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FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO NO SETOR PÚBLICO:
ZONA CINZENTA ENTRE ESTADO E MERCADO
Marcelo Figueiredo Silva1
Universidade Federal de Sergipe (UFS)
mafis100@gmail.com
GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO.
RESUMO
A análise do processo de terceirização do trabalho no setor público, na forma como vem se
desenvolvendo no Brasil, tende comumente a apresentar lacunas ao limitar a abordagem de
variáveis que fundamentem a justificação de sua crescente implementação. As contradições
políticas visíveis na manutenção e aprofundamento da flexibilização das relações de trabalho
nos últimos governos ditos à esquerda nos levam a problematizar o escopo teórico para além
da análise de conjuntura. Desse ponto de vista, o papel do Estado está longe de parecer
unívoco. Ao agir para assegurar estabilidade econômica, política e social, a ação do Estado
encontra seu mais eficaz fiador na formação de uma classe média cujo traço conservador
impõe à ação política restrições. É na compreensão desses mecanismos de restrição que a
análise deve mirar de modo a ampliar o conjunto de variáveis teóricas que problematize a
relação entre Estado e mercado.
PALAVRAS-CHAVE: Terceirização, Estado, mercado.
1. INTRODUÇÃO
A crescente implementação do modelo de subcontratação da força de trabalho,
denominado no Brasil como terceirização, tem se tornado, como as séries estatísticas tendem
a indicar, um movimento irrefreável no setor público, sobretudo a partir da década de 1990,
na trilha do processo de abertura econômica após a crise da dívida nos anos 1980. Antunes e
1 Doutorando de Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Membro do Laboratório de
Estudos dos Mercados e das Organizações na Sociedade (LEMOS-UFS).
Druck (2013) chegam mesmo a falar em uma verdadeira epidemia, tornada sem controle, ao
registrar o seu crescimento no setor público-estatal.
A título de exemplo, no caso da Petrobras, para o ano de 2012, a relação entre
funcionários terceirizados e efetivos chegou a estabilizar-se numa proporção de 4 por 1.
Ainda segundo os mesmos autores, na Eletrobras, nesse mesmo ano, o crescimento da
subcontratação em relação ao número de empregados concursados avançava num ritmo de
55% contra 13%. Situação análoga seria observada em outros setores da administração
pública direta, indicando sua simetria com os níveis observados de crescimento do setor
privado.
Tal viés estaria associado ao processo político de abertura econômica sob o impacto da
eleição de sucessivos governos de tendência liberalizante, e ainda no bojo dos processos de
globalização financeira e tecnológica. Assim, numa determinada perspectiva analítica, a
predominância desse modelo de contratação no setor público seria derivada do movimento de
reestruturação produtiva econômica de base industrial, de modo a recompor taxas de retorno
do capital de investimento, decrescentes desde a crise do welfare state no início dos anos
1970.
As explicações para uma incorporação tão contundente no setor público de processos
de flexibilização das relações de trabalho comumente têm apontado para a relação de
submissão do Estado brasileiro às forças de mercado – um ajuste fiscal imposto pelo Fundo
Monetário Internacional (MARCELINO, 2008) – a um imperativo de reorganização e redução
do tamanho da administração pública. Este segundo aspecto, foi teorizado, sobretudo, no
âmbito do MARE (Ministério da Administração e Reforma do Estado), no primeiro governo
FHC, espécie de think tank cujas diretrizes já preconizavam a estruturação do serviço público
em torno da Terceirização e das Organizações Sociais. No conjunto, estas linhas de força
revelam o embate entre ação política e ação econômica como tendência à cisão traumática na
base do tecido social.
Contudo, quando observamos o processo de expansão do ensino superior federal no
país, o avanço da terceirização no período citado se fez acompanhar por outro mecanismo de
flexibilização das relações de trabalho no setor público: a contratação de pessoal
indiretamente a partir do contrato de gestão dos hospitais universitários via EBSERH
(Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), empresa pública de direito privado, criada em
2011. Nessa modalidade de contratação, estamos diante da passagem dos trabalhadores do
RJU (Regime Jurídico Único) à CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). A justificativa
novamente alia o discurso da eficiência administrativa com o ajuste estrutural das contas
públicas, via redução do impacto sobre a previdência.
