entre testemunhos e leituras. um projeto de leitura … · ancorar o conhecimento e a prática de...
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ENTRE TESTEMUNHOS E LEITURAS.
UM PROJETO DE LEITURA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Caroline Valada Becker
RESUMO: Durante a Educação Básica, o professor de Literatura pode – e deve – priorizar a
leitura literária. Para isso, o planejamento é essencial, o qual pode ser concretizado por
meio de projetos de leitura ancorados em uma interessante metodologia, o letramento
literário. A partir de um eixo temático – a história, o trauma e o testemunho –, este artigo
propõe um projeto para o terceiro ano do Ensino Médio, contemplando a leitura de três
obras – Maus – A história de um sobrevivente, de Art Spiegelman; Diário da queda, de
Michel Laub; e, por fim, Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
PALAVRAS-CHAVE: Projeto de leitura, Ensino de literatura, Letramento literário
ABSTRACT: During Basic Education, the teacher of Literature can - and should - prioritize
literary reading. To do this, planning is essential, which can be realized through reading
projects anchored in an interesting methodology, the literary literacy. From a main theme -
the history, the trauma and testimony -, this work proposes a reading project for the third
year of High School, with three books - Maus – A história de um sobrevivente, by Art
Spiegelman; Diário da queda, by Michel Laub, and, finally, Vidas Secas, by Graciliano
Ramos.
KEYWORDS: Reading project, Teaching of literature, Literary literacy
A prática docente, independentemente da disciplina a ser ministrada, exige
planejamento; o contexto em que o ensino acontece – a época e o local –, bem como o perfil
dos alunos e dos professores são elementos essenciais para a elaboração das aulas. Indagações
como “o que ensinamos?”, “por que ensinamos?” e “como ensinamos” devem orientar as
ações em sala de aula. Os diferentes componentes curriculares responderão de modo distinto
Caroline Valada Becker é licenciada em LETRAS pela UFRGS, mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS
(bolsista CNPq) e iniciará, em 2013, o doutorado na mesma instituição.
cada uma das perguntas – não poderia ser diferente, afinal, toda área de conhecimento possui
especificidades, as quais implicam um método único de ensino.
Para a Literatura, as imprecisões principiam com “o que ensinamos?”. Ao longo do
Ensino Médio, quando a literatura torna-se uma disciplina, o que devemos ensinar? A resposta
é complexa, pois nos remete inevitavelmente à dúvida “o que é literatura?”. Cada século – até
mesmo cada período literário – teceu uma resposta, delimitando e descrevendo o objeto
literário. A proposta de Antoine Compagnon, enunciada na introdução do canônico O
demônio da teoria é pertinente. A partir das palavras de Nelson Goodman, Compagnon
propõe invertermos nossa postura crítica: ao invés de perguntarmos “o que é literatura?”,
sugere que façamos uma reflexão sobre “quando é literatura?” (COMPAGNON, 1999, p. 30).
Deste modo, o teórico dá espaço à variabilidade e sugere ao leitor que as certezas inexistem e
que os limites são mutáveis. Dessa forma, na contemporaneidade, assumimos que o fazer
literário é múltiplo.
Para o âmbito teórico, a resposta enunciada acima é excelente. Contudo, no ambiente
escolar, o professor precisa construir conceitos com seus alunos e dar-lhes algumas certezas
acerca do objeto a ser estudado. Pensemos, por exemplo, nas primeiras aulas de Literatura a
serem ministradas no primeiro ano do Ensino Médio. Trata-se do primeiro contato dos alunos
com a formalização da disciplina Literatura e podemos (ou devemos) questionar o que
diremos a eles – qual, afinal, é o nosso objeto de estudo? Para a resposta, sem dúvida, uma
série de palavras será mobilizada: autores, períodos literários, historiografia, gêneros
literários, sistema literário, recepção, leitura.
Diante desse múltiplo campo teórico, os professores de Literatura, ao longo da
Educação Básica, vivem um impasse: afinal, devemos ensinar a organização historiográfica
da literatura – a história literária – e seus conceitos ou devemos priorizar o ato de ler ao longo
da formação do aluno? No Ensino Fundamental, momento em que a literatura alia-se à
disciplina Português, a leitura é assumida como uma prática e, com mais facilidade, associa-se
o ato de ler ao conceito de literatura. Entretanto, quando o aluno adentra o Ensino Médio,
depara-se com práticas escolares que priorizam uma apresentação linear e diacrônica dos
períodos literários, minimizando ou até mesmo excluindo a prática de leitura.
