eles os juízes criminais
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“Eles, os juízes criminais, vistos por nós, os juízes criminais”*
“O juiz encarcerado em processosvislumbra na impossibilidadeo gosto: desfecha sentençasao ilusório gesto de justiça (inexistente) entre pares: esmiúça a possibilidadede reencontrar o traço destinadoa salvaguardar a intenção. Em vão: a libertação não o libera da inconsistência. Sabe a origem e a introjeta ao traduzir em significados a garantia. O juiz emparedado entre máquinas busca através da janela o resquício da humanidade desperdiçada ao réu enquanto apessoada peça desnecessária ao todo.”
(Pedro du Bois)
Primeiro
Que fique claro, espetacularmente claro, definitivamente claro: este
trabalho é realizado por um juiz e que mira o fenômeno judicial – seu conflito
decisório – desde a perspectiva interna. Ou seja, de dentro da magistratura.
A ambição é procurar demonstrar como tem ocorrido a luta interna
no momento da aplicação do Direito Penal – seu sentido amplo: material, processual
e execução penal.
A busca de esclarecer por que a maioria de nós, juízes, atua na
perspectiva de um Direito Penal máximo, na procura, consciente ou não, do
aniquilamento prisional do cidadão que eventualmente tenha praticado crime.
Talvez, ao fim e ao cabo, esteja a procurar entender a mim mesmo.
E que fique mais claro ainda: por certo, de dentro do poder não é o
melhor local para análise do fenômeno – ensina Boaventura Sousa Santos que é
impossível teorizar quando se é ou se está no centro do conflito; necessário certo
distanciamento para que a névoa da proximidade não seja fator perturbador da
crítica.
Talvez este trabalho tenha algum significado para que alguém,
desde fora da “casta”, enfrente o tema com maior propriedade: des-nevoado!
Segundo
Faz algo próximo de dez anos. O precioso jurista, pensador andaluz
(hoje lamentavelmente falecido), desde sempre parceiro de luta, Joaquin Herrera
Flores, era coordenador do curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Internacional da Andaluzia.
Joaquin organizou no pueblo de Santa Maria de la Rábida – alguns
quilômetros de Palos de la Frontera, de onde partiu Colombo para “descobrir” a
América –, durante uma semana, encontro entre juristas críticos americanos e
espanhóis destinado a estudantes e profissionais do direito da Espanha.
Do México: Jesús Antonio de la Torre Rangel e Oscar Correas; da
Argentina: Alicia Ruiz e Carlos Cárcova; da Colômbia: Hector Moncayo, Victor
Moncayo e Germán Burgos; do Chile: Manoel Jacques; do Brasil: Jacinto Nélson de
Miranda Coutinho, Paulo de Tarso Brandão, Edmundo Lima de Arruda Jr. e eu.
Entre os espanhóis estavam, além de Joaquin, Perfecto Andrés Ibãnez, David
Sanchez Rubio, Manoel Atienza, Perez Nuño, entre outros.
Que pretendia Joaquin? Colocar cara a cara o pensamento do
direito, dito de vanguarda, americano e espanhol. Entendia que nós – todos
vinculados ao movimento do Direito Alternativo – estaríamos (na visão dele,
Joaquin) caminhando a passos largos na direção da radicalidade jurídico-
democrática, bem além da vanguarda espanhola.
Exemplo: quando se tratou da magistratura, de um lado, ficamos
Alicia Ruiz (então juíza do trabalho em Buenos Aires e hoje na Corte Suprema) e eu;
de outro, Perfecto Ibañez (aquele que escreveu, nos anos setenta, com Modesto
Saavedra López e Nicolás Lópes Calera, o livro “Sobre el Uso Alternativo Del
Derecho”, e que nos anos noventa traduziu para o castelhano a obra “Derecho y
Razón”, de Luigi Ferrajoli, então magistrado da Corte Criminal de Madrid e hoje Juiz
da Suprema Corte Espanhola).
Necessito relembrar: num debate interessante sobre positivismo e
jusnaturalismo, de um lado, Jesús Antonio de la Torre Rangel (professor e pensador
da Universidade Autônoma de Aguascalientes, México, autor jusnaturalista com
inúmeras obras em torno do Direito Alternativo), e, de outro, o filósofo da
Universidade de Alicante, Espanha, Manoel Atienza, o professor Oscar Correas
(argentino expulso pelo golpe naquele país, obrigado a buscar abrigo na
Universidade Autônoma do México, pensador do direito com forte olhar marxista)
tomou a palavra e trouxe o definitivo: “não concordo teoricamente com os amigos
jusnaturalistas, mas quando nós, os marxistas, fomos mandados aos presídios pelas
ditaduras, lá estavam, ao nosso lado, os jusnaturalistas; todavia, jamais ali
encontramos positivistas: estes servem, sempre e sempre, aos que estão no mando,
sejam eles quem forem”!
Mas o que aqui mais importa, foi a constatação do professor Manoel
Atienza, em relação a nós, que positivistas não somos, os ditos críticos: “o problema
de vocês é de natureza psicológica e no divã deve ser tratado: sempre e sempre,
estão insatisfeitos; sempre e sempre, estão a procurar erros: nada lhes satisfaz”.
Perfeito o olhar de Atienza!
A característica vital da crítica é a eterna insatisfação: insuportável
insatisfação! A busca desesperada e incessante do novo: por mais doloroso que
possa ser. O não se satisfazer com quaisquer respostas ou com “a” resposta.
Desconfiança, sem medida, em qualquer saber im-posto. O jamais se contentar:
sempre é possível – mesmo que seja impossível – aumentar o grau de autonomia
das pessoas, os espaços de liberdade e reduzir os de desigualdade. Enfim, de
radicalizar a democracia: “nunca acabada, mas em permanente transformação” (no
dizer de André-Jean Arnaud, ao se referir à justiça) ou como a utopia de Galeano:
aquilo que impõe o eterno caminhar.
O saber crítico, na suma, está absurdamente centrado na
desconfiança, na crescente e infinita dúvida, na busca desesperada de destruir
crenças. No ponto contrário, a certeza é o mote da fé, do saber religioso (a fé, a
mesma dos “fundamentalistas do direito”, não abre espaço para o “talvez” – jamais
duvida): “entramos em um modo de viver enraizado no pressuposto de que a
contingência, a incerteza e a imprevisibilidade estão aqui para ficar” (Zygmunt
Bauman, “Legisladores e Intérpretes”, p. 13).
“Entende-se o Hamlet? Não é a dúvida, é a certeza que
enlouquece” (Nietzsche, “Ecce Homo”, grifos no original, p. 55).
Busca-se infinitamente o “porque” – nada mais do que o resgate da
lógica infantil: a idade dos “porquês”. As “verdades” não são definitivas, mas sim
históricas, e podem (devem) sim ser revistas, revisitadas, relidas permanentemente
na procura de “algo” que ali está omitido (intencionalmente ou não, conscientemente
ou não), esquecido, por vezes sob névoa terrivelmente espessa a impossibilitar, por
ora e apenas por ora, um olhar mais profundo, diferente daquele que impera
momentaneamente. Aliás, um aforisma nietzschiano parece estabelecer a
“verdade”: “517. Humana Sina. - Quem pensa mais profundamente sabe que está
sempre errado, não importa como proceda e julgue” (“Humano, Demasiado
Humano”, p. 243).
Marilena Chauí ensina que a atitude filosófica é “indagar”, perguntar
o “que é”, “por que é”, “como é”. Enfim, a busca do ainda-não-mas-que-pode-vir-a-
ser: o amanhã embora com os pés deslizando, ainda que levemente, no hoje, o seu
eterno adversário.
Para a pensadora – “Convite à Filosofia”, p. 18 –, “a filosofia começa
dizendo não às crenças e aos preconceitos do dia-a-dia para que possam ser
avaliados racional e criticamente, admitindo que não sabemos o que imaginávamos
saber”: crítica inseparável do racional.