A partir daqui, entretanto, sentimos dificuldade em proceder com uma leitura tão
esquemática das tensões entre lógica de ação de estado e lógica mercadológica.
Vislumbramos uma espécie de zona cinzenta na qual a ação política não se deixa apreender de
maneira unívoca. Se levarmos em consideração apenas que lógica do capital tem configurado
cada vez mais os padrões de formulação da política trabalhista no Brasil, imiscuindo-se nas
frestas legais do Estado, e com isso ditando o ritmo da mobilização das forças produtivas,
apenas apontaremos a submissão completa da ação política aos ditames rígidos das leis
capitalistas. O que por certo significará estrangular qualquer argumentação ao imperativo
apriorístico da construção teórica sobre a empiria. Em síntese, imaginar que a atuação
governamental seja conduzida por mero constrangimento econômico a ditames liberalizantes
é reduzir a complexidade da questão sem apanhar os imperativos de uma razão de estado que
extrapola o automatismo.
Parece haver uma contradição política quando observamos as variáveis postas em roda
pelo movimento histórico. A situação de pleno emprego alcançada em determinado momento
por governos considerados à esquerda (Lula e Dilma), conjugado a um crescimento do PIB
acompanhada de estabilidade macroeconômica, não significou reversão do processo de
flexibilização das relações trabalhistas, senão seu aprofundamento. O número de
trabalhadores terceirizados no Brasil chegou, no final de 2013, à impressionante cifra de um
quarto (26,8%) das ocupações formais (ANDRETA; CAMPOS, 2015). Unindo-se a isso,
devemos confrontar o processo de expansão do Estado brasileiro ocorrido sob esses governos,
e que significou inequivocamente o estabelecimento de uma política de contratação de pessoal
acima da média histórica dos anos 1990, sem, contudo, implicar a deslegitimação dos
mecanismos de flexibilização das relações de trabalho.
Tais fatos seriam suficientes para projetar a questão da existência ou não de uma
lógica própria à política de Estado sob impacto de uma era de globalização do capital. Em
síntese, a manutenção e aprofundamento dos processos de flexibilização das relações de
trabalho em contextos de governos alinhados ideologicamente à esquerda, com inflexão para a
expansão da intervenção estatal, indicaria uma situação estrutural intransponível para a
política econômica? Ou uma concessão contemporizadora acenando ao mercado, num
equilíbrio frágil para a execução de política social do Estado de Bem-estar?
O objetivo aqui é, portanto, problematizar as duas questões principais, a saber: a) a
hipótese de que a lógica mercadológicas que sustenta a manutenção e ampliação da
flexibilização das relações de trabalho no setor público não está suficientemente aprofundada
pelos estudos acadêmicos e, b) ampliar as possibilidade de se questionar no próprio campo
econômico a justificativa para a aparente contradição entre expansão do Estado na última
década e a crescente precarização do trabalho no setor público, com consequente achatamento
salarial.
2. O TRABALHO MEDIADO PELO ESTADO: POLÍTICA E ECONOMIA
Às vésperas da agudização da crise econômica mundial de 2008, que se fez
acompanhada pela quebra do Lehman Brothers, o filósofo Jürgen Habermas concedeu uma
entrevista ao semanário alemão Die Zeit em que expunha o desafio de desatar o nó imposto
pelos mercados à ação política. Entre perplexo e apreensivo com as consequências do
terremoto econômico para o equilíbrio político dos governos nacionais, sobretudo na zona do
euro, o professor reconduzia a discussão para o dilema contemporâneo da cisão entre política
e economia no ambiente de um mercado autorregulado globalizado. “A política se torna
irrisória se ela moraliza em vez de apoiar-se no direito de coerção do legislador democrático.
