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O MITO DO SUPER-HOMEM NA PÓS-MODERNIDADE
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Evanil Rodrigues Fernandes Mestrando - UNINCOR
A Teoria da Literatura não se preocupa só com a Literatura Canônica, mas
com outras práticas verbais até então consideradas como cultura de massa. Ela hoje
renova suas posições tradicionais e experimenta o envolvimento com a cultura,
afirmando a necessidade de uma reflexão comum a outros saberes.
Nesse momento de transição, a Teoria liberta-se de limites restritos,
historicamente já definidos e parte para outros campos do saber, permitindo uma
prática artística mais rica, mais diversificada e mais freqüente para um número
maior de pessoas. Uma das artes que se destaca é a História em Quadrinhos, as
conhecidas HQs. Por conter uma diversidade de recursos e uma riqueza de
conteúdos de uma arte que se tornou onipresente, arte surpreendentemente
original, ela é um modo de expressão que já se tornou um patrimônio cultural e
artístico imponente. As HQs são conhecidas também como a “nona arte”, e o que se
verifica é o quanto ela mobiliza a maioria dos setores intelectuais da sociedade,
como a crítica, a imprensa, a psicologia, a política, as ciências, mesmo sem possuir
o seu lugar, o seu espaço. Considerada como uma obra mista, não há ainda um
método crítico que lhe seja dedicado. Constata-se, entretanto, a presença da
mitologia em suas páginas.
As HQs, são um meio de expressão artística que permite abordar diversos
gêneros habitualmente reconhecidos, apresentando mundos estranhos e
estrangeiros “mundos distantes” realistas e universos irreais, submundo e bairros
nobres – As HQs oferecem todos os ambientes, todos os lugares, todas as
liberdades. Nesse tipo de narrativa, é próprio dramatizar para inquietar o leitor,
comovê-lo e, se possível, surpreendê-lo. Dedicadas a crianças, jovens e adultos, as
HQs apresentam diferentes ambientes para agradar ao público; elas conjugam o
rigor e o suspense, o inverossímil e a reviravolta salvadora.
Quadrinhos ou Histórias em Quadrinhos, as conhecidas HQs, são narrativas
feitas com desenhos seqüenciais, em geral no sentido horizontal, e normalmente
acompanhados de textos curtos de diálogo e algumas descrições da situação,
convencionalmente apresentados no interior de figuras chamadas "balões". No
interior dos balões, o ruído onomatopaico e o ritmo visual constituem os elementos
fundamentais de uma possível estética dos comics.
As histórias de aventuras possuem típicos heróis com super poderes, vilões
com planos para conquistar a humanidade e dominar o mundo, mocinhas em
situações perigosas esperando serem salvas. Mas existem também histórias que
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apresentam crítica social, política e religiosa.
As HQs. Contemporâneas, num processo que se pode tipificar como pilhagem,
apropriam-se de mitos da Antigüidade Clássica e da herança judaico-cristã para
preencher suas tramas com ressonâncias do passado. Esse passado ocupa os
espaços necessários ao heroísmo, ensejando a oportunidade de exibição dos feitos
extraordinários e da ânsia pela justiça, reiterando a velha atração que a luta do Bem
contra o Mal exerce sobre os homens.
Estudar os mitos de um povo, de uma cultura ou de uma determinada época
é fundamental para entender a estruturação de seu pensamento, e também do
pensamento humano. Jung falava de arquétipos e de mitos universais, que se
abrigam na inconsciência humana. Os mitos são narrativas, muitas vezes
transmitidas de geração para geração, e muitas vezes ocupam o lugar da História,
em que um povo assume a explicação mítica para sua origem. Os mitos servem
como mediação entre o sagrado e o profano, aquilo que em geral, liga os homens
aos deuses, funcionando também como um mediador nas sociedades, na medida em
que ele regulava as leis e a moral.
As mitologias são conjuntos de figuras simbólicas do imaginário, imaginário
este fantasioso, em que deuses, semideuses e heróis engendram modelos de
comportamento e de modos arquetípicos de estar em relação com o mundo.