Nietzsche (“Além do Bem e do Mal”, número 212, p. 106) diz que:
“Cada vez mais quer me parecer que o filósofo, sendo por necessidade um homem
do amanhã e do depois de amanhã, sempre se achou e teve de se achar em
contradição com o seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de hoje. Até agora todos
esses extraordinários promovedores do homem, a que se denomina filósofos, e que
raramente viram a si mesmos como amigos da sabedoria, antes como
desagradáveis tolos e perigosos pontos de interrogação – encontraram sua tarefa,
dura, indesejada, inescapável tarefa, mas afinal também a grandeza de sua tarefa,
em ser a má consciência do seu tempo. Colocando a faca no peito das virtudes do
tempo, para vivisseccioná-lo, delataram o seu próprio segredo: saber de uma nova
grandeza do homem, de um caminho não trilhado para o seu engrandecimento”... “a
cada vez eles disseram: “Temos de ir ali, além, onde vocês, hoje, menos se sentem
em casa” (grifos no original).
É bem verdade que Bauman (Zygmunt, “Legisladores e Intérpretes”)
ensina que o filósofo, hoje, tem o papel de intérprete, de “extrair o significado” (p.
266), já que “a principal necessidade humana não é buscar a verdade, mas
compreender” (p. 240), e não mais a de alcançar “alta autoridade concedida à razão
e a seus porta-vozes” (p. 231), deixando de ser “julgadores” do que é racional: não
mais legislam.
Chego no Direito. No Direito Penal.
Nosso trabalho, em princípio, está centrado nos Códigos – a lei, no
penal, é o quase-tudo: ela é quem “faz” o crime. Alguém diz o que a lei diz e
seguimos com essa verdade que nos é (im)posta e insuportavelmente a repetimos.
Os manuais (pródigo local dos forjadores do senso comum) chegam até os
operadores, definindo verdades que se transformam em crenças, no momento
seguinte à promulgação das leis: um pontuar antes mesmo do pensar. “Há verdades
que são mais bem reconhecidas por cabeças medíocres, por lhes serem as mais
adequadas; há verdades que encantam e seduzem apenas os espíritos medíocres”
(Nietzsche, “Além do Bem e do Mal”, p. 145).
Tais crenças fazem-se presentes no nosso atuar – Marilena diz que
somos sim feitos de crenças, coisas que acreditamos sem questionar, que temos por
evidentes, como óbvias: “Talvez a “obviedade” fosse somente uma função do
monopólio de poder” (Bauman, p. 122).
Mas se instale a crítica, a dúvida (menor que seja) e se constatará
que o emaranhado legal (que tem sua complexidade reduzida pelo senso comum)
está por ser “descoberto”, muito além do que, com náusea, se repete. Há ali muito
escondido, não dito que revela e esclarece o dito, a gritar desesperadamente por
novas soluções, outras respostas para questões que já temos por definitivas,
consagradas “pela mais lúcida jurisprudência e pela sábia lição doutrinária”, fruto
das crenças impostas-geradas por aquilo que o imortal Warat denominou de “senso
comum teórico dos juristas”.
A legalidade (seus textos) está prenhe de novas possibilidades, é
feto, às vezes indesejado, implorando para vir ao mundo! Tudo está por ser
construído! Tudo está por ser destruído! Tudo está para ser reconstruído!
Exemplifico – terrível o “exemplo”: o pensador gaúcho André Baggio
diz que o exemplo nada prova, só prova que é exemplo e nada mais.
Por quantas décadas permitimos conceitualmente (o que é doloroso
porque, no direito-dever de julgar, o efeito da interpretação não é algo lírico que fica
contido no mero mundo das idéias, mas alcança terrivelmente pessoas de carne-e-
osso, como regra muito mais osso-do-que-carne), a partir de leitura do Código
Penal, que a medida de segurança imposta a inimputáveis o fosse por tempo
indeterminado, ou seja, com a fixação unicamente de tempo mínimo, mas não do
máximo (parágrafo único, artigo 97, Código Penal), sem “perceber” (ou talvez pior:
“bem percebendo”) que a exegese agride a Constituição Federal ao possibilitar o
“encarceramento perpétuo”. Veja-se também o debate que se travou em torno do
cabimento ou não, em crimes hediondos, do regime integral fechado: para nós,
juristas, tudo é simples debate, mas para os condenados representa o “tudo”, a
“vida” – o continente “moral” da nossa interpretação é violento: alcança a vida do
outro.
Sempre assim fizemos sem sequer ruborizar. A possibilidade do
encarceramento, do “enjaulamento”, é sempre presente: quem ingressa na
instituição para eles destinada dificilmente é liberado – ida sem retorno.
Mais um exemplo: o precioso magistrado, ora jubilado, Marco
Antonio Bandeira Scapini, quando na Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre,
deparou-se com cidadão, acolhido no Instituto Psiquiátrico, havia vinte e seis anos.
Que fizera ele? Fora preso em flagrante porque urinava na frente de uma residência
e por ato obsceno foi processado.
Como se constatou, via incidente de insanidade mental, que era
inimputável, recebeu medida de segurança apenas com tempo mínimo. E curado
não ficou (como o ficaria nas nossas instituições?). Cumpria “pena” de vinte e seis
anos por urinar numa rua: pessoa que na instituição envelhecera, perdera contato
com familiares, praticamente vegetava. Evidente que ele era pobre...
É possível justificar, com mínima racionalidade, tamanho delito que
contra ele nós, juristas, praticamos? E somos nós porque temos o “poder-dever” de
dizer o que a lei diz. Nada nos desculpa, absolutamente nada, em sermos amorfos
seguidores do que está consagrado pela bolorenta “melhor doutrina e ilustrada
jurisprudência”.
Apenas agora, em 06 de abril de 2005, na apelação criminal
70010817724, a Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, “des-cobriu” o escondido, após milhares de pessoas sofrerem as consequências
da inconstitucionalidade – e ainda estão e estarão a sofrer porque a “crença” ainda
majoritariamente se mantém no senso comum teórico.
O acórdão assim ficou ementado:
PROCESSUAL PENAL. MEDIDA DE SEGURANÇA. PRAZO INDETERMINADO. INCONSTITUCIONALIDADE. PROIBIÇÃO DE PENAS PERPÉTUAS OU DE OUTRO MODO ABUSIVAS. NECESSIDADE DE READEQUAÇÃO DOS LIMITES MÁXIMO E MÍNIMO.- É inconstitucional a indeterminação de limite máximo, bem como, abusivo, prolongado e excessivo o prazo mínimo para a verificação da cessação da periculosidade do agente, previstos no art. 97, do Código Penal, à imposição de Medidas de Segurança.- A Constituição Federal veda expressamente a imposição de sanção penal que possa assumir caráter perpétuo ou que possa ser, de qualquer forma, abusiva (art. 5, XLVII e alíneas) – assim, ancorada nos princípios fundamentais (freios libertários ao poder punitivo estatal) impõe a maior aproximação isonômica possível entre a punição de imputáveis e inimputáveis que cometem delitos.- A dignidade da pessoa humana, isonomia e mitigação da dupla violência punitiva – dos delitos e das penas arbitrárias (no dizer de Ferrajoli) – restam, então, aqui contempladas da seguinte forma: fixação do limite máximo pelo total da pena estabelecida em cada caso concreto (igualmente ao que se dá com imputáveis), bem como, a fixação do prazo mínimo para a verificação da cessação da periculosidade em 01 ano (como não há dogma sobre a cura de um distúrbio mental, melhor que se a comece a investigar no menor tempo possível), devendo, cessada a enfermidade mental, ser o apenado posto em liberdade a qualquer tempo.
O que aqui se quer dizer?