No livro Andar entre livros: a leitura literária na escola, Teresa Colomer assinale
que, na segunda metade do século XX, após uma incursão pedagógica e moralista da leitura
nas escolas, o uso de manuais incitou um novo modelo de ensino, baseado em um conceito
enciclopédico, ou seja, marcado pela memorização e pela reprodução de opiniões
consagradas:
Do ponto de vista docente, a abstração do discurso explicativo só conduzia a que os
alunos memorizassem os quadros de tendências e movimentos culturais e a que
assumissem de maneira passiva e reverencial as avaliações artísticas. O
conhecimento sobre o texto se achava deslocado pelo conhecimento do contexto –
a biografia do autor, o movimento artístico, o período sócio-histórico, etc, - e por
avaliações críticas que pareciam indiscutíveis, mas que se revelam historicamente
condicionadas. Em definitivo, os alunos deviam recordar o que haviam lido ou
ouvido sobre as obras sem que houvessem tido necessidade de aprofundar-se em sua
leitura. (COLOMER, 2007, p. 25, grifos meus)
Dessa tendência historiográfica e reprodutiva, que dá eco ao cânone, aos autores e
obras institucionalizados1, chegamos à necessidade de um ensino literário cujo objetivo
centra-se na criticidade e no desenvolvimento da “competência interpretativa” (COLOMER,
2007, p. 30), ação alcançada apenas por meio da leitura.
Sendo assim, ganha fôlego, finalmente, a concepção de leitura literária; e o paradigma
“o que é literatura” cede espaço ao ato de ler, ao “ler literatura”. Isso não significa, no entanto,
que elementos teóricos – devidamente adaptados à linguagem discente – devem ser evitados.
Ao contrário, a partir da leitura, podemos contextualizar tais elementos, como narrador,
perspectiva narrativa e construção de personagem – eixos, na minha opinião, essenciais para a
construção da leitura. A historiografia, por sua vez, também não precisa transformar-se em
inimiga; ela é, sem dúvida, um meio de conhecimento da literatura e da cultura e,
principalmente, um meio de contextualização. Em síntese, o professor, assumindo sua função
de mediador, deve unir essas instâncias teóricas e concretizá-las, enquanto conhecimento
formal, na sua prática docente, por meio do ato da leitura literária.
O contato com a obra de ficção, independentemente de seu gênero literário, é
indispensável ao sistema literário, o qual se completa apenas no momento da recepção.
Felizmente, como foi assinalado, um resgate de práticas de leitura para o ensino da Literatura,
ao longo da Educação Básica, tem sido motivo de reflexões e novas ações pedagógicas.
Uma dessas ações buscou e deslocou o conceito de letramento – práticas sociais que
usam a escrita e a leitura – para o âmbito literário; como desdobramento, temos a proposta do
letramento literário (COSSON, 2011), o qual propõe uma imersão na leitura literária, na sala
de aula, por meio de projetos – ações e atividades a serem desenvolvidas a longo prazo.
Ancorar o conhecimento e a prática de leitura em um projeto pode auxiliar o professor a
desenvolver os conhecimentos que pretende apresentar aos seus alunos. Além disso, por meio
de projetos de leitura, o aluno percebe uma logicidade na prática docente; dessa forma, tanto
aluno quanto professor reconhecem e estabelecem os objetivos da leitura.
O projeto como método, o testemunho como temática
Esbocei, acima, uma resposta para a indagação “o que ensinamos?” – ensinamos (ou
podemos ensinar) o ato de ler, a fruição; contudo, essa leitura deve aliar-se a conhecimentos
específicos do campo teórico da literatura. Além disso, a construção do cânone – que em certa
medida leva-nos à construção historiográfica – é, inegavelmente, conteúdo disciplinar.
Cotejando ambos, chegamos ao nosso objeto de ensino – nunca estático, nunca uma
perspectiva de “verdade”; porém, sempre organizado por dispositivos e saberes
institucionalizados.
No Ensino Médio, esses aparatos reguladores são, preponderantemente, os livros
didáticos2 e os exames para ingresso em cursos superiores, como o ENEM e os vestibulares –
aspectos que sinalizam “por que ensinamos”. Inegavelmente, “o que ensinamos” é
atravessado por uma série de exigências sociais, ideológicas e pessoais – por exemplo, se no
corpus de conteúdos que ensinamos está inserido o ato de ler, os livros selecionados indicam
muito sobre nossa prática docente.