Ela, e não o capitalismo, é responsável pela orientação do bem comum” (HABERMAS, 2012,
p.109), argumentou.
No roldão das discussões sobre mais um programa de intervenção estatal, com a
injeção artificial de liquidez [bailout] no mercado para salvar da bancarrota em cascata o
sistema financeiro, sob o argumento de que suas consequências seriam bem piores para o
conjunto da sociedade, a exposição do intelectual alemão revela o grau de dependência das
regras do mercado a que estão submetidas sociedades formalmente democráticas. Igualmente,
também ecoava a afirmação desencantada do ex-ministro de Relações Exteriores da
Alemanha Joschka Fischer: “Ninguém consegue fazer política contra os interesses dos
mercados” (BECK, 2015, p.67).
A grande separação do regime econômico como um campo autônomo cujas regras se
impõem contra a sociedade só recentemente tem sido objeto de inquirição em seu próprio
domínio pelos estudos no campo da Sociologia. Posicionando-se contra a predominância,
lógica e cultural, irrestrita dos fundamentos da economia mainstream, com sua ênfase numa
suposta escolha racional (utilitária) de seus agentes econômicos, a chamada Nova Sociologia
Econômica tem enfrentado o núcleo duro de seus conceitos, enfatizando a perspectiva de que
os fatos econômicos são construções sociais. Para Mark Granovetter, um de seus expoentes,
trata-se, antes de tudo, de confrontar “the validity of neoclassical theory within its own
domain” (SWEDBERG, 1990, p.107). A possibilidade de analisar os processos de
flexibilização das relações de trabalho ocorridos nas últimas três décadas sob a ótica da
constituição social da separação entre política e economia, questionando a validade dos
fundamentos teóricos da teoria econômica neoclássica permite que se avalie relacionalmente
os fundamentos sociais da dominação exercida pelo Estado como mediador entre ação política
e mercados.
A ação de grupos de pressão pelo domínio ideológico da ação política tem se
transformado numa verdadeira guerra cultural na tentativa de se impor uma narrativa fundante
de interpretação da realidade social (Grün, 2013). Dessa forma, o Estado passa a ser o
elemento estabilizador das contradições sociais, pela acomodação dessas tendências em
disputa. Pensemos, por exemplo, para o caso brasileiro, no papel que os fundos de pensão têm
adquirido nas duas últimas décadas dentro do jogo financeiro, e na mediação entre o Estado e
o mercado. Temas como recomposição salarial, política de pleno emprego, enfim, a mediação
clássica entre capital e trabalho, já não se conformam tão facilmente no panorama da
mobilização classista via ação sindical.
É evidente que não se trata de definir a ação política – no sentido lato do interesse
social – orientada pelo Estado como constrangida ao ponto de tornar-se um mero instrumento
dos interesses do capital. Tal leitura seria demasiado reducionista. Afastada a espontaneidade
sociológica, e igualmente a tese da falha ideológica da ação política partidária (ah, aquele
partido nunca foi de esquerda!), o que é importante ressaltar aqui é a possibilidade de se
estruturar a análise dos processos de flexibilização das relações de trabalho no setor público a
partir da compreensão de uma lógica de ação própria ao Estado equilibrada entre imperativos
democráticos numa economia de mercado hegemônica num determinado momento histórico.
Para a ação do Estado, tratar-se-ia em última instância de garantir a estabilidade social. O
Estado como um princípio de ordem, nunca um mero joguete de interesses particulares.