Sempre e sempre e sempre há possibilidade, no campo penal, de se
produzir resultados que alcancem a máxima já clássica de Ferrajoli: “o menor
sofrimento possível ao desviante” ou, como ensina Salo de Carvalho: uma política
de redução de danos ao cidadão que responde penalmente ou, como quer
Nietzsche: “quanto mais elevado o tipo de ser humano que um homem representa,
menor a probabilidade de que ele se vingue” (“Além do Bem e do Mal”, p. 60, grifo
no original).
Em outras palavras, como tentei demonstrar na “Carta Abierta de un
Juez Brasileño a un Juez Español”, dirigida a Perfecto Ibañez, publicada no meu
Direito Alternativo em Movimento, pp. 27-30, é dever constitucional do juiz ingressar
no feito convencido da inocência do acusado: é um pré-juízo constitucional. Logo, a
condenação somente poderá explodir quando, apesar de todos os esforços
interpretativos, for impossível absolver. Uma espécie de diálogo se trava com o
acusado: “tu és inocente e somente serás condenado se a acusação destruir
absolutamente todas as hipóteses defensivas”.
Vencida esta etapa (“fiz tudo para te absolver, mas tu não me
permitiste”), entra em cena uma segunda questão, na procura da redução de danos:
agora o juiz tem o dever de buscar no sistema os benefícios possíveis que evitem o
encarceramento (substituição da pena privativa de liberdade, concessão de sursis).
Todavia se “fiz tudo para te absolver, mas tu não me permitiste; fiz
tudo para não te encarcerar, mas tu não me permitiste”, agora, como limite ao
intolerante máximo e não a qualquer intolerante, dolorosamente a tarefa se completa
no processo de conhecimento: ao condenar, devo fixar a pena no menor patamar
possível e no regime carcerário menos danoso permitido pelo sistema.
É a maneira, ao menos até este momento, que encontrei para
suportar a dor que me alcança ao proferir veredicto condenatório (“Mas quem
pretenderá ser justo poupando-se da angústia?”, Jacques Derrida, “Força de Lei”, p.
39). Longe de buscar ser paradigma, é apenas minha defesa pessoal: “de-mim-para-
comigo-mesmo”!
Na verdade, mandar alguém para presídio me causa sofrimento (é o
reconhecimento de que falhamos como sociedade humana: em algum momento
ocorreu grito de socorro e não ouvimos ou não quisemos ouvir). No dia em que
determinar a prisão de um humano for, para mim, ato banal, burocrático ou
prazeroso, não me terá mais sentido ser juiz.
Mas o que se percebe no senso comum judicante? Enfrento a
seguir.
Terceiro
A realidade tem sido agressiva no espaço judicial – nada mais do
que reflexo do que impera na sociedade civil: de um lado, pessoas de boa fé e
honestas, que buscam reduzir os danos daqueles que sofrem a perseguição penal
estatal; de outro, pessoas de boa fé e honestas, que atuam na perspectiva do
aumento dos danos àqueles que respondem a processos penais.
Quer me parecer, e aqui estou sendo maniqueísta mesmo, que
estamos divididos entre os que acreditam na pena-direito penal como resposta
superadora à violência (real ou imaginária) e aqueles que não acreditam que o
direito penal possa dar conta, mesmo minimamente, do fenômeno. Evidente que
entre um campo e outro há espaço importante a ser trilhado, mas assim estou
definindo unicamente para efeitos deste texto.
A maioria de nós incorpora a neurose que explode na sociedade
civil: uma fúria persecutória espetacular – outra vez, o senso comum invadindo o
espaço do jurista –, transformando-o em agente da irracionalidade que percebe o
fenômeno violência como espetáculo midiático.
Como o senso comum – a forma mais vulgar de captação conceitual
–, para se forjar, necessita reduzir a complexidade do fenômeno, porque lhe é
impossível dele dar conta, explode “verdade” inabalável (“...afinal preferirá sempre
um punhado de ‘certeza’ a toda uma carroça de belas possibilidades”, Nietzsche,
“Além do Bem de do Mal”, p. 15): a impunidade é a causa da violência criminosa.
Ou seja, um fenômeno absurdamente complexo (a violência, a criminalidade, suas
causas, suas respostas) tem seu conteúdo reduzido numa simplificação espetacular:
a impunidade (é o que ensina Salo de Carvalho).
Não se logrou na história da humanidade dar conta do fenômeno
violência – e possivelmente não se dará enquanto o humano continuar sendo
humano. Mas, o senso comum tem resposta definitiva: puna-se!
Volto ao que se passa.
Especificamente no momento judicante, o debate tem sido, por
vezes, agressivo entre as correntes (a que acredita e a que não crê no Direito
Penal: relembro, estou sendo maniqueísta para fins deste trabalho). E tudo se nota,
inclusive, pelo que é dito nos processos pelos atores: juízes, promotores,
defensores. Não raro se chega ao limite da ofensa pessoal – como se o processo
fosse local destinado a isso. A sensação que explode é de que são autênticos
inimigos. São posições que se excluem: o diálogo, de parte a parte, é missão do
impossível.
De um lado, os defensores da “sociedade”; de outro, os defensores
do cidadão contra o Estado perseguidor. Tudo como se fossem “proteções”
excludentes: “não se tem mais o direito de sacrificar os indivíduos para proteger o
Todo, pois o Todo não é nada mais do que a soma dos indivíduos, uma construção
ideal na qual cada ser humano, porque é “um fim em si”, não pode mais ser tratado
como um simples meio” (Luc Ferry, “Aprender a Viver”, p. 156) – proteger o um é
proteger o todo, não há todo sem o um. Ao proteger o direitos do um – seja quem
for, seja qual o delito cometido – se está protegendo a própria sociedade da qual o
um é parte indissociável.
Pois bem.
Na sessão do dia 26 de janeiro de 2011 – a mais recente porque
este trabalho está sendo elaborado no verão deste mesmo ano –, como
desembargador relator, levei à sessão da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que teve como revisor o desembargador
Luís Gonzaga da Silva Moura e como vogal o desembargador Aramis Nassif, para
julgamento, sessenta e uma apelações de feitos que tiveram condenações em
primeiro grau: recursos tanto de defesa, como de acusação.
Ditos processos, em soma, culminaram em condenação no primeiro
grau ao total de quatrocentos e quinze anos e dez dias de prisão. Ou seja, os
acusados vieram do primeiro grau condenados naquele total.
No julgamento da Câmara, em redução de pena ou em absolvição, o
resultado total das penas ficou em cento e setenta e nove anos, três meses e quinze
dias. A redução, portanto, foi de cerca de duzentos e trinta e seis anos – bem mais
de dois séculos! E em apenas uma sessão do colegiado e apenas nos processos
que eu levei a julgamento.
No olhar de uns (esmagadora maioria): quanta contribuição para a
impunidade, para a violência!
Para outros (espetacular minoria), quanta redução de danos, quanto
sofrimento evitado, quanta despesa reduzida para o Estado! Aliás, dor que
ultrapassa a pessoa do condenado: alcança sim sua ascendência, sua
descendência, seus parceiros, seus amigos – Luc Ferry, “A Sabedoria dos Mitos
Gregos”, p. 266, ao tratar do mito de Édipo explica: “... quando pai comete um
crime atroz, pode ser necessário que as gerações seguintes paguem por ele, não
por serem propriamente responsáveis ou culpados, mas porque a ordem não pode
voltar de uma só vez”... “Leva tempo, e esse tempo é exatamente aquele da
infelicidade dos homens, mesmo inocentes”... “É no que antecede seu nascimento
que se encontra a origem dos seus males”. A pena passa sim da pessoa do
delinquente: perguntem e olhem ao seu redor!
“Os tempos em que teu pai viveu foram tão obscuros que nunca
deixarão de perseguir-te, nunca te darão trégua” (José Pablo Feinmann, “A Sombra
de Heidegger”, p. 104).
