tipos o y tal que F(y) e o z tal que G(z) designando um dado
objeto x, se segue que a sentena N P equivale, na verdade, sentena informativa o y tal
que F(y) o z tal que G(z), e no, tal como algum poderia supor, sentena trivial x x.
Para dar um exemplo (vamos assumir que os personagens fictcios exemplificados a seguir
sejam pessoas reais), ns temos que os nomes prprios Clark Kent e Kal-El se referem a,
respectivamente, o kriptoniano adotado pela famlia Kent e o filho de Jor-El e Lara. Contudo,
qualquer um que conhea minimamente a histria em questo sabe que Clark Kent e Kal-El
so a mesma pessoa, a saber, Super-Homem. Nesse caso, de acordo com o argumento, quando
proferimos a sentena Clark Kent Kal-El, ns afirmamos no somente que Super-Homem
idntico a si mesmo, mas que o kriptoniano adotado pela famlia Kent o filho de Jor-El e
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Lara. Desse modo, aquela sentena equivaleria no sentena trivial Super-Homem Super-
Homem, mas sentena informativa o kriptoniano adotado pela famlia Kent o filho de
Jor-El e Lara. Assim, uma outra razo em favor do descritivismo seria que essa teoria
semntica nos permite explicar, como diria Kripke (1980, p.29), o real significado dos
enunciados de identidade em questo.
O terceiro argumento, por fim, consiste, segundo Kripke (Ibid.), em explicar por que
aquelas sentenas verdadeiras da forma N no existe, onde N exemplifica um nome prprio,
no implicam um contra-senso. Segundo o argumento, seria contra-intuitivo considerar que
uma sentena tal como Papai Noel no existe afirma de um certo objeto (nesse caso, o
indivduo designado pelo nome prprio Papai Noel) que ele no existe, porque tal modo de
considerar o que afirmado por esse tipo de sentena suporia o contra-senso de, por um lado,
haver um objeto (a saber, Papai Noel), e, por outro, esse mesmo objeto no existir. Assim, de
acordo com o argumento, uma maneira de evitar o referido contra-senso seria considerar que
os nomes prprios componentes de tais sentenas existenciais estejam associados cada qual a
um sentido: uma vez que esse sentido implica certa(s) propriedade(s), o que seria de fato
afirmado por uma sentena da forma N no existe envolveria no a inexistncia do objeto
designado pelo nome prprio componente, mas a inexistncia de qualquer objeto
correspondendo quelas propriedades implicadas pelo sentido expresso pelo nome.
Um outro aspecto relevante relativo caracterizao kripkeana do descritivismo que
essa teoria pode ser considerada de dois modos distintos. Assim, de acordo com Kripke (Ibid.,
pp.31-32), ns podemos tomar o descritivismo ou enquanto uma teoria do significado, ou
enquanto uma teoria da referncia. Dessa forma, por um lado, ns poderamos considerar que,
segundo o descritivismo, nomes prprios tm seus respectivos significados dados por aquelas
descries definidas do tipo o x tal que F(x). Considerando dessa forma o descritivismo, isto
, considerando-o enquanto uma teoria do significado, ns teramos, tal como afirma Kripke
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(1980, p.32, nossa traduo), que quando algum diz Walter Scott, ele quer dizer o homem
tal e tal (...). Por outro lado, ns poderamos tomar que, de um ponto de vista descritivista,
nomes prprios, independentemente de significarem ou no algo como o x tal que F(x), tm
sua referncia dada justamente por uma descrio definida da forma o x tal que F(x). Desse
modo, tomar o descritivismo enquanto uma teoria da referncia implicaria justamente em
admitir, tal como menciona Kripke (Ibid., nossa traduo), que:
[...] apesar de a descrio [isto , uma descrio definida da forma o x tal que F(x)] em algum sentido no dar o significado do nome, ela o que determina sua referncia e embora a expresso Walter Scott no seja um sinnimo de o homem tal e tal [...], a descrio simples usada para determinar a quem algum se refere quando diz Walter Scott.