Assumindo a leitura como um meio comunicativo, cuja culminância reside na figura
do leitor, interessa ao professor planejar suas práticas de ensino e tornar consciente o “como
ensinamos”. Por isso, o projeto de leitura torna-se uma escolha metodológica pertinente e
produtiva, porque, lado a lado, aluno e professor seguem uma trajetória de leitura por meio da
qual o conhecimento é formalizado. Por fim, concretiza-se a leitura como um “método
formativo” (COLOMER, 2007, p. 39).
Um projeto de leitura pressupõe relações tanto temáticas quanto estruturais.
Dependendo da organização da escola – trimestres ou bimestres –, podemos indicar a
quantidade de leituras a serem realizadas. Interessa ao professor, sobretudo, estabelecer
“ganchos”, relações perceptíveis em diferentes níveis – personagens, espaços, narradores,
enfim, qualquer elemento da narrativa.
A partir dessas ideias e elementos teóricos, proponho um projeto de leitura para o
terceiro ano do Ensino Médio baseado em um eixo temático: as relações entre fatos históricos,
trauma e testemunho. Essa escolha é interessante porque
Obras de arte contemporâneas usam frequentemente o testemunho, tanto como o
objeto de seus dramas, quanto como o meio de sua transmissão literal. [...] o
testemunho se tornou uma modalidade crucial de nossa relação com os
acontecimentos de nosso tempo – com o trauma da história contemporânea: a
Segunda Guerra Mundial,o Holocausto, a bomba nuclear e outras atrocidades da
guerra. (FELMAN, 2000, p. 17-8, grifos meus)
Pensando nesse mote, três livros foram selecionados para o projeto de leitura – os
quais devem ser lidos nesta ordem: Maus – a história de um sobrevivente, de Art Spiegelman
(uma graphic novel publicada em livro em 1986); Diário da queda, de Michel Laub (2011); e,
para encerrar, Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. As duas primeiras obras relacionam-
se diretamente com a Segunda Guerra Mundial – porém com intensidade diferentes –,
especificamente com o Holocausto. Esse é o elemento histórico; o trauma e o testemunho, por
sua vez, relacionam-se a personagens específicas, como será explicitado em seguida. A
terceira obra do projeto, o romance de Graciliano Ramos, apropria-se da ideia de testemunho
de modo distinto: não se trata mais do Holocausto, mas sim da seca brasileira, do nosso
nordeste e da faceta engajada – um tipo de testemunho – desenvolvida pelo Romance de 30.
Diante dessa tríade, apreendemos uma tendência à multiplicidade, uma vez que são
colocadas, lado a lado, obras escritas por distintos autores, pertencentes a múltiplas épocas e a
múltiplos contextos; a intertextualidade é, pois, outra tendência, construída naturalmente por
meio das leituras propostas. Desse modo, por meio de tais escolhas, aplicam-se na sala de aula
os pressupostos da Literatura Comparada, cujo cerne é, justamente, o ato de tecer relações e
de expandir os objetos de estudo – este é um dos motivos pelos quais há, no corpus, uma
graphic novel. Outra tendência elementar do projeto refere-se à interdisciplinaridade, pois os
objetos artísticos selecionados dialogam com fatos históricos, o que possibilita ao aluno
relacionar e aproximar as disciplinas curriculares.
Estabelecido o eixo temático e indicadas as obras, interessa explicar o método do
projeto de leitura – em outras palavras, discorrer sobre o “como ensinamos”. Aproprio-me das
proposições de Rildo Cosson, enunciadas no livro Letramento literário, as quais, partindo do
ato de leitura, sugerem “sequências metodológicas”, como vemos abaixo3:
a) Motivação: antecipar o que será lido;
b) Introdução: localizar o autor e a obra no campo literário;
c) Leitura: decodificar a obra, ou seja, a leitura na sua acepção mais simples;
d) Primeira interpretação: tecer impressões de leitura;
e) Contextualização: trazer informações sobre a obra em diversos níveis, como a história, a
teoria, o estilo etc;
f) Segunda interpretação: somar saberes, ou seja, unir a primeira e a segunda interpretação;
g) Expansão: estabelecer relações entre saberes, leituras, elementos culturais etc. Figura 1
4: Letramento literário – metodologia proposta por Rildo Cosson
Por vezes esquecemos de contemplar essas etapas ao planejarmos as atividades de sala
de aula, principalmente o item “motivação”. Preparar o aluno para recepcionar o que lerá é
essencial; no caso do eixo temático selecionado, um mergulho em dados históricos é bastante
interessante; uma provocação sobre o que é um trauma ou para o que serve um testemunho
também pode ser bastante instigante.
