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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012
UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM
DEFESA DA DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
Entrevistadores:
Thais Florncio de Aguiar1, Pedro Luiz Lima
2, Rafael Abreu
3
Foto 1: Csar Guimares
Fonte: Arquivos dos Entrevistadores
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012
Inspirado na novela Tonio
Krger, de Thomas Mann, Csar
Guimares tece um comentrio a propsito
de sua trajetria acadmica, com a fina
ironia que o caracteriza: h personagens
que no tm jeito. Lana mo, assim, do
mestre da literatura para dizer que no se
considera um profissional cannico das
cincias sociais e, sim, antes de mais
nada, um professor que divulga
conhecimento e faz tudo o que puder
para que seus alunos criem. Foi nessa
atmosfera de generosidade que o professor
recebeu, na tarde de 8 de setembro de
2011, seus entrevistadores Thais Florencio
de Aguiar, Pedro Luiz Lima e Rafael
Abreu em sua pequena sala de trabalho no
Instituto de Estudos Sociais e Polticos
(IESP), da UERJ. A entrevista, sugerida
pelos editores deste nmero, publicada
pela revista CSOnline como gesto em
homenagem a esse personagem especial
das cincias sociais no Brasil.
Aos 72 anos de idade, Csar
dedicou quase dois teros da vida ao
ensino e pesquisa na ps-graduao em
cincias sociais. Trata-se, nas suas
palavras, de parcela significativa da
minha vida de esprito. Aps testemunhar
o efervescente ano de 1968 em solo
estadunidense, Csar retornou ao Rio de
Janeiro munido do ttulo de mestre em
Cincias Polticas pela Universidade da
Califrnia para continuar a organizar o
Instituto Universitrio de Pesquisas do
Estado do Rio de Janeiro (IUPERJ), da
Universidade Cndido Mendes (UCAM),
ao qual estava vinculado desde 1965. Em
2002, recebeu o ttulo de Notrio Saber.
Durante esse perodo, vinculou-se tambm
a Pontifcia Universidade Catlica (PUC-
RJ) (1988 a 1996). Em 2010 deixou o
IUPERJ junto com todo o corpo docente
para constituir o Instituto de Estudos
Sociais e Polticos (IESP), na UERJ, onde
hoje professor/pesquisador visitante.
Nesta entrevista, Csar menciona
algumas de suas teses e discute a
academia, a teoria poltica e social e,
sobretudo, reflete a vida e a condio
humana.
A todos, uma boa leitura.
Pedro Luiz Lima: Partindo de Mannheim,
voc costuma tratar da distino entre
intelectual e acadmico. E, talvez, o
dilema de todos ns aqui seja o de como
agir no sentido de fortalecer o papel do
intelectual em um mundo em que os
imperativos para ser um acadmico, para
quem est na ps-graduao, como
professor ou como aluno, so muito
grandes Haveria uma maneira de evitar
isso?
Csar Guimares: , eu costumo operar
com essa distino que, alis, no minha.
de Mannheim e de um autor menor, ou
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012
melhor, esquecido, chamado Lewis Coser
[autor do livro The function of social
conflicts]. A distino tem vrias
dimenses, mas talvez a mais relevante
seja: a quem voc fala? A quem voc
dirige a sua palavra, seus escritos, seu
falar. E a idia de intelectual est ligada a
dirigir-se ao pblico. Trata-se de estar na
esfera pblica. E estando nela, no pblico,
voc distingue seus destinatrios; os
pblicos no so homogneos, porque as
sociedades no so. Enquanto na vida
acadmica, a resposta elementar: voc
fala com seus pares. Quando autores e
estudiosos dessa questo falam pares, h
um pouco de ironia. Porque pares a
traduo de peers e h certa caracterstica
aristocratizante j partida. Mas isso no
to relevante. H ainda uma dimenso
contraditria, j que pares so idnticos,
iguais. Mas eles no so. A academia, por
definio, sociologicamente
hierarquizada e intelectualmente
determinada pela autoridade. por a que
vem a noo, por exemplo, de paradigma
do [Thomas] Kuhn; no s dele, mas de
tantos autores que estudaram esta coisa.
Isso significa que voc, enquanto
acadmico, por necessidade, aceita uma
certa disciplina, um certo tipo de trabalho.
Isso da vida. Voc no forma fsicos
vamos tratar de fsicos? sem esse modo
de ser acadmico. Talvez forme, mas no
no momento, no o que ocorre. O
trabalho intelectual em geral, no no
sentido do intelectual precisamente, mas
como trabalho da mente, est, hoje, antes
de mais nada, entregue academia,
universidade. assim em qualquer lugar.
Ento, preciso considerar que quando
voc fala em intelectual profissional,
profissional acadmico, voc est tratando
com dois modos de ser que perfeitamente
coexistem no mesmo ser humano. H
aqueles que esto apenas voltados para si
mesmos, perdoe-me, para seus pares. E h
aqueles que esto voltados para o pblico.
Mas, de qualquer maneira, h um mundo
o de estar voltado para seus pares que
cresceu. Isto no era assim. Fiquemos no
Brasil h uma, duas geraes. Havia e
continua a haver , na intelectualidade, o
jornalista, ou o artista etc., que falavam...
Porque quem diz intelectual, diz poltica.
De alguma maneira, trata-se do exerccio
de alguma atividade crtica que envolve o
poder ou o influenciar. Continua a haver
esse tipo de intelectual, mas hoje, quando
se abre um rgo de imprensa, repara-se
que o intelectual jornalista lana mo com
freqncia do profissional acadmico para
reforar seus argumentos. O argumento
intelectual no se oculta, nem pode ocultar-
se. Ele tem um lado. O profissional
acadmico diz que ele pertence ao mundo
da doxa, que mera opinio, enquanto este
profissional acadmico no estaria
praticando nunca a doxa, no fato? Ns
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012
sabemos que no bem assim. No
escapamos da humanidade, portanto no
escapamos da opinio. Acabamos que
carregamos, s vezes, opinies tcitas em
nossos argumentos cientficos... Mas o
ponto este: impressionante como
crescente a demanda sobre o profissional
acadmico e, agora, em nossa rea, nas
cincias sociais. impressionante. um
sistema de produo que deve ter sua
rentabilidade, sua importncia. Eu no
consigo ver, muitas das vezes; porque
muita coisa que se requer do acadmico.
At ele se transformar em um professor
relativamente bem sucedido, em um
pesquisador, h um caminho longo a
percorrer com toda sorte de avaliaes, de
tal maneira que quando ele chega l, ele
no precisa mais de avaliaes ele est
perfeitamente normalizado, digamos
assim. E pronto. De qualquer maneira, a
uma mera questo minha, pessoal: muito
difcil pensar a vida social, pensar a vida
humana, sem que se pense de alguma
maneira que se est exercendo, de uma
forma ou de outra, o papel de intelectual.
Como faz-lo, como conciliar? Eu digo
que voc o faz s vezes quando est
fazendo o seu trabalho acadmico, quando
fala para os seus pares mas h coisas que
voc fala para seus pares que acabam,
digamos assim, escapando desse pblico,
dada a relevncia do que voc est falando.
O que relevante? No sei. O que o para
a esfera pblica e para o seu pblico na
hora em que voc fala. {} Sempre h um
juzo de relevncia e irrelevncia. Ento,
como fazer? impossvel e tolo imaginar
que voc vai tornar, em meio a uma vida
social mais complexa, os papis
claramente definidos como no passado.
Isso no existe, isso acabou. Essa mquina
acadmica veio para ficar. Ela vai se tornar
mais complexa ainda, evidentemente, com
o mundo de informatizao, que permite a
voc ler 800 coisas, das quais,
possivelmente, 80 tm alguma
importncia. Mas voc tem que ler as 800.
E, mais do que isso, ela se torna mais
competitiva, pelo menos por enquanto: de
um lado, h mais gente na vida acadmica
e, por outro lado, a competio do mundo
em que vivemos penetra todos os
ambientes. E na universidade muito
especialmente. Eu nunca vi tanta
competio no mundo universitrio...
Thais Florncio de Aguiar: E como
pensar competindo?
Csar: Exatamente. As pessoas j pensam
competindo, j pensam: qual o lugar em
que eu vou publicar, de tal forma que meu
currculo Lattes (ou seu semelhante, em
qualquer outro lugar sempre tem uma
coisa parecida) engorde... Eu fico
preocupado: ser que h tempo, alm de
tudo, para parar para pensar?
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
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Thais: Nessa discusso, h espao para
uma cincia social dita mais engajada?
Csar: A cincia social sempre
envolvida e comprometida com algum
olhar. Isso pode ser explcito. E veja,
portanto, que a distino entre o
profissional acadmico e o intelectual
comea a se transformar em um problema.
O ponto que, quando explcito, o
profissional acadmico que esteja
exercendo seu papel de intelectual pode ser
acusado de parcialidade, de vis, de
ideologia, de faltar aos cnones do rigor.
Bem, tudo isso pode acontecer, de fato; e
pode no acontecer. Com freqncia, h
um nmero de profissionais acadmicos,
eu no sei quo grande ou quo pequeno,
que acha que est operando estritamente na
lgica do saber, que seus pares bem
entendem: eles formam pessoas assim,
foram formados por pessoas assim, sem se
aperceber das implicaes do que esto
dizendo. No h uma coisa que se fale
sobre o humano que no tenha uma
implicao de natureza intelectual. Pelo
simples fato de que humano. E algum
disse demasiado humano.
Pedro: Voc falou em normalizao do
intelectual. E falou da relao com o
pblico, pois a diferena entre o acadmico
e o intelectual seria exatamente o pblico.
