entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das
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Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das outras gentes
pantaneiras no Pantanal transfronteiriço
João Batista Alves de Souza*
Karoline Batista Gonçalves **
Resumo:
Este trabalho apresenta um conjunto de reflexões acerca dos habitantes do Pantanal
transfronteiriço (Bolívia, Brasil e Paraguai), que são classificados tradicionalmente, em quatro
grupos: proprietários de terras, empregados das fazendas, empresários do ramo turístico e
trabalhadores do turismo. No entanto, é latente a presença de outras gentes pantaneiras nesse
ambiente. Assim, o presente trabalho busca identificar as outras gentes pantaneiras que habitam
na sub-região do rio Paraguai e à fronteira que compreende o Pantanal. Para a obtenção dos
dados optou-se pela pesquisa de campo nas comunidades ribeirinhas que vivem ao entorno das
áreas protegidas e quilombolas, foram realizadas entrevistas com lideranças e moradores
dessas comunidades. Além do mapeamento das comunidades através do uso de um Sistema
de Posicionamento Global (GPS) foram coletados pontos com as coordenadas geográficas.
Esses pontos foram extraídos do GPS e espacializados no programa ArcGIS 10.6, para a
produção da cartografia das outras gentes pantaneiras. Constatamos a presença de um novo
grupo de moradores na região pantaneira, formada pela resistência das comunidades ribeirinhas
e quilombolas, para a qual os estudos realizados nessa região vem proporcionando pouca
visibilidade.
Palavras-chave: Gente pantaneira; Fronteira; Pantanal.
Introdução
A divisão do bioma Pantanal, está caracterizado em pelo menos seis
mapeamentos, que estabelecem diferentes propostas de subdivisão da maior
planície alagável do planeta, sendo que, a primeira divisão foi realizada em 1979
pela Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO),
através do estudo de desenvolvimento integrado da bacia do Alto Paraguai e
publicado no relatório descrição física e recursos naturais, que dividiu a região
em 15 sub-regiões e adotou critérios geomorfológico, hidrológico e
fluviomorfologico. Em 1982, o Projeto RADAMBRASIL realizou a divisão de 13
sub-regiões pantaneiras, Franco & Pinheiro (1982), Alvarenga adotaram critérios
* Instituto Federal de Mato Grosso do Sul - IFMS. Mestre em geografia pelo PPGG – UFGD. joao.batista@ifms.edu.br ** Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD. Mestre em geografia pelo PPGG - UFGD. karolbg86@gmail.com
geomorfológicos e fatores morfogenéticos nessa divisão. No mesmo ano, Jorge
Adámoli no trabalho que discutiu o conceito de complexo do Pantanal, realizou
a divisão de 10 sub-regiões utilizando critérios fitogeográfico e hidrológico, sendo
essa classificação utilizada nesta análise, acompanhada da faixa de fronteira,
conforme mapa 1:
Mapa 1. Divisão das Sub-Regiões do Pantanal
Logo, observamos que o rio Paraguai e seus afluentes determinam o
fluxo hidrológico do Pantanal e caracterizam esse ambiente formando um grande
mosaico que permeia Brasil, Bolívia e Paraguai. Aziz Nacib Ab'Sáber (1988), ao
abordar o Pantanal Mato-Grossense e a teoria dos refúgios, ressalta que:
Na categoria de uma grande e relativamente complexa planície de coalescência detrítico-aluvial, o Pantanal Mato-Grossense inclui ecossistemas do domínio dos cerrados e ecossistemas do Chaco, além de componentes bióticos do Nordeste seco e da região periamazônica. Do ponto de vista fitogeográfico, trata-se de um velho "complexo" regional, que os mapeamentos de vegetação elaborados a partir de documentos de imagens de sensorialmente transformaram em um mosaico perfeitamente compreensível de organização natural do espaço, nada "complexo" (AB’SABER, 1988, p. 9).