Tendo em vista essa distino, Kripke supe que Frege prov tanto uma teoria do
significado, quanto uma teoria da referncia de nomes prprios. A razo para isso, segundo
Kripke, consiste em que para Frege o sentido associado a um nome prprio desempenha uma
dupla funo semntica. Como afirma Kripke (Ibid., p.59, nossa traduo):
Frege toma o sentido de um designador [isto , qualquer termo singular, segundo a terminologia de Kripke] a ser seu significado e ele o toma tambm a ser o modo a partir do qual sua referncia determinada. Identificando os dois, ele supe que ambos sejam dados por descries definidas [...]. Uma descrio pode ser usada como sinnimo de um designador, ou ela pode ser usada para fixar sua referncia. Os dois sentidos fregeanos de sentido correspondem aos dois sentidos de definio no modo de falar ordinrio.
Assim, de acordo com a leitura de Kripke, o descritivismo fregeano no prev que haja
qualquer diferena semntica significativa entre descries definidas e nomes prprios:
segundo ele, Frege defenderia que qualquer termo singular, seja ele uma descrio definida ou
um nome prprio, alm de designar um e o mesmo objeto, sua referncia, expressa um e o
mesmo sentido. Em outras palavras, para Kripke, aquela idia fregeana de uma conexo
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regular entre sinal, sentido e referncia7 se aplicaria indiscriminadamente tanto s descries
definidas, quanto aos nomes prprios. Desse modo, na medida em que o sentido e a referncia
associados a qualquer nome prprio seriam dados por uma descrio definida, segue-se,
portanto, que um nome prprio abrevia uma nica e a mesma descrio definida. Eis a a
razo para, de acordo com a leitura kripkeana, considerarmos que Frege certamente [...]
parece ter a teoria de acordo com a qual um nome prprio sinnimo com relao descrio
que o substitui (KRIPKE, 1980, p.58, nossa traduo), isto , substitui na medida em que
expressa o mesmo sentido e designa a mesma referncia.
Ademais, vale antecipar que precisamente tendo em vista esse quadro isto , que
nomes prprios esto associados a um e o mesmo sentido e, por conseguinte, que seus
significados so dados por uma nica e a mesma descrio definida que Kripke dirige sua
objeo a Frege. Como veremos mais adiante, a idia de Kripke, ao prover seu argumento
modal, que Frege esteve equivocado em sustentar que nomes prprios, maneira das
descries definidas, carregam um nico e o mesmo sentido. Assim, justamente contra a
idia, supostamente fregeana, de que h uma conexo regular entre nomes prprio e sentido
que Kripke desenvolve o referido argumento.
2.2 A Concepo Kripkeana de Mundos Possveis
Nesta seo, ao explorar algumas passagens de Naming and Necessity, ns
procuraremos evidenciar o tratamento dado por Kripke noo de mundo possvel. Para dar
uma descrio mais acurada desse tratamento, ns nos ocuparemos em discutir algumas
questes que de certo modo esto em conexo com o quadro kripkeano do que so mundos
possveis.
7 Ao sinal corresponde um sentido determinado e ao sentido, por sua vez, corresponde uma referncia
determinada (FREGE, 1948, p.210).
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Em certa passagem, Kripke (1980, p.40, nossa traduo) lana a seguinte questo:
Podemos dizer de qualquer particular que ele tem propriedades necessrias ou contingentes,
ou mesmo fazer uma distino entre propriedades necessrias e contingentes?. Para alguns
filsofos8, considera Kripke, dizer de um objeto qualquer que ele tem necessariamente ou
contingentemente certa propriedade depende do modo como descrevemos tal objeto. Nesse
caso, a propriedade ser nmero natural maior que um e menor que trs seria, por um lado,
necessria com respeito a dois, se definimos esse objeto como o nmero par/primo, e, por
outro, contingente, se definimos esse mesmo objeto como o nmero de ttulos da copa do
mundo de futebol conquistados pelo Uruguai. Mas haveria a uma boa razo para
trivializarmos de tal modo a idia de uma distino entre propriedades necessrias e
contingentes? Para Kripke, a resposta certamente no. Em favor da no trivialidade dessa
idia, ele argumenta que a questo de se tal e tal propriedade vem a ser necessria ou
contingente relativamente a um dado objeto intuitiva porque equivale a uma outra questo
evidentemente intuitiva: a saber, a questo de se o objeto em alguma situao possvel poderia
ou no deixar de ter aquela propriedade. Seguindo a linha argumentativa de Kripke, o que na
verdade fazemos quando, por exemplo, questionamos se ser presidente do Brasil em 2008
necessrio ou contingente com respeito a Lula, consiste basicamente em perguntar se numa
outra circunstncia diferente da atual Lula poderia ter perdido a disputa pelo segundo mandato
nas eleies de 2004. Assim, Kripke conclui que consiste num equvoco sustentar que seja
contra-intuitivo indagar se um dado objeto poderia ou no deixar de ter as propriedades tidas
por ele atualmente.
