elementos de capoeira na preparação corporal do ator
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ELEMENTOS DE CAPOEIRANA PREPARAÇÃO CORPORAL DO ATOR
por
MARCO ANTONIO DORNELLES BREDA
Centro de Letras e Artes
Dissertação de Mestrado em Teatroapresentada à Coordenação do Mestrado em Teatro da Universidade do Rio de Janeiro – (UNI-RIO)
Orientador:Professor Doutor Luiz Arthur Ferreira Freire Nunes
Rio de Janeiro, março de 1999
“Salve São Salvador!
Salve a Ilha de Maré!
Salve o Mestre quem me ensinou
a mandinga de bater com o pé.
Mandingueiro,
cheio de malemolência
ele era…
Era meu mestre, ligeiro,
que jogava conforme a cadência
do pandeiro e berimbau…”
(cântico de Capoeira)
A Sérgio Sacramento (Mestre Garrincha), meu mestre na arte da Capoeira.
A Luiz Arthur Nunes, meu mestre no arte do Teatro.
A Siro Breda, meu pai (in memorian), meu mestre na arte da Vida.
Pela confiança, pela paciência,
e pelo imenso carinho e sabedoria
ao guiar meus passos.
ii
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
- Ao Professor Angel Palomero, parceiro desde sempre, pela inestimável
orientação acadêmica,
- Ao Professor Antonio Negreiros, meu preparador corporal há quase dez anos,
- À Maria Breda, minha mãe, pelo amor e dedicação de toda uma vida.
- À Cynthia Boghossian, que temperou com amor as longas noites ao teclado do
computador.
- À Rosália Milsztajn, minha analista, que me mostrou que já sou adulto o
suficiente para defender uma tese de mestrado.
iii
AGRADECIMENTOS
- À CAPES, pela viabilização deste projeto de pesquisa,
- À Coordenação (e professores) do Mestrado em Teatro do Centro de Letras e
Artes da Universidade do Rio de Janeiro, UNI-RIO,
- A Ana Kfoury, Angel Vianna, Deborah Colker, Márcia Rubin e Nara
Keiserman (do RJ); Ariela Goldman, Renata Mello e Vivien Buckup (de SP),
pelas entrevistas sobre preparação corporal,
- A Stela Miranda, Maria Helena Lopes e Mário Borges, pelas entrevistas sobre
Jacques Lecoq,
- A Augusto José Fascio Lopes, pela gentil permissão de cópias das fotos de seu
livro.
- Ao grupo LUME (UNICAMP), pela atenciosa acolhida,
- A Luis Otávio Burnier (in memoriam), pela inspiração,
- A Richard Nichols, pelo artigo que serviu de embrião para esta dissertação,
- A José Henrique Moreira, pelas preciosas cyber-dicas virtuais,
- À Beti Rabetti, pelas generosas e acertadas observações,
- A Travis Baumgardner, pela revisão de língua inglesa do Abstract desta tese,
- A André Monteiro, pelo excelente ( e gratuito) trabalho de computação gráfica,
- A Zeca Ligiéro, pelos esclarecimentos e bibliografia adicional sobre Capoeira,
- A todos os profissionais de preparação corporal com quem trabalhei,
- A todos os mestres e colegas da Capoeira com quem tive o privilégio de jogar.
iv
SINOPSE
Reflexão sobre as possibilidades de aproveitamento da Capoeira nas atividades de
preparação corporal do ator brasileiro. Investigação sobre o universo da
preparação corporal no Brasil. Breve estudo do universo da Capoeira e suas
múltiplas especificidades como dança/luta/jogo. Um estudo comparativo da “luta
desarmada” da escola de Lecoq e suas similitudes com a prática da Capoeira.
Defesa da inclusão da Capoeira no currículo das escolas e instituições de ensino
superior de teatro no Brasil.
v
ABSTRACT
A reflection about the possibilities of the use of Capoeira in the movement training
of the brazillian actor. Investigation of the universe of movement training in
Brazil. A brief study of the Capoeira “world” and its multiple specifications as a
dance/fight/game. A comparative study of the empty-handed combat from the
Lecoq school and its similarities with the Capoeira praxis. The requirement of
Capoeira inclusion in the curricula of Drama schools and universities in Brazil.
vi
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA………………………………………………………………… ii
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS………………………………………..…. iii
AGRADECIMENTOS…………………………………………………………. iv
SINOPSE………………………………………………………………………… v
ABSTRACT…………………………………………………………………….. vi
SUMÁRIO……………………………………………………………………... vii
ICONOGRAFIA COMPARATIVA………………………………………… viii
1 - INTRODUÇÃO……………………………………………………………… 1
2 - A CAPOEIRA………………………………….. …………………………… 7
3 - A PREPARAÇÃO CORPORAL DO ATOR……………………...……… 20
4 - A CAPOEIRA NA PREPARAÇÃO CORPORAL DO ATOR………….. 26
5 - CONCLUSÃO……………………………………………………………… 51
6 - BIBLIOGRAFIA…………………………………………………………… 56
ANEXO I – Entrevistas com preparadores corporais
ANEXO II – Material iconográfico suplementar
ANEXO III – Artigo Richard Nichols
vii
ICONOGRAFIA COMPARATIVA
Para efeito de comparação com ilustrações da prática da Capoeira, temos
aqui material iconográfico referente a artes marciais orientais, o treinamento de
atores no Odin Teatret e ainda ilustrações de Commedia dell’Arte, todas retiradas
do livro A Arte Secreta do Ator, de Eugênio Barba e Nicola Savarese.
Guia das Ilustrações:
1) Arlequim numa gravura de Recueil Fossard.
2) “Guarda” de Angola vista de frente (A) e de perfil (B). Rabo-de-arraia (C).
3) Em cima, a “ponte” nos exercícios de treinamento no Teatro-Laboratório de
Grotowski; em baixo, à esquerda, alunos de Kathakali na Escola
Kalamandalam (Kerala, Índia) no exercício da “ponte”; embaixo à direita,
dançarina egípcia: desenho numa pedra encontrada na Saqqara mastaba.
4) Saída do pé do berimbau em “ponte”. Início de jogo.
5) Atriz numa demonstração de seu treinamento inicial no Odin Teatret (ISTA de
Holstebro, 1986).
6) Saída do pé do berimbau em “queda de rim”.
7) Combate de bastões entre dois praticantes de Kalaripayattu, a arte marcial de
Kerala (Índia).
8) Ilustração de dois capoeiristas jogando Maculelê com facões.
9) Treinamento acrobático nos anos iniciais do Teatro-Laboratório de Grotowski.
10) Acrobacia em situação de jogo na roda de Capoeira.
Obs.: As ilustrações 1, 3, 5, 7 e 9 foram extraídas do livro A Arte Secreta do Ator
As ilustrações 4, 6 e 10 são do livro Curso de Capoeira em 145 Figuras.
As ilustrações 2 e 8 pertencem ao livro Galo já Cantou.
viii
ix
x
xi
xii
xiii
1 - INTRODUÇÃO
“Apesar de ser uma arte magnífica, o ballet não é adequado a nós, artistas
dramáticos. Precisamos de algo mais. Precisamos de outra plasticidade,
outra graça, outro ritmo, outro repertório de gestos, outra forma de andar e
outra forma de movimento.”
O objetivo da nossa pesquisa é realizar o levantamento, análise e
sistematização dos elementos do jogo de Capoeira, com o intuito de especificar,
contextualizar e exemplificar formas de utilização possíveis no processo de
treinamento corporal do ator.
Ainda muito pouco utilizada (se comparada com outras atividades como
esgrima, ginástica acrobática ou dança) como complementar à disciplina básica de
Expressão Corporal na formação do ator brasileiro contemporâneo, a Capoeira é
um conjunto de habilidades difícil de ser enquadrado em uma definição
simplificadora. É considerada uma mistura de luta, dança e jogo, apresentando
vários elementos de cada uma destas áreas (bem como música, ritual e mímica). É
também manifestação religiosa, profundamente impregnada dos mesmos
elementos presentes no Candomblé e na Umbanda, como a reverência às forças da
Natureza, o culto aos antepassados e até mesmo a mediunidade. Diferencia-se em
muito do Karate, T’ai chi, Kung fu ,Jiu-jitsu ou Tae kwan do, embora também
possa ser considerada como arte marcial ou defesa pessoal. No entanto cremos que
pode ser utilizada, no teatro, num âmbito bem maior do que simplesmente a
coreografia de uma cena de luta.
xiv
Trazida pelos escravos negros na época da colonização das Américas e
praticada, naquele tempo, tanto como jogo como meio de defesa contra seus
opressores, ao longo de mais de três séculos a Capoeira transformou-se.
“Nascida na escravidão, desenvolvida na marginalidade, desconhecida do grande público, à margem das verbas oficiais para eventos artístico-culturais, nos últimos anos a Capoeira alastrou-se por todo o Brasil, chegando a fazer cabeça-de-ponte em Nova Iorque, San Francisco, Paris, Amsterdam, Londres e Tóquio.
Sua linguagem corporal é sofisticadíssima, mas a raiz, o “fundamento”, é a intuição, o improviso e a criatividade. Na Capoeira os opostos se encontram; luta e brincadeira, golpes e poesia, manejo de navalha com toques de berimbau e cantos. E é no meio dessa riqueza, dessa diversidade de fatores que o jogador faz sua cabeça e se torna um mestre, indo influenciar toda uma nova geração através de seu estilo de jogo e sua forma de viver.” 1
Considerada a única arte marcial genuinamente brasileira (embora isto não
seja totalmente verdadeiro, como veremos mais adiante) a Capoeira vem a cada
dia conquistando mais adeptos, no Brasil e em vários outros países. As razões
dessa expansão são as mais variadas. Além de ser um esporte altamente lúdico,
capaz de tornear músculos ao mesmo tempo em que nutre serenidade e auto-
estima, a Capoeira pode ser praticada a um custo extremamente reduzido. Todos
os artefatos utilizados no jogo (pandeiro, atabaque, berimbau e outros acessórios,
incluindo o vestuário simples) podem ser - e freqüentemente são - manufaturados
artesanalmente a partir de materiais rústicos. Sequer exige um lugar especial para
suas aulas, podendo- se realizar uma roda em quase todo tipo de local. É hoje
praticada em favelas, escolas, ruas e academias, por pessoas de todas as classes
sociais. Faz parte, inclusive, do currículo de algumas universidades como, por
exemplo, a Escola de Dança da UNICAMP.
1 CAPOEIRA, Nestor. Galo já Cantou. Rio de Janeiro, Cabicieri Editorial, 1985.
xv
Por outro lado, os cursos de formação e aperfeiçoamento de atores, em
vários países, sempre pesquisaram e se apropriaram de todo tipo de técnica -
mesmo aquelas não especificamente teatrais - que pudesse ser útil na preparação
inicial de seus alunos e na posterior manutenção e desenvolvimento das
habilidades específicas adquiridas através do treinamento. Buscou-se, desde
sempre, obter a almejada disponibilidade e integração corpo/mente do ator;
antigamente através de elementos de acrobacia, esgrima, técnicas circenses,
prestidigitação, luta livre, boxe, ginástica, dança, etc. e, mais recentemente,
também através de elementos de Ioga, T’ai chi, técnicas de Alexander ou Laban,
Jiu-Jitsu, Kempo, dentre várias alternativas.
Por que não incluir a Capoeira nesta listagem? Um exame mais detalhado
revela um número expressivo de habilidades físicas e/ou psicológicas, desejáveis
na preparação do ator, que poderiam ser desenvolvidas com o auxílio da prática da
Capoeira.
Obtém-se, em primeiro lugar, o desenvolvimento de aspectos mais
caracteristicamente corporais, tais como força, flexibilidade, reflexos, resistência
aeróbica e anaeróbica, explosão, impulsão, agilidade, coordenação motora,
equilíbrio, postura e respiração.
Desenvolvem-se também aspectos mais relacionados à percepção, à
sensorialidade e à criatividade; noção de ritmo, capacidade de improvisação,
consciência corporal (acompanhada de ampliação da capacidade expressiva do
próprio corpo, através de uma movimentação plena de significados simbólicos,
xvi
como veremos em seguida), precisão e bom acabamento gestual, eficiência
(máximo efeito com menor esforço), sensibilidade, autoconfiança, relaxamento,
prontidão e disciplina, só para citar alguns.
A Capoeira aguça o que chamaríamos de “sensibilidade cinética”,
otimizando a percepção difusa, estereoscópica, do espaço (foco puntual e atenção
global, como na situação tensionante da cena), estreitando a ligação entre emoção
e movimento, intenção e gesto, tão importante na preparação do ator. Promove
também um tipo excepcional de comunicação e interação entre os parceiros o que,
em termos dramáticos, pode traduzir-se em melhor contracenação.
A prática da Capoeira, por suas características “ritualístico-corporais”, pode
ainda ser de imenso valor na liberação, reconhecimento e integração de conteúdos
emocionais inconscientes (de forma análoga à Biodança, por exemplo), levando o
ator a desenvolver uma melhor auto-imagem em relação a suas capacidades
efetivas e potencialidades latentes. De acordo com a tradição oral que permeia sua
prática, “aquilo que se é numa roda de Capoeira, se é também na vida…”. Este
jogo pode, enfim, ser útil na transformação e eliminação de padrões de
comportamento cristalizados e inibidores de uma expressividade mais espontânea
e verdadeira.
Entretanto, talvez mais do que qualquer outra característica de utilidade
para a preparação do ator, a Capoeira parece ser uma atividade na qual realiza-se
um simulacro/ equivalente físico do processo de improvisação teatral. Ao som de
uma seqüência rítmico-musical (que deve respeitar e com a qual deve interagir), o
xvii
jogador entra na roda e propõe um movimento. Este movimento é imediatamente
absorvido e respondido pelo parceiro, gerando um novo movimento que será
igualmente absorvido e respondido pelo primeiro, em encadeamentos sucessivos e
imprevisíveis. Nenhum dos jogadores-lutadores-dançarinos detém o controle de
uma suposta “partitura coreográfica”. Ambos estão à mercê da confiança que
depositam um no outro e da capacidade individual de responder criativa e
adequadamente a estímulos externos e internos em constante mutação. Ao mesmo
tempo devem estar absolutamente concentrados, não somente no(a) jogo-luta-
dança, como também no já mencionado acompanhamento rítmico-musical variável
que dita seu andamento. O jogo não tem um “fim”. Os praticantes devem estar
permanentemente de prontidão, disponíveis para a contínua e imprevista
renovação dos parceiros e atentos à movimentação na roda (bem como dentro e
fora da mesma). Qualquer participante pode comprar o jogo em andamento (ou ser
instruído pelo mestre ou professor a tomar tal atitude), assumindo o lugar de um
dos parceiros que estão na roda. Situação idêntica ocorre no jogo improvisacional,
onde o ator deve estar igualmente atento à possível inclusão de novos parceiros,
novos elementos ou mesmo novas instruções do diretor que acompanha o
exercício.
Em vista desses argumentos, defendemos a idéia de que a Capoeira pode ser
de grande utilidade na preparação do ator, notadamente do ator brasileiro. Trata-se
de uma manifestação cultural altamente popular, refletindo o substrato social onde
evoluiu. Já se disse à exaustão que toda forma de arte encontra-se
xviii
inseparavelmente ligada ao contexto no qual se formou. O teatro, evidentemente,
não foge a esta regra. Sendo o ator a base do teatro, elemento a partir do qual tudo
o mais deriva, deve ser proporcionada a ele a oportunidade de trabalhar também
com elementos de sua própria cultura popular, inesgotável cornucópia de onde
jorra a matéria-prima teatral de todas as épocas e nações.
Não estamos, com isso, negando aqui a utilidade do enorme conjunto de
técnicas já existentes, provenientes de várias sociedades em diversos períodos da
História. Defendemos, isto sim, a possibilidade da Capoeira ser incluída neste
amplo leque de instrumentos. Definir alguns parâmetros e procedimentos que
podem tornar essa inserção possível (sem a pretensão de criar uma metodologia ou
sistema de treinamento) vem a ser precisamente o objetivo deste trabalho.
xix
2 - A CAPOEIRA
Não temos aqui a pretensão de realizar um estudo aprofundado e abrangente
sobre a Capoeira e suas múltiplas facetas. Não é este nosso propósito no presente
trabalho. Faremos apenas uma breve introdução sobre suas origens e evolução
histórica (ressaltando as diferenças entre Capoeira Angola e Capoeira Regional)
para então focalizar nossa atenção no funcionamento do jogo propriamente dito e
nos seus processos de ensino e aprendizado.
Existe uma grande controvérsia sobre as verdadeiras origens da Capoeira. Para
investigar os primórdios do que se conhece hoje como a “arte marcial brasileira”, é
necessário retornar à época do tráfico de escravos negros e a conseqüente
imigração forçada de milhões de africanos para o continente americano. Segundo o
estudioso Daniel Dawson,
Centenas de comunidades, formadas por escravos africanos libertos,
estabeleceram-se por toda a América. (...) Muitas destas comunidades tinham seus
próprios sistemas de defesa pessoal ou artes marciais que, evidentemente, tiveram
suas origens na África. (…)
Do norte ao sul da África existiam – e ainda existem – centenas de estilos de
luta que enfatizavam a habilidade, técnica e inteligência em detrimento da força
bruta. Uma destas artes marciais, capoeira angola, ainda é jogada no Brasil hoje em
dia.
Como o próprio nome sugere, a busca pelas origens da capoeira angola deve
começar pela própria Angola. (…) O falecido Vincente Pastinha, o famoso mestre
brasileiro de capoeira angola, declarou certa vez que seu próprio mestre, um
africano de Angola chamado Benedito, havia lhe dito que a capoeira desenvolveu-se
a partir da dança n’golo (…), a “dança da zebra”, acrobática, praticada por homens
xx
jovens da tribo Mucope, na Angola (…). Conclui-se que a capoeira angola começou
na África Central e foi trazida para o Brasil como uma arte já formada, uma fusão de
elementos de dança, música, teatro e ritual. A capoeira pode ter evoluído muito
desde sua chegada no Brasil, mas sua origem é africana.3
Existem, no entanto, outros autores (como Almir das Areias, por exemplo) que
afirmam que “a Capoeira é uma invenção de africanos no
Brasil”. Após a leitura comparativa de várias fontes, preferimos adotar a idéia de
que a Capoeira é uma tradição afro-brasileira. Uma arte que teve seu berço na
África, sendo posteriormente recriada no Brasil com quase os mesmos elementos
de sua longínqua origem.