Segundo o autor, a complexa planície pantaneira abarca ecossistemas
do Cerrado brasileiro, do Bosque Seco Chiquitano boliviano e Chaco paraguaio,
além de possuir fatores bióticos do nordeste e da Amazônia. Após estudos e
mapeamentos desse bioma, foi possível entender que o complexo do Pantanal
se trata de uma compreensível organização natural do espaço. Em relação a
Bacia hidrográfica do rio Paraguai Ab’Saber (1988) caracteriza que:
As águas do paleoleque aluvial do Jauru-Paraguai estendem-se até aos "pantanais" da margem esquerda do rio de las Petas, pró-parte provindo da Bolívia, o qual para jusante, na linha de fronteiras, responde pela formação de uma série de grandes lagoas (Orion ou Providência, Uberaba e Guaíba). A persistência da influência dessas estruturas deposicionais, herdadas do Pleistoceno Superior, é tão grande que o próprio rio Paraguai forma uma espécie de arco, envolvendo a distância a borda sul do antigo leque e se aproximando das lagoas Uberaba e Guaíba, onde se localiza o complexo setor fluviolacustre, do qual o rio de las Petas é tributário (AB’SABER,1988, p.32).
É evidente o papel do Rio Paraguai na composição do complexo
Pantanal, percebemos que o ciclo das águas perpassa as fronteiras entre os
países que abrangem esse ambiente. O Pantanal Transfronteiriço se distribui
entre Bolívia, Brasil e Paraguai, no qual é gerenciado de maneira distinta por
cada um dos países abrangendo sujeitos e comunidades ribeirinhas distintas.
A análise do presente trabalho levará em consideração os sujeitos e
comunidades que vivem na faixa de fronteira dos países que abrangem esse
ambiente, conforme área apresentada no mapa1. É importante ressaltar, a
fronteira que perpassa esse ambiente assume um papel social de classificação,
onde cada Estado soberano gerencia sua área com práticas advindas de sua
legislação e seus aspectos históricos culturais. Por esse motivo, os sujeitos a
serem observados são aqueles que vivem interações e estabelecem relações
em uma área em que o limite é imposto apenas para as relações sociais e não
para os elementos da natureza.
No que tange a área do Pantanal em cada país, identificamos que o
Pantanal boliviano abarca parte do Departamento de Santa Cruz, nas províncias
de Germán Busch e San Matías; o Pantanal brasileiro, por sua vez se distribui
entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e por fim, o Pantanal
paraguaio situado no Departamento do Alto Paraguay nas cidades de Carmelo
Peralta, Fuerte Olimpo e Bahía Negra.
Para a realização deste trabalho, nos pautamos numa reflexão
esclarecedora acerca da identificação das “gentes pantaneiras”, o que levou a
busca de dados através da pesquisa bibliográfica e de campo, fornecendo
elementos que permitiram identificar as gentes pantaneiras, e qual a proximidade
e relação de pertencimento que eles estabelecem com esse ambiente.
A realização das pesquisas de campo em distintas áreas do Pantanal,
foram fundamentais para identificar as gentes pantaneiras, sendo que esse
trabalho foi realizado nos seguintes lugares: na Bolívia, Parque Nacional
Otuquis, comunidade Chaleira Warnes; no Brasil, Parque Nacional do Pantanal
Mato-Grossense, comunidade Paraguai Mirim e nas comunidades quilombolas
localizados na sub-região Paraguai do Pantanal sul-mato-grossense; e no
Paraguai no Parque Nacional Rio Negro, na Estación y Reserva Biológica Três
Gigantes e na Bahía Negra.
Na primeira etapa foi realizada a pesquisa documental, através de um
levantamento de dados nas atas de criação das associações das comunidades
quilombolas, certificados de auto definição expedido pela Fundação Cultural
Palmares- FCP para as comunidades pesquisadas. Também foram analisadas
as legislações ambientais que dispõem sobre as áreas protegidas nos três
países, com o intuito de entender como o gerenciamento delas, influenciam na
vida das comunidades que vivem ao entorno destas.
Já na segunda etapa foram realizadas entrevistas com os seguintes
sujeitos: lideranças e membros das comunidades quilombolas, equipe do INCRA
do setor quilombola que atende a região de Corumbá. Somado a isso, foi
realizado uma “escuta ativa e metódica”3 com o analista do ICMBio responsável
pelo gerenciamento do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, agentes
das ONGs Instituto Homem Pantaneiro (Brasil), Lidema (Bolívia) e Guyra
Paraguay (Paraguai).