Dessa forma, abre-se caminho para se pensar os processos de flexibilização através da
inquirição dos mecanismos macroeconômicos no campo da ação política do Estado. Em
síntese, como coadunar na análise sociológica a compreensão das pressões sociais impostas à
política por uma democracia de massas, representadas nas garantias constitucionais do Estado
de bem-estar, com um similar mercado de massas constituído na formação contínua de
consumidores. Ao que tudo indica, o encaixe entre economia e política, entre consumo e
cidadania, depende cada vez mais de condicionantes externos e internos à política dos
Estados-nação, num mundo de intensa globalização financeira. A consecução de um projeto
de desenvolvimento nacional tenderá mais e mais à conjugação de forças sociais cujos
pressupostos estão representados em seus instrumentais de ação. De um lado, o núcleo duro
do discurso por liberdade econômica do establisment, com sua lógica cultural associada ao
imperativo da expansão do crescimento, a impor mecanismos de restrição fiscal ao Estado
com fortes implicações orçamentárias. De outro, a incorporação de grupos sociais inteiros aos
preceitos de cidadania e garantias constitucionais numa sociedade historicamente disfuncional
no seu nível de desigualdade.
3. DORES DO CRESCIMENTO
Ao perseguir o ideal político da estabilidade social associado ao crescimento
econômico, a política de Estado tem que travar a luta pela acomodação de contradições
sociais potencialmente geradoras de instabilidade. As pressões por uma política de pleno
emprego e crescimento econômico são pesos típicos de uma balança em que a garantia da
manutenção de um Estado de Bem-estar tenta se equilibrar com as constantes instabilidades
do capitalismo financeiro.
Historicamente, o fim do Acordo de Bretton Woods em 1971, significou a capitulação
de um sistema monetário forjado no segundo pós-guerra como possibilidade de estabilização
econômica pelo controle de capitais. Entretanto, diante de um prolongado período de ciclo
econômico de estagnação e inflação nos principais países desenvolvidos em meados dos anos
1960. Se para estes países a solução passava pelo abandono do padrão-ouro, perante uma
situação de crescente liquidez internacional e predomínio do capital de curto prazo, perseguir
o crescimento econômico se tornou uma dinâmica política explosiva para países em
desenvolvimento. No Brasil, tal excesso de liquidez global acarretará numa crise da dívida
quando associada ao choque de preço do petróleo, mas, sobretudo, significou uma séria
restrição à política econômica como havia se desenvolvido nos últimos 30 anos.
A crescente mobilidade de capitais deixou pouca brecha no campo da política
econômica nacional. Barry Eichengreen (2012) lançou a hipótese da tensão entre mobilidade
do capital e imperativo democrático que poderia ser esposada aqui.
A alta mobilidade do capital, que é um fato da vida econômica e financeira
no início do século XXI, exige dos governos que subordinem todas as
demais metas de política econômica à estabilização da taxa de câmbio.
Porém, a democracia de massas, que é – felizmente e cada vez mais – um
fato da vida política, torna extremamente difícil para os governos
comprometer-se, e manter a credibilidade, com essa subordinação de todas
as demais metas políticas à estabilização da taxa de câmbio
(EICHENGREEN, 2012, p15).
Em resumo, a fissura entre o campo da ação política e o campo da ação econômica,
aberta pela crise do welfare state, representou a um só tempo a reorganização do capital
produtivo – os processos de reestruturação e flexibilização – e a reorganização do Estado sob
a pressão da crescente financeirização dos mercados globais. O fim do Acordo de Bretton
Woods significou igualmente que o Estado já não coordenava garantias sociais com
crescimento econômico. Na verdade, Eichengreen retoma o dilema já intuído por Karl Polanyi
em 1944, na seminal análise que faz do surgimento do credo liberal. A instabilidade
econômica desde sempre fora uma condição do capital que ameaçava a estabilidade política
numa situação de crescente massificação democrática. O que nos importa aqui é observar
como Polanyi casa a análise dos mecanismos econômicos com a análise histórica, numa trilha
por vezes esquecida.
A proteção social e a interferência na moeda não eram simplesmente temas
análogos, mas frequentemente idênticos. Desde o estabelecimento do
padrão-ouro, a moeda passou a ser ameaçada tanto pela elevação do nível
salarial quanto pela inflação direta – ambas podiam diminuir as exportações
e até depreciar os câmbios. Esta simples conexão entre as duas formas
básicas de intervenção tornou-se o fulcro da política na década de 1920.