Na época do Brasil escravagista, a Capoeira Angola era considerada ilegal e
sua prática era freqüentemente punida com a morte. Não são poucos os
historiadores que mencionam sua utilização pelos escravos negros como uma
forma de defesa contra seus opressores. Mesmo após a abolição da escravatura, em
1888, a Capoeira Angola continuou sendo considerada atividade fora-da-lei,
embora já fazendo parte da estrutura social brasileira. Era praticada por africanos, 33 Hundreds of societies were established throughout the Americas by Africans who had freed themselves. (…) Many of these societies had their own system of self-defense or martial arts which, not surprisingly, had their origins in Africa. (…)
From the top of northern Africa to the bottom of southern Africa there were and still are hundreds of fighting styles that emphasized skill, technique, and intelligence over brute force. One of the martial arts that sprang from these, capoeira angola, is still played in Brazil today.
As its name suggests, the search for the origins of capoeira angola should start in Angola. (…) The late Vincente Pastinha, the famous capoeira angola master of Brazil, stated that his own teacher, a man from Angola named Benedito, told him that capoeira was developed from the n’golo dance (…), an acrobatic zebra dance performed by young males of the Mucope people of Angola. (…) you come to the general conclusion that capoeira angola began in Central Africa and traveled to Brazil as an already formed art, a fusion of the elements of dance, music, theater, and ritual. Capoeira may had evolved once it arived in Brazil, but its origin is African. (tradução nossa)DAWSON, Daniel. “Capoeira: An Exercise of the Soul” IN Revista Icarus n 13. New
York, The Rosen Publishing Group, Inc., 1994 (p. 15 e 16).
xxi
europeus e mestiços, em sua esmagadora maioria pertencentes a classes sociais de
menor poder aquisitivo. Um interessante estudo histórico a respeito da organização
da Capoeira no Rio de Janeiro ao longo do século XIX pode ser encontrado no
livro A Negregada Instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro, de Carlos E. L.
Soares.
Antigamente o aprendizado da Capoeira Angola era realizado nas ruas, praças,
terreiros, etc. e não existia o mestre como profissão instituída. A transmissão era
efetuada, segundo a tradição oral4, de pai para filho e de amigo para amigo. Hoje
existem mestres e instrutores profissionais espalhados pelo mundo inteiro e o
aprendizado se dá mais freqüentemente nos clubes e academias, tendo
praticamente desaparecido o hábito das rodas de rua. Os famosos Mestre Pastinha
(Vincente Ferreira Pastinha, 1889 – 1981) e Mestre Bimba (Manoel dos Reis
Machado, 1899 – 1979) foram os mais notáveis mestres da Capoeira moderna no
Brasil, muito embora tenham tomado caminhos bastante divergentes.
Enquanto Pastinha era um legítimo (e brilhante) angoleiro, que incentivava
seus alunos na prática, filosofia e tradição da pura e tradicional Capoeira Angola
(com seus aspectos lúdicos e ritualísticos), Bimba foi o idealizador de uma
variante mais objetiva e agressiva. Tendo se formado na Capoeira Angola (seu
mestre era um angolano chamado Bentinho), Bimba combinou-a com elementos
de batuque, maculelê, luta greco-romana, jiu-jitsu, judo e savate, criando a
44 Para um aprofundamento da questão da tradição oral e as relações entre oralidade e literalidade sugerimosOKPEWHO, Isidore. African Oral Literature: Backgrounds, Character and Continuity. Indianapolis, Indiana University Press, 1992.(p. 3 a 5)
xxii
chamada Luta Regional Bahiana ou Capoeira Regional, na qual enfatizou o
aspecto de luta em detrimento dos elementos culturais africanos (que Bimba
considerava supérfluos).
Bimba “foi o primeiro mestre a abrir uma escola de Capoeira, em 1932. Seu
Centro de Cultura Física e Capoeira Regional foi também a primeira escola de
Capoeira reconhecida oficialmente pelo governo, em 1937. Acredita-se ainda que
foi o primeiro mestre que desenvolveu uma metodologia de ensino”5, codificando
um treinamento que antes era apenas uma tradição oral. Suas famosas oito
seqüências (ver Anexo II-A) são utilizadas até hoje em um sem-número de
academias espalhadas pelo mundo.
Cabe aqui ainda um pequeno estudo comparativo entre as Capoeiras Angola e
Regional. Para realizá-lo vamos citar as oito características que, segundo o
estudioso Alejandro Frigerio, qualificam a Capoeira Angola como arte. Ao
enumerá-las e explicitá-las vamos, ao mesmo tempo, sublinhando as diferenças da
Capoeira Angola em relação à Capoeira Regional, tendo como base estes oito
critérios.
1) MALÍCIA: um dos fundamentos da Capoeira Angola. A habilidade de
surpreender o adversário e, ao mesmo tempo, “fechar-se” e evitar ser
surpreendido por ele. O bom “angoleiro” está sempre “fechado”, preparado para
55 Fue el primer mestre en abrir una escuela de Capoeira, em 1932. Su Centro de Cultura Física e Capoeira Regional que fue tambiém la primera escuela de Capoeira reconocida oficialmente por el gobierno, em 1937. Se lo acredita también, en ser el primer mestre que desarrolló una metodologia de ensenanza. (tradução nossa)FRIGERIO, Alejandro. Capoeira: De Arte Negro a Deporte Blanco Comunicação no V Congresso Internacional Asociación Latinoamericana de Estudos Afroasiáticos. Buenos Aires, setembro de 1987. (p.9)
xxiii
os mais imprevisíveis movimentos de seu adversário. Ao mesmo tempo, lança
mão de picardia, fingindo estar desprotegido para contra-atacar da maneira mais
inesperada possível. Já na Capoeira Regional este é um aspecto que tem sido
bastante negligenciado. Enfatiza-se a velocidade, a força e os movimentos
acrobáticos, em detrimento da malícia e da picardia (embora ela continue
presente). A citada malícia só é aprendida, na Regional, após alguns anos de
prática, enquanto na Angola é uma das primeiras qualidades a serem
desenvolvidas.
2) COMPLEMENTAÇÃO: o angoleiro sempre se movimenta, ataca e defende em
função dos movimentos do outro jogador dentro da roda. Os jogadores jogam
muito próximo um do outro e todo e qualquer movimento de um é provocado pela
movimentação do outro. Joga-se e deixa-se jogar, sem que ocorra um choque que
quebre a harmonia do jogo de Angola. Já na Regional, tal característica é relegada
a um segundo plano. Os jogadores movimentam-se mais distanciados um do outro
e a sincronização do jogo é freqüentemente sacrificada em função da velocidade
dos golpes, das acrobacias e da espetaculosidade. O jogo é mais vistoso, mas com
um grau menor de “diálogo” entre os jogadores.
3) JOGO BAIXO: Angola é predominantemente (mas não totalmente) jogada num
plano baixo, com pelo menos uma das mãos em contato com o solo e desferindo-
se golpes a pouca altura. Há uma grande alternância entre a movimentação em
xxiv
planos alto, médio e baixo enquanto, na Regional, a movimentação é
preferencialmente realizada em plano alto.
4) AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA: os jogos de Angola são, antes de mais nada,
jogos. São uma paródia de combate que proporciona prazer e diversão aos
jogadores e à platéia. O objetivo é conseguir ludibriar a movimentação do
adversário e alcançá-lo (ou derrubá-lo) sem machucá-lo. É a primazia da sutileza
sobre a brutalidade, muito embora, eventualmente, o jogo possa se converter
também numa luta dura. Já na Regional, com sua ênfase no aspecto competitivo,
são mais freqüentes as lutas e a violência. Joga-se geralmente contra o adversário e
não com ele. Mas, atualmente, vários mestres de Regional têm reprimido esta
característica, re-enfatizando o aspecto lúdico.
5) MOVIMENTOS BONITOS: é um dos aspectos mais importantes de ambas as
vertentes da Capoeira. Mas com uma diferença fundamental: na Angola a beleza
do gestual é quase sempre subordinada à complementação e à malícia inerentes ao
jogo. Mais do que belos, os movimentos devem ser pertinentes ao jogo naquele
momento, não deixando o jogador que os executa desprotegido. Já na Regional é
muito comum o jogador interromper a fluidez do jogo (ou abrir a guarda,
tornando-se momentaneamente vulnerável) para realizar uma acrobacia, dada a
ênfase na espetaculosidade. Mas, tanto num caso como no outro, a beleza gestual é
fundamental.
xxv
6) MÚSICA LENTA: o ritmo da Angola é lento e cadenciado, comparado com a
Regional. Os gestos são geralmente mais elaborados e executados com maior
precisão, devido à menor velocidade. Tal característica permite que os jogos sejam
mais prolongados que os da Regional, no qual o desgaste físico é quase sempre
maior devido ao ritmo predominantemente acelerado.
7) IMPORTÂNCIA DO RITUAL: a Capoeira é um jogo com uma infinidade de
pequenas regras implícitas que devem ser conhecidas e respeitadas por todos os
participantes. Como “sair do pé do berimbau”, a maneira correta de “comprar o
jogo”, quando e como realizar uma “Chamada pro Passo-a-Dois” (ver Anexo II-
A), etc. Tais regras são valorizadas tanto na Regional como na Angola mas, nesta
última, seu número, complexidade e importância é ainda maior.
8) TEATRALIDADE: um dos aspectos mais antigos e, evidentemente, mais
importantes da Capoeira para o nosso estudo. A tradicional Capoeira Angola
apresenta inúmeros elementos de teatralização. Expressões faciais fingindo medo,
raiva, prazer, alegria ou surpresa, gestos de mãos ou pés distraindo a atenção do
adversário ou tentando induzi-lo ao erro, mimetismo de movimentos de animais,
imitações, canções gestualizadas, manifestações de religiosidade e até transes
mediúnicos (verdadeiros ou simulados) são elementos constitutivos do fascinante
universo da Angola. Na Capoeira Regional, com o enfraquecimento dos aspectos
da malícia e do ritual e a primazia da competição, esta característica ficou bastante
empobrecida.
xxvi
A descrição do jogo e seus processos de ensino e aprendizado que se fará a
seguir refere-se, em sua maior parte, à Capoeira Regional, visto que foi nesta
modalidade que tivemos nossa formação e a maior parte de nossa vivência
(embora com incursões esporádicas pelo universo da Capoeira de Angola).
Toda aula começa com um leve aquecimento (através de pequenas corridas e
flexões articulatórias), seguido de ginástica e alongamento (buscando-se trabalhar
os grupos musculares mais utilizados no jogo – especialmente pernas e
musculatura abdominal) baseados nos próprios movimentos da Capoeira. O
objetivo aqui é desenvolver no aluno força, agilidade, equilíbrio, flexibilidade,
explosão e elasticidade necessárias a todo jogador. Mas já aqui, por exemplo,
temos um diferencial em relação às outras artes marciais: estes exercícios iniciais
são realizados com o acompanhamento musical dos instrumentos do próprio jogo.
O aluno aprende desde cedo a associar sua movimentação corporal à música e
percussão que ditam o ritmo da Capoeira. Seu aprendizado começa pela ginga.
Após o término do aquecimento, ao som de berimbau, atabaque e pandeiro, um
canto é iniciado (geralmente pelo mestre), o coro (formado por todos os alunos) o
acompanha - respondendo ao canto como num refrão - e os alunos gingam
conforme orientação do mestre ou instrutor. Base de todos os movimentos da
capoeira, a ginga faz com que o capoeirista esteja em constante movimento, tendo
várias funções:
a) Torna o jogador um alvo mais difícil de ser atingido pelo adversário.
b) Possibilita visão e movimentação em várias direções ao mesmo tempo.
xxvii
c) Permite defesa e ataque simultâneos contra vários adversários.
d) Proporciona equilíbrio dinâmico, na troca constante de pontos de apoio e
diferentes distribuições do peso corporal.
e) Cadencia o ritmo dos movimentos corporais do jogador, trabalhando no tempo
e contratempo.
f) Trabalha o movimento básico, a partir do qual todos os movimentos de ataque
e defesa se originam.
Acima e além destas funções está a filosofia que serve de embasamento para a
ginga (e, por extensão, para a própria Capoeira). Em sua acepção mais elevada, a
Capoeira pode ser considerada como uma conversação improvisacional entre dois
corpos, entre duas sensibilidades. A ginga é o canal, a linguagem através do qual
fluem os movimentos que produzem a mais rica e criativa interação possível,
limitada apenas pela habilidade dos jogadores. O sentido mais profundo da ginga
é, pois, estabelecer comunicação. Mas um tipo de comunicação muito especial, no
qual os jogadores dialogam e vivenciam, além do gestual objetivo, toda uma gama
de conteúdos subjetivos. Mais do que a educação para o jogo em si, a ginga ensina
a postura do capoeirista perante a vida. A dançar conforme a música, a estar
sempre disponível, sempre me movimento e em mutação. Como nas palavras de
Nestor Capoeira:
O fundamento da Capoeira (…) é a mistura do “conhecimento-da-natureza-dos-
homens-e-de-si-mesmo” com uma forte dose de bom humor. (…) Se a vida é uma
briga, o capoeirista tem que “dançar dentro da briga”. (…) A Capoeira é uma “escola
xxviii
para a vida” (…), uma imitação da selva que é este mundo, um “teatro mágico” no
qual se reproduzem os arquétipos e as diferentes situações que acontecem e tornam a
acontecer.6
O aprendizado da ginga se dá em duplas, cada aluno de frente para outro,
realizando movimentação simétrica. “Capoeira não se joga sozinho” e, desde cedo,
o aluno é conscientizado da necessidade de se jogar com o colega (e não contra
ele), estabelecendo-se um diálogo corporal constante. Podemos encontrar
ilustrações da ginga no Anexo II-A.
Nesta fase inicial o aluno também é estimulado a cantar, bater palmas
(trabalhando voz, ritmo e desinibição) e aprender a tocar pelo menos um dos
instrumentos musicais da Capoeira.
Antes de mais nada, o aluno aprende a defender-se. E também nesta fase do
treinamento a Capoeira se diferencia de outras formas de luta: o capoeirista nunca
bloqueia o ataque do adversário para depois contra-atacar. Ele se esquiva,
“absorve” o movimento de ataque e contra-ataca simultaneamente. A quase
totalidade dos movimentos ditos “de defesa” da capoeira são, na verdade,
movimentos de contra-ataque. Bem como quase todo movimento de ataque é
conseqüência e evolução direta de movimento defensivo. Os golpes, portanto,
quase sempre apresentam dupla função. Ainda assim (para efeito didático) podem
ser descritos como mais caracteristicamente defensivos ou ofensivos.
66 CAPOEIRA, Nestor. Galo já cantou. Rio de Janeiro, Cabicieri Editorial, 1985. (p. 106 a 109)
xxix
Dentre os movimentos que se caracterizam mais como defesa temos – todos em
plano baixo – a Cocorinha, a Negativa, o Rolê, o Aú e a Queda de Quatro,
juntamente com a Rasteira e a Tesoura (estes últimos também sendo
considerados movimentos de ataque). Podemos encontrar ilustrações destes
movimentos no Anexo II-A.
Após a assimilação das noções de defesa básicas, o aluno principia o
aprendizado dos primeiros movimentos de ataque. Inicialmente temos os golpes
mais simples – laterais e retos – como a Bênção, o Martelo, a Meia-Lua de
Frente, a Queixada, a Chapa, a Cabeçada e a Joelhada. Em seguida temos os
movimentos giratórios, mais complexos e perigosos, como a Armada, a Meia-
Lua de Compasso, o Martelo Voador, dentre outros. E finalmente temos os
ataques de impulsão, desferidos sem o contato com o solo, como o Vôo do
Morcego e o Parafuso. A exemplo dos movimentos de defesa, as ilustrações de
alguns destes movimentos também podem ser encontrados no Anexo II-A.
Ao mesmo tempo que aprende ataques e defesas, o aluno entra em contato com
os primeiros saltos, acrobacias e floreios. Estes servem não somente para
desenvolver elasticidade, agilidade e equilíbrio, conferindo organicidade às
seqüências de golpes, mas também (e principalmente) como forma de expressão
lúdica. Temos aqui vários golpes (e combinação de golpes) como o Macaco, o
S Dobrado, a Bananeira e o Mortal. A mistura de defesas, ataques, saltos e
acrobacias (em ordem crescente de complexidade e interligação) somada ao
xxx
canto, à música, à dança e ao ritual é que constituem o jogo de Capoeira em sua
totalidade.
O jogo tem lugar dentro de um círculo com aproximadamente três metros de
diâmetro denominado roda. Em determinado ponto do círculo são posicionados
os instrumentos musicais e os capoeiristas que vão tocá-los. É o chamado “pé
do berimbau”, onde as duplas se formam, benzem-se e saem para o jogo dentro
da roda. O resto do grupo posiciona-se ao longo do círculo, cantando,
marcando o ritmo com palmas e aguardando sua vez de jogar. Todos revezam-
se cantando, tocando e jogando de forma alternada.
Existem vários tipos de jogos, comandados sempre pelo toque do berimbau.
Cada toque determina nos jogadores um tipo de postura, movimentação e,
principalmente, objetivo de jogo inteiramente diverso. Seus nomes variam de
acordo com os estilos (Angola e Regional) de região para região do país e até
mesmo de grupo para grupo. Os mais conhecidos são: São Bento Pequeno (jogo
solto, de exibição), São Bento Grande (jogo duro e competitivo), Angola (jogo
de chão, lento e cadenciado), Amazonas (jogo competitivo e acrobático) e Iúna
(jogo dos mestres e alunos formados). Temos ainda o jogo de Maculelê, onde os
capoeiristas manejam bastões de madeira (grimas) e, eventualmente, facões; a
Puxada de Rede, o Samba de Roda e inúmeros tipos de rituais, orações,
mandingas e idiossincrasias. Particularmente interessante é a Chamada de
Angola, espécie de ritual dentro do ritual, jogado com o toque de Angola, no
xxxi
qual os jogadores realizam uma espécie de encenação teatral em que não faltam
elementos de disfarce, fingimento, brincadeira, camaradagem e, eventualmente,
traição e vingança. Temos uma breve descrição desta peculiaridade também no
Anexo II-A.