Ademais, foram realizadas entrevistas, com moradores das comunidades
3 Em concordância com Bourdieu (2007, p. 695) entende-se por “escuta ativa e metódica” aquela que se situa a meio termo entre a entrevista não-dirigida (aberta) e a semiestruturada (questionário fechado).
que vivem ao entorno dessas áreas protegidas, guardaparques e comunidades
quilombolas, que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, e
responderam questionários de identificação das comunidades.
Após a realização das entrevistas e contatos com os moradores dessa
região, iniciamos a construção de uma cartografia das gentes pantaneiras, nesse
aspecto foi realizado o mapeamento do Pantanal Transfronteiriço (Bolívia, Brasil
e Paraguai), através de visitas técnicas, captação de imagens, inserção de dados
no Google Maps. Por meio do uso de um Sistema de Posicionamento Global
(GPS) foram coletados pontos com as coordenadas geográficas nas pesquisas
de campo em algumas comunidades. Esses pontos foram extraídos do GPS e
espacializados no Pantanal Transfronteiriço.
Utilizamos as bases de mapeamento das unidades territoriais do Brasil
e Mato Grosso do Sul elaborados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), da SERNAP (Servicio Nacional de Áreas Protegidas) na Bolívia e da
SEAM (Secretaria del Ambiente) no Paraguai. A base hidrográfica utilizada foi
da ANA (Agência Nacional de Águas) para representação do rio Paraguai no
Bioma Pantanal e da SERNAP que forneceu a base hidrográfica do lado
boliviano. Com o banco de dados atualizado, foi produzido um mapa de
localização das gentes pantaneiras em parceria com o (LABGEO) Laboratório
de Geoprocessamento da UFGD, que detém a licença de uso do software
ArcGIS (ESRI, 2018).
A utilização dos dados obtido por meio desses procedimentos resultaram
na construção de uma cartografia das “gentes pantaneiras”, que poderá ser
visualizada com mais detalhes no mapa 2. Tendo em consideração tais
aspectos, pretendemos, a seguir dialogar com os elementos que possibilitam
entender como é construído o “ser pantaneiro”.
As gentes pantaneiras e suas territorialidades no Pantanal Transfronteiriço
Considerando os aspectos apresentados acerca da totalidade do
Pantanal Transfronteiriço constatamos que esse ambiente possui uma
localização estratégica, que apresenta reflexos de outros ambientes, e ao
mesmo tempo, abarca um conjunto de relações culturais, sociais e econômicas
caracterizadas por cada país que o compõe. Nesse sentido, para identificar como
o referencial “ser pantaneiro” se forma nos sujeitos que vivem nesse ambiente é
necessário definir o que entendemos por território e territorialidade.
Em concordância com Raffestin (2015, p. 22) consideramos o território
como uma produção a partir do espaço constituindo o resultado de uma ação
conduzida por um ator que, ao apropriar-se do espaço o territorializa e projeta
um trabalho, adaptando as condições dadas as necessidades de uma
comunidade ou sociedade.
Entendemos a territorialidade, conforme Saquet (2011, p.77) como as
relações sociais, identidades, diferenças, apropriações do espaço geográfico,
intencionalidades e práticas espaciotemporais dos homens entre si e com a
natureza. Assim, os e vínculos que o sujeito cria com seu território revela sua
territorialidade. Desta forma, ao analisarmos as gentes pantaneiras identificamos
que os processos de socialização e sociabilidade influenciam na formação de
sua territorialidade.
Diante dessas definições para uma melhor visualização acerca de quem
são essas gentes pantaneiras, produzimos um mapa retratando a área do
Pantanal Transfronteiriço, e as gentes pantaneiras identificadas através das
vivências das pesquisas de campo em cada país, conforme o mapa a seguir:
Mapa 02. Localização do Pantanal Transfronteiriço - Bolívia – Brasil – Paraguai e as gentes pantaneiras
Em relação as comunidades quilombolas identificadas, dados da
Fundação Cultural Palmares (FCP) afirmam que no estado de Mato Grosso do
Sul existem vinte e duas comunidades quilombolas certificadas, sendo que na
região do Pantanal sul mato-grossense foram identificadas quatro comunidades,
no município de Aquidauana – MS localiza a comunidade Furnas dos Baianos
(cuja área encontra-se fora de nossa análise), enquanto no município de
Corumbá – MS localizam-se as comunidades quilombolas; Maria Theodora,
Ribeirinha Família Campos Correia e Ribeirinha Família Ozório.