No obstante tal concluso, Kripke pondera ainda que algum pudesse alegar que seu
argumento intuitivo oferece evidncias muito pouco conclusivas em favor de que
significativo falar acerca da distino entre propriedades necessrias e contingentes. Uma das
8 Como exemplos desses filsofos, ns podemos citar Quine. Segundo ele, ser necessariamente ou
possivelmente de uma determinada maneira em geral no uma caracterstica do objeto em questo, mas depende do modo por meio do qual o objeto referido (QUINE, 1963, p.148, nossa traduo).
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razes por detrs dessa alegao , diz Kripke (1980, p.42), a suposio de que h uma
equivalncia entre a questo envolvendo propriedades essenciais e a questo da identidade
transmundana. Colocando de outra maneira, essa suposio consiste em tomar que para
considerarmos quais propriedades um dado objeto poderia ou no poderia deixar de ter numa
situao possvel, ns devemos dispor antecipadamente de um conjunto de condies
necessrias e suficientes que permita de modo bem definido identificar aquele objeto nessa
situao possvel, ou seja, devemos dispor de um critrio de identidade transmundana para tal
objeto. Exemplificando, a idia que ns somente sabemos que ter sido o melhor jogador de
futebol do Flamengo essencial ou acidental com respeito a Zico isto , que numa situao
possvel Zico poderia ter ou no ter sido o melhor jogador de futebol do Flamengo se de
antemo possumos um critrio dando a identidade de Zico para todos os mundos possveis.
Essa questo, contudo, ambgua. Por um lado, parece no haver grandes controvrsias em se
falar de algo como um critrio de identidade transmundana para objetos matemticos: por
exemplo, no temos nenhuma hesitao em dizer sobre o nmero dois que ele
necessariamente par/primo e contingentemente o nmero de copas conquistadas pelo Uruguai.
Por outro lado, no que tange a objetos materiais, de fato extremamente problemtico dar
condies necessrias e suficientes que permitam dizer o que essencial ou acidental
relativamente a Zico, Everest, aquela mesa, etc. Assim, (embora Kripke no afirme
expressamente, o que se segue parece consequente com a sua reflexo) para aqueles filsofos,
na medida em que no dispomos de um critrio de identidade para objetos materiais e
havendo ainda uma suposta equivalncia entre aquelas duas questes (propriedades essenciais
e identidade transmundana), seria contra-intuitivo, ao menos em se tratando de objetos
materiais, ns considerarmos de modo significativo a distino entre propriedades necessrias
e contingentes.
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No entanto, mesmo admitindo que haja alguma dificuldade em se estipular um critrio
de identidade transmundana para objetos materiais, Kripke discorda que seja contra-intuitivo
ns considerarmos a questo de se um objeto tem necessariamente ou contingentemente tais e
tais propriedades ou o que equivalente, de acordo com a viso kripkeana, questo de se
numa situao possvel esse objeto poderia ou no poderia deixar de ter algumas de suas
propriedades atuais. A razo para tal discordncia, tal como parece estar sugerido em Naming
and Necessity (1980, p.43), pode ser encontrada na objeo de Kripke suposio de que a
questo da identidade transmundana depende de um certo quadro do que so mundos
possveis. Assim, antes de tratarmos propriamente dessa objeo, vamos falar sobre como se
constitui o tal quadro do que so mundos possveis criticado por Kripke.