Partidos preocupados com a segurança da moeda protestavam tanto contra os
déficits orçamentários ameaçadores como contra as políticas do dinheiro
barato, opondo-se, assim, tanto à “inflação do tesouro” quanto à “inflação do
crédito” ou, em termos mais práticos, denunciando os encargos sociais e os
altos salários, os sindicatos profissionais e os partidos trabalhistas. Não era a
forma que importava, mas a essência, e quem poderia duvidar que os
benefícios irrestritos ao desemprego poderiam ser tão efetivos na
perturbação do equilíbrio do orçamento como uma taxa de juros demasiado
baixa no inflacionamento dos preços – e com as mesmas consequências
nefastas para os câmbios? Gladstone havia feito do orçamento a consciência
da nação britânica. Para povos menos importantes, uma moeda estável
poderia ocupar o lugar do orçamento. O resultado, porém, era bastante
aproximado. Quer fossem os salários ou os serviços sociais que tivessem que
ser cortados, as consequências de não cortá-los eram determinadas
inexoravelmente pelo mecanismo do mercado (POLANYI, 2000, p. 265-
266).
A dicção da citação, longa, mas necessária, não se revela estranha para a nossa época.
O Estado havia se tornado grande demais para a ação política e restrito demais para a ação
econômica, eis a nova ética liberal. A equação é trágica e será sentida mais intensamente
pelos países em desenvolvimento no final do século XX. Os processos de reestruturação
produtiva, flexibilização, mobilidade do capital, pressionam igualmente o Estado a rever seu
tamanho. Talvez a única forma de garantir redução do tamanho com crescimento e
estabilidade social seja forjar uma estrutura trabalhista em que a classe média aparta-se da
precarização.
A passagem de um modelo fordista/taylorista de organização da produção ao modelo
japonês (toyotismo) revelam os elementos de acomodação do trabalho na lógica da eficiência
econômica. Entretanto, se a lógica da redução dos custos trabalhistas como expediente para o
enfrentamento do barateamento dos custos da produção é claramente perceptível no setor
privado, não está suficientemente evidente como esta mesma lógica se impõe no setor
público.
A produção de crescentes desigualdades econômicas grassa não mais ditada pela
clássica dicotomia entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas passa a se impor nos
próprios limites dos Estados nacionais. Se, até então, uma política de desenvolvimento com
industrialização, substituição de importações, pleno emprego, era perseguida pela via de uma
política monetária (câmbio, juros), agora tal crescimento exigirá cada vez mais a coordenação
entre Estado e mercado. A concentração de renda e o achatamento do salário médio
associado à produtividade tem se tornado um indício de que a crise do capital que toma lugar
no início da década de 1970 cinde cada vez mais a separação entre o político e o econômico.
A estabilidade exige um novo fiador.
4. TENDÊNCIAS EM DISPUTA
Talvez nada seja tão esclarecedor da cisão entre o econômico e o político do que as
disputas travadas desde os anos 1990 no Brasil entre os grupos teóricos chamados de
desenvolvimentistas e de neoliberais. Os da primeira corrente sempre culpou a equipe
econômica do Plano Real pelo “populismo cambial” que teria levado a um processo de
desindustrialização do país, com graves implicações para os níveis de emprego e crescimento
do PIB. De fato, o PIB no período dos dois governos FHC fora um pouco mais do que 2%.
Esta seria uma armadilha da liquidez do capital de curto prazo.
O outro lado defendeu-se argumentando que o modelo de crescimento pela
manipulação do câmbio e substituição de importações era ultrapassado, tomando-se como
novo parâmetro os índices de produtividade, somente tornado possível seu crescimento pelo
processo de abertura comercial e seus impactos sobre concorrência e transferência de
tecnologia. O argumento mira mais longe associando a política econômica do
desenvolvimentismo à crescente desigualdade econômica.