Levando em consideração o Pantanal Transfronteiriço e a área de
abrangência da presente pesquisa caracterizada pela faixa de fronteira
apresentada conforme o mapa 2. Essa delimitação justifica os motivos pela qual
a comunidade quilombola de Aquidauana não foi considerada, pois localiza-se
fora dessa área de abrangência. A comunidade quilombola Maria Theodora
Gonçalves (ACTHEO) está localizada na área central da cidade de Corumbá. E
as comunidades quilombolas ribeirinhas, Família Campos Correia e Família
Ozório estão localizadas na margem direita do Rio Paraguai, numa área
periurbana4 de Corumbá.
De acordo com ata de criação da Comunidade Quilombola Ribeirinha
Família Ozório (AQUIRRIO), localizada nas margens do rio Paraguai, foi fundada
por Miguel Ozório, neto de escravos. A trajetória da família Ozório sempre esteve
ligada ao Rio Paraguai, desde a chegada da família no início da década de 1960,
na Ilha de Chané e Porto São Pedro, essa trajetória seguiu sempre o ciclo das
águas do Rio Paraguai, ou seja, nos períodos das cheias a família era obrigada
a mudar de lugar, alterando sua trajetória sempre de acordo com a densidade
de drenagem do Rio Paraguai.
A trajetória dessa comunidade está diretamente vinculada ao ciclo de
cheias que ocorreram no Rio Paraguai no século XX, de acordo com o
levantamento e estatística descritiva dos níveis hidrométricos do rio Paraguai
disponibilizados pela régua de Ladário através do Serviço de Sinalização Náutica
4 De acordo com Correlano (1998) no espaço periurbano existe três tipos de espaços: espaços naturais, espaços rurais e espaços urbanos. Ver mais em: Steinberg (2003) Entrena Durán (2003) que adotam o termo periurbanização.
do Oeste (SSNO), as maiores cheias do rio Paraguai ocorreram em maio de
1905, quando o rio atingiu 6,62 metros, em 1988 o rio chegou a atingir 6,64
metros.
Os dados obtidos pelo SSNO, apontam que em 1974, ocorreu um cheia
que o nível do Rio Paraguai atingiu 5,46 metros, o que levou a família Ozório
mudar do Porto São Pedro, após perder as plantações e animais e deslocar-se,
para um território próximo à Ilha do Pescador, conforme imagem 1 do mapa 2,
onde permaneceu até 1981.
Desde o início da década de 1980, os descendentes de Miguel Ozório
sobrevivem da pesca e agricultura familiar cultivando hortaliças, frutas e legumes
nesse território. A comunidade luta pela titulação desse território e da gleba 2,
área localizada nas proximidades da Ilha do Pescador, consonante com a
imagem 1, do mapa 2. Além dessa luta a comunidade ribeirinha enfrenta um
problema que está diretamente ligado ao ciclo das águas, conforme aponta o
membro da comunidade:
Aqui o rio Paraguai tem muita fartura, apesar que para pescar precisamos ir cada vez mais longe. Temos a horta para o nosso sustento, produzimos de tudo aqui, mas quando as águas do rio começam a subir, temos que dar um jeito, tivemos que mudar o lugar da nossa horta, é bem longe daqui, é lá no assentamento, plantar lá fica mais caro, tem um custo, mas nós precisamos plantar, não tem outro jeito. Então numa parte do ano, plantamos aqui, e na outra parte lá, quando as águas começam a baixar voltamos para cá. Todo ano é assim, em janeiro vamos para o Paiolzinho, ou perdemos tudo (Jorge Ozório, liderança da
comunidade AQUIRRIO).