A Capoeira que se joga hoje no Brasil é, quase em sua totalidade, Capoeira
Regional. Embora ainda existam, notadamente na Bahia, algumas poucas escolas
de Capoeira Angola, a Regional passou a ser considerada a Capoeira do país.
Cabe, no entanto, ressaltar a mudança de postura de alguns importantes mestres
da atualidade (nosso Mestre Garrincha entre eles). Conscientes da
descaracterização que a Capoeira vem sofrendo ao ser apartada de suas referências
fundamentais, bem como da necessidade de reconstruir este elo, estes mestres
propõem a junção das duas vertentes. Formar jogadores de Capoeira que saibam
jogar Angola e Regional, preservando o que há de melhor em cada uma delas. Ser
um capoeirista, no entender destes mestres, é conhecer a tradição, saber valorizar o
jogo, a complementação, a malícia, o caráter ritual e a teatralidade da Angola e, ao
mesmo tempo, ser capaz de praticar o jogo mais vistoso, espetacular e competitivo
exigido pela Regional. Um ideal de capoeirista completo, capaz de transitar com
desenvoltura por estes dois universos paralelos e complementares. Um caminho de
sábia conciliação e, pensando bem, esta talvez seja a maior e mais primitiva
sabedoria da Capoeira. Adaptar-se às circunstâncias, sobreviver e crescer, sem
perder sua essência fundamental.
xxxii
Esta Capoeira, capaz de harmonizar as melhores qualidades das variantes
Angola e Regional, é também a Capoeira que acreditamos ser de utilidade na
Preparação Corporal do Ator.
xxxiii
3 - A PREPARAÇÃO CORPORAL DO ATOR
O enfoque aos atributos corporais, enquanto matéria essencial, é algo muito
recente nos cursos de formação de atores no Brasil, não tendo ainda completado a
terceira década. Hoje, denominações como Expressão Corporal, Movimento,
Preparação Corporal, Trabalho de Corpo ou, simplesmente, Corpo, compõem o
vocabulário técnico de todos os profissionais que lidam com a formação de atores.
Entretanto tais técnicas - que visam auxiliar a construção de uma linguagem que
tem como veículo maior o corpo do ator - nem sempre estiveram integradas ao
treinamento de suas habilidades tradicionais.
Já a utilização de linguagens artísticas baseadas no movimento do corpo
(como a dança clássica) ou de práticas desportivas (como a esgrima) nos currículos
de treinamento e formação do ator é mais antiga. Frequentemente essas atividades
preenchiam o conteúdo de disciplinas genericamente denominadas de Ginástica
para Atores ou Preparação Corporal. Mas comparando o ensino da dança clássica
e da esgrima com o amplo espectro de possibilidades que uma preparação corporal
profunda e voltada mais cientificamente para o ator pode abranger, pode-se
concluir que esse ensino objetivava pouco mais que uma educação ou reeducação
postural juntamente com a transmissão de um modo mais refinado de conduta
gestual e, especialmente, de movimentação. Através dessas práticas o candidato a
ator adquire consciência da melhor organização plástica do seu corpo (como, por
exemplo, costas eretas, ombros abertos, centro de gravidade conhecido, quadril
xxxiv
colocado, eixo de equilíbrio centrado, queixo recuado, caminhar elegante, etc.).
Nada ainda que faça menção ao uso consciente e deliberado do corpo com a
finalidade de construir sistemas de comunicação no palco. A não ser, é claro, em
situações em que a performance como dançarino ou atleta esteja em questão. Seria,
portanto, mais um “polimento de boas maneiras” do que um instrumental estético
e técnico apropriado ao desempenho do trabalho criativo da interpretação.
A incorporação de procedimentos técnicos de dança (bem como de outras
áreas de estudo e expressão), com a finalidade mencionada, foi possível depois
que artistas oriundos de outros campos sistematizaram o estudo do movimento,
permitindo sua aplicação como ferramenta autônoma na construção de um
discurso corporal expressivo; uma arte teatral do movimento.
Os trabalhos de Laban (análise do movimento), Feldenkrais (consciência do
movimento) e Alexander (correção postural), entre outros, agregando arcabouços
técnicos específicos de suas áreas a este estudo, servem como referencial maior ao
ensino das práticas hoje denominadas de Expressão Corporal. Mas no que
consiste, precisamente, Expressão Corporal, quando se trabalha especificamente
com atores?
Entrevistamos alguns dos mais conceituados profissionais em Preparação
Corporal do Brasil na tentativa de melhor delinear este universo, não somente com
o auxílio de material bibliográfico mas, principalmente, através de depoimentos
oriundos de vivências práticas. Estas entrevistas estão transcritas, na íntegra, no
Anexo I.
xxxv
Segundo Angel Vianna, uma das pioneiras neste campo no Brasil
(juntamente com seu marido Klauss Vianna), a utilização do corpo, artisticamente,
“pressupõe conhecimento, consciência, portanto o ator deve ser sensibilizado na
totalidade. A voz e o texto não estão separados do todo. A preparação corporal
proporciona ao ator o conhecimento do espaço, aumentando as possibilidades de
por onde e como se dirige a um ponto. Proporciona uma melhor percepção dos
objetos do espaço e do grupo; conhecimento e melhor uso das qualidades de
movimento, peso, tempo, espaço e fluxo. Tendo consciência da totalidade, o ator
apresenta novas possibilidades na construção do personagem. O texto, a fala, o
corpo do personagem e o espaço onde atua podem ganhar uma poderosa projeção,
pois será a manifestação de sua totalidade. É fundamental para o artista a busca do
auto-conhecimento.”2 Cabe ressaltar que a denominação “Expressão Corporal” foi
criada pela dupla Klauss / Angel Vianna ainda em 1968, nos ensaios da “Ópera
dos Três Vinténs”, onde Klauss trabalhava na preparação corporal dos atores.
Já Ariela Goldman utiliza uma curiosa metáfora para definir os objetivos a
serem alcançados neste caso: “a disponibilidade de uma criança de 3 anos e a
simplicidade de uma letra do Cartola. Simplicidade no sentido do essencial, da
falta de auto-indulgência. E fazer o ator perceber que não há trabalho de corpo se a
cabeça não está junto para que se entenda a fala (o texto) e para que o corpo
responda a ela como conseqüência não só na voz, mas como um movimento que se
cria dentro do ator.”3
2 Vianna, Angel. Entrevista (vide Anexo I)3 Goldman, Ariela. Entrevista (ibidem)
xxxvi
Deborah Colker, por sua vez, acredita que “o corpo do ator é o instrumento de
comunicação, é o veículo dele com a platéia. As intenções, a plástica do
personagem, a compreensão do texto, a atmosfera da peça devem estar contidos no
corpo e na movimentação do ator. Estes movimentos necessitam de relaxamento e
tensão, de prazer e precisão. Este corpo necessita de um trabalho dinâmico e
plural.”4. Vivien Buckup propõe “possibilitar ao ator o conhecimento do seu
próprio corpo e suas relações com o espaço que ocupa (…) dando-lhe
instrumentos para que (…) transforme este conhecimento em forma de
expressão.”5
Márcia Rubin sublinha a objetivo de “desenvolver no ator um corpo sensível,
expressivo e potente (…) capaz de se relacionar em cena com naturalidade e
precisão, de forma econômica e serena”6, enquanto Nara Keiserman enfatiza a
importância de nutrir-se “sensibilização, consciência, concentração, jogo,
disponibilidade e ATENÇÃO (a nível de percepção); flexibilidade, força,
agilidade, destreza, energia, vocabulário corporal e ATENÇÃO (a nível de
movimento)”7.
Ana Kfoury lembra que “atuar é brincar e o corpo é um grande aliado do
intérprete neste jogo, possibilitando a este uma profunda investigação de suas
possibilidades de expressão”8, ao passo que Renata Melo crê “que o objetivo
4 Colker, Deborah. Entrevista (ibidem)5 Buckup. Vivien. Entrevista (ibidem)6 Rubin, Márcia. Entrevista (ibidem)7 Keiserman, Nara. Entrevista (ibidem)8 Kfoury, Ana. Entrevista (ibidem)
xxxvii
principal consiste em deixar o corpo o mais limpo possível. (…) para que ele possa
criar em cima de um tecido neutro, não transferindo para o personagem seus vícios
pessoais. Tornar o corpo do ator mais disponível e aberto – como uma massa
plástica – para que ele possa ser moldado pelo diretor da maneira que melhor lhe
convier.”9
Trata-se, como vemos, de um conjunto de procedimentos que visam propiciar
ao ator uma utilização mais plena de suas capacidades e habilidades físicas.
Mantendo e aperfeiçoando as já existentes, descobrindo e desenvolvendo outras
novas e, principalmente, disponibilizando-o para as exigências do trabalho
interpretativo.
O ator é, antes de mais nada, uma presença física e a linguagem gestual, a
mais fundamental (e, provavelmente, a mais antiga) forma de comunicação
humana. Quando crianças, aprendemos a nos mover muito antes de balbuciarmos
as primeiras sílabas. Aprendemos a ver antes de ouvir e imagens são elementos
que permanecem em nossa memória muito mais tempo do que as palavras. Por
esta razão o aluno-ator precisa aprender a usar seu corpo de forma que este esteja
em concordância com as palavras que diz, possibilitando-o comunicar-se com
mais criatividade e eficiência. Quando o aluno torna-se mais capaz de expressar
fisicamente seus sentimentos, progride sensivelmente no processo (bem mais
complexo) de criação de um papel. Antes de reagir como determinado
personagem, o ator precisa estar livre para reagir simplesmente. Esta liberdade
9 Melo, Renata. Entrevista (ibidem)
xxxviii
pode ser obtida através de um treinamento que prepare o aluno para estar
fisicamente disponível e mobilizado, sem bloqueios psicofísicos que o impeçam de
projetar seus sentimentos e confiante nas capacidades de seu corpo, o que lhe
permite escolher respostas adequadas às necessidades de cada situação, sem
inibição ou conflitos internos. Somente conhecendo o “vocabulário” do corpo o
aluno estará apto a fazer tais escolhas. O ator precisa também saber como seu
corpo funciona, o que ele pode (ou não) fazer, o que ele pode ser ensinado a fazer
e, finalmente, como apropriar-se das habilidades recém-adquiridas ou descobertas.
A preparação corporal é, pois, ferramenta básica para o ofício do ator.
Aprimorando seu condicionamento físico, ensinando-o a lidar com seu próprio
fluxo de energia interna, aperfeiçoando sua capacidade de comunicação não-verbal
e, principalmente, mobilizando ao máximo suas capacidades criativas e
expressivas.
xxxix
4 - A CAPOEIRA NA PREPARAÇÃO CORPORAL DO ATOR
Do universo das práticas desportivas pouco se extraiu até hoje para apoiar a
preparação corporal do ator. Um fenômeno que corre paralelo a essa possível
apropriação ocorre com o ressurgimento, nestas últimas duas décadas, de
espetáculos de gênese circense e de encenações de rua que remontam à
grandiosidade medieval. Alguns dos mais destacados são Cirque du Soleil, Royal
de Luxe, Que Cirque, Arcaosse, Fratellini e Apple Circus no exterior e Intrépida
Trupe e Grupo Galpão no Brasil. Cresce o interesse pelo aprendizado da acrobacia
e das técnicas de circo (andar sobre pernas de pau, contorcionismo, habilidades
pirotécnicas e outras) como veículos expressivos apropriados a essas
manifestações em que tudo acontece em dimensões ampliadas: grandes espaços,
grandes públicos, grandes trupes, grandes efeitos. Já se reconhecem em nossos
palcos representantes de uma geração de atores dotada de habilidades outrora
restritas às trupes circenses. Isso sem falar nos grupos - apropriadamente
denominados - de Circo Teatro (como os Parlapatões & Patifes & Paspalhões,
Marias da Graça e inúmeros outros) e de manifestações dessas técnicas em
coreografias de dança moderna (como A Cia de Dança de Deborah Colker, por
exemplo), inaugurando uma via que ainda carece de um batismo adequado, mas
que podemos identificar como Dança Acrobática.
Mesmo nesses casos, não é possível reconhecer amplamente o uso dessas
técnicas como suporte cientificamente canalizado para um treinamento na arte
xl
geral da Interpretação, uma vez que esses grupos se dedicam a manifestações
específicas (circo e dança). Ainda que alguns egressos desses movimentos tenham
adquirido uma sólida formação como atores, seu treinamento esportivo foi
realizado sem a perspectiva prévia de uma formação voltada para a arte da
Interpretação. A dificuldade aqui reside na ausência de um sistema didático que
possibilite o aproveitamento apriorístico destas habilidades, tendo em vista as
necessidades, características e limitações específicas do aluno-ator.
Bem diferente é o que ocorre, por exemplo, com a Ècole Internationale de
Théâtre do francês Jacques Lecoq que funciona em Paris desde 1956 e por onde
passaram brasileiros como os atores Stela Miranda e Mário Borges, diretores como
Maria Helena Lopes, além de inúmeros profissionais internacionalmente
conhecidos como Ariane Mnouchkine, Yasmina Reza, Stephen Berkoff e grupos
como o Mummenschanz e Théatre de la Cumplicitè.
Para Lecoq, o ator é um atleta. Um artista cujo corpo não é apenas o meio, o
instrumento, mas também a antena e o catalisador; capta os estímulos, processa-os
e os devolve em forma de expressão.
O objetivo do método de Lecoq é dotar o ator de uma “segunda natureza”,
capaz de compor e expressar fisicamente um personagem, seus sentimentos e suas
reações diante das situações de jogo dramático em que está envolvido,
minimizando a racionalização e eliminando o apelo a convenções e clichês.
xli
O treinamento a que os alunos-atores são submetidos na Ècole é intenso e
se assemelha mesmo à rotina de atletas em preparação para competições de alto
nível. A duração total do curso é de três anos, divididos em estágios. A progressão
dentro do curso não é automática, devendo o aluno-ator ser aprovado em cada
estágio para avançar aos seguintes. A carga de trabalho diária se estende por até
oito horas, com aulas que exigem domínio técnico e performance em ginástica,
acrobacia, dança e mímica. Não a mímica do pequeno gesto, como a praticada por
Marcel Marceau, mas a expressão não-verbal que engloba todo o corpo. Nestas
aulas procura-se desenvolver a capacidade de improvisação, a interação e a
disponibilidade para o jogo dramático.
Dentre as diversas técnicas, exaustivamente trabalhadas por Lecoq em sua
Escola, incluem-se algumas ligadas a situações de combate. Estas lutas corporais
são ensinadas como técnicas, instrumentos de jogo; ferramentas colocadas à
disposição do aluno-ator para serem utilizadas instintivamente por aquela
“segunda natureza”. Não há um objetivo racionalmente difundido nesses
procedimentos didáticos, ou seja, quase nada se aprende especificamente para um
determinado fim. Pode-se, por exemplo, utilizar técnicas de combate em cenas de
combate, mas isso será tão somente uma eventualidade. Um exemplo que ilustra
bem essa intenção é o ensino das chamadas “lutas de palhaços”: um repertório de
ações de ataque e defesa executadas ao estilo dos “clowns”, comicamente, tendo
serventia em números de palhaços de circo, mas cujo aprendizado não é tratado
sob essa perspectiva. Evidentemente, o aprendizado desse repertório de “lutas de
xlii
palhaço” pressupõe um anterior treinamento das técnicas e habilidades físicas
necessárias à sua execução.
Temos, portanto, uma trajetória lógica que pode ser enunciada da seguinte
maneira: primeiro, a concepção original de que a expressão própria do ator é a
corporal, que a condição de ator-atleta é a que potencializa ao máximo o trabalho
criativo da interpretação; em segundo lugar, a seleção de práticas originadas de
outras artes (dança e mímica, por exemplo) e de modalidades esportivas (técnicas
de luta corporal) como integrantes do elenco de habilidades físicas transmitidas ao
aluno-ator; em terceiro lugar, o preparo técnico específico, o ensino das diferentes
modalidades artísticas e desportivas e, por último – em conseqüência de toda a
filosofia pedagógica da Ècole – a “doação” dessas habilidades para que o ator
faça uso delas segundo suas próprias necessidades e inclinações.
Para os objetivos desse estudo não é relevante discutir a opção ideológica
sobre a real natureza do trabalho do ator, ou se a potencialização máxima deste
trabalho se dá através da expressão corporal ou da aproximação racional dos
personagens. É incontestável a importância da preparação corporal, em maior ou
menor grau, em cada uma delas. O que nos aproxima da opção de Jacques Lecoq é
o fato de ter ele incluído técnicas de combate ou luta desarmada (empty-handed
combat) no elenco de habilidades transmitidas em seus cursos. E a questão surge
quase espontaneamente: poderia qualquer forma de luta corporal adequar-se a essa
finalidade? Poderia a Capoeira compor esse elenco? A resposta positiva a essa
indagação já encontra suporte em pelo menos uma tentativa concreta de realizar
xliii
essa aproximação – de uma técnica de luta corporal como instrumento de
preparação de atores, inspirada em Lecoq.
Essa combinação foi realizada pelo professor americano Richard Nichols,
da Penn State University, USA. Sua pesquisa aprofundou o estudo da relação
existente entre as técnicas de preparação corporal no treinamento do ator em geral
e o “empty-handed combat”, ensinado dentro do contexto da preparação corporal
de atores baseada no método Lecoq (Lecoq-based movement training for actors).