Mas, o que se quer demonstrar, é que tamanha discrepância entre
os julgados, aproxima tudo do absurdo – mais de dois séculos de diferença em
sessenta e um processos julgados em uma única sessão (ou seja, no pedaço de
uma tarde de verão). São de tal forma excludentes os olhares que beiram o caos. E
se está a tratar de pessoas, sua vida, sua liberdade, e não de outros direitos.
Impossível explicar ao leigo o que se passa. Difícil explicar ao
operador jurídico distante do Direito Penal. Tarefa não fácil de justificar
teoricamente. Mas isso ocorre com frequência – em outra sessão, a diferença ficou
em torno de um século; em outra, em três séculos!
Talvez tudo seja ônus da democracia judicante – ela, a democracia,
por melhor que seja, apresenta problemas de difícil solução: não se pode, em nome
dela, mesmo porque lhe constitui, abalar a liberdade de julgar (liberdade limitada,
controlada, justificada racionalmente, mas ainda assim liberdade) – “No se puede
decir que el juez esté libre ni tampoco que esté maniatado” (Duncan Kennedy,
“Libertad y Restricción en la Decisión Judicial”, p. 107).
O espaço judicial é sim palco de luta entre visões diferentes do
homem, da sociedade. E o Direito Penal se presta, insoluvelmente, ao debate
ideológico mais genuíno.
Viu-se, então, o resultado em massa (ou seja, a soma de todos os
processos julgados em determinada sessão).
Agora, interessante esclarecer onde, objetivamente, se dá a
divergência: por que se chega à tamanha discrepância?
Para fins didáticos, estou a colher duas situações em que,
agressivamente, percebe-se onde se encontra a disputa pela hegemonia. São
momentos de caos – evidente que não é a regra – que bem estabelecem como se
dão os olhares que agressivamente se contrapõem (e isso, repito, não é mera
elucubração teorética porque o resultado alcança pessoas de carne-e-osso: jamais
se pode omitir isso, um terrível e insuportável componente ético).
O primeiro caso:
Apelação Criminal n. 70033748542, julgada em 13 de janeiro de
2010, da Quinta Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que fui
relator, revisor o desembargador Aramis Nassif e vogal o desembargador Luís
Gonzaga da Silva Moura.
Determinado cidadão foi processado por furto, qualificado pelo
arrombamento, de bem no valor de cento e cinquenta reais. Na via pública, logo
após, foi preso por Policiais Militares que recuperaram a coisa.
Pois bem.
Foi-lhe aplicada em primeiro grau pena-base de cinco anos e nove
meses de reclusão, com redução de três meses pela atenuante da menoridade,
restando definitiva em cinco anos e seis meses de reclusão, em regime inicial
fechado e multa de cinquenta dias, no piso legal. A defesa apelou.
A Câmara absolveu o acusado porque entendeu presente a hipótese
bagatelar – repito: coisa recuperada no valor de cento e cinquenta reais. Ou seja,
teve por atípica a conduta.
O contraste é patológico: para o juízo singular o crime mereceu pena
de cinco anos e seis meses de reclusão, em regime carcerário fechado; para a
Câmara, o fato é um nada penal – sequer crime é por sua insignificância.
Penso que, aqui, se percebe espetacularmente as forças em
conflito! Note-se, a discussão não está centrada na prova – algo que comumente se
dá –, mas sim se o fato merecia ou não ingressar no campo penal.
O segundo caso:
Apelação criminal n. 70008233793, julgada em 07 de abril de 2004,
também pela Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, com a mesma composição do julgamento anterior.
Cidadão foi processado e condenado em primeiro grau pelo antigo
crime de atentado violento ao pudor porque teria “beijado a boca e tocado na vagina
da vítima (9 anos de idade) por sobre as vestes”. A pena alcançou oito anos e nove
meses de prisão, em regime integral fechado. A defesa apelou.
A Câmara, por unanimidade, absolveu o apelante por entender que
o fato não constituía infração penal, apenas agredia a moralidade – o princípio da
secularização do direito é conquista da modernidade. Por mais imoral que o fato
fosse – e o era – tudo não alcançava o crime denunciado por agredir o princípio da
proporcionalidade entre ato praticado e pena imposta.
No que interessa, o acórdão assim ficou ementado:
“Atentado violento ao pudor... Não é qualquer toque que enseja crime de atentado violento ao pudor. O tipo está a exigir comportamento carnal agressivo, com alguma espécie de penetração – v.g. sexo oral ou anal – pena de agredir o princípio da proporcionalidade entre crime e castigo”.
Outra vez, e agressivamente, veem-se olhares em profundo conflito:
para um, o fato é hediondo; para outro, um nada. Um determina que o cidadão, por
prática de ato infame, cumpra oito anos e nove meses de prisão, em regime
integralmente fechado. Outro entende que crime sequer existiu!
Quarto
No ítem dois, relembro, procurei demonstrar como tenho
estabelecido uma espécie de diálogo com o cidadão-réu no processo de
conhecimento: ingresso no processo convencido da sua inocência; impossível sendo
absolver, então, há esforço para inibir o resultado prisional; impossível isso, a
procura da menor pena e no regime menos gravoso possível.
Todavia, a luta não estanca aí, muito ao contrário.
O determinar o cumprimento da pena em casa prisional não deve
(não pode), vez mais, ser ato desprovido de responsabilidade judicante com o que lá
se passa: as condições para o cumprimento da pena.
Ora, todos, absolutamente todos, sabemos que a vida prisional
agride tanto a Constituição Federal, quanto a Lei de Execução Penal. Na verdade,
sinto-me muito mal em ter que procurar demonstrar isso.
Todos, absolutamente todos, sabemos que as prisões brasileiras
são, no mínimo, masmorras medievais. O grau de odiosidade é insuportável,
animalescamente insuportável, agressivamente insuportável.
São destinadas para a destruição do outro, embora se tenha
discurso hipócrita da ressocialização: um sofrimento estéril, ensina Louk Houlsmann,
a dor pela dor. A transformação do bicho-homem em homem-bicho.
O que se sabe do suplício gótico (expressão de Salo) lá enfrentado,
como resultado único, é a constatação de que é mais um fator criminógeno. Pavarini
explica: manda-se um cidadão ao presídio porque ele apresenta grau “X” de
perigosidade, a este grau “X” é agregada uma perigosidade “Y” imposta-adquirida na
casa prisional. Ao se liberar o cidadão, sua perigosidade é de “X + Y”. Se perigoso
era, agora perigoso maior será!
E nós? Sabedores de tudo, sem o menor rubor, negamos a
legalidade em desfavor dos acusados!
Ora, o pacto constitucional define que o cidadão que comete
determinado crime deverá cumprir a pena em casa prisional – a primeira face do
sistema: responde pela agressão à lei penal, eis a dor que se lhe inflige.
A segunda face – constitucional e legal – está no limite que o Estado
impõe a ele mesmo: sofrimento limitado pelo sistema, pena de o poder ser
desmesurado! Ou seja, há determinação das condições do cumprimento da sanção
corporal.
É o estágio em que se encontra o processo civilizatório: o princípio
da humanidade das penas!
Ou seja, o Estado deve (a) punir quem agride a lei penal e deve (b)
cumprir rigorosamente as normas que são fixadas para o cumprimento das penas
que ele, Estado, impõe.
Mais claro. A legalidade tem dois momentos indissociáveis: num,
determina a prisão (contra o cidadão), e, noutro, que protege esse mesmo cidadão
contra abusos.
O que acontece no mundo das pessoas de carne-e-osso? Hipocrisia
inominável: com base na lei as pessoas são condenadas, mas no momento de
beneficiá-la (condições dos cárceres), nega-se garbosamente a legalidade –
intolerável! Comete-se crime contra eles na busca de destruir o crime: autofagia –
“Cometer um crime, em nome da lei, é mais grave do que cometê-lo fora da lei. O
crime, cometido em nome da lei, abole a diferença entre lei e crime e, nesta medida,
instaura o império do crime, o primado de uma desordem que não tem, para
enfrentá-lo, nenhuma ordem que lhe seja antagônica” (Hélio Pellegrino, “Lucidez
Embriagada”, p. 138).