O rio Paraguai que influenciou a trajetória da família Ozório ao longo dos
últimos quarenta anos, ainda interfere diretamente no cotidiano da comunidade.
Observamos que o cultivo da horta na comunidade está organizado em dois
períodos; de janeiro a junho o cultivo é realizado num lote cedido no
assentamento Paiolzinho, distante 18 km da comunidade. De julho a dezembro
o cultivo de hortaliças é realizado na área periurbana, onde está localizado o
núcleo familiar da comunidade.
Conforme Galdino; Clarke (1997 p. 6), entre os meses de janeiro a junho
há maior ocorrência do pico de cheia do rio Paraguai, de acordo com os autores
a régua de medição dos níveis do rio Paraguai, instalada no 6º Distrito Naval da
Marinha Brasileira, no município de Ladário-MS, é o principal referencial do
regime hidrológico dessa bacia hidrográfica, possibilitando até mesmo a
caracterização de um dado período como sendo de seca ou de cheia.
Diante dessa realidade a comunidade quilombola encontrou uma
maneira de resistir ao ciclo das águas do rio Paraguai. No entanto, os
pescadores dessa comunidade enfrentam a escassez do pescado, que a cada
ano tem diminuído significativamente. O mesmo ocorre com a Comunidade
Quilombola Ribeirinha Campos Correia (AQF2C), conforme imagem 3, da figura
2.
Segundo dados da ata de criação da comunidade quilombola Campos
Correia, essa comunidade foi fundada por Fermiana Campos nascida em
Cuiabá, casada com Teodoro Correia, nascido em Poconé no estado de Mato
Grosso, após o casamento eles trabalharam em várias fazenda da região
pantaneira, até meados da década de 1970, com o núcleo familiar composto por
6 filhos a família Campos Correia passou a ocupar uma região chamada Buracão
na área periurbana de Corumbá.
A comunidade quilombola ribeirinha Campos Correia sempre manteve
um vínculo de sobrevivência com o rio Paraguai, identificamos durante a
pesquisa de campo que a maioria dos descendentes de Fermiana Campos não
permaneceram no território tradicionalmente ocupado. A imagem 3 do mapa 2,
retrata os barcos abandonados em um porto improvisado entre um corricho e o
rio Paraguai. Como podemos observar no relato de um membro dessa
comunidade, que morando há mais de 30 anos no território assinala para o
distanciamento do lugar:
Estamos do lado do rio, sempre dependemos dele, mas com o passar dos anos, os peixes diminuíram, aí tivemos que buscar outros recursos. Da nossa família mesmo temos poucos pescadores e isqueiros, com barco a remo fica difícil, o pescado está cada vez mais longe, eu estou trabalhando lá na mineração, minha esposa continua pescando, mas está cada dia mais difícil. O rio continua o mesmo, mas os peixes se acabaram nessa
região (Paulo Correia, membro da comunidade AQF2C).
De acordo com o membro da comunidade quilombola, uma das formas
de sobrevivência é não depender apenas da pesca, grande parte dos moradores
dessa comunidade iniciaram outros tipos de atividades, tais como: a diaristas, no
setor de metalurgia e trabalhos informais.
Nos últimos anos as atividades de pesca tem diminuído gradativamente,
com o aumento das práticas turísticas na região, está cada vez mais difícil para
os ribeirinhos terem acesso ao pescado. Identificamos que apesar das
dificuldades apresentas, seis membros da família Campos Correia são
pescadores profissionais e possuem carteira de pescaria profissional emitida
pelo Ministério da Pesca e Aquicultura - MPA.
Em relação as comunidades ribeirinhas que vivem no Pantanal, mais
precisamente ao entorno do Parque Nacional Mato-Grossense podemos
destacar os coletores de isca da comunidade Barra do São Lourenço conforme
figura 11, e a comunidade Paraguai Mirim como é possível observar na imagem
12 do mapa 02. Essas comunidades vivem da pesca e da coleta de iscas, que
posteriormente, são comercializados para aqueles que se dedicam a pesca
esportiva. Essas comunidades não possuem acesso por estradas, sendo o rio
Paraguai a principal fonte para garantir seu sustento e deslocamento.