Como o próprio nome indica, o chamado “empty-handed combat” (literalmente,
combate de mãos vazias ou, melhor traduzindo, luta desarmada – termo que
doravante utilizaremos) vem a ser parte integral do sistema de treinamento
corporal “lecoquiano” de atores. Uma combinação de várias técnicas de luta sem a
utilização de instrumentos de combate (punhais, espadas, machados, etc.) e,
principalmente, sem atingir ou ferir o oponente. Apresenta elementos de várias
artes marciais – jiu-jitsu, aikido, boxe e karate, entre outras. Interessante notar que
a palavra japonesa “karate” significa “mãos vazias”. Diz o professor Richard
Nichols:
“The intent here is not to outline the various techniques for staging fight scenes,
but rather to draw attention to areas in which empty-handed combat experiences
can be of profound value when properly integrated with other elements of the
actor’s training and education”.10
10 O objetivo aqui não é descrever as várias técnicas de encenação de cenas de combate mas, antes, chamar a atenção para áreas nas quais a experiência da luta desarmada pode ser de profundo valor quando adequadamente integradas com outros elementos da formação e treinamento do ator. (tradução nossa)NICHOLS, Richard. “Empty-Handed Combat in the Actor Training Program” in: Movement for the Actor. Ed.Lucille S. Rubin, New York, Drama Book Specialists, 1980. (p.87)
xliv
Esta é, também, a proposição deste estudo. Chamar a atenção para algumas
áreas nas quais a Capoeira pode complementar, ilustrar e aprofundar elementos do
treinamento e educação dos atores, quando convenientemente integrada a este
processo.
Que elementos seriam esses? Como se faria a integração da Capoeira com
esses elementos?
Analisemos a exposição, feita por Richard Nichols, dos vários aspectos das
técnicas de luta utilizadas por Lecoq, para assim entender como é feita a
associação da experiência da luta desarmada com as necessidades específicas da
preparação do ator. A análise em questão utiliza, evidentemente, a Capoeira como
parâmetro e a referida exposição será feita através da citação dos onze itens do
artigo de Richard Nichols, em tradução nossa. O texto original deste artigo, bem
como um curriculum resumido (em inglês e português – tradução nossa) do autor,
encontra-se no Anexo III.
“1. A presença das intenções do personagem. Cada participante deseja derrotar
seu oponente, infligir-lhe dor, quebrar-lhe a cara (refiro-me às intenções do
personagem, é claro). A simplicidade, a clareza das intenções escolhidas ajudam
o jovem ator a entender a importância das intenções como fonte geradora das
ações e suas respectivas respostas emocionais.” 11
11 Idem, ibidem (p.93)
xlv
No jogo de Capoeira as intenções dos personagens também são simples e
claras. Como em toda arte marcial, cada lutador deseja derrotar o outro. Envolvê-
lo em sua movimentação, atraí-lo para o seu jogo, ludibriá-lo com ginga e malícia,
esquivar-se de seus golpes e, finalmente, atingi-lo ou derrubá-lo de forma
humilhante (e aqui nos referimos também, é claro, às intenções dos jogadores-
personagens).
O que torna a Capoeira ainda mais rica sob este ponto de vista é que, nesta
situação, as intenções variam de acordo com o tipo de jogo que está sendo
proposto (e seu respectivo toque de berimbau), conforme já mencionado no
capítulo 2. No jogo de São Bento Grande, por exemplo, ocorre o chamado jogo
regional ou jogo duro, onde o objetivo é a derrota do adversário através de golpes
explosivos e traumáticos. Já no jogo de São Bento Pequeno, o chamado jogo solto
ou de exibição, os jogadores têm apenas como objetivo exibir sua destreza, reflexo
e agilidade.
Temos ainda os toques – e respectivos jogos – de Angola ou Banguela
(jogo de competição, porém através de movimentos lentos e cadenciados, onde os
capoeiristas jogam contorcendo-se, com as mãos e pés em contato quase
permanente com o solo), Amazonas (jogo competitivo, belo e acrobático, onde o
objetivo é demonstrar domínio corporal e excelência técnica), Cavalaria (toque de
aviso, alertando o grupo da aproximação de alguém estranho a ele), Iúna (toque
xlvi
eminentemente não-competitivo, jogado entre mestres e alunos formados; pleno de
respeito, prazer, diálogo e ludicidade, mas também – em momentos de inimizade –
o jogo da traição, falsidade e morte) e ainda vários outros como Ave Maria,
Idalina e Santa Maria. Cada jogo com a sua respectiva intenção, gerando toda uma
gama de ações e respostas emocionais.
“2. Seleção das ações apropriadas. Uma das lições mais difíceis a serem
aprendidas pelo ator novato é como selecionar as respostas físicas mais
adequadas às intenções previamente escolhidas. Confrontado com os problemas
inerentes a qualquer situação de improvisação, o aluno-lutador rapidamente
descobre que existe um número virtualmente infinito de ações apropriadas para
cada intenção escolhida. Na situação da luta, no entanto, o aluno já teve (no
treinamento) a possibilidade de explorar as interações de esforço, forma, ritmo e
resposta emocional de várias combinações de golpes e movimentos. Começa então
a restringir sua escolha de ações possíveis (àquelas intuitivamente mais
eficientes). “Este movimento é adequado às necessidades do personagem e à
situação neste exato momento?” Esta pergunta é continuamente formulada (nem
sempre de forma consciente) no desenrolar de uma cena de luta e poucos alunos
não perceberiam a conexão entre esta questão e o trabalho do ator numa cena de
improvisação.” 12
12 Idem, ibidem
xlvii
No jogo de Capoeira, ocorre processo análogo. O aluno novato sente
enormes dificuldades em escolher os movimentos mais adequados para cada
situação de jogo, sem falar no gasto de energia desnecessário.
Como já dissemos, o toque do berimbau determina o tipo de jogo que está
sendo jogado (podendo inclusive ser alterado, a qualquer momento, pelo tocador)
O capoeirista precisa jogar de acordo com o toque - que determina parcialmente
(deixando margem para o estilo pessoal de cada jogador) sua postura, seu leque de
movimentos possíveis, seu objetivo, seu ritmo, suas ações, enfim, seu
“personagem” dentro do jogo. Precisa jogar de acordo com o adversário daquele
momento, que também pode ser substituído sem aviso prévio. Precisa estar atento
à plasticidade de seu gestual pois, não esqueçamos, Capoeira se joga com “platéia”
assistindo, caracterizando-se assim como um jogo de caráter espetacular,
performático e de exibição (com suas acrobacias, floreios, fintas e dribles
corporais). A seleção das ações apropriadas aqui, portanto, reveste-se de uma
importância ainda maior, pois deve levar em conta a aprovação (ou não) de uma
exigente platéia. Precisa, mais do que tudo, estabelecer um “diálogo corporal”
absolutamente espontâneo com o parceiro, sem impor ditatorialmente uma
partitura preestabelecida de jogo, nem tampouco submeter-se passivamente à
movimentação do outro. Precisa ainda dosar suas energias, escolhendo os
movimentos mais eficientes e com menor desgaste físico (porque, assim como
num exercício de improvisação, não se sabe, de antemão, qual será sua duração).
xlviii
Com se costuma dizer na roda de Capoeira “o mestre não precisa ter fôlego para
correr junto com os alunos porque conhece os atalhos melhor do que eles…”.
Com a evolução do aprendizado o aluno vai aprendendo a “selecionar” as
ações físicas mais adequadas, o que resulta em um jogo mais limpo, homogêneo e
com melhor acabamento estético.
“3. Respostas físicas e emocionais comprometidas com a situação. Cenas de
luta, assim como quaisquer outras, não podem acontecer sem o completo
comprometimento físico e emocional de ambos os parceiros. Os alunos
aprendem assim que não existe meio termo quando se fala em entrega no palco.
Ao mesmo tempo, no entanto, aprendem também a diferença entre uma
movimentação entusiástica e descontrolada e a aplicação focalizada e eficiente
da energia física e emocional disponível.” 13
O aprendizado da Capoeira estabelece nítidos pontos de contato com esse
princípio. Como já dissemos, o capoeirista raramente bloqueia o ataque adversário
para depois contra-atacar. Ele se esquiva, “absorve” o movimento de ataque e
contra-ataca quase simultaneamente. Adere ao fluxo do movimento do parceiro e
dele extrai a gênese de seu próprio movimento. Exatamente o que ocorre em
inúmeros exercícios de expressão corporal, improvisação, etc.
13 Idem, ibidem (p.94)
xlix
Assim, não é possível ao jogador/ator “programar” sua performance. Talvez
com a exceção do primeiro golpe (e de quem dá o primeiro golpe) o que se
estabelece é um jogo improvisado em que cada participante depende do estímulo
oferecido pelo ataque do oponente para processá-lo e então organizar mental e
fisicamente sua resposta. Os elementos citados neste princípio: entrega total ao
jogo e controle das atitudes para um dispêndio adequado da energia física e
emocional são fundamentais ao bom desempenho do jogo da Capoeira. O
treinamento das técnicas deste jogo/luta/dança desenvolve no ator habilidades que
encontram utilidade não somente em cenas de combate físico, mas - se
devidamente integrada a um programa de formação - também e principalmente nas
exigências habituais de contracenação.
“4. Aceitação da situação imaginária na qual a luta se desenrola. Os parceiros
precisam estabelecer claramente quem são, onde estão e o que fazem (mobília,
objetos e outros detalhes são imaginários), exibindo um comportamento
condizente com o nível de teatralidade previamente exigido. Ou seja, ambos os
atores devem comportar-se como se estivessem envolvidos numa situação real de
luta desarmada. Sem a completa aceitação dos papéis e da situação, o embate
torna-se um mero exercício físico.” 14
14 Idem, ibidem
l
Todo jogo de Capoeira é introduzido por um ritual que, ao ser cumprido
pelos parceiros, estabelece as regras que regerão o combate e atribuirão aos
contendores certos papéis que farão deles quase que personagens. A descrição
deste ritual nos é dada por Almir das Areias:
“Para iniciar o jogo da Capoeira, os capoeiristas dirigem-se para onde estão os
instrumentistas e agacham-se ao pé do berimbau. Se forem mestres ou formados
e estiverem a fins de fazer um jogo específico, pedem ao tocador o toque
correspondente. O mesmo acontece quando os capoeiristas querem puxar um
Canto Corrido ou uma Ladainha. (…) Se é puxada uma Ladainha, os
capoeiristas ficam respeitosamente a ouvi-la e só saem para o jogo quando o
cantador, já no fim da história que está cantando, diz: “dá volta ao mundo”.
Nesse momento os capoeiristas fazem reverência ao berimbau, se benzem, dão-
se as mãos e entram para a roda. Se o canto puxado for um Canto Corrido, os
capoeiristas não precisam esperar a expressão “dá volta ao mundo”, basta
reverenciarem o berimbau, benzerem-se, darem-se as mãos e saírem para o
jogo. (...)
O som, o ritmo e a cantoria energizam e fazem vibrar o ambiente. Vários tipos
de jogos vão se sucedendo a partir das várias duplas que vão se formando para
novos jogos. Porém, se um capoeirista estiver a fins de jogar com um outro que
já esteja na roda, pode fazê-lo desde que venha ao pé do berimbau, faça sua
reverência e, de frente para o capoeirista com o qual quer jogar, levante uma
das pernas e tome a frente do segundo capoeirista, tirando-o da roda. Essa
atitude na Capoeira é chamada de “comprar o jogo” e só pode ser realizada de
li
mestre para mestre, de mestre para aluno ou de aluno para aluno. Nunca de
aluno para mestre, a não ser que este esteja jogando com um aluno, quando
então um outro aluno pode comprar o jogo para jogar com o mestre..” 15
Não cabe examinar aqui as diferenças entre os cantos e os tipos de jogo
mencionados. Em todos eles o que se estabelece como pressuposto para a disputa é
o modo como ela ocorrerá e o que se espera que cada jogador faça, em termos de
respeito ao acordo pré-estabelecido.
Estas regras são o correspondente às circunstâncias e convenções arbitradas
em uma improvisação. A partir do acordo do tipo de jogo que acontecerá, os
participantes já sabem de antemão qual é o seu objetivo (combate duro, exibição,
jogo de chão, etc.) com os diferentes toques e ladainhas determinando o ritmo e
acrescentando empolgação à performance. Além da luta ainda existe o canto, a
música, as palmas, as acrobacias, as brincadeiras e os rituais. Alguns destes rituais
(como a Chamada de Angola) lembram os famosos lazzi dos atores da Commedia
dell’Arte . São como que sub-rotinas gestuais, utilizadas, por exemplo, quando o
jogo torna-se momentaneamente estéril, acrescentando-lhe um componente lúdico
a mais. A completa aceitação da situação e das regras do jogo, aliadas ao alto grau
de ludicidade diferencia a Capoeira de um mero exercício físico, bem como de
outras formas de luta.
15 AREIAS, Almir das. O que é Capoeira. (p.96 a 98)
lii
“5. A necessidade de imagens mentais, focalizadas fora do ator. Existe uma
marcante similaridade entre atletas e atores. Ambos precisam lidar com
imagens. Atletas de salto com vara ou salto em altura, por exemplo, são
conhecidos por sua habilidade em projetar a imagem mental de um ponto no
espaço e identificar-se fisicamente com esta imagem. Antes de cada salto o
atleta imagina a si próprio movendo-se no ar, aproximando-se da barra,
alcançando e ultrapassando-a. Ele vê e sente seu corpo movendo-se do ponto A
até o ponto B e então tenta unir-se fisicamente àquela imagem mental.
O ator praticando luta desarmada também necessita lançar mão deste
expediente. Ao desferir um soco no estômago, por exemplo, o aluno precisa
deter o golpe menos de um quarto de polegada dentro da parede abdominal do
parceiro, pois a segurança dos alunos-atores é, evidentemente, preocupação
básica. Os golpes geralmente nem chegam a tocar o adversário (…) mas temos a
impressão de que tal contato realmente ocorreu.(…) Sem a adequada projeção
de imagens mentais não é possível obter movimentos (ao mesmo tempo)
fidedignos e seguros.(…)” 16
Durante o jogo de Capoeira o atleta também precisa lançar mão deste recurso,
ao imaginar seus pés e mãos movendo-se no ar e dirigindo-se exatamente aos
locais desejados. A idéia não é atingir o adversário, mas parar o golpe
(especialmente o do tipo traumático) centímetros antes do contato. Mais
importante do que derrubar (ou atingir) é sinalizar claramente ao parceiro esta
possibilidade (Em exibições públicas os capoeiristas, por vezes, “encenam” os
16 Op.cit. nota 6 (p. 94 e 95)
liii
golpes como se eles realmente atingissem seu alvo…). Isto se torna ainda mais
importante quando se leva em conta que alguns destes golpes podem causar
ferimentos sérios ou mesmo mortais. Autocontrole, portanto, é fundamental. E
sem a correta projeção de imagens mentais a segurança e plasticidade da
movimentação ficará prejudicada. A disciplina mental obtida no uso destas
imagens na situação do jogo auxilia o ator na obtenção de um gestual mais
desenvolto e preciso, além de desenvolver a visualização de objetos (ou
pessoas) imaginário(a)s. Sua utilidade no palco é evidente.
“6. Desenvolvimento de sensibilidade cinestésica e capacidade de improvisar
no espaço. Um jogador de basquete (…), por exemplo, é um modelo de
consciência cinética, movendo-se para cima e para baixo na quadra. Durante
um ataque, aquele que está de posse da bola tenta imaginar como driblar seu
adversário, ao mesmo tempo que abre continuamente novas possibilidades de
movimentação em seu percurso pela quadra. Cineticamente falando, ele também
tenta captar sutis alterações nas relações dos corpos com o espaço ao redor de
si. Embora ele possa ter em mente várias possibilidades de movimentação, ele
precisa improvisar à medida que a situação (que também está em constante
alteração) assim o exige. Ele precisa jogar de acordo com o momento. O ator
participando de uma cena de luta precisa agir da mesma maneira.
Por mais minucioso que seja, o ensaio de uma peça de teatro não elimina a
possibilidade de imprevistos durante sua apresentação. A cena, com os corpos
no espaço continuamente mudando suas posições, (especialmente nas quedas e
liv
rolamentos) requer que o ator desenvolva um círculo de consciência espacial de
360 graus. Sem esta consciência torna-se difícil para o aluno reagir de maneira
adequada, na hora certa, e manter o controle da cena na situação tensionante
do palco. (…)” 17
A habilidade mencionada aqui refere-se, evidentemente, à capacidade de
improvisação. Não a improvisação livre, que busca exercitar o ator e na qual ele
tem como ponto de partida pouco mais que o conhecimento de uma situação
hipotética ou um tema a ser perseguido ou ainda algumas características de um
personagem. A improvisação é requerida aqui como uma capacidade para ajustar-
se a uma eventual desorganização de referenciais previamente estabelecidos. É um
estado de alerta que permite ao ator reagir coerentemente. Ou, se quisermos ser
mais puristas, que permite ao ator reagir como personagem, coerentemente.
É fácil aceitar a idéia de que pela própria dinâmica do jogo da Capoeira –
cada jogador acolhe o golpe de seu oponente e transforma este movimento no seu
próprio golpe – não é possível a um jogador planejar e executar uma seqüência de
golpes independentemente do que lhe será proposto. Além disso, ele precisa estar
atento, não somente à movimentação do parceiro (um segundo de desatenção pode
significar um golpe certeiro), como também a quase tudo que está acontecendo na
(bem como dentro e fora da) roda. O tipo de toque do berimbau, o ritmo das
palmas, a movimentação de outro jogador prestes a entrar no jogo, forasteiros
17 Idem, ibidem (p. 95)
lv
chegando na roda (freqüentemente denunciados também pelo toque de Cavalaria,
como mencionamos anteriormente) e vários outros. Todos esses fatores obrigam o
capoeirista a desenvolver um estado de alerta, de escuta; uma “prontidão” para o
novo que vai ao encontro das necessidades do ator em situações reais de
contracenação.
Assim como na roda, o ator em cena precisa estar atento, não somente à
interação que se estabelece como também aos parâmetros técnicos do palco. As
marcas do diretor, o posicionamento dos focos de luz, cenário, objetos de cena,
inserção de trilha sonora, etc. Além, é claro, da reação da platéia e imprevistos de
toda ordem que fazem parte do dia a dia do ator de teatro. Tanto na roda como no
palco é preciso, pois, estar alerta. É conveniente lembrar que a Capoeira foi
desenvolvida como técnica de luta por um povo oprimido, que tinha na capacidade
de estar alerta sua possibilidade de sobrevivência.