Muitas vezes, o discurso do intelectual d
ares de cientificidade a uma ideologia
normalizadora... Ento, talvez seja essa a
grande armadilha e a vem a pergunta: h
como fugir dela? A soluo seria esvaziar
esse espao miditico?
Csar: s vezes ns imaginamos que o
espao miditico , por exemplo, a mdia
eletrnica. Bom, isso sempre ocorreu, no
? Antes o meio era a imprensa escrita (o
que continua a meu juzo, a grande
imprensa ainda pauta a mdia eletrnica).
Agora muda um pouco, por conta de outros
recursos, a internet, o mundo da web. De
qualquer maneira, voc sempre tem o
problema de que algumas opinies esto
melhor representadas, digamos assim, por
rgos de imprensa do que outras. Sendo o
mundo o que , a grande imprensa, a
grande mdia, empresa. Ento, ela tem
suas escolhas. E a o caminho no de
mo dupla: eu no sei quantas mos tem.
H profissionais que querem estar
presentes na mdia pelo simples fato de l
estarem. H outros que querem porque
querem efetivamente expressar sua posio
pblica intelectual. H outros que esto
porque so chamados a estarem, so
entrevistados, so procurados para serem
citados. H hoje colunistas da imprensa
que vivem de ouvir profissionais
acadmicos e reproduzir parte do que
dizem para organizar sua opinio. Ento,
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
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armadilhas existem sempre. E h pessoas
que adoram armadilhas; ento, no uma
armadilha. H pessoas que caem em
armadilhas. E h pessoas que, ao contrrio,
valem-se da armadilha para dela sair. E
se ns nos restringimos rea de poltica
eu no gosto de me restringir, porque
afinal muito complicado... Socilogos
dizem coisas de impacto poltico s vezes
muito mais relevantes. Pensem nas
questes relacionadas classe,
estratificao, discriminaes, etnias. Mas
de qualquer forma, no caso dos cientistas
polticos, h um problema um pouquinho
complicado que a vocao da nossa
disciplina, a vocao de falar do poder. E
com freqncia ns falamos ao poder
como intelectuais. No falamos do, mas
ao. No sei se foi Plato que nos ensinou
isso. O platonizar nesse sentido de falar
para o poder, de ter solues de poder:
quais so as melhores instituies, como
devem ser os partidos, como a vida poltica
deve se organizar? No como a vida deve
organizar a poltica, mas como a poltica
deve organizar a vida, no verdade?
Ento, esse olhar tem estes 2.500 anos
platnicos que tm um peso muito grande
sobre ns, mesmo que no nos
apercebamos. s vezes, as pessoas esto
reclamando da participao intelectual de
profissionais acadmicos da rea poltica
porque, com freqncia, as opinies podem
ser mais conservadoras em virtude,
digamos, do trauma de origem do nosso
pensar, pelo menos no que chamamos de
Ocidente. Ento, a sua questo inicial
mais complicada: como desplatonizar o
nosso olhar? Como falar a partir da vida
e no de como organiz-la de maneira que
ela seja estvel, tranqila e feliz? Quer
como profissionais acadmicos em nossos
estudos, sem ceder no rigor; quer como
intelectuais que falamos ao pblico em
geral. Porque as duas coisas somam-se.
Evidentemente a essa altura eu j disse
vrias coisas contraditrias. isso mesmo.
As coisas envolvem dilemas, aporias e
contradies, inevitavelmente.
Thais: Para aproveitar a discusso sobre o
acadmico e o intelectual, vale perguntar:
cabe hoje alguma crtica metodologia das
cincias sociais, ou melhor, ao mtodo
utilizado para se fazer cincia poltica em
nossos dias?
Csar: Aqui eu me ponho no lugar do
acadmico. O que eu quero saber? Tendo
em vista o que eu queira saber, me importa
qual o melhor caminho. Qual o melhor
caminho para saber o que eu quero saber?
Se esse caminho passa pela matemtica,
pela estatstica, pela filosofia, pela histria
tanto faz. Como que eu melhor sei?
Quem manda o meu desejo de saber. De
saber o qu? O problema no sermos
prisioneiros da idia de que h o
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
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caminho para ir a algum lugar. Porque a
deixa de ser um caminho mtodo, se no
me engano, quer dizer caminho , e passa a
ser o caminho que leva a um lugar s,
tambm chamado dogma se voc me
permite uma metfora. As pessoas s vezes
so dogmticas, acham que h um
paradigma nico das cincias sociais. Isso
impossvel. As cincias sociais, por
definio, tm paradigmas concorrentes e
tem que ter. Isso o nome da nossa
liberdade de pensar no plano da reflexo
cientfica ou da reflexo intelectual. Por
vezes, um paradigma predomina, por vezes
outro, no me importa. H sempre a
possibilidade de disjuno. No h o
caminho real, se que existe na qumica,
na fsica o que eu duvido, mas no sei.
Porque certamente na biologia j no
assim. Enfim, ns no vivemos mais no
mundo do crculo de Viena. Isso foi em
1929. O lugar do puro positivismo
lgico isso acabou. H pessoas que
falam como se estivessem em 1929, na
ustria. estranho. Mas isso cada vez
mais incomum. Tambm no consigo
entender algum que diga: s h uma
frmula, que a marxista; a dialtica
marxista resolve isso aqui... Eu sei l.
Uma das coisas boas a respeito do mundo
em que vivemos que h um nmero to
grande de certezas que nada certo. Quer
dizer, ns podemos com muita
tranqilidade exercer certa dvida
metdica, que vem das origens da reflexo
moderna, e com isso nos liberarmos para
pensar, a despeito da opresso do trabalho,
esse lado duro a que as pessoas so
foradas. Eu no me foro muito a nada, na
realidade, salvo por ser preocupado...
Thais: Voc acha que h algum mtodo
relegado, descartado, sobrevalorizado, que
deveria ser resgatado hoje em dia?
Csar: Sempre h quem valorize isso ou
aquilo outro. O ponto que se voc
percorre uma biblioteca relativamente
grande, ou pesquisa no computador, voc
descobre a pletora de conhecimentos das
mais diversas procedncias tericas,
metodolgicas ou de ponto de vista
mesmo, de ontologia pressuposta, que a
esto. Se as pessoas resolvem esquecer
ou porque seu objeto no o demanda e a,
tudo bem , ou por preconceito. E, neste
caso, eu lamento muito. Preconceitos no
fazem parte do mundo do trabalho
acadmico, no isso? No podem fazer
parte de maneira nenhuma. E do ponto de
vista intelectual, as pessoas deixam claro o
que no querem. Eu posso estar fazendo
uma coisa muito estranha, abstrata e
ecltica. Mas porque, realmente, para
mim assim. Eu no consigo mais ver
caminhos reais. Tem gente que at busca,
mas uma bobagem. Quando voc
pergunta: mas para saber tal coisa que se
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
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tem interesse, tal teoria no melhor ou
pior? Eu digo: talvez... que a grande
teoria, no sentido de um personagem
esquecido da cincia social americana,
chamado Wright Mills, acabou. O mundo
se revelou um pouquinho mais confuso, na
medida em que se imaginava que ele ia se
tornar homogneo. Alguma coisa
homognea nele, mas outras no: essa
homogeneidade globalizante revela
diversidades nunca dantes percebidas.
bom que contraditrio, e por a a gente
descobre algumas coisas... Ento, a grande
teoria, ou a grande filosofia da histria, ou
a grande reflexo que vai importar da
economia ou da filosofia a explicao do
mundo as pessoas as fazem. Mas, a no
ser em casos de pessoas geniais, elas fazem
e se esquece. Alis, esse um problema
complicado da vida acadmica, na medida
em que ela se tornou muito ampla, muito
grande e massificou-se, ela relega a um
esquecimento muito rpido aqueles que
esto envolvidos nela. Esse o preo
inevitvel da democratizao do saber
acadmico. da vida. interessantssimo
que as pessoas faam hoje um esforo
enorme para concorrerem, para no serem
esquecidas, porque afinal exatamente o que
as pessoas buscam quando fazem trabalho
intelectual, sejam elas artistas ou cientistas
sociais, reconhecimento por mais longo
tempo possvel. Mas nem todo mundo
Plato, no ? [risos].
Pedro: Vamos mudar um pouco o registro
para fazer uma pergunta mais biogrfica:
como se deu sua passagem do direito para
as cincias sociais?
Csar: O problema que eu no estive no
direito. Eu freqentei uma faculdade de
direito e l me fiz bacharel [ttulo recebido
pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro em 1963]. Mas, no momento em
que eu estava me fazendo bacharel em
direito, eu no estava fazendo a faculdade
de direito. Eu ia l. Eu adquiri um diploma.
Alis, uma boa escola. Mas eu estava
totalmente envolvido em certas atividades
de movimento estudantil (continuamos
usando o termo, no ?), que tinha um
pouco a ver com a atividade intelectual de
imprensa, esse tipo de coisa, e isso me
obrigou a ser uma coisa, que eu tenho a
estranha impresso que continuo sendo,
quando posso; me obrigou a
autodidaticamente me envolver com coisas
que no tem a ver com o direito. Eu
tambm no troquei [o direito] pelas
cincias sociais. Porque h personagens
que no tm jeito Deixa para l. Enfim,
estou me lembrando de no sei qual novela
de Thomas Mann, acho que Tonio
Krger... H pessoas que se perdem,
fatalmente; no h caminho. Simplesmente
havia coisas que eu tinha que resolver na
minha cabea para pensar o mundo a
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
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minha volta quando eu estava naquelas
atividades de estudante. O empenho era um
pouco na atividade intelectual ali
envolvida. Eu tinha problema, por
exemplo, com a origem catlica da minha
formao enquanto estudante antes da
universidade, com o meu afastamento da
religio, mas ao mesmo tempo com o meu
humano temor de abraar com muita
rapidez o prximo dogma, religioso ou
no. Ento, estranho que, sei l, o livro
que me marcou quando jovem foi
Ideologia e Utopia, na traduo do
Emlio Willems (que muita gente nem sabe
que existe, e boa, da Editora Globo).