Os deuses do Olimpo, recriados por Homero, o genial poeta da Ilíada, têm
sua presença física percebida por todos os sentidos, estão vivos e através de versos
se ouvem seus bramidos e seus gritos. “Dotados de ofuscante exuberância: os
cabelos de Zeus são mais negros que o natural tornando-se azuis cianosos; os olhos
de Atena cintilam, os de Afrodite têm o brilho do mármore; as tranças luzidias de
Hera caem aos lados da cabeça, enfim, esses deuses ensurdecem e cegam as
qualidades humanas faltando pouco para ofuscarem-nas” 1 . Esses deuses muito
mais humanos e mais acessíveis a orações têm, contudo, qualquer coisa inefável –
essa coisa que os torna diferentes dos mortais.
Na verdade, “os deuses humanizados da Ilíada ainda são temíveis: são
Potências2 . Existe qualquer coisa neles que resiste à humanização perfeita. Não
importa que os deuses efetuem ações impossíveis de se prever, interessa somente
que o crente enche-se de alegria deles, através da imagem que lhe é dada pelo
poeta. O que aos crentes toca é a felicidade sem fim, a jovialidade é o absoluto
sentido da alegria que seus deuses apresentam.
Assim, Ulisses é um herói forte e destemido, que enfrenta, com perseverança,
seu destino. Não desiste de retornar à sua casa aceitando muitos anos de ausência.
Suporta os caprichos dos deuses que o retiram de sua rotina inicial e que o detêm,
retardando seu regresso. Ao mesmo tempo em que é desafiado pelos deuses a
sobreviver, Ulisses recorre a eles em busca de ajuda e proteção: “Ulisses, voltando
a Ítaca, depois de vinte anos, e antes de empreender com Telêmaco o duro combate
contra os pretendentes que deve restituir-lhe Penélope e o seu domínio, aproxima-
se do antro profundo, da caverna abobadada das ninfas, perto da beira-mar, às
quais noutros tempos oferecera tantos sacrifícios3 .
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Penélope também demonstra persistência e coragem ao enfrentar
pretendentes que desejavam obter o lugar de Ulisses. É a personificação da
fidelidade feminina e da esperança que se mantém viva, mesmo contra a evidência
dos fatos. A dor da ausência não aceita o consolo de outro amor e a Odisséia vai
cantar seu sofrimento perenizando-o na epopéia ancestral. Séculos e séculos mais
tarde, o compositor Chico Buarque faria alusão ao comportamento de Penélope,
quando escreveu a letra de “Mulheres de Atenas”.
Zeus, Hércules, Diana, Vênus e muitos outros que habitavam o Olimpo
interferiram efetivamente na vida e nas decisões dos humanos. Esses
“protagonistas” (ou antagonistas) controlavam o amor, a caça, os céus, os mares e
os demais elementos da natureza; às vezes, por simples capricho, outras vezes, por
vingança, determinavam a morte e a vida, a vitória e a derrota, a guerra e a paz.
Porém, ainda que exibissem sua divindade, acabavam por se humanizar (ainda que
não por completo), dando aos coadjuvantes os lugares de protagonistas. Dessa
forma, deuses e heróis encenavam o teatro da vida, na alegoria de um palco
apresentado para toda a população, como se pode comprovar com a leitura de
Ilíada e da Odisséia.
Além das semelhanças com o mundo mitológico (deusas, deuses) e com o
universo da ficção científica, as HQs também fazem uma ponte com a vida real.
Muitas das histórias possuem situações em que se vivem habitualmente com a
violência, o tráfico de drogas e de informações, os conflitos racistas, sejam eles
étnicos ou xenofóbicos e o avanço tecno-científico que possibilita ao homem
controlar a vida ansiando por controlar a morte.
O herói como se conhece atualmente, foi inspirado em modelos clássicos.
Esses, dotados de grande poder físico, sabedoria, paciência e perseverança,
ajudados ou não pelos deuses, constituíram parte da formação do mundo grego e,
conseqüentemente, da cultura ocidental. É interessante notar que a influência de
tais personagens, principalmente Hércules, perdura por séculos, mesmo quando
suas presenças se tornaram profanas. Alguns de seus poderes estão presentes nos
modernos heróis, constituindo-se como características marcantes, verdadeiros sinais
de identificação, como os poderes do Super-Homem, por exemplo, ou em seu
avesso, como a fragilidade do mesmo personagem diante da kriptonita (tal qual
como o calcanhar de Aquiles).