O mesmo raciocínio se aplica ao princípio seguinte.
“7. Um movimento contínuo em direção à “consciência do outro” A luta
desarmada requer uma concentração intensa, focalizada na alteridade. Cada
jogador deve “sair de si próprio”, direcionando sua energia para o parceiro.
Stanislavski chamava esta atitude de “contaminar” o parceiro e a luta
desarmada pode ser um excelente recurso para ilustrar como se processa o fluxo
lvi
e refluxo de energia no palco, especialmente quando o ritmo é ditado pelo
entrechoque de intenções violentamente antagônicas.” 18
O bom jogo de Capoeira é aquele em que os praticantes estão
profundamente interligados, como no exemplo da luta desarmada lecoquiana. A
boa contracenação é aquela em que as marcas dão a impressão de desaparecer.
Somem as hesitações, os clichês, os maneirismos e a artificialidade, ocorrendo a
ilusão do chamado “aqui e agora”. Para que isso aconteça é necessário que exista
um “fluxo de energia” fluindo de jogador para jogador, de ator para ator. Vejamos
o que nos diz Stanislavski:
“Se os atores deveras querem prender a atenção de uma grande platéia, devem
fazer todo o esforço possível para manter, uns com os outros, uma incessante
troca de sentimentos, pensamentos e ações, e o material interior para essa troca
deve ser suficientemente interessante para cativar os espectadores.(…)
Quando queremos comunicar-nos com alguém, buscamos primeiro a sua alma, o
seu modo interior. (…) Quando falarem com a pessoa que estiver contracenando
com vocês, aprendam a ir seguindo até estarem certos de que os seus
pensamentos penetraram na consciência do comparsa. Só depois de se terem
convencido disso, e de terem acrescentado com os olhos o que não puder ser
posto em palavras, é que deverão prosseguir com o resto de suas falas. E vocês,
por sua vez, devem aprender a absorver, sempre de novo, as palavras e os
18 Idem, ibidem (p. 95 e 96)
lvii
pensamentos do comparsa. Devem hoje tomar conhecimento do que ele lhes diz,
mesmo que tenham ouvido as suas falas repetidamente, muitas vezes, nos
ensaios e nos espetáculos. Esta ligação deve ser estabelecida cada vez que
atuarem juntos. E isto exige grande dose de atenção concentrada, de técnica e
de disciplina artística. (…)
Mais difícil ainda é a comunicação recíproca com um objeto coletivo, noutras
palavras, com o público. Está claro que não pode ser feita diretamente. A
dificuldade é que estamos simultaneamente em relação com o nosso comparsa e
com o espectador. Com o primeiro nosso contato é direto e consciente; com o
segundo, indireto e inconsciente. E o notável é que, com ambos, a nossa relação
é recíproca. (…)19
É de importância fundamental, no jogo da Capoeira, a chamada “troca de
energia”; não somente entre os jogadores que estão no centro da roda mas também
entre os jogadores e a platéia que compõe esta mesma roda. Como já dissemos, na
Capoeira quase não existe o bloqueio de golpes. O movimento de um é a gênese
do movimento do outro e assim sucessivamente. Quando existe, entre jogadores
experientes, uma real disponibilidade para a troca, o jogo torna-se “encaixado”.
Golpes, contragolpes e movimentos sucedendo-se ininterruptamente, num fluxo
contínuo, uniforme e harmônico. A platéia, por sua vez, participa ativamente deste
fluxo, seja estimulando os jogadores com palmas e cantos, seja tornando-se, ela
própria, novas duplas de jogadores (substituindo os que estão jogando que, por sua
19 STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação do Ator. (p. 215 a 220).
lviii
vez, tornam-se platéia, num revezamento contínuo). Desenvolve-se a noção de
parceria, de confiança nos colegas, da segurança de sentir-se parte de um grupo,
tão importante na formação de um ator. Tudo comandado pelo toque do berimbau,
verdadeiro centro irradiador do fluxo de energia em torno do qual “gravita” uma
roda de Capoeira.
Cabe aqui um parêntese: a Capoeira é um jogo do qual a platéia é elemento
inseparável, já que ela mesma é composta de jogadores. Joga-se para deleite
próprio, do parceiro e também (e principalmente) para o deleite da platéia. Pode-se
traçar uma perfeita analogia entre a tríade essencial do teatro (ator, texto e público)
e a tríade essencial da Capoeira (jogador, toque do berimbau, platéia), levando-se
ainda em conta que o jogo de Capoeira é também, basicamente, uma luta,
“entrechoque de intenções violentamente antagônicas”, um conflito, que a maioria
dos teóricos de teatro julga essencial ao conceito de drama. É conveniente lembrar
Viola Spolin e sua opinião sobre a importância da platéia:
“O papel da platéia deve se tornar uma parte concreta do treinamento teatral.
Na maioria das vezes ele é tristemente ignorado. (…)
A frase “esqueça a platéia” é um mecanismo usado por muitos diretores como
meio de ajudar o aluno-ator a relaxar no palco. Mas essa atitude provavelmente
criou a quarta parede. O ator não deve esquecer sua platéia, da mesma forma
como não esquece suas falas, seus adereços de cena ou seus colegas atores!
lix
A platéia é o membro mais reverenciado do teatro. Sem platéia não há teatro.
Cada técnica aprendida pelo ator, cada cortina e plataforma no palco, cada
análise feita cuidadosamente pelo diretor, cada cena coordenada é para deleite
da platéia. Eles são nossos convidados, nossos avaliadores e o último elemento
na roda que pode então começar a girar. Ela dá significado ao espetáculo.
Quando se compreende o papel da platéia, o ator adquire liberdade e
relaxamento completo. O exibicionismo desaparece quando o aluno-ator começa
a ver os membros da platéia não como juizes ou censores ou mesmo como
amigos encantados, mas como um grupo com o qual ele está compartilhando
uma experiência.” 20
Fica evidente, pois, a utilidade do jogo de Capoeira como um simulacro do
jogo cênico para o aluno-ator. Não somente para o entendimento da necessidade
da focalização de energia na alteridade como também para a compreensão da
importância da platéia, auxiliando no processos de desinibição, relaxamento,
comunicação e interação.
“8. Entendimento da importância do “fraseado”. Atores iniciantes
freqüentemente se esforçam para obter determinado efeito sem, no entanto,
percorrer todas as etapas necessárias para consegui-lo. A luta desarmada
ensina o aluno a realizar um movimento a cada vez, dando a cada ação um
início, meio e fim. Tentar um soco antes de completar um tapa pode ser até
20 SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. (p. 11)
lx
perigoso, além de teatralmente ineficiente. Realizar cada gesto priorizando o
bom acabamento é uma atitude de extrema utilidade para a cena. Não somente
porque nos ensina a clarear cada movimento (entendendo como ele se processa),
mas também reforçando nossa “presentificação”, na qual cada ação acontece
no momento adequado.” 21
De uma maneira análoga ao que acontece com a luta desarmada, na
Capoeira o chamado “fraseado” é fundamental. Os alunos são exaustivamente
treinados na realização (e conscientização) de cada seqüência de movimentos,
com ênfase na necessidade de realizar cada gesto conscientemente, da maneira
correta e, mais importante, no tempo certo. Tentar um contra-ataque antes de
finalizar a respectiva seqüência de defesa pode ser esteticamente bisonho, além
de ineficaz e perigoso.
Um bom exemplo deste treinamento são as famosas seqüências de
Mestre Bimba (vide Anexo II-A). São partituras de jogo combinando golpes e
movimentos, “objetivando ataque e defesa e aprimoramento das técnicas
aprendidas, com a finalidade de desenvolver o jogo. Todos os movimentos
deverão sair da ginga”22
São oito seqüências a serem praticadas em duplas, nas quais os alunos
exercitam precisão e eficiência na execução dos golpes e, principalmente,
21 Op.cit. nota 10 (p. 96)
22 LOPES, Augusto José Facio. Curso de Capoeira em 145 Figuras. (p.91 a 104).
lxi
diferentes combinações dos mesmos, servindo como simulacro preparatório
para inúmeras situações de jogo.
Temos ainda as seqüências de “cintura desprezada”, combinações de
movimentos acrobáticos que “tem por objetivo ensinar o aluno a cair quando for
projetado, desenvolvendo flexibilidade, agilidade, espírito de confiança e
cooperação. É usada também em “jogos combinados” 23, ou seja, jogos de
exibição pública, nos quais os capoeiristas “combinam” com antecedência
determinadas coreografias, com o intuito de tornar a performance o mais
espetacular possível.
A Capoeira também é um jogo de exibição, jogado não somente nas
academias e escolas como também em ruas e praças de cidades do mundo
inteiro. A platéia freqüentemente é composta não só de jogadores, mas também
de aficionados e curiosos em geral. A beleza estética do jogo é, pois,
extremamente valorizada, só podendo ser obtida após longas horas de
treinamento. Cada movimento deve ser executado com consciência, perfeição
(início, meio e fim), obedecendo a seqüência correta, no momento adequado,
em absoluta sintonia com o parceiro e com o espaço no qual o jogo acontece. E
com ampla disponibilidade para reagir com igual desenvoltura nos momentos
em que o jogo é totalmente improvisado ou no caso de ocorrem imprevistos.
Exatamente o tipo de conscientização e presentificação físicas, tão almejados
em qualquer ator.
23 Idem, ibidem (p. 129 a 145)
lxii
“9. Desenvolvimento de eficiência física através dos exercícios preparatórios
para a luta desarmada e do entendimento do “fluxo de esforço”. A educação
corporal, base do método Lecoq, baseia-se fundamentalmente na redescoberta
dos ritmos e padrões de esforço físicos de cada pessoa, com um posterior
aprimoramento de sensibilidade para os mesmos. O aluno gradualmente passa a
perceber a importância da respiração em cada gesto, bem como o seu olhar
sobre o próprio. Muitos alunos possuem padrões corporais inconscientes que
resultam em movimentos que, além de ineficientes, drenam uma enorme
quantidade de energia, principalmente em situações de grande desgaste físico. A
luta desarmada evidencia a necessidade de eficiência, sem a qual torna-se
extenuante e de difícil execução. A sua prática traz ao aluno o entendimento de
que cada golpe é, na verdade, uma seqüência de complexo encadeamento: a
preparação mental de cada ação, a decisão de agir, a ação propriamente dita, a
diminuição e término desta ação, um momento de repouso, a avaliação dos
resultados da ação e o início de uma nova seqüência, baseada nos resultados da
anterior. Embora este fluxo seja quase instantâneo em alguns casos, estudá-lo
pode trazer ao ator um aprofundamento de seu trabalho na cena. O fluxo de
esforços físicos do ator pode ser diferente do fluxo de esforços do personagem e
entender esta diferença pode ser decisivo na criação de um papel.” 24
É muito comum nas rodas de Capoeira observarmos mestres (alguns com mais
de 60 anos de idade) jogando Capoeira com todos os alunos de uma turma, um
após o outro, durante quinze minutos ou mais, ininterruptamente. Um a um, os
alunos (a maioria jovens em pleno vigor físico) vão saindo da roda
absolutamente extenuados, enquanto o mestre demonstra um fôlego quase
sobrenatural. Quem já entrou numa roda de Capoeira sabe o que significa, em
24 Op. Cit. Nota 13 (p. 96)
lxiii
termos de desgaste físico, permanecer mais de um minuto jogando sem parar. O
que ocorre é que o mestre adquiriu, com os anos de experiência, um
conhecimento e controle muito maior sobre seu fluxo de esforços internos
(como na técnica de Laban, dividindo e conscientizando cada detalhe na
execução de cada movimento), o que lhe permite gastar uma quantidade muito
menor de energia ao empreender os mesmos golpes que exaurem o aluno
novato. O mestre ginga melhor, ataca e defende com mais eficiência e,
principalmente, respira melhor do que o aluno.
Assim como no caso da luta armada, a Capoeira pode auxiliar o aluno no
progressivo reconhecimento de seus padrões corporais inconscientes e na sua
capacidade de interferir nos mesmos. É comum ouvir o mestre alertando os
alunos a respeito dos “cacoetes gestuais” de cada um (indesejáveis num jogador
relaxado e em plena prontidão, porque evidencia seus bloqueios psicofísicos,
tornando-o previsível e vulnerável). Além de, é claro, desenvolver sua
eficiência física através dos respectivos exercícios preparatórios e do jogo
propriamente dito.
“10. Manutenção das “duas perspectivas de um papel” (Stanislavski). O
desgaste físico e emocional que ocorre na luta desarmada ensina ao ator a
importância do controle - e da técnica – na execução de seu ofício. Não importa
quão intensa seja uma atividade (e as emoções associadas a ela). O ator precisa
aprender a desenvolver um “centro de calmaria”, um núcleo de tranqüilidade,
assim como o lutador precisa aprender a “centrar-se”. Trabalha-se a
lxiv
manutenção, pelo ator, de duas perspectivas: a do personagem que está sendo
interpretado por ele e a perspectiva do próprio ator (e seu olhar) sobre o
personagem, sobre si mesmo e sobre o ambiente em permanente mutação no
qual está imerso.” 25
A Capoeira trabalha a questão da manutenção de um “centro de calmaria”
de maneira inteiramente análoga à luta desarmada. Bem como a manutenção
das “duas perspectivas de um papel” stanislavskianas. Mesmo no meio de um
jogo de São Bento Grande ríspido, no qual ocorrem, eventualmente, alguns
golpes mais violentos (com conseqüente aumento da excitação e agressividade),
o capoeirista não pode jamais esquecer quem é e onde está. Por mais intensa
que sejam as emoções, ele não pode esquecer que está em um jogo e como tal
deve proceder. Em todas as modalidades de luta trabalha-se no sentido de
manter a calma, mesmo sob forte pressão e o capoeirista não foge a esta regra.
Da mesma maneira o ator precisa sempre manter-se sob controle (mesmo
que sua peça esteja em sua noite de estréia e o seu personagem seja um príncipe
dinamarquês enfurecido e vingativo…) Stanislavski ilustra bem esta dicotomia:
“Metade da alma do ator é absorvida por seu superobjetivo, pela linha direta de
ação, pelo sub-texto, por suas imagens anteriores, os elementos que entram na
composição de seu estado criativo interior. Mas a outra metade continua a atuar
com (…) psicotécnica.
25 Idem, ibidem (p. 97)
lxv
O ator é rachado em dois pedaços quando está atuando. (…) O ator vive, chora
e ri em cena, mas enquanto chora e ri ele observa suas próprias lágrimas e
alegria. Essa dupla existência, esse equilíbrio entre a vida e a atuação, é que faz
sua arte.
Como vêem, essa divisão não prejudica a inspiração. Pelo contrário, uma coisa
estimula a outra. Além disso, em nossa vida real, nós levamos uma existência
dupla. Isso entretanto não nos impede de viver e sentir emoções fortes. (…)Uma
é a perspectiva do papel. A outra é a perspectiva do ator, sua vida no palco, sua
psicotécnica enquanto está representando.26
Construir uma instância reflexiva, que permita intermediar a relação
entre as manifestações físicas exteriores e o turbulento (e, às vezes,
imprevisível) manancial do qual provém toda sorte de emoções talvez seja um
dos aspectos de utilidade mais evidente na prática da Capoeira para o ator.
“11. A valorização da disciplina como fonte de liberdade. Este aspecto do
trabalho é sugerido em cada um dos itens anteriores, mas merece algumas
considerações à parte. A despeito da ênfase que se dá ao aspecto da segurança,
sempre existe a possibilidade de risco físico na luta desarmada e os alunos logo
passam a apreciar este risco como elemento motivador. Ao mesmo tempo, no
entanto, desenvolve-se um saudável respeito pela disciplina como a chave da
manutenção da integridade física (e afetiva) dos jogadores. Junto vêm a
confiança no parceiro (disponibilidade) e em si próprio (comprometimento). Os
alunos aprendem a valorizar o lado positivo e assegurador da disciplina em sua
atividade. Ao invés de considerá-la um fardo, passam a encará-la como
ferramenta indispensável à manutenção de seu bem estar físico e contínuo
desenvolvimento de sua eficiência corporal. Além de uma resposta emocional
mais livre e integrada ao universo do personagem e da cena”. 27
26 STANISLAVSKI, Constantin. A Construção do Personagem. (p. 197 e 198).27 Op. Cit. Nota 17
lxvi
A imensa maioria dos métodos de treinamento de atores tem um
denominador comum: a importância da disciplina. O próprio Stanislavski ressaltou
sua importância:
“A disciplina férrea (…) é absolutamente necessária em qualquer atividade de
grupo.(…) Isto se aplica sobretudo à complexidade de uma representação
teatral (…). Sem disciplina, não pode existir a arte do teatro!” 28
Para o verdadeiro capoeirista ela se reveste de igual importância. Sua
formação e aperfeiçoamento seguem parâmetros exigentes, que variam de mestre
para mestre e de escola para escola. Todos, no entanto, têm em comum a enorme
dedicação aos treinamentos (longos, minuciosos e exaustivos), a superação diária
dos próprios limites físicos e psicológicos (cansaço e medo, entre outros), o
respeito à hierarquia e às regras do jogo, a lealdade aos colegas e uma comovente
devoção aos antepassados, ao mestre e, principalmente, ao berimbau, comandante-
mor do jogo de Capoeira e mestre de todo o capoeirista.