Interessantemente, como todo mundo sabe,
o que quer que Ideologia e Utopia seja,
um manual de relativismo, muito embora o
autor passe pginas e pginas a dizer que
dali no decorre um relativismo. Est bem.
Bom, mas o relativismo tem suas aporias
insolveis.... Est bem, deixe isso para os
filsofos. O ponto no era ser relativista ou
no. O ponto era no ser dogmtico.
Agora, a peripcia pela qual eu acabei indo
estudar cincia poltica nos Estados Unidos
foi obra do acaso.
Thais: E parece que voc, no tempo de
faculdade, freqentava aulas na faculdade
de filosofia. Era a busca de outra coisa que
no o direito?
Csar: Era interesse. O direito no me
respondia. Hoje, por exemplo, eu entendo
que para o cientista poltico, em alguns
casos bvio, e para o socilogo, aquilo
que se aprende em uma faculdade de
direito til. Para o intelectual ativo, mais
til ainda por motivos elementares. Acho
que as pessoas querem que o mundo seja
de certa maneira e o nome institucional do
dever ser a lei. Seja l como se chega a
ela, mas isso outra histria. Agora, a
peripcia que me levou cincia poltica
totalmente obra de um acaso. Acaso, em
termos. Eu no fiz muitas escolhas. O ano
de 1964 marcante em me fechar
caminhos e s deixar abertos outros. Ou,
pelo menos, s deixar abertos aqueles que
eu pudesse perseguir. Havia vrios, mas
alguns no podiam acontecer. Isso a
estabelece como que se chama agora,
independncia de trajetria? , voc segue
o caminho que da vida. No era bem isso,
eu ia estudar cincias sociais; de fato, ia.
Mas no ia para onde fui, no houvesse o
que houve em maro ou abril de 1964.
Meu caminho para ir para a Frana se
fechou, por motivos da vida.
Posteriormente, fui para os Estados
Unidos. A partir de 1965, eu j estava
vinculado a uma instituio, que era o
IUPERJ, onde trabalhei por tantos anos. E
ainda no havia cursos. Ento as coisas
seguiram esse rumo.
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012
Rafael: Em 1968, voc foi fazer o
mestrado?
Csar: Os cursos no IUPERJ comearam,
creio, no segundo semestre de 1968, mas a
o momento em que eu vou para os
Estados Unidos. Comea com outras
pessoas, outros professores. Vou com a
obrigao de retornar e ingressar no quadro
de professores da instituio. Deu-se que
nela fiquei at recentemente, quando os
membros da instituio saram. Um
nmero deles est hoje vinculado ao
IESP/UERJ [Instituto de Estudos Sociais e
Polticos da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro], e outros seguiram caminhos
diferentes. Ento, eu diria que a minha vida
se vinculou a essa instituio como
professor, na verdade isso. Minha vida de
esprito, quer dizer, boa parcela
significativa da minha vida de esprito se
vinculou a isso de uma maneira, sei l, um
pouco longa. a vida. So dois teros da
minha vida. Como o outro tero intil
[risos], infncia, adolescncia e o
movimento estudantil, quando eu s fazia
bobagem (agora eu estou brincando, com
essa ltima parte, evidentemente; com a
outra parte, no)... uma coisa estranha,
que tambm engendrou uma coisa hbrida
j antes que perguntem, eu vou logo
avisando. Porque eu no me tornei um
profissional cientista poltico ou um
profissional das cincias sociais certinho,
cannico, com os ttulos certos. Enfim, foi
tudo meio confuso. E, no obstante, acho
que a generosidade de meus colegas foi
permitindo que eu por aqui ficasse e
tivesse um papel. O que me leva a pensar...
quo completo um cientista social
acadmico? Depois disso, vem um outro
problema: quo completo um homem de
esprito, seja ele cientista social ou artista?
So coisas diferentes. O que a vida
acadmica passou a exigir a partir da
minha gerao? Passou a exigir que as
pessoas fossem, ao mesmo tempo,
pesquisadores criativos e minha gerao
tem um nmero notvel e muito grande de
pessoas nessas circunstncias e
professores competentes. Eu vi que nos
Estados Unidos um grande nmero de
pesquisadores criativos dificilmente
conseguia ser professor competente porque
no tinha tempo. E eu no diria que minha
vida foi de intensa pesquisa criativa. Ento
agora vamos botar isso em outro quadro...
H uma definio de Ezra Pound que
Haroldo de Campos utilizava mais ou
menos assim: o criador, o divulgador, o
diluidor. O professor , antes de mais nada,
um divulgador e o que eu sou. Quando
voc faz isso e est convencido, isso pode
ser tomado como uma limitao. Bom,
sendo ou no, o diabo, tem que fazer
direito, porque a possibilidade de diluir
enorme. E se voc divulga, quer dizer, se
transmite e no cria, e se voc est cercado
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012
de pessoas que esto criando (estou
falando de alunos) e que podem vir a criar,
faa tudo o que puder para que isso ocorra.
A j uma questo de tica profissional
de um intelectual um pouco manqu, um
profissional um pouco gauche no sentido
de Drummond, por favor... Sobre a
diferena entre profissionais e
intelectuais... Vamos falar de um msico?
O nome dele Adrian Leverkhn. um
msico imaginrio, um produto da fico,
do livro mais importante, a meu juzo, de
Thomas Mann, que o Doutor Fausto.
o fausto dele. O sujeito se arrogar a
escrever um fausto complicado, no ?
Mas ele escreveu... E Lukcs escreveu
vrios ensaios e trabalhos sobre Thomas
Mann, a quem conheceu e com quem
trocou correspondncias desde jovem.
Recentemente, um aluno [Eduardo Matos]
apresentou uma tese de mestrado aqui [no
IESP-UERJ] sobre o jovem Lukcs falando
do primeiro Mann. O artigo de Lukcs
sobre o Fausto de Mann chama-se A
tragdia do homem burgus, e h um
momento em que ele se refere ao
intelectual profissional da universidade
alem e que na realidade, digamos assim,
instancia aquilo que o intelectual alemo
tpico. Ele diz que essa pessoa, por conta
do contexto alemo, vive um ensimesmar-
se, um pr-se para dentro, um olhar para
dentro de si, protegido pelo poder. um
pouco isso que ocorre com esse sofrido
msico que se fechou dentro de si para
fazer a grande obra. Vocs leram Doutor
Fausto? terrvel: o narrador, Serenus
Zeitblom, narra essa histria, que sempre
na primeira pessoa. E ele vai narrando,
narrando e, quando chega ao final do livro,
diz: e eu nesta pequena cidade alem,
agora que a guerra est terminando, onde
me recolhi e consegui ficar ensinando
nesta pequena universidade etc... Posso
assim terminar a obra que escrevo sobre
este meu amigo que h 20 anos perdeu a
conscincia. Ele deixou de compor,
simplesmente enlouqueceu depois de ter
composto sua grande obra. Mas enfim,
esta separao terrvel entre poder e
trabalho da mente que freqentemente leva
a essas situaes fusticas. De fato, ele se
comporta como Fausto. Essa a troca que
ele faz: eu quero compor algo
imorredouro. E no v o que se passa. A
tragdia do homem burgus... Mas por
que esse tema agora?
Thais: Por qu? Revele.
Csar: Porque um tema que me perturba
enormemente, embora eu no tenha
nenhuma participao poltica
significativa. Enfim, essa relao entre
saber e poder: como isso terrvel e pode
ser profundamente doentio... interessante
que, por vezes, ns pessoas que
trabalham intelectualmente (a palavra
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DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
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intelectual est sendo usada aqui em dois
sentidos, um muito amplo e um no sentido
de uma funo; acho que fica clara a
distino) nos conferimos uma
onipotncia terrvel, como se as idias
tivessem um poder notvel sobre o mundo.
Esse olhar platnico, a idia que a
realidade: no princpio, era Plato. Ento,
as idias fazem e acontecem. Foi por isso
que ele andou preso porque foi falar de
idias com a pessoa errada. Mas essa no
a parte importante da vida de Plato: o
importante a idia, ser capaz de escapar
da caverna. A gente escapa da caverna e a
luz muito ofuscante: uma outra
caverna. Nessa onipotncia de que
sabemos mais, h uma certa arrogncia
que freqentemente se torna intolervel. E
j no importa se estou falando do
profissional acadmico ou do intelectual
militante. No meio disso, o sujeito no se
apercebe que sim, de fato, idias contam e
tm importncia, mas que freqentemente
isso independe da sua vontade. Tm
importncia porque vm a ter, porque se
transformam em outra coisa, se
transformam em parte da vida. Ento
algo meio eu j falei a palavra
contraditrio quantas vezes? Pois .
algo meio contraditrio, a arrogncia do
intelectual em torno de seu saber, que seria
todo-poderoso, e ao mesmo tempo o poder
que ele efetivamente tem, e que com
freqncia no se apercebe qual . Porque
no o que ele intenta pode ser o seu
oposto. A gente pode dar alguns exemplos
disso. Que tal um exemplo de economia?