Segundo esse quadro, mundos possveis so caracterizados de modo puramente
qualitativo, ou seja, um mundo possvel consiste simplesmente num mero arranjo atual ou
no-atual de certas propriedades. Assim, conforme essa caracterizao, diz Kripke (Ibid.), um
mundo possvel visto como um pas estrangeiro, onde ns observamos no este ou aquele
objeto, mas estas ou aquelas dentre as suas respectivas qualidades isto , observamos, por
exemplo, no se algo Nixon, mas se algo tem cabelo vermelho (ou verde ou amarelo)
(KRIPKE, Ibid.). Portanto, se concordamos com esse quadro, para identificar um objeto num
mundo possvel, ns devemos antecipadamente contar com um critrio dando as condies
necessrias e suficientes para determinar as propriedades essenciais, e, tambm, as acidentais,
possudas por esse objeto; caso contrrio, ns no saberamos como identific-lo. Entretanto,
como ns vimos h pouco, no parece que dispomos de um critrio de identidade
transmundana to bem definido para objetos materiais, de modo que seria contra-intuitivo,
diriam os proponentes desse quadro, ns pensarmos mundos possveis contendo tais objetos,
ou, o que seria equivalente, considerarmos as propriedades de um objeto material em termos
do que necessrio ou contingente relativamente a tal espcie de objeto.
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Dentre os proponentes desse quadro, Kripke destaca a si prprio como tendo sido um
dos encorajadores do referido modo de caracterizar mundos possveis. Entretanto, confessa o
autor, esse no parece ser o modo correto de se pensar mundos possveis. Para Kripke, um
mundo possvel meramente o resultado de um experimento mental bastante simples que
consiste basicamente em, considerando um objeto x qualquer, estipular uma situao
contrafactual possvel, isto , no-atual e no-contraditria, envolvendo x. Por exemplo,
imagine a situao tal que Alkmin em 2006 tivesse sido eleito o presidente do Brasil. O
resultado disso, diria Kripke, figura um mundo possvel. Porm, ele adverte que embora
mundos possveis sejam dados pelas condies descritivas que associamos a eles, no
necessrio que sua descrio deva constitui uma descrio total desses mundos isto , uma
descrio de tudo que fosse verdadeiro e falso relativamente a cada mundo possvel
considerado. Ainda, sustenta Kripke (1980, p.44), no necessrio tambm que um mundo
possvel seja descrito de modo puramente qualitativo: por exemplo, no necessrio que, para
imaginar a situao contrafactual na qual Alkmin tivesse sido eleito presidente do Brasil em
2006, ns tenhamos que supor algo como a situao em que o indivduo com tais e tais
caractersticas tivesse ganhado a eleio presidencial de 2006. Mas por que, para Kripke, nem
uma descrio total, nem uma descrio em termos puramente qualitativos concordam com o
modo correto de se considerar mundos possveis? Basicamente, responderia Kripke, porque
esse quadro, ou modo de considerar o que so mundos possveis, no condiz com a maneira
como ns ordinariamente pensamos mundos possveis: para tanto, basta indicarmos um objeto
e estipularmos uma situao contrafactual contendo esse objeto.
Mas por que o problema da identidade transmundana de objetos materiais no se pe
viso kripkeana de mundos possveis? Ou, colocando de outro modo, por que a viso
kripkeana evita que a distino entre propriedades contingentes e necessrias de objetos
materiais seja considerada contra-intuitiva? De acordo com Kripke, isso ocorre porque sua
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viso no exige que o objeto seja identificado por meio de condies necessrias e suficientes,
uma exigncia que o caso quando descrevemos mundos possveis de modo puramente
qualitativo. Como vimos h pouco, conforme esse quadro, isto , o quadro segundo o qual
mundos possveis devem ser descritos de modo puramente qualitativo, um mundo possvel
um conjunto no-atual de propriedades no qual ns somente podemos identificar um objeto se
sabemos de antemo quais so as condies necessrias e suficientes que iro permitir
captur-lo em meio ao aglomerado de propriedades. Por outro lado, assumindo uma viso tal
qual a de Kripke, para capturar e considerar um objeto numa situao contrafactual, basta ns
podermos indic-lo e, alm disso, ter algum sentimento sobre quais propriedades esse objeto
poderia ou no poderia deixar de ter, ou seja, uma intuio acerca do que e do que no
necessrio acerca desse objeto. Desse modo, para considerar um mundo possvel contendo
Cate Blanchett suficiente, alm de poder indic-la, saber algumas coisas necessrias sobre
ela como, por exemplo, que ela composta de molculas, um ser humano, etc. Assim,
Kripke argumenta em favor de que perfeitamente intuitivo se falar em propriedades
necessrias e contingentes, se ns assumimos uma viso do que so mundos possveis que
evita o problema da identidade transmundana a saber, a viso kripkeana.