Como vemos, mesmo numa atividade de índole tão originalmente
subversiva, tão baseada no princípio do prazer e aparentemente tão avessa a
aprisionamentos, a Capoeira tem a sabedoria de enxergar a disciplina como aliada
28 Op. Cit. Nota 18 (p. 274)
lxvii
fundamental. Indispensável como a estrutura sólida das asas, que permitem aos
pássaros alcançar seus mais altos vôos.
lxviii
5 - CONCLUSÃO
Observamos que a Capoeira, no que concerne aos princípios que
fundamentam a utilização das técnicas de combate no método Lecoq, apresenta-se
como uma ferramenta abrangente e estimulante, que capacita o ator–praticante a
desenvolver habilidades fundamentais. Ampliando sua capacidade e
expressividade corporal e potencializando aspectos básicos, necessários ao bom
desempenho de seu ofício, como disponibilidade física, disciplina, capacidade de
relacionamento em grupo, prontidão para o jogo, improvisação, noção acurada de
tempo, espaço e ritmo, criatividade, desinibição, disciplina e respeito às regras
preestabelecidas, entre vários outros. Além de ser também um esporte com raízes
genuinamente brasileiras, praticado a um custo reduzidíssimo, parte integrante de
nossa cultura e profundamente identificado com nossa realidade social.
O jogo da capoeira representa um simulacro do próprio processo do
atuação. Em ambos os casos, o aluno-ator-jogador precisa definir quem, que, onde
e quando. Precisa atuar em total comprometimento com a situação e as ações a ela
associadas. As intenções e ações do aluno, por sua vez, devem ser moldadas por
circunstâncias claramente delineadas. Em outras palavras, devem estar integradas
com respostas emocionais adequadas às necessidades e ações do personagem,
estando este inserido em determinada situação. As emoções do aluno, por sua vez,
precisam ser equilibradas através de intensa concentração mental e refinada
técnica corporal.
lxix
Embora a prática da Capoeira não tenha a pretensão de substituir as aulas
específicas de Interpretação, vemos que é possível estabelecer uma perfeita
analogia do processo do ator com o do jogador de Capoeira. Na roda, o aluno
precisa saber qual o seu papel no jogo, com quem joga, qual jogo está sendo
jogado, onde este jogo se realiza e quando tomar esta ou aquela atitude. Precisa
“entregar-se” ao jogo com cautela e, ao mesmo tempo, confiança e
generosidade. Sua partitura corporal precisa ser recriada, reinventada a cada
momento, inteiramente receptiva à partitura do parceiro, ao diapasão do jogo e à
imprevisibilidade do mesmo. E, ao mesmo tempo, esta mesma partitura deve ser
executada com extrema precisão física e completo equilíbrio emocional.
Levando a analogia ao extremo, podemos dizer que a roda de Capoeira é
um palco. Os jogadores são atores que “interpretam” um texto, ditado pelo
toque do berimbau, para uma platéia receptiva e participativa como poucas. E o
mestre é um competente diretor que sabe quando e como interferir no jogo,
suprimindo alguns elementos que não contribuem para seu aperfeiçoamento,
estimulando outros que fazem-no crescer em técnica, precisão e ludicidade e,
sabiamente, recolhendo-se no momento adequado e “deixando o jogo rolar”
pois, assim como no Teatro, o que importa é a beleza do jogo e não a vaidade
do jogador. Ou do mestre.
Somando-se a estes elementos a confiança em si próprio e no parceiro,
juntamente com a consequente entrega e presentificação que a Capoeira induz,
lxx
temos um número expressivo de ingredientes que definem esta dança/luta/jogo
como uma atividade que pode trazer notáveis progressos ao aluno-ator.
Esta pesquisa, contudo, não seria completa sem a experimentação prática do
contato entre alunos-atores e a Capoeira. Para tanto foi realizado, durante o
segundo semestre de 1998, uma oficina de Capoeira para Atores (alunos da UNI-
RIO), ministrada por Mestre Garrincha. A adesão de um número expressivo de
alunos e os resultados obtidos foram além da expectativa. A documentação de
alguns momentos desta oficina encontra-se no Anexo II-B.
As aulas foram de cunho teórico-prático, onde, a todo momento, eram
sublinhadas as conexões entre a prática da Capoeira e os processos de formação do
ator, notadamente os elementos de Expressão Corporal. Para tanto revestiram-se
de especial ênfase os aspectos mais caracteristicamente folclóricos & ritualísticos
do jogo (Maculelê, cantos, percussão, chamadas de Angola, etc.), além, é claro, de
evidenciar a similaridade entre vários tipos de exercícios físicos da Capoeira e os
comumente praticados nas aulas de Expressão Corporal para atores. Esta
similaridade, inclusive, já foi brevemente ilustrada (juntamente com outras
interessantes analogias) na Iconografia Comparativa do início desta dissertação.
No término da oficina os alunos foram unânimes em elogiar a iniciativa,
reconhecer os benefícios (efetivos e potenciais) do treinamento para sua formação
e afirmar que continuariam a praticar a Capoeira, mesmo tal atividade não fazendo
lxxi
ainda parte do currículo dos cursos de graduação. Não faltou quem sugerisse tal
inclusão e é exatamente o que propomos nesta dissertação.
Defendemos a idéia de que a Capoeira pode e deve ser incluída, ao menos
como disciplina optativa, nos cursos superiores de formação de atores no Brasil.
Como já salientamos, os métodos de preparação do ator, a exemplo da
produção dramatúrgica, sempre estiveram em sintonia - intencional ou não - com
os princípios teóricos e estéticos da sociedade de seu tempo. Cada ideologia com
sua estética, teatralmente traduzida em dramaturgia, encenação, cenografia,
indumentária, música e, naturalmente, interpretação. Stanislavski e seu Método
das Ações Físicas, Meyerhold e a Biomecânica, Craig e suas Supermarionetes, o
Estranhamento de Brecht, entre outros, são exemplos cristalinos dessa
sincronicidade. Mas todos esses diferentes métodos, em diferentes países e épocas,
sempre tiveram em comum a combinação orgânica e criativa de diversas
atividades físicas, autóctones ou não.
O ator brasileiro, mesmo levando-se em conta algumas honrosas exceções,
ainda sofre com a falta de boas escolas, bons professores, currículos adaptados à
sua realidade e com o excesso de empirismo que, por vezes, norteia sua evolução.
Para piorar, a grande maioria padece do mesmo paradoxo: quando está
trabalhando não lhe sobra muito tempo para estudar; quando está menos ocupado,
esbarra na dificuldade financeira para custear seus estudos que, muitas vezes, são
lxxii
insuficientes e inadequados. Suas necessidades de aprofundamento são múltiplas,
urgentes e onerosas.
Esta dissertação pretendeu explorar recursos do jogo de Capoeira que
possam suprir algumas destas necessidades a um custo extremamente reduzido e
explorar novas possibilidades ao nível do ator.
Levando-se em conta a realidade do teatro (e do ensino) brasileiro, parece-
nos oportuno estabelecer uma alternativa metodológica de fácil acesso,
profundamente identificada com elementos de nossa cultura, e que possa servir
como uma referência a mais ao ator que, autodidata ou não, se lança no árduo e
frequentemente solitário processo de auto-aperfeiçoamento; um método de
abordagem possível à problemática da preparação corporal e útil para a
sistematização de novos procedimentos na pesquisa prática em teatro. Além de
trazer para o ambiente acadêmico uma opção a mais que se justifique, não somente
por seu baixo custo e praticidade, como também por constituir-se numa
possibilidade rica e cientificamente formulada. Acreditamos que esse tipo de
investigação reveste-se de grande utilidade, não só para a comunidade acadêmica,
mas também - e principalmente - para o ator e seu ofício.
lxxiii
6 – BIBLIOGRAFIA
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__________________________________________________________________
Entrevistas
BUCKUP, Vivien. Entrevista exclusiva para esta pesquisa. Rio de Janeiro, 1998.
COLKER, Deborah. Ibidem.
GOLDMANN, Ariela. Ibidem.
KAISERMANN, Nara. Ibidem.
KFOURY, Ana. Ibidem.
MELLO, Renata. Ibidem.
RUBIN, Márcia. Ibidem.
VIANNA, Angel. Ibidem.
lxxx
ANEXO I – ENTREVISTAS
Entrevistadas / Rio de Janeiro:
1 - Ana Kfoury (A.K.): atriz e diretora teatral. Atuou em diversas peças,
trabalhando com diretores como Gerald Thomas, Antonio Abujamra e Paulo José,
entre outros. Em 1991 fundou sua própria companhia, A Companhia Teatral do
Movimento, onde desenvolve sua pesquisa de linguagem cênica, dedicando-se
inteiramente às tarefas de diretora, roteirista e produtora. Faz também a direção de
movimento de várias montagens teatrais.
2 - Angel Vianna (A.V.): Bailarina, artista plástica, atriz, coreógrafa, professora e
pesquisadora em Dança e Expressão Corporal. Nasceu em Belo Horizonte, onde
iniciou seus estudos formando-se em Ballet Clássico em 1958. Foi fundadora,
juntamente com Klauss, do Ballet Klauss Vianna, considerado pela crítica como
pioneiro do vanguardismo pelos seus méritos na pesquisa através da literatura,
música e outros estímulos. Simultaneamente formou-se em Música e também em
Belas Artes. No Rio a partir da década de sessenta, iniciou o trabalho de corpo
para atores a partir da técnica criada e denominada por Klauss: Expressão
Corporal. Tal processo iniciou-se com os atores da Ópera dos Três Vinténs. No
Rio de Janeiro, como docente, está vinculada ao Conservatório Brasileiro de
Música como Titular da Cadeira de Expressão Corporal dos cursos de
Musicoterapia e Educação Artística. Participou da fundação do Centro de Pesquisa
lxxxi
Corporal Arte e Educação, onde a Expressão Corporal foi sedimentada e tomou
grande vulto com a participação de atores, artistas plásticos, bailarinos, técnicos e
educadores, entre outros profissionais. Como coreógrafa, pesquisadora e
professora de Dança e Expressão Corporal, tem realizado dezenas de coreografias;
dirigido peças de teatro; feito Direção de Corpo para novelas, filmes e outros
eventos no campo da Dança, Teatro e Artes Plásticas. É considerada por inúmeros
profissionais como a maior autoridade no campo da Expressão Corporal no Brasil.
3 - Deborah Colker (D.C.): Bailarina, coreógrafa, diretora de companhia de
dança. Carioca, 38 anos, Deborah Colker tem uma formação eclética. Antes de
transitar pelo mundo da dança, estudou piano clássico por dez anos, foi jogadora
de vôlei e estudou Psicologia na PUC. Durante os anos 70, Deborah se integra ao
Grupo Coringa, no qual, sob a batuta de Graciela Figueroa, dança, coreografa e dá
aulas. Em 1984 é convidada por Dina Sfat para coreografar os movimentos da
peça “A Irresistível Aventura”, com direção de Domingos de Oliveira. De lá para
cá freqüentou a ficha técnica de mais de trinta espetáculos, conquistando diversos
prêmios nesta trajetória. Coreografou também shows, videoclips, cinema e
publicidade, e, por três anos, a Comissão de Frente da Estação Primeira da
Mangueira. Em 1994, convidada por Monique Gardenberg para participar do
Carlton Dance, funda sua própria companhia.
lxxxii
4 - Márcia Rubin (M.R.): nasceu no Rio de Janeiro, em 1962 e formou-se em
Educação Física pela Universidade Gama Filho, completando seus estudos no
curso de especialização de três anos da Escola Angel Vianna. Em 1985 começou
seu trabalho de coreógrafa e preparadora corporal com o espetáculo infantil
Morangos e Lunetas. Desde então são mais de vinte trabalhos como preparadora
corporal. Foi professora da Uni Rio em 1986 e atualmente é professora da Escola
de Teatro Martins Pena e dos cursos superiores de Dança e formação de atores da
Faculdade de Cidade. Fundou a companhia de dança que leva seu nome em 1991,
com a qual já montou três trabalhos. O último deles intitula-se Correr em vez de
caminhar.
5 - Nara Kaisermann (N.K.): nasceu em Pelotas, RS, em 1949. Graduada em
História e Direção Teatral na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, obteve
o Mestrado na USP, com a tese Expressão Corporal do Ator: uma Proposta
Didática - Tem Dias Que A Gente Se Sente, sob a orientação do Prof. Dr. Miroel
Silveira. Co-fundadora do Núcleo Carioca de Teatro, tem atuado como
preparadora corporal, atriz e diretora, desde 1969. É professora da CAL, desde
1982, e da UNI-RIO, desde 1997, nas disciplinas de Expressão Corporal. Seus
últimos trabalhos de produção artística foram: A Vida Como Ela É, Cândido, ou o
Otimismo e Tragédias Cariocas Para Rir (como atriz); Céu e Terra, Água e Ar...,
Champagne e Morango e Um Conto para Rosa (como diretora); A Vida Como Ela
lxxxiii
È, Cândido ou o Otimismo e Um Bolo de Casamentos (como preparadora
corporal).
Entrevistadas / São Paulo
1 - Ariela Goldmann (A.G.): atriz, preparadora corporal e coreógrafa de lutas. É
formada pela Escola de Comunicações e Artes (USP) em Artes Cênicas e pela
London Academy of Music and Dramatic Art (Londres, Inglaterra) no curso
de Teatro Clássico e Moderno para atores. Nasceu em São Paulo em 1965,
onde reside e trabalha. Iniciou sua carreira em 1983 e tem trabalhado
desde então em teatro, rádio (rádio novelas), televisão e cinema. Como
atriz participou, entre outros, dos seguintes espetáculos: Atos e
Omissões, Budro, Rei Lear, A Comédia dos Erros e Seis personagens
à procura de um autor. Como preparadora corporal e coreógrafa de lutas
trabalhou para os seguintes espetáculos, entre outros: A Megera Domada,
Dois Perdidos numa Noite Suja, Querô, uma reportagem maldita,
Carmem (ópera), Um Céu de Estrelas (cinema), Oeste e Navalha na
Carne.
2 - Renata Mello (R.M.): nasceu em Ribeirão Preto, SP, em 1956. Iniciou sua
carreira em 1980 com grupo de dança Marzipan, com o qual montou mais de vinte
lxxxiv
peças. É formada em Odontologia pela USP, residindo e trabalhando em São
Paulo desde 1973. Alguns de seus principais trabalhos com preparadora corporal e
coreógrafa são Boteco (peça de Arte Dramática da USP), Avesso e Sherazade
(espetáculos de Francisco Medeiros), À Margem da Vida (de Bete Lopes) e O
Enigma do Minotauro (do grupo XPTO). Dirigiu ainda os espetáculos de dança-
teatro Domésticas, Bonita Lampião, Slices of Life e Receba as Flores.
3 - Vivien Buckup (V.B.): nasceu em São Paulo, em 1956, formando-se no curso
de Comunicação da ECA-USP. Estudou Ballet Clássico com nomes como Marina
Aguiar, Julia Ziviani e Klauss Vianna; Expressão Corporal com Marika Gidali e
Ruth Rachou e Dança Moderna com Mara Borba e Karen Atix, entre vários outros.
Iniciou seu trabalho em preparadora corporal em A Divina Increnca (1985) e Hello
Boy (1986), ambas com direção de Roberto Lage. Participou, como atriz e
bailarina, de vários trabalhos. Entre eles, a opera-rock Clara Crocodilo, de Arrigo
Barnabé, o filme Asa Branca, um sonho brasileiro, de Djalma Limongi Batista e
vários espetáculos de teatro como Uma Relação tão Delicada e Elsinore, ambas de
William Pereira e mais quatro espetáculos de Gabriel Vilela (A Vida é Sonho. Vem
Buscar-me Que Ainda Sou Teu, A Falecida e O Mambembe). Realizou ainda a
preparação dos atores da mini-série Chiquinha Gonzaga (Rede Globo) e recebeu
vários prêmios, entre eles Shell, Mambembe e Cultura Inglesa, como coreógrafa,
preparadora corporal e diretora teatral.
lxxxv
QUESTIONÁRIO
1. No que consiste, segundo o seu ponto de vista, o trabalho de preparação
corporal no caso específico do ator?
A.K.: Penso que um trabalho corporal consciente e constante é indispensável para
a formação e o aperfeiçoamento do ator. Para dar concretude às suas idéias, o ator
utiliza suas ferramentas básicas – corpo e voz – que, uma vez bem trabalhadas,
estão sempre desafiando-o em seus limites e lhe permitindo, ao longo de sua
carreira, maior requinte e sofisticação. Atuar é brincar e o corpo é um grande
aliado do intérprete neste jogo, possibilitando a este uma profunda investigação de
suas possibilidades de expressão.
A.V.: Maior conhecimento do próprio corpo através da percepção das estruturas
óssea e muscular, bem como o funcionamento e a funcionalidade das articulações;
Liberação de tensões acumuladas, tendo como conseqüência um melhor
desempenho do corpo enquanto aparato de movimento no espaço externo ou
interno;
Contato consigo mesmo enquanto ser pleno de potencialidades e contato com o
outro;
Contato com o meio ambiente, consciência das superfícies de apoio (chão,
assentos) e percepção em torno de si;
lxxxvi
Desenvolvimento e manifestações da criatividade através da linguagem corporal e
da expressão sonora.
D.C.: O corpo do ator é o instrumento de comunicação, é o veículo dele com a
platéia. As intenções, a plástica do personagem, a compreensão do texto, a
atmosfera da peça devem estar contidos no corpo e na movimentação do ator.
Estes movimentos necessitam de relaxamento e tensão, de prazer e precisão. Este
corpo necessita de um trabalho dinâmico e plural.
M.R.: Sensibilização e condicionamento físico. Percepção do seu corpo como
estrutura motora (ossos, músculos e articulações), conhecimento das qualidades de
movimento e sua relação com o espaço/ritmo externo.
N.K.: Em primeiro lugar, acho que não se pode ver assim, em separado o corpo
(do ator) e o ator. Qualquer proposta de trabalho que tenha como expectativa
colocar em cena uma pessoa, a do ator, deve considerá-lo assim: uma pessoa. Na
preparação corporal, está bem, a ênfase vai para o corpo; é através do corpo, pela
via do corpo que vai se chegar ao ponto: a alma, o sangue, o suor, os nervos do
ator.
A.G.: Creio que o trabalho de preparação corporal do ator consiste basicamente
nos seguintes pontos:
lxxxvii
a) Dar ao ator uma percepção em relação ao seu corpo, como ele se movimenta,
como ele não se movimenta, o que impede ou dificulta seus movimentos, qual é
sua auto-imagem e qual a relação desta auto-imagem com o que é o seu corpo.