Quanto ao Pantanal boliviano podemos elencar a imagem 10 do mapa 02,
que mostra a comunidade Chaleira Warnes localizada ao entorno do Parque
Nacional e ANMI Otuquis. Os moradores dessa comunidade além de terem uma
relação de proximidade com a área protegida, trabalham com atividades ligadas
a mineração no Cerro Mutún que também está localizado na área de entorno do
parque, ou trabalham com a pecuária em estâncias localizadas no interior da
área protegida. Durante as pesquisas de campo nas áreas protegidas do
Pantanal boliviano identificamos várias comunidades vivendo ao entorno dessas
áreas como é o caso do Parque Nacional e ANMI Otuquis, e outras que vivem
no interior como, por exemplo a ANMI San Matías que possui 26 comunidades
distribuídas por sua extensão.
No tocante ao Pantanal paraguaio observamos a presença da
comunidades indígena Ishir, conforme imagem 07 do mapa 02, que vivem em
uma área entre as cidades paraguaias de Fuerte Olimpo e Carmelo Peralta, e
possuem uma relação de uso e pertencimento com o rio Paraguai, isso porque
seu deslocamento e necessidades básicas estão condicionadas aquilo que o rio
pode proporcionar. Na imagem 08 e 09 do mapa 02 verificamos as relações que
os moradores da Bahía Negra estabelecem como rio Paraguai. Essa cidade
abarca a o Parque Nacional do Rio Negro, e também tem seu acesso,
deslocamento e necessidades dependentes ao rio Paraguai. O acesso a Bahía
Negra, Fuerte Olimpo e Carmelo Peralta é feio através do serviço aéreo SETAM-
Servicio de Transporte Aéreo Militar ou por pequenas embarcações, do qual
destacamos o Aquidabán, que sai da cidade de Concepción via rio Paraguai
sempre as terças-feira chegando a Bahía Negra as sextas-feira levando
passageiros e mercadorias.
Portanto, ao observarmos os brasileiros, bolivianos e paraguaios que
habitam esse ambiente, identificamos que eles estabelecem uma relação direta
de dependência com ele e com o rio Paraguai. Porém, é válido destacar que
muitas vezes, os sujeitos que formam as pequenas comunidades no Pantanal
Transfronteiriço passam desapercebidos por aqueles que não analisam o
Pantanal em sua totalidade, e o termo “gente pantaneira” por muitos anos ficou
associado apenas aos que se dedicam a pecuária, ignorando aqueles que
também estabelecem uma relação de interação e dependência com este
ambiente.
Considerações finais
O presente trabalho apresenta uma série de reflexões acerca de quem
seriam os sujeitos que produzem a cartografia das “gentes pantaneiras” tal qual
foi identificado através das pesquisas de campo, sendo eles: quilombolas,
ribeirinhos, bolivianos e paraguaios.
Desta forma, os quilombolas que habitam a sub-região Paraguai do
Pantanal sul-mato-grossense, podem ser classificados em dois grupos: os
quilombolas ribeirinhos que se identificam como pantaneiros e os quilombolas
urbanos, cuja identidade está mais ligada ao “ser corumbaense”.
Quanto aos bolivianos, notamos que por um certo período não tinham
uma relação de proximidade com o Pantanal, e este era desconhecido ou
confundido com o Chaco. Essa relação de “ser pantaneiro” é recente, tendo em
vista que por muitos anos essa condição estava ligada aqueles que se
dedicavam a lida com o gado.
Já os paraguaios não expressam esse referencial de “ser pantaneiro”,
até porque a região que abarca o Pantanal paraguaio é desprovida de
infraestrutura e políticas públicas. O referencial identitário está mais ligado ao
Chaco, ou seja, “ser chaqueño”, que “ser pantaneiro”.
Por fim, entendemos que tanto os quilombolas, ribeirinhos, bolivianos e
paraguaios pelas relações que estabelecem com esse ambiente, devem ser
considerados “gentes pantaneiras” porque suas vidas estão condicionadas as
dinâmicas e aos ciclos que esse ambiente determina, no entanto, o que
verificamos é que esse referencial é apenas atribuído a alguns grupos de
interesse.
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