2.3 A Concepo Kripkeana de Designao Rgida
Nesta seo, nosso objetivo destacar um outro ponto fundamental na crtica que
Kripke, a partir do seu argumento modal, enderea teoria fregeana dos nomes prprios.
Assim, aqui ns iremos tentar, ao discutir certas passagens de Naming and Necessity, delinear
o tratamento dado por Kripke noo de designao rgida.
Um designador rgido, ao contrrio de um designador no-rgido, ou acidental, afirma
Kripke (1980, p.48), qualquer termo singular que designe necessariamente o mesmo objeto
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em todos os mundos possveis onde quer que esse objeto exista. Se o termo singular, alm
disso, designa de modo rgido um objeto necessariamente existente, ou seja, um objeto que
exista em todos os mundos possveis, ento, se segue que tal termo seja um designador
fortemente rgido.
Assim, de acordo com a concepo kripkeana, descries definidas tais como o
nmero de pases que foram sede da copa de 2002 e o nmero par e primo, no obstante
terem como referncia no mundo atual o mesmo objeto, so designadores de tipos distintos:
isto , essas descries so, respectivamente, um designador acidental e um designador rgido.
A razo para tanto se encontra implcita na definio h pouco dada e consiste em, por um
lado, a segunda descrio se referir ao mesmo nmero em todos os mundos possveis e, por
outro, a primeira descrio poder, em alguns mundos possveis, denotar um outro nmero que
no dois. Evidncias em favor disso, concordaria Kripke, poderiam ser obtidas a partir do
seguinte teste intuitivo: para verificarmos se uma descrio definida do tipo o x tal que F(x)
um designador rgido ou acidental, basta ns podermos imaginar ao menos um mundo
possvel em que (i) as convenes lingsticas que regem o uso de o x tal que F(x) sejam as
mesmas que regem seu uso no mundo atual e (ii) o x tal que F(x) no se refira de modo
atributivo9 quele mesmo objeto denotado no mundo atual; se isso possvel, ento, a
descrio definida designa sua referncia atual acidentalmente; caso contrrio, ns estaramos
lidando com o que para Kripke seria um legtimo designador rgido. Desse modo, uma vez
que perfeitamente intuitivo imaginar uma situao contrafactual na qual a descrio
definida o nmero de pases que foram sede da copa de 2002 designa o nmero um, por
exemplo, um mundo possvel em que todos os jogos da copa de 2002 tivessem ocorrido
somente no Japo (ou somente na Coria do Sul, ou somente em qualquer um outro nico
9 Dizemos de modo atributivo, porque, tal como distingue Donnellan, em Reference and Definite Descriptions (1966, pp. 231-243), uma descrio definida poderia ser usada, tambm, de modo referencial. Nesse caso, uma descrio do tipo o x tal que F(x) poderia ser usada de tal modo que ela se refira no quele objeto x que satisfaz a propriedade de ser F, mas a qualquer outro objeto que, de acordo com as intenes do falante, num dado contexto de proferimento, seja o objeto pretendido como a referncia da descrio.
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pas), ns temos que essa descrio definida um designador acidental. Por outro lado, na
medida em que contra-intuitivo estipular um mundo possvel no qual a descrio definida o
nmero par e primo no se refira ao nmero dois, ns temos que essa descrio definida,
diferentemente daquela, um designador rgido.
Entretanto, de acordo com Kripke (1980, p.48), no apenas aquelas descries
definidas denotando objetos necessrios, como, por exemplo, as descries da matemtica,
designam rigidamente: para o autor, nomes prprios tambm so designadores rgidos. A
razo em favor dessa tese, alega Kripke, que nomes prprios satisfazem perfeitamente
aquele teste intuitivo mencionado h pouco. Sobre isso, Kripke (Ibid., p.49, nossa traduo)
diz que embora algum que no o presidente dos EUA em 1970 pudesse ter sido o presidente
dos EUA em 1970 [...], ningum a no ser Nixon poderia ter sido Nixon. Sendo assim, de
acordo com Kripke, embora possamos imaginar um mundo possvel em que a descrio
definida o presidente dos EUA em 1970 venha a designar uma outra pessoa que no o
presidente dos EUA em 1970 no nosso mundo atual, ns no podemos do mesmo modo
conceber um mundo possvel no qual o nome prprio Nixon no se refira a Nixon10.