Como ele age/se movimenta e como acha que está agindo/se movimentando. Fazê-
lo perceber, principalmente, o que ele está fazendo a mais sem necessidade, tentar
retirar todos os esforços para colocar o corpo num estado de prontidão e
disponibilidade absoluta. Dar um sentido de eixo corporal e do espaço em torno.
Dar uma boa forma física para o trabalho que ele pretende realizar. Fazer o ator
perceber que relaxamento é prontidão e não “derretimento”.
b) Fazê-lo perceber como os outros se movimentam, fazê-lo refletir sobre que
impressões se tem vendo o movimento dos outros, ou seja, o que a ação do outro
está transmitindo para quem a vê, o que a ação diz sobre o comportamento. Fazê-
lo perceber como a menor mudança de alguma parte do corpo pode alterar esta
percepção externa (no caso, o espectador). IMPORTANTE: Não se trata aqui
absolutamente de rotular tipos ou fazer uma leitura semiótica do significado dos
movimentos, apenas aumentar a percepção do ator para que esta possa auxiliá-lo
na composição de uma personagem, sem idéias pré-concebidas.
c) Integrar o texto que está sendo trabalhado com o trabalho corporal, fazendo com que o
ator perceba que o movimento vem da ação do personagem; que as falas (e os objetivos),
quando bem compreendidas, terão uma ação correspondente. E como o trabalho com o
movimento pode ajudar a compreender uma fala ou cena. Acredito que, quanto melhor
compreendido o texto, melhor o corpo responderá. Acho que um texto que não é
lxxxviii
compreendido terá um corpo morto em cena. Fazer o ator perceber a musicalidade do
texto, para que ele entenda quais ritmos que a peça que está sendo trabalhada propõe e
como estes ritmos podem ser realizados na ação das personagens.
d) Integrar os atores de uma mesma montagem com o objetivo de criar confiança,
respeito e companheirismo entre os mesmos para que estes possam trabalhar nos
ensaios com conforto e sem medo de experimentar e arriscar.
R.M.: Consiste basicamente em deixar o ator preparado para que ele possa criar,
conceber e elaborar seu personagem. Em outras palavras, dar condições físicas ao
ator para que ele possa conceber o personagem.
V.B.: O trabalho de preparação corporal do ator consiste no exercício diário e
constante, baseado em técnicas e atividades que permitam o desenvolvimento das
possibilidades do gesto e do movimento enquanto via de expressão ou instrumento
de linguagem.
2. Quais são os objetivos a serem alcançados neste caso específico?
A.K.: O objetivo principal é o aprimoramento técnico que se faz imprescindível
para o ator, pois lhe proporciona uma sólida base no seu processo de criação e
maior domínio em sua atuação.
lxxxix
A.V.: Tanto para o ator como para um outro profissional de arte é fundamental o
contato e desenvolvimento dos itens acima citados;
O USO pressupõe conhecimento, consciência, portanto o ator deve ser
sensibilizado na totalidade. A voz e o texto não estão separados do todo.
A preparação corporal proporciona ao ator o conhecimento do espaço, aumentando
as possibilidades de por onde e como se dirige a um ponto. Proporciona uma
melhor percepção dos objetos do espaço e do grupo; conhecimento e melhor uso
das qualidades de movimento, peso, tempo, espaço e fluxo.
Tendo consciência da totalidade, o ator apresenta novas possibilidades na
construção do personagem. O texto, a fala, o corpo do personagem e o espaço
onde atua podem ganhar uma poderosa projeção, pois será a manifestação de sua
totalidade.
É fundamental para o artista a busca do auto-conhecimento.
D.C.: O corpo do ator não pode ser um empecilho, pelo contrário, deve estar a
serviço do ator, para através dele comunicar à platéia tudo aquilo de essencial. O
ator precisa desenvolver um domínio total de seus movimentos e uma consciência
impecável de seu corpo e de sua postura, para poder atuar com total destreza e
dinâmica no percurso de seu personagem.
xc
M.R.: Desenvolver no ator um corpo sensível, expressivo e potente. Um corpo
capaz de se relacionar em cena com naturalidade e precisão, de forma econômica e
serena.
N.K.: Pensando na via (de acesso) corporal vai o básico:
- Percepção: sensibilização, consciência, concentração, jogo,
disponibilidade, ATENÇÃO e
- Movimento: flexibilidade, força, agilidade, destreza, energia, vocabulário, muito
vocabulário e ATENÇÃO.
A.G.: “(...) A condition of complete simplicity
Costing not less than everything (...)”
T. S. Eliot (Four Quartets, Little Gidding)
“The readiness is all”Hamlet, Ato V, Cena II.
Acho que essas duas frases resumem não só o objetivo a ser alcançado na
preparação corporal, como também na interpretação. A prontidão, a
disponibilidade de uma criança de 3 anos e a simplicidade de uma letra do Cartola.
Simplicidade no sentido do essencial, da falta de auto-indulgência. E fazer o ator
perceber que não há trabalho de corpo se a cabeça não está junto para que se
entenda a fala (o texto) e para que o corpo responda a ela como conseqüência não
xci
só na voz, mas como um movimento que se cria dentro do ator. E também como o
movimento pode ajudar na composição do personagem e na busca da emoção.
R.M.: Creio que objetivo principal consiste em deixar o corpo o mais “limpo”
possível. Preparado muscularmente em termos de alongamento, tonicidade, etc.,
mas o mais neutro possível, tentando-se eliminar todos os vícios do ator, da pessoa
em si. Isto para que ele possa criar em cima de um tecido neutro, não transferindo
para o personagem seus vícios pessoais. Tornar o corpo do ator mais disponível e
aberto - como uma massa plástica - para que ele possa ser moldado pelo diretor da
maneira que melhor lhe convier.
V.B.: Possibilitar ao ator o conhecimento de seu próprio corpo e suas relações com
o espaço que ocupa; dar instrumentos para que o ator transforme este
conhecimento em forma de expressão; estabelecer e ampliar o domínio das
técnicas que o levem ao aprimoramento dessa forma.
3. Você já utilizou / utiliza ou pensa em utilizar alguma arte marcial como
elemento coadjuvante em seu trabalho? Em caso afirmativo, qual, como e
porquê?
A.K.: Por enquanto, não.
xcii
A.V.: Sim, Capoeira, Yoga e Kempo. Vimos nestas técnicas a possibilidade do
ator e bailarino (e nós próprios) conhecer uma estética de movimento diferente da
que vinham praticando; diferente na estética, diferente no uso do corpo em
movimento e ainda de uma nova possibilidade de tônus, a busca de um maior
vigor. Em minha primeira turma de formação no Rio incrementei o curso trazendo
a Yoga e a Capoeira de Angola (esta com o Mestre Lua).
D.C.: Sim, já utilizei várias vezes. Sob a direção de Ulysses Cruz em Macbeth,
com meu próprio espetáculo (ou com minha própria companhia) em Velox, assim
como em diferentes proporções em vários outros espetáculos..
As artes marciais existem há mais de mil anos e têm uma consistência, uma
disciplina e um sistema fechado que contribuem no método para o trabalho
corporal. No sentido da respiração, precisão, controle, domínio da força, ataque,
memória, dinâmica, base; para citar alguns de seus benefícios.
E, sendo um sistema fechado, contribui simultaneamente para a liberdade do
processo criativo.
M.R.: Nunca utilizei, pois não domino nenhuma técnica de arte marcial.
N.K.: Nunca pensei em usar porque nunca experimentei eu, pessoalmente.
Costumo recomendar, conforme a necessidade específica do aluno.
xciii
A.G.: Eu utilizo uma técnica de “stage-fight” (luta para o palco) quando vou
coreografar uma luta (com espadas, combate desarmado, etc.) para um espetáculo.
Esta técnica consiste em coreografar uma luta que pareça real para quem a vê; ela
não é improvisada em nenhum momento e é sempre criada em função do que o
texto e a direção pedem, assim como do trabalho de composição de personagem
que os atores estejam fazendo. Diz-se que a boa coreografia de lutas NÃO É
aquela em que o público vê Hamlet lutando com Laertes e diz: “Olha, os atores
aprenderam a lutar esgrima”. NEM aquela que o público diz: “Nossa, esses atores
vão se machucar”. MAS SIM aquela onde o público diz: “Nossa, o Laertes vai
matar o Hamlet”. Ela deve sempre servir o espetáculo. Não deve nunca ser um
momento destacado da ação dramática, nunca a técnica pela técnica. Acho que é
um ótimo exercício para o ator porque parte do princípio que a luta deve ser
sempre igual (a cada espetáculo), mas cada vez melhor. Mas também uso a técnica
(que não é uma luta marcial) mesmo quando não há uma luta a ser coreografada
porque esta técnica se baseia na busca do eixo corporal, contato visual, prontidão,
não antecipar reações (não antecipar uma defesa, esperar o ataque para responder
de maneira natural) características básicas a serem desenvolvidas para quem é ator.
R.M.: Nunca usei. Já pratiquei Tai Chi, mas não costumo utilizá-la em minha
prática. Em algumas ocasiões, certos personagens podem apresentar características
de ataque, de força e concentração de energia. Neste caso, acho que seria um
recurso muito adequado.
xciv
V.B.: Já utilizei em meu trabalho princípios e movimentos específicos de Karatê e
Tai’Chi, principalmente. No caso do Tai’Chi acentuei o equilíbrio e a harmonia de
movimentos que essa técnica propõe e no Karatê o impulso e o vigor na execução
de determinados desenhos coreográficos.
4. Ao realizar seu trabalho de preparação corporal para atores você aplica
algum método já sistematizado ou desenvolveu método próprio? Como é
este método?
A.K.: Não sigo e nem tenho método, posso dizer que tenho um estilo próprio.
Quando assino a preparação corporal ou a direção de movimento de um
espetáculo, fico colada ao diretor para compreender com profundidade sua
concepção, para então jogar com os atores e desta maneira ir descobrindo
caminhos que nos levem à concretude do que foi idealizado.
Trabalho exclusivamente a partir da personalidade do ator. Dependendo do
elenco e do universo a ser trabalhado, insisto num aquecimento técnico, integrando
corpo e voz. Em outras situações, o trabalho corporal age de maneira decisiva no
processo de criação, através de exercícios sensoriais. Em outras ainda, começo
com o aquecimento técnico e com o avançar dos ensaios vou aprofundando os
exercícios sensoriais e as improvisações, para, com material suficientemente
consistente extraído do trabalho do ator, iniciar as marcações cênicas. Algumas
vezes, e isto depende muito do elenco e da direção, o trabalho corporal entra só
xcv
como aquecimento e depois objetivamente nas cenas, e esta maneira de trabalhar é
a de que menos gosto.
Enfim, depois do entendimento real da concepção cênica, meu olhar se volta
exclusivamente para o ator a fim de extrair dele seu melhor rendimento.
A.V.: Sempre conduzo meu aluno à percepção de seu peso, ampliando a
consciência da totalidade a partir das partes. No relaxamento o aluno é levado a
observar seu peso, seu volume e dimensões; as relações entre as diversas partes do
corpo e suas respectivas superfícies de apoio (chão, banco, bambu, bola). É
conduzido também a perceber o nível de tensão existente em cada área de seu
corpo num dado momento, bem como afrouxar essa tensão através de sua
consciência e atenção e descarregá-la, seja na direção do chão ou na de um objeto
específico.
Partindo deste princípio de reconhecimento do corpo e suas partes, proponho
improvisações que permitem que o indivíduo se expresse e busque no corpo uma
nova comunicação. São propostos jogos em que o indivíduo pode se relacionar
consigo, com o outro, com objetos, com o espaço, imprimindo na pesquisa ritmos
diferentes. Os jogos podem promover a expressão bem como a atenção e
consciência do uso do corpo, maneiras de caminhar, transferência de peso de um
pé para o outro ou ainda para uma outra parte, percepção do olhar, sua direção (ou
sua ausência).
xcvi
D.C.: Desenvolvi um método próprio. Busco desenvolver a atenção em três itens:
músculos, ossos e articulações. O corpo precisa desenvolver a força dinâmica,
simultaneamente à flexibilidade. A postura, a anatomia, sua personalidade física,
colocar seu corpo à disposição do movimento. Entender que movimento é ação,
isto é, necessita de intenção, atenção e capacidade de transformar. Por exemplo: o
ato de andar é um deslocamento. Significa transformação, e você deve saber a
importância e como devem ser feitos movimentos tão simples e cotidianos.
Prazer, ritmo, vigor, fluxo, peso, volume, equilíbrio, geometria, gesto, ação,
estão presentes em todos os momentos do meu trabalho corporal.
M.R.: Não acredito em um método já sistematizado e sim em referências de
trabalho. Trabalho de forma empírica e uso bastante a intuição. Neste processo
utilizo a experiência vivida com Angel e Klauss Vianna, Ivaldo Bertazzo e Regina
Miranda, além da minha experiência de 10 anos lecionando em escolas de teatro e
atuando no mercado.
N.K.: Estou nisto de dar aula de Expressão Corporal desde 1969 e fui chegando a
uma sistematização do trabalho, por absoluta necessidade pedagógica, para poder
organizar os "milhares de exercícios" numa seqüência de grau de dificuldade e
ampliação gradativa do mundo expressivo-corporal do aluno. Custa-me explicar,
mas posso dizer que vai assim organizado em 4 módulos:
xcvii
a) A base é a Percepção, e o foco é "puxar o movimento para fora", trazer a
sensibilização "à flor da pele". Assuntos: os sentidos, as partes do corpo, o
espaço, a locomoção.
b) A base é o Ritmo e o foco é a harmonia do eu de dentro com a sua expressão
física, a corporização das sensações e dos sentimentos em ações elaboradas.
Assuntos: Ações Básicas, de Laban com ênfase no estudo do Tempo/Ritmo e
Objetos Reais e Imaginários
c) A base é a Intensidade e o foco é o impulso, o sincronismo, a forma. Assuntos:
Peso, Contato (interação, jogo) e as seqüências de Meyerhold. O movimento
revelando, tornando físicas as intenções, o "sub-texto", as entrelinhas, o eu-
verdadeiro, a essência do personagem.
d) A base é o MOVIMENTO, aproxima-se bem do chamado Teatro/Dança.
Aplicação de todos os assuntos em textos dramatúrgicos ou não.
A.G.: Acabei desenvolvendo um método próprio, resultado de uma mistura dos
vários métodos pelos quais passei como atriz ou simplesmente como terapia
corporal. É um método que tem como eixo central os objetivos já expostos nas
perguntas 1 e 2. Trabalho sempre dentro deste eixo mas, a cada trabalho, procuro
adaptar um repertório de exercícios em função da peça que está sendo encenada
(por exemplo: creio que a preparação corporal para uma peça de Tchecov é
completamente diferente daquela para um musical; uma peça de Tchecov requer
um preparo corporal muito mais intenso do que um musical, que é cantado e
xcviii
dançado), dos atores, do tipo de montagem a ser feito, do espaço a ser trabalhado,
enfim. A única coisa que existe é este eixo central e uma experiência variada que
se renova a cada trabalho.
R.M.: Creio já ter estruturado um método próprio que consiste na mistura de
várias técnicas que visam aumentar a consciência corporal. Trabalho muito em
cima da técnica de Alexander, que apresenta as mesmos princípios de quase todas
as técnicas de conscientização corporal. Mais do que em cima de uma técnica, eu
trabalho em cima de conceitos, que são as verdadeiras ferramentas de trabalho.
V.B.: Minha formação tem como base a dança. A dança clássica e todas as
técnicas dela derivadas bem, como trabalhos que contribuem na formação de um
corpo/espírito bailarino. Quando trabalho com atores não aplico nenhum método
específico e não posso afirmar que desenvolvi um método próprio. O que faço é
estabelecer uma “estratégia” de ação, tendo em vista que cada corpo é um corpo
com possibilidades e limitações diferentes e que precisam de caminhos de
desenvolvimento e expressão, tanto individualmente quanto em grupo. Para cada
ator (ou grupo de atores) determino qual ou quais as mais apropriadas técnicas a
serem usadas no trabalho a partir deles próprios.
Estabeleço e organizo um dia de trabalho da seguinte forma:
a) Inicialmente, movimentos de alongamento e “espreguiçar” para o que
costumo chamar de despertar do corpo.
xcix
b) Em seguida, posturas e “situações gestuais” que propiciem um estado extra-
cotidiano.
c) Exercícios enfocando alguma parte específica do corpo, com o objetivo de
conhecer suas possibilidades de movimento ou fortalecer alguma
musculatura específica.
d) Exercícios para integrar esta parte ao todo.
e) Movimentos e deslocamentos, pequenos desenhos coreográficos para situar
o corpo no espaço e suas relações com outros corpos.
f) Exercícios de composição do personagem ou de uma cena específica, com
enfoque sobre o gesto, a pose, a pausa ou o movimento contínuo.
5. Quais são as principais fontes teórico-práticas nas quais você baseia o seu
trabalho?
A.K.: Trouxe da dança, onde comecei, a perseverança, a disciplina e a
determinação. O estudo da técnica de Martha Graham provocou em mim uma
profunda inquietude que me levou diretamente ao teatro e a buscar maneiras de
descobrir caminhos para aprimorar minha expressão artística.
Todo meu trabalho corporal enquanto atriz foi desenvolvido a partir daí e da necessidade
que sentia como intérprete em desenvolver, criar, investigar caminhos e exercícios que
pudessem me potencializar, me credibilizar enquanto instrumento de expressão artística.
Logo percebi a urgência em conciliar corpo, respiração e voz e não pensá-
los isoladamente. Queria ter resistência e preparo para estar à altura das minhas
c
ambições artísticas e estéticas e também das ambições de meus diretores. A idéia
era pesquisar como fazer para que com esta fusão eu pudesse ganhar ousadia no
processo de criação e qualidade no resultado cênico. Não descobri isto em nenhum
livro e pouco se tem de consistente nesta área. Foi Gerald Thomas quem serviu de
alavanca para meu desenvolvimento neste sentido e me impulsionou a um estudo
efetivo do trabalho corporal aliado à respiração e à coluna vocal.