Digamos que numa cidade qualquer se
descubra que em bairros mais pobres, onde
haja insegurana no sentido que parte das
pessoas usa essa palavra, de mais
criminalidade, etc , as lojas de
comestveis e supermercados cobram mais
caro pelo que vendem, muito embora a
populao seja mais pobre. E uma boa
explicao econmica ela boa; no
minha, portanto de que o fato de as
coisas serem mais caras em lugares
perigosos nada tem a ver com a procura,
tem a ver com as condies da oferta, com
a insegurana. Ento, aos custos de
oportunidade, envolvida a a fixao de
preos, agregam-se esses custos da
insegurana. Ento natural, no
natural? (Tudo em geral que se diz de
natural nada tem com a natureza, no
verdade?) Ento, natural que os preos
sejam elevados quando as pessoas so mais
pobres e moram em reas pobres de
segurana. No uma explicao? Ok. Isso
de fato d conta do recado de porqu tal
coisa ocorre. Evidentemente, o sujeito
tambm pode contar com o fato de que a
populao seja menos atenta e menos
demandante em relao a custos. A classe
mdia, em geral, um pouco mais dura em
negociaes. Sim, fato, mas esqueamos
essa disjuntiva. Isto, portanto, uma
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explicao boa. S que ele no se apercebe
que acabou de formular a ideologia do
vendedor. E, freqentemente, no sabe que
o que est fazendo ali a ideologia do
vendedor. No importa quem o vendedor,
se voc quiser chamar de burgus,
qualquer coisa assim, pouco se me d. Ele
est racionalizando o comportamento que
tem a ver com preos mais altos e,
portanto, com dificuldades maiores para
quem j dificuldades tem. Toda essa parte
foi esquecida. A notvel arrogncia que
fez com que, digamos, um economista de
Chicago explicasse assim a formulao de
preos em lugares mais pobres e at
pudesse ganhar um prmio Nobel por
coisas como essas lhe d uma auto-
estima muito elevada e justa. Por outro
lado, oculta essa outra parte do saber que
tem esta funo que ele desconhece. E,
contudo, para citar outro autor importante:
ele no sabe, mas faz.
Pedro: Voc falou dos problemas que no
se resolveriam pelo direito. E voc falou en
passant do seu envolvimento com o
movimento estudantil. Hoje, voc
freqentemente faz cursos e escreve textos
sobre aquele perodo, sobre a democracia
de 1946 a 1964 e suas questes. Ento, eu
queria te perguntar: que questes so
essas? E qual foi a sua atuao no
movimento estudantil?
Csar: Era s, e to s, intelectual.
Participava de imprensa estudantil. Nunca
participei sequer de um Diretrio
[Acadmico]. No tinha a pacincia
necessria para me envolver... no tinha
mesmo. {} Escrever para a imprensa
estudantil tinha certa importncia na
poca...
Rafael: Continua tendo...
Csar: Tinha mais, talvez. Certamente
tinha mais, porque o nmero de
universitrios era muito pequeno. E,
portanto, este conjunto de indivduos
constitua o qu? Quisessem, ou no, uma
elite. Alis, fcil ver por sua procedncia
social. Mesmo na universidade pblica e,
muito especialmente, nela. Continuamos a
ter, at hoje, essa coisa estranha de que
pessoas de origem social mais elevada
ocupam espaos na universidade pblica.
Porque ela melhor, em geral. Agora, por
que me interesso por esse perodo? Ele me
interessa intelectualmente mesmo. Mas eu
acho que quando voc se interessa
intelectualmente mesmo, sempre, no se
trata de uma coisa que tem a ver com a
razo. Alis, no h nada que tem a ver
apenas com a razo, salvo as
racionalizaes. O que, portanto, no tem a
ver apenas com a razo... Porque me
chama a ateno certo tipo de
efervescncia que corresponde minha
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DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
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juventude, o perodo, ali, dos anos 50 etc.
E porque me aproxima de uma coisa
chamada poltica. Puxa, existe poltica,
verdade, as pessoas votam.... Essas
coisas: votam, fazem greves, mas no
muitas, porque, no fundo, as greves eram
proibidas a despeito de serem permitidas
pela lei no me pergunte por qu [risos].
Ento, tambm o incio de uma
movimentao em torno de um interesse
intelectual e, no caso, poltico. Isso me faz
hoje voltar para trs e ficar perguntando: o
que era esse perodo? Eu o vejo s vezes
meio maltratado [a democracia de 1946 a
1964], se contrastarmos com o perodo do
Estado Novo, com a Repblica Velha, ou
mesmo com os governos militares que nos
so prximos (no so to prximos, mas
da minha gerao, certamente, foram at
prximos demais, no verdade?). E
foram objetos de estudo! Diversos grupos
de estudo (uma coisa ainda que falta, falta
estudar os militares, falta ainda muita coisa
desse perodo). Mas essa coisa estranha,
entre a Constituio de 1946 e o golpe de
1964, menos estudada... H estudos
crescentes, no ? Mas, veja, h pouco eu
mostrava a primeira biografia de um
presidente da Repblica do perodo [a
recm-publicada biografia de Jango, escrita
por Jorge Ferreira]. Agora, s agora... E,
evidentemente, neste momento, esta coisa
de estudantes tem um papel muito forte por
isso, como acabei de dizer. Numa
democracia eleitoral de participao
restrita como aquela, em que metade da
populao era excluda do voto
simplesmente porque era analfabeta; em
um mundo que ainda rural (e vocs
conhecem os textos a respeito, no
fato?); nesse lugar, essa participao tinha
um peso de importncia maior. Querendo
ou no, voc estava mais prximo de certa
efetividade poltica, em certas
circunstncias, e que depois se torna mais
difcil na ditadura por conta da represso.
Em alguns momentos, acabam sendo casos
de herosmo: pessoas foram envolvidas em
situaes de risco de vida. E,
posteriormente, isso se d por espasmos,
no ? Momentos. Muito embora o
movimento estudantil tenha se
reorganizado todo a UNE, e tudo mais ,
o peso menor. Possivelmente ser maior:
se eu estou olhando o que estou olhando, e
olhando o mundo a minha volta, vai
crescer este peso. E no como, digamos, se
quer: ah, agora temos marchas contra a
corrupo na Avenida Paulista. Bom,
interessante, um bom lugar para marchar
contra a corrupo, sem dvida. Mas eu
estou pensando numa coisa mais
espontaneamente estudantil que comeou a
correr o mundo, no ? Ento, isso que foi
to importante aqui, vai voltar a ser,
possivelmente. Como agora na Espanha,
por demais, esse que um lugar to
agradvel para os imigrantes...
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Thais: No Chile...
Csar: No Chile, j h algum tempo.
Talvez porque de novo se reponham
questes, em regimes relativamente abertos
politicamente em que o lugar da juventude
seja importante. Sob duplo aspecto: h
mais gente nas universidades, e isso
importante, e h mais desempregados
jovens, e isso importante. s vezes so
os mesmos, s vezes no so. s vezes so
imigrantes, s vezes so locais, s vezes, s
vezes, s vezes. E quando digo que isso
tende a ser generalizado por conta do fato
de que o mundo est ficando parecido e,
portanto, cada vez mais diferente (risos).
Certos processos so muito parecidos.
Quer dizer, afinal, estamos em um mundo
que o capitalismo tomou como um todo.
No se trata mais de uma geoeconomia. A
economia capitalista ocupou todos os
espaos territoriais que pde. Falta pouco,
no isso? Isso simples, no ? Todo
mundo sabe isso, no ? Muito embora o
fundamento dessa reflexo seja marxista
e, no caso, bastante adequada , ela [a
economia capitalista] tambm apossou-se,
o que mais importante e tambm uma
reflexo de natureza marxista , de mais e
mais atividades humanas. Ah, estamos
falando da competio entre universitrios
(risos)? Ah, bom, tinha me esquecido que
tnhamos falado disso j, de alguma
maneira, no verdade? Ento, de mais e
mais atividades humanas. Mais mesmo.
Escapar da mercantilizao, da mercadoria,
desta forma, cada vez mais difcil. Mas,
por outro lado, isso engendra reaes
novas, porque ns no achamos que haja
processos de submisso total das pessoas a
uma boa ordem, objetividade, o que quer
que isso seja. H o que parece reedio de
coisas antigas, mas que so coisas novas;
so outros jovens, so outras demandas,
so outras questes e, s vezes, so as
mesmas... Acho que eu fugi do assunto,
no?
Pedro: Existe uma forma de olhar para a
cena, para o mundo contemporneo, que
enxerga otimisticamente certa inovao, ou
uma suposta inovao, nos meios de
resistncia. E entende que as possibilidades
tcnicas de uma nova forma de resistncia
se exibiriam na Primavera rabe e em
Barcelona tambm , por meio de um
cyberativismo. Isso seria uma grande
novidade no panorama da resistncia a essa
subsuno do mundo ao capitalismo de que
voc estava falando. O que voc acha
disso?
Thais: E tambm que uma resistncia, de
alguma forma, a essa mercantilizao da
vida, que voc falou. Em que medida?