Nesse sentido, estas são algumas sugestões que apresentam a temática ao aluno, antes
da fruição: observar imagens – fotografias – do Holocausto; ler uma breve reportagem sobre a
guerra, retirada, por exemplo, de uma revista sobre história5; assistir a cenas de algum filme
6;
ler trechos de obras populares, como O diário de Anne de Frank.
Mesmo que a prioridade seja a leitura, não estão descartados conhecimentos
sistemáticos, como a época do autor, seu pertencimento ou não ao cânone etc. Ao mesmo
tempo, entretanto, exige-se o ato de ler e sua livre interpretação, à qual apenas posteriormente
agregaremos informações, o momento em que fica explícita a importância do professor e o
seu papel de mediador, pois ele é o responsável pelo item “e”, chamado “contextualização”.
Esta é, na minha opinião, a etapa mais importante do letramento, pois permite ao professor
preparar um repertório de conhecimentos para seus alunos. A contextualização é desdobrada
em diversos itens, todos responsáveis por agregar informação à leitura:
1. Contextualização teórica: o estilo de época, o período literário;
2. Contextualização histórica: época da história (da diegese) ou época da publicação;
3. Contextualização estilística: usos da linguagem;
4. Contextualização poética: elementos de gênero;
5. Contextualização crítica: como a crítica especializada vê a obra;
6. Contextualização presentificadora: a obra e suas relações com a época atual. Figura 2: Especificidades da contextualização.
Para cada um dos livros selecionados, podemos organizar materiais informativos,
seguindo os itens acima sugeridos. Por exemplo, antes de ler a graphic novel, podemos
discutir a linguagem dos quadrinhos e instrumentalizar os alunos para perceber a importância
da união entre palavra e imagem; podemos ler uma reportagem sobre Maus, quem sabe
especificamente sobre o prêmio Pulitzer recebido; para a obra de Michel Laub, a leitura de
uma breve entrevista com o autor pode ser interessante, ou uma reflexão sobre a organização
da estrutura narrativa, já que o formato do romance é diferenciado e aproxima-se, de fato, de
um diário; quanto ao romance Vidas Secas, tendo em vista sua inserção no cânone, a palavra
de críticos consagrados pode ser uma excelente contextualização; para introduzirmos a
temática da seca, o videoclipe da canção Segue o seco, de Marisa Monte e Carlinhos Brown, e
a pintura Retirantes, de Candido Portinari.
Para cada trauma, um testemunho
Maus – a história de um sobrevivente, sem dúvida, pertence ao cânone do gênero
história em quadrinhos. Trata-se de uma narrativa por meio de imagens cuja composição
autobiográfica desdobra-se em dois eixos: Art Spiegelman, autor empírico, (re)cria-se como
personagem e relata a sua relação com seu seu pai Vladek, judeu que experienciou as
atrocidades da Segunda Guerra Mundial, especificamente o Holocausto – a Shoah, “esse
evento-limite, a catástrofe” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 75).
O narrador da graphic novel é Art (ficcionalizado, é claro), porém a personagem pai
assume, em grande parte da obra, a voz narrativa. Há, portanto, a história dentro da história.
Por um lado, lemos uma narrativa que descreve a relação entre pai e filho, especificamente
este filho entrevistando seu pai para escrever um livro – uma marca explícita de
metalinguagem –; por outro lado, lemos as memórias e o testemunho de um ex-prisioneiro
dos campos de concentração, uma narrativa marcada pelo trauma da guerra.
Figura 3: também há narradores nas graphic
novels; no caso de Maus – a história de um
sobrevivente, temos uma personagem-narrador
que dá voz a outra personagem, seu pai.
Figura 4: Vladek, o pai, assume a voz narrativa
quando relata seu passado.