E “eles” estão lá. Cada vez mais lá estão. Diz Ferrajoli que a história
dos presídios é mais degradante que a história dos crimes. Mas “eles” continuam lá
e nas condições animalescas que todos sabemos: tratados como “coisa” e não como
“pessoa” (meio e não fim, como diz Kant).
Aqui, outro local onde a luta se dá entre as forças judicantes em
conflito.
A Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, agora em maioria
(três contra um: são quatro desembargadores na Câmara), a partir da apelação n.
70029175668, de 15 de abril de 2009, tardiamente, reconheço, passou a determinar
que o cidadão condenado à pena de prisão, somente irá cumpri-la em cárcere
quando e se o Estado providenciar estabelecimento carcerário que atenda a todos
os requisitos da Lei de Execução Penal. Enquanto isso não ocorrer, a pena deve ser
cumprida no domicílio do agente.
O acórdão assim ficou ementado, na parte que interessa:
Roubo majorado... Recolhimento prisional: o condenado somente será recolhido a estabelecimento prisional que atenda rigorosamente aos requisitos impostos pela legalidade – Lei de Execução Penal. Legalidade: não se admite, no Estado Democrático de Direito, o cumprimento da lei apenas no momento em que prejudique o cidadão, sonegando-a quando lhe beneficie. Missão Judicial: fazer cumprir, apesar de algum ranger de dentes, os direitos da pessoa – seja quem for, seja qual o crime cometido.
É bem verdade que em situações consideradas caóticas – casos de
alta reincidência em crimes violentos, crimes absurdamente agressivos – tem-se,
ainda, determinado o encarceramento.
A questão está posta: de um lado, a pena deve ser cumprida, seja
em que condições for (punição máxima, ilimitada); de outro, a pena carcerária só
deve ser cumprida se obedecido o princípio da humanidade das penas (limite severo
ao ato de punir).
Quinto
Ainda mais.
Os olhares díspares sobre o crime e sua resposta têm importantes
reflexos em outros momentos por certo vitais na vida do cidadão que é submetido ao
judiciário penal.
Num primeiro, tem-se a espetacular banalização de decretos de
prisões preventivas. A exceção, prisão antes do tempo correto (sentença transitada
em julgado) – todos sabemos que é medida excepcional –, tem sido decretada,
desde meu olhar, de maneira vulgar, desrespeitosa, agressiva, insustentável no
plano da legalidade.
Tudo se dá mediante retórica vazia, ou, como diz Lenio Streck,
através do uso de “expressões mágicas” – aquelas infantis em que, dado seu
comando, a resposta salvadora explode de imediato, sem maior esforço, sem maior
criatividade, um-nada-que-soluciona-tudo. Uma mal disfarçada retomada de prisão
provisória obrigatória. Ditos que nada dizem por tudo dizerem: “a gravidade do crime
assim exige”, “necessário preservar a credibilidade do judiciário”, “a sensação de
impunidade”, “o clamor social”, ad infinitum...
Prender, prender, prender. A fantástica crença na prisão como
resposta sadia à criminalidade – real ou imaginária.
Ora, se a gravidade do crime, por si só, permite a prisão preventiva,
se está a criar nova modalidade prisional, sem base na legalidade, o que não se
admite no Estado Democrático de Direito.
Preserva-se a credibilidade do judiciário – o que é mesmo isso? –
quando se julga com a rapidez suportável e bem, muito bem, espetacularmente
bem, com a preservação de todas as garantias processuais que o sistema impõe.
Que sensação de impunidade ou clamor social autoriza
racionalmente a prisão de pessoa que sequer se sabe se será condenada? Aliás,
raramente se vê comprovado o dito clamor social.
Assim, nota-se com incrível frequência verdadeiro teratóide: o
cidadão é preso preventivamente e quando condenado tem a pena carcerária
substituída, ou seja, processado, fica preso; condenado, vai solto.
O ridículo da gravidade do delito está a ensejar prisões preventivas
por meros furtos (ora, condenação que normalmente sequer impõe prisão), sob
alegação de que fomenta outros crimes como o de receptação, por exemplo. E aí,
numa exegese circular, prendem-se pessoas pelo crime de receptação porque
fomenta o crime de furto.
Ou seja, quase tudo é razão para o encarceramento antes do tempo
devido!
O conflito é forte entre as posições fincadas no espetáculo forense:
desde sempre tive receio de prender alguém antes de definida sua condenação;
mas percebo que a situação é invertida: parece que se tem medo de soltar.
Por outro lado, na execução penal também há reflexos sérios: os
benefícios têm a tendência de serem negados por uns, e concedidos por outros –
uns creem no homem, outros não (procurei demonstrar isso no meu “Garantismo
Aplicado à Execução Penal”).
Por fim, evidente que as garantias processuais são postergadas. O
irracional explode mediante retórica infantilizada: não há sentido em proteger o
cidadão contra os “interesses maiores da sociedade”.
Sexto
Em outro local (“O (im)possível Julgar Penal”), com grupo de
amigos, procurei demonstrar o desconforto que alcança o juiz no momento em que,
ao julgar algum processo, determina a ida de um cidadão – seja quem for, seja qual
o delito praticado – a algum presídio brasileiro: os efeitos da condenação no
condenador – “A consequência disso tudo seria, talvez, que de modo algum
deveríamos julgar” (Nietzsche, “Humano, Demasiado Humano”, 32, “Necessidade
de ser injusto”).
Agora pretendo tentar discutir, basicamente, por que razão nós,
juízes, (a) embora existam elementos teóricos possibilitadores da possível redução
de danos ao acusado e (b) se saiba, ad nauseam, das condições prisionais dos
cárceres do país, ainda assim optamos pela desenfreada perseguição: um
populismo punitivo (como diz Elena Larrauri) irracional.
Procuro fazê-lo da forma mais crua que me é possível e deixo claro,
definitivamente claro, que quando falo do “juiz” estou falando de mim mesmo. Acaso
alguma sensibilidade mais adocicada venha a se sentir agredida, não esqueça: falo-
de-mim-para-comigo-mesmo, ou seja, se estou a ofender, ofendo-a-mim-mesmo.
Sétimo
“Paga-se caro por chegar ao poder: o poder imbeciliza” (grifo no original: Nietzsche, “Crepúsculo dos Ídolos”, p. 55).
Ferrajoli parte de pressuposto teórico importante: tem visão
pessimista do poder. Logo, o direito é sistema de garantias visando à proteção do
cidadão contra o poder que tende inexoravelmente ao abuso.
Vou um pouco mais longe – sinto-me muito próximo dos anarquistas,
o que me leva, em consequência, a chegar perto do abolicionismo. Não consigo
vislumbrar o bom poder: ele é puro abuso.
Não, ele não corrompe, como ensina o gaúcho Juremir Machado da
Silva: ele esquizofreniza, deixa as pessoas loucas: não é questão de boa ou má-fé,
é consequência do exercício do poder em si mesmo.
Aliás, sabe-se que a construção histórica dos direitos humanos
sempre foi dirigida à luta por limitar o poder. Lei, em seu conteúdo ético, nada mais é
do que a busca desesperada para limitar o poder desenfreado: lei diz com limite – de
mim-para-comigo-mesmo, de mim em relação ao outro, do “fazedor” da lei (Estado)
em relação ao que deve obedecê-la (procurei demonstrar isso no meu “Lei para
que(m)?”, publicado no livro com Salo de Carvalho, “Reformas Penais em Debate”,
p. 3).
As garantias processuais, por outro lado, procuram desde sempre
limitar ou tentar limitar o abuso: a ampla defesa, o contraditório, o princípio da
fundamentação dos atos judiciais e sua publicidade.
