flores, flores para os mortos (texto: fernando gabeira) marco albanez

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FLORES, FLORES PARA OS MORTOS(Texto: Fernando Gabeira)

MARCO ALBANEZ

Sempre que os fatos ganham velocidade, costumo comprar

um bloco de notas. Anoto frases, idéias, intuições e deixo que se decantem com o tempo.

Volto a elas, depois, para rejeitá-las ou desenvolvê-las. A

primeira frase que me veio à cabeça foi a da vendedora de flores que encerra um filme.

O pequeno bloco também tem idéias. Por exemplo: comparar a

ditadura com o governo Lula. Uma neutralizou o Congresso

pelo medo; o outro, pelo pagamento de mesada.

Ditadura e governo Lula compartilham o mesmo

desprezo pela democracia, ambos violentaram-na,

reduzindo o Parlamento a uma ruína moral.

Os militares prepararam sua saída de forma organizada. Nem

muito devagar, para não parecer provocação, nem muito

rápido para não parecer que estavam com medo.

Já o núcleo duro do governo Lula parece perdido, batendo cabeça, ou melhor, enfiando-a na areia, sem perceber que a

polícia está chegando e, daqui a pouco, alguém vai gritar na

porta do Planalto: "Se entrega, Corisco".

Quando era menino e vivia em Juiz de Fora, fazíamos rodas de

capoeira, bastante rudimentares - confesso. Mas

cantávamos: "A polícia vem, que vem brava / quem não tem

canoa, cai n'água".

Tudo isso jorra aos borbotões na minha caderneta. Anotei:

chamar alguém do "Guinness", o livro dos recordes, para saber

se algum tesoureiro de qualquer partido do mundo se desloca

com batedores de motocicleta e carros clones para iludir

perseguidores;...

...se algum tesoureiro partidário se desloca com jatos

particulares, semanalmente; se introduz no palácio associação de empreiteiros que receberam

R$ 1,1 bilhão de dívidas.

Os militares batiam, davam choques e insultavam na sessão

de tortura, mas vi muitos dizendo que me respeitavam

porque deixei um bom emprego para combatê-los com risco de

vida.

Eles viam ideais no meu corpo arrasado pelo tiro e pela cadeia.

O PT queria que eu abrisse mão exatamente da minha alma, e

me tornasse um deputado obediente, votando tudo o que o Professor Luizinho nos mandava

votar.

Os militares jamais pediriam isso. Desde o princípio,

disseram que eu era irrecuperável e limitaram-se à

tortura de rotina.

Jamais imaginei que seria grato aos torturadores por não me

pedirem a alma. Não sabia que dias tão cinzentos ainda viriam

pela frente.

Que seria liderado por um homem que achava que

Maurício de Nassau era um deputado de Pernambuco. Logo eu, que sou admirador de um

deputado pernambucano chamado Joaquim Nabuco.

Foram os anos mais duros de minha vida. No meu caderno anoto frases e indicações da semelhanças da luta contra a ditadura e da luta contra este governo, desde que comecei a criticá-lo, com a importação de

pneus usados.

As pessoas têm suas carreiras, seus empregos, sua

racionalizações. É preciso respeitá-las, atravessar o

deserto sem ressentimentos.

Agora, sobretudo, é preciso respeitar o sofrimento dos

vencidos. Outro dia, quando me referi a um núcleo na Casa Civil como um bando de ladrões que atentava contra a democracia,

uma jovem deputada do PT estremeceu.

Senti que não estava ainda preparada para essas palavras cruas. E fui percebendo pelas anotações que talvez estejam aí, para o escritor, o mais rico manancial de toda essa crise.

Como estão as pessoas do PT? Como se ajustam a essa nova

realidade? Que destino tomaram na vida?

Procuro não confundir, entre os que ainda defendem o governo,

aqueles que são cínicos, cúmplices e os outros, que

apenas obedeceram as ordens sob a forma da aplicação do centralismo democrático.

Alguns defendem porque ainda não conseguiram negociar com

sua própria dor. Não podem suportá-la de frente. Mas terão de fazer algum dia, porque, por

mais ingênuos que sejam, já perceberam que a mãe está no

telhado.

Vamos ter de encarar juntos essa realidade. A grande experiência eleitoral da

esquerda latino-americana, admirada por uma Europa

desiludida com Cuba e Nicarágua, a grande novidade

que verteu tintas...

...atraiu sábios, produziu livros e seminários, vai acabar na

delegacia como um triste fato policial de roubo do dinheiro

público e suborno de parlamentares.

Só os que se arriscarem a ir até o fundo dessa abjeção,

compreendê-la em todos os seus detalhes mórbidos, têm chances de submergir para

continuar o processo histórico.

Por incrível que pareça, o Brasil continua, e a vontade de mudar é mais urgente do que em 2002

e 2006... Por isso, proponho agora um curto e eficaz trabalho

de luto.

Anotação final: começaram o espetáculo da CPI, secretárias e

suas agendas, ex-mulheres e suas mágoas, vampiros,

sanguessugas, mensaleiros, arapongas, tesoureiros e seus

charutos, Vossa Excelência para cá, Vossa Excelência para lá, sigilos bancários, telefônicos,

emocionais.

Viu, Duda, que cenas finais melancólicas quando um mercador tenta aplicar à

complexidade da política a singeleza do vendedor de

sabonetes?

Texto veiculado no jornal Folha de S. Paulo, disponível na página

http://www.gabeira.com.br.

Trilha:

“Os Cinco Companheiros”, de Pixinguinha, do disco “Pixinguinha-100 anos”, do CCBB-RJ.

Formatação de Ren@to Fonseca,

FIM

MELANCÓLICO?Não,

Lulla enganou o povo...www.gabeira.com.br

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