Na figura 3, fica explícita a voz do narrador autodiegético – “fui visitar meu pai”
–, o que é sugerido, também, pelos títulos das duas partes que compõem a graphic
novel, nas quais percebemos, primeiramente, uma referência ao pai e, em seguida, uma
frase enunciada por esse pai: “Parte I – Meu sangra história”, e “Parte II – E foi aí que
começaram meus problemas”. Na figura 4, reconhecemos a voz de Vladek, o pai de Art,
que testemunha sobre o seu passado, busca memórias e tenta organizá-las; o
testemunho, segundo Shoshana Felman, no texto “Educação e crise, ou as vicissitudes
do ensinar”, não alcança a totalidade: “O que o testemunho [...] não oferece é um
discurso completo, um relato totalizador desses eventos. No testemunho, a linguagem
está em processo e em julgamento” (FELMAN, 2000, p. 18).
As imagens abaixo indicam o testemunho enquanto ato de fala, enquanto
performance; Art incita seu pai a organizar os fatos, pedindo-lhe que os relate de modo
encadeado e organizado, como na figura 5. Isso, contudo, é difícil; primeiramente,
porque o testemunho, no caso do Holocausto, é marcado pelo trauma – “O trauma é
justamente uma ferida na memória” (SLIGMANN-SILVA, 2000, p. 84); em segundo
lugar, devido às imprecisões da memória, uma vez que buscamos o passado, tentamos
reencontrá-lo como se assistíssemos a uma série de imagens – situação representada na
figura 6, na qual Art e seu pai surgem desenhados como se passeassem pelo passado.
Figura 5: a inevitável dificuldade para ordenar as
reminiscências.
Figura 6: evocar memórias assemelha-se ao ato de
assistir ao passado.
A narrativa gráfica de Art Spielgman é um exemplo das narrativas modernas que
se debruçam sobre as consequências psíquicas e sentimentais do Holocausto. A
alteridade compõe a história, pois se trata de uma relação entre pai e filho – este, sem
dúvida, constroi-se a partir da imagem e da relação com aquele. Dessa forma, o trauma
e a catástrofe influenciam tanto a vida de Vladek, o pai, quanto de seu filho, Art, como
fica sugerido na figura 7 e 8.
O trauma, devido à sua intensidade, atravessa gerações; diante dele, o
testemunho pode significar um meio de cura para pai e filho, afinal, “a capacidade de
testemunhar e o ato do testemunho envolvem em si mesmos uma qualidade curativa e já
pertencem, por caminhos obscuros, ao processo da cura” (FELMAN, 2000, p. 17).
Quando Art Spiegelman relata, por meio das imagens, a postura dos repórteres diante
dele, indica a percepção comum de que o ato de narrar implica a possibilidade da cura,
do desabafo, do desvencilhar-se de péssimas reminiscências.
Figura 7 e 8: Art, autor e personagem de Maus, indica, na narrativa gráfica, seus sentimentos.
No segundo passo do projeto de leitura, o desdobramento do trauma ganha nova
intensidade por meio do romance contemporâneo Diário da queda, de Michel Laub.
Nesta narrativa, também emoldurada por um narrador autodiegético, deparamo-nos com
um relato pessoal atravessado pelo trauma histórico do Holocausto, porém distante dele
duas gerações:
1. Meu avô não gostava de falar do passado. O que não é de estranhar, ao
menos em relação ao que interessa: o fato de ele ser judeu [...]. Eu também
não gostaria de falar desse tema. [...] O cinema já se encarregou disso. Os
livros já se encarregaram disso. As testemunhas já narraram isso detalhe por
detalhe [...] então nem por um segundo me ocorreria repetir essas ideias se
elas não fossem, em algum ponto, essenciais para que eu possa também
falar do meu avô, e por consequência do meu pai, e por consequência de
mim” (LAUB, 2011, p. 8-9, grifos meus)
A alteridade é responsável pela construção desse narrador-personagem que está
a escrever algo como um diário, o qual é organizado em muitas partes, entre elas estas
três, com distintos títulos: “Algumas coisas que sei sobre o meu avô”; “Algumas coisas
que sei sobre o meu pai”; “Algumas coisas que sei sobre mim”. Para enunciar o que
sabe sobre si, é preciso buscar a trajetória do pai e do avô.
O trauma, além de coletivo e histórico, marcado pela vivência deste avô que
esteve em campos de concentração, é pessoal e subjetivo, vivido por este neto, o
narrador que protagonizou um fato violento e traumático: quando adolescente, o
personagem-narrador, não nomeado, deixara, de propósito, o colega João (único não
judeu na escola onde estudavam, uma inversão da dinâmica nazista) cair da cadeira
durante o seu Bar Mitzvah – “Mas porque João estava numa escola judaica, e na escola
judaica todos faziam Bar Mitzvah aos treze, e em todas as festas o aniversariante era
jogado treze vezes para cima, [...] por tudo isso o pai convenceu o filho a receber a
classe inteira no salão [...]” (LAUB, 2011, p. 17).