Super-Homem é um exemplo irrefutável dessa afirmação; seus traços
apolíneos são imagens idealizadas, aproximando-se dos deuses da antiguidade
greco-romana, quando os homens e deuses estavam intimamente relacionados,
participando de um jogo em que os deuses se humanizavam e os homens se
endeusavam. Nesse incessante jogo antropomórfico, homens e deuses traçavam um
embate pela sobrevivência. O Super-Homem foi o primeiro de uma série de novos
heróis do universo DC pós-Crise nas Infinitas Terras que surgiram na Terra. Quando
trata do mito do Superman em seu livro “Apocalípticos e Integrados”, Humberto Eco
define mitização como:
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“...simbolização incônscia, identificação do objeto com uma soma de
finalidades nem sempre racionalizáveis, projeção na imagem de
tendências, aspirações, temores particularmente emergentes num
indivíduo, numa comunidade, em toda uma época histórica”. (ECO,
1970:239)
Segundo o autor, a mitificação existente à época medieval era um ato
institucional, de cima para baixo, codificado e decidido pelos homens da igreja.
Estes vulgarizavam seus mitos através das grandes enciclopédias da época. É
verdade ainda que, para elaborarem seus mitos, esses homens de comando do clero
se apropriavam de elementos já correntes nas camadas populares, colhendo aí
certas imagens arquetípicas. Há de fato, uma diferença fundamental entre uma
figura como o Super-Homem e as figuras tradicionais, como os heróis da mitologia
clássica, nórdica, ou as figuras das religiões reveladas. A imagem religiosa
tradicional era a de uma personagem, de origem divina ou humana, que, na
imagem, permanecia fixada nas suas características eternas e no seu acontecimento
irreversível. Não se excluía que, por trás da personagem, existisse, além de um
conjunto de características, uma história. Entretanto a história já se achava definida
segundo um desenvolvimento e passava a constituir, de modo definitivo, a
fisionomia da personagem.
Uma estátua grega podia representar Hércules ou uma cena dos trabalhos de
Hércules, que era visto como alguém que tivera uma história caracterizadora da
fisionomia divina. De qualquer forma, a história ocorrera, e não podia mais ser
negada. Hércules concretizara-se num desenrolar temporal de eventos, contudo
esse desenrolar encerrara-se e a imagem simbolizava, com a personagem, a
história do seu desenvolvimento, era o seu registro definitivo e o seu julgamento.
A personagem das Histórias em Quadrinhos nasce, ao contrário, no âmbito de
uma civilização do romance. A nova dimensão narrativa do mito do Super-Homem é
contrabalançada por uma menor mitificação da personagem. Enquanto a
personagem do mito encarna uma lei, uma exigência universal, e deve, numa certa
medida, ser, portanto, previsível, não pode reservar-nos surpresas. A personagem
do Super-Homem quer ser um homem como todos nós, e o que lhe poderá
acontecer é tão previsível quanto o que nos poderia acontecer.
“Assim, a personagem assumirá o que chamaremos de uma
‘personalidade estética’, uma espécie de co-participabilidade, uma
capacidade de tornar-se termo de referência para comportamentos e
sentimentos que também pertencem a todos nós, mas não assume a
universalidade própria do mito, não se torna o hieróglifo, o emblema de
uma realidade sobrenatural, que é o resultado da universalização de um
acontecimento particular.” (ECO, 1970:250)
A personagem mitológica do Super-Homem pretende ser um arquétipo, a
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soma de determinadas aspirações coletivas, e, portanto, deve,
necessariamente, imobilizar-se numa fixidez emblemática que a torne facilmente
reconhecível.