Segundo a sugesto de Kripke, portanto, a aplicao daquele teste intuitivo a nomes prprios
ofereceria evidncias bastante favorveis a tratarmos termos singulares tais como
Aristteles, Frank Sinatra, Cate Blanchett, enfim, nomes prprios, enquanto
designadores rgidos.
Avanando em nossa caracterizao da abordagem kripkeana sobre a rigidez
referencial de nomes prprios, importa mencionar ainda um aspecto bastante distintivo dessa
abordagem relativamente s outras abordagens que tambm se ocupam em explicar o papel
semntico de tais expresses, sobretudo, o descritivismo. Esse aspecto, ns devemos dizer,
consiste basicamente na suposio de que h uma diferena significativa entre nomes prprios
10 claro que aqui se trata de um mundo possvel no qual o uso lingustico do nome prprio Nixon
determinado pelas mesmas convenes lingusticas que regulam o uso desse mesmo nome no mundo atual.
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e descries definidas (sejam essas descries rgidas ou no): a saber, que aqueles termos, ao
contrrio desses, so diretamente referenciais, ou seja, so termos que referem sem supor, ou
implicar, qualquer propriedade do objeto referido. Para colocar a questo em termos
fregeanos, diramos que, conforme a abordagem de Kripke, nomes prprios no tm sentido,
ou no h nada tal como um contedo descritivo promovendo a conexo semntica entre sinal
e referncia. Assim, a rigidez referencial de nomes prprios tem uma natureza distinta se a
compararmos com a rigidez referencial de certas descries definidas. Uma descrio definida
rgida, se o sentido, ou contedo descritivo associado a ela, contm alguma(s)
propriedade(s) necessria(s) e suficiente(s) que de modo unvoco (so) satisfeita(s) por um e
somente um objeto. Nessa direo, a rigidez referencial da descrio definida o nmero
par/primo explicada por haver um, e somente um, objeto satisfazendo, em todos os mundos
possveis, onde quer que esse objeto exista, a propriedade de ser par e primo isso, supondo
que essa propriedade e no outra aquela sendo implicada pelo sentido carregado pela
descrio.
Assim, dado que nomes prprios so designadores rgidos diretamente referenciais,
uma vez que contamos com nomes prprios para nos referirmos de modo no-descritivo aos
mesmos objetos em qualquer mundo possvel, ns evitamos ter que descrever objetos e
situaes contrafactuais de modo puramente qualitativo e, por conseguinte, no nos
comprometemos em dispor um critrio de identidade transmundana para objetos envolvendo
condies necessrias e suficientes para identificao desses objetos. Ao supor tudo isso,
Kripke conclui, portanto, que as identificaes transmundanas no so problemticas
naqueles casos em que nos propomos a imaginar objetos materiais e situaes contrafactuais
contendo tais objetos, porque nesses casos ns podemos justamente nos referir direta e
rigidamente a esses objetos e estipular o que poderia ter acontecido com eles sob certas
circunstncias.
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2.4 Preliminares a uma Anlise do Argumento Modal
Do que foi discutido na ltima seo ficou pendente uma importante questo
intimamente relacionada concepo kripkeana acerca da rigidez de nomes prprios: a saber,
a questo de por que termos singulares tais como Scrates, Netuno, K2, enfim, nomes
prprios, seriam expresses diretamente referenciais isto , a questo sobre o que justificaria
a tese de que o significado de um nome prprio no envolve aquilo que Frege chamaria de
sentido. Uma justificativa para tese mencionada acima, a tese da referncia direta de nomes
prprios, provida, ou ao menos est implcita, em uma das objees dirigidas por Kripke
teoria fregeana dos nomes prprios: a saber, o argumento modal. No entanto, antes de nos
ocuparmos em efetivamente analisar esse argumento, ns tentaremos, nessa seo, dar uma
idia geral do contexto em que surge tal objeo a Frege.
Como ns vimos h pouco, segundo Kripke (1980, p.31), a teoria descritivista dos
nomes prprios de Frege pode ser considerada segundo dois pontos de vista distintos: isto ,
ela pode ser considerada ou como uma teoria do significado, ou como uma teoria da
referncia. Assim, de acordo com Kripke, ns podemos tomar que o sentido fregeano
funciona ou bem para definir o significado, ou bem para fixar num certo contexto a referncia
de um nome prprio. Para Kripke, contudo, a diferena
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