Assim acontece a catástrofe pessoal do narrador: ele e seus colegas combinaram
e deixaram o jovem João cair. O resultado foi uma série de machucados7 e um
verdadeiro trauma para o personagem-narrador. Para falar sobre si, esse sujeito precisa
falar sobre seu avô, sobre seu pai, sobre seu amigo; o trauma define sua identidade: “Se
eu tivesse que falar de algo meu, começaria com a história do colega que caiu na festa”
(LAUB, 2011, p. 15).
Sem dúvida, dos múltiplos traumas, nascem distintos testemunhos. Há o
testemunho do avô, um sobrevivente do Holocausto que, na verdade, não fala sobre a
guerra. Ao longo de sua vida, esse homem escreveu um diário, algo que se assemelha a
um dicionário; depois de sua morte, seu filho (pai do narrador do romance) lê essas
páginas e surpreende-se com a ausência dos relatos da guerra:
Do ramo da família do meu avô morreram todos em Auschwitz, e não há
uma linha a respeito deles nos cadernos. Não há uma linha sobre o campo
em si, quanto tempo meu avô ficou lá, como fez para sobreviver, o que sentiu
quando foi libertado, e posso imaginar a reação do meu pai ao ler o texto, seis
meses ou um ano depois da morte do meu avô, e perceber essa lacuna.
(LAUB, 2011, p. 30, grifos meus)
O testemunho do pai do personagem-narrador, cujas ações e discursos carregam
marcas dissipadas da guerra – uma consequência da sua relação com o pai –, apropria-se
dos relatos dos sujeitos que estiveram na guerra, pessoas distantes que preenchem a
lacuna deixada por seu pai, como indica o narrador – “Meu avô nunca falou sobre
Auschwitz, e restou ao meu pai mergulhar naquilo que Primo Levi escreve a respeito”
(LAUB, 2011, p. 81). Todas essas relações afetaram o jovem que representa a terceira
geração após a guerra:
Quando criança eu sonhava com essas histórias, as suásticas ou as tochas dos
cossacos do lado de fora da janela, como se qualquer pessoa na rua estivesse
pronta para me vestir um pijama com uma estrela e me enfiar num trem que
ia rumo às chaminés [...] à medida que você fica mais velho, aos treze anos,
em Porto Alegre, morando numa casa com piscina e tendo sido capaz de
deixar cair um colega cair de costas no aniversário, aos poucos você percebe
que isso tudo tem muito pouca relação com a sua vida. (LAUB, 2011, p. 36)
O trecho acima indica a formatação do testemunho do neto; esse personagem-
narrador vive, sem dúvida, os resquícios do trauma histórico, porém dele se distancia.
No seu lugar, surge um trauma pessoal que permite um afastamento das sombras do
passado – o qual, entretanto, não deixa de existir. O trecho abaixo evidencia a tensão
entre a dimensão histórica e a dimensão pessoal:
Se na época perguntassem o que me afetava mais, ver o colega daquele jeito
ou o fato de meu avô ter passado por Auschwitz, e por afetar quero dizer
sentir intensamente, como algo palpável e presente, uma lembrança que não
precisa ser evocada para aparecer, eu não hesitaria em dar a resposta. (LAUB,
2011, p. 13)
A resposta enunciada pela personagem resume-se ao evento pessoal, pois, como
ele diz, “eu não tinha nada em comum com aqueles pessoas além do fato de ter nascido
judeu [...] não fazia sentido que eu precisasse lembrar disso todos os dias” (LAUB,
2011, p. 37). Dessa forma, percebemos que, na contemporaneidade, o trauma pode ser
resultado de distintos fatos.
A dimensão histórica – o relato histórico – cede espaço a um evento subjetivo, o
ser humano no seu dia a dia mais prosaico. Essa observação, inclusive, alcança
intensidade ao analisarmos outro elemento narrativo: o pai da personagem-narrador tem
Alzheimer, uma grande simbologia para o silenciamento dos fatos ocorridos, uma
verdadeira metáfora do esquecimento ou, ao menos, de sua vivacidade. O avô,
sobrevivente, é o sujeito que evitou falar sobre o Holocausto; o pai, filho dessa geração,
sentiu suas consequências e discursou sobre os fatos, contudo, ele está prestes a perder a
memória – uma grande ironia, um grande símbolo. O Alzheimer é, inclusive, o
propulsor de todas as palavras do nosso narrador: “João, meu avô, Auschwitz e os
cadernos, eu só fui pensar em tudo isso de novo quando recebi a notícia da doença do
meu pai” (LAUB, 2011, p. 53).