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Csar: Vamos comear pelo final. Eu
passei uma parte grande da minha vida
ouvindo pessoas que vulgarizavam o
marxismo, praticamente transformando
foras produtivas em tecnologia, e
tecnologia em produtora de no sei bem o
qu. Tecnologia a gente faz o que quer
com ela, no fato? Quer dizer, o fato de
que haja novos meios de comunicao, em
que os seres humanos querem fazer alguma
coisa coletivamente , evidentemente,
importante. Mas me custa a crer que a
derrubada do governo neocolonial, to
prximo ao senhor Sarkozy, na Tunsia,
tenha sido, como a mdia freqentemente
nos conta, resultado de uso do twitter. Quer
dizer, no foi um movimento apenas de
classe mdia. No acredito que os jovens e
a populao em geral da Tunsia que
um pas relativamente pobre , que todos
tenham esses recursos sua disposio.
Mas, de qualquer maneira, movimentos
sociais surgem pelo rumor... O boca a
boca, hoje, se transforma no olha-a-tela,
cell phone, ou o que bem seja, enfim,
celular... Isso so apenas meios. Ento, eu
comeo pelo comeo: desde os anos 70
para os 80, e isso envolve a Queda do
Muro [de Berlim] (o Muro caiu, como eu
sempre digo e repito, em boa hora, sobre
uma experincia fatdica de opresso em
que se transformou o projeto socialista
daquele perodo). O Muro caiu em boa
hora. E que a histria no se repita, o que
neste caso no apenas uma afirmao,
que eu no sei se tem base factual.
certamente um desejo: que no se repita
essa histria). Mas, esse mundo todo que
caiu permitiu, por outro lado, a expanso
capitalista sem freios. Ns todos sabemos
disso, e isso comentado por tanta gente,
no mesmo? E, por outro lado, como no
podemos mais falar de um lugar (podemos,
mas vamos fazer bobagem, no ?), no d
para ser eurocntrico, ocidentocntrico,
ou o que bem seja. Quer dizer, esse mundo
fragmentou-se. Fragmentou o que no
passado poderia ser chamado de classes
subalternas. Fragmentou o mundo dos
dominados. Uma fragmentao que
prpria da ordem capitalista. Sempre o
processo de desorganizao, cotidiana,
dos trabalhadores acho que eu estou
citando Marx... S que hoje a questo no
s os trabalhadores. A questo uma
pletora de opresses que surgem. E essa
fragmentao leva a formas diversas de
resistncia. O ponto : resistir apenas o
primeiro momento de transformar; e
transformar s possvel quando a
resistncia fragmentada de alguma forma
se aproxima. Duvido que se torne coesa.
No acredito na ressurgncia de algum tipo
de partido que junta tudo, junta todas as
opresses, e pe aquilo tudo e subsume a
uma totalidade lukacsiana ou althusseriana.
Ento, no isso, no por a. Como , eu
no sei. Acho que tambm no vou ver
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
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como ser. Mas as resistncias so
crescentes. Agora, vamos ao norte da
frica e, a, foram pases do mundo rabe,
no ? Notem que so movimentos bem
diversos. Ns sabemos muito pouco sobre
eles. Por exemplo, ns sabemos sobre a
Tunsia, que se tratava de um regime
amigvel Frana. Eu diria que bem
amigvel. O que muito importante a
vrios ttulos, inclusive, digamos, impedir
a imigrao etc. Ns sabemos em relao
ao Egito que o presidente, o ditador
derrubado, fora a pessoa que recebera, logo
em seu primeiro ano de governo, o
presidente Obama, no fato? L foi
pronunciado o famoso discurso do Cairo
em que os EUA e sua poltica externa, pela
voz de seu primeiro mandatrio, se
reconciliavam a expresso quase que
literal com o mundo islmico. Eu no
imaginava que era preciso um discurso de
reconciliao com 1 bilho e 200 ou 300
milhes de pessoas. Havia antagonismos
entre os EUA e o mundo islmico em
geral? Eu imaginava que no, no ? De
qualquer maneira, eu suponho que no era
bem isso que queria ser dito, era a questo
da islamofobia etc. Mas isso foi dito no
Cairo. Portanto, tratava-se, como todo
mundo sabe, de um aliado notvel,
fundamental para os EUA. E importante
para a segurana do Estado de Israel, no
verdade? De repente, seus amigos o
abandonam, e o presidente Mubarak vai...
alis, eu acho que mesmo com os amigos
ele iria. A coisa da Lbia j mais
complicada. A gente no sabe muito bem o
que aquilo. Eu no sei. Fico procurando
quem saiba, para saber o que aquilo. Eu
sei que ele [Muammar Kadhafi] tinha
entendimentos notveis com o seu scio,
um associado seu italiano, o premier
Berlusconi. E uma das operaes
importantes, ali, era de novo impedir a
imigrao. Controlar a imigrao ilegal
para a Itlia. Alm dos interesses no
petrleo, que o caso da Lbia e vrias
outras questes que alguns desses pases
tm , a questo toda de conter essa
imigrao que vem por ali. Essas coisas
so todas fluidas, e no deixam claro o que
vai ocorrer num mundo em que um dos
aspectos que, por exemplo, (a observao
no minha, ouvia isso de meu amigo
Fabiano Santos outro dia) voc at
recentemente podia dizer que nos
principais pases europeus o direito do voto
era dado a praticamente todo mundo que
podia votar, com exceo das crianas. J
no mais assim, dado o fluxo de
imigrao. Ento, os imigrantes em alguns
lugares votam para certas coisas e, em
outros lugares, no votam para nada. E
essa grande imigrao apenas comeou,
no isso? O trabalho vai aonde o capital
est, no ? A fora de trabalho vendida
onde ela possa ser comprada. Ento, as
pessoas so destitudas a no vender a sua
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fora de trabalho na Frana, na Inglaterra,
na Noruega. E, de repente, temos um
mundo assustador. O que assusta no o
norte da frica, a Europa. O continente
mais assustador no momento, em termos
de potencial obscurantista, a Europa,
dados os processos materiais que se deram,
os processos sociais que se deram, dada a
reao que isso engendra. H muito tempo
que no eram pases de recepo de
imigrantes, no ? Os imigrantes que
entraram por ali entraram de outra maneira.
Os chamados brbaros... ou seriam os
sarracenos? Os pases europeus expeliam
sua mo de obra excedente para as
Amricas, para a Austrlia. Isso, por
exemplo, possibilitou fortemente
experimentos de socialdemocracia, porque
a mo-de-obra remanescente, com as
economias e com seu crescimento, menor
e, portanto, tem maior poder de demanda.
Enquanto isso, torna-se mais barata a mo
de obra nos pases para onde esses
europeus foram, nesse mundo que apenas
parcialmente estava integrado. Estou
falando de um processo que vem do final
do sculo XIX, da primeira grande crise
que nos deu tantos imigrantes. A primeira
[crise] que engendra as migraes, e que
faz a Amrica.
Rafael: Os nacionalismos so tema de
pesquisa importante para voc. No prprio
site do IESP, os nacionalismos aparecem
como uma de suas linhas de pesquisa, o
que interessante por utilizar o plural, j
demonstrando certa perspectiva. A
propsito, no existiria uma combinao
interessante entre o processo de formao
do bloco regional europeu e os
nacionalismos europeus?
Csar: Sim, eles vo juntos, no ?
Thais: Eu queria acrescentar uma questo
a esta... Voc falou dos brbaros, falou
desse continente assustador que a
Europa; quais so as possibilidades de
reinveno dessa Europa? Porque hoje a
gente v acadmicos europeus estudando
epistemologias do [hemisfrio] Sul...
Csar: Eu no sei. Eu vejo uma coisa
muito estranha... No sei por qu me veio
cabea Joseph de Maistre comentando, em
sua famosa passagem, que conhecia
franceses, alemes, ingleses, mas no
conhecia nenhum homem em geral. Ento,
a pergunta clssica: quantos europeus
voc conhece? Voc conhece franceses,
alemes... De um lado, essa integrao j
envolve, internamente, afirmaes
culturalmente autnomas no interior de
pases da Europa no contexto da Unio
Europia pense na Espanha. Pense na
recente deciso do Tribunal Supremo
invalidando a emenda constitucional,
votada h algum tempo atrs, que permitia
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que houvesse estados e que a Catalunha
fosse um estado. Isso no pode: foi votado,
mas considerado inconstitucional. H,
portanto, tenses internas em pases que
sempre a tiveram, mas isto foi, de certa
maneira, afogado pelo centro, pelas
guerras. A Espanha o caso clssico. No
interior da Europa, independentemente do
sul, voc tem no governo um movimento
que prega a formao da Padnia, a liga
Norte. Seu ponto excluir da convivncia
com o mundo esta gente do mezzogiorno,
do sul. Veja bem, no s os nacionalismos
das naes conhecidas continuam a existir,
como no interior delas essas questes se
do. So vrios movimentos que se
superpem. Agora vamos falar da
imigrao. A voc tem um movimento,
digamos, europeu. Um exemplo do que eu
quero dizer com isso: o que eu fao com a
Turquia, se eu for europeu? A Turquia
pode fazer parte da Organizao do
Tratado do Atlntico Norte (OTAN), ou
seja, eles podem perfeitamente morrer por
ns, mas no podem fazer parte da Unio
Europia, eles no podem se integrar aqui
de maneira legtima. complicado, no ?