Não escapa à observação de ninguém o fato de os velhos processos
associados ao crescimento através da SI [substituição de importações]
tornarem-se crescentemente ineficazes ao longo dos anos 80. Doses maiores
das políticas comercial e industrial habituais pareceriam apenas acentuar a
ineficiência industrial, deteriorar a competitividade e ratificar a estagnação
da taxa de crescimento da produtividade (FRANCO, 2000, p.37).
Sob essa ótica, somente a abertura à competitividade poderia nos propiciar o salto de
produtividade. Produtividade e eficiência tornam-se palavras-chave para a persecução do
crescimento econômico. Por outro lado, a crítica à política neoliberal irá apontar exatamente a
armadilha criada pela liquidez do capital de curto prazo cuja armadilha monetária impõe-se
contra os problemas estruturais do desenvolvimento em países fora do centro. Essa é a
percepção expressa por Celso Furtado em sua crítica ao Plano Real.
No que concerne aos países subdesenvolvidos, onde o desenvolvimento
depende do enfrentamento de problemas estruturais, o espaço para a ação
política tem que ser maior. Necessita-se nesses países de uma política
inovadora, particularmente na área monetária, sem a qual estaremos
condenados à estagnação. A luta contra o subdesenvolvimento é um
processo de construção de estruturas, portanto, implica na existência de uma
vontade política orientada por um projeto. Essa é a lição que podemos tirar
dos decênios de crescimento que vivemos a partir do imediato pós-
guerra.//Se o Estado nacional é o instrumento privilegiado para enfrentar
problemas estruturais, cabe indagar como compatibilizá-lo como processo de
globalização. Pouca dúvida pode haver de que a globalização dos fluxos
monetários e financeiros deve ser objeto de rigorosos constrangimentos, o
que exige a preservação e o aperfeiçoamento das instituições estatais
(FURTADO, 1999, p.36-37).
Nos anos 1990, esta divisão aparecerá como contradição na obra do economista Luis
Carlos Bresser-Pereira à frente do Ministério da Administração e Reforma do Estado
(MARE). Responsável por cunhar a expressão “populismo cambial” numa crítica ao
abandono da política monetária de orientação desenvolvimentista, Bresser-Pereira é
igualmente pela elaboração da tese da reforma do Estado pela introdução da revolução
gerencial de clara orientação liberal e formatada no Plano Diretor apresentado em sua gestão.
Em sua extensa bibliografia, a defesa da reforma gerencial, inspirada, sobretudo, no modelo
de reforma administrativa norte-americana no governo Clinton, convive com a dificuldade de
equilibrar Estado democrático e mercado. O autor chega a afirmar que a
Reforma Gerencial em curso entende que o regime democrático, apesar de
todas as suas limitações reais, está se consolidando no Brasil, nega o
pressuposto do egoísmo intrínseco do ser humano, e não encontra base
empírica para a afirmação neoliberal de que as falhas do Estado são sempre
piores do que as do mercado. Por isso, está muito longe de ser neoliberal
(BRESSER-PEREIRA, 2011, p. 20).
Ainda assim, já estava proposta nos documentos basilares elaborados pelo ministério
sob seu comando tanto a crescente incorporação da Terceirização dos serviços públicos na
administração federal, bem como a previsão da constituição das Organizações Sociais como
alternativa ao que se denominou de enrijecimento burocrático consubstanciado pela
constituição de 1988, as quais terão impacto duradouro na reestruturação das relações de
trabalho no setor público. Talvez o fruto mais direto desse movimento contraditório nos
termos seja o casamento da Lei 9.632/98, que propunha a extinção de 79.000 cargos
administrativos do Estado e abria espaço para a efetivação da lógica de flexibilização das
relações de trabalho no setor público, com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal no
ano 2000.