A memória e o testemunho relacionam-se intimamente; para relatar o ontem, é
preciso recordar. Nossa personagem-narrador, por meio de seu diário, tece um
testemunho, palavras que entrelaçam três gerações e assinalam a importância da
recordação:
11. Em trinta anos será quase impossível achar um ex-prisioneiro de
Auschwitz.
12. Em sessenta anos será muito difícil achar um filho de ex-prisioneiro de
Auschwitz.
13. Em três ou quatro gerações o nome de Auschwitz terá a mesma
importância que hoje têm nomes como Majdanek, Sobibor, Belzec. (LAUB,
2011, p. 118)
O trauma histórico e os testemunhos que incita estão esclarecidos. A proposta,
seguindo o projeto de leitura, a partir das motivações e contextualizações, é analisarmos
como a temática do Holocausto influencia essas diferentes personagens, pertencentes a
diferentes épocas (são distintas gerações, como vimos) e localizadas em diferentes
lugares, como Porto Alegre. O aluno, portanto, é convidado a fruir ficções construídas
em diferentes modelos narrativos – uma graphic novel e um romance, marcado por uma
estrutura que dialoga com o formato do diário. O projeto chega à finalização com a
terceira leitura, momento em que se expande a concepção de testemunho e alia-se a
leitura à historiografia – como disse, não vejo motivos para eliminá-la.
Seguindo a organização historiográfica dos livros didáticos, trabalha-se, no
terceiro ano do Ensino Médio, o movimento literário chamado Romance de 30, o qual
uniu produção estética e filiações ideológicas. Além de recuperar facetas do Realismo –
por isso a nomeação Neorrealismo –, as obras desse momento histórico previam intervir
na sociedade. Sendo assim, por um lado, os romances classificados como neorrealistas
fotografaram a realidade brasileira, especialmente o regionalismo, a seca e suas
identidades sociais; por outro lado, desejaram, em alguma medida, denunciar as mazelas
brasileiras. A proposta deste projeto de leitura, portanto, é compreender tais obras como
testemunhos de uma época, como fotografias da memória brasileira transformadas em
narrativa, em arte.
Para Antonio Candido, a tendência à observação social é uma das marcas da
produção estética na década de 30. O romance, na perspectiva do crítico, sinaliza o
subdesenvolvimento brasileiro:
A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial
[...]. Mas desde o decênio de 1930 tinha havido mudanças de orientação,
sobretudo na ficção regionalista, que pode ser tomada como termômetro
[...]. Ela abandona então a amenidade e a curiosidade [...]. Não é falso
dizer que, sob este aspecto, o romance adquiriu uma força
desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e
políticos. (CANDIDO, 1989, p. 142, grifos meus)
Graciliano Ramos e seu romance Vidas Secas é um exemplo dessa fotografia
social, marcadamente ideológica, indicada já na primeira cena: “Na planície
avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham
caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos” (RAMOS, 2008, p. 6). A
infelicidade das personagens é causada pelo ambiente onde vivem; a natureza agride, os
urubus espreitam.
Por meio de um narrador heterodiegético, conhecemos a trajetória de uma
família de retirantes que no início e no fim da obra estão em movimento, à procura de
melhores condições de vida: o capítulo I chama-se “Mudança” e o capítulo XIII, o
último, “Fuga”. Interessante é observar a força das palavras, pois elas carregam
dramaticidades distintas; a mudança evoca uma acepção mais positiva, enquanto fuga
denota algo mais negativo, indicando a falta de perspectiva.
A família é composta por esposa, Sinhá Vitória, dois filhos – os quais não têm
nome, são, apenas, menino mais novo e menino mais velho –, a cadela Baleia (animal
bastante humanizado) e, por fim, Fabiano, que é, essencialmente, o focalizador; por
meio de sua perspectiva, lemos a aridez do ambiente, materializada na linguagem das
personagens – na verdade, uma quase não linguagem; Fabiano, quando precisa
externalizar seus sentimentos e pensamentos, sente dificuldade e percebe-se como um
animal. O trauma de Fabiano e de sua família é social; a desigualdade e a seca
corrompem suas vidas. O romance surge, na década de 30, no Brasil, como um meio de
denunciar e de testemunhar.