E interessante que o papa (no me
recordo se foi este ou o papa anterior)
chamava a ateno para o fato de que a
Europa crist. Como entrar, ento, um
pas muulmano que seria a segunda maior
populao da Unio Europia (a primeira
a Alemanha)? H formas novas de
nacionalismos sucedneos e agora eu
estou falando apenas quando esses
nacionalismos sucedneos so agressivos,
so contra algum, no sentido de que
ocupam um lugar direita. No me
importam os seus portadores. Sabemos que
muitos eleitores desses partidos que esto
direita so oriundos da classe operria
antiga e votavam na extrema esquerda. O
mundo mudou, as pessoas mudam. Agora,
olhe do nosso lado. evidente que h um
movimento de populaes que querem
integrar-se ali onde podem, supostamente,
trabalhar melhor. Mas, nesse momento,
no podem. Porque este mundo um
mundo de crises cclicas continuadas e
curtas o que parece, eu no sou
economista. O que no quer dizer que v
haver nenhuma catstrofe. No precisa. A
catstrofe no sentido de que vai acabar
no vai acabar nada. Isso assim mesmo:
ups and downs, ups and downs, de maneira
muito mais rpida. paralisante. Eu fico
pensando no continente africano,
especialmente, mas olho em volta... Como
voc corta essa distino: freqentemente
afirmando a nacionalidade. E a as relaes
internacionais comeam a nos falar sobre
potncias emergentes etc. o
nacionalismo delas, dos BRICS, ou que
nome tenha. Se cresce, se tem mais poder
etc., esse nacionalismo deixa de ser
defensivo, ganha outros aspectos. Ento,
engraado: o tpico nacionalismo se torna
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freqentemente mais forte e mais
diversificado, com formas novas, num
mundo que, por outro lado, feito
homogneo sob o aspecto da economia em
expanso que homogeneza e
capitalista ela toda. por isso que quem
trabalha com estudos subalternos j no
opera com categorias de estudos
nacionalistas, que so basicamente de
origem europia. Quando no so, so
releituras, recepes como o caso do
ISEB. Uma das coisas mais interessantes a
respeito do nacionalismo que todo
nacionalismo , necessariamente, na vida e
na prtica de um nacionalista, de um
movimento nacionalista ou de um partido
nacionalista, diverso por definio
identitrio. O que ele est dizendo : eu
sou o outro que voc no . o ns
ideal do [Norbert] Elias. Mas se voc
observar teoricamente, simplesmente
estudando, todos se parecem. H certas
proposies que so rigorosamente
idnticas, evidente. Como que se pem
essas questes a partir do Sul? No sei
responder a isso, mas j uma outra
histria.
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
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Foto 2: Csar Guimares
Fonte: Arquivos dos Entrevistadores
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Thais: interessante que nesse processo
de reinveno se queira buscar essas
epistemologias do Sul...
Csar: interessante, portanto, que os
intelectuais europeus e americanos
comeam a se sentir inseguros a respeito
das suas cincias, no ? Eu acho isso
decisivo. A recepo que aconteceu e
continua acontecendo, que se produz nos
centros mais poderosos da riqueza e, pois,
do saber ( sempre assim: poder-riqueza-
saber com freqncia vo juntos,
particularmente o saber acadmico
institucionalizado), essa recepo tem sido
tal que ela agora refeita. Ento, o saber
do Sul mais antigo do que imaginamos.
H toda a coisa de que estudos subalternos
um exemplo (so indianos que a essa
altura j escrevem em Nova Iorque). Mas o
saber do sul vem de algum tempo, deste
sculo. Quem se deu ao luxo de ler as
memrias de Nehru? Faz tempo, no ?
Quem foi o vietnamita que estudou em
Paris? O Ho-Chi Min aplicou bem de
maneira que ele no precisou ser reflexivo,
ele s agiu, no ? Para vencer trs
guerras, no fcil a guerra japonesa, a
guerra francesa e a guerra americana.
Prestemos uma homenagem ao povo do
Vietn porque no Vietn assim que se
chamam essas guerras. No se chama
guerra do Vietn. So os americanos que
chamam assim a guerra que ns fizemos
l. Os vietnamitas chamam a guerra
americana... muita guerra, muita morte.
S na americana morreram dois milhes de
vietnamitas, entre homens, mulheres e
crianas. Soldados e no soldados. uma
vitria estranha, essa... Nehru estudou na
Inglaterra e diz uma frase que tem muito a
ver com um sentimento que j no existe,
nas suas memrias (eu li a biografia faz
muito tempo; na realidade, eu li nos
Estados Unidos nos anos 1970 eu no sei
por que eu me dedicava a ler mais isso do
que o que me mandavam ler em classe.
Coisa estranha, no sei bem por qu ou
talvez saiba...). Ele dizia: Sempre me
senti, por mais integrado que fosse, um
estrangeiro estudando na Inglaterra. Mas
agora, em meu prprio pas, eu tenho um
sentimento de exlio. Essa reflexo uma
simples frase de alcance notvel sobre a
condio colonial. Hoje, as coisas j no se
do assim; h um movimento de reflexo
afirmativa por parte do Sul, o que
incomoda. Por que incomoda? Vamos ver
isso na vida no na teoria, no no pensar,
no na epistemologia, mas na existncia.
Ento, o imigrante integrador,
integrativozinho, que entrava ali pelo
porto de Nova Iorque (sabemos isso pelo
cinema, mas no s) e dizia o nome... E lhe
falavam: Ill call you Smith, eu vou
chamar voc de Smith, de agora em
diante. No l um nome novo o sujeito
tinha um nome polons desse tamanho...
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Isso acabou. A questo do
multiculturalismo tem a ver um pouco com
isso: as pessoas mudam de territrio, mas
no mudam. Tem coisas, boas ou ms, de
acordo com a nossa opinio, que elas
levam e que no se fundem com as coisas
boas ou ms do lugar de recepo. Ento,
h formas novas de conflito, o que faz com
que a Europa seja assustadora. Porque ela
no estava acostumada, digamos, com o
mau comportamento de seus colonos. Ela
agora tem que se haver com o mau
comportamento dos seus colonos. Isso, por
um lado, assustador, a curto prazo. Pode
levar a racismos e fascismos fascismo
um termo genrico; e j est levando. Por
outro lado, enormemente enriquecedor
do ocidente. No h nada que melhore e
que mais enriquea o mundo europeu do
que esta invaso africana, sul-americana,
do que a diversidade cultural, a riqueza
com que, ao contrrio do que pensam
muitos na Europa e nos Estados Unidos, o
ocidente s tem a ganhar. Este s ter a
ganhar freqentemente teorizado no Sul.
E uma frase que incomoda. Voc pode
imaginar pases da Europa cuja populao
estagnou e que, de fato, se continuar a
imigrao, vo mudar completamente em
sua composio cultural, tnica (as pessoas
dizem racial raa, nesse caso, um
fenmeno poltico-social, j que isso no
existe biologicamente). De fato, isso
mesmo. Mas j ocorreu dantes. Isto
ocorreu sempre! S que agora est
ocorrendo ali, naquele lugar; naquela
Europa j ocorreu tantas vezes... Invases,
imigraes etc. a gente aprende isso no
colgio, no ? Ento, esto com sorte,
ainda no tem nenhum tila nessa histria.
Os hunos ainda no chegaram. Mas os
otomanos assustam, no ? E quando no
so os otomanos, que j so parte da
Europa armada que coisa estranha, a
Turquia parte da Europa armada , so
simplesmente pessoas desprovidas de
qualquer poder. E assustam. E
amedrontam. E provocam o pior que h
nos seres humanos. E grave, porque seres
humanos freqentemente so cultos. Uma
das coisas importantes a respeito do
intelectual, do homem culto e da mulher
culta, que ele tem exatamente os mesmos
dios, as mesmas raivas, os mesmos
ressentimentos, o mesmo potencial de
brutalidade do que qualquer um, com uma
diferena: ele pior, porque racionaliza
melhor. Ele mais sofisticado nisso.
Ento, a arrogncia intelectual
complicada... Eu estou falando uma poro
de coisas repetitivas, mas agora a respeito
de outro assunto. E, portanto, Csar, com
o que voc se preocupava nos anos 1950?.
Com tudo o que leva um jovem, nos anos
50, a pensar nos trabalhadores, nas pessoas
oprimidas. Um mero sentimento elementar
de justia. Depois racionaliza-se isso, luta
de classes, no sei o qu... No importa
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
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no entra de outra maneira. Razo pela
qual to tnue essa preocupao, essa
entrada, desse tipo de ser humano que os
comunistas do passado chamavam de
sentimentos pequeno-burgueses... Mas
evidente que eram pequeno-burgueses, s
vezes eram gro-burgueses, e da? Eram
sentimentos. Certamente, eram sentimentos
que coisa terrvel, as coisas no so s
razo. Eram sentimentos, tinham a ver com
a sensibilidade. E por isso, exatamente,
que, sim, eles tm razo: fcil voc
mudar de sentimento. Os sentimentos
mudam. E, de repente, se diz: pxa, esse
povo com o qual eu me identifiquei tanto
no corresponde ao meu desejo, ento ele
est errado, e agora eu vou para o outro
lado! O mundo est povoado, a minha
gerao est povoada disso: a minha, as
anteriores e as posteriores tambm.
impressionante. Eu j disse isso em algum
lugar por escrito, est para sair um trabalho
em que eu falo isso levemente. Mas, enfim,
isso me impressiona... e eu estou
respondendo primeira pergunta...
Thais: Voc falou de humano; estamos
falando de humano, demasiado humano.
Voc falou da condio existencial desse
Nehru que vai ao estrangeiro e depois se
sente estrangeiro no seu prprio pas. Falou
do sentimento escondido atrs das razes...
Em uma conversa, voc disse uma frase
sobre condio humana mais ou menos
assim: o dilogo que a vida impede que se
d mesmo com as pessoas mais prximas.
No sei se voc se lembra disso. Vejo
questes polticas a envolvidas... Tem
uma questo poltica? Em que medida?
No sei se a colocao funciona para
voc...