5. PRECARIADO VERSUS CLASSE MÉDIA
O economista da UNICAMP Márcio Pochmann (2012), ao analisar dados sobre o
mercado de trabalho levanta a hipótese instigante de que o padrão de contratação, ou
subcontratação, vigente no país na última década não chegou a forjar uma classe média, mas
sim um precariado, uma vez que a maioria desses trabalhadores encontra-se na base da
pirâmide social dado o nível salarial. Questiona-se de algum modo a tese da distribuição de
renda. Segundo o autor, “entende-se que não se trata da emergência de uma nova classe –
muito menos de uma classe média” (p.08). A introdução forçada e desestruturada na política
mercadológica do consumo de amplos setores populacionais revela a ligação umbilical da
nova política de trabalho no capitalismo como a política de Estado. O que o leva a concluir
que “o que há, de fato, é uma orientação alienante sem fim, orquestrada para o sequestro do
debate sobre a natureza e a dinâmica das mudanças econômicas e sociais, incapaz de permitir
a politização classista” (p.08).
Não parece haver muitas dúvidas quanto ao processo de aprofundamento da
precarização da vida laboral e social desse novo trabalhador urbano decorrente da
flexibilização das relações de trabalho. Se sua incorporação num mercado de massas, via
fomento da demanda, torna-se suspeito uma vez que não acompanhado de uma estruturação
social capaz de garantir estabilidade, responde efetivamente ao apelo do capital pelo
crescimento de curto prazo pela redução dos custos de produtividade repassado seu ônus ao
Estado. Entretanto, para a percepção do fenômeno no setor público, a formação de uma classe
média pode e deve ser colocado em debate pois decorre justamente com o adensamento
sobretudo da terceirização. O que pode parecer contraditório torna-se seu fundamento. No
Brasil, e acredito não divergente para os países mais ricos, é a precarização do trabalho que
responde por abrir caminho à manutenção de uma classe média historicamente beneficiária
das benesses do Estado, e fiadora da estabilidade política e social.
Dado o contexto aqui exposto, é importante deixar claro que o Estado de Bem-estar
social tardio no Brasil tornou-se, sob a ótica do capital, um entrave ao crescimento a um ritmo
mais forte antes mesmo de encorpar. Daí a ideologia do Estado mínimo preponderar. A
terceirização passa a significar ao mesmo tempo a possibilidade de flexibilizar as garantias
trabalhistas – pelo achatamento salarial – e assegurar a manutenção de uma classe média que
ao final é o elemento de estabilidade social para qualquer governo.
Trata-se da redução do custo da produtividade de modo a projetar-se economicamente
o crescimento, deixando intacto o grupo da população com mais educação formal, pela
manutenção da desigualdade. Essa relação é claramente visível no setor público ao
analisarmos os planos de carreira de diversos setores estabelecidos na última década. A massa
salarial das atividades de nível superior obteve ganhos acima da média de mercado,
reservando-se os serviços auxiliares ao trabalho terceirizado. Essa constante responde ao
aceno para a estabilização de uma classe média formalmente educada.
O achatamento salarial ao que tudo indica parece ser uma tendência mundial.
Levando-se em conta a exponencial participação de imigrantes ilegais utilizados no setor de
serviços nos Estados Unidos, por exemplo, somos tentados a enxergar um novo padrão de
crescimento econômico cuja reestruturação produtiva, se não consegue impor completamente
o desmantelamento das conquistas sociais, fomenta cada vez mais uma massa de
trabalhadores de segunda classe. Mesmos nos países europeus, onde o welfare state resiste
com mais vigor, a utilização de imigrantes como barateamento da produção é um fato
irreversível. Na china, a existência de um lumpen é por si só indicativa do tipo de crescimento
imposto ao resto do mundo.
No Brasil, tal relação, quando mediada pelo Estado, cumpre papéis amplamente
contraditórios em seu sentido político. A alegação de um enfraquecimento ideológico
partidário não parece suficiente para a análise socioeconômica. Os movimentos divergentes
ficam mais evidentes se levamos em consideração o leque amplo de ação do Estado em suas
esferas de poder. Movimentos de idas e vindas, progressão e regressão, são identificáveis e
devem ser tomados como variáveis analíticas. Como resume André Gambier Campos (2016),
[...] no que diz respeito à terceirização realizada por meio do trabalho
assalariado, o Estado brasileiro não se comportou de forma homogênea nas
últimas décadas. Por um lado, os poderes Legislativo e Executivo ampliaram
as possibilidades de manifestação desse fenômeno; por outro, o Poder
Judiciário e o Ministério Público as restringiram (p.11).