Não se pode falar do Super-Homem sem lembrar a filosofia de Nietzsche. O
Super-Homem não existia à época em que Nietzsche viveu, mas este profetizou sua
chegada para o futuro. Ele é quem executaria a transmutação dos valores, fazendo
com que o “Bom” e “Justo” voltassem a ser associados a “Nobre” e “Digno”, e não
mais a “Pobre” ou “Humilde”, como ocorria na moral cristã. Nietzsche tinha a firme
convicção de que a sociedade européia em que vivia estava atacada por profundos
males, cujos sinais de decadência mais evidentes revelavam-se pela expansão do
liberalismo (visto como doutrina de uma burguesia senil e covarde, sem energia
para reprimir o que ele considerava a emergência da nova barbárie); pela crescente
demanda pela democracia feita por sindicatos e pelo populacho em geral, ao qual se
associavam movimentos feministas e outros libertários ("porque, bem sabes,
chegou a hora da grande, pérfida, longa, lenta rebelião da plebe e dos escravos;
que cresce e continua a crescer" (Zaratustra, IV parte, 3:247 (s.d)); pelo crescente
império do mau gosto, no teatro, na ópera, na música, exposto pela difusão e
divulgação da arte popular ("É que, hoje, os pequenos homens do povinho
tornaram-se os senhores...isso, agora, quer tornar-se senhor de todo o destino
humano. Oh, nojo! Nojo! Nojo!" (Zaratustra - IV parte, 3:249 (s.d))
Este poderoso e tão popular personagem da imaginação nietzscheana derivou
do romantismo alemão; com sua incontida celebração do gênio, do indivíduo dotado
de virtudes incomuns, mas também da secularização da mitologia, encarnada num
Prometeu redivivo, já assinalado por Goethe. O gênio é uma força irracional, um
fenômeno da natureza, quase divino e absolutamente extraordinário: assim o
enalteceram Goethe, Fichte e Hegel (que afinal conviveram com Napoleão
Bonaparte). Encontrava-se bem acima dos demais mortais, sendo característico dele
usar os outros seres humanos apenas como degrau para sua ascensão. É um forte,
um aristocrata (não no sentido de sangue, mas de personalidade), um colossal
egocêntrico que faz suas próprias leis e regras e que não segue as da coletividade.
O super-homem pode ser visto também como o resultado último da uma concepção
evolucionista. Se, no passado remoto, como ensinou Darwin, fomos precedidos
pelos símios, sendo o homem do presente apenas uma ponte, o futuro seria
irremediavelmente dominado pelo super-homem.
Suprema ironia deu-se com a idéia do super-homem - tornada popular com a
ascensão de Hitler e dos nazistas ao poder na Alemanha dos anos trinta - pois
terminou por cair no agrado popular (para bem possível escândalo de Nietzsche se
vivo fosse) Nos Estados Unidos, de imediato, surgiram uma série de comics, de
heróis em quadrinhos dotados de poderes extraordinários. O mundo então foi
inundado por uma enxurrada de curtas histórias ilustradas que fizeram por difundir
e, claro, adulterar completamente o sentido original do super-homem imaginado por
Nietzsche. De certa forma, ocorreu uma incrível metamorfose que fez com que uma
ideologia elitista e exclusivista como a que Nietzsche defendeu, acabasse, depois de
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apropriada pela indústria da cultura de massas, por gerar um ícone cultuado
pelas multidões de jovens anônimos do nosso século. As massas canibalizaram o
super-homem.
Aproveitando-se das narrativas de ficção científica, dos romances policiais e
da técnica cinematográfica, as HQs, hoje, criam uma galeria de heróis complexos,
que deslizam do território do Bem para o Mal, confundindo-se ora com santos, ora
com vilões, ora com anjos, ora com demônios. As raízes dessas personagens
encontram-se, muitas vezes, nos deuses mitológicos da antiguidade clássica, com
seus poderes e suas paixões. Super-homem é um exemplo típico. Com poderes
extraterrestres ajuda a humanidade em seus problemas e identifica-se com o grego
Hércules, um dos mais famosos heróis da antiguidade. Consagrado não só pela
força, mas também pela persistência, Hércules é vencido pela paixão, tal como
Clark Kent.
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[1] BONNARD, A. (1980), p.148. [2] Idem [3] HOMERO, (1997), p.24
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