Csar: No sei. A nica coisa que me
ocorre que h dilogos na poltica que
no se podem travar. Porque no se podem.
Porque basta uma frase para que a
conversa termine. Por mais que a
conversao seja to relevante para autores
que eu respeito tanto (vamos usar a palavra
conversao apenas para no perdermos
muito tempo com complicaes). H
coisas sobre as quais no h persuaso
possvel. Esse um problema
complicadssimo da poltica. Porque h
coisas que so rigorosamente indizveis na
esfera da interao humana. O que nos pe
diante da questo complexa da tolerncia,
do respeito pelo outro. Eu tenho um certo
horror ao termo tolerncia por causa da
sua ambigidade. No pelo lado positivo
do termo, mas pelo lado de desigualdade
que ele freqentemente envolve. Eu
sempre brinco com isso: experimente dizer
pessoa que est a teu lado eu te tolero.
Isso j estabelece a desigualdade, no ?
Portanto, trata-se do respeito pelo outro.
H que tudo respeitar? No. No. No! Se
o sujeito me diz uma coisa racista, quase
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que meu dever intelectual responder mal,
dizer que aquilo racista. Pode no ser
conveniente, voc pode se machucar (mas
isso um outro assunto). O adequado
moralmente dizer: o que eu estou
ouvindo? Por isso, muito difcil
imaginar uma situao ideal de fala, a no
ser como algo marcado por alguma forma
de transcendentalismo. Mas que, em geral,
quer eliminar esse aspecto. E a eu me
complico, muito embora tenha enorme
respeito por grandes filsofos do nosso
tempo.
Pedro: Eu queria talvez dar uma guinada,
voltar para a questo do Sul. Hoje no
Brasil vivemos sob o governo do Partido
dos Trabalhadores, um governo que
desperta as anlises mais variadas. Queria
que voc falasse sobre o que estar sob um
governo do PT h tanto tempo, o que isso
representa para a esquerda brasileira, em
termos de dificuldades: da dificuldade para
a esquerda sobreviver diante disso e da
dificuldade de governar.
Csar: O ponto no o Partido dos
Trabalhadores. O ponto : como definir a
esquerda? Se voc define a esquerda de
certa maneira, que supe transformaes
fundamentais na ordem capitalista, ou a
sua superao, ento por decerto no existe
esquerda no poder em pas nenhum. Isto
inclui a China, onde o Partido comunista,
veja voc. No caso brasileiro, h diversos
aspectos. De um lado, h uma adaptao
do Partido dos Trabalhadores nova
ordem mundial, amenizando-a,
aprofundando certos tipos de programa que
so parte dela. No sentido de que a poltica
social que se faz no Brasil, se faz em
outros pases da Amrica Latina com outro
nome: no importa se o Mxico, se a
Argentina, ou se a Venezuela. Alis, eu
vou ver os valores relativos ao PIB em
cada um desses pases para ver quem gasta
mais assim... Se se trata desta outra
esquerda: mas ela possvel? Vamos
pensar em partidos de esquerda social-
democratas europeus. Como se chama
mesmo o partido social-democrata da
Espanha? J mudou de nome ou no?
Porque Partido Socialista Obrero
Espanhol...
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Foto 3: Quadro de Csar Guimares
Fonte: Arquivos dos Entrevistadores
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Thais: O nome continua o mesmo...
Csar: Continua o mesmo. um nome
muito denso, no ? Mas quando chegou
ao poder, a poltica que ps em prtica foi
a de entrada na Europa, se eu bem me
recordo, ali pelos anos 1980. At porque,
enfim, por acaso eu observei turistas
observam coisas fora do roteiro , era um
momento terrvel de desemprego etc.
Depois se recupera, e agora volta mesma
coisa... Esse um aspecto. O Partido dos
Trabalhadores entra e, certamente, com
relao populao mais pobre eu no
estou falando sem refletir a palavra
pobre, porque pobreza passou a ser o
conceito-chave nessa histria toda... Ento,
certamente h um sentido positivo, h
circunstncias internacionais, h
deliberaes internas, tudo isso fato. Por
outro lado, isso um bloqueio a formas
tradicionais anteriores de esquerda,
possveis ou no; mas o bloqueio total.
Grupamentos e partidos esquerda, quer l
o que isso signifique, havero de demorar
em consolidar-se particularmente
tornando-se um todo. Eles so parte de
uma vasta aliana que o PT comanda. Do
ponto de vista do funcionamento
institucional, impossvel ser de outra
maneira. No h como lidar com mltiplos
partidos e mltiplos interesses nesse
contexto. Por exemplo, de acordo com o
que eu leio, o Brasil assim: ou a crise j
est aqui e ns no vemos porque somos
cegos ou a crise aqui no chegar porque
estamos perfeitamente protegidos. J ouvi
isso dantes. Certamente no foi nesses
ltimos 10 ou 15 anos. Aqui uma ilha de
tranqilidade? No se trata de uma coisa
nem de outra. J se tem problemas de crise.
Neste momento, ento, comea a criar-se
condies para outros tipos de
movimentao poltica. Certamente, se no
temos indignados a srio na praa
porque, enfim, a crise no nos afetou. No
estou dizendo que so apenas crises
econmicas que nos afetam, mas afetam.
Tudo indica que haver continuidade do
governo do PT? No sei, no fao a menor
idia. Noto, sim, que a oposio mais
consistente est sem muito o que dizer.
Rafael: A propsito das denncias de
corrupo governamental veiculadas na
imprensa, pode-se dizer a pauta da
oposio jornalstica?
Csar Guimares: . Isso incrvel. A
oposio ao Lula ficou pulverizada e
fragilizada, a despeito de seus
governadores eleitos que, a propsito, no
se entendem entre eles. H, no entanto,
outra questo a falar do governo Lula, e
no do PT. o choque simblico que
representa a eleio de Luiz Incio Lula da
Silva. Um choque terrvel sobre as elites
tradicionais do pas, quaisquer que sejam.
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
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Como que pode ocorrer sua eleio? Eu
no sou especialista em saber como que
pode; o fato que no h esse exemplar
de chefe de Estado que tenha essa origem
operria e, alm do mais, sem educao
formal mnima ou adequada. Adequada a
qu eu no sei Ento, isso um choque,
a despeito de suas polticas no terem nada
propriamente de radical. No so polticas
radicais, ainda que algumas dessas
polticas ferissem interesses, o que, por
certo, diferente do governo anterior. E
diferente. Esse choque provoca
ressentimento, dio. Ento, muito
complicado. Por outro lado, promove, seja
ou no o desejo de Lula, uma valorizao
da auto-estima da pessoa que se identifica
com aquela condio. Isso por sua feita
tem o aspecto positivo e o aspecto
negativo, dependendo do lugar em que
voc se pe na poltica. De um lado,
integrativo, quer dizer, integra as massas.
Por outro lado, valoriza o homem da
massa, o homem que no podia estar l. E,
portanto, se julga no direito de ter o direito
que deveria ter, que o de falar. um jogo
meio complicado. Por isso as pessoas
falam em lulismo. No sei bem o que
isso, mas eu entendo o impacto. Dizer que
Ah, no tem importncia porque as
polticas so. No tem importncia? O
que no tem importncia? Weber? Olhem,
uma coisa ungida, no?
Rafael: Lulismo seria uma reintroduo
da categoria populismo no Brasil?
Csar: Algumas pessoas na verdade
utilizam isso para falar de populismo o
que quer que isso signifique , outras no.
Com freqncia, populismo diz respeito a
polticas populares de que a gente no
gosta. Essa a definio que eu costumo
usar. Corporativismo so os interesses
organizados de que ns no gostamos, e
assim por diante. Alguns conceitos tm
essa capacidade de ser bastante livre de
valores. [risos]
Pedro: Algumas pessoas caracterizam o
governo Lula como ps-neoliberal. Na sua
disciplina, quando voc trata da
democracia de 1946-1964, distingue o
governo Vargas pelo nacional-
desenvolvimentismo, tendo como smbolo
mximo a Petrobras. Fala tambm de um
outro desenvolvimentismo, dessa vez no
no sentido propriamente nacional (ou
nacional de um outro jeito), para se referir
ao governo de Juscelino Kubitschek, cujo
smbolo seria Braslia. Que
desenvolvimentismo temos hoje? Ser que
a categoria ps-neoliberalismo
interessante? E qual seria o seu smbolo?
Csar: Para comear, vamos esquecer dos
anos 50 e depois voltamos para l. No h
nada ps-neoliberal. Outro dia um amigo
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me dizia: o neoliberalismo foi derrotado.
Eu disse para ele: ele no foi derrotado, ele
o ar que voc respira. Voc o derrotou no
mundo da sua cabea, no mundo das
idias. Na vida, ele o mundo. O que se
faz so movimentos de adaptao.
Neoliberalismo apenas um nome feio ou
bonito para tratar da expanso capitalista
no mundo, sob o comando do capital
financeiro e por a vai. No h ps nada.
Pode existir uma nfase maior (e a uma
outra coisa), ou seja, certo temor de uma
nova forma de diviso internacional do
trabalho que deixa o pas ao relento em
uma situao de crise. Esse temor ocorre
porque o pas se torna, como no passado
(digamos nos anos 50), exportador do que
agora se chama commodities. Palavra
estranha porque portuguesa e se torna
inglesa e nos retorna em ingls.