A tese de que o Estado nos países democráticos foram capturados pela lógica
implacável do capital deve ser no mínimo matizada, o que não significa negá-la dada as
evidências empíricas.
CONCLUSÃO
“O país mais desenvolvido não faz mais do que representar a imagem futura do menos
desenvolvido” é a famosa frase de Karl Marx no prefácio à primeira edição de O capital
(2016, p.16). Se lida como lei férrea talvez não capte o dilema posto para os países em busca
de desenvolvimento econômico e um lugar ao sol. Entretanto, num outro sentido, significa
que o capitalismo impõe uma busca sempre tornada obsoleta antes que complete o seu ciclo.
“Somos atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos” (MARX, 2016, p.17). Suplantar
as condições históricas de modo a que o novo surja. Há algo de trágico nesse imperativo. Mas
há igualmente a certeira precisão no olhar de que os movimentos do capital se dão dentro dos
limites dos estados nacionais, ainda que numa era de globalização irrestrita.
O Brasil mal acabara de sedimentar as bases de um Estado de Bem-estar com a
constituição de 1988, e já na quadra seguinte tais garantias haviam se tornado um peso a ser
contornado, dado o imperativo do crescimento de curto prazo. Infelizmente, no campo do
trabalho brasileiro, seguir a lógica do capital significará novamente não completarmos um
ciclo de desenvolvimento com inclusão plena de cidadania. Tal é o dilema que cinde ação
política e ação econômica. Na equação da busca da estabilidade social, o Estado assume o
jogo do mercado flexibilizando as relações trabalhistas no setor público, porém ao mesmo
tempo forja uma classe média como contrapeso à desigualdade crescente pelos processos de
subcontratação. Se o Estado torna-se o fiador para o capital, será essa mesma classe média
que agirá como fiadora do Estado, e com maior força de pressão uma vez que mais
organizadas as representações classistas associadas ao trabalho de nível superior.
A hipótese buscada aqui não se confronta com a literatura consagrada sobre os
processos de precarização, mas pretende ampliar a análise das variáveis posta para a
compreensão sociológica. A título de exemplaridade, retome-se a argumentação de Pochmann
(2012) para o movimento de reestruturação trabalhista no país. O autor define dois períodos
históricos – anos 1990 e anos 2000 – claramente definidos pela orientação da política
econômica, complementares, mas distantes uma vez que as bases teóricas já definem de
largada o ponto de chegada.
De maneira geral, esse movimento de expansão dos empregos de baixa
remuneração se mostrou compatível com a absorção do enorme excedente de
força de trabalho gerado anteriormente pelo neoliberalismo. Dada a
intensidade desse movimento, a condição de país com oferta ilimitada de
mão de obra passa a ser questionada, pois começam a aparecer sinais de
escassez relativa de força de trabalho qualificada, o que somente chegou a
ser conhecido na primeira metade da década de 1970 pelos trabalhadores
brasileiros (POCHMANN, 2012, p.10).
Dessa forma, as evidências empíricas, ainda que preservadas, captam um
movimento geral associado à lógica do período, mas sem adentrar as nuances da organização
política do Estado brasileiro. O caminho poderá receber ganhos interpretativos uma vez que o
analista explore os fundamentos organizacionais da estrutura trabalhista no setor público
brasileiro. Talvez seja o caso de lembrarmos a advertência posta por Norberto Bobbio (2000)
aos que se propõe a investigar os meandros da história humana: “como não se sensibilizar
com o fascínio da simplicidade, sobretudo quando uma teoria deve servir à ação?” (p.347).
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