No trabalho corporal propriamente dito, nenhum livro ou autor me
provocou questões ou indagações que me instigassem a produzir e a criar, e tenho
como minhas verdadeiras fontes de estudo e referência os grandes pensadores de
teatro e do homem, tais como Stanislavski, Meyerhold, Grotowsky, Tadeusz
Kantor, Peter Brook, Eugênio Barba, Shakespeare, Beckett, Duchamp, Francis
Bacon, Fellini, Charles Chaplin, Buster Keaton, entre outros. Sempre carreguei
comigo a inquietude da criação. Enquanto bailarina fui coreógrafa; enquanto atriz,
me tornei diretora. A Cia. Teatral do Movimento (que fundei em 1992) veio
aprofundar meu olhar quanto ao intérprete e ao estado de criação. Juntamente com
os atores sigo minha pesquisa de linguagem cênica e aprendo e reafirmo minhas
convicções pessoais e artísticas no dia-a-dia ao vê-los ensaiar, pesquisar e atuar,
assim como me alimento e me revigoro cada vez que assisto a um ator ou a um
espetáculo que me faz sentir feliz.
ci
A.V.: Toda pesquisa pode levar o indivíduo a um aprimoramento. A partir do
conhecimento e um melhor USO ele pode partir para a COMPOSIÇÃO junto a seu
preparador corporal, diretor ou professor.
Eu e Klauss criamos métodos próprios. Nossas principais fontes de pesquisa
foram o Ballet e estudos de Cinesiologia, Anatomia, Fisiologia, Eutonia, e Artes
Plásticas. Buscamos sempre um prazer maior na dança e o envolvimento da vida
neste trabalho com tudo que é inerente a ela. Nas formações que realizamos,
desejamos sempre artistas pensantes e não meros repetidores.
D.C.: Meu acúmulo de experiências e estudos nos campos mais diversos (na
música, nos esportes, na psicologia e na própria dança) desenvolveram minha
linguagem de movimento. A técnica é a base para exercer e investigar esta
linguagem.
Duas palavras são fundamentais como síntese do meu pensamento de
movimento: qualidade e criatividade.
Os conceitos da dança contemporânea como base teórica são fundamentais:
- relação espaço-movimento
- peso – volume – fluxo do movimento
- a personalidade do movimento
- o prazer e a consciência do corpo ao mover-se
- a diferença entre ação e interpretação
cii
- uma base sólida de estar em pé, caminhar, sentar e deitar ( no sentido
mencionado antes, de saber a importância e como fazer movimentos tão
simples e cotidianos)
- saber a força originária do movimento
- a busca de um repertório de gestos próprios do ator, como também de seu
personagem
- buscar espaço entre músculo e osso
- permitir a coexistência de técnicas corporais distintas, como, por exemplo, a
técnica clássica, as artes marciais, a técnica contemporânea, . . .
- compreender que seu corpo produz, junto com seu pensamento, todo acúmulo
de informações que você se propuser a experimentar.
M.R.: Meio respondido acima. Uma grande fonte para mim é o estudo de
harmonia espacial e esforços de Rudolf Laban. Criadores que me influenciam:
Robert Wilson, Pina Bausch, Anna Teresa de Keersmaeker, Wim Vandekeybus.
Pesquisadores que me influenciam: Francis Sparshott, Michèle Febvre e Michel
Bernard, além de Peter Brook, Antunes, Lyotard e Deleuze.
N.K.: Para Percepção: Feldenkrais e Gerda Alexander.
Para o Movimento: Laban.
Para o Teatro: Stanislavski, Meyerhold, Grotowski, Barba...
ciii
Li os livros, fiz os exercícios, como atriz fiz espetáculos de Teatro / Dança, numa
época em que isto era palavrão, faço um teatro que tem no Corpo um peso igual ou
maior que a Palavra como recurso de linguagem para contar, expressar e significar
o Texto.
A.G.: Várias fontes práticas: a London Academy of Music and Dramatic Art, onde
estudei, outros trabalhos de preparação corporal pelos quais passei como atriz, o
treinamento em “stage-fight” (também no LAMDA), ballet clássico, Tai Chi
Chuan, técnica de Alexander, Laban, Feldenkrais, Holfing, algumas técnicas de
massagem, anti-ginástica, ginástica holística, etc.. Enfim, todas que ficaram no
meu corpo.
Nas fontes teóricas nada muito sistematizado, infelizmente. Algumas
leituras sobre Alexander, Laban, Feldenkrais, mas nada com muito método.
R.M.: Na prática utilizo fundamentalmente a Observação. A Natureza é uma
escola gratuita e está sempre ao alcance de todos. O movimento dos pássaros, das
árvores, etc., passando pela movimentação das pessoas nas mais diferentes
situações (até mesmo assistindo a um filme sem som, por exemplo, prestando
atenção no gestual dos personagens). Observação, portanto, é fundamental. Na
parte teórica, fundamentalmente técnica de Alexander, desde sempre.
civ
V.B.: Meu trabalho é baseado principalmente na minha formação como bailarina.
Uma formação que envolveu o estudo de variadas técnicas ligadas à dança, tanto
como forma de expressão e manifestação quanto como espetáculo. O estudo da
anatomia humana e sua relação com o movimento. O estudo desse movimento e
suas relações com espaço e tempo. Esse estudo me levou, num primeiro momento,
em direção à Psicologia. Busquei leituras e informação sobre as várias linhas de
abordagem do comportamento humano, principalmente aquelas em que o corpo é
a base, como, por exemplo, a Gestalt ou a Bioenergética. A Filosofia contribuiu
nessa formação teórica e surgiu por “necessidade de oxigênio”, com leituras de
algumas obras de Platão, Nietsche ou Merleau-Ponty e Gaston Bachelard. A
Poesia e principalmente a Música contribuem com uma parcela fundamental nesse
estudo e fazem parte de meu trabalho diário.
Considerações sobre o material colhido nas entrevistas
As entrevistas, de modo geral, apontam para o corpo como uma ferramenta
expressiva que necessita ser constantemente trabalhada. Não somente visando
“manter a forma”, mas também - e principalmente – habilitá-la a ir além de suas
capacidades cotidianas, tornando-a mais e mais um “emissor de significados”.
Chama a atenção a freqüência com que é mencionada a necessidade de
auto-conhecimento, relaxamento, ludicidade, disciplina e obtenção de prazer
através do corpo. Bem como a menção do corpo como “canal de acesso” às
cv
riquezas interiores da subjetividade de cada pessoa. O ator e seu corpo como uma
totalidade indissociável e a indispensável sensibilização à alteridade (nutrindo-se
confiança e companheirismo) e ao mundo exterior como fonte inesgotável de
inspiração e aprendizado.
Curioso reparar como as diferentes trajetórias de cada entrevistada
produzem visões sutilmente distintas do papel do ator. Enquanto algumas propõem
o ator como um “autor” de significados, outras o encaram como um instrumento a
ser moldado pelo diretor, a este sim cabendo o papel de “autor”.
Chama também a atenção alguns contrastes entre as formações teóricas das
entrevistadas, com um possível excesso de empirismo em detrimento de um
conhecimento mais abrangente e multi-referenciado. Apenas uma questão de
opção? Ou falta de?
O mais notável acaba sendo a pouca utilização de artes marciais no
processo de preparação corporal, especialmente a Capoeira. Tendo em vista seus
possíveis benefícios, é de surpreender que uma forma de expressão tão ligada às
nossas raízes culturais seja simplesmente ignorada no treinamento corporal do ator
brasileiro.
E a grande surpresa acabou sendo a descoberta da utilização da Capoeira
por Angel Vianna no treinamento de atores e bailarinos ainda nos anos sessenta
com, segundo ela, ótimos resultados. O que, além de ratificar o extraordinário
pioneirismo da entrevistada no campo da Expressão Corporal, torna-se mais um
forte indício da validade desta fascinante opção.
cvi
ANEXO II - MATERIAL ICONOGRÁFICO
O material iconográfico que se segue divide-se em duas partes:
A – As oito seqüências de Mestre Bimba, todas retiradas do livro Curso de Capoeira em 145 Figuras, de Augusto J.F. Lopes.
B – Registro de imagens da Oficina de Capoeira para Atores na UNI-RIO, ministrada por Mestre Garrincha no segundo semestre de 1998. As fotografias foram obtidas, através de computação gráfica, a partir de um registro em vídeo Hi-8 das aulas.
cvii
PARTE A
cviii
cix
cx
cxi
PARTE B
cxii
cxiii
cxiv
cxv
ANEXO II – B
1) Mestre Garrincha
2) Instruindo os alunos
3) O aquecimento é feito ao som de um pandeiro
4) O aquecimento também é realizado ao som de um atabaque
5) Os exercícios são entremeados com alongamentos específicos
6) A importância do olhar do capoeirista, mesmo de cabeça para baixo
7) Treinamento de “rolê”
8) Treinamento de “aú”
9) Demonstração de “armada” com o auxílio do atabaque
10) Treinamento da “cocorinha” (postura defensiva do aluno)
11) Treinamento de “rolê”
12) Roda de Capoeira / situação de jogo: “bananeira”
13) Idem: “Macaco”
14) Idem: “Chapa”
15) Idem: “Bênção”
16) Idem: “Aú”
17) Idem: “Xangô”
18) Idem: “Meia-Lua de Apoio”
19) Idem: “Armada”
20) Roda de Capoeira: Maculelê
21) Roda de Capoeira: “Martelo”
22) Treinamento de ritmos p/ Maculelê
23) Roda de Capoeira: “Rasteira”
24) Alongamento e relaxamento após o treino
25) Canto e percussão
26) Confraternização no final de uma Roda
cxvi
ANEXO III – Empty-Handed Combat in the Actor Training Program
By Richard Nichols
(…)With the actor’s needs in mind, let us look at various aspects of the Lecoq-
based combat experience:
1. The presence of character intentions. Each participant wants to defeat his
opponent, to inflict pain, to smash in his face (I am referring to character
intentions, of course). The simplicity, the directness, of the chosen intentions helps
the young actor better understand the importance of intentions as a source of
action and connected emotional response.
2. Selection of appropriate actions. One of the most difficult lessons for
young actors is the selection of the appropriate physical response once the
intention is selected. Faced with the problems inherent in the creation of any
unscripted work, the student combatant quickly senses that there is an infinite
number of actions appropriate for a given intention. By this time, however, the
student already has had opportunities to explore the interplay of movement effort,
shape, timing, and emotional key and begins to narrow the range of possible
actions. “Is the physical activity appropriate to the character’s needs and the
situation at this particular moment?” That question is continually asked during the
development of the fight scene and there are few students who do not discern the
connection between their work on the fight scene and their work on a scene for the
acting studio.
cxvii
3. Committed physical and emotional responses to the situation. Combat,
and honesty in any other scene work as well, cannot exist without full physical and
emotional commitment from both partners. Students learn that there can be no
halfway in their giving of themselves on the stage. At the same time, however,
they also learn the difference between enthusiastic, uncontrolled response and
focused, efficient expenditure of physical and emotional energy.
4. Acceptance of the imagined situation in which the fight is contained.
Both partners must establish clear characterizations, complete with detailed given
circumstances (furniture, props, and other accoutrements should be imaginary, not
actual) and behavior consistent with the level of theatricality established at the
scene’s outset. In short, both actors must behave as if they are involved in actual
weaponless combat. Without full acceptance of the characters and situation, the
combat becomes a mere exercise in movement activity.
5. The need for mental images, focused outside the actor. There is a marked
similarity between athletes and actors; both must deal with images. High jumpers
and pole vaulters, for example, are known for their ability to project a mental
image to a point in space and to physically identify with that image. Before each
jump the athlete imagines himself moving through space, approaching the bar,
lifting, and clearing. He sees and feels himself moving from point A to point B,
and he strives for a physical union with the imagined action.
The actor involved in combat also must employ such mental activity as \he
imagines his hand , foot or knee moving through space to stop at the envisioned
cxviii
location. Although the punch to the stomach, for example, stops at an envisioned
spot one quarter of an inch inside the abdomen wall, the actor’s safety is a primary
concern; therefore, blows do not usually touch the person for whom they are
intended. Thus, the image takes on even greater importance because slaps and
other movements pass within a fraction of an inch of an opponent’s face. The fight
techniques are too complex to be outlined in this discussion, but there is an
appearance of true contact, even in the arena situation. Without the projection of
such images, fidelity is not possible. The mental discipline encountered in the use
of images in combat enhances the actor’s ability to see imaginary objects or people
in space. The value to the actor playing Macbeth in the banquet scene is clear
indeed.
6. Development of kinesthetic sensitivity and the ability to improvise in
space. The basketball player, to return to my comparison of actor and athlete, is a
model of kinesthetic awareness as he or she moves up and down the court. On the
fast-break, the man with the ball is attempting to mentally out imagine his
opponent, laying out possibilities for future action as he proceeds down the court.
Kinesthetically, he also is sensing subtle alterations in the space relationship
around him. While he may have a range of possible movements in mind, he must
improvise as the changing situation demands. He must play the moment. The actor
involved in the fight scene must do likewise.
Detailed rehearsals lead to the scene itself, but at any moment the rehearsal
or the performance may not go as planned. The changing configurations of bodies
cxix
in space, specially in falls and rolls, demand that the actor develop a circle of
awareness, a full 360 degrees. Without such awareness, it is difficult for the
student to play the moment as required; to improvise in order to maintain control
of the scene under duress. The lessons learned from combat can be a positive
factor in the creation of an ensemble and the development of a sensitivity to the
flow of the crowd scenes.
7. A continual movement toward “other consciousness”. Combat requires
intense concentration, focused on one’s partner. Each combatant must move out of
himself and direct his energy out and to his partner. Stanislavski refers to this
phenomenon as “infecting” one’s partner, and combat can be an excellent device
for demonstrating the ebb and flow of energy on stage, especially when that
rhythm is based on the interplay between violently opposed intentions.
8. An understanding of the importance of “phrasing”. Young actors often
strive for a given effect without going through all the steps necessary to achieve it.
Empty-handed combat teaches actors to do one thing at a time, giving each action
a beginning middle and an end. To throw a punch while a slap is not yet complete
can be dangerous as well as theatrically ineffective. The stress upon one thing at a
time has a salutary influence on scene work, not only because it teaches clarity of
gesture and related physical activity, but also because it places a premium on the
ability to stay in the moment, playing one beat at a time.
9. Development of physical efficiency through exercises preparatory to the
combat experience and through an understanding of the flow of effort. The
cxx
physical education which is at the heart of the Lecoq technique is founded, to a
large extent, on the rediscovery of (and growing sensitivity to) one’s own rhythms
and effort patterns. Students gradually sense the importance of respiration in all
movement patterns, and close attention is given to the very way in which students
view movement itself. Many students – far too many – have developed mental sets
that result in inefficient movement patterns and expenditure of immense,
uncontrolled energy when they encounter any exercise calling for large muscle
activity. The combat experience quickly demonstrates the need for efficiency;
without it, students have difficulty completing the fight scene. More importantly,
combat brings the realization that effort is a complex sequence: mental preparation
for each action, the decision to act, the action itself, the subsiding and cessation of
effort, a moment of rest, an evaluation of the results of the action, and a new circle
of activity based on the information gleaned from the preceding cycle. Certainly,
this flow is nearly instantaneous in many cases, but a study of the flow can bring
new depth to the actor’s work in the acting studio, especially once he realizes that
his own flow of effort may need to be altered in order to more accurately reflect
the effort patterns of the character at hand.
10. Maintenance of Stanislavski’s “two perspectives of a role”. The
physical and emotional stretching that occurs in the context of empty-handed
combat is a vivid object lesson in the importance of control – of technique – in the
actor’s craft. No matter how intense the activity and emotion, the actor must learn
to develop a center of calm. Martial arts advocates call the process “centering”. At
cxxi
stake is the nurturing of two necessary perspectives: that of the character being
played; and that of the actor himself as he looks at the character, at himself, and at
the changing environment in which he works.
11. An appreciation for discipline as the source of freedom. This aspect of
the work is suggested in each of the preceding elements, but it deserves
consideration on its own merits. Despite the emphasis placed on safety, there is
always an element of danger in the combat experience, and students are quick to
appreciate that danger. At the same time, however they also develop a healthy
respect for discipline as the key to their continued well-being. Out of the maturing
discipline comes trust in one’s partner (availability) and confidence in oneself
(commitment). The students sense the positive, supportive side of discipline in
their chosen craft. Rather than viewing discipline as a fetter, they understand that it
truly is one key to the continuing development of physical ease, physical
efficiency, and a freer, more organic emotional response to the imagined world at
hand.
Richard Nichols (Acting, Movement, Directing) PhD from University of Washington. During
1995-96 sabbatical studied Kyogen and Noh Theatre in Japan in the fall and was Guest Artist at
the Central Academy of Drama in Beijing in the spring. Headed acting program at University of
Nebraska and movement program at Goodman School of Drama. Guest teaching at more than 50
colleges and universities, including professional conservatories at Ohio University and the
Alabama Shakespeare Festival. Extensive Alexander Technique study with Marjorie Barstow and
others. Has directed numerous productions in university and Equity summer stock settings. Acted
with Pennsylvania Centre Stage. Former national chair, American College Theatre Festival.
cxxii
(Richard Nichols é professor de interpretação, expressão corporal e direção teatral. Recebeu seu
Phd pela University of Washington, onde estudou os métodos de Lecoq com Arne Zaslove. Entre
95 e 96 estudou Kyogen e Teatro Nô no Japão e foi artista convidado da Central Academy of
Drama em Beijing. Dirigiu curso de interpretação na University of Nebraska-Lincoln (onde
ensinou preparação corporal, baseada em Lecoq, para atores) e curso de expressão corporal na
Goodman School of Drama. Professor convidado em mais de 50 escolas e universidades,
incluindo-se conservatórios profissionais na Ohio University e Alabama Shakespeare Festival.
Realizou curso de extensão em Técnica de Alexander com Marjorie Barstow e outros. Dirigiu
vários espetáculos universitários e trabalhou como ator no Pensylvania Centre Stage. Foi
presidente nacional do American College Theatre Festival.
cxxiii
FIM
cxxiv
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