Comodidade era uma palavra usada pelos
comerciantes portugueses no sculo XVI e
XVII. Mas ns preferimos mercadorias;
ento, bolsa de mercadorias bolsa de
commodities. As palavras andam de acordo
com quem comanda o capitalismo
mundial, as palavras que dizem respeito ao
comrcio, indstria etc. Ento, h pessoas
que se importam com o mercado interno e,
portanto, com a indstria, com movimentos
de desindustrializao que ocorreram em
alguns pases. No Brasil, menos; na
Argentina, mais. Ento, introduziu-se esse
elemento e deve-se ter certo cuidado ao
introduzi-lo, porque as coisas hoje vo
muito juntas. Parte da indstria produz
infra-estrutura e/ou bens utilizveis no
mundo de uma agricultura e de uma
minerao de exportao, e por a afora.
Essas coisas esto mais e mais fundidas.
Ento, o desenvolvimentismo de que se
fala imediatamente remete infra-
estrutura. Fala-se da reduo do custo
Brasil: transporte, porto etc. Parece um
plano de metas; digo isso mal comparando,
no a mesma coisa, mas essa a idia.
Esse movimento existe. Junto com ele,
existe tambm o movimento de se
preocupar com a indstria para o mercado
interno. um equvoco achar que as
economias crescem baseadas apenas na
fora de sua exportao. Elas ficam
frequentemente dependentes dos preos de
commodities que podem variar muito.
Ento, economias grandes que contam com
um mercado interno em crescimento
podem preocupar-se com essas questes. O
que ocorre em contraste com os anos 50?
Nesse caso, no o Brasil. A indstria era
a soluo para todo e qualquer pas recm-
independente ou de reas conhecidas como
subdesenvolvidas, a exemplo da Amrica
Latina. No importa o tamanho do pas, da
populao: industrializa-se.
Evidentemente, certos mercados eram
muito pequenos, sendo preciso proteger
essa indstria, de maneira que se protegia a
indstria automobilstica local contra os
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DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
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carros da matriz dessa mesma indstria.
Recorde-se, pois no faz tanto tempo, de o
presidente Collor chamar os carros
brasileiros de carroas. Assim, entra-se em
um mundo de protecionismo que a meu
juzo no favorece ningum, a no ser
quem protegido por pouco tempo. Por
outro lado, que idia desenvolvimentista?
Que diabos isso, a bem da verdade? Eu
no sei. Suponho que por desenvolvimento
entende-se mesmo acumulao de capital.
Ento, pretende-se que ela se amplie na
rea da indstria, da chamada economia
real. O que isso significa? Significa lucro
para quem produz nessa rea.
Simplesmente crescer isso o que
significa, criar emprego e por a vai. Mas o
crescimento acelerado tende a produzir
uma diferenciao enorme na distribuio
tanto de renda quando de ativos, de
qualquer natureza, financeira ou no,
acumulativa ou no. Isso evidente. Se
ningum interfere Socialdemocratas no
ps-guerra interferiram nesse processo,
impedindo que milagres alemes se
transformassem em milagres que
enriquecessem os herdeiros da indstria
alem. s vezes eram apenas filhos dos
rapazes que antes forneceram coisas
necessrias s tropas alems. As geraes
se sucedem, voc sabe como . Na Itlia,
quem financia o fascismo o pessoal de
Turim. As empresas so as mesmas, tem os
mesmos nomes, s vezes at o mesmo time
de futebol. Os pneus so os mesmos. De
volta ao assunto, se voc acrescenta apenas
a palavra desenvolvimentismo, voc volta
aos anos 50, em que a idia era essa. Estou
falando com algum, me lembrem. O
desenvolvimentismo era, digamos, a face
terceiro-mundista da socialdemocracia.
Nela havia a dupla fonte de salrio, uma
fonte monetria e outra no monetria (a
dos servios prestados pelo Estado Social).
No desenvolvimentismo no havia isso.
Havia empregos, alguns melhores do que
os empregos rurais. E ponto. Supe-se que
quem diz desenvolvimento, diz bem-estar.
No me lembro mais o autor que li em
Chicago, que dizia que desenvolvimento
econmico com freqncia significa ill-
fare, ou seja, mal-estar. Por si s,
desenvolvimento econmico no diz nada.
E isso no sentido tradicional. No estou
pensando nas implicaes ambientais ou
nada do tipo, o que complica mais ainda.
Mas voc perguntou sobre os anos 50 e as
minhas distines. Elas so mais ou menos
simples. O industrialismo ganhou no final
da Guerra. J vinha ganhando nos anos 30
e no final da guerra ganhou. Ganha ainda
no governo Dutra, porque as idias de que
ns tnhamos, em uma rgida diviso
internacional do trabalho, o papel de
produzir caf, cacau e algodo foram
derrotadas. Essas idias foram derrotadas,
embora a importncia dessa produo fosse
enorme, inclusive, financiando a
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
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contragosto a industrializao. Alm dessa
produo, tambm a inflao teve esse
papel financiador, ou seja, ns, os que
trabalhvamos. Inflao isso, o imposto
mesmo. A questo : qual industrializao?
O perodo Vargas parece ser marcado por
essa industrializao que vinha associada a
uma idia de autonomia nacional, ao
nacionalismo econmico. No que
Vargas fosse um nacionalista, muito
embora seus discursos nesse perodo o
sejam. Mas o governo uma peripcia
muito complexa e contraditria. uma
coisa em sua primeira parte e outra na
segunda. Eu sei que a literatura diz o
contrrio, mas, lamento, eu discordo da
literatura. Meu problema no o que se
votou no Congresso, as 35 mil coisas
Houve a criao da Petrobras, do BNDE e
as controvrsias em torno disso tudo. E
em torno disso que se do as lutas polticas
que levam ao golpe contra Vargas. em
torno disso, do cmbio e de mais trs ou
quatro assuntos, como sempre... No
entanto, para os observadores que
favoreciam Vargas e para os observadores
que a ele se opunham, aquilo era um
nacionalismo. E que hora ruim: Guerra da
Coria, incio da Guerra Fria.
Nacionalismo passa a ser uma coisa
perigosa, mesmo quando nas mos de
Vargas, que no podia ser chamado de um
esquerdista notvel. O segundo perodo
um perodo de adaptao. Alis, pobre se
adapta. Pobre um leitor de Darwin sem
saber. Ele vai se adaptando, caso contrrio,
no sobrevive. Rico pode se dar ao luxo de
ser um dinossauro. Ento, qual a
adaptao? Adaptao significa indstria.
De maneira mais dura mesmo, o problema
industrialista. Mas retira-se o nacional.
Quer dizer, a vem a demanda por capital
estrangeiro, propiciada, alis, por medidas
tomadas durante o governo Caf Filho,
com a Instruo 113 [Portaria da
Superintendncia da Moeda e do Crdito -
SUMOC]. H toda a histria econmica j
estabelecida sobre isso, no esquecendo do
papel do ministro da Fazenda Eugnio
Gudin. J que no tem jeito, pelo menos
que no seja s capital estatal... Assim, o
nacionalismo econmico estava presente
na Amrica Latina daquele momento.
Pensem no Mxico, no peronismo, na
esquerda em geral, no Chile a partir de
determinado momento. Pensem tambm no
nacionalismo que, por motivos bvios, no
era apenas econmico, como nas naes
em descolonizao; ou, no nacionalismo
que se funde com movimentos de
orientao comunista, como o caso
chins. So movimentos de libertao
nacional no o nosso caso por aqui. J
Cuba tem uma relao muito prpria com
os Estados Unidos e no vale a pena
adentrar nesse assunto. No a mesma
coisa e bobagem misturar alhos com
bugalhos. Ento se retira esse carter
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UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA
DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES
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nacional continua-se at falando nele,
mas a poltica outra, muito embora a
indstria permanea. Eu no comento o
perodo Joo Goulart, em que h a
introduo das reformas de base, que
confirma o industrialismo, mas que passa a
considerar o problema agrrio e esse
problema no acaba. H integrao muito
clara do movimento sindical dos
trabalhadores, que no so mobilizados
pelo Joo Goulart to-s. Essa uma m
leitura. Deve-se olhar como uma via de
mo dupla. Era uma transformao que
vinha se operando, porque o movimento
sindical era muito controlado. A represso
era muito violenta em toda esta
democracia. O ministro da Justia do
general Geisel era o mesmo ministro da
Justia do Juscelino Kubitschek. Era a
mesma pessoa, s que mais jovem: as
mesmas idias e nada a declarar. O povo
convivia muito com a represso ao
movimento das classes subalternas. Essa
integrao, essa entrada em cena, para os
tericos do populismo parece,
incrivelmente, o pior momento. Imagina,
greves polticas! li eu no me lembro
em que autor. Eu penso: mesmo? Quer
dizer que greve poltica no pode, que
trabalhador deve fazer greve por salrio?
Esses autores escrevem do ponto de vista
da esquerda, o que torna para mim as
coisas mais incompreensveis. Eu no
entendo coisas muito sofisticadas. Para
certas concepes do populismo, esse o
pior perodo, o perodo em que ocorre
manipulao etc. Sem este nome, a direita
o dizia: Goulart est manipulando os
sindicatos, estabelecendo o peronismo no
Brasil etc. O termo populismo e as idias
sobre populismo no Brasil so formulados
antes do governo Joo Goulart,
desenvolvendo-se mais posteriormente,
como uma espcie de acerto de contas com
esse passado em que, afinal, o que quer
que se chamou de esquerda foi derrotado.
Ento porque adotou as polticas
erradas. Em geral, voc derrotado porque
adota as polticas erradas, no verdade?
No faz sentido nenhum dizer isso...
Polticas certas so derrotadas exatamente
por isso, no tm fora. Uma das questes
atuai
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