Mas o “locus” do poder (“Vista seus homens com o traje da minha
polícia e verá no que eles se transformam” – Albert Camus, “Estado de Sítio”, p.
153), razão tem Nietzsche, imbeciliza o agente: o poder, para ser poder e para se
manter poder, necessita de mais poder e de sua constante afirmação como poder,
pena de poder não mais ser. E “todo poder necessita de verdade; o poder absoluto
necessita de verdade absoluta” (Bauman, p. 132).
Só há poder se existir vassalos: os servis. Ou seja, é da essência do
poder mandar, estar acima do outro, o que obedece. A inexistência da obediência
faz desaparecer o poder, mas ele, poder, necessita se manter.
Ora, este local, o do mando, o do poder, é terreno absolutamente
fértil para a arrogância (que se pergunte aos advogados): não se pede, não se
dialoga, emitem-se ordens – “o cumpra-se” que vem ao fim da decisão.
Sim, ato decisório é um misto de saber e de poder; quanto maior um,
menor o outro. Mas no espaço judicial o que realmente importa é o comando, a
ordem dada – aquilo que faz coisa julgada.
E o poder exerce fascínio em nós. Nietzsche diria, então, “a
imbecilização nos fascina”. Ou, “o fascismo que está em todos nós, que assombra
nossos espíritos e condutas diárias, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar
essa coisa mesma que nos domina e nos explora” (Elisabeth Roudinesco, “Filósofos
na Tormenta”, p. 217).
Tenho medo do poder. Tenho medo do poder daquele que tem o
poder de me julgar. Tenho medo do poder que tenho de julgar o outro. Tenho medo-
de-mim-mesmo quando julgo. Talvez, talvez e somente talvez, o medo que se tenha
do poder seja o elemento possível de tentar domesticar a “fera” do poder que nos é
dado.
O Direito Penal é uma face cruel do poder (repito: poder que tende
inexoravelmente ao abuso): elege os indesejados e os aniquila. A forma menos
indesejada que criamos para destruição do desviante: o não igual a nós!
E alguém deve ser o responsável para a faxina final, a separação
entre os bons e os maus, entre nós e eles: o juiz criminal, o concretizador do poder,
ou seja, aquele que tem o poder de fazer presente o poder que tende ao abuso:
duplamente abusivo, pois!
Enfim, o que quero apontar? Talvez a imbecilidade que emerge do
poder seja uma das principais fontes a justificar a nossa ânsia persecutória – a
reafirmação constante do poder enquanto poder higienizando a selva social.
Oitavo
“Punível, jamais punido. - Nosso crime em relação aos criminosos consiste em tratá-los como patifes” (Nietzsche, “Humano, Demasiado Humano”, p. 58, n. 66).
Quer me parecer que vemos o mundo em preto-e-branco, dividido
entre nós, os bons, e eles, os maus.
Mas, quem são os bons? Quem são os maus? Existe o bom e o
mau? Ou somos simplesmente humanos: um misto de anjos e demônios?
O discurso é forte: temos de proteger os bons contra os maus.
Retórica que encanta e fascina os perseguidores de plantão: aqueles que possuem
o “bom-zômetro” (copiando Zaffaroni) – aparelho fantástico que possibilita ingressar
na alma e na vida das pessoas para dar-lhes um valor.
Nietzsche, vez mais, no “Ecce Homo”, p. 149, diz que “Zaratustra
não deixa nenhuma dúvida acerca disso: ele diz ter sido precisamente o
conhecimento dos bons, dos “melhores” que lhe inspirou o horror ao homem; dessa
repulsa lhe teriam crescido as asas para “voejar a futuros longínquos”.
Ora, os bons são os nossos iguais, os que pertencem a nossa
classe social, que professam as nossas verdades. Mau é o outro; delinquente a ser
destruído é o outro; patife é o outro; idiota é o outro.
Aliás, Nietzsche, em outro local, afirma que “toda companhia é má,
exceto a companhia dos iguais” (“Além do Bem e do Mal”, p. 31).
Nós sabemos quem é o patife, quem é o outro, quem é o mau. A
população carcerária demonstra isso com espetacular clareza, como afirma Luiz
Eduardo Soares: negros, analfabetos pobres, moradores da periferia (como procurei
demonstrar no “(Im)possível Julgar Penal”). Numa palavra, como se diz na cultura
gaúcha: os “esgualepados”.
E dele, no viés contrário ao de Nietzsche, temos nojo, asco, seu
cheiro nos perturba. Na sala de audiência, queremos distância: portadores de lepra
prestes a nos contagiar. Precisamos, dos patifes, ficar longe – além disso, são
descartáveis porque no mundo do consumo, sequer consumidores são ou serão, ou
seja, precisamos urgentemente nos livrar deles. E como nosso “bom coração
cristão” não permite matá-los, destinamos local apropriado para eles: os presídios!
Então, na visão nietzschiana, cumprimos com galhardia nossa
atividade criminosa: tratamos o cidadão que eventualmente comete algum crime
como patife – numa luta desigual entre patifes.
Sim, só “olhamos todas as coisas com a cabeça humana, e é
impossível cortar essa cabeça” (“Humano Demasiado Humano”, p.19), mas não se
poderia colocar em dúvida, em suspenso, o mal-estar que temos deste outro,
tentando pensar que, talvez, num distante talvez, num quase-impossível talvez, mas
um talvez, que “O tipo criminoso é o tipo do ser humano forte sob condições
desfavoráveis, um homem forte que tornaram doente” (“Crepúsculo dos Ídolos”, 45,
p. 94)?
E se tentássemos, uma vez ao menos, tratá-lo como humano, talvez
demasiado humano, tão-só como humano, um igual a nós em toda sua plenitude:
humano, nada mais do que humano?
Dito de outra forma: e se nos humanizássemos!?
“Mas parece que há no mundo um tipo de felicidade ao contrário,
uma felicidade escura, que as pessoas sentem ao fazer mal uma às outras – e
parece que se sentem muito bem agindo assim” (Amós Oz, “De Amor e Trevas”, p.
204).
Nono
“O nojo da sujeira pode ser tão grande que nos impeça de nos limparmos – de nos “justificarmos” (Nietzsche, “Além do Bem e do Mal”, 119, p. 67).
Sinto, e apenas sinto, que no palco judicial há verdadeiro asco do
acusado. É muito possível, é muito provável, que esteja enganado – quero estar
enganado, preciso estar enganado.
Tal sentimento me assola – repito: devo estar enganado – pela
forma com que muitas vezes nos referimos aos acusados nas decisões: eles
representam o mal que precisamos eliminar.
Agora, nos últimos tempos, com o sistema de gravação das
audiências onde tudo, absolutamente tudo fica registrado (as expressões, os
termos), é possível isso constatar com maior clareza: eventualmente, os acusados
são literalmente ofendidos – aliás, espetacular covardia porque usamos do cargo, da
toga, do local de fala, de toda a estrutura que o poder oferece para ofender: fora do
palco judicial, só nós e o acusado, teríamos coragem de assim proceder?
Mas como disse Nietzsche, talvez o nojo da sujeira nos impeça de
nos limparmos. A sujeira do outro diz com a nossa própria sujeira – se não dissesse,
não haveria razão para o asco que sentimos dele.
Aliás, a psicóloga Maíra Marchi Gomes ensina que “eu tenho nojo
exatamente daquilo que eu sou”. Ou seja, nós os “homens bons”, aqueles que
Zaratustra diz que lhe inspirou o “horror ao homem”, projetamos no outro (e este
outro está ali no banco dos réus) exatamente aquilo que, em mim, é odiado.
E esse asco, de tão forte que é, de tão agressivo que é, de
constituinte que é, não deixa que eu me limpe: olhe exatamente para dentro de mim,
que eu constate que ele, o acusado, humano, demasiado humano que é,
exatamente igual a mim o é. A única diferença é o local onde ele senta na sala das
audiências.