Conclusões
Por meio desse projeto de leitura, pretende-se dar espaço, na sala de aula da
Educação Básica, a atividades de leitura e de interpretação. Desdobrado em três
momentos, o projeto exige a participação e o empenho do professor, que deverá assumir
sua função de mediador, sempre agregando informações à enciclopédia dos alunos.
Observar fatos históricos e seus desdobramentos na construção dos sujeitos, em
diferentes épocas históricas, pode suscitar um olhar crítico diante do mundo; além disso,
os estudantes podem tecer relações e não mais manter as disciplinas escolares
distanciadas umas das outras. A literatura e a arte, em uma das suas acepções, são
reflexo da sociedade e da história. Demonstrar aos alunos essa faceta pode despertá-los
para buscar, no mundo à sua volta, ações artísticas engajadas, cuja estrutura e temática
evidenciam marcas da nossa temporalidade.
Por fim, para encerrar as atividades deste projeto de leitura, um processo de
produção artística, inspirado pela capacidade do testemunho, pode ser bastante
interessante. A escrita que sugiro é poética – mesmo que seja mais complexa, trata-se de
uma produção mais sucinta e, devido à canção, mais próxima aos alunos.
Primeiramente, eles podem ser provocados a buscarem e selecionarem notícias e
reportagens contemporâneas que, na opinião deles, carregam uma dimensão
catastrófica, que podem chocar, abalar e provocar traumas. Diante dessa escolha, cada
aluno – ou cada grupo de alunos – pode criar um poema-testemunho. Dessa forma,
chega-se ao fim do projeto, o qual cumpre uma série de etapas, todas planejadas, cujo
resultado prioriza a produção discente.
1. Afrânio Coutinho comenta os mesmos problemas inerentes a um ensino baseado na historiografia: “A abordagem
histórica leva-nos a reduzir o ensino da Literatura ao da História literária, ou seja, à exposição da ambiência histórica,
social ou econômica, que teriam condicionado a produção das obras, e da vida dos autores nos seus pormenores
exteriores e na sua psicologia” (COUTINHO, 2008, p. 25).
2. Os livros didáticos, em sua maioria, organizam a literatura de modo diacrônico e, felizmente, têm incluído trechos
de obras, priorizando, assim, a leitura – ainda que em forma de antologia.
3. As tabelas foram organizadas por mim e sintetizam as proposições de Rildo Cosson.
4. No artigo Estórias Gerais e Primeiras Estórias: o sertão em imagens, o sertão em palavras. Uma proposta de
leitura para a Educação Básica (disponível em
http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/XISemanaDeLetras/pdf/carolinabecker.pdf), uma tabela com os pressupostos do
letramento literária também é delineada.
5. Uma dessas revistas chama-se Caminhos da História: Holocausto – Ano I, número 2 (Nova Sampa Diretriz Editora
Ltda).
6. O cinema utilizou como temática a Segunda Guerra Mundial e o genocídio judeu em inúmeras produções. Alguns
destes filmes são A lista de Schindler, de Steven Spielberg, O pianista, de Roman Polanski, A vida é bela, de Roberto
Benigni, e, um dos meus preferidos, Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino. Com este, podemos refletir sobre a
reescrita da história, a ficcionalização do passado, algo como o conceito de metaficção histortiográfica.
7. Este trecho explica as conseqüências: “Ao cair ele machucou uma vértebra, teve de ficar de cama dois meses, usar
colete ortopédico por mais alguns meses e fazer fisioterapia durante todo esse tempo, tudo depois de ter sido levado
para o hospital e a festa ter se encerrado numa atmosfera geral de perplexidade, ao menos entre os adultos presentes,
e um dos que deveriam ter segurado esse colega era eu” (LAUB, 2011, p. 11).
BIBLIOGRAFIA
CANDIDO, Antonio. Literatura e Subdesenvolvimento. In.: Literatura e sociedade:
estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985
1989.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo:
Global, 2007.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
COSSON, Rildo. Letramento literário. São Paulo: Contexto, 2011.
COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria Literária. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
FELMAN, Shoshana. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. In.:
NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e
representação. São Paulo: Escuta, 2000.
LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro : Record, 2008.
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