A característica de nós moralistas de plantão é exatamente esta: o
que eu penso que há de podre em mim é desmascarado pelo que eu imagino que há
de pobre no outro, mas, para reafirmá-lo, preciso negá-lo, afirmando-o no outro.
Eu preciso do nojo do outro para poder sobreviver ante a nojeira que
está em mim e que me permite, então, não me limpar.
O que estou procurando dizer – talvez não conseguindo – é o
seguinte: todos nós temos nossa carga de “nojeira” nos assustando (como a de
“limpeza”) e não logramos deixar a nojeira do outro no outro e a nossa em nós
mesmos: cada um procurando limpar a sua.
Não somos faxineiros sociais: no máximo, somos de nós mesmos.
Quando eu me compreender como humano (logo, perceberei que o outro também o
é), a raiva do acusado será superada e o réu será julgado e tratado como pessoa
(fim) e não como meio (coisa).
Talvez, neste momento, a compreensão da sujeira permita que
limpemos a nós mesmos.
Décimo
“Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você” (Nietzsche, “Além do Bem e do Mal”, 146, p. 70).
Talvez neste aforismo nietzschiano esteja a fundamentação
suficiente para que não se adote o sistema inquisitório no processo penal – é
espantoso como Nietszche diz muito em poucas palavras: ele mesmo reconhece
isso: “minha ambição é dizer em dez frases o que qualquer outro diz em um livro – o
que qualquer outro não diz em um livro” (“Crepúsculo dos Ídolos”, p. 100, grifo no
original).
Sabe-se que o inquisitório – por tantos e tantos, embora
mascaradamente, defendido – tem por característica exatamente investir o juiz de
poderes para a busca da mítica “verdade real', ingressando no processo com o
objetivo de extraí-la a qualquer preço, mesmo que transforme o acusado em “objeto”
do saber a ser alcançado, destituindo-lhe da condição de sujeito, ao permitir que ele
produza provas de ofício (quem procura já tem claro, de antemão, o que quer
encontrar) – ter a gestão da prova. A negação, pois, de um processo penal de
partes.
Isso gera, então, uma relação incestuosa entre acusador e julgador:
ambos aliados para o mesmo fim – a higienização social. O acusador assume status
superior ao da defesa (desigualdade de partes).
Apesar dos avanços doutrinário e legislativo, ainda vigora no nosso
senso comum o primado do inquisitório: a neurose do poder (relembrar a máxima de
Nietzsche já debatida: o poder imbeciliza) impõe na sua racionalidade que o juiz não
seja ente “passivo”, mas sim “atuador”, buscador, desbravador, ser acima das
partes, com um dever divino: destrinchar a “verdade” (como se isso fosse possível:
por todos ver Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (“Glosas ao Verdade, Dúvida e
Certeza, de Francesco Carnelutti, para Operadores do Direito”), re-descobrir o que
aconteceu, exatamente como aconteceu, quando aconteceu, como ele deseja que
tenha acontecido, para que o mal seja destruído, debelado, extirpado da “boa”
sociedade.
Ou seja, no inquisitório, o juiz está a combater, com todos os meios
possíveis, a monstruosidade criminosa. Somos transformados em Erínias da
mitologia grega: “...divindades da vingança e do ódio que perseguiam os culpados
de crimes cometidos no coração das famílias e lhes aplicavam tormentos e torturas
abomináveis” (Luc Ferry, “A Sabedoria dos Mitos Gregos”, p. 53).
“Combater a monstruosidade, de tanto olhar fixamente o abismo”,
será que não nos transformamos mesmo em monstros como fala Nietzsche? Não
ficamos exatamente iguais àqueles que buscamos destruir?
Para combater o monstro, necessito conhecer o monstro, sua fala,
seu modo de agir, seu olhar, seu vestir, enfim, tenho que entrar “na cabeça” do
monstro: findo utilizando da sua mesma lógica, da sua argúcia, termino sendo tal
qual ele! Ou não? Temo que sim!
E se eu combato o monstro, se ele é meu inimigo, se preciso
destruí-lo, que sentido tem preservar seus direitos, suas garantias processuais?
Como e por que o tratar com dignidade, afinal é monstro a ser
aniquilado?
Qual o sentido de reduzir os danos que o “monstro” sofre durante o
processo, no momento da aplicação da pena e no da sua execução, se não estamos
tratando com pessoas?
Talvez, e tão-somente talvez, isso explique a nossa omissão –
covarde e insuportável – com o que acontece nos presídios, com os “monstros” que
para lá mandamos e mandaremos mais e mais: a monstruosidade é infinita!
Mas, como é difícil explicar isso: “No fim das contas ninguém pode
captar nas coisas, incluídos os livros, mais do que ele mesmo já sabe” (Nietzsche,
“Ecce Homo”, p. 71).
Décimo-primeiro
“Não há salvação para o juiz covarde” (Rui
Barbosa, “O Justo e a Justiça Política”).
Encontrei, faz uma década, num aeroporto brasileiro, um cidadão de
origem chinesa. Ao saber que eu era juiz ele disse: “a sociedade brasileira cuida
bem dos seus juízes”.
De fato, os nossos vencimentos, comparados com os de outros
países latino-americanos, causa inveja: estamos no topo da pirâmide social.
As garantias constitucionais são fortes: vitaliciedade,
inamovibilidade, irredutibilidade dos vencimentos.
Além disso, o status social conquistado é importante: no cume do
ambicionado pela classe média.
Todavia, essas garantias – importantes, por certo – são destinadas a
dar independência aos juízes, mas no interesse do jurisdicionado (e tão-só dele) e
jamais no do próprio juiz. Tenho as garantias para que o ato de julgar seja oriundo
da livre consciência, dos fatores legitimadores da decisão.
Em outras palavras: que elementos outros, políticos, financeiros,
econômicos, burocráticos não abalem a boa decisão – nem mesmos aqueles
emergentes da própria estrutura interna do Poder Judiciário.
É que, vezes, muitas vezes, o juiz é o defensor do um contra os
interesses da maioria, quiçá da unanimidade. Por isso, exatamente por isso, o juiz
não é eleito: sua legitimação não se dá pela vontade da maioria, como acontece nos
outros dois poderes – há o dever de proteção do um contra todos os poderes,
inclusive do próprio judiciário.
O cidadão, a cidadania, necessita de juízes independentes, de juízes
livres – evidente que não liberdade total: os lacanianos ensinam que somente o
louco é totalmente livre: não internalizou a “Lei”, identifica o outro como objeto do
seu próprio desejo.
Sabemos que muitas vezes, nós juízes, miramos neuroticamente as
garantias, como se fossem outorgadas em nosso próprio benefício, no nosso
interesse pessoal!
Em outras palavras, agora na direção do que Rui disse: as garantias
são outorgadas para que o juiz não seja covarde; para este, não há salvação porque
o sistema tudo faz para que ele assim não seja – é covarde porque quer ser!
No entanto, apesar, repito, de todas as garantias que temos, a
covardia, por vezes, nos alcança.
O crime, a delinquência, gera fascínio por instigador espetacular do
medo que nos move – quer me parecer que o medo nos constitui: as histórias
infantis para adormecer e acalmar, com incrível frequência, estão fundadas no
medo, somos ninados pelo “boi da cara preta”, “o velho do saco”, “a bruxa malvada”,
para, então, buscar acalanto, proteção, no colo materno. Ao não-ser mais criança,
quando o medo emerge, não procuramos mais os braços da mãe, mas buscamos
que o pai-Estado-vingador nos proteja.
A mídia apropria-se bem do medo – aspecto mais primário do
cidadão – e a violência transforma-se em espetáculo: o populismo punitivo vem a
reboque.
Todos querem “exemplar” e “rápida” punição do “mau”, se possível
sua execução. Acontece um crime e contra o possível autor todos se unem: contra
ele, tem-se a polícia que necessita encontrar culpados (ora, para isso ela existe);
contra ele, tem-se o ministério público que precisa denunciar; contra ele, tem-se o
judiciário que precisa condenar; contra ele, tem-se a mídia que necessita do
espetáculo; contra ele, tem-se toda a sociedade que precisa aplacar seu medo; em
favor dele, apenas um: o advogado, que ainda sofre preconceito por ousar defender
o um contra todos – aliás, ele preconceito sofre entre os próprios advogados.
Este o pano de fundo do espetáculo penal.
Ora, decretar a prisão de uma pessoa quando todos querem,
absolutamente todos querem, qualquer um o faz – basta fundamentar na retórica da
“gravidade do crime”, na existência do “clamor social”, para aplacar “o sentimento de
impunidade”. Sequer há necessidade, por exemplo na prisão preventiva, de
demonstrar objetivamente, com dados sérios, concretos, a imperiosa necessidade
prisional de um cidadão historicamente localizado.
Agora, para dizer “não” aos anseios de todos, ou seja, preservar os
direitos do um contra a vontade de todos, preciso é que as garantias – proteção
constitucional que temos – sejam utilizadas sadiamente, que se tenham “juízes em
Berlim”. Não basta que a unanimidade queira a prisão: nossa função não é agradar
a massa, mas preservar, custe o que custar, as garantias do cidadão – seja quem
for, seja qual for o delito cometido.
Ainda que para isso tenha que se pagar caro: “el ethos del juez debe
estar orientado por la justicia a toda costa, aun la de la propia vida” (Radbruch,
Schmidt, Welzel, “Derecho Injusto y Derecho Nulo”, p. 19).
O sentido das garantias? Proteger o “um” que faz presentes os
direitos do “outro um” que não tem garantias (as garantias dele são as do juiz) contra
o poder do mais forte. Aqui o momento de não sermos covardes, aqui a razão das
garantias tão refinadas que conquistamos, aqui a necessidade de sermos juízes em
sua plenitude.
“E vou falar, ao menos para ele, que nunca teve o direito a seu lado:
porque o direito – ouviu bem? – está do lado dos que sofrem, gemem e esperam.
Não está, não pode estar, com quem acumula e calcula” (Albert Camus, “Estado de
Sítio”, p. 110).
Décimo-segundo
“Sempre julgou com ódio enfeitado com o nome da lei. Mesmo as melhores leis adquiriram um gosto amargo na sua boca; a boca azeda de quem nunca amou... deixe viver este homem da lei para quem a vida é uma punição” (Albert Camus, “Estado de Sítio”, p.111).
Faz mais de vinte anos quando eclodiu na nossa realidade o
Movimento do Direito Alternativo, que tinha, entre seus postulados, a cata
incessante do valor justiça nos julgamentos, para além, muito além, da legalidade
estrita, porque movimento a procura de “instrumental prático-teórico destinado a
profissionais que ambicionam colocar seu saber-atuação na perspectiva de uma
sociedade radicalmente democrática” (ver meu “Direito Alternativo – Teoria e
Prática”, p. 50).
É a busca do justo (não neutro, mas comprometido com o débil)
aqui-e-agora, abandonando o positivismo legalista, cansativamente repetidor, que
impera no meio jurídico, em permanente desconstrução do im-posto pelo senso
comum, ou seja, “para ser justa, a decisão de um juiz, por exemplo, deve não
apenas seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve assumi-la, aprová-la,
confirmar seu valor, por um ato de interpretação reinstaurador, como se a lei não
existisse anteriormente, como se o juiz a inventasse ele mesmo em cada caso. Cada
exercício da justiça como direito só pode ser justo se for um “julgamento novamente
fresco”, por assim dizer”... “Cada caso é um caso, cada decisão é diferente e requer
uma interpretação absolutamente única, que nenhuma regra existente ou codificada
pode nem deve absolutamente garantir” (Jacques Derrida, p. 44).
Na suma, o movimento sempre mirou com desconfiança a legalidade
– ato do poder que, já o disse, tende ao abuso.
Já se alertava que, em positividade combativa, se deveria travar
autêntica guerrilha no espaço jurídico “para que as conquistas democráticas que já
foram erigidas à condição de lei tenham efetiva concretização, ante a crescente
tendência do descumprimento das normas que representam vitórias populares”
(“Direito Alternativo – Teoria e Prática”, p. 60).
Mas, algo mudou?
Não, desde meu olhar, não: no Direito Penal (e aqui só trato dele)
ainda temos a tendência de não aplicar as leis que beneficiam o condenado: o
exemplo estarrecedor – já tratado no capítulo “Três” – está na sistemática, concreta,
insuportável, negativa da Lei de Execução Penal nos momentos, vitais momentos,
em que beneficia os condenados.
O “ódio enfeitado com o nome da lei”, faz com que mesmo “as
melhores leis adquiram um gosto amargo na sua (minha) boca”: ou simplesmente
não se a aplica ou se aplica de tal forma restritivamente que perde seu significado –
apesar da nova redação do artigo 112, da Lei de Execuções Penais, ainda hoje
exigimos exames criminológicos para a concessão de progressão de regime
carcerário: coloca-se na “boca da lei”, através da “boca azeda de quem nunca
amou”, requisito que a lei não exige, tudo para dificultar a liberdade (ainda que
condicionada e não definitiva – a qualquer momento pode ser revista) do apenado.
E o fazemos “duplamente satisfeito, pois será em nome da lei e do
ódio” (Camus, p. 110). Assim, não devemos nos sentir agredidos quando vier dos
apenados o reclamo: “Cuspo na sua lei. E olhe que eu tenho o direito a meu favor: ...
o direito dos culpados ao perdão e dos arrependidos a serem honrados! Sim, cuspo
na sua lei” (p. 109) mesmo porque “você não pode decidir tudo. A dor também tem
direitos” (p. 104).
Racionalmente, quer me parecer que Bauman (p. 9) tem razão: “Os
estudiosos, como assinala Khun, buscam fenômenos que a descrição
preestabelecida da realidade (chamada por ele de ‘paradigma’) em que foram
treinados os orienta a notar e registrar como ‘relevantes’. Concentrando sua atenção
sobre objetos e eventos ‘legitimados’ dessa maneira pelo paradigma, eles deixam de
reparar, ou dispensam e colocam de lado todos os fenômenos que ‘não se
encaixam’, tratando-os como irrelevantes ou anomalias ‘bizarras’”.
Não se “encaixam” nos nossos paradigmas os benefícios do “outro”,
os direitos dos presos são “irrelevantes” (“ora, direitos dos delinquentes, ora já se
viu, quando a população pobre sequer tem o que comer ou onde morar”), são
anomalias bizarras que os defensores dos direitos dos bandidos querem impor!
A dúvida que tenho – além da explicação racionalizante – é de
cunho afetivo-psicológico: quais os efeitos da “tortura” em nós os “torturadores
indiretos”? Quais os efeitos na nossa “boca azeda”? Na boca de quem tem (?) a
possibilidade de amar?
Décimo-terceiro: conclusão?
“Sugiero que la prueba definitiva del trabajo de los magistrados, debe ser la bondad” (J. Skelly Wright, citado por John Hart Ely, “Democracia y Desconfianza”, p. 64). Mas, ainda assim, não se pode esquecer a advertência precisa do precioso Agostinho Ramalho Marques Neto: “quem vai nos preteger da bondade dos bons?”. Por certo, não se fala
aqui dos bons de que trata Zaratustra, aqueles que lhe causaram horror ao homem…
Nada mais a dizer!
verão de 2011.
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* Amilton Bueno de Carvalho – Desembargador Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.** O título, como todos operadores jurídicos têm conhecimento, é inspirado na clássica obra de Piero Calamandrei, “Eles, os Juízes, vistos por